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Neoterraplanismo, o outro do neoconservadorismo.

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Mais difícil do que suportar terraplanistas, isto é, aqueles que creem que a Terra é plana e não geoide, é entender porque, a despeito de evidências científicas, essa antiga crença ganhou espaço nas cabeças de certos indivíduos contemporâneos. Entretanto, esse fato absolutamente intempestivo não é acidental nem tampouco má-fé de seus polemizadores mais vulgares. Trata-se, objetivamente, da repercussão oportunista de um modelo cosmológico caduco que, todavia, ainda guarda em si os mesmos poderes ideológicos e consequências sociopolíticas de outrora. E é em prol de um certo projeto de poder: o neoconservadorismo, que essa velha ideia foi ressuscitada.

Um sistema cosmológico, fictício ou cientificamente comprovado, é uma imagem de como o universo é e se organiza, e, entre outras coisas, serve de fundamento, de justificativa para as instituições socioculturais daqueles que nele creem. A monarquia, qual seja, a centralização do poder em um só indivíduo, por exemplo, é a outra face do antigo modelo cosmológico ptolomaico/ geocêntrico, para o qual o universo tem um centro definido, com a Terra ocupando esse centro. Daí as sociedades passadas,  tradicionais, desejantes de respeitar e reproduzir “a lógica eterna do cosmos”, organizarem-se do mesmo modo: a sociedade também deve ter um centro e esse centro deve ser ocupado por um indivíduo determinado em torno do qual os demais orbitam.

Já a democracia dos nossos Estados modernos, que pulveriza igualitariamente o poder entre os indivíduos de uma sociedade (para a qual as ideias de centralidade e de poder, ao menos formalmente, são apenas representativas) é reflexo inevitável do subsequente modelo cosmológico copernicano, segundo o qual a terra não mais ocupa o centro do universo nem o universo tem um centro unívoco. Para Freud, essa foi a “primeira ferida narcísica da humanidade”. Com essa nova forma cósmica desenvolve-se a ideia de que, se não é natural as coisas se organizarem hierarquicamente no universo; se não há centros universais; as sociedades humanas, que são coisas no universo, tampouco devem refletir tal irrealidade.

Essas duas imagens cosmológicas: a ptolomaica e a copernicana, e as duas formas de organização do poder que delas decorrem: a monarquia e a democracia, respectivamente, esclarecem a identidade entre determinadas ideias de organização do universo e as realidades sociopolíticas humanas. A proposição inicial, segundo a qual o neoterraplanismo é o outro do neoconservadorismo, se dá sobre essa base. Assim como outrora a monarquia encontrou longeva justificativa em uma imagem cósmica, assim também os atuais promotores de uma nova centralização do poder agem. E colar cacos do passado para com eles construir os vasos do presente e futuro é próprio do pior conservadorismo reacionário.

Então, como foi dito, o uso da ideia terraplanista não é acidental. É, na verdade, a tentativa, de indivíduos sedentos pelo poder absoluto, de restabelecer uma ordem cósmica que justifique as suas ideias de como a sociedade deve estar ordenada. O neoconservadorismo não conseguirá ser tão profundo e longevo quanto sua versão pretérita enquanto a imagem copernicana de um universo livre de centros hierárquicos for paradigmática.

Ícone tupiniquim tanto do neoconservadorismo quanto do terraplanismo é o “pornofilósofo” Olavo de Carvalho que, como muitos autores conservadores, acredita que um projeto de poder não encontra espaço na realidade se com ele não vir junto uma imagem do todo, do cosmos, que o sustente com ares de naturalidade. Esse autor defende, há anos, a ideia de que a direita deve trazer ao mundo um novo e completo modelo de realidade caso queira recuperar o seu poder perdido para “as esquerdas”, que, segundo ele, venceram historicamente popularizando uma imagem do todo onde somente a democracia é reflexo cósmico fidedigno.

Pelo que podemos observar atualmente, o ressurgimento da falsa imagem da Terra plana; da centralidade da Terra e consequente periferização do restante do universo relativamente a esse centro excelente acompanha o levante dos poderes conservadores de direita no mundo, não apenas no Brasil. Apenas um projeto de poder tão ambicioso e intempestivo quanto o que Olavo de Carvalho e seus congêneres reacionários defendem justifica as presentes afrontas, tanto ao virtuoso cientificismo de nossa época, quanto à própria sensibilidade humana.

O Objetivo primordial dos promotores oficiais do neoterraplanismo não é revelar uma verdade maior a ser acordada por todos após uma batalha propriamente racional. Antes, pretendem apenas abrir uma discussão que de forma alguma deve ter fim, mas que crie dissidências irrecuperáveis entre as pessoas; para conturbar o espaço de esclarecimento que paulatinamente a humanidade construiu para si; para estabelecer dois tipos de pessoas: os que veem o universo como ele é, e os que não. Daí, se vitoriosos, poderão tratar os que discordam de sua “verdadeira imagem do cosmos”, no melhor dos casos, como idiotas, ou, no pior, como escravos. Ah, e nunca é demais lembrar da intimidade histórica do conservadorismo com a escravidão; com a sujeição de uns a outros; e, no ápice, e todos a um só.

Corriqueiro, historicamente falando, é portadores de grandes e revolucionárias verdades serem mortos, exilados, queimados vivos. Giordano Bruno, por exemplo, teve esse último destino por afirmar que o universo é infinito. Filósofos antigos, bruxas medievais e cientistas modernos: suas verdades são tão poderosas que ameaçam profundamente as forças que se fundamentam em imagens falsas da realidade.

 Há sim a possibilidade de a verdade científica ser obscurecida por sombras ideológicas demodês em função de objetivos mundanos perversos. O que pode salvar nosso presente e futuro, contudo, é outra imagem da realidade que dificilmente se poderá negar: a de que, na História, a racionalidade sempre venceu a irracionalidade; a civilização, a barbárie; a política, a violência. Pode demorar um tanto, assim como toda batalha, mas não temos melhor quadro da humanidade senão o da construção da liberdade justificada no conhecimento verdadeiro em relação à realidade.

Creio que a melhor tática anti-neoterraplanista seja espantar-se menos com a sua popular repercussão, e, em troca, alimentar a consciência de que essa mentira, embora mentira, é dita e sustentada por motivos reais, concretos, de uma elite que não suporta a ideia da distribuição universal do poder e, por isso, precisa rejeitar qualquer modelo de cosmos que exprima a descentralização. Os neoterraplanistas estrategicamente interessados, aqueles que incutem objetivamente tal ilusão nas cabeças de milhões de pessoas, não para informá-las sobre a realidade, mas para obter poder real, dificilmente acreditam que a Terra seja de fato plana. Apenas sabem, muito bem, por experiências históricas, que tal lorota tem as suas consequências sociopolíticas. E são justamente estas que eles objetivam com a sua neofalácia cosmológica, ainda que ao alto preço da racionalidade e sensibilidade humanas.

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Política, comédia e educação.

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Diante da contemporânea “tragédia” política brasileira, parece um perigoso exercício de alienação o mar de memes que faz troça do roubo do poder por uma corja de golpistas criminosos e do radical furto de direitos da população. Todavia, esse talento cômico do nosso povo face às vicissitudes da política não é invenção sua. Nascida na Atenas antiga, a comédia era a crítica e a expressão mais candente da crise daquela democracia. E isso porque, nas palavras do filósofo Werner Jaeger, na sua clássica “Paideia”, “A comédia visa as realidades do seu tempo mais do que qualquer outra arte”.

Disseram alguns que o homem é o único animal capaz de rir. Outros, mais mordazes, que ele é o único capaz de rir de sua própria desgraça. Se é assim, a comicidade é a forma humana de encarar a realidade quando ela é mais difícil de suportar. Estaria a sabedoria popular certa ao repetir que “É melhor rir do que chorar”? Ou, antes, certo está Platão ao dizer que a vida humana tem de ser encarada ao mesmo tempo como tragédia e como comédia? Bem, o povo brasileiro parece não escapar do dito do pai da filosofia… Resta saber como a popular memética cômica desses nossos dias golpistas pode nos ajudar na nossa tragédia política.

Jaeger conta que “A origem da comédia encontra-se no incoercível impulso das naturezas mais comuns … na tendência popular, realista, observadora e crítica”. Na Atenas antiga, ela tinha a tarefa da crítica pública, ou seja, da crítica feita pelo povo, ou, pelo menos, da perspectiva do povo. Todavia, adverte o filósofo, a comédia nunca constituiu algum grande plano político organizado. De uma parte, contribuía para desanuviar a atmosfera de opressão. De outra, comunicava publicamente a situação de opressão, apontando distintivamente os opressores. Para Jaeger, a comédia é a “elevada arte do ataque pessoal dirigida até mesmo às pessoas de mais alto posto na hierarquia do Estado”.

Sabemos que a democracia, isto é, a administração do Estado pelo povo, foi uma invenção dos atenienses. Antes disso, e em outros lugares, a lei que regia as sociedades vinha sempre de cima. Primeiro, dos deuses. Depois, dos heróis e dos reis. Em Atenas, contudo, a lei passou a ser produto dos próprios cidadãos, de suas livres deliberações democráticas. Entretanto, afirma Jaeger, a democracia ateniense tanto deu liberdade ao povo que, a certa altura, precisou limitá-la para evitar o caos social. Só que essa limitação, democraticamente falando, não poderia vir do próprio Estado democrático. Se assim tivesse sido, falaríamos de tirania, e não de democracia. Então o Estado democrático, prossegue o filósofo, fez com que tal limitação viesse das interferências do próprio povo, melhor dizendo, da opinião pública, que se expressava, verdadeira e contundentemente, na comédia.

Com efeito, para Jaeger, a comédia veio ao mundo grego como “o mais genuíno produto da liberdade democrática da palavra”. Claro que as autoridades oficiais procuravam, sempre que podiam, proteger as pessoas de prestígio dos cômicos ataques populares. Mas o filósofo conta-nos que tais proibições não duravam muito. Afinal, cada vez mais sabia-se que negar o que a comédia trazia a público significava negar algo de muito importante da realidade. Para Jaeger, a comédia encarnava o invisível numa forma sensível, fazendo ver as forças opostas da comunidade e do indivíduo; do povo e da elite; dos pobres e dos ricos; da liberdade e da opressão; do passado e do presente. Em suma, era através da comédia que a crísica sociedade grega conhecia seus recônditos ao ironizar a si mesma.

Na crise da democracia e da pólis grega, prossegue Jaeger, “Só a comédia era capaz de exprimir isso para todos”. Antes disso, a religião, com seus deuses, e a tragédia, com seus heróis, cumpriam o papel de comunicadoras e unificadoras universais daquela sociedade. Porém, com a progressiva laicização da vida que resultou politicamente na democracia, os atenienses não puderam mais contar com sobre-humanidades nenhumas, fosse para compreender, fosse para atacar seus problemas sociais e políticos. Diante desse novo, grandioso e absolutamente mundano desafio, Jaeger conta que somente a comédia, com sua linguagem e penetração social, foi capaz de colocar a sociedade diante do espelho.

Está certo que a comédia não salvou Atenas e a sua democracia. Ainda mais depois da dominação de Alexandre, o Grande, quando as cidades-estado gregas perderam a sua razão de ser, e a revolucionária democracia ateniense passou a jazer apenas em forma de saudosa lembrança. Trágico destino, obviamente, depõe contra qualquer tentativa de se enfrentar a vileza da realidade apenas fazendo rir. Entretanto, como dito antes, a comédia nunca foi um macro plano organizado de solução sociopolítica global, mas sim uma forma particular – se bem que a maior de seu tempo – de reconhecimento público de um presente crísico.

Relativamente ao presente brasileiro, só devemos condenar o nosso ímpeto espirituoso face às agruras sociopolíticas se nada além de troça fizermos. Nada contra o riso – humano, demasiado humano tomar conta da sociedade, qual histeria coletiva, em reação imediata a grandes dificuldades. Afinal, como diz aquela canção, “É melhor ser alegre que ser triste”. Agora, como bem sabe o ditado popular, “Rir de tudo [e o tempo todo] é desespero”. Um povo que realmente espera resolver seus problemas, e isso sem contar com deuses nem heróis, depois de comunicar cômica e publicamente o próprio infortúnio, deve cerrar os dentes e agir seriamente.

Que seriedade, não obstante, pode sobrevir, primeiro, à tragédia, e, por fim, à comédia, senão a consciência positiva e comunicável desse processo? Jaeger é categórico em dizer que, após o apogeu da vida política e social da Grécia, quando finalmente estavam arruinados todos os seus maiores bens, tais como o Estado, o poder, a liberdade e a vida cívica, algo de extremamente valioso permaneceu vivo e operante: a Paideia grega, isto é, o sistema de educação e formação ética daquele povo, cujo escopo era a formação do cidadão perfeito e completo, capaz de desempenhar um papel positivo na sociedade.

Foi justamente em meio às trevas irremediáveis da catástrofe política grega que se revelaram os maiores gênios da educação, tais como Sócrates, Platão e Aristóteles, que transmitiram aos outros povos da Antiguidade e à posteridade histórica, até nós, a mais alta expressão possível de humanidade. Não que a educação deva surgir somente após a tragédia e a comédia. Na verdade, ambas desde sempre já foram modos educacionais a conduzir toda uma sociedade ao seu melhor fim. A grandeza grega esteve, e ainda está, justamente no fato de a educação ser substantiva. Superada a educação trágica, que socializava a imersão humana no inescapável fluxo da vida, e a educação cômica, que permitia ao público falar a si mesmo de seu trágico destino, restou a educação per se, enquanto objetivação racional do conhecimento do mundo e de si próprio.

Talvez devamos mudar um pouco a frase de Platão apresentada no início. Em vez de a vida humana, seja a grega antiga, seja a tupiniquim contemporânea, dever ser encarada ao mesmo tempo como tragédia e como comédia, se tomarmos o exemplo da própria evolução histórica da sociedade grega, que primeiro foi trágica, depois cômica, para, por fim, ser puramente paidêutica, isto é, educacional, quem sabe a atual dinâmica do povo brasileiro de, primeiro, sofrer seus revezes, para, em seguida, fazer piada deles, seja o necessário calvário do nascimento de um verdadeiro processo de conhecimento e de aperfeiçoamento de sua, de nossa, própria condição social.

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Financeirização da economia e a dominação ilimitada

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Como impedir a classe dominante de dominar? Marx bem tentou responder essa pergunta no seu Manifesto Comunista, que começa afirmando que “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Só que essa tarefa se mostrou bem mais difícil do que o grande filósofo materialista imaginou. Mais ainda depois que o capitalismo se libertou de qualquer limitação material, ou seja, após o presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971, abolir o lastro material do Dólar. Com esse ato, foi dispensado o fundamento material daquela moeda, e por efeito cascata, o de todas as demais. Doravante o dinheiro, e a dominação que ele proporciona, passaram a ser inventados. Claro, quem detém o poder (político e militar) para tal “alquimia” é a classe dominante, que, quanto mais inventa riqueza, mais a inventa para si mesma, e, portanto, mais-domina.

Para inventar sua dominação de modo legal, e além do mais democrático, basta, por exemplo, que as doze famílias mais ricas dos EUA, donas dos doze maiores bancos que formam o Federal Reserv Bank (o banco que cria os dólares para os EUA), enfim, basta que a classe arquitete uma devastadora crise econômica, para a qual apenas alguns trilhões de dólares – que ela mesma pode inventar imediatamente – sejam a solução mais objetiva. O governo então aceita esse dinheiro abstrato e, no mesmo instante, o povo e o futuro desse Estado passam a dever a exata quantia à classe, só que agora, obviamente, em forma de riqueza concreta. Se o lastro para o dinheiro que  a classe inventa findará em barras de ouro ou em mega favelas na África, Ásia e América do Sul tanto faz. A classe cobra concreta e materialmente por centavo que abstratamente inventa.

Só que, dado o montante de dinheiro inventado na nossa economia financeirizada, é impossível lastreá-lo materialmente. Há vários limites. Um deles, o ecológico, é quiçá o que melhor demonstra essa impossibilidade. Há quem diga que seria preciso de seis a dezesseis planetas Terra (em quantidade de ar, água, terra, minérios, etc.) para arrancar, da natureza ao mundo humano, a riqueza material necessária para lastrear a riqueza inventada pela classe. Todavia, embora essa dívida seja de fato material, econômica, social, política e ecologicamente impagável, ela só continua sendo criada porque é logicamente possível fazê-lo. Afinal, nada há de errado em cobrar do futuro, que além do mais é ilimitado, quando se abstrai o fato concreto de que não haverá planeta Terra para tanto.

Para manter essa lógica insustentável funcionando, todos os dominados/endividados que ousam afrontá-la devem ser restringidos legalmente e reprimidos militarmente pela classe. É tão impossível para a humanidade materializar toda a riqueza abstratamente inventada pela classe quanto deter a classe na sua desenfreada financeirização da econômica. Na época de Marx, o capitalismo ainda era refém do mundo material. A mercadoria, misto de matéria-prima e meios de produção capitalistas e de mão de obra proletária, era fundamental no processo de produção de mais-valor que permitia à classe mais-dominar. Na financeirização da economia, entretanto, nada de material precisa ser produzido para que venha ao mundo tanto dinheiro quanto deseja a classe. A produção material, obviamente, não desapareceu. Apenas sobrevive em modo zumbi, mentido caducamente que será através dela que se pagará a dívida à classe.

Agora, por mais perverso que seja, esse sistema no qual a classe minoritária dominante pode inventar, em nome da classe majoritária dominada, uma dívida maior do que o futuro da humanidade, obrigando esta última, legal e militarmente, a pagá-la, materializá-la, lastreá-la com o suor de seus corpos, é de uma estratégia admirável. Nunca foi tão fácil dominar! Žižek bem disse que, desaparecendo a necessidade de fundamento material para a dominação de classe, e bastando a classe inventar quantas vezes quer ser mais rica e dominante, o que resta é a dominação direta e injustificável de uns indivíduos sobre outros, como se se tratasse de uma determinação divina, extra-humana. Inventar dinheiro, no mundo capitalista, é inventar poder. Poder criar uma dívida em nome de outros, portanto, é criar poder sobre eles.

Desfinanceirizar a economia é, portanto, um urgente passo para libertar os povos dessa insustentável liberdade da classe de inventar, desimpedida de qualquer restrição material, a sua dominação. Talvez devamos reconsiderar a velha ideia marxiana segundo a qual o sumo valor é tão somente fruto de trabalho humano, pois ela reata os pés de Ajax da classe no chão material do mundo, impedindo-a de inventar abstratamente sua dominação concreta. O grande problema, contudo, é impedir a classe de se valer compulsivamente de sua maior sofisticação (inventar sua superioridade) uma vez que ela está de posse dos Estados e de seus exércitos.

Uma autêntica revolução seria a solução, pois desfinanceirizaria a economia capitalista ao destruir próprio o cosmo capitalista. Ora, se é para desafiar o Estado burguês e sua opressiva força militar, que seja para a maior das mudanças, pois só ela puxará naturalmente todas as demais necessárias. Entretanto, a revolução parece estar mais desacreditada do que nunca. Todavia, não porque os preceitos socialistas revolucionários tenham perdido sua pertinência, mas porque a classe, estrategicamente, assim como vem inventando a sua dominação, inventa também as pseudo verdades que lhes serve, tal como a ideia de que é melhor o capitalismo do que qualquer outra forma econômica para a humanidade subsistir materialmente.

Se não é possível fazer a revolução agora, pois, novamente, temos os Estados nacionais e os seus exércitos contra ela, ao menos alimentemos a ideia de revolução tal qual se encontra excelentemente em Marx. Que não seja possível mudar o mundo por esta ou aquela contingência não deve significar que a razão da mudança seja inválida. Muito pelo contrário. Talvez seja justamente nessa era de economia financeirizada, na qual a invenção de dominação concreta a partir de uma mera abstração é a regra, que uma simples ideia revolucionária possa, subversivamente, aproveitar a onda e materializar-se. Se não há como vencer uma guerra sem ter ao menos as mesmas armas do inimigo, afrontemos então a classe usando a sua mais sofisticada artilharia: inventemos um mundo sem dominação e exijamos, a qualquer custo, que o mundo material e concreto corresponda a essa justa, e até aqui, abstração.

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Neoliberalismo Político-Cultural na Cidade Sorriso

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Nelson Marchezan (esq.), prefeito de Porto Alegre, e, Luciano Alabarse, secretário de cultura.

O secretário de Cultura da capital portalegrense pelo governo do PSDB, Luciano Alabarse, participou do encontro promovido pelo Goethe-Institut chamado “Conversas Cidadãs” para debater “Política Cultural” com a comunidade. Entretanto, o mais próximo que se chegou do grande tema foi a apresentação, em números concretos, por parte do secretário, das políticas culturais da presente administração; e, da parte da plateia, contraposições atinentes à má assistência e até mesmo ilegalidades da atual política cultural estatal, outrossim referentes a fatos concretos. Um espaço franco como o que o Instituto Goethe promoveu entre a comunidade e o Estado, contudo, deveria ser também ocasião para a sociedade alçar-se a assuntos mais globais, pois estes são tão reais quanto determinantes nos casos particulares concretos. Infelizmente, não houve oportunidade para serem abordadas, abstratamente, isto é, independentemente da situação particular da Cultura em Porto Alegre, questões tais como: de onde partem as tais “Políticas Culturais”; a quem elas servem em primeiro lugar; e, o mais importante, que espécie de política resta e é combativa quando a “política cultural oficial” é problemática?

Nesse sentido, vale lembrar a distinção feita pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu entre “Política Cultural” e “política da Cultura”. A primeira, referindo-se à política culturalizante produzida e aplicada verticalmente por quem ocupa o poder político, e, sem ingenuidade, para benefício próprio. Como exemplos trágicos de “políticas culturais” temos as dos Estados de Mussolini, Hitler e Stalin. Contrapondo-se à “política cultural”, a “política da Cultura” é a organização e a mobilização política da categoria cultural para ter força diante da “Política Cultural estatal”. (Digo “categoria” e não “classe” porque é munição política ter bem claro que classes são apenas duas: a dominante e a dominada). Analogamente à distinção entre Estado e sociedade civil distinguem-se “Política Cultural” e “política da cultura”. A ausência dessa profundidade bourdieuana no “Conversas Cidadãs” acabou por impedir a plateia de poder criticar a própria ideia de “Política Cultural” e, consequentemente, de pensar uma outra política efetivamente em função da Cultura e de sua categoria.

Claro, para saber que a Política Cultural do Estado serve imediatamente a quem governa esse Estado é necessário saber também que os nossos Estados Nacionais são uma produção da classe dominante burguesa que afasta o povo do autogoverno via “a nossa democracia” representativa. Nisso, Marx sempre esteve certo: o Estado é um instrumento de dominação de classe. No ínterim estatal burguês, o povo ganha permissão para “participar do poder” apenas no cada vez mais inócuo expediente das urnas, sendo que em qualquer outra aventura popular em função de mais poder além desta será – como de fato é – constrangida legalmente e reprimida militarmente. Abstrair da ideia de “Política Cultural” as políticas culturais de um governo determinado permite ver inclusive que faz pouca diferença o Estado estar nas mãos de um partido de direita ou de um de esquerda: o Estado enquanto tal servirá à parcialidade às custas da totalidade. Sequer precisaríamos do exemplo peessedebista para vermos como e até onde políticas públicas são feitas para benefício de banqueiros e empresários.

Na ignorância desse fato, muitos participantes do Conversas Cidadãs, na defesa da Cultura e de sua categoria profissional, chegaram ao absurdo de, ingenuamente, defenderem que a categoria cultural deveria “sentar junto” com o secretário (do PSDB!) para “construírem conjuntamente” a solução para os graves problemas da cultura portalegrense. Alabarse, como legítimo representante do Estado neoliberal naquele auditório, elogiou diversas vezes a ideia. Entretanto, não por ser a solução para os reais problemas da Cultura e da categoria que dela sobrevive e nela se realiza, mas porque obscurece ainda mais a distância entre a “Política Cultural estatal” e a “política da Cultura”. Assim como o neoliberalismo mente uma igualdade onde não existe ao defender que é melhor deixar patrões e funcionários a sós para resolverem suas questões, assim também é mentiroso que seja melhor à categoria cultural sentar amigavelmente com o braço cultural do Estado como se houvesse paralelismo de metas entre eles.

Impossível não lembrar de Nicolau Maquiavel, filósofo italiano que deixou bem claro, lá na aurora da modernidade, que a ventura de uma sociedade não se dá na paz e na concórdia interna, mas na irresolubilidade do conflito político. Dessa perspectiva, obviamente, não é “sentando em paz” com o secretário do PSDB que a categoria cultural se beneficiará (assim como patrão e funcionários deixados sozinhos é bom só para o patrão). Maquiavelianamente falando, alguma autonomia à categoria cultural só será possível quando esta categoria se colocar, política e organizadamente, contra a verticalidade inerente a qualquer “Política Cultural estatal”, e, particularmente, contra a política cultural específica do PSDB. Por isso é importante manter a distinção de Bourdieu entre “Política Cultural” e “política da Cultura”: para não nos esquecermos de que no plano da “Política Cultural estatal”, ainda mais na de um Estado gestado neoliberalmente, não está a realização da Cultura nem tampouco a de sua categoria, mas somente no antagonismo a tal “Política”.

E o engodo neoliberal segundo o qual “a solução” é o secretário de cultura e a sociedade “sentarem juntos” para construírem o bem da Cultura portalegrense, estratégia que oblitera a dissimetria entre essas duas partes, serviu de trampolim para Alabarse dizer pública, vertical e neoliberalmente que “fora da parceria público-privado não há solução para os problemas da cultura local”. Resumindo: aceitar “sentar juntos” com esse representante do Estado é ter de engolir, de pronto, o propósito mor de seu partido: o privado – e às custas do público. Se isso fosse claro, a plateia não cogitaria pax alguma com o secretário, mas apenas uma incansável luta política, pois, com efeito, não se trata de a categoria cultural desejar que a política de seus governantes lhes sirva a partir de cima, acidental ou dadivosamente, mas, decisivamente, de fazer os governantes entenderem que é a “política da Cultura”, gestada e defendida pela categoria cultural, que deve ser tornada “a” política cultural do Estado. Pois assim o Estado não será obstáculo, mas, em vez disso, um meio de a Cultura e todos as pessoas que dela vivem realizarem-se cultural e materialmente. Se bem que, aí, nem poderíamos mais chamar essa coisa de Estado…

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A liberdade é um partido!

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Com a modernidade surgiu a ideia de que a história da humanidade é a história da liberdade, mais especificamente, da conquista da liberdade pelo ser humano. No entanto, quando falamos, e até mesmo lutamos por “liberdade”, porventura sabemos o que é esse objeto? Na pós-modernidade não é difícil encontrar quem diga que sim, que cada um conhece a liberdade, afinal, cada sujeito tem ideia do que, para si, a liberdade significa. Todavia, se cada indivíduo tiver o próprio ideal de liberdade, como se se tratasse de uma mera percepção subjetiva e singular, como poderíamos lutar conjunta e objetivamente por uma liberdade que valha igualmente para todos, e, assim, darmos continuidade à história que é a nossa?

Qualquer luta conjunta que pretenda alguma eficiência exige, em primeiro lugar, que haja um acordo em relação ao objeto pelo qual se luta. Mais ainda: um verdadeiro conhecimento desse objeto. E não é demais lembrar que a palavra “conhecer”, do Latim cognoscere, é a composição de “com”, que significa “junto”, mais gnoscere, que significa “saber”. Para a luta pela liberdade ser encampada eficaz e coletivamente, portanto, devemos saber juntos o que liberdade significa, em detrimento de ideias particulares, criticamente atomizados. Nesse urgente sentido, mobilizo aqui as duas concepções quiçá as mais contundentes, na nossa Idade, sobre a liberdade: a burguesa e a socialista.

Para os burgueses, liberdade significa o não impedimento dos indivíduos em seus propósitos particulares. Classicamente, a burguesia lutou para se ver livre dos impedimentos do Estado absolutista e da Igreja. Porém, não tinha por fim a liberdade enquanto tal. Apenas defendeu as “liberdades individuais” estrategicamente, fazendo delas meios para alcançar o fim propriamente burguês: dominar economicamente a sociedade. Já para os socialistas, liberdade significa mais do que apenas não ser impedido de realizar o que se busca. Precisa também ser o poder para os indivíduos materializarem os próprios objetivos. A liberdade burguesa enquanto não impedimento decerto é necessária para, enfim, os indivíduos terem a liberdade socialista de poderem realizar o que querem. Todavia, do ponto de vista socialista, a liberdade burguesa é apenas metade do caminho.

Aqui já podemos ver a importante diferença entre a liberdade burguesa e a liberdade socialista: a primeira significando apenas o não impedimento dos indivíduos por poderes extrínsecos a eles; e a segunda, exigindo que ao desimpedimento burguês seja necessariamente adicionado o poder necessário para que os indivíduos se realizem. Verdade seja dita, as liberdades individuais burguesas foram de valor inestimável para a humanidade: introduziram na tal história da liberdade o desimpedimento dos indivíduos em relação aos intransponíveis vínculos tradicionais do passado. O grande problema delas, entrementes, é que, apesar de boas, não são acessíveis a todos. Sãolibertárias apenas formalmente, e não real ematerialmente.

Só mesmo para um sujeito burguês privilegiado as liberdades individuais significam, ao mesmo tempo, desimpedimento e poder. Já para a imensa maioria das pessoas, que das liberdades individuais burguesas só colhem a migalha formal do desimpedimento, mas não o bife material do poder, para estes, enfim, as liberdades burguesas são tão distantes quanto opressivas. Essa opressão, no entanto, foi o preço sócio-histórico, pago pela maioria das pessoas, pela aventura burguesa de criar e salvaguardar (mediante instituições sólidas) as tais liberdades individuais, que, imediatamente, são inegavelmente boas aos indivíduos e, mediatamente, um passo evolutivo na história da liberdade humana.

Por isso os socialistas não rejeitam as liberdades burguesas, como ingenuamente se poderia pensar. Na verdade, levam-nas muito a sério, quiçá mais do que os próprios burgueses, pois, afinal, tentam fazer com essas liberdades o que o próprio liberalismo burguês não conseguiu, ou não quis fazer. De um lado, os socialistas afirmam que a liberdade enquanto desimpedimento é uma liberdade negativa, meramente formal, e mais importante, que a liberdade real não pode prescindir de poder. De outro lado, defendem a ideia de que o poder deve dizer respeito a todos e à humanidade como um todo, pois só assim os indivíduos serão igualmente livres e a história da humanidade enquanto história da liberdade poderá passar ao seu próximo capítulo.

Com efeito, mobilizando a visão marxiana clássica segundo a qual, do escravismo antigo à servidão medieval, e desta ao capitalismo moderno, o que temos é um processo histórico de libertação humana, o próximo passo que o filósofo previu para a humanidade, o socialismo, não poderia deixar de representar mais liberdade. De modo que o socialismo é o modo de as valorosas liberdades burguesas serem um bem não apenas para poucos (os dominantes), mas para todos, igualitariamente.

Fazer com que todas as pessoas sejam igualmente livres no sentido socialista do termo, ou seja, igualmente desimpedidas e empoderadas, deve ser o próximo passo na história humana da liberdade. Como vimos, a liberdade burguesa, por importante que seja, contudo, não tem condições de democratizar as benesses libertárias que trouxe ao mundo. Evoluir, dentre as opções de que estamos tratando, é investir na liberdade socialista: a liberdade que só se reconhece enquanto tal quando a sociedade como um todo a possui; como desimpedimento e como no poder.

Quem pagará o preço de a liberdade deixar de ser desigualmente particularizada para ser igualitariamente socializada? Essa pergunta permite ver que o ônus da mudança em questão recairá somente sobre a minoria burguesa privilegiada, cuja liberdade é, e no sentido socialista do termo, tanto a de desimpedimento quanto a de poder. Já à maioria desprivilegiada das pessoas, a mudança outra coisa não representará que o bônus do empoderamento material ao praticamente inócuo desimpedimento formal.

O próximo passo humano, no que tange à liberdade, precisa impedir essa minoria burguesa de possuir privilegiadamente o que a maioria desprivilegiada não possui: o poder material para efetivar a sua liberdade. É preciso confrontar socialistamente a burguesia assim como, outrora, elao fez comos poderes tradicionais que lhe impediam. A liberdade material e igualitária dos socialistas, portanto, deve superar a liberdade formal e particularista dos burgues assim como estes superaram a rede de rígidos privilégios medievais que impediam o modo burguês de produção de ter lugar no mundo.

Quando se pressupõe que história da humanidade é a história de sua liberdade, e, além disso, que esta é uma história na qual cada forma socioeconômica representa um passo no sentido da liberdade comparativamente à anterior, o aumento de nossa liberdade depende exclusivamente de que não paremos de caminhar. E o percurso à maior liberdade depende, hoje, de superarmos o particularista paradigma burguês de liberdade e de avançarmos para o igualitarista paradigma socialista de liberdade. E a tarefa pode ser mais fácil do que imaginamos, visto que não estamos falando de uma revolução, mas de simples evolução: da boa, mas desigualitária liberdade burguesa, à melhor, porque igualitária liberdade socialista.

A liberdade, como podemos ver, além de uma questão histórica, coloca-se como uma questão de partido, mais especificamente, de se tomar um partido em relação a ela. Nossas opções, no atual momento histórico, resumem-se a duas – e não na miríade de versões particulares e subjetivas, como insistiria o pós-modernóide. Pode-se tomar o partido dos burgueses e aceitar que a liberdade é boa e válida mesmo que seja para uns poucos – se bem que tomar este partido e não tomar nenhum acabam sendo a mesma decisão, visto que o paradigma burguês da liberdade é dominante. Pode-se em troca, tomar o partido dos socialistas, para os quais só existe liberdade quando todos forem igualmente lives. Leia-se: todos igualmente desimpedidos e empoderados.

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Não pronuncie “fascismo” em vão!

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Os predicados “fascista” e “fascismo” estão, como se diz, “em bocas de Matilde”, sendo usados vulgar e indiscriminadamente a ponto de pretenderem significar coisas absolutamente opostas. Deve causar espanto o fato de progressistas e reacionários ambos estarem chamando uns aos outros de fascistas. Os primeiros querendo apontar autoritarismos, despotismos; os segundos, mais ignorantes, crendo e repetindo que “o fascismo é produto da esquerda”, e que, portanto, comunista e fascista são sinônimos. As duas partes, infelizmente, estão fazendo uso errado do conceito. Não à toa a dicotomia tupiniquim não está se resolvendo, mas, em vez disso, agudizando-se.

Diante dessa bagunça semântica, acredito serem duas as atitudes mais urgentes e prudentes a serem tomadas. Em primeiro lugar: recuperar e respeitar o significado inequívoco de “fascismo”. Afinal, uma relação civilizada começa e subsiste com a concordância em respeito às palavras e o que elas significam no mundo real. E, em segundo lugar, uma vez que “sábios” e idiotas não concordam mais sobre o que significa “fascismo”, mostrar que não se é idiota começa por saber o que é a coisa nomeada pela palavra em questão e só usá-la para se referir a essa coisa. Melhor ainda, porém não mais fácil, é dispensar totalmente a própria palavra “fascismo” e descrever mediante outras palavras e conceitos menos equívocos a realidade que queremos criticar. Por hora, mais sábio do que não usar a palavra “fascismo” em vão é dispensá-la absoluta e estrategicamente.

Slavoj Žižek, em seu “Alguém disse totalitarismo?”, critica Hannah Arendt pelo seu conceito de “totalitarismo”, acusando-a de cunhar um termo que, em vez de bem explicar uma determinada conjuntura sócio-histórica, ou mesmo um “novo” sistema de governo surgido no século XX, ao contrário, funciona até hoje como um “conceito tampão” que, no final das contas, impede-nos de conhecer aqueles eventos históricos singulares. Não tenho dúvida de que precisamos fazer contra a vulgarização do conceito de “fascismo” o mesmo que Žižek fez contra o de “totalitarismo”, de Arendt. Afinal, como podemos observar, hoje em dia, chamar alguém de fascista, ou um ato qualquer de fascismo, tornaram-se os atos vazios e covardes par excellence. Seja para se finalizar uma discussão – como as pseudopolíticas, nas redes sociais, onde já no terceiro ou mais tardar quinto comentário algo ou alguém é predicado de fascista e as discussões deixam de ser produtivas -, seja ainda para um único indivíduo encerrar o seu próprio pensamento – pois o contemporâneo fetiche da palavra “fascismo” está em iludir que tudo foi pensado, e que, portanto, só é preciso repetir a palavra. Mas aí podemos estar falando de papagaios inclusive.

Não pronunciar a palavra “fascismo” em vão, por exemplo, é significá-la inequivocamente ao radicalismo político autoritário e nacionalista que galgou poder no início do século XX na Europa, cuja origem jaz na Itália de Mussolini, e que teve lugar na Alemanha de Hitler, na Espanha de Franco, na França de Vicky, entre outras. Caso tenhamos a prudência de nos limitarmos a dizer, por exemplo, que “fascista” é aquele que coloca os conceitos de nação e raça sobre os valores individuais, como aconteceu na Itália e a Alemanha da primeira metade do século passado, só aí, então, seremos civilizados a ponto de sermos compreendidos, digamos assim, mais universalmente, pois até mesmo o intelectual mais progressista e o idiota mais reacionário são capazes de concordar tal formulação.

A confusão em torno da palavra “fascista”, contudo, começa quando se quer fazê-la significar coisas no mundo real que, porém, já tem seus nomes acordados; seus conceitos mais e melhor universalizados. Por exemplo, tornou-se banal chamar de fascistas pessoas que cometeram meros – todavia não menos criticáveis – atos machistas, racistas, e até mesmo moral, política e economicamente ilícitos. O preço dessa banalidade é, de um lado, colocar dentro do guarda-chuva semântico do “fascismo” coisas que ele não tem dever algum de nomear, e, de outro lado, deixar de dar o nome certo ao boi que estamos criticando e que merece uma crítica e um nome certeiros, oxalá mortais. No exemplo do machista que é chamado de fascista, ao mesmo tempo ele é chamado de algo que ele não é, sem dizer que deixa-se de criticá-lo usando o(s) predicado(s) que realmente lhe cabe(m). Analogamente, é como esquecer, perdoar o crime do criminoso atribuindo-lhe um outro crime. Como podemos ver, o atual e indevido uso do conceito fascismo implica injustiça.

(Obviamente!) Não se trata de deixar de pensar, de falar da nossa crísica realidade e da sorte de autoritarismos que nos acossam e que apenas se parecem com o real fascism. Trata-se apenas de não chamar o nosso momento sócio-político-histórico – que só por este ou aquele “parentesco” lembra a Itália de Mussolini ou da Alemanha de Hitler – de fascista. Seja para não banalizarmos as radicais e monstruosas experiências históricas do século XX – o que seria imediatamente imoral e eternamente desumano; seja sobretudo para não deixar de dar, aos nossos próprios bois historicamente determinados os seus nomes específicos em vez de aliená-los por trás de outros mais equívocos.

Evitar ser confundido com um idiota é saber que o fascismo encontrou sua razão de ser em nacionalismos e racialismos radicais, e que o “ismo” do poder que hoje se coloca enquanto regime é outro. Diz respeito ao capital globalizado, que, ao contrário dos fascismo, tem na transnacionalidade e na trans-racialidade combustíveis excelentes. Pouco importa se se é indiano, norte-americano ou chinês; branco, preto ou amarelo; basta ter dinheiro, aliás, bastante dele, e, como disse Žižek, pode-se frequentar quaisquer ambientes, colocar os filhos nas melhores escolas, e por aí vai.

A expressão “fascista” vem do latim fasces. Significava “cetro”, “cajado”, do tipo que os magistrados da Roma Antiga usavam para ostentar poder, afastar ou e até mesmo agredir a plebe. Tratava-se de um feixe, em italiano, de um fascio de varas finas, cada uma muito frágil, porém, quando unidas e amarradas firmemente se tornavam inquebráveis. Quando Mussolini implantou o seu famigerado regime autoritário, usou o antigo símbolo. Portanto, o uso generalizado do conceito de “fascismo” por progressistas e reacionários os coloca, saibam disso ou não, em um grande fascio, se não totalmente ignorante, certamente produtor de ignorância. Escapar dessa obscuridade, portanto, começa por recusar-se a usar a palavra “fascismo” para significar movimentos sociopolíticos que não estritamente os radicais da primeira metade do século XX.

Em respeito à presente ofensiva reacionária da nossa direita contra direitos e liberdades populares, nós temos muitos nomes prontos e inclusive mais pertinentes. Basta resistir ao “conceito tampão” mais fetichizado do momento e criticar o que se quer criticar mediante palavras que reacionários e progressistas entendam e concordem com o que significam no mundo. Só então o crítico e o criticado (o progressista e o reacionário, ou vice-versa) estarão em relação civilizada, devidamente palavreada. Só assim será possível, se não superar, ao menos entender melhor os antagonismos presentes.

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“Eu não sou o seu negro”, mas você é o meu monstro.

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Uma das muitas, profundas e verdadeiras frases do filme “Eu Não Sou o Seu Negro” (2016), do produtor Raoul Peck sobre o livro inacabado do romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta e crítico social afro-americano James Baldwin, e que é referida diretamente aos brancos racistas norte-americanos, diz que: “Vocês não podem me linchar e me manter em guetos sem se tornarem algo monstruoso”.

O predicado teratológico de Baldwin, no entanto, não pretendia traduzir algum ódio reativo à histórica violência branca contra os negros daquele país. Ele dizia com todas as letras que não odiava os brancos, pois não era racista. Sua “filosofia” ativista, na verdade, é muito mais uma exposição algo psicanalítica da ignorância e da bestialidade dos sobrinhos brancos do Tio Sam na busca desesperada deles pelo tal American Dream.

Baldwin não era tão pacífico quanto Martin Luther King, ou seja, não acreditava que era o amor o caminho para a conquista da igualdade entre as raças. Entretanto, também não era apólogo da violência como os Panteras Negras. Sua percepção do racismo nos EUA se apresentava em termos assaz marxistas. Baldwin dizia, por exemplo, que não era “negro”, mas simplesmente um homem. E que branco”, prossegue o ativista, “é apenas uma metáfora de poder; é simplesmente uma maneira de descrever o Chase Manhattan Bank”.

Para Baldwin, o racismo era fruto tanto da falta de paixão humana, quanto da excessiva preocupação com números, lucros, vantagens e privilégios de uma parcela – branca – da população em busca de segurança; de ter uma casa com uma cerca branca e de que os filhos pudessem cursar a universidade para, da mesma forma, terem suas casas com cercas brancas e seus filhos estudando em uma universidade. O “virtuoso” sonho americano, da perspectiva do ativista afro-americano, era um maldito círculo vicioso.

O racismo, na visão de Baldwin, era produto do mais desumano patrimonialismo, levado adiante por um povo convencido de sua própria ficção de felicidade. Na verdade, aprisionado por ela. E, prossegue o autor, era justamente a ignorância desses brancos em relação à sua escravidão diante de sua própria ficção que os levava a escravizar os negros; para que estes encarnassem a contradição que os brancos não tinham coragem para enxergar em si mesmos e no seu sonho americano.

A genialidade de Baldwin está em ter percebido que os negros, escravizados e violentados pelos brancos, materializavam extrinsecamente a escravidão e a violência nas quais os próprios brancos estavam imersos, fazendo com que os brancos, subjetivamente, prosseguissem acreditando que seus sonhos eram possíveis. Os brancos eram vistos por Baldwin mais como idiotas do que como indivíduos essencialmente maus. Todavia, tal idiotice os levava à bestialidade. Por isso ele os considerava monstros.

Para Baldwin, contudo, os brancos não desejavam ser monstros, mas qualquer um que, deliberada ou inadvertidamente, linchasse e segregasse um outro, seja por que razão fosse, não teria como deixar ser considerado como tal. A chave da revolução racial baldwiniana, aliás, dependia de os brancos compreenderem que quem faz com um outro o que eles fizeram – e ainda fazem! – com os negros não tem como ser outra coisa senão um monstro.

O primeiro homem na história a racionalizar a monstruosidade, isto é, a fazer uma teratologia, foi Aristóteles. Para o filósofo grego, “terathos”, ou seja, monstro, é aquele que não consegue realizar plenamente a sua própria natureza. Por exemplo: alguém que nascesse sem as pernas não realizaria algo da natureza humana: andar; da mesma forma, quem sofresse de alguma deficiência mental não conseguiria fazer o que, para Aristóteles, era o mais próprio do humano: pensar racionalmente. Para o maior gênio da Antiguidade, aquele que não pudesse realizar a potencialidade da natureza humana era um “terathos”.

Baldwin, ao predicar os brancos racistas de monstros, foi astutamente aristotélico. Para o ativista afro-americano, a monstruosidade dos seus conterrâneos violentadores estava no fato de não conseguirem realizar, atualizar em si mesmos, algo indispensável à humanidade, que, segundo Baldwin, era a paixão, ou seja, a capacidade de se apaixonar pelo outro – de outra cor – assim como por si próprios. E nessa carência, que se converte em ignorância, tratavam estes outros como números, como coisas, em suma, como meio de realizarem a sua nunca alcançada, nem tampouco alcançável, felicidade.

A teratologia de Aristóteles está presente em Baldwin quando este faz-nos ver que os racistas são monstruosos na medida em que não conseguem reconhecer o outro racial como igualmente humano. Os brancos violentadores e escravizadores de que fala o afro-americano ativista são bestas incapazes de conhecer o tamanho e a diversidade que é essa coisa chamada humanidade. Entretanto e infelizmente, o realismo de Baldwin – que se confunde com pessimismo – coloca o fim da violência racial dos brancos contra os negros na dependência de os brancos tomarem consciência de sua própria monstruosidade.

Se não é infeliz essa conclusão a de Baldwin, ao menos é ingênua. E isso porque o próprio American Dream, produzido pelos brancos e para os brancos, os impossibilita de tomar qualquer verdadeira consciência, seja do outro oprimido por eles, seja de si mesmos enquanto escravizados por sua própria ficção de felicidade. Baldwin, em “Eu Não Sou o Seu Negro”, apresenta, traumática e objetivamente, o histórico problema do racismo no EUA. Todavia e infelizmente, não propõe um meio para acabar com o vil poder que chama a si mesmo de “branco” sem depender imediatamente de uma – improvável – tomada de consciência desse mesmo vil poder.

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Viver sem trabalhar?

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De onde vem a utopia de um mundo no qual as máquinas produzem tudo sozinhas e as pessoas são livres e desocupadas para fazerem o que bem entender senão de um idealismo pequeno burguês alienado da materialidade do capitalismo? Ora, as máquinas não são dádivas da natureza, nem tampouco de algum deus para que os seres humanos sejam perdoados da maldição adâmica de viverem do próprio suor. Com efeito, são armas quiçá as mais objetivas do capital no sentido de possibilitar a obtenção de mais-valor, o objeto capitalista par excellence. As máquinas só passaram a existir, e cada vez mais são aperfeiçoadas e disseminadas worldwide para esse fim. Se não for assim, elas perdem o seu porquê. Como poderiam então prometer liberdade às pessoas?

Como Marx bem mostrou nO Capital, as máquinas existem para reduzir o investimento dos capitalistas em salários. Em suma, para desvalorizar o trabalho. O filósofo mostra que, na aurora do capitalismo, os patrões investiam metade do seu capital em meios de produção (matéria-prima, ferramentas, energia, instalações etc.) e metade em força de trabalho (salários). Com o advento da maquinaria, poucos séculos depois, o investimento em meios de produção era cerca de dez vezes maior do que em salários. As máquinas de fato desvalorizam o trabalho humano. Porém, como a história da miséria moderno-contemporânea comprova, não para valorizar o “livre viver” das pessoas, e sim para fazê-las aceitar salários cada vez menores e exploração cada vez mais maior.

De um lado, o capitalismo desvaloriza sistematicamente o trabalho humano através de crescentes investimentos em tecnologia em função de seu mais-valor. Todavia, de outro lado, o mais-valor é conseguido somente através da exploração do trabalho humano. Ao contrário do que vulgarmente se pensa, máquinas não têm como produzir mais-valor porque não têm como serem exploradas. Elas cobram pelo que produzem exatamente o que custam ao capitalista. Se uma máquina, por exemplo, custa $1 milhão, e ao longo de sua vida útil é capaz de produzir um milhão de sapatos, cada mercadoria individual cobrará exato $1 pelo investimento no meio de produção que é essa máquina. E assim com os demais meios de produção. A única possibilidade de o capitalista lucrar jaz na exploração do trabalho humano, pois só ele pode produzir, em mercadorias, muito mais valor do que custa ao capitalista.

O que a princípio parece ser uma contradição – a busca de mais-valor do capitalista mediante tecnologia que, por sua vez, dispensa a fonte de mais-valor, qual seja, o trabalho humano -, na verdade, é a sui generis estratégia capitalista de, mediante a desvalorização do trabalho, aumentar a exploração sobre esse trabalho desvalorizado. E a crescente massa de desempregados que esse processo gera, chamado de exército industrial de reserva, longe de ser produzido para que esse contingente desocupado se ocupe com o que lhe dá prazer, serve, ao contrário, para comprometê-lo ainda mais com as necessidades do capital. De modo que, em um mundo no qual as máquinas façam tudo, não haverá uma humanidade finalmente livre, mas uma absolutamente desempregada e inescapavelmente subjugada pelos donos das máquinas. Por essa razão, é burrice os trabalhadores utopizarem a substituição do trabalho humano pelas máquinas. Sem dizer que, de sua parte, o capitalismo, para quem o sumo objeto é o mais-valor obtido pelo trabalho humano, tampouco criará tal realidade.

Somente quando a força de trabalho é valorizada há motivo para os capitalistas investirem em tecnologia. Quando, ao contrário, o valor do trabalho cai, a tecnologia se torna cara demais para valer a pena. O geógrafo marxista David Harvey explica isso dizendo que, nos EUA, por exemplo, onde o valor da força de trabalho é alto, é feito de tudo para que o trabalhador seja substituído pela tecnologia com o objetivo de baixar o valor dos salários. Já na China, prossegue Harvey, onde o valor do trabalho é baixíssimo, é mais vantajoso utilizar milhares de trabalhadores produzindo mercadorias com ferramentas manuais do que investir em maquinário tecnológico.

Temos, portanto, uma gangorra na qual, em uma extremidade, está o trabalho humano, e, na outra, a tecnologia, sendo que a subida de uma às custas da descida de outra se dá em função de um centro fixo: o mais-valor. Quando o valor da força de trabalho está em alta, o mais-valor força a sua baixa, elevando a tecnologia. Quando, porém, a tecnologia está em alta e o trabalho em baixa, o mais-valor central percebe que vale mais a pena voltar a usar a força de trabalho desvalorizada e não a tecnologia supervalorizada. Então a gangorra se inverte. E assim sucessivamente, numa dialética infindável que, entretanto, em todos os casos, atende aos interesses do capital tanto quanto é estabelecida por ele. A utopia da libertação definitiva da humanidade mediante a substituição total do trabalho humano pelo das máquinas, da perspectiva do capital, na verdade, é absolutamente distópica.

Do ponto de vista dos trabalhadores, a utopia de viver sem precisar trabalhar deve ser encarada pelo o que é: um ingênuo sintoma causado pelo insuportável e exploratório modo de trabalho imposto pelo capital, e de modo algum como a percepção iluminada de que o trabalho enquanto tal não tem valor e que, portanto, deve ser substituído pela máquina. Aliás, os trabalhadores não percebem a armadilha capitalista na qual caem ao desvalorizarem, eles mesmos, o trabalho, a única fonte material de valor que existe e que jaz em suas mãos. Sonhar com o fim do trabalho humano, com efeito, é realidade sempiterna do capitalismo. Portanto, todo aquele que quiser contribuir com a superação desse vil sistema econômico deve, ao contrário, valorizar cada vez mais o trabalho humano; colocá-lo no centro nevrálgico da vida social; e não colocar a máquina, que é invenção e propriedade dos capitalistas, nesse lugar. A utopia da vida sem trabalho, mais do que ao capital, é distópica sobretudo às pessoas.

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Crítica da política

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Por que a política ainda promete ser o meio de luta contra os interesses espúrios do capital se é ele, o próprio capital, que sempre vence na arena política todas as batalhas que enfrenta? Está certo que a política é bem mais antiga que o capitalismo, entretanto, desde que este sistema econômico colonizou o mundo, também a política passou a servi-lo subservientemente. Não seria o caso então de realizarmos que a promessa de libertação social via política é apenas mais uma, quiçá a mais sagaz mentira do capital no sentido de mais-dominar?

Karl Marx foi contundente em criticar a política enquanto instrumento revolucionário, apontando que, na verdade, ela é o meio sempre presente de o passado, isto é, a dominação da maioria pela minoria – da totalidade pela parcialidade – prosseguir futuro adentro. A revolução em Marx não se dá apenas com a superação do Estado, mas também com a da política enquanto tal. Para o filósofo alemão, agir no interior de formas políticas pertence à velha sociedade, à sociedade na qual a dominação de uns poucos sobre a maioria é regra.

É imperativo sair da perspectiva meramente política para poder ser verdadeiramente crítico em relação à dominação do capital sobre a sociedade segundo Marx. E isso porque ele anteviu de modo muito profundo que a dominação do capital se dá, imediatamente, por via econômica, e não política. A política, em troca, é o meio, o modo mediato de o capital dar continuidade à sua dominação econômica. Ser fiel à Marx, portanto, significa crer, como ele, que a dominação do capital não tem como ser totalmente destruída no nível político. A política, na verdade, é o bunker social do capital.

Embora a política sirva imediatamente o inimigo capital da sociedade, ela ainda é, contudo, o ringue onde interesses sociais e interesses econômicos se digladiam; uma arena relacional na qual sociedade e capital mantém ao menos uma linguagem em comum, ainda que de modo assimétrico, pois, politicamente falando, trata-se de um diálogo no qual a sociedade, de seu lado, externa sinceramente suas demandas diante do vilipêndio capitalista, ao passo que o capital, ao contrário, é sistematicamente parlapatão em fingir que ouve a sociedade e que moderará o seu ímpeto acumulador em função de algum bem-estar social.

Entretanto, por ainda ser o nível no qual sociedade e capital se comunicam – mesmo que este sempre vença as discussões -, Marx apontava uma dimensão subversiva da política contra o capital: a sua potencialidade negativa. Para o filósofo, a política é adequada para realizar as funções destrutivas da transformação social. Marx não tinha dúvida de que, nas mãos da sociedade, a política pode ser instrumento de crítica no sentido de minar a dominante ideologia capitalista. Também sabia, contudo, que enquanto a sociedade permanecer apenas no âmbito político o seu inimigo capitalista permanece livre e dominante na sua esfera excelente: a economia.

Como o domínio da parcialidade sobre a totalidade é produzido economicamente e mantido politicamente, enquanto age somente politicamente a sociedade permanece no campo de conforto do inimigo. A vitória da totalidade sobre a parcialidade, embora deva começar politica e destrutivamente, só se finalizará, contudo, se depois da destruição for abandonada a esfera política e iniciada uma construção econômica alternativa. A revolução se dará apenas quando os indivíduos sociais operarem econômica e diretamente uns com os outros distantes da liturgia com que o capital segue intermediando vitoriosamente todas as relações humanas.

A verdadeira revolução nunca será simplesmente uma revolução política. Antes de tudo, deve ser uma revolução social que ultrapasse os limites do sistema político que perpetua a exploração econômica capitalista. E isso porque a virtude das revoluções sociais está em minar a contradição entre a parcialidade e a totalidade. Já as revoluções meramente políticas apenas reproduzem a velha hierarquia da parcialidade sobre a totalidade, pois a política, desde que foi usucapida pelo capital, outra coisa não é senão a subjugação das necessidades da totalidade aos arbítrios da parcialidade.

Se para Marx uma revolução social restrita à política é um absurdo, um primeiro passo político, desde que negativo, na medida em que há a necessidade da destruição das formas vigentes, é fundamental. No entanto, tão logo o TNT político da totalidade cause as primeiras rachaduras no bunker da parcialidade, a totalidade deve desinvestir do expediente político e investir no econômico, preenchendo essas rachaduras com novas relações socioeconômicas até que o edifício minado rua por completo.

Essa revolução socioeconômica será a maior transformação positiva da história, na qual a política, contudo, tem a contribuir apenas com sua negatividade imediata e destrutiva. O que Marx ainda tem a nos ensinar é que negligenciar a dimensão socioeconômica e priorizar a dimensão política impossibilita a revolução que fará a parcialidade ser derrotada e absorvida pela totalidade porque tira da política o seu mais revolucionário fim, qual seja: ser apenas o meio de se iniciar a destruição do capital, do Estado e inclusive de si própria.

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Estado de mal-estar capital

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Efêmero e tenso ponto de equilíbrio entre as necessidades básicas das pessoas e os imperiosos interesses do capital encontrado no século XX, o Estado de bem-estar social foi a garantia de serviços públicos e proteção à população mediante a organização da economia; algo como uma visível luva social que vestiu a invisível, porém sempre larápia, mão capitalista. Todavia, nesse início de século XXI, já sentimos na carne que o bem-estar deixou de ser prioridade do Estado, que voltou a ser apenas aquilo que Marx bem disse no Manifesto Comunista: “o comitê executivo da burguesia”.

Por degradar sistematicamente as condições de vida daqueles que lhes vendem força de trabalho, o capitalismo da Belle Époque viu a classe trabalhadora se organizar ameaçadoramente. Porém, pelo fato de não viver sem os trabalhadores – pois é deles que extrai a sua mais-valia – o ímpeto capitalista teve de se refrear. Sem dizer da então presente experiência socialista soviética do início do século XX que obrigou o capitalismo a ao menos fingir que sobre a face da terra havia também as necessidades das pessoas. Do contrário, todas elas poderiam, digamos assim, optar pelo outro sistema econômico que, segundo Marx, superaria(rá) o capitalismo.

Portanto, durante um estratégico período o capital aceitou comprometer parte de seus ganhos com a sociedade que, não obstante, nunca deixou de explorar. O Estado de bem-estar, social cujo apogeu se deu nas décadas de 1960 e 1970 na Europa, com efeito, foi patrocinado pelo capital para que os trabalhadores tivessem o mínimo suficiente para não se revoltarem nem pensarem em Revolução. Com o oferecimento de saúde, educação e segurança públicas mais um punhado de seguridades sociais o capital anestesiou as massas exploradas da dor que provoca nelas.

Como, contudo, a lógica capitalista não pode se privar de aumentar incessantemente a exploração sobre a vida, o Estado de bem-estar social não tinha como durar. Os grandes e decisivos ataques contra o bem-estar social foram cometidos na década de 1980 por Margaret Thatcher e Ronald Reagan. A destruição violenta das organizações e dos direitos trabalhistas, árdua e historicamente conquistados, permitiu que a vida voltasse a ser escravizada pelo capital. O velho liberalismo, de roupa nova, agora neoliberalismo, reconduziu o Estado à sua prévia condição de bureau da burguesia.

O que vemos no Brasil desde o golpe de Estado de 2016 outra coisa não é que o carnaval macabro do neoliberalismo, que para não tolher em nada a sede de lucro do capital destrói, rápida e certeiramente, o público em benefício do privado. As atuais reformas trabalhista e da Previdência, desenhadas golpisticamente para os empresários comprometerem cada vez menos as suas mais-valias com aqueles que as produzem; a drástica redução de investimento público em segurança, saúde e educação, expressa no aumento da criminalidade, das filas do SUS e do sucateamento do sistema de ensino público; tudo isso e muito mais é o fim do Estado de bem-estar social tupiniquim que mal e porcamente foi rabiscado na terra brasilis.

Depois do curto recreio chamado Estrado de bem-estar social que tivemos no curso histórico do capitalismo, estamos de volta à rígida e degradante disciplina de um mundo no qual a economia, para usar a ideia do filósofo alemão Robert Kurz, vence a vida. A destruição neoliberal de quaisquer organizações capazes de fazer frente aos interesses espúrios do capital; a vitoriosa ideologia da classe média, que faz a classe dominada se esquecer de sua real condição e perder sua força revolucionária; enfim, o Estado violentamente usucapido pela classe dominante finalmente reifica o vertical projeto capitalista de um “Estado de mal-estar capital” – sendo que esse mal-estar, obviamente, recai sobre todos aqueles que, com suas próprias vidas, produzem o bem-estar e o mais-valor do capital.

Por mais que o social esteja derrotado pelo capital, não podemos esquecer que no passado a consciência da classe trabalhadora, as grandes greves e o fantasma socialista foram as forças reais que obrigaram o capital a se conter e a devolver à sociedade pelo menos algo daquilo que dela furtava. Contra o Estado de mal-estar capital que se erige, a classe dominada podem muito bem repetir aqueles passos: reconhecendo-se como tal, e não como classe média; lembrando a classe dominante, através de grandes greves, que ela não é nada sem aqueles de quem compra a força de trabalho; e, por fim, mantendo o socialismo no horizonte, se não como realidade, ao menos como ideia ameaçadora.

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Evasões ideológicas flagrantes

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Cuidado com os conceitos! Enquanto unidades semânticas que funcionam como unidades de conhecimento, os conceitos são vias preconcebidas seguras ao pensamento. Algo como pedras da superfície de um rio sobre as quais pisamos para atravessá-lo sem nos afogarmos nas corredeiras da reflexão. Contudo, enquanto representações gerais e abstratas preconcebidas, os conceitos são presença duplamente problemática: analogicamente, do genérico/abstrato no específico/concreto; e, em segundo lugar, anacronicamente, do passado no presente. Por isso temos de atentar aos descaminhos a que os conceitos podem levar o pensamento. E essa atenção deve vir em forma de crítica constante.

Deleuze dizia que filosofar é produzir conceitos. Dessa perspectiva, no momentum de sua produção pelo filósofo, um conceito corre risco de ser absolutamente pertinente à realidade que pretende fazer conhecer. Entretanto, depois de “manufaturados”, o vício dos conceitos é se hipostasiarem enquanto explicações universais atemporais que precisam, necessariamente, abstrair as particularidades daquilo que conceituam para manterem suas preestabelecidas validades universais. E, nesse sentido, os conceitos se tornam barreiras ao pensamento.

Slavoj Žižek, no seu “Alguém disse Totalitarismo?”, critica a célebre conceituação de Hannah Arendt a respeito do Totalitarismo, acusando-o de ser um conceito-tampão que, aplicado aos diversos casos históricos de Estados autoritários/tirânicos – inclusive os clássicos do início do século XX -, na verdade nos impede de conhecê-los em suas particularidades. Para este filósofo, o conceito arendtiano de Totalitarismo é um tipo de “tapa-buraco” que em vez de forçar o pensamento a adquirir uma nova visão sobre a realidade histórica, na verdade, “desobriga-nos de pensar, ou nos impede ativamente de pensar”.

Já o filósofo Baptiste Noël critica o vulgar e hodierno uso do conceito de “fascismo”, dizendo que estarmos nos valendo indiscriminadamente desse conceito – que na verdade aponta uma experiência histórica específica – outra coisa não é que nos alienarmos do fato de que os radicalismos atuais que nos afrontam não são sorrateiras ervas-daninha fascistas, mas vermelhas maçãs polpudas da “nossa” tão defendida democracia liberal. Para Noël, chamar vulgarmente alguns dos nossos políticos ultraconservadores e interlocutores desagradáveis de fascistas é apenas “desconversar”. Em suma, é dar um apelido novo a um velho e conhecido boi – sendo que o velho boi é a democracia liberal, e o novo apelido, o fascismo.

Também o filósofo István Mézáros critica a ilustre máxima weberiana segundo a qual “O Estado detém o monopólio da violência”, dizendo que se trata de “uma evasão ideológica flagrante”, sustentada para borrar o fato de que o mais grave a ser pensado, e que, no entanto fica, esquecido, “é a ilegalidade do Estado – mesmo quando essa não se manifesta de modo violento”. Para Mézáros, a violência do Estado “deve ser objeto de séria investigação histórica, em vez de ofuscar o assunto com a identificação genérica do Estado com o seu decretado monopólio da violência”.

O que estes três exemplos de crítica a três conceitos determinados apontam é que os conceitos, embora se coloquem como unidades de conhecimento, podem ser vórtices de obscurantismo. A pergunta que se coloca aqui, portanto, é a seguinte: qual a distância segura, nomeadamente crítica, que devemos tomar dos conceitos, visto que, de um lado, são de fato vias ao pensamento, mas, de outro, condenam o pensamento ao já pensado, e, consequentemente, ao não-pensar? E suma, como jogar fora a água suja (a alienação a que os conceitos nos levam) sem jogar o junto bebê limpo (a possibilidade de mais pensar oferecida pelos conceitos)?

Nietzsche dizia que as palavras são metáforas que se esqueceram de que são metáforas. A palavra amor, por exemplo, acredita ser um objeto específico no mundo. Já poesia, não obstante, desmente que aquilo que se esconde sob a palavra amor possa ser peremptoriamente resumido, seja em uma única palavra, seja em um conjunto delas formalizadas em versos. E assim como as palavras se esqueceram de que são meras metáforas, os conceitos também se esquecem de que o são. E nesse esquecimento, convencem-nos de que apontam, inequívoca e universalmente, a realidade. No entanto, são abstrações cunhadas diante uma – pequena – porção de realidades particulares.

A busca de uma distância crítica em relação aos conceitos, segura o suficiente para que não privem o pensamento, quiçá deva sondar o terreno intermediário entre as simples palavras e os grandes conceitos. Até porque não estamos falando de seres alienígenas um em relação ao outro. As palavras, chamadas de metáforas por Nietzsche, são todavia conceitos, embora muito simples. Outrossim os conceitos são metáforas, só que bem mais complexos do que as palavras. Porventura o melhor ponto ao pensamento estaria entre a simplicidade das palavras e a complexidade dos conceitos?

Cartesianamente falando, conhecer clara e distintamente a realidade é fazê-lo mediante unidades de conhecimento as mais simples possíveis. E se os conceitos mais simples e imediatos são as próprias palavras, temos que são elas as pequenas, todavia mais confiáveis pedras sobre a superfície do rio que queremos atravessar ao pensar. Claro, elas também têm seu calcanhar de Aquiles: certa distância intransponível em relação ao que nomeiam. Entretanto, se as palavras, assim como os conceitos, podem induzir a erros, estes são, todavia, erros menores. Os conceitos, ao contrário, enquanto conjunto de palavras, são, consequentemente, um misto inextricável de distâncias em relação ao real. Na nossa analogia do rio, seriam as grandes pedras que facilmente acumulam limo sobre si. E nestas escorregamos muito mais facilmente. Por isso, crítica!

A conclusão, portanto, é que o pensamento mais esclarecedor e precavido é aquele que se fia mais nas pedras semânticas mínimas das palavras do que nos continentes máximos dos conceitos. Em relação aos nossos exemplos conceituais “continentais” de Totalitarismo, criticado por Žižek; de fascismo, por Noël; e de Estado enquanto mero monopolizador da violência, por Mézáros; o trabalho virtuoso do pensamento é explicar, em simples palavras, as realidades singularidades de que se ocupa, em um humilde trabalho descritivo/analítico, sem sucumbir à tentação de se complicar com os grandes “resumos de ópera” conceituais que, em verdade, inscrevem e sintetizam o pensamento. Em suma, tolhem-no.

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Falácia libertária pós-moderna

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Não sem muita controvérsia, cada vez mais o pensamento pós-moderno libertário de esquerda, produzido sobretudo por intelectuais após maio de 68, como por exemplo o de Deleuze e Guattari, é acusado pela redução da liberdade e pelo enfraquecimento das esquerdas pelo mundo. Se essa causalidade ainda é suspeita, certamente não o são as notórias crises das esquerdas e da própria liberdade. Esse ensaio caminhará no sentido de criticar o ideário de liberdade pós-moderno concebido a partir da segunda metade do século passado, acusado de minar o pensamento verdadeiramente libertário – marxista – que o precedeu, e, considerando isso, qual virtude ainda resta ao pensamento pós-moderno.

Comecemos dizendo que a ausência de liberdade, socialmente expressa na desigualdade e na dominação socioeconômica de umas pessoas sobre outras, teve, a seu favor, as mais variadas explicações ao longo da história. Os antigos atenienses criadores da democracia, por exemplo, acreditavam que a natureza havia feito uns homens melhores que outros, e que estes “melhores homens”, em grego, os aristoi – aristocratas -, deveriam governar e decidir por todos. Mulheres, escravos e estrangeiros não tinhas direitos alguns. Posteriormente, chegou-se a justificar a desigualdade nalguma decisão divina. Em ambos esses casos, tentar eliminar a desigualdade social significava ou atentar contra a natureza, ou contra o eterno plano de Deus. E assim a desigualdade fez carreira no mundo.

No século XIX, contudo, Karl Marx criticou contundentemente essas visões, apontando que a desigualdade entre os homens era produto tão somente deles próprios. Afirmando, no Manifesto Comunista, que “a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”, Marx fez-nos ver que era o privilégio material de uns que gerava a dominação dos desprivilegiados materialmente. Na antiguidade, isso se deu com homens livres dominando escravos e patrícios, dominando plebeus; no medievo, senhores dominando servos; e na modernidade da qual Marx falava, o mesmo acontecia com os burgueses dominando os proletários.

Com essa nova visão, a ideia de Revolução deixou de ser não só antinatural ou pecaminosa, mas também utópica. Compreendendo a real dinâmica socioeconômica de modo científico, Marx previu a vitória da classe dominada sobre a dominante. Para tal, os dominados, isto é, os proletários, desde que unidos, deveriam tomar a revolucionária consciência – de classe – de que eles eram os agentes da mudança. Em outras palavras, que a realização de sua liberdade estava tão somente nas suas mãos. Mudança que, obviamente, ameaçava o longevo império da classe dominante, ainda mais depois da Revolução aventurada na Rússia em 1917, onde a ideia socialista se fez realidade. E como a classe dominante nunca esteve disposta a perder o seu histórico privilégio, a contraofensiva diante dessa abertura histórica à Revolução não tardou e não deixou por menos.

Em resposta à ameaça socialista, a classe dominante, primeiramente, chamou a Revolução – a liberdade enquanto coisa para todos – de “caos social”. Com efeito, o fato de os dominados se libertarem dos grilhões com que os dominantes os oprimiram desde sempre era o desmoronamento do cosmos aristocrático. Então, os aristoi dominantes do início do século XX iniciaram uma potente engenharia social para, com ela, desarticular qualquer consciência revolucionária dos oprimidos, e, assim, impedirem o que, para os dominantes, seria o “caos”. E o produto mais efetivo dessa neoarquitetura da dominação foi a invenção da famigerada classe média: uma classe intermediária, composta por parte da classe dominada, que, no entanto, não mais se reconhecia como tal.

Com o expediente da classe média, os oprimidos enganados foram convencidos de que ascenderam socialmente e se esqueceram da Revolução para então sustentarem, em beneficio da classe que seguiu os dominando, a manutenção da situação de desigualdade e opressão social, desde que, é claro, essa pseudoclasse fosse ao menos aparentemente preservada da sempiterna degradação social promovida pela classe dominante. Com efeito, a estratégia da classe dominante para não perder o seu domínio foi enfraquecer a classe dominada, dividindo-a em classe baixa e classe média, a despeito da verdade marxista segundo a qual há apenas duas classes: a dominante e a dominada. E, cereja do bolo, colocar essa pseudoclasse contra a classe dominada à qual ela, de fato, nunca deixou de pertencer.

Nessa conjuntura, pensamentos que apontassem a real e cruel dominação e, ainda por cima, rotas de fuga efetivas precisaram ser alienados desse mundus classe média. E o esquecimento fortuito do pensamento verdadeiramente libertário – como o de Marx – deu-se, também, com a ascensão do pensamento pós-moderno, declaradamente libertário, mas que, por sob suas mais sinceras intenções, prosseguiu obliterando o cruel fato de que, no fundo, só há classe dominante e dominada. Resultado: atomizações sociais, tão benéficas à classe dominante – afinal, átomos isolados não constituem consciência de classe nem tampouco fazem Revolução -, cresceram qual erva daninha regado pelo ingenuamente sincero pensamento libertário pós-moderno.

Ideias de micropolítica, de sujeito molecular, de desterritorialização, e, mais recentemente, de empoderamento e de lugar-de-fala, em suma, toda a conceituália pós-moderna esterilizou sobremaneira o único solo sobre o qual poderia florescer a Revolução: o continente perdido da classe dominada, e isso mediante o plantio de guetos cada vez menores e mais atomizados, e, consequentemente, mais fracos diante da peste dominante. Em oposição ao pensamento marxista, que explicava as partes em função do todo, a pós-modernidade ainda é a aventura de explicar o todo a partir das partes. Todavia, assim como o todo não é a soma das partes, e assim como falta ao finito condições ontológicas para explicar infinito, assim também a particularidade de onde arranca o pensamento pós-moderno de modo algum consegue explicar o todo sócio-econômico-polítioco-cultural.

Diante dessa incapacidade pós-moderna, restou a ela permanecer no micropensamento que se ocupa de desejos e de experiências individuais e de demandas particulares. De modo que, quando finalmente há alguma coletividade organizada em função da liberdade, ela é tão justa que comporta apenas um sexo, uma sexualidade, uma raça, em suma, uma demanda particular, por uma liberdade outrossim particular. No entanto, a busca de liberdade enquanto privilégio particular, não nos esqueçamos, é o objetivo per se da classe dominante. Aliás, jaz aí a diferença entre classe dominante e dominada borrada pelo pensamento libertário pós-moderno: a classe dominante quer liberdade e segurança contra o caos apenas para si, enquanto a classe dominada deveria querer estas coisas para todos, indistintamente.

No entanto, com o patrocínio do atomizante pensamento pós-moderno libertário, temos mulheres, negros, homossexuais, transexuais, etc., em lutas atomizadas, cada qual buscando uma liberdade parcial. Com isso, o objetivo maior da esquerda, qual seja, a socialização irrestrita da liberdade, é impossibilitado. As partes, isoladas, porém paradoxalmente crentes na centralidade de suas próprias excentricidades, perdem assim a possibilidade de constituírem a consciência realmente coletiva – de classe! – que mostre que todas elas são classe dominada. E mais, que o inimigo das mulheres, o dos negros, o dos homossexuais e transexuais, é o mesmo: a classe dominante. Por mais importante que seja às partes, às minorias, as suas lutas particulares, o marxismo ainda está aí para nos lembrar de que há uma luta muito mais urgente, primeira e universal que, no entanto, deixa de ser lutada ao ser dividida em uma miríade de lutas parciais.

Em relação ao viral discurso sobre o tal do “lugar-de-fala”, o filósofo brasileiro Vladimir Safatle diz que jamais a esquerda deveria ter sucumbido a ele. Não obstante, porque o fez, levou a rasteira épica que assistimos worldwide. Outro filósofo, Slavoj Žižek, é mais acusativo: que o discurso pós-moderno do “lugar-de-fala” é o discurso autoritário por excelência. Ora, dizer que um homem não pode se colocar no lugar de uma mulher; um branco, no de um negro; um heterossexual, no de um gay, e por aí vai; em nada difere do discurso dominante/patrimonialista segundo o qual ninguém pode ocupar a minha propriedade. Todavia, a ladainha libertária pós-moderna nos convence de que impedir o outro de se colocar no meu lugar é algo diverso das cercas eletrificadas e da militarização com que a classe dominante se resguarda. O que falta ser pensado seriamente é que, assim como o revolucionário marxista luta para que os privilégios socioeconômicos todas caiam em benefício da totalidade, assim também o libertário que pós-moderno deveria preferir a liberdade da classe dominada como um todo muito antes de querê-la para um (o seu) gueto particular.

Com tudo isso devemos concluir que o pensamento libertário pós-moderno deve ser jogado no lixo? Obviamente que não. Não só porque há pensadores pós-modernos, como os supra citados, que com efeito contribuem para a consciência de classe necessária ao vigor das esquerdas e à liberdade, mas isso ao criticarem o próprio pensamento pós-moderno – uma filosofia pós-moderna rigidamente crítica! -, mas sobretudo porque sem percorrermos os descaminhos do próprio pensamento libertário pós-moderno não entenderemos a dramática redução da liberdade nem a bancarrota das esquerdas pelo mundo. Marx sempre é de grande ajuda, mas não explicará essa desgraceira sozinho, visto que a maior virtude de seu pensamento é ser a ciência do caminho contrário: o da realização da liberdade universal.

Por mais que devamos criticar o pensamento libertário pós-moderno, não podemos jogar a água suja com o bebê junto – entendendo aqui a água suja enquanto a atomização social que esse pensamento produziu; e o bebê, a causalidade pela qual esse pensamento ganhou o mundo, mas que, no entanto, entregou o contrário do que prometeu. Algo como conhecermos bem a história do erro para não mais o repetirmos. Portanto, consumir o pensamento pós-moderno, sim. Porém, de modo radicalmente crítico – sendo que as melhores raízes dessa crítica devem estar fincadas no solo marxista. Não só o perigoso vigor da classe dominante exige isso, mas inclusive as justas suspeitas dos próprios pensadores pós-modernos de esquerda que ainda trabalham pela libertação universal. E isso porque somente quando a classe dominante não mais dominar – econômica, política, social, cultural e intelectual e ideologicamente – é que poderá haver um pensamento e uma vida verdadeiramente livres.

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O pensamento do pensamento

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A velha divisão metafísica entre corpo e mente faz parecer que o pensamento pode existir sem a matéria. O contrário, sabemos muito bem, de fato ocorre: as coisas, os objetos, provam isso. Agora, pensamento sem ser em um corpo material, seja ele biológico/natural, seja ainda em um computacional/artificial, disso não temos prova alguma. Assim como os corpos materiais são as ocasiões das sombras, assim também a matéria é a única ocasião do pensamento. Entretanto, é apenas em algumas organizações materiais, alguns corpos – animais mais evoluídos, e, para alguns somente o homem – ocorre o que chamamos de pensamento.

Mesmo assim há a crença – humana – em seres que pensam mas que não possuem corpos materiais. Por exemplo, em primeiro e sumo lugar, Deus; e, em segundo e mais corriqueiro lugar, almas humanas desencarnadas, os “espíritos”, que levariam o mesmo pensamento de quando encarnados na matéria para um plano etéreo/imaterial. Precisamos denunciar, contudo, que essas ideias não se sustentam em nenhuma prova objetiva, mas sobrevivem apenas em base mística/subjetiva.

De onde então vem essa fé em um pensamento livre da matéria? Bem, até aqui sabemos que só o pensamento humano – que ocorre na matéria; no corpo humano – imagina um pensamento se dando fora da matéria. Abstraindo a fé de alguns na mente de Deus ou nos “espíritos”, temos que as ocasiões nas quais o pensamento humano se aliena maximamente da materialidade que o produz são durante os sonhos. Com efeito, nos sonhos o pensamento encontra o mínimo de restrições materiais, tanto que, neles, pessoas, lugares e objetos se modificam, transmutam, surgem e desaparecem ao sabor do pensamento onírico.

Entretanto, por mais “livre” da matéria que o pensamento onírico pareça, ainda assim ele é produzido por uma mente material – todavia não em vigília, adormecida. E, mais comprometedor ainda: esse pensamento onírico só sonha mediante representações de corpos materiais: o corpo do próprio sonhante (que, dizem, existe em todos os sonhos); os corpos das demais pessoas e animais que interagem com ele; bem como os lugares e objetos que servem de cenário do sonho. De modo geral, o pensamento não consegue representar-se a si mesmo senão através do suporte de imagens materiais. Pensar o pensamento puro é impossível. O “Penso, logo existo” de Descartes nos diz que o pensamento, quando não pensa nenhum objeto determinado, não significa que pense o próprio pensamento, mas, minimamente e no limite, a existência.

Será então que é dos sonhos que tiramos a ideia de pensamento sem matéria; de Deus e de “espíritos” que pensam mas que não têm corpos? A gênese do universo segundo a Bíblia nos conta que para criar o mundo material Deus apenas pensou nele. De modo que, antes dessa ocasião, quando a matéria ainda não havia sido criada, só existia o pensamento de Deus. Entrementes, bastou Ele pensar na matéria e, voilà, ei-la criada. E assim com tudo, até mesmo a existência do homem. A única coisa que Deus não precisou pensar/criar foi o próprio pensamento, pois Ele já o é desde a eternidade.

Na Crítica da Razão Prática, Kant nos mostra que a razão, naturalmente disposta a resolver os problemas que enfrentamos na nossa existência cotidiana, pode, no entanto, quando desocupada de tarefas mundanas, produzir duas abstrações sublimes: a ideia de exatidão, expressa pela matemática, e – o que mais interessa aqui – a ideia de perfeição, expressa por Deus. De modo que, para a mente humana, a sua própria perfeição, representada pela ideia de Deus, seria pensar absolutamente livre da matéria. Por que o pensamento, que até onde sabemos é produzido pela matéria – pela mente física -, cria para si mesmo a metafísica de um pensamento independente da matéria e, mais ainda, convence-se de que isso é a perfeição?

Decerto que as limitações materiais são inconvenientes para o pensamento. Em um lugar, desejamos estar em outro; tristes, queremos ser felizes; pobres, imaginamos as delícias da riqueza; só que a materialidade da realidade, no mais das vezes, impede esses pensamentos de realizarem as ideias que produzem. Fôssemos qual Deus, isto é, bastasse pensar em uma coisa ou situação para ela existir, seríamos onipotentes. No entanto, nossos pensamentos são sempre limitados pela realidade material. E talvez seja justamente a percepção disso que faça com que imaginemos o seu contrário, ou seja, um pensamento livre de qualquer constrangimento pela realidade material.

No entanto, essa ideia de que o pensamento perfeito é o que se dá livre das limitações materiais porventura não incorre no mesmo engodo do sonho, isto é, querer se livrar da matéria para, todavia, pensar através dela sem as limitações que ela impõe? Em outras palavras, para brincar de Deus? Não obstante, assim como não controlamos o sonho para que não se transforme em pesadelo, assim também o pensamento, livre das restrições materiais, não poderia evitar de ser traumaticamente inconveniente para si mesmo. Imaginemos uma pessoa no conforto de sua casa pensando em uma gélida e escura caverna. Se não houvesse a realidade material para, digamos assim, impedir tal pensamento de fazer de seu pensado realidade, essa pessoa estaria em apuros o tempo todo.

Se, por um lado, é ruim pensar, por exemplo, em felicidade e não necessariamente tê-la, ou pensar em ser rico e não significar que o seremos, por outro lado, é muito bom podermos pensar livremente em tragédias ou em ausências irreversíveis sem que elas se realizem imediata e necessariamente. A matéria, com efeito, é a âncora do pensamento, tanto durante tempestades, quanto em períodos de calmaria. Se, contudo, podemos imaginar que existe pensamento independente da matéria, e que, aliás, esse seja o pensamento perfeito, digno de Deus, mas, ao mesmo tempo, sabemos que é impossível pensarmos sem o nosso corpo, a única coisa que podemos deduzir é que o nosso pensamento sabe muito bem que ele não é perfeito.

De fato, como não é mistério ao próprio homem, ele sabe que não é perfeito – por mais que finja isso, seus próprios pensamentos o denunciam intimamente. E justamente por conta de tal ciência, o pensamento frustrado consigo mesmo imagina a perfeição que lhe falta, pois, por mais que se saiba distante dela um infinito – a mesma distância que separa as criaturas de Deus -, no final das contas esse pensamento imperfeito se satisfaz com a capacidade de ao menos pensar a perfeição. Se não experimenta materialmente a perfeição, pelo menos tem a experiência do sublime diante dela. Em suma, se, de um lado, o nosso pensamento sabe que não é perfeito, de outro, é capaz de imaginar o que ela seria, e, mais ainda, que só ele pode imaginá-la. Mas isso, contudo, ao alto custo metafísico de abstrair desse pensamento qualquer materialidade, inclusive a que o produz fisicamente.

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“Diretas Já!”, bebê? Consciência de classe!

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Desenho: Laerte

O povo brasileiro, depois de 24 anos, clama novamente por “Diretas já!” diante do risco, aberto pela crise política tupiniquim, de uma eleição indireta para presidente da república capitaneada por um parlamento notoriamente corrupto e antipopular. Entretanto, esse clamor popular mais uma vez esconde uma terrível ingenuidade. Ora, “Diretas Já!” pressupõe que eleições diretas atenderiam os interesses do povo, e eleições indiretas, os dos políticos corruptos clientes do capital. Não obstante, entendendo esses dois “adversários” em termos marxistas, enquanto classe dominada versus classe dominante, o frágil castelinho de cartas democrático do povo desmorona, pois crer que eleições diretas mudarão o fato de que quem seguirá dominando será a classe dominante é tão tolo quanto esperar que dominante aceite outro significado.

Sequer podemos dizer que “Diretas Já!” é folclórico, pois, do inglês folklore (folk: povo + lore: conhecimento), folclore significa “conhecimento do povo”. Não obstante, a classe dominada entender que pela mera ocasião das urnas pode moderar, quiçá impedir a dominação da classe dominante outra coisa não é senão ignorância popular a respeito dos sistemas político e econômico vigentes. Dentro da engenharisticamente arquitetada democracia representativa/liberal/burguesa, o povo achar que o fato de ele votar ou votarem por ele fará alguma diferença é nada mais que estupidez; o seu folclore estúpido; sua folkstupidity.

E isso porque, em primeiro lugar, o competente trabalho de classe da classe dominante vem sendo obliterar a certeira leitura de Marx, eternizada no Manifesto Comunista, segundo a qual o Estado não é nada além do que “o comitê executivo da burguesia”. E a democracia, essa ideia de que é o povo, mediante o voto, que governa é a falácia da classe dominante para mentir que o Estado não é a sua exclusiva res privata. Ora, em uma democracia liberal/burguesa, o Estado democrático continua sendo o bunker do capital; a democracia, o bureau da oligarquia. Com efeito, a maior burrice do povo é seguir ignorando isso.

Sejamos realistas, povo brasileiro! Em ambos os casos, seja com eleições diretas, seja com indiretas, será eleito presidente um representante dos interesse da classe dominante. “A realidade é dura”: ou a classe dominante apresentará seus candidatos ao arbítrio popular, ou arbita ela mesma entre eles. Até mesmo Lula, tido como o herói “guerreiro do povo brasileiro”, embora tenha de fato distribuído renda, universidades e cisternas aos mais pobres como “nunca antes na história desse país”, ele só foi presidente da república porque atendeu, melhor dizendo, enriqueceu a classe dominante. Prova disso é que bastou o lulismo – todavia nas mãos menos competentes de Dilma – não mais realizar o sempiterno objetivo das elites e, voilà, rua!

O paralelo entre as “Diretas Já!” de 1983 e 2017 é inevitável. No recente século passado, a pecha “democrática” – e derrotada – foi tentar impedir que os militares escolhessem o presidente da república – que, como sempre, representaria as elites – para que o povo pudesse escolher, “democraticamente”, o presidente da república representante das elites. E o atual “Diretas Já!”, repetindo o erro do passado, pretende impedir que parlamentares corruptos – clientes cativos de empresários outrossim corruptos – elejam indiretamente um representante dos interesses desses empresários para que nós, o povo, escolhamos, dentre as opções que os políticos corruptos nos darão, o representante dos interesses dos empresários corruptos.

Eis a falácia da moderna “democracia”: fazer com que o povo, estupidificado, legitime a escolha dos representantes da classe dominante sem que esta precise fazê-lo despoticamente, via ditadura ou golpe, expedientes que, para quem quer lucrar sempre e muito, têm preço – econômico, político, ético – alto demais para serem usados constantemente. E “Diretas Já!”, novamente, é o grito do povo no sentido de seguir fazendo o que a classe dominante quer que ele faça: legitimar os representantes dela.

Fazendo uma analogia com a contemporânea e mui polemizada mazela social do crack, assim como os seus usuários, preteridos e esquecidos pelo sistema, valem-se desesperada e compulsivamente da “pedra” para suportarem tal condição – sem no entanto mudá-la com o vício -, assim também o povo, copiosamente, corre atrás da “pedra” da “democracia” para ao menos suportar, melhor dizendo, esquecer o fato de que o sistema seguirá dominado pela classe dominante. Nesse velho quadro, clamar coletivamente por “Diretas Já!”, infelizmente, é apenas desespero popular diante de uma crise de abstinência mais fortemente percebida. Metaforicamente, é a ignorância suicida do viciado fazendo-o escolher ele mesmo a sua destruição para não ver, crua e claramente, que, na verdade, não há escolha: o sistema no qual se encontra é que o destrói.

Ver essa realidade sem o Véu de Maya “democrático” tecido historicamente pela classe dominante para perpetrar mais expeditamente a sua dominação; no caso tupiniquim, aceitar o fato de que não importa quem escolherá o próximo presidente do Brasil, se o povo, diretamente, ou se os representantes da classe dominante, indiretamente, pois em ambos os casos a classe dominante seguira como tal; realizar isso, sem dúvida alguma, é traumático. Psicanaliticamente falando, contudo, todo trauma tem uma dupla virtude: primeiramente, não permitir que aquilo que o causa desapareça no esquecimento – o trauma é a fortuita presentificação de uma intervenção insuportável do real; e, em segundo lugar, é superável na medida em que o traumatizado é capaz de falar dele, de comunicá-lo àqueles que podem entendê-lo – sendo o analista o ouvinte/remédio ideal desse processo de cura.

Por isso aqui eu me dispenso, para evitar o pecado da ingenuidade, de propor alguma solução para o impasse traumático no qual nós, povo brasileiro, estamos metidos nessa inócua querela entre “Diretas Já!” e “Indiretas quando a classe dominante quiser”. Faço apenas questão de reforçar insuportavelmente esse trauma. Não só para que o meu encontro – enquanto povo – com o real se apresente em toda a sua radicalidade, sem véus/cracks anestesiantes, mas, sobretudo, para que, ao mesmo tempo, falando dele a quem me ler/ouvir, eu possa me “destraumatizar”. Se todos nós, dominados, fizéssemos isso certamente nos despatologizaríamos a ponto de lidarmos com o real de nossa opressão de modo mais objetivo, político e subversivo, exatamente como a classe dominante faz para nos oprimir.

É porque a classe dominante sabe nitidamente que, de um lado, a democracia liberal/burguesa é a melhor fantasia para a sua estável oligarquia, e que nem mesmo eleições diretas mudarão o fato de que os presidentes serão representantes exclusivos seus; e também, de outro lado, porque está certa de que, até aqui, conseguiu fazer com que a classe dominada permanecesse alienada dessas cruéis verdades; por isso tudo é que ela domina tão certeiramente. O que se depreende disso tudo é que falta ao povo um esclarecimento fundamental, precisamente aquilo que Marx prescrevia aos trabalhadores para que a Revolução fosse possível, qual seja: consciência de classe – consciência essa que sobra à classe dominante. E se o povo puder conscientizar-se de sua potencialidade revolucionária fazendo aquilo que a psicanálise prescreve ao traumatizado: assumir o trauma e comunicá-lo a quem melhor pode compreendê-lo, não a psicanalistas, obviamente, mas a si próprio?

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Sobre o monopólio da violência

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Foto: Ana Carolina Fernandes – Greve Geral, Rio de Janeiro, Cinelândia, 28 de abril de 2017.

Discordemos do Estado, e, no melhor dos casos – como quando trabalhadores protestam na defesa de direitos constitucionais – recebemos bombas de gás e balas de borracha. A repressão do Estado na greve geral de 28 de abril, no Brasil, não deixa dúvida disso. No pior dos casos, como na Síria atualmente, cidades inteiras são dizimadas com armas químicas e ataques aéreos. O monopólio da violência pelo Estado é sempre tirânico, independente de o Estado ser democrático ou tirânico. E se essa violência, que monopolizada é sempre despótica, fosse democratizada? Será que não seria menos violenta?

O monopólio da violência pelo Estado é didaticamente explicado pela teoria política do filósofo Inglês Thomas Hobbes, que justifica essa posse exclusiva no medo natural dos homens da “morte violenta”. Grosso modo, o substantivo medo dos homens de serem mortos, violenta e intempestivamente, por outro ou outros homens fez com todos travassem um “contrato social”, um trato coletivo no qual todos abrem mão do “direito natural” de matarem uns aos outros em caso de necessidade, para então terem o direito artificial, nomeadamente civil, de não serem mortos; ou, caso isso aconteça, que justiça seja feita.

Só que esse “contrato social” – e isso não mistério para ninguém – de forma alguma extinguiu as mortes violentas e injustas. A violência da qual o homem quis se ver livre, na verdade, foi transferida toda ela ao Estado, ou, na imagem clássica de Hobbes, ao Leviatã. Só ele pode matar, violenta e injustamente, sem sofrer punição, como comprovam, por exemplo, os cotidianos assassinatos de suburbanos cariocas pelo Estado, na figura da polícia militar – que, segundo os coros populares desde a primavera brasileira: “Não acabou. Tem que acabar. Eu quero o fim da polícia militar”. Entretanto, por mais monstruoso que o Leviatã possa parecer, Hobbes insiste, em outras palavras, que esse é o melhor e mais racional dos mundos.

Para o filósofo contratualista, quebrar o contrato, ou seja, retirar do artificial Leviatã o monopólio da violência é o ato mais irracional possível, uma vez que o Estado é resultado dos melhores cálculos humanos a respeito da segurança. Em suma, para o liberal Hobbes, a revolução do Estado será sempre para pior; devolver-nos-ia imediatamente ao “estado de natureza” no qual, conforme suas célebres expressões, há a “guerra de todos contra todos”: estado no qual “o homem é o lobo do homem”. Por isso, justifica ele, a violência deve ser posse do Estado, tão somente dele.

Entretanto, e quando o Leviatã, cuja função essencial é transformar o Homo homini lupus no “cachorrinho melhor amigo do homem”, falha, deixando seus súditos temerosos não só de serem mortos violentamente uns pelos outros, mas, sobretudo, pelo próprio Estado, como de fato ocorre cada vez mais banalmente? Pior ainda: e quando esse Estado delibera que são os súditos os lobos e usa sua monopolizada violência não para protegê-los, mas para proteger-se deles? Porventura não temos aí um mau contrato, que deve ser quebrado para que possamos travar outro que melhor nos sirva?

Falta-me comprovação estatística, mas minha intuição sugere que o número de mortes no “estado de natureza” seria o mesmo que temos no artificial Estado Civil, com a diferença que, no primeiro caso, essas mortes seriam cometidas pelos homens e em nome dos próprios homens, e, no segundo caso, seriam feitas outrossim por homens, não obstante, em nome do Estado. Se essa minha ideia não pode ser comprovada cientificamente, ao menos pretende questionar a capacidade da violência, monopolizada pelo Estado, de assegurar aos homens que eles não serão mortos violenta e injustamente. Porventura seria um barbarismo imperdoável propor uma redemocratização da violência, mediante a suspensão, ainda que experimental, de sua posse pelo Estado, para vermos se assim estaríamos algo mais seguros?

Para relativizar o lugar-comum que repete que as pessoas não podem e não devem agir violentamente – lugarzinho esse que nos faz gritar, em coro, “Sem violência” até mesmo quando estamos engolindo, violentamente, litros de gás lacrimogêneo comprados pelo nosso violentador com o nosso dinheiro -; faço questão de comentar uma cena do seriado norueguês Fortitude, que se passa em uma isolada cidadezinha, no extremo norte do mundo, encravada em uma geleira.

O que há de promissoramente reflexivo nesse exemplo ficcional é que, pelo fato de os cidadãos de Fortitude viverem na tundra, precisam, todos, ter armas para se protegerem dos ursos polares que coabitam o local. Quando, então, a governadora local pretende impor medidas antipopulares aos cidadãos, alguém lembra ela que isso não pode ser feito, pois, como ser impopular em uma cidade onde o povo é armado e pode responder com igual ou maior violência a violência que receberá? Fortitude sustenta uma pergunta fundamental: e se o Estado, para não ser injustamente violento com o povo, precise estar sujeito à violência deste?

Certamente dirão que armar o povo é uma ideia fascista, diga do execrável Bolsonaro. O problema dessa crítica, contudo, é que ela pressupõe que as pessoas deveriam ter armas apenas para matar umas às outras. Todavia, o exemplo de Fortitude mostra que os cidadãos devem ser armados para se defenderem de feras, de bestas, de “monstros não humanos” que os ameacem violentamente. Os moradores da geleira fictícia não têm armas para as usarem contra si próprios – ainda que isso possa acontecer acidentalmente. E se, como dissemos, o Leviatã não é um cidadão, mas um ser artificial criado por cidadãos, um “monstro”, por assim dizer, então, usar de violência contra ele quando ele é desmedidamente violento significa defender os cidadãos.

Muitos, dirão, decerto, que nos EUA, país com a população mais armada do mundo, o Estado não se sente ameaçado nem deixa de agir violentamente sempre que julga necessário. Com efeito, para que o Leviatã norte-americano tivesse medo dos milhões de sobrinhos do Tio Sam, seria preciso que estes tivessem não apenas pistolas, mas algumas centenas de ogivas nucleares. Afora o absurdo dessa ideia, ela deve ao menos nos levar a pensar que o atual Leviatã norte-americano só seria moderado pelo seu povo se este fosse “nuclearizado”. E isso porque há muito tempo só o Estado deteve a posse da violência. Ora, deixe isso acontecer por alguns séculos, e, voilà, a violência será patrimônio inalienável do Estado.

Seria pretensão demais querer descobrir a forma de acabar com o monopólio da violência pelo Estado. Entretanto, qualquer movimento nesse sentido só será possível se, primeiro, refletirmos sobre esse monopólio, sobretudo quando ele não entrega o que promete. Pior ainda, entrega o contrário: mais violência e mortes aos cidadãos.

Se a física comprova que qualquer ação suscita uma reação de mesma intensidade, porém, de sentido contrário, então, aceitar ser violentado pelo Estado sem ter a liberdade de reagir com igual violência contra ele é se alienar em uma dimensão metafísica que, com efeito, apenas permite ao Estado seguir agindo impune e injustamente. Esperar não-violência do violentíssimo Leviatã tupiniquim, por exemplo, é crer ingenuamente não só que Deus é brasileiro, mas que Ele, mistica e milagrosamente, irá livrar-nos do “Lobo do Estado”.

Que virtuosas reformas econômicas, políticas, sociais, culturais, éticas, etc., são necessárias para que possamos, novamente, ter a violência democratizada, porém, sem que a voltemos viciosamente contra nós mesmos, mas, ao contrário, possamos usá-la, conjuntamente, contra os “monstros” nossos inimigos, por exemplo: o Estado injusto e violento? Não nos esqueçamos jamais: essa mudança não virá do além sobrenatural, mas do aquém natural dos próprios homens que, ao passo que não querem ser mortos nem violentados injustamente, muito menos podem aceitar tal violência justamente de quem foi posto no mundo – e por eles! – para protegê-los dela.

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O novo avatar do velho suicídio

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As discussões públicas sobre jogo da Baleia Azul quizz internético no qual deve-se cumprir 50 tarefas, que vão desde desenhar uma baleia azul em uma folha de papel; passando pelo autoflagelo e pela mutilação do próprio corpo; terminando com o suicídio dos jogadores – estão envoltas ou em achismos reativos, ou em psicologismos reducionistas ao pior estilo auto-ajuda de televisão. O vício dessas discussões é pretender que a particularidade do evento Baleia Azul explique a universalidade do suicídio, quando na verdade, o método deveria ser invertido. Aqui tentaremos fazer esse outro caminho, percorrendo inicialmente algumas das ideias do filósofo francês Émile Durkheim presentes no seu grande tratado sobre o assunto, chamado: “O Suicídio”, e, a partir delas, pensar o fenômeno da Baleia Azul.

Um dado fundamental dito por Durkheim, que certamente furta o catastrofismo da presente onda de suicídios, é que “cada povo tem uma taxa de suicídio que lhe é pessoal”. Mutatis mutandis, o suicídio é um fato cultural; varia de sociedade para sociedade; de cultura para cultura; estando, no entanto, presente em todas e em todos os tempos. O suicídio não é uma anomalia, mas uma expressão social, senão necessária, ao menos, segundo o nosso filósofo, “com uma taxa mais constante do que a mortalidade geral”. Durkheim vai mais longe ainda, dizendo que “cada sociedade se predispõe a fornecer um contingente determinado de mortes voluntárias”. A partir dessas considerações, devemos refletir de modo menos vulgar e reativo sobre os presentes suicídios causados pelo jogo da Baleia, vendo neles não o “fim do mundo”, mas apenas a nova roupa, ou, por se tratar de uma interação mediada pela Internet, o novo avatar do velho e constante suicídio.

Compreender o suicídio pelo que ele é passa por saber, por exemplo, que, como mostra Durkheim, “é nas classes mais cultas e mais abastadas que o suicídio faz mais vítimas”. A presente superficialidade das discussões sobre a Baleia Azul bem pode estar tentando preservar a insustentável pax burguesa daqueles que criam os seus filhos imersos – ou desejando se imergirem – na riqueza, como se se tratasse de um valor algo importante à vida. Será que estamos prontos para relativizar a ideologia da abundância no sentido de nos protegermos do suicídio? Outro dado interessante é que “o suicídio é mais comum na cidade do que no campo”. Aqui também podemos ver que a escolha cosmopolita de se viver em grandes e densos centros urbanos apenas predispõem mais ainda ao suicídio. Novamente: quem está disposto a uma vida bucólica e interiorana apenas para estar livre do espectro do suicídio?

O maior pecado das atuais reflexões sobre as vítimas da Baleia Azul, no entanto, é pretender resumir a problemática dizendo que a causa desses suicídios é ou a depressão, ou a insanidade mental dos jovens suicidas. Durkheim, contesta essa ideia. A certa altura dos seus estudos, ele percebeu que “a loucura é muito mais frequente entre os judeus do que nas outras confissões religiosas”. Não obstante, verificou também que “a propensão ao suicídio entre os judeus é muito fraca”. Estimulado por esses dados, Durkheim viu que o mesmo acontecia a despeito de determinações religiosas; que, de modo geral, “os países em que há menos loucos são aqueles em que há mais suicídios”. Assim chegou à revolucionária conclusão de que “o suicídio varia na razão inversa dos estados psicopáticos”. A loucura, de certo modo, seria um antídoto contra o suicídio.

Aos que insistem em que as causas do suicídio são psicopatológicas, Durkheim faz uma concessão, dizendo que “se a tendência ao suicídio constitui uma variedade da loucura, só pode ser uma loucura parcial, e limitada a apenas um ato”. Em outras palavras, o suicida não é um louco, mas um quase-louco, que age tresloucadamente apenas no ato de se matar. Essa quase-loucura, na letra de Durkheim, é chamada de “monomania”. Para o filósofo, “o monomaníaco é um doente cuja consciência é perfeitamente sã, salvo em um ponto: ele apresenta uma tara, e nitidamente localizada”. No caso dos suicidas, a tara de se matar, e nitidamente localizada no instante em que o faz. Encerrando essa discussão sobre loucura e suicídio, o filósofo diz que “se existe, portanto, uma loucura-suicídio, ela só pode ser uma monomania”.

Entrementes, o peso da monomania não recair exclusivamente nas costas dos suicidas. Enquanto paranoia que fixa uma única ideia ou conjunto de ideias na cabela de alguém, a monomania é um pathos assaz universalizado nesse nosso mundo obsessivo-compulsivo. A monomania, diz Durkheim, “é simplesmente, na ordem das tendências, uma paixão exagerada, e, na ordem das representações, uma ideia falsa”. Ora, quem de nós, não-suicidas, não exageramos nas nossas paixões e não temos pencas de ideias falsas? Se, como disse o nosso filósofo, a monomania é uma quase-loucura que provoca o suicídio, temos de insistir no fato de que ela também é uma compulsiva paixão que move milhões de pessoas vida adentro.

Para Durkheim, suicídio é toda morte que resulta, a longo prazo ou imediatamente, dos atos da própria vítima. Ser anorexo ou obeso; fumar; ingerir álcool em demasia, consumir advertidamente alimentos com agrotóxico; respirar o ar poluído das grandes metrópoles; até mesmo destruir a natureza como todos estamos fazendo; tudo isso é, na lógica durkheimaina, suicídio. É… o nosso mundo conta com muito mais suicidas – mediatos – do que supõe a nossa vã filosofia. O que talvez mais perturbe nos suicídios das vítimas da Baleia Azul seja não só a imediatidade destas mortes, mas o fato de serem uma nova moda, um novo avatar mortal para essa imediatidade.

Há diferentes espécies de suicídio. Durkheim no entanto as reduz em quatro tipos. Em primeiro lugar, o suicídio maníaco, no qual o indivíduo se mata para fugir de um perigo ou de uma vergonha imaginários. Em seguida, o suicídio melancólico, relacionado a extremas depressão ou tristeza. Há também o suicídio obsessivo, cometido por quem se vê tomado pelo desejo de se matar, embora saiba perfeitamente que não há motivo racional algum para tal. E, por fim, o suicídio impulsivo ou automático, que é aquele que surge intempestivamente, eclodindo e levando à morte num verdadeiroautomatismo, tão previamente indetectável quanto incontrolável.

Contudo, será que todos os suicidas vítimas da Baleia Azul podem ser colocados em uma única dessas quatro categorias suicidas? Provavelmente não. Independentemente de Baleias online e do fato de ser adolescente, pessoas de todas as idades e culturas se matam por qualquer uma das quatro vias, ou ainda pela combinação de duas ou mais delas. Sequer é absurdo imaginar alguém misturando os quatro suicídios durkheimianos em um, por exemplo: desejando se matar para fugir de uma vergonha imaginária que, por sua vez, gera extremas tristezas, mesmo sabendo que não há motivo racional para tanto, mas que, por algum automatismo que se instalou nas ideias dessa pessoa, o suicídio é levado a cabo como se de necessidade se tratasse.

Com efeito, seria reducionista demais tentar colocar todas as jovens vítimas da Baleia Azul em uma única categoria durkheimiana de suicídio. Faríamos o mesmo que as superficiais discussões sobre o caso. Entretanto, do nosso filósofo é preciso ter em mente duas ideias. A primeira, que “viver é responder às excitações externas de maneira apropriada”; e a segunda, que “o suicídio é, antes de tudo, o ato de desespero de um homem que não faz mais questão de viver”. Suicidar-se, portanto, seria perder a esperança, ou ainda, não fazer mais questão de responder às solicitações da vida.

E não é preciso ser adolescente partícipe de jogos mortais online para saber o que é a frustração de não se conseguir corresponder apropriadamente às solicitações desse esquizomundo capitalista no qual vivemos. Esse mundo, aliás, é feito para que não consigamos atendê-lo apropriadamente. Fazemos isso, como se diz, “aos trancos e barrancos”. Desse modo, quando nos perguntamos por que os adolescentes estão se matando por conta de um joguete da Internet, devemos saber que os motivos que os levam a isso são os mesmos que pairam sobre as cabeças de todos, com o mesmo insuportável peso. A maioria consegue driblar esse inimigo. Uma minoria, contudo, sempre sucumbe, e das mais variadas formas. As vítimas da Baleia Azul só encontraram outro meio para realizarem essa percepção de que é impossível atender apropriadamente às solicitação desse nosso esquizomundo.

De fato, como estamos insistindo aqui, e com a ajuda de Durkheim, a Baleia Azul é apenas a mais nova “roupa do rei” suicídio; o último avatar que dá vida à impossibilidade de se viver apropriadamente. Porventura seria inumano retirar a aura escatológica da Baleia Azul, uma vez que, de um lado, como mostrou Durkheim, o suicídio é um fato cultural universal, mais constante nas sociedades do que as mortes não voluntárias; e, de outro lado, dado que é só a nova moda em matéria de suicídio? O espanto com os suicídios causados pelo jogo da Baleia deve ser domado pela compreensão do suicídio enquanto um universal humano. Até porque toda moda, passa; o que não passa, garante o nosso filósofo, é o próprio suicídio.

O que mais espanta a “opinião pública” não-suicida, e inclusive os suicidas tradicionais, é que as mortes voluntárias causadas pelo jogo da Baleia não são nem solitárias, nem tampouco solitariamente decididas, mas, ao contrário, ordenadas e assistidas por um outro, ou por outros que habitam a profundidade insondável da Web. Entretanto, para uma geração que não consegue mais viver off-line, também o suicídio não poderia deixar se ser online, youtubizado, instagramizado, curtido e compartilhado. Reflexo dos novos costumes, folks.

Vivemos em uma era de liberalidade extrema que prega que as pessoas devem ser livres para fazerem o que bem entendem. Atualmente há liberdade inclusive para se discordar do sexo biológico com o qual se nasce em função de sexualidades subjetivas. A virtude do discurso padrão é sustentar que as pessoas devem usufruir de suas liberdades desde que não privem os outros das suas. Agora, a liberdade de não mais viver, que de modo algum priva os demais de viverem, ah!, essa segue negada, mistificada. Se ainda estamos vivendo em uma tirania da vida, os jovens seguidores da Baleia Azul são apenas os mais novos rebeldes dissidentes. Quanto tempo demorará para que as nossas sociedades mantenedoras de estáveis índices de suicídio finalmente pensem como o título daquela música do Guns N’ roses: Live and let die, ou seja, viva e deixe morrer?

Nesse sentido, o filme “A descoberta”, de 2017, contribui muito, ainda que perturbadoramente. Na ficção, um cientista internacionalmente reconhecido (Robert Redford) comprova que a consciência humana não é causada pela matéria, e que, portanto, sobrevive à morte física, continuando em um outro plano. A surpreendente resposta social a essa descoberta é uma onda incontrolável de milhões de suicídios de pessoas que querem “passar para o outro lado”. Estes suicidas não são mais estigmatizados pelos que permanecem vivos, afinal, todos já sabem que não se deixa de existir pelo simples fato de se deixar de viver. A pertinência do filme está em acabar com a dicotomia entre vida e morte, fazendo da morte apenas uma outra vida; suicidar-se, na ficção, passa a ser como ir viver em um outro continente.

Como, entretanto, no mundo real não sabemos o que há depois da vida, não só o suicídio – enquanto curiosidade e experiência mórbidas -, mas sobretudo o tabu em respeito ao suicídio, permanecem. Bebem dessa ignorância, aliás. Insólita condição essa a do ser humano de saber que vai morrer, mas sem saber nem quando nem o que é a morte. Suicidar-se é, para dizer o mínimo, eliminar a primeira dúvida. Já a segunda, isto é, saber o que é a morte, sua resposta ainda não tem como ser objetivada. Se isso acontecer algum dia, como em “A Descoberta”, o suicídio parecerá mais com que Durkheim mostra no seu tratado, isto é, um fato cultural; uma expressão social; em suma: uma particular não-relação com vida que, a contragosto da nossa ideologia dominante, cresce na medida da abundância da própria vida: quando ela é mais culta, mais rica, mais urbana; e, como os seguidores da Baleia Azul expressam, mais tecnológica.

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“We need to talk about” democracia

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Ninguém mais questiona a democracia. Cremos nela cegamente, como se estivéssemos diante de Deus, contra o qual é heresia suprema levantar a mínima suspeita. E pouco importa saber que Hitler tenha ascendido ao poder democraticamente na Alemanha pré-nazista, ou que, no Brasil de há um ano, um bando de criminosos corruptos tenham deposto injustamente uma presidenta por vieses outrossim democráticos: continuamos defendendo a “nossa democracia”. Agora, uma coisa é preciso perguntar: democracia de quem – e para quem! – cara pálida?

O mordaz Nelson Rodrigues disse certa vez que “toda unanimidade é burra”. Aplicando essa chave rodrigueana à generalizada ideia de que a democracia é condição política padrão e obrigatória, não é difícil concluir que há grande falta de inteligência política. Não só o povo, que se compraz com a tradução literal de democracia (“o governo do povo”), mas também todas as importantes instituições internacionais, e, sobretudo, a classe burguesa/dominante prescrevem nada além da democracia como base da justiça e plataforma para um presente e um futuro melhores. Até mesmo os governos autoritários não podem deixar de, ao menos, encenarem eleições democráticas, mesmo que subterraneamente fraudadas. Mas, como ressalta Francis Fukuyama, “o simples fato de um país possuir instituições democráticas nos diz muito pouco se é bem ou mal governado”.

Deus, há muito tempo, não é mais amor. Hoje em dia Ele é democracia. E projetamos essa deidade, vertical e inquestionavelmente, sobre o universo das sociedades humanas. A democracia se tornou tirana! Interessante é o comentário de Fukuyama sobre a invasão dos Estados Unidos no Iraque, em 2003, cujo objetivo era derrubar a ditadura de Saddam Hussein para lá instalar a democracia. Realizada a primeira parte do plano, certamente a mais fácil, restou aos norte-americanos a frustração de ver que somente a anarquia teve lugar no país “libertado”. Diante desse fato, em vez de os sobrinhos do Tio Sam – e boa parte do mundo – questionarem a própria democracia, melhor dizendo, a impossibilidade e ou a impertinência de ela ser aplicada indiscriminada e universalmente, a imperfeição foi aplicada sobre sobre o povo iraquiano, suas instituições e costumes.

A impossibilidade de a democracia ser universalizada vem, em primeiro lugar, dos diferentes significados que ela tem, não só para diferentes sociedades, mas, mais essencialmente, para o povo e para os poderosos de uma mesma sociedade. Com efeito, o povo acredita ingenuamente que todo poder emana dele. Já os poderosos de hoje em dia sabem muito bem que todo poder emana do seu capital. É como se o povo acreditasse que democracia ainda é e deve ser aquilo que acontecia na antiga Atenas, uma democracia direta, sem saber, contudo, que tal regime era privilégio de apenas 10% daquela população. Direta para quem, cara pálida? Já a burguesia, desde a sua revolução, a Revolução Francesa, aventurou o mundo na sua própria e mui lucrativa democracia: a democracia representativa ou liberal; de um lado, iludindo o povo com a ideia de participação política nas decisões públicas mediante o singelo expediente do voto; porém, por todos os outros lados, monopolizando a res publica tiranicamente. A Odebrecht que o diga!

Desmistificando a virtude da antiga democracia direta ateniense para além do fato de ela considerar demos, isto é, povo, apenas 10% da população – o que, mutatis mutandis, no melhor dos casos, significava uma aristocracia, e, no pior, uma oligarquia – temos a clássica teoria política de Aristóteles segundo a qual exitem seis formas de governo; Três delas essencialmente boas: monarquia, aristocracia e regime constitucional (ou, na letra do filósofo, a politeia). As outras três, essencialmente ruins, porque são as degenerações das três primeiras, respectivamente: tirania, oligarquia e democracia. Já à época, a ilustre democracia direta ateniense tinha seus críticos, pois confundia-se com a anarquia, ou seja, a ausência de governo. 1800 anos depois Maquiavel ainda sustentava a teoria das formas de governo aristotélica, porém, em vez de opor a virtude da politeia aos vícios da democracia, nas palavras do italiano essa oposição se apresentava entre a virtuosa república e a viciosa licenciosidade, outro nome para a anarquia.

Como podemos ver, durante a maior parte da existência da civilização humana, a democracia foi considerada uma forma corrompida de governo, indesejável pelos maiores pensadores políticos. Foi apenas recentemente, desde a Revolução Francesa burguesa, que a democracia se vestiu com a toga da virtude inquestionável, obviamente, sem esclarecer ao demos que era essencialmente burguesa: para e pelos os burgueses. Mesmo assim o mundo ainda resistiu em universalizá-la. Fukuyama nos conta que 1973, apenas 45, dos 151 países do mundo eram democráticos, “livres” – um terço deles. Somente no ano de 2000 é que a democracia foi majoritária, com 60% dos países sendo governados democraticamente.

Só que, como Aristóteles e Maquiavel nos diriam, essa nossa contemporânea conjuntura democrática não teria como se sustentar, dado o princípio de corrupção intrínseco à própria democracia, seja ela direta, seja representativa. Prova disso é que, diz Fukuyama, de 2000 a 2010 20% dos países democráticos reverteram ao autoritarismo. O presente processo de autoconversão de Erdoğan em ditador, na Turquia de 2017, é apenas mais um capítulo desse afastamento do sonho democrático que por uma breve noite encantou o mundo. Sobre a democracia, Fukuyama tem uma boa tirada sobre a democracia, que certamente agradaria a Aristóteles e Maquiavel: “é como uma fábrica de salsichas, parece menos atraente quanto mais perto se chega do processo”. Talvez seja por isso que nós, brasileiros, estejamos clamando tanto pela “nossa democracia”: estamos distantes dela.

Quando a democracia está ausente, o que lembramos dela é a sua aura grega antiga, na qual os cidadão – na verdade os pouquíssimos que tinham o privilégio de serem considerados com tais – governavam. Já quando ela está presente, a exclusão que gera, ainda mais na democracia liberal, é tácita insuportável. E isso porque, na realidade, democracia não é a falácia da maioria da população decidindo sobre a sua res a partir do tímido e esporádico parlatório das urnas, mas, como a burguesia faz questão de esconder – ou pelo menos fazia até estrear espetáculos escatológicos tal como o protagonizado no Brasil pela Odebrecht -, a democracia é o expediente com o qual, relembrando Marx, a burguesia gere o seu bureau privado: o Estado.

Por mais que hoje em dia queiramos “a nossa democracia de volta”, é preciso considerar o preço desse desejo. Do contrário, seremos como o viciado em heroína que deseja cegamente aquilo que o escraviza e mata. Por que não considerar o que nos legaram gênios como Aristóteles e Maquiavel, cujas obras sustentam que há uma forma de governo virtuosa – a constituição civil ou politeia, para o grego; o governo popular ou a república, para o italiano – em relação a qual a democracia é a forma degenerada, licenciosa, anárquica? Será por burrice mesmo, como diria o dramaturgo brasileiro, que seguiremos todos, povo e poderosos, ricos e pobres, incluídos e excluídos, desejando unanimemente a mesma coisa? Seja a democracia direta antiga, seja a representativa/liberal moderna, elas sempre serviam apenas às minorias, mais especificamente: os poderosos, os ricos, os incluídos. Jaz aí a sua corrupção essencial. Dessa visada, a burrice é do povo.

Quanto tempo ainda demorará para que enxerguemos a armadilha democrática com a qual os privilegiados nos capturam, e, doravante, passemos a desejar, mas não só isso, comecemos a construir um governo verdadeiramente virtuoso à maioria, algo como a politeia aristotélica ou a república maquiaveliana? Ainda que, nós, os muitos do povo, ainda não saibamos como instituir um governo autenticamente popular, podemos devemos começar esse processo abandonando esse coro, unânime e burro, em nome da democracia, que, na verdade, desde sempre foi em nome de poucos e poderosos. We need to talk about democracia. Precisamos criticá-la duramente pelo que ela é: a corrupção do que significa um legítimo governo da maioria e para a maioria.

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Falácias humanitárias

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Há um ano, quando do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, paralelamente às manifestações populares propriamente políticas contra o democraticídio, houve um evento no Rio de Janeiro chamado “Ioga contra o golpe”. Nada contra as tradicionais disciplinas físicas e mentais indianas, que fazem bem tanto ao corpo quanto à mente dos seus praticantes. Agora, acreditar que cuidar do próprio umbigo físico e metafísico faria qualquer verão contra o inverno golpista que abriu a “era do gelo” ao Estado de bem-estar social brasileiro, convenhamos, é mais do que ingenuidade: é alienação ipsis litteris. E a direita golpista só tem a agradecer às ações “políticas” dos “yoggers contra o golpe”.

Está sendo divulgado um vídeo com o comediante Marcelo Adnet no qual ele convida os cariocas para um evento musical na Fundição Progresso chamado “Rock por Aleppo”, cujo objetivo é destinar 100% do valor arrecadado no festival às crianças afetadas pela guerra civil síria. Até aí nada de absurdo, pois, desde o “We are the world” do pedófilo Michael Jackson, “pela fome na África”, em 1985, assim caminha o humanitário. O que, entretanto, denuncia a imperdoável alienação do “Rock por Aleppo” é o restante do convite de Adnet, que, com seu sorriso falso à la Jim Carrey, diz o seguinte: “Venha se divertir e ao mesmo tempo ajudar as crianças da Síria!” Em outras palavras, “o máscara” tupiniquim convida-nos para assistirmos aos nossos músicos prediletos, bebermos nossas cervejas geladinhas, dançarmos alegremente junto de nossos amigos, e, ainda assim, acreditarmos que estamos fazendo alguma diferença contra o crime quiçá mais hediondo da atualidade: a “explosão” de crianças inocentes em função uma guerra feita por adultos culpados de poder.

O humanitarismo, decerto, chega até nós com muitas e distintas máscaras. Por trás de algumas delas, no entanto, não há nada de humanitário, apenas uma performance vazia, ou, o que pode ser pior, um egoísmo incapaz de se assumir, a não ser sob o espetaculoso disfarce do altruísmo. O filósofo Slavoj Žižek nunca teve papas na língua para denunciar que o real objetivo dos ricos países do primeiro mundo que dispendem vultuosas ajudas humanitárias aos pobres países do terceiro mundo é mitigar a culpa oriunda da consciência de que são precisamente as suas abundantes riquezas que causam, por mil vieses capitalistas, as aviltantes pobrezas em cada vez mais cantos do mundo. Basta estes afortunados países mandarem algumas migalhas aos miseráveis – que só são miseráveis relativamente às fortunas deles – e, voilà, os ricos podem fruir de suas bonanças mais tranquilamente.

Esse expediente dos países ricos de enviarem alguns trocados aos distantes necessitados pobres, com o objetivo de dirimir algo dos males do capitalismo, e que se apresenta sob o manto cada vez mais canastrão do humanitarismo, merece um neologismo só seu, que me arrisco aqui a chamar de “humanetarismo”: um humanitarismo meramente monetário, baseado no envio de algum dinheiro a quem precisa, desde que quem o envie nada mais precise fazer. Claro, o que deveria ser feito, o que realmente resolveria os problemas da miséria e da radical desigualdade socioeconômica mundial, seria o deliberado desinvestimento nesse sistema – capitalista – produtor de desigualdades radicais e de misérias extremas em nome de riquezas cada vez mais astronômicas concentradas em menos mãos.

Todavia, o exemplo do “Rock por Aleppo” mostra que é mais do que apenas enviar algum dinheiro aos desendinheirados o que esse “humanitarismo” está planejando. Ao mesmo tempo que pretende destinar alguns tostões às crianças vitimadas pela guerra síria – movimento no entanto absolutamente paliativo, pois não toca na causa do problema, apenas a remedia -, esse “humanitarismo” quer fazer isso mediante o prazer hedonista dos pretensos “humanitários”; via boa música, boa iluminação, bom ar-condicionado, boas bebidas, tudo isso rodeado de pessoas bonitas e bem vestidas dentro de um espaço devidamente gentrificado e, o que é mais importante, bem distante do real problema que imaginam resolver. Dessa visada, o “humanetarismo” diz pouco desse humanitarismo tacitamente hedonista. Mais apropriado seria outro neologismo, que sou tentado a chamar de “hedonitarismo”: o humanitarismo que se dá mediante o prazer hedonista de quem pretende agir humanitariamente.

O verdadeiramente hedonista e duvidosamente humanitário “Rock por Aleppo”, que nada faz para que adultos culpados deixem de explodir crianças inocentes, apenas pretende enviar “lotes de Band-aid” às feridas delas, pode ser colocado no mesmo saco de alienação do verdadeiramente egoísta e vergonhosamente político “Ioga contra o golpe”, que, através do alongamento muscular e do “equilíbrio do eu alienado”, acreditou que faria alguma diferença contra o democraticídio e o roubo dos direitos sociais que teve e está tendo lugar no Brasil. A Ioga não é uma religião, e sim uma “filosofia”. Entretanto, no caso do “Ioga contra o golpe”, cabe a ele a crítica de Marx segundo a qual “a religião é o ópio do povo”. Só que, nesse caso, em vez de rezar contra os males propriamente humanos do mundo, alonga-se o corpo e relaxa-se a mente; no caso do “Rock por Aleppo”, ouve-se boa música, sacode-se o corpo, bebe-se “bons drinques”, e, para muitos, volta-se desse “hedonitarismo” no ar refrigerado do Uber.

Insisto nessas aberrações que aqui chamo de “humanetarismo” e “hedonitarismo” sobretudo em respeito aos verdadeiros humanitaristas, por exemplo, os do Médicos sem fronteiras e os do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, notadamente aqueles indivíduos que, mais do que apenas dinheiro, levam os seus corpos e tempos a quem deles necessita urgentemente, não para obterem prazeres egoístas e consumistas, visto que estar presente em campos de guerra ou em áreas de catástrofes humanas e ou naturais é qualquer coisa menos ajudar o outro “curtindo a vida”. Os verdadeiros humanitários são aqueles que sabem que a miséria do outro só será realmente reduzida se o conforto deles for realmente comprometido: reduzido na medida do desconforto desse outro. Esse é o humanitarismo real. Envergonhem-se todos os que pensam fazer isso regados a boa música e cerveja ou alongando o próprio umbigo.

A vilania do capitalismo não é patente apenas por produzir sistematicamente miséria e guerras para melhor se manter e crescer. Seu mau também se expressa nessas “mercadorias” que aqui chamei de “humanetarismo” e de “hedonitarismo”, distribuídos worldwide com o rótulo falso do humanitarismo; mas que, como qualquer iPhone ou Uber, “ajuda” necessariamente apenas os próprios capitalistas, e, contingentemente, os indivíduos que os consomem alienadamente. Não, “yoggers contra o golpe” e “rockers por Aleppo”, a potência política e o senso humanitário de vocês, longe de serem a mais pálida solução a qualquer um dos graves problemas atuais, são, no mínimo, a manutenção deles. Mais grave ainda: o seu agravamento.

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Empresário-de-si-mesmo versus Proletário-mesmo

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A expressão “proletário-de-si-mesmo” seria algo redundante, uma vez que o proletário, de certa forma, já é um “si-mesmo”: aquele que, solitariamente, vende sua força de trabalho para sobreviver, e assim mesmo permanece, mais ainda, assim deve permanecer para o bem do capitalismo. Se aqui invisto nesse pleonasmo é para criticar o contemporâneo, e cada vez mais investido, conceito de “empresário-de-si-mesmo”: sujeito que, como o proletário, também vende a sua força de trabalho no mercado, mas que, antes disso, e sobretudo para isso, já “trabalha”, investe, árdua e não-remuneradamente, para estar a altura das necessidades daqueles que, com sorte, comprarão a sua força de trabalho para explorá-la.

Antes de prosseguir, é importante percorrer os significados históricos da palavra “proletário”. A expressão “proletari” surge na Roma antiga para designar os cidadãos da classe mais baixa que, despossuídos de quaisquer bens materiais, tinham por única função social gerar prole para ser usada pelos exércitos. Muitos séculos mais tarde, Karl Marx reutiliza o termo para, comezinhamente, diferenciar os trabalhadores dos burgueses capitalistas, porém, mais especificamente, para diferenciar os trabalhadores conscientes do seu papel social e histórico daqueles que não adquiriram tal consciência.

Marx, compreendendo, de um lado, que o motor da História é a luta de classes – como lemos no “Manifesto Comunista” -, e, de outro lado, que a riqueza social é medida com base no tempo de trabalho necessário para produzir mercadorias – ideia presente em “O Capital” -, enxergou nos trabalhadores, os indivíduos despossuídos de bens que no entanto produzem a riqueza, a classe que tem por destino vencer a substantiva luta das sociedades humanas. Mas isso, prega Marx, somente se o trabalhador se proletarizar. O eternizado lema dessa revolução jaz no Manifesto: “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”

Dessa perspectiva, é fácil entender porque, atualmente, a “identidade proletária” é sistematicamente desmantelada pelo sistema capitalista, afinal, este sabe, como Marx, que se seguir comprando a força de trabalho daqueles que, unidos, irão derrotá-lo, estará com isso dando um tiro no próprio pé. O ideal de “empresário-de-si-mesmo”, ao contrário, cinde os trabalhadores em unidades autônomas e competidoras entre si, destruindo assim qualquer possibilidade de uma consciência global entre aqueles que produzem a riqueza das suas sociedades.

O problema mais grave, contudo, é o fato de os próprios trabalhadores contemporâneos rejeitarem a sui generis identidade revolucionária que tão somente lhes cabe. Vestidos com o sofisticado uniforme de “empresários-de-si-mesmos”, são, na verdade, demasiadamente reacionários: reencarnam os seus antigos ancestrais romanos que, assim como eles, não são senhores da riqueza social, permanecendo como meros “produtores de população”, só que agora para a “guerra mundial” do capital. Rejeitar a identidade proletária tem um amargo preço: abrir mão da revolução.

Marx cunhou a expressão “lumpenproletariat” (lumpemproletariado) para designar os trabalhadores que, sem consciência de classe, ou o que é o mesmo, sem unirem-se a outros trabalhadores em um grande corpo proletário consciente, atendiam subservientemente aos interesses da burguesia. Se em alemão “lumpen” significa “trapo”, “farrapo”, a sua célebre significação marxiana é: “seção degradada e desprezível do proletariado”. A radical escolha do trabalhador, portanto, é, ou unir-se, conscientizar-se, proletarizar-se, ou, em vez disso, desunir-se, ser eternamente explorado, lumpemproletarizar -se.

Essa besta capitalista chamada “empresário-de-si-mesmo” tem o vício de fazer da virtude proletária um trapo, um farrapo. Hoje em dia, cada vez mais vence a ideia de que é degradante para um trabalhador identificar-se com a condição de trabalhador, e, pior ainda, com a de proletário. Só que, sendo absolutamente marxista, não é difícil concluir que essa “nova ideologia” esconde o fato de que o “empresário-de-si-mesmo”, essencialmente, é um lumpemproletário: aquele que mais subservientemente está a serviço da burguesia.

Sem embargo, aqueles que gastam, em média, trinta anos de suas vidas, sem dizer uma imensa quantidade de dinheiro, para estudarem, especializarem-se, falarem no mínimo três idiomas, vestirem-se adequadamente, responsabilizarem-se privadamente pelos seus planos de saúde e de aposentadoria, e tudo isso apenas para poderem vender as suas forças de trabalho à burguesia para, doravante, serem explorados por ela como qualquer trabalhador, são o que senão a “seção degradada e desprezível do proletariado” que, lumpenproletariamente, faz tudo o que seus opressores burgueses mais querem?

O “empresário-de-si-mesmo” é um monstro social do mesmo calibre que a “classe média”. A classe dominante, para mais-dominar, precisou nublar o fato de que as sociedades são constituídas por duas únicas classes: a dominante e a dominada. Então, inventou essa “classe” intermediária, que, na verdade, é constituída por indivíduos da classe dominada, que, entretanto, não mais se reconhecem como tais. São realmente dominados, porém, ideologizadamente dominantes. Não se unem mais aos interesses de seus pares, mas, burra e manipuladamente, aos de seus ímpares.

O pecado capital do “empresariado-de-si-mesmo” está em desistir do poder sui generis que Marx enxergou no proletariado, esse corpo de trabalhadores autoconsciente do seu papel histórico e essencialidade social que, somente enquanto proletariado, unido, é o agente da revolução que dará cabo da exploração que sofre. O “empresário-de-si-mesmo”, com efeito, está muito mais próximo do baixo cidadão romano, cativo da rígida e tradicional estratificação social antiga, que se já não tinha chance de mudar a sua condição, menos ainda podia revolucionar a sua sociedade.

Agora é a ocasião de desinvestirmos de vez a redundante expressão “proletário-de-si-mesmo”, usada inicialmente para criticar a besta social chamada “empresário-de-si-mesmo”. E isso para defender que enquanto “si-mesmo” um trabalhador é apenas um lumpemproletário. É precisamente por deixar de ser “si-mesmo” para formar um corpo unido e consciente com os demais “si-mesmos” como ele que o trabalhador deixa de ser um “lumpen”, um trapo velho e desprezível nas mãos daqueles que compram a sua força de trabalho, e veste a farda com a qual revolucionará a sociedade.

Já o “empresário-de-si-mesmo”, ao contrário, é um “si-mesmo” deliberada e demasiadamente ensimesmado; isolado dos seus iguais, e o que é pior, concorrente deles. Em outras palavras, é um lumpemproletário que se enxerga como burguês – assim como a classe média é a classe dominada que se vê como dominante. O único “si-mesmo” que pode existir com alguma dignidade social é o trabalhador. Não obstante o sistemático furto dessa dignidade pelos “detentores dos meios de produção”, isto é, os burgueses, os trabalhadores deve proletarizarem-se. Por isso, em vez de “proletários-de-si-mesmos”, e de modo algum “empresários-de-si-mesmos”, todos nós que trabalhamos devemos ser, em primeiro lugar, “proletários-mesmos”!

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As palavras, a política e as coisas.

PALAVRAS POLÍTICA

Na obra-prima “Política e tragédia: Hamlet, entre Hobbes e Maquiavel”, o filósofo argentino Eduardo Rinesi expõe um dos fundamentos do pensamento político do filósofo inglês Thomas Hobbes, “a questão das palavras”, que acaba ocultado pelo ilustre e imenso edifício teórico desse autor, simbolizado pelo Leviatã, que trata sistematicamente da forma do Estado absoluto e soberano. Atentar a esse soterrado “alicerce” hobbesiano, como veremos, é exercício urgente para quem quer tocar o núcleo quiçá mais imanente da política.

Rinesi ressalta que a preocupação primordial de Hobbes é com as palavras. Melhor dizendo, na relação que elas têm com as coisas que nomeiam. Segundo o filósofo argentino, a problemática que levou o inglês a conceber o seu Leviatã está no fato de as pessoas, embora usem as mesmas palavras, na maioria das vezes discordam das coisas que essas palavras designam no mundo. E, para ele, a política existe justamente por conta desses hiatos: para fazer com que as pessoas concordem com as coisas que as palavras nomeiam.

Tomemos como exemplo as palavras: “liberdade”, “justiça” e “democracia”. Por mais que sejam as mesmas nas bocas de todos, no mundo real elas significam coisas muito distintas. O que na boca do capitalista significa “liberdade para vender a força de trabalho”, no mundo real do proletariado representa uma quase escravidão. Trazendo a tona um exemplo contemporâneo, o significado de “justiça” para o juiz/celebridade Sérgio Moro significa o contrário para grande parte da população brasileira. E “democracia”, que para o povo significa, ingenuamente, “o governo do povo”, para a burguesia, no entanto, sempre significou o sistema político mediante o qual é ela quem governa o povo mais livremente.

Para Hobbes, ressalta Rinesi, se as pessoas concordassem com as coisas que palavras tais como “liberdade”, “justiça” e “democracia” designam, não haveria necessidade de política. O (con)trato de todos com todos – a ordem – estaria dado. Porém, é precisamente por conta da desordem entre as palavras e as coisas que elas deveriam significar que as pessoas entram em conflito. O caos semântico é o que a priori estabelece a célebre “guerra de todos contra todos” hobbesiana. Só que essa batalha, para não ser bárbara e sim política, precisa se dar no campo minado das próprias palavras.

Lembremos do surgimento dessa coisa chamada “política” na antiguidade grega. Somente após aqueles helenos abandonarem o conflito físico com o qual defendiam os seus interesses particulares para então disputarem na esfera da palavra foi que o despótes, isto é, o bárbaro, se converteu em polités, ou seja, em político, civilizado. A relação política que travaram entre si produziu não só a concordância em relação às coisas reais que as suas palavras significavam, como também a coisa que chamamos de “civilização”.

Hobbes, porém, sabia que tal concórdia em torno das palavras, sempre que existia, era frágil, instável demais. Não que para ele as próprias palavras fossem as culpadas, senão que eram as próprias pessoas, suas verbalizadoras, que naturalmente pervertiam o que elas significavam em função de interesses particularistas/egoístas. Não nos esqueçamos que, para o inglês, Homo homini lupus (O homem é o lobo do homem)!

E Rinesi parte desse equívoco semântico que sempre instabiliza as relações humanas para desmistificar a ideia de que a pré-política “guerra de todos contra todos”, ou o que é o mesmo, o famigerado “estado de natureza” hobbesiano, seja um estágio ancestral, anterior à civilização, do qual, uma vez súditos do onipotente Leviatã, estaríamos devidamente protegidos. Ao contrário, o “estado de natureza” no qual as pessoas se embatem – em função do que significam as palavras – é constantemente presente. E é em função dele aliás que devemos ser políticos com a mesma constância. O provérbio popular “matar um leão por dia”, parafraseado hobbesianamente, ficaria assim: domar um homo homini lupus por dia, mas com um chicote político cujo “sustenido” sejam palavras.

Empreitada do tamanho da civilização que Hobbes só conseguiu sistematizar erigindo o seu onipotente Leviatã, isto é, mostrando que, em suma instância, só conseguiremos concordar com o que significam “medo”, “morte” e “violência”, presentes no hobbesiano fundamento subjetivo do Estado, qual seja, “o medo da morte violenta”, se tivermos um soberano invencível que nos prive, objetivamente, do direito de mudarmos as coisas que concordamos em colocar sob as palavras que pronunciamos em conjunto.

Caos semântico contemporâneo, por exemplo, acontece com os significados de “mulher” e “homem”. O atual movimento envolvendo a “questão de gênero” altera o quiçá mais longevo trato humano: aquele que dizia que homem é quem nasce com falo, e mulher, quem nasce sem. Não que seja a priori condenável a modificação desses conceitos, afinal, o devir histórico impõe necessidades, senão que, a posteriori, devemos enxergar nisso como passamos a não mais concordar com as coisas que nós mesmos colocamos sob as nossas palavras.

A lente hobbesiana colocada sobre a presente questão de gênero magnifica o fato de que a transexualidade abriu brechas semânticas – angustiantes para uns, libertárias para outros – entre as velhas palavras “homem” e “mulher” e as coisas que elas até então representavam. Mais importante, contudo, é a sabedoria de Hobbes no sentido de apontar que a superação desses inevitáveis hiatos deve ser sempre política: é no campo das palavras, do diálogo, do (con)trato, e não no da violência física que devemos permanecer até, com sorte, voltarmos a concordar com o que, no caso, “homem” e “mulher” devam significar. A vitória transexual, portanto, equivalerá a todos concordarem que nem toda pessoa que nasce com um falo é homem, e nem toda que nasce sem, é mulher.

Sim, somos livres para mudarmos as coisas que até então estiveram significadas pelas nossas palavras, afinal, elas sempre foram tão somente nossas. Não obstante, devemos saber que isso tem um custo que somente pago com a moeda política evita que entremos numa sanguinária “guerra de todos contra todos”. Se formos políticos, civilizados a ponto de concordarmos, por exemplo, que “homem”, como dizia Platão, é “um bípede implume de unhas largas”, e ninguém discordar, a paz, pelo menos em torno dessa coisa/palavra, estará dada.

Universalizando essa lógica, a “paz total entre os homens”, a “civilização absoluta”, ou, dito ainda de outro modo, a domesticação completa do Homo homini lupus, será possível somente quando concordarmos, todos, que sob cada palavra há uma única e inequívoca coisa. Tarefa impossível, já sabia Hobbes. Por isso mesmo: mais política! Pragmaticamente falando, nosso trabalho político mais urgente seria concordarmos com o que significam: “natureza”; “igualdade”; “sustentabilidade”; “justiça”; “direitos”; só para citar algumas das nossas palavras que significam coisas perigosamente distintas para uns e outros.

Se não fizermos nós mesmos, natural e horizontalmente, essa politicagem, Hobbes nos diz que só resta criarmos um ser artificial, o Leviatã, que nos obrigue, verticalmente, a tal. Quando o Estado, do topo do seu monopólio da violência, lança bombas de gás lacrimogêneo contra, por exemplo, trabalhadores que se manifestam por salário, esse mesmo Estado está fazendo o seu trabalho – sujo, baixo, é preciso dizer – de obrigar todos a entenderem que, sob a palavra “manifestante”, em vez da “coisa trabalhador”, está a “coisa desordem”, ou a “coisa ameaça”.

Por isso devemos empreender nós mesmos, antes de nossos monstros artificiais, esse árduo trabalho político, polido, civilizado, de concordarmos com as coisas apontadas pelas nossas palavras. Do contrário, essa necessidade intratada acaba por produzir: ou a imanente “guerra de todos contra todos”; ou o transcendente Leviatã, que todavia tratará dela à sua maneira sobrehumana, demasiadamente próxima da desumanidade. Se, conforme Hobbes e Rinesi, quando discordamos do que significam as coisas nomeadas pelas nossas palavras é que precisamos ser políticos, tanto melhor que nós mesmos possamos produzir o consenso ausente, pois tanto pior é a sobre presença tirânica do Leviatã fazendo isso por nós.

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O bom Mal

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Mesmo que, conforme diz o provérbio popular, haja males que vêm para o bem, um Mal, em si mesmo, nunca é bom. Talvez a única coisa boa de uma Mal é quando ele é mau inequivocamente, pois, desse modo, estamos todos conscientes dele. No entanto, quando o Mal não é totalmente mau, isto é, quando algumas pessoas não o consideram dessa forma, ou, o que é pior, acham-no bom, proveitoso, de alguma forma e para algum propósito particular, aí temos um Mal incompetente, que não revela universalmente a sua vil face. Ou seja, um mau Mal.

Racismo, sexismo, xenofobia, homofobia, pedofilia, egoísmo, insustentabilidade ecológica, por exemplo, são grandes, quiçá os maiores candidatos a males absolutos, e não só da nossa época. Entretanto, como a realidade cruelmente mostra, ainda angariam para si apólogos/eleitores em todos os cantos do mundo. Como pode alguém, em sua sã civilidade, não considerá-los males? O que falta a eles, ou em nós, para que sejam final e absolutamente maus?

O polêmico Slavoj Žižek disse em algum lugar que “Hitler não foi mau o suficiente”. O que o filósofo quis dizer com isso é que, apesar de a Shoa, isto é, o genocídio judeu ser oficialmente considerado o maior crime contra a humanidade da História, essa opinião, contudo, nunca foi compartilhada por todos. A atual reascenção, tão vigorosa quanto impertinente, de grupos neonazistas ao redor do mundo não deixa dúvida. Por isso é que, segundo Žižek, Hitler não teria sido mau o suficiente, pois o seu Holocausto não convenceu a todos de que era um Mal absoluto.

Mas o que seria o Mal total? Assim como o seu oposto, o Bem, o Mal é um conceito abstrato que a linguagem faz parecer que existe concretamente na realidade. Mas, como certa vez disse o filósofo Baruch Spinoza, Bem e Mal, outrossim certo e errado, belo e feio etc., não existem fora da esfera da opinião humana. Não há nada no universo que, em si mesmo, seja necessariamente mau, errado ou feio, nem tampouco bom, certo e belo. As coisas são o que são; apenas as predicamos contingentemente conforme elas nos afetam. Aqui podemos ver a razão de o Mal não conseguir ser absolutizado: porque as opiniões humanas diferem umas das outras tanto quando os humanos entre si.

Eis então os dois maiores desafios da humanidade em relação ao Mal: em primeiro lugar, defini-lo universalmente; e, em segundo lugar, com a mesma universalidade, concordar em evitá-lo incondicionalmente. Se nem mesmo nas sociedades mais antigas, nas quais havia um Deus absoluto, onisciente e onipotente, que dizia verticalmente o que era o Bem, o certo, o justo, a humanidade conseguiu deixar de ser valer do Mal como se de Bem se tratasse, imagine como o Mal pode ser relativo nas nossas sociedades pós-modernas, ou, em outras palavras, pós-morte-de-Deus…

Por mais que o racismo, hoje em dia, seja um Mal inaceitável para cada vez mais gente, muitos brancos cariocas, por exemplo, ainda acham bom que jovens negros da periferia sejam barrados às portas da balneária Zona Sul da Cidade Maravilhosa.

Embora o machismo seja um barbarismo condenável, o eurodeputado polonês de extrema-direita Janusz Korwin-Mikke não acha errado as mulheres ganharem salários menores, afinal, diz ele, como se quisesse relembrar alguma verdade ao mundo: “as mulheres são mais fracas, menores e menos inteligentes que os homens”. E sujeitos deploráveis como este crescem em popularidade atualmente.

Apesar de a xenofobia ser diametralmente oposta à civilização, uma vez que civilizado é aquele que aceita, que consegue conviver com a alteridade, países os mais civilizados do mundo estão se fechando aos estrangeiros, aos imigrantes, em suma, ao outro. E o famigerado muro de Trump o exemplo mais emblemático desse triste movimento.

Da mesma forma, a homofobia, seja no Brasil, país que mais mata pessoas trans no mundo, seja no mundo árabe, onde gays são arremessados do topo de prédios, pelo jeito não é um Mal com o qual todos concordem.

A despeito do Mal hediondo no qual a imensa maioria de nós quer enquadrar a pedofilia, temos que no Afeganistão ainda é legal, mais ainda, distintivo socialmente, abusar sexualmente de crianças. Há inclusive um nome instituído para as vítimas dessa violência: os Bacha Bazi, isto é, “os meninos para brincadeiras”. Nem precisamos ir muito longe. Em muitos lares isso é triste realidade.

Sem dizer do egoísmo, do hedonismo, que, se um dia, aos olhos de Deus, foram pecados, hoje, em troca, para a cegueira capitalista são virtudes capitais.

E a destruição da natureza pelo homem, que para mim é o Mal absoluto par excellence, pois ameaça a todos indiscriminadamente, infelizmente ainda deixa um gosto bom nas nossas bocas sempre que comprarmos nossos iPhones, automóveis, viagens de avião e alimentos embalados em camadas e mais camadas de plástico.

Como estes exemplos mostram, não há nada que possa ser chamada de mau sem que muitos discordem disso. Racistas, machistas, xenófobos, homofóbicos, pedófilos, capitalistas e, mais disseminados que todos estes, consumidores destruidores da natureza, todos consideram suas práticas boas, senão em si mesmas, ao menos para si mesmos. “Há males que vêm para o meu bem” seria o provérbio adequado para estes. Novamente: o desafio é conseguirmos universalizar tais males sem relativismo algum, sendo que, repetindo Spinoza, nada há no universo que seja mau ou errado em si mesmo.

A ideia de Žižek, segundo a qual um Mal deve ser suficientemente mau para que doravante assim seja considerado por todos e não seja repetido, pode ser pertinente no caso do nazismo. Porém, em respeito à destruição da natureza, essa lógica žižekiana seria inócua, pois então a natureza só não seria destruída porque não mais existiria

Já de Spinoza podemos tirar maior proveito. Ora, uma vez que o Mal só é uma predicação dada pelas pessoas a coisas ou ações que, em si mesmas não são boas nem más, só são, o Mal universalmente considerado como tal só seria possível mediante o consenso democrático entre todas as pessoas.

Eis a dificuldade ulterior: criar um consenso na humanidade. Não precisamos de um Deus ao estilo cristão que nos dite o que é o Mal e como evitá-lo. A experiência histórica mais que comprova que estratégias como essa geram tantos males quanto os que promete evitar. Talvez devamos ser esse Deus nós mesmos. Não na forma de um panteão conflitivo de deuses, cada um com a sua opinião acerca do que é bom ou mau. Esse, aliás, é o limbo no qual já nos encontramos.

Se dentre os muitos significados da palavra Deus temos os de “Ser Absoluto”, “Ser Supremo”, sermos Deus nós mesmos para estabelecermos o que é e será o Mal, outra coisa não é que concordarmos, todos, que certas práticas são inquestionavelmente más e que isso jamais deve ser relativizado. Esse seria o bom Mal: o Mal que uniria a humanidade, mas em universal oposição a ele. E nesse exercício de sermos Deus nós mesmos, de constituirmos “Um Ser Supremo”, embora humano, quiçá encontremos a concretude da humanidade.

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Fora “Fora Temer”

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E se deixássemos de gritar, hashtaguiar e, agora, carnavalizar o famigerado “Fora Temer”; se desinvestíssemos da ideia de um inimigo externo que nos subjuga fortuitamente? Se, enfim, assumíssemos plena responsabilidade pelo mal que aflige a nós e às nossas democracia e república, o que restaria como nosso lema de protesto? Um desiludido “Fora nós”! A radicalidade dessa mudança seria dupla. Em primeiro lugar, de sujeito: de Temer, o grande vilão, para nós, os cidadãos brasileiros; e, em segundo lugar, da nossa própria condição enquanto sujeitos políticos: de cidadãos traídos, golpeados para cidadãos traidores, golpistas de nós mesmos. Se tivéssemos coragem para encarar a realidade dessa forma, o mal do qual, agora, dizemos ser vítimas, e do qual, imediatamente, queremos nos ver livres, estaria definitivamente dentro da nossa esfera de ação, e, portanto, seria mais fácil de ser combatido.

“Fora Temer” é uma interjeição que soa patética quando consideramos seriamente a teoria política do filósofo inglês Thomas Hobbes, autor que, a meu ver, propõe o mais desafiador convite à responsabilidade cidadã. Hobbes diz categoricamente que “tudo quanto o representante” – isto é, o governante, o Leviatã – “faz, como ator, cada um dos súditos faz também, como autor”. Em outras palavras, também do filósofo: “cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer; por consequência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio”.

Dessa perspectiva hobbesiana, gritar “Fora Temer” outra coisa não é que vaiar o ator em cima do palco por desempenhar mal o espetáculo político que nós mesmos escrevemos conjuntamente. A amarga ideia com que Hobbes nos confronta é que, na relação entre súditos/cidadãos e Leviatã/representante, não há vítimas. Mais ainda, se há culpados, este são os primeiros. Já o Leviatã não é vítima nem culpado, pois é feito apenas de cidadãos, pelos cidadãos, para os cidadãos. O representante político é o resultado de cálculos, de acordos, de disputas entre cidadãos. Em suma: é feito apenas de relações sociais. E como a matemática comprova, se o resultado de uma equação está errada, o erro está aquém dele.

Temer, gostemos ou não, é o nosso atual Leviatã: o resultado da disputa concreta entre os cidadãos brasileiros. Portanto, repetir “Fora Temer” apenas nos aliena do fato de que, quando Temer atua, somos nós, os cidadãos brasileiros, que atuamos através dele. Amargo preço da representatividade política que dispensa os cidadãos de atuarem, direta e constantemente, em função de suas necessidades. Para os antigos gregos, inventores da democracia direta, seria uma barbaridade legar interesses pessoais a outrem. Nós, porém, fizemos disso regra. Só que, covardemente, não queremos pagar o preço dessa mudança.

Ora, se, como coloca Bruno Latour, o Leviatã apenas traduz os cidadãos, e se, como denunciam os maiores críticos literários, qualquer tradução é sempre uma traição, está no horizonte do representante máximo trair os seus representados. Só que quando isso acontece, reclamamos, gritamos “Fora Temer”, como se estivéssemos em uma democracia direta, esquecendo-nos, no entanto, de que, desde o princípio, sustentamos uma democracia indireta, burguesa, que, se por um lado trai-nos sistematicamente, por outro dispensa-nos do árduo e constante trabalho cidadão. Afora o compromisso bienal nas urnas, desperdiçamos nosso impagável tempo cívico nos shopping centers comprado smartphones.

Nos anos Lula, quando todos, ricos e pobres, éramos mínima e decentemente representados, a alienação que a representatividade política sempre promove não era um problema. Um bom Leviatã todos amamos. Agora, bastou um oligarcas que representa única e escancaradamente os interesses dos seus encarnar o Leviatã e essa mesma representatividade política burguesa mostrou o seu lado insuportável. Mas, não nos esqueçamos, esta é a forma com que decidimos, consensualmente, ou, em termos hobbesianos, contratualmente, viver. Hobbes, comprometedoramente, não nos deixa esquecer de que o soberano é apenas um ator designado pelo contrato social travado pelos cidadãos.

Dar um Fora no “Fora Temer”, para então focarmos em nós mesmos enquanto sujeitos de um lema de ordem que de fato possa melhorar a nossa condição de cidadãos, é assumirmos que somos nós, e ninguém mais, que delegamos, e democraticamente!, nosso poder a um representante, a um Leviatã, que, em verdade, é apenas o resultado dos nossos cálculos, em função dos nossos anseios. Para Hobbes, são os cálculos dos cidadãos, todos equacionados em um contrato, que constituem o Leviatã. Se, a posteriori, o “resultado Temer” parece-nos um desastre, a responsabilidade cidadã está na assunção de que, a priori, nós não soubemos equacionar nossos valores individuais de modo menos desastroso.

O “erro Temer” é um resultado verdadeiro: a verdade do erro das operações que nós, brasileiros, viemos realizando nos últimos anos. Insistir no “Fora Temer”, portanto, é como continuar somando 2+2 e querer, estupidamente, que o resultado dessa soma seja 5. Da visada hobbesiana, um “Fora Nós”, em vez de um “Fora Leviatã”, ou, no nosso caso específico, do “Fora Temer”, não só seria mais responsável, como principalmente ensejaria revermos tanto os nossos parciais cálculos individuais, quanto os subtotais cálculos coletivos, cujo total, no final das contas, é o Leviatã – ou Temer.

Minha hipótese é que a revisão “matemática” da problemática representatividade política, hoje protagonizada tristemente por Temer, passa por esclarecermos, primeiramente, o ardil da democracia representativa burguesa, que não foi feita para atender os interesses dos cidadãos, apenas para dar tal impressão. Devemos criticar a nós mesmos pela “democracia” burguesa, indireta, representativa, mediante a qual somos cidadãos estruturalmente ausentados da nossa luta.

Se, por um lado, o presente impede de voltarmos ao passado idílico de uma democracia direta, na qual ninguém além de cada cidadão pode frustrar ou trair a si próprio, nada, por outro lado, nos priva de construir uma democracia diferente dessa na qual oligarcas criminosos usam o Estado como bureau de seus vis interesses. Por isso: Fora “Fora Temer”. E em seu lugar, um ensurdecedor e consensual “Fora nossos erráticos cálculos cidadãos”; tanto os individuais quanto os coletivos; pois é essa incompetência que resulta em erros crassos, totais, tais como Michel Temer Leviatã tupiniquim.

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Por que “Jamais fomos modernos”?

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Como acreditar na jovem pós-modernidade se, como disse o antropólogo e filósofo francês Bruno Latour no título de seu livro, “Jamais fomos modernos”? O que fez com que nos autodeclarássemos pós-algo que, na verdade, nunca fomos? Somos vítimas culpadas de uma falácia? Mas onde está o ardil? Na modernidade? Na pós-modernidade? Ou em ambas?

Para Latour, “Jamais fomos modernos”, não porque a modernidade tenha sido interrompida, injusta e fortuitamente, por uma vanguarda qualquer, mas, antes, porque, em si mesma, ela é um projeto impossível realizar o que promete. E, como veremos, a pós-modernidade é justamente a reificação dessa impossibilidade; um sintoma; a tentativa de se desfazer o nó criado pelo modus operandi moderno.

Para desatar um outro nó, aquele com o qual a pré-moderna sociedade medieval manteve por tanto tempo juntos natureza, sociedade e Deus, a modernidade, tirando Deus da jogada, separou tudo o que restou de não-divino no mundo em dois polos opostos e absolutamente separados: natureza e sociedade. Dito de outro modo: natureza e cultura. Em suma: necessidade natural e liberdade humana.

O problema do esclarecimento moderno, contudo, era que, tudo aquilo que se apresentava entre estes dois polos irredutíveis, ou seja, os híbridos, não merecia dignidade ontológica, pelo menos até que fosse classificado ou como natural, ou como sociocultural. No cosmos da modernidade havia espaço apenas para: de um lado, objetos; e, de outro, sujeitos. No meio deles, apenas fenômenos, isto é, ocasiões nas quais os sujeitos conheciam os objetos.

E, de acordo com Latour, o calcanhar de Aquiles dessa sistemática e assumida recusa aos híbridos foi a inevitável produção subterrânea de novos híbridos, que, outrossim sistematicamente alienados, acumularam-se até ruir os alicerces da própria modernidade. Em uma imagem, a pós-modernidade é a sintomática visita à ruína da modernidade.

Um exemplo, dado por Latour, de híbrido que não teria como ser abordado pela modernidade, pois ela fazia das coisas ou só naturais, ou só socioculturais, é o buraco do ozônio. Metade natural, metade humano; quase-objeto-quase-sujeito; o buraco do ozônio seria inexplicável fora do laboratório pós-moderno, cujo procedimento é não desconstruir os híbridos para compreendê-los.

Em vez da moderna práxis que transformava os híbridos em entes ou naturais ou sociais, para só então compreendê-los, o que, mutatis mutandis, significava pervertê-los, os pós-modernos, em troca, respeitam a hibridez para compreendê-la em sua realidade. Dessa perspectiva, o buraco do ozônio não seria compreensível descobrindo-se somente suas causas naturais, ou somente as sociais, mas no entendimento de que natureza e sociedade estão inextricavelmente misturadas nele. Mais ainda, ganham qualquer realidade através dele.

A pós-modernidade é uma sobreorfandade. Os modernos eram órfãos orgulhosos de Deus, mas seguiram “rezando” para os anjos caídos da natureza e da sociedade. Assim acreditavam estarem a salvo do inferno dos híbridos que criavam e que sistematicamente enterravam sob seus pés. Mesmo que tenha sido eles mesmos os demonizadores da mistura! Já os pós-modernos queimam inclusive esse desdivinizado panteão dualista.

Sem Deus nem a confortável e moderna distinção entre natureza e sociedade, a pós-modernidade é a laica assunção de que, com efeito, só há híbridos, nada além de híbridos; quase-objetos-quase-sujeitos; relações que, primeira e concretamente, explicam apenas outras relações, outros híbridos; e só idealmente implicam abstrações tais como Natureza e Sociedade puras.

O puro, o ideal, o absoluto, nada disso existe para o pós-moderno. E era justamente dessa realidade sem pedigree que os modernos fugiam nas suas idealidades polarizadas. A primeira delas: a de uma natureza completamente livre de sujeitos, composta apenas por objetos substantivos (necessários) esperando para serem conhecidos. A segunda: a idealidade de sociedades livres da necessidade natural, capazes de serem instituídas e mantidas apenas pelo arbítrio (liberdade) humano.

Assim como os pós-modernos, os pré-modernos não faziam tal separação entre natureza e sociedade. Porém, porque Deus havia criado ambas. O problema dessa univocidade pré-moderna/divina entre natureza e sociedade estava em que era proibido aos homens mudarem seus costumes socioculturais sem violarem a natureza, e vice-versa. Em ambos os casos ofendiam a Deus, à Sua obra. Por isso tinham de ser absolutamente tradicionais. Do contrário, seriam punidos por Ele, seja através do colapso de suas sociedades, seja através de enchentes, secas, pragas ou pestes naturais.

Aliás, foi justamente para serem livres, tanto para mudarem suas sociedades quanto para se assenhorarem da natureza, que os modernos mataram Deus e fizeram da natureza e da sociedade mundos opostos. Só que o movimento de reduzir o infinito cosmo divino em duas instâncias estanques, natureza e sociedade, não permitindo que nada residisse no meio, acabou se tornando uma fábrica de monstruosidades híbridas ainda mais difíceis de serem conhecidas pelo filtro moderno.

E como a modernidade não lida com híbridos, nem mesmo com os que produz alienadamente, ela sozinha não tinha como enfrentar monstros mistos como por exemplo o buraco do ozônio: produto simultaneamente da liberdade sociocultural humana e da objetificação da natureza desdivinizada. Doença que nunca se cura, mas que apenas prolonga a sua própria agonia, a modernidade teve de ser pós-ela-mesma antes que fosse tarde demais. Se ela não era apta aos híbridos, ao menos o sintoma histórico dessa inaptidão deveria sê-lo.

Dessa forma, quando Bruno Latour afirma que “Jamais fomos modernos”, ele quer dizer que, sim, tentamos ser modernos; buscamos reduzir a diversidade ou ao polo natureza, ou ao polo sociedade/cultura; mas que essa aventura não obstante foi incompleta, porque insustentável. E a existência de algo chamado pós-modernidade é prova dessa incompletude; dessa insustentabilidade; da impossibilidade negarmos os híbridos sem produzirmos mais deles.

Em vez de forçar os híbridos ou à natureza ou à sociedade, a pós-modernidade compreende-os em redes de relações com outros híbridos. E se tais relações concretas ainda geram abstrações irredutíveis tais como natureza e sociedade puras, ideais, é porque o modernismo é incorrigível. A virtude, a correção pós-moderna está justamente em não inventar distância entre híbridos reais e polos ideais. Em primeiro lugar, para não distanciar os híbridos de si mesmos; e, em segundo lugar, para evitar que se multipliquem.

“Jamais fomos modernos” é antes uma confissão desiludida que uma constatação surpreendente. Tentamos ser modernos. Apostamos todas as fichas em viver sem Deus e somente entre uma natureza necessária e uma sociedade livre. Mas o sintoma pós-moderno, assim como o híbrido buraco do ozônio, estão aí para não deixar-nos esquecer de que, simultaneamente, as nossas liberdades socioculturais criam naturezas contingentes e a necessidade da natureza constrange as nossas sociedades.

Na pós-modernidade, tudo está em rede; tudo são redes de relações. E segundo essa concepção, as únicas referências para conhecermos e lidarmos com os híbridos reais são os demais híbridos reais, e não referenciais extremos abstratos e absolutos. Explicar essa hibridez somente pela necessidade natural, ou somente pela liberdade humana, como faziam os modernos, é, para dizer o mínimo, deixar metade da explicação de fora. E, sintomaticamente, essa metade reprimida retorna na forma de um novo híbrido, ainda mais difícil de ser explicado. Assim a modernidade nunca conclui seu trabalho. Por isso jamais fomos, e jamais seremos modernos.

Para concluir com uma metáfora, pensemos nos ideais de natureza e sociedade enquanto retas paralelas. Para os pré-modernos, estas retas se encontravam/nasciam no infinito, isto é, em Deus. Já para os modernos, órfãos de Deus, elas nunca se tocavam. Seu encontro era apenas uma distorção de perspectiva, um erro provocado pelos sentidos a ser corrigido pela razão. Enfim, para os pós-modernos, essas retas paralelas são finalmente decompostas em infinitos pontos, que, a partir de então, livres para estabelecerem relações entre si, formam tantas retas transversas quantos forem os pontos “naturais” e “sociais” a serem relacionados.

“Jamais fomos modernos” – e jamais seremos! – porque é impossível reduzir a infinidade de retas que se entrecruzam formando o real a duas únicas, ideais: natureza e sociedade. Oxalá consigamos ser minimamente pós-modernos e não nos esquecermos de que a diversidade, a hibridez que somos e na qual estamos imersos será tanto menos compreensível quanto mais a abstrairmos e simplificarmos; e inversamente, tanto mais cognoscível será ao passo que a complexificarmos em suas reais redes de relações. Já que “Jamais fomos modernos”, assumamos essa impossibilidade. Tal assunção já é a pós-modernidade.

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Violentem-me, meus violentados.

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“Olho por olho, dente por dente” é um antigo princípio de justiça criado na Mesopotâmia que exigia que um agressor fosse punido com o mesmo sofrimento que causou. Hoje em dia, contudo, condenamos tal prática, pois a vemos muito mais como vingança, barbárie, do que como justiça, civilidade. “Politicamente corretos” que somos, preferimos corrigir/educar quem viola leis, regras, tratos, em vez de violá-los na mesma medida. Do contrário, acreditamos, reproduziríamos, duplicaríamos os males dos quais queremos livrar-nos.

Em relação às violências do machismo e do racismo, por exemplo, somos outrossim refratários  ao “olho por olho, dente por dente”. Privar homens de votarem, de uma profissão, de salários iguais ou maiores que os das mulheres, nada disso passa pela cabeça sequer das feministas mais radicais. Abduzir brancos de seus locais de origem para escravizá-los por gerações; chibateá-los quando agem de acordo com os seus próprios arbítrios; obrigá-los a sentarem nos bancos traseiros de ônibus e a usarem banheiros segregados, da mesma forma, parece apenas a continuidade de desumanidades que queremos ultrapassadas.

Civilizada e surpreendentemente, violentadores e violentados históricos concordam que a tarefa mais importante é estabelecermos uma imediata igualdade entre todos. Agora, considerando-se a longevidade e a intensidade das violências machista e racista, essa saída “politicamente correta” não acaba sendo injusta? Pelo menos da perspectiva do “olho por olho, dente por dente”, violentadores privilegiados nunca experimentarem o que é sofrer violência nem serem obrigado ao desprivilegiado é injusto, sem dizer antieducativo.

Porém, como somos politicamente alérgicos ao “olho por olho, dente por dente”, quando feministas e ativistas raciais atuam combativa e irredutivelmente, muitos dizem que são violentas e violentos. Esquecemos, contudo, que tais violências combativas/reativas são sintomáticas em relação às históricas violências machista e racista. Porventura não foi a violência do homem branco que, depois de muito se exercer impunemente, gerou a violência combativa/reativa da qual o próprio homem branco, agora, diz-se vítima, e, covardemente, reclama?

Aqui tocamos no nó “politicamente correto” que, injustamente, ata violentadores privilegiados e violentados desprivilegiados em torno de uma igualdade que, se não é idealizada, ao menos é apressada. No entanto, esta é a melhor saída apenas para os primeiros. Da ruína de sua longeva torre patriarcalista, o homem branco, o violentador privilegiado per se, concorda com perder o seu confortável privilégio somente para passar à condição de igualdade entre ele e seus violentados. De forma alguma cogita a possibilidade de seus velhos oprimidos experimentarem, por um átimo que seja, o privilégio de oprimi-lo. O fim da violência, sim. A contra-violência, jamais!

Por isso interpelações feministas e antirracistas, ao buscarem um simples e privilegiado “lugar de fala” às mulheres, negros e negras, ainda causam tanta polêmica. Quão violento continua sendo para muitos homens ouvirem de uma mulher que eles não podem assediá-la sexualmente? E quão afrontoso foi para muitos brancos e brancas lidarem com a exigência da ativista negra no caso do turbante de Curitiba: “uma branca não pode usar turbante”? Os violentadores privilegiados tremem ao menos indício de sofrerem a violência com que sistematicamente subjugaram seus outros.

O problema de o homem branco, as mulheres, os negros e negras superarem de um só golpe os abismos machistas e racistas que historicamente privilegiaram àquele, passando todos a uma situação de igualdade, é, mesopotamiamente falando, injusto. Mantém uma cruel dissimetria: o violento homem branco perde o título de “senhor” histórico para ser “igual” aos seus violentados, enquanto mulheres, negros e negras passam apenas de “escravos” a iguais. Diante dessa conjuntura, aquele que pudesse tomar o ponto de vista do fim da história certamente concluiria que teria sido melhor ser homem branco: espécie de suprassujeito nunca violentado nem desprivilegiado; no pior dos casos, igual aos demais

Proponho duas metáforas para enxergarmos alguma pertinência na Lei da retaliação mesopotâmia contra o resistente privilégio do homem branco. A primeira, é imaginar o racismo e o machismo, combinados desastrosamente nesse “sujeito privilegiado”, como uma força atuando contra mulheres, negras e negros. Uma vez que a física comprova que uma força só é anulada por outra de mesma intensidade, todavia de sentido contrário, o “olho por olho, dente por dente” feminista e antirracista seria o único maeio de anular o machismo e o racismo.

A outra metáfora é imaginarmos um pêndulo, pendido há milênios para um dos lados, sendo finalmente solto. Seria perverter as leis da física querer que o pêndulo, imediatamente, repousasse no ponto central de equilíbrio, sem balouçar até o outro extremo. A lei da retaliação, de certa forma, reifica esse movimento. Por isso, aceitar que o homem branco passe da situação de total privilégio à de igualdade, sem ver o pêndulo que sequestrou pender para o lado que sempre careceu dele, é manter um privilégio a esse homem branco.

Essa última metáfora, contudo, obriga-nos a imaginar que, no balouçar do pêndulo do privilégio, de lá para cá, tantas vezes quanto for a energia acumulada no sistema, o homem branco, de um lado, e as mulheres, os negros e negras, de outro, serão, alternadamente, violentados e desprivilegiados, e violentadores e privilegiados. Pelo menos até a tensão da nossa desigual sociedade chegar a zero. Os idealistas, obviamente diriam que devemos passar imediatamente à situação de igualdade na qual ninguém é violentado nem desprivilegiado. O realista, contudo, saberá que a humanidade, se é que pode “escreve certo”, o fará sempre por “linhas tortas”.

Deixando as analogias físicas para nos aproximarmos da filosofia, em relação às superações do machismo e do racismo vale lembrar o argumento do filósofo Slavoj Žižek, que sustenta que desigualdade se combate com desigualdade, e não com igualdade. Se tratarmos ricos e pobres igualitariamente, por exemplo, não reduziremos o abismo entre eles, apenas o manteremos. Ao contrário, é só tratando-os desigualmente, ou seja, dando mais aos pobres do que aos ricos; ou tirando mais dos ricos do que dos pobres; que a desigualdade será combatida.

Assim como os ricos só abrirão mão de suas riquezas se forem forçados a tal, e por ninguém menos que os pobres, assim também o homem branco só perderá os seus privilégios fortuitamente, ao ser combatido exaustivamente por mulheres, negros e negras. O “altruísmo” do homem branco ao lutar pela igualdade entre ele e seus violentados será sempre suspeito de ser egoísta, pois, secretamente, pode ser apenas o discurso com que evita ser o violentado da vez. Já as mulheres, negros e negras que lutam apenas por igualdade em relação ao homem branco perdoam-no cedo demais. O que, aliás, é o que ele mais quer, ainda que não mereça isso devido à longevidade e intensidade de sua violência.

Sou obrigado a retornar à metáfora do pêndulo. Talvez não seja o caso de restabelecermos a lei mesopotâmia absolutamente, mas de misturá-la homeopaticamente ao nosso sistema educativo/punitivo. Assim como o pêndulo balouça de um lado para o outro, muitas vezes, antes de encontrar o equilíbrio, no entanto nunca reocupando os mesmos lugares extremos, mas sempre um tanto aquém deles, e sempre em direção ao centro de equilíbrio, assim também o privilégio da violência deveria pendular, de lá para cá, até que sua vil energia se dissipasse completamente. Aí, e somente aí, algo como justiça seria paulatinamente construído.

O problema dessa hipótese, contudo, é contar com a violência justamente no movimento de superá-la. Entretanto, se nos despirmos do sentido traumático, sanguinário com que essa palavra é comezinhamente usada, e privilegiarmos outros sentidos seus, tais como o de “veemência”, “impetuosidade” (em Latim: “violentia”), podemos quiçá conviver mais civilizadamente com ela. Até porque, se o machismo e o racismo são barbarismos assaz resistentes, violá-los, agir com violência contra eles, é construir civilização.

Se essa ideia, dita assim de modo abstrato, parece perigosamente desumana, compartilho aqui exercícios concretos que eu, um homem branco, tenho feito, nos quais me constranjo a ser violentado por aqueles que foram violentados por sujeitos como eu. Um deles, em relação ao machismo: sempre que mulheres me acusam de ser machista, independentemente de serem violentas ou não, ou de eu concordar ou não com elas, está a priori fora de questão a possibilidade de elas estarem erradas, ou de estarem exagerando. Enquanto homem branco, nem eu nem meus violentados devemos confiar no meu discernimento.

Da mesma forma, referente ao racismo, e aproveitando o caso do turbante de Curitiba, mesmo gostando de turbantes, e de certa forma achando que usá-los é elogioso à cultura africana, a partir do momento que uma ativista negra diz que brancos não podem usá-los, compreender as suas razões é imperativo. Não deve estar em questão se ela está certa ou errada, mas, primeiramente, de que modo a sua demanda é fundamental. E, nessa dificuldade, o que me impede de enxergar isso. Se compartilho aqui estes exercícios pessoais é para dizer que, ao permitir que meus violentados violentem-me, encontro uma paradoxal humanidade que argumentação alguma de minha parte traria.

Diante das bestas do machismo e do racismo, qualquer coisa que o homem branco disser será algo como o argumento da doença contra a cura. Se calar alguém é violentá-lo, calar quem há séculos faz tantos outros serem privados de suas vozes é uma violência curativa, mais que necessária. E se o homem branco nunca for calado, violentado pelas violências que sempre cometeu, mas apenas abandonar o seu histórico privilégio para então ser confortavelmente igualado aos desprivilegiados – claro, somente depois que estes deixarem de sê-lo -, tal igualdade outra coisa não significará que um novo nível de desigualdade, só que agora disfarçada de igualdade.

A maior dificuldade de fazer apologia da violência, ainda que terapêutica, contudo, é combiná-la com a contemporânea sede “politicamente correta”. No entanto, a “violentia” latina, ou seja, a “veemência”, a “impetuosidade”; violar no sentido de quebrar regras e costumes; essa violência não pode ser negada às lutas feministas e antirracistas.

Para concluir com uma metáfora banal, imaginemos duas pessoas discutindo e não mais se ouvindo por tagarelarem descontroladamente ao mesmo tempo. Em casos como este, basta um dos interlocutores agir com violência, isto é, violar a confusa regra do diálogo e elevar o tom impetuosamente para que o outro pare, escute, e o verdadeiro diálogo se restabeleça. Pelo menos desse tipo de violência o violento e privilegiado homem branco deve sofrer dos seus violentados desprivilegiados calados há tanto tempo.

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Pós-Brasil e combate à corrupção “al Machiavelli”.

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A corrupção que assola o Brasil – que desde o seu princípio assolou, mas que atualmente está mais desnudada do que nunca – levou-me a estudar o combate à corrupção republicana proposto por Nicolau Maquiavel. Teria o fundador do pensamento político moderno um ensinamento válido para a corrompida terra brasilis, na qual empresários midiáticos (João Dória, prefeito de São Paulo) e pastores evangélicos (Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro) elegem-se justamente com discursos antipolíticos, da mesma forma como Trump, que conquistou o cargo político de maior poder no mundo dizendo que “As pessoas estão fartas de política”?

A resposta é: sim. E pelo menos no caso brasileiro, a explicação é a seguinte: se o combate à corrupção maquiaveliano, “velho” cerca de 500 anos, parece inócuo ao nosso corrompido país, “jovem” cerca de 500 anos, isso se deve não à limitação da teoria do italiano, mas, em vez disso, ao alto nível de corrupção da nossa república. Assim como o câncer não quer ser curado, pois seu mórbido desejo é metastasear-se o máximo possível, assim também a corrupção quer crescer sem resistência, até tomar todo o corpo do Estado. Por isso creio ser fundamental conhecer melhor o “remédio” para o mal da corrupção prescrito pelo pensador renascentista da aurora da modernidade.

Antes de combater a doença da corrupção republicana é preciso saber o que é esse mal: a corrupção; e o que é o corpo que ela ataca: a república. Comecemos por essa última. Res publica, ou seja, a coisa pública, é o Estado enquanto propriedade pública, governado em função dos interesses do povo, e não uma res privatam, voltado aos interessesprivados de um ditador, tirano, ou, no caso do Brasil, de um bando de longevos oligarcas.

Dessa perspectiva, vendo que o governo prioriza interesses de empreiteiras, agroconglomerados, canais de televisão e empresas de telefonia, em detrimento explícito dos interesses do povo, seria alienação sustentar que o Brasil é uma res publica. A presente conjuntura grita nos nossos ouvidos que o nosso Estado é uma desavergonhada res privatam. Se, todavia, quisermos insistir no fato de que o Brasil é uma república, o preço a ser pago todavia é assumirmos que é uma república corrompidíssima.

O que, então, para Maquiavel é a corrupção republicana. Conforme diz o italiano, uma república se sustenta através desuas leis e instituições. As primeiras, estabelecendo o que pode e o que não pode ser feito, deveres e direitos de todos. As segundas: fazendo cumprir as leis. Uma república saudável, não corrompida, é tanto aquela na qual as leis são sempre cumpridas por vigilância e competência das instituições, quanto aquela na qual as leis são infringidas, todavia, com instituições que punem/educam os infratores.

Um complicador natural na relação republicana entre leis e instituições é o fato de as leis serem dinâmicas, mudarem conforme as necessidades do povo e a força dele no sempiterno conflito com as elites. Entretanto, é bom que seja assim, uma vez que a liberdade do povo, fundamento das repúblicas, não é um ideal que seja dado ou negado ao povo, mas uma construção real, feita ao longo do tempo. Já as instituições, cujo objetivo é fazer valer as leis, não acompanham as mudanças destas; são estáticas. E é bom que seja assim também, pois instituições que mudassem constantemente, ao sabor dos momentos, não seriam confiável. A virtude de uma instituição é justamente a sua estabilidade diante das mudanças.

Aqui, portanto, vemos que a corrupção está inescapavelmente no horizonte de qualquer república, pois mesmo que leis e instituições cumpram plenamente seus papéis, em algum momento estas estarão defasadas em relação àquelas. E quando as instituições não têm mais capacidade para fazer cumprir as leis, alguns cidadãos se beneficiam disso. Em primeiro lugar, as elites em detrimento do povo. E, em segundo lugar, facções do próprio povo em relação a outras. Quando ambas acontecem simultaneamente, eis a corrupção reificada, ou, na letra de Maquiavel, a República corrompidíssima.

Mas isso significa que a república seja falha em si mesma, e que, portanto, o melhor a fazer é investir em outra forma para o estado? Auto lá! Basta não pressupormos Estados e repúblicas ideais, coisa que Maquiavel ensina do princípio ao fim de sua obra. O inevitável descompasso das instituições em respeito às leis não é um erro, um mal, mas, antes, um fato das repúblicas. O exemplo de Maquiavel para um Estado cujas instituições nunca ficaram aquém das leis era Esparta. O custo dessa “perfeição”, contudo, é que naquele Estado nada podia mudar. Algo antinatural em se tratando de coisas humanas. Criticamente falando, o povo espartano era a priori privado, por exemplo, de desejar, quiçá conquistar novos direitos. Em suma, não era livre.

Se a corrupção, ou seja, a defasagem das instituições ante as leis, é inevitável em uma república, então, combatê-la pode se dar por três caminhos. O primeiro: reformar as instituições para que doravante façam jus às leis existentes. O segundo: mudar as leis para que sejam exequíveis pelas mesmas instituições. Enfim, o terceiro: fazer leis e instituições totalmente novas. As duas primeiras opções são viáveis, porém, têm contra si os riscos de qualquer reformismo – o mal permaneceria presente em pelo menos metade do Estado. A terceira opção, apesar de radical, é a mais indicada por Maquiavel, porquanto estabelece leis e instituições novas, ambas livres dos velhos vícios. Só não devemos chamá-la de “revolucionária” porque o conceito usado pelo filósofo é outro, o de “refundação”.

Para Maquiavel, o único remédio para uma república corrompida é refundar-se. Em outras palavras, o “retorno à origem” dessa república, pois, segundo o renascentista, é lá, e somente lá que leis e instituições estão plenamente alinhadas. Radicalmente falando: confundem-se. O ilustre exemplo de Maquiavel para o seu “retorno à origem” é Roma, cuja virtuosa fundação por Rômulo era repetida sistematicamente na manutenção da saúde do corpo republicano romano ao longo do tempo. Mas oque havia na fundação originária de Roma que, refundado, alinhava leis e instituições e, consequentemente, livrava aquela república da corrupção?

Seria a mítica segundo a qual Rômulo matou o irmão Remo e então fundou Roma? Mas o que diz essa estória? Long story short, que Remo, pretendendoevidenciar que a cidade que o irmão estava fundando era vulnerável e não tinha futuro, pulou a muralha que Rômulo havia recém-construído, e que este, para mostrar que ninguém, nem mesmo um igual – seu irmão gêmeo – poderia infringir a ordem de sua nascente cidade, cometeu um dos fratricídios mais ilustres da história, ficando assim livre para erigir sua cidade que, um dia, seria chamada “Eterna”. Agora, investigar de que forma leis e instituições coincidiram nesse ato mítico e, aliás, bárbaro, porventura não nos afastaria da verdade factual na qual Maquiavel aconselha permanecermos?

Para Maquiavel, o que na verdade havia no princípio de Roma ao qual aquela república retornava para combater as corrupções que a assolaram ao longo do tempo era a virtude de um príncipe ordenador, Rômulo, que não poupou esforços para fazer valer as leis. Até mesmo a mítica encontra pertinência aqui: ao matar Remo por ter infringido a primeira ordem de Roma, qual seja, a muralha da cidade, Rômulo foi ao mesmo tempo a lei a ser cumprida e a instituição que a fez cumprir. Em suma, para Maquiavel, quando uma república estava corrompidíssima, o que ela precisava era de um príncipe virtuoso e corajoso.

Entretanto, como superar essa paradoxal necessidade de um príncipe, de um monarca, justamente por uma república? Sem embargo, era de um príncipe civil, escolhido pelo povo que Maquiavel falava, e não de um monarca que tomasse a cidade à força ou governasse por algum direito divino e/ou hereditário. Com efeito, príncipes podem facilmente tiranizar seus súditos. Estão com a faca e o queijo nas mãos. Não obstante, é quando um príncipe atua não como um ditador dono da res, mas como o primeiro cidadão (princeps) de uma res cuja posse é compartilhada com os súditos, que encontramos a virtude do principado referida por Maquiavel. E não poderia ser diferente, pois, para os mais atentos estudiosos do pensador italiano, ele era absolutamente republicano.

Não há dúvida de que a monarquia é extraordinária – fora da ordem – em se tratando de republicanismo. Contudo, uma vez que a república é a única forma para um estado na qual sua matéria, o povo, pode ser livre, e considerando que a corrupção republicana furta tal liberdade, a corrupção, outrossim, é republicanamente extraordinária. Por isso, quando Maquiavel receita um monarca – desde que civilmente eleito! – a uma república corrompida, assim o faz porque, para ele, “problemas extraordinários exigem soluções extraordinárias”. Um principado civil, metaforicamente, seria uma Unidade de Terapia Intensiva para uma república doente até que ela estivesse curada.

Todavia, não me dei por satisfeito com o maquiaveliano “retorno à origem” como forma de se combater a corrupção republicana romana significando apenas uma volta “terapêutica” à fundação monárquica de Roma na qual lei e instituição se alinhavam na persona de Rômulo. O mito do fratricídio insistia em meus pensamentos que ordem e executor confundidos na mesma pessoa produz despotismos, barbarismos. Onde, então, estaria o virtuoso e crucial ponto originário da fundação de Rômulo no qual leis e instituições se encontraram para produzir res publica, mais especificamente: liberdade para o povo?

Encontrei essa preciosa resposta na monumental obra “Ab Urbe Condita” (Desde a Fundação), do historiador romano Tito Lívio. Depois de narrar detalhadamente o mito da fundação de Roma, Lívio aponta, todavia passageiramente, o que, a meu ver, seja talvez o momento fundacional mais virtuoso, e concreto, ao qual os romanos retornavam sistematicamente para sanar a corrupção que o tempo (o inevitável descompasso das instituições em relação às leis) trazia à sua república. Mas o que diz Tito Lívio sobre isso?

Em primeiro lugar, que a cidade que Rômulo fundara havia sido populada inicialmentesobretudo por excluídos sociais de outras cidades, mercenários desocupados, antigos criminosos, ou seja, toda sorte de gente de índole duvidosa. Antes de criticarmos tamanha abertura, Maquiavel a defende dizendo que, na verdade, tratou-sede uma das grandes virtudes de Rômulo, pois, segundo o filósofo, aceitar indiscriminadamente dentro de suas fronteiras quem quisesse ser romano foi fundamental para, um dia, Roma alcançar o cosmopolitismo que a eternizou.

O grande desafio de Rômulo, por conseguinte, foi o de instituir leis para serem cumpridas por súditos tão pouco civilizados que, como o próprio Rômulo no caso do fratricídio, resolviam seus problemas barbarescamente. Com efeito, seria um idealismo condenável criar leis perfeitas para súditos imperfeitos. Tito Lívio conta que Rômulo teve de resolver duas questões cruciais. A primeira: como deveriam ser as leis de modo que súditos semicivilizados e estranhos a elas pudessem, de fato, observá-las? A segunda: como deveriam ser as instituições públicas de maneira que pudessem punir cidadãos tão rudes de modo civilizante, e não de modo barbarizante?

Aqui já posso apresentar a minha hipótese para a origem precisa – mais precisa do que a que Maquiavel receitou – à qual uma república corrompida deve retornar para combater o seu próprio mal. Essa hipótese, contudo, não refuta a prescrição maquiaveliana, apenas tenta complementá-la. A ideia é a seguinte: para se combater efetivamente a corrupção republicana al Machiavelli, a origem a qual se deve retornar para serem refundadas leis e instituições, pois só assim elas são absolutamente compatíveis e garantem a saúde da república, ou o que é o mesmo, a liberdade do povo, em suma, para fazer tudo isso não basta um monarca corajoso e bem-intencionado, como Rômulo, que confunda em si lei e instituição e que não permita que a sua ordem seja quebrada. Essa origem deve estar no átimo absolutamente realista no qual o Princeps concebe leis e instituições, isto é, a forma do Estado, a partir dos seus cidadãos, a matéria do Estado, e de forma alguma alienado deles.

Se arrisco contribuir com a pragmática maquiaveliana referente ao combate à corrupção republicana é porque não encontrei nos escritos de Maquiavel nada além do “retorno à origem” significando o realinhamento de leis e instituições na figura de um príncipe virtuoso e corajoso. Porém, dando um passo atrás, e pedindo ajuda a Tito Lívio, pude, creio eu, dar um passo à frente de Maquiavel e concluir que tal empreitada significa fazer como Rômulo, isto é: não pensar a forma para o Estado sem, desde o princípio, formatá-la em função da matéria desse estado. Metaforicamente, é agir como um alfaiate, e não ao modo prêt-à-porter.

Todavia, devo reconhecer que a minha hipótese é absolutamente maquiaveliana. Ora, para um pensador a quem só interessava a “veritá effettuale della cosa”, o fato de Rômulo ter pensado a forma de seu estado em função de sua matéria, qual seja, o povo; e, além do mais, ser exatamente isso que qualquer república deve fazer para combater a corrupção que inevitavelmente a assola; para tal pensador essa hipótese não é estranha. Desse modo, creio que minha humilde contribuição deva ser apenas mais uma volta – ou meia-volta – no parafuso realista com o qual Maquiavel, há 500 anos, fixou-se, ilustre e inarredavelmente, na superfície do pensamento político.

Confesso, contudo, que, antes de formular a minha hipótese, o tal “retorno à origem” para se combate a corrupção, que no caso de Roma significava retornar à virtuosa fundação por Rômulo, se aplicado à corrompida república tupiniquim soava demasiado desanimador. O que temos de virtuoso desde o descobrimento do Brasil até a Proclamação da República; entre o esquartejamento do território em capitanias hereditárias legadas a fidalgos da alta aristocracia e a derrota da monarquia pela oligarquia fazendeira, que mentiu ser republicana apenas para governar livremente e instituir uma pseudorrepública, apelidada de “Café com leite” porque nela oligarcas cafeeiros paulistas e leiteiros mineiros revezavam a verdadeira res privatam que era o Estado?

Considerando a origem republicana do Brasil, retornar a ela para se combater a atual corrupção seria o maior tiro no pé. Significa então que o Brasil está condenado à corrupção porque carece de uma origem não corrompida à qual retornar refundacionalmente ao estilo de Maquiavel? Talvez seja o caso de, em primeiro lugar, sermos radicalmente realistas, prudência que o italiano aconselharia, e compreendermos que nunca fomos, de fato, uma res publica; que apenas migramos da res privatam monárquica para uma res privatamoligárquica que, para melhor se manter, aceitou ser pós-verdadeiramente apelidada de república.

Depois de assumirmos a vacuidade da formalidade republicana com a qual as elites enganam o povo, a única coisa que nos resta é reconhecer que a República brasileira ainda está para ser fundada! Por isso a corrupção que furta a liberdade do povo não pode ser combatida republicanamente, porque esta corrupção não é verdadeiramente republicana, mas concretamente oligárquica, e, como tal, sequer é reconhecida pelos oligarcas como corrupção, mas como o seu sempiterno e lucrativo modus operandi. Somente depois que a res for publica, e o povo tão livre quanto as elites sempre foram, é que a prática corriqueira dessas elites será obrigada a engolir a denominação de corrupção.

Como então fundar essa república a partir da “bárbara” oligarquia que ainda governa o Brasil? Politicamente falando, precisamos de um Rômulo tupiniquim que crie formas para a república, isto é, leis e instituições verdadeiramente republicanas observáveis pela matéria do Estado brasileiro, ou seja, os cidadãos; desde que – e isso é fundamental! – ricos e pobres, elite e povo, em suma, todos estejam republicanamente horizontalizados nessa categoria chamada “cidadãos”. Aqui sim podemos, sobretudo devemos falar de Revolução!

O que não podemos é seguir normalizando um pseudo Estado republicano cujas leis, por exemplo, dizem, formalmente, que é crime roubar a riqueza nacional em função de interesses privados enquanto políticos, empresários, e até mesmo grande parte do povo o faz; e isso porque as instituições, que deveriam fazer valer as leis, não têm mais, se é que um dia tiveram, capacidade para fazê-lo. Michel Temer, Aécio Neves, Renan Calheiros, José Sarney, Romero Jucá, Moreira Sales, Paulo Maluf, só para citar alguns – de muitíssimos –, são prova de que o Brasil não é res publica, mas res privatam, e deles.

O combate à corrupção republicana de Maquiavel, contudo, tem a ensinar à res privatam que somos que, em primeiro lugar, precisamos fundar uma res publica. Só assim certas práticas poderão ser reconhecidas como corrupção e doravante combatidas republicanamente, ou seja, com participação do povo. O exemplo da realista fundação das leis Roma por Rômulo dado por Tito Lívio, por sua vez, ensina aos futuros fundadores da República brasileira que ninguém, nem mesmo um gêmeo, um sócio, parceiro do fundador poderá se arrogar o direito de infringir as leis, pois será inescapavelmente punido pelas instituições.

Claro, no Brasil, muitos cidadãos são punidos pelas instituições sempre que infringem as leis, o que até pode convencer alguns de que vivemos em uma república. Mas, verdade seja dita, na maioria esmagadora dos casos são indivíduos do povo que são elencados para encenarem o mito da república brasileira. Até mesmo a recente onda de prisões de grandes políticos e empresários, infelizmente, só estão aí para dar seguimento à fábula republicana que esconde o fato de que vivemos uma crua tragédia oligárquica. Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Marcelo Odebrecht só foram espetacularmente pegos pelas instituições por terem infringido as leis para que os peixes oligarcas verdadeiramente grandes permanecessem livres delas. Pós-modernice par excellence: mudar as coisas para que elas permaneçam exatamente como estão.

Por isso precisamos fundar a república brasileira, para finalmente todos estarmos sob as mesmas leis e à observância das mesmas instituições. Em outras palavras, para que o povo seja tão livre quanto as elites. Não para o povo estar fora do alcance das leis e instituições, como as elites, mas para que estas sejam tão constrangidas a cumprirem as leis quanto ele. Isso significa deixar o concreto Brasil oligárquico no passado e fundar um novo Brasil, pós-ele-mesmo, pós-oligarquia, pós-fábula republicana. Um pós-Brasil fundado do modo como Rômulo fundou Roma, com leis e instituições pensadas de modo realista, isto é, em função do nível de barbárie/civilização dos cidadãos que deverão observá-las. De formas republicanas vazias e de matérias oligárquicas plenas estamos fartos. São essas as “corrupções” que, enquanto não são efetivamente combatidas, impedem que lutemos republicanamente contra a corrupção.

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Relativismo moral

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Uma moral que cede às circunstâncias é absolutamente condenável, ou, em troca, há situações em que pode ser aceita, mais ainda, desejada? Na prática, quando os outros transgridem os valores que defendem – e os políticos nos oferecem os exemplos mais traumáticos disso – exigimos ética deles, acusando-os pejorativamente de “pregarem moral de cueca”. Agora, quando somos nós mesmos que adaptamos os nossos valores a imperativos momentâneos para alcançarmos fins que nos interessam, aí somos extremamente autocondescendentes. A flexibilidade moral parece ser ruim e boa ao mesmo tempo, dependendo de quem se vale dela.

A princípio, parece fundamental que os outros sejam morais. Essa hipótese, contudo, é insustentável, pois, uma vez que cada um de nós é um outro para os outros, a moral, no final das contas, cabe a todos, indiscriminadamente. A hipótese alternativa, qual seja, a de que ninguém precisa agir moralmente, no entanto, é de uma outra insustentabilidade, visto que levaria as relações humanas à ruína. Ora, se todos transgredirmos livremente as regras que estabelecemos uns com os outros, tais como: não mentir, não trair, não roubar, não matar, etc., voltaríamos ao hobbesiano estado de natureza “de todos contra todos”. E bye-bye civilização!

Para entender melhor essa contradição entre o relativismo moral quando se trata de nós mesmos, e a rigorosidade moral quando se trata dos outros, é interessante atravessarmos dois grandes edifícios morais da filosofia: o de Immanuel Kant e o de Nicolau Maquiavel; respectivamente: o rígido moralismo do Imperativo Categórico Universal, e o aparente amoralismo dos “fins que justificam os meios”.

A pertinência de aproximarmos esses dois autores, tão antagônicos em se tratando de moral, justifica-se contudo em um alinhamento fundamental digno de nota: Maquiavel queria descobrir a “veritá effettuale della cosa” (a verdade efetiva das coisas); Kant, por seu turno, “despertar do sono dogmático”. A consonância dos dois está em querem pôr fim ao longevo e resistente idealismo platônico que, desde a antiguidade, sacava os homens da realidade para lançá-los em utopias. A proximidade entre os dois filósofos, entretanto, acaba por aí.

Kant, a priori, era cético, isto é, acreditava que só podemos conhecer aquilo que passa pelos nossos cinco sentidos. Para ele, só conhecemos o que se dá na experiência sensível. Porém, a sensibilidade não segue regras universais: aquilo que é bom ou agradável para uns, pode ser – como não é difícil comprovar – ruim ou desagradável para outros. Os sentidos, portanto, não ofereceriam fundamento seguro para uma regra moral de validade universal.

Entretanto, a posteriori, Kant era idealista: dizia que podemos conhecer, racionalmente, coisas que não passam, nem tem como passar pelos nossos sentidos. O infinito, por exemplo, é “o que não tem fim” para a razão teórica, mesmo que nada seja para a sensibilidade empírica. Uma moral consistente, ou seja, uma regra universal a ser seguida imperativamente por todos, teria de advir, segundo Kant, da necessidade da razão pura, e contra as “impurezas” contingentes da sensibilidade. A moral kantiana, portanto, é uma moral que se fundamenta em princípios racionais.

Já Maquiavel, que era um realista radical, sustentava que o conhecimento de maior valor para o homem e as coisas humanas estava nos exemplos históricos concretos, e não em elucubrações racionais abstratas cujo vício é criar mundos que não existem. Para o italiano, a contrário do alemão, a sensibilidade não era um desvio, nem tampouco a razão o atalho para a fundamentação de sua moral, mas a coexistência inseparável e não hierárquica delas duas no homem. A sensibilidade seria responsável pelos desejos; a razão, por encontrar os meios para realizá-los. Os fins, desejados pelos sentidos, justificariam os meios, arquitetados pela razão.

Agora, podemos falar de uma moral em Maquiavel uma vez que, para alcançar um objetivo, a razão poderia planejar qualquer coisa, inclusive matar, roubar e trair? A frase maldita, atribuída ao florentino, “Os fins justificam os meios”, que parece pregar liberdade total para se alcançar determinado fim, na verdade é duplamente maldita. Em primeiro lugar, porque não foi dita por Maquiavel, mas mal lida por muitos intérpretes. E, em segundo lugar, porque o que foi bem dito pelo autor foi que: os meios, através dos quais se alcança certo fim, serão valorados em consequência do julgamento a que o fim obtido será submetido. O fim, sendo reprovado, outrossim o serão os meios.

O que superficialmente parece ser uma liberdade no presente, na verdade, é uma profunda subjugação em relação ao futuro. Para Maquiavel, o melhor tribunal para as ações humanas (os tais meios!) nunca é contemporâneo delas, mas extemporaneamente histórico. E, em se tratando de um pensador republicano como o florentino, o fim maquiavélico que absolve os meios que lhe deram vez é somente aquele que produz os melhores resultados à res publica, isto é, ao que é de todos.

Um bom exemplo histórico disso é o ilustre caso de Brutus, juiz de Roma que mandou assassinar os seus dois filhos, Tito e Tibério, assim que soube que eles estavam conspirando contra a República. Os contemporâneos do republicano romano reprovaram-no. Todavia, uma vez que o assassínio de sua prole contribuiu para a grandeza do Império e para a pax de milhões de romanos, o futuro findou aprovando o filicídio de Brutus.

Aqui podemos ver que, diferente de Kant, para quem a moral é baseada em princípios, Maquiavel, ao contrário, estabelece uma moral de resultados. Resumindo: a moral de Kant tem por fim os princípios; a de Maquiavel, inversamente, tem por princípio os fins. O problema, entretanto, é que essa moral maquiaveliana não pode ser universalizada dentro da república, pois, se todos forem livres para fazerem o que acreditam que será considerado bom futuramente, é bem possível que o presente seja arruinado antes mesmo de produzir o pretenso “futuro melhor”.

Em Maquiavel, somente os príncipes podem dispor do relativismo moral. Não por conta de sobre humanidade, semidivindade alguma, mas por dois motivos: o primeiro, porque são eles, os príncipes, que, mais que todos, têm a responsabilidade de primar pela república, isto é, pelo que é de todos, pelo é melhor para todos; o segundo, porque são os príncipes que serão julgados historicamente pelos seus atos e resultados, e não o vulgo anônimo.

Em vez de liberar o príncipe para ser um tirano com a maldita máxima “Os fins justificam os meios” e com uma flexibilidade moral negada aos cidadãos, o Maquiavel republicano, ao contrário, adverte os governantes de que os meios de que eles se valem em função de determinados fins serão inescapavelmente julgados; tanto para se averiguar se buscavam fins verdadeiramente republicanos, e não apenas glória pessoal, quanto para medir se os fins efetivados foram de fato os melhores para a república.

Já os cidadãos em geral, tanto faz se nobres ou povo, deveriam aceitar as leis da república como os únicos princípios morais. Todavia, como em uma república autêntica – ao contrário de uma tirania, na qual o povo é subjugado pela força – as leis atendem aos próprios cidadãos, aos seus desejos mais pungentes, estar moralmente submetido às leis é estar comprometido com os próprios interesses. Com efeito, para Maquiavel a liberdade dos cidadãos só é possível na república, mediante suas leis. Isso, claro, se a república não estiver corrompida, ou seja, se as leis não estiverem beneficiando somente a uma minoria.

Aqui já podemos ver que, em Maquiavel, em vez do amoralismo atribuído ao seu pensamento, há na verdade uma dupla moral: a dos cidadãos, que para serem livres devem obedecer à leis em todos os casos; e a do príncipe, que deve seguir às leis apenas quando elas garantem os melhores resultados aos cidadãos, mas que pode abstraí-las quando for mais prudente, isto é, quando o melhor fim exigir. Em Maquiavel, o relativismo moral não só é desejado, como sobretudo necessário. Todavia, somente ao príncipe. Não porque ele seja absolutamente livre – o que faria dele um tirano, mas, ao contrário, porque ele é necessariamente constrangido a fazer o que for melhor para todos.

Depois de aproximar Kant e Maquiavel em repeito à recusa ao idealismo que sobrevivia desde a antiguidade; e de mostrar a distância entre os edifícios morais deles; chegamos ao ponto em que podemos sugerir que a rigidez do moralismo kantiano tem lugar cativo no moralismo maquiaveliano, pelo menos na moralidade atinente aos cidadãos. Todavia, desde que compreendamos que essa moral é estabelecida, não por princípios racionais abstratos, mas, em vez disso, por imperativos republicanos reais, visto que, para o italiano, a república é a melhor conjuntura a todos. Já o relativismo moral do príncipe maquiaveliano será eternamente alienígena ao rígido moralismo kantiano.

Desse modo, a contradição apontada inicialmente, qual seja: condenarmos os outros quando eles infringem os valores morais, e, ao mesmo tempo, perdoarmos a nós mesmos sempre que meios extra-morais se fazem necessários para alcançarmos fins particulares; essa contradição se dá porque, mesmo que saibamos muito bem que somos cidadãos como os outros, no entanto, agimos como se fôssemos príncipes: desfrutamos secretamente – ou nem tão secretamente assim – de um relativismo moral que, entretanto, não deveria visar bem ou glória particulares alguns, mas o melhor resultado final a todos.

A dupla moral maquiaveliana, tanto o relativismo moral principesco – desde que absolvido pelo jugo histórico por ter resultado no bem maior para os cidadãos -, quanto a rigidez moral que cabe aos próprios cidadãos perante as leis; visa a liberdade geral que só se encontra na república. Já a moral kantiana, que se fundamenta em um imperativo da razão abstraído de resultados empíricos – e, aliás, contra eles! –, produz todavia uma moral impossível de ser realizada plenamente por qualquer homem, mulher ou príncipe, a não ser… “de cueca”; da mesma forma como seres humanos finitos nunca alcançarão o infinito, a não ser… idealmente.

A moralidade maquiaveliana, por visar nada além da efetividade concreta, deve ser preferida por homens e mulheres outrossim efetivos e concretos que desejam liberdade e igualdade, encontradas somente na república. Já a idealidade abstrata da moral kantiana, por mais que, a princípio, vise o universal em detrimento do particular, no entanto, acaba possibilitando desigualdade e furto de liberdades públicas em função das privadas, como prova o imoral liberalismo capitalista que encontrou alicerce na ética de Kant.

Considerando a aversão aos dogmas idealistas dos dois filósofos, a “veritá effettuale della cosa” de Maquiavel acaba sendo mais sólida para se edificar uma moral do que o “despertar do sono dogmático” de Kant. Seja porque a verdade efetiva das coisas não se abala, estejamos dormindo ou não, seja ainda porque estar desperto dos dogmas não significa que estejamos livres de sonharmos acordados com eles. Sem dizer que a dupla moralidade de Maquiavel, que tem uma moral para o povo e outra para o príncipe, tem a virtude de garantir a liberdade e a igualdade de todos.

A realidade tem estrutura de… seriado?

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Quando começou a filosofar, Nietzsche usou a tragédia grega para produzir sua crítica à modernidade. Marca do pensamento pop de Žižek é o uso de filmes e anedotas que tornem suas teorias popularmente intuíveis. Também o economista Thomas Piketty se vale de clássicos da literatura para enxergar neles realidades econômicas de tempos nos quais elas não eram cientificamente registradas. Se a ficção é instrumental ao pensamento, os seriados de TV não devem ser ignorados enquanto objetos capazes de contar verdades essenciais, tanto sobre mundo que os produz, quanto sobre os indivíduos que os consomem massivamente.

Por isso, precisamos pensar sobre as séries; a partir delas; e não somente assisti-las! Seja por serem a expressão artística mais popular da atualidade, bastando ver a crescente quantidade de seriados sendo lançados, exibidos, e consumidos constantemente, a ponto de haver quase uma série para cada gosto e ocasião; seja principalmente por serem expressões econômicas sofisticadíssimas em forma de mercadorias tão inocentemente deliciosas quanto perigosamente alienantes. Seriam os seriados o ouro alquímico da vez do sistema capitalista?

Confesso que, em boa desmedida, suportei o Armagedom político tupiniquim de 2016 à base de doses nada homeopáticas de estórias e mais estórias seriadas. Não para me alienar completamente da vil realidade. Antes, os seriados ajudavam a estabelecer entre eu e ela espaços intervalares nos quais a insuportável vilania do real ou estava episodicamente ausente, ou, como em “Mr. Robot”, presentíssima e revolucionável ao alcance de um “hack”. Aliás, “Mr. Robot” tem a virtude de mostrar que só se revoluciona a realidade mediante covardes distâncias (Eliot, o personagem principal, é um psicótico que se refugia em um mundo irreal) seguidas de violentas proximidades em relação a ela (a destruição do sistema financeiro mundial em um único acesso à rede). Algo como se afastar do problema para vê-lo panoramicamente antes de se de aproximar dele com unhas e dentes.

Dizer que as séries apenas alienam é muito raso. A atual (micro?) revolução que o Papa Francisco empreende na Igreja Católica, por exemplo, de forma alguma é esquecida quando se assiste “The Young Pope”, inebriante ficção de Paolo Sorrentino protagonizada pela beleza desconcertante de Jude Law. O Jovem Papa em série, em vez de obscurecer, na verdade magnificava os atuais movimentos da Apostólica Romana. É preciso separar o joio do trigo, mais ainda, os trigos entre si, antes de jogar as séries todas num saco e etiquetá-lo pejorativamente.

Quem, das vítimas da mundial crise de representatividade política, não amou a odienta presidência dos Estados Unidos de Frank Underwood em “House of Cards”, ironicamente a série predileta de Barack Obama? Quantos moralistas não torceram pelo amoral Walter White, o professor de química produtor de metanfetamina do já antológico “Breaking Bad”? E o que dizer dos norte-americanos, absolutamente paranoicos com o terrorismo muçulmano, desejando a salvação do seu concidadão traidor ficcional, Nicolas Brody, de “Homeland”, que sob a pele de comandante da Marinha e herói de guerra era, na verdade, um lobo terrorista da Al-Qaeda?

Há quem diga que o teatro e o cinema já fazem isso há muito mais tempo, e primorosamente. Não obstante, uma diferença deve ser contraposta em vantagem das séries: elas conseguem palatizar muito mais intensamente aquilo que a princípio repudiamos porque o fazem não de um só golpe, como um filme ou uma peça de teatro, mas aos poucos. Ora, um golpe dividido em muitos, isto é, seriado, acaba sendo espécie de massagem. Aí a dor vira deleite. E isso porque as séries contam não só com mais tempo, como também com uma outra temporalidade, intervalar e subversiva, e consequentemente mais eficiente para causar grandes efeitos.

Interessante é observar a terceira temporalidade que a Netflix estabeleceu ao começar a lançar suas séries não no formato de um episódio por semana, mas todos eles de uma só vez. Podemos assistir a uma nova temporada inteira de uma só tacada, como se se tratasse de um imenso filme de muitas horas; algo como uma ópera burguesa nos seus melhores tempos. Interessante também é frisar que a “provedora global de filmes e séries de televisão via streaming” assim o fez porque, em pesquisa, os seus espectadores disseram que preferiam receber as temporadas completas de uma única vez, seja para consumi-las ininterruptamente, seja para fazê-lo nos seus próprios tempos.

Todavia algo se perde com essa estratégia de marketing da Netflix. Ora, assistir a um episódio de seriado, ser capturado por sua boa trama, e ter de esperar uma semana para ver o seu prosseguimento, se, por um lado, é frustrante e exige paciência, por outro, no entanto, gera uma expectativa com data marcada para ser recompensada. E o mistério do intervalo só engorda essa recompensa. Já assistir toda a temporada de uma série de uma única sentada, em troca, exige nada além de bastante tempo; mas um tempo sem o seu depois e sem o entre; um tempo que é um imenso agora. Uma boa metáfora é a da ratazana viciada que pressiona repetidamente o botão que libera a sua ração para consumi-la toda de uma vez, até acabar, alienada do fato de que esta seria a sua provisão para os três próximos meses.

Apesar de alguns seriados realmente alienarem as suas audiências da realidade, muitos outros, no entanto, conseguem dar gravidade a ela; lacanianamente falando: fazer a realidade ser mais do que ela mesma. Como se recusar à possível profundidade dos seriados se, como bem concluiu Lacan, a própria realidade tem estrutura de ficção? A ficcionalidade estrutural da realidade, aliás, é o mote de Žižek – também psicanalista – ao usar filmes para melhor projetar o real nos seus pensamentos. E se as séries, atualmente, muito mais do que os filmes, são o locus espetacular da ficção, é nelas que podemos espiar melhor a coluna do real.

Já que nos aproximamos de psicanalistas, impossível não lembrar de“In Treatment”, série norte-americana, e de sua versão brasileira, “Sessão de Terapia”. Até mesmo para quem faz psicanálise há anos, as séries puderam oferecer algo que analista algum compartilha com seus analisandos: o drama psicoexistencial de outrem. Depois de assistir aos dois seriados, sensivelmente foram expandidas as estreitas fronteiras edipianas nas quais a minha analista me mantinha cativo. Quanto mais não seja, se o próprio processo de análise já é seriado, com um, dois “episódios” por semana, as séries de psicanálise, por suas vezes, são séries sobre séries. Novamente Lacan: a coisa mais do que ela mesma!

Dilema interessante nos colocam as boas séries históricas, tais como: “Roma”; “Vickings”; “Spartacus”; “Bórgias”; “Tudors”; “Marco Polo”. Por mais romanceadas e anacrônicas que de fato sejam muitas de suas cenas, através delas encontramos espinhas dorsais de valor histórico consistente. Assim como um bom consumidor de notícias deve sopesar a orientação ideológica do veículo que a divulga, assim também o bom espectador de séries deve saber aplicar o “filtro Hollywood” sobre elas. E porventura não é isso o que a própria História nos ensina, que é da miríade de histórias particulares, de somenos valor e de veracidades duvidosas, que devemos saber destacar o cerne histórico que dá sentido a todos elas?

Assistir séries é bom; entretêm. Mas, para escapar à alienação, devemos assistir nelas tanto o mundo que as produz massivamente, e assim o conhecermos melhor; como principalmente assistirmos a nós mesmos ao assisti-las, para então nos familiarizarmos melhor com os consumidores desse mundo que somos, os quais entretanto nem sempre reconhecemos em nós mesmos. Parafraseando Nietzsche, quando olhamos muito tempo para as séries, as séries olham para a gente. E se, por força do pensamento, fizermos as séries olharem para si mesmas, quiçá consigamos contemplarmos a nós próprios, e, nesse processo de abstração, nos depararmos com verdades concretas sobre o nosso modus vivendi.

O analógico individualismo do sujeito moderno, potencializado pela digitália contemporânea, por exemplo, tem nas séries um aliado sorrateiro. A respeito do notório fato de estarmos cada vez mais habituados com relações não presenciais com nossos iguais – e o “sexo virtual” é o exemplo mais emblemático disso -, as séries não só dão corda para esse distanciamento físico entre as pessoas, como também dissimulam-no metafisicamente. Sem mais, envolvemo-nos, e durante meses, com os seus personagens, seus dramas, e, para muitos, isso é o melhor que terão em matéria de relacionamento humano. Experimentamos tremendas empatias diante da TV por pessoas ficcionais, e, em seguida, nos “episódios da vida real”, somos antipáticos com as pessoas reais.

E como não poderia deixar de ser, esse individualismo virtualizado de que padecemos tem um correlato espetacular em forma de série. “Black Mirror” é o desfile, diante de nossos olhos, do mundo no qual estamos totalmente submergidos, mas do qual não enxergamos a extensão nem profundidade. Lacan mais uma vez: a série britânica que apresenta ficções especulativas de efeitos sombrios é a nossa realidade mais do que ela mesma. Não porque a realidade do seriado esteja além da realidade verdadeira, mas, em troca, porque somos nós que estamos aquém dela.

“Black Mirror” não nos desconcerta porque surpreende, porque mostra um mundo alienígena ao nosso, mas, antes, porque apresenta precisamente os caminhos que já percorremos, todavia trilhados sem a mochila de alienações que carregamos nas costas. Com efeito, já somos tão sombrios quanto os seus personagens, mas só eles nos fazem enxergar isso. Intelectuais worldwide confessam: há algo candente do real que só é visível em “Black Mirror”; algo completamente ausente nas suas estantes de livros.

E para apontar que os seriados, aos poucos, estão se tornando paradigmáticos à realidade, vale falar sobre o seu ultrapassamento em relação ao cinema e a tv, universos artísticos-audiovisuais de onde nasceram. Até uns anos atrás, as séries tentavam se livrar do estigma televisivo para galgarem uma linguagem cinematográfica, e, agradando mais o público, fazerem mais dinheiro. Hoje em dia, ao contrário, muitos filmes e novelas já são feitos para que se pareçam com seriados, para que tenham a linguagem dos seriados, pois estes já são considerados os detentores da fórmula do sucesso ficcional contemporâneo. E se a realidade tem mesmo estrutura de ficção, porventura os seriados não teriam hoje a fórmula do sucesso da realidade?

Esse movimento não deve passar em branco. Afinal, se aquilo em que, antes, os seriados se inspiravam, agora, passa a se inspirar neles, a própria realidade, objeto inspiracional par excellence dos seriados, não escapa a esse destino. Se isso ainda parece um absurdo, talvez seja questão de tempo, pelo menos até “Black Mirror” lançar um episódio mostrando que a referência fundamental da realidade já são as séries. Quem sabe assim finalmente enxerguemos isso. Ainda sobre dianteira que os seriados estão tomando em respeito à realidade, mais dois exemplos.

Em “The Newsroom”, a equipe de jornalismo de um telejornal investigava a participação de altas patentes do exército americano na morte de milhares de sírios com gás sarim. Alguns dias antes de ir ao ar o episódio no qual seria confirmado, e finalmente divulgado o crime americano, 1.429 sírios são assassinados na vida real, e pelo mesmo gás, obviamente, com suspeitas seríssimas de que os EUA tinham responsabilidade na tragédia. O fatídico episódio da série foi misteriosamente cancelado e, duas semanas depois, o desfecho da trama foi brochante, mas bastante conveniente para o exército: os jornalistas ficcionais foram processados pelo governo e demitidos do canal de televisão por estarem tentando provar algo de que não tinham provas.

Já em “Mr. Robbot”, um episódio no qual uma jornalista e um cinegrafista seriam assassinados ao vivo e em praça pública teve de ser adiado e reeditado por conta do assassinato da repórter Alison Parker e do cinegrafista Adam Ward, também ao vivo, no estado da Virgínia. Nesse caso, não foi ordem superior alguma que mudou os planos do seriado, mas a própria equipe, espantada com o fato de sua ficção estar um passo aquém do real. A humana ignorância em respeito ao futuro não está aí por nada. Superá-la, ainda que episodicamente, é angustiante.

Embora dizer que os seriados estejam se tornando clarividentes, ou ainda que hoje em dia haja um para cada gosto e ocasião seja um exagero, comedindo as afirmações, contudo, não é difícil defender que as séries estão mais aderidas ao real do qualquer outra forma ficcional, e que há ao menos uma delas atinente a cada questão polêmica da realidade. Isso quer dizer que, assim como Nietzsche pensou mediante as tragédias gregas; Žižek, o cinema; e Piketti, a literatura; assim também podemos pensar através dos seriados. Se eles já são a lente privilegiada para tal, talvez seja precipitado dizer. Agora, não nos espantemos se alcançarem esse posto, ou ainda, se mudarem a realidade para que ela seja visualizável apenas por suas lentes seriais.

A antiguidade vivia o tempo circular no qual a sequência de causas e efeitos era finita; terminava e recomeçava eternamente. Nessa percepção de tempo, era como se a realidade fosse uma série cuja mesma temporada era sempiternamente repetida. O medievo trouxe o tempo linear, que nasce no passado e segue infinitamente em direção ao futuro. Desde então, a realidade começou a se comportar como uma de nossas atuais séries: cada episódio é único, todavia, pertencente a uma temporada que nunca terminará. Agora, depois que a Netflix passou a prover as séries todas de uma só vez, podemos experimentar o tempo de Deus, ou seja, a eternidade, na qual tudo o que está para acontecer, para ser visto, já está aí, à nossa disposição.

Amizade X filosofia

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Uma velha e grande amiga, com quem eu conversava sobre o atual caos ético-político brasileiro, a certa altura criticou-me dizendo: “Vocês, da filosofia, não conseguem pensar sem usar outros pensadores como bengala”. Tive de reconhecer que, por um lado ela está certa: para quem tem amor (philia) pelo conhecimento (sophia), é irresistível se envolver com sábios, sábias e sabedorias. Agora, por outro lado, ela está errada: não se trata de uma incapacidade “pensar sem usar outros pensadores como bengala”, mas, ao contrário, de uma virtuosa capacidade, aliás, cada vez mais rara nesse nosso mundo idiotizando.

Na esteira das recentes chacinas nos presídios brasileiros, um cientista social francês radicado no Brasil, em entrevista televisiva, apontava suas causas e consequências. Sua análise sociopolítica era impecável. Com exceção, todavia, de um único pecado: o fundamento de seu pensamento era tacitamente maquiaveliano, mas, em momento algum, ele citou Maquiavel. Essa falta ficou clara para mim pois, atualmente, estudo justamente o pensador renascentista. Amei que o cientista pensava maquiavelianamente, porém, odiei o fato de ele fazer parecer que este pensamento era patrimônio exclusivo seu.

Impossível o cientista social desconhecer o pensamento de Maquiavel. Ou ele esqueceu de citá-lo – pecado menor -, ou suprimiu deliberadamente a referência – algo como um oitavo pecado capital! Embora estivesse lidando com um conhecimento de altíssimo valor, o cientista demonstrou não ter o amor devido por ele, uma vez que omitiu sua origem, sua autoria. Agindo desse modo, o cientista não receberia a crítica da minha amiga de “usar outros pensadores como bengala”. Mas não porque não o tenha feito, e sim porque dissimulou muito bem que caminhava por suas próprias pernas, sem usar as célebres muletas maquiavelianas, conhecidas por serem os pilares do pensamento político moderno.

Ok, este cientista não é filósofo; não fez quaisquer juras de amor com o saber; e talvez por isso use-o pragmática e desrespeitosamente. A aparência de caminhar sem muletas certamente o fez parecer um sábio ao lado de outros sábios. Mas a essência dessa aparência é outra: ele só pôde reluzir algum verniz de sabedoria por conta da sabedoria de Maquiavel. Um verdadeiro filósofo, em troca, se chega a brilhar, é porque se lambuza de sábios e sábias, como se estes fossem purpurina e como se pensar fosse um carnaval.

Tenho certeza de que a minha amiga não queria sugerir com a sua crítica que devemos esconder os autores que falam através de nossas falas. Aposto que ela deve se comprazer, por exemplo, com o historiador brasileiro – quase filósofo – Leandro Karnal, cujas explicações são recheadas de citações de inúmeros grandes pensadores, todas devidamente referenciadas. O que, entretanto, ela queria com a sua crítica? Bem, creio que espécie de conversa sem conhecimento, de pensamento sem sabedoria; algo como uma simples troca de opiniões – estas, sim, de autoria única e exclusiva de quem as profere, pois opinar é se expressar pelas próprias pernas.

Na hora me vi solicitado por espécie de mundo facebookizado, onde opiniões são memética e freneticamente compartilhadas; onde ideias de grandes pensadores são esquartejadas e publicadas sem que sejam devidamente referidas – ou, o que é pior, descuidadamente atribuídas a Caio Fernando Abreu ou Clarisse Lispector. Postar por postar; falar por falar; pensar por pensar; sem que estas expressões considerem, em primeiro lugar, sua relação com a realidade, e, em segundo lugar, se são expressões genuinamente nossas ou, antes, inadvertidamente roubada de outros; ei o que certas “bengalas” sábias podem evitar!

A querela entre opinião e conhecimento é tão antiga quanto a própria filosofia. A clássica pecha entre o conhecimento universal de Sócrates e as opiniões particulares dos sofistas é prova disso há 2500 anos. De modo que, quando fui criticado pela minha amiga, quase trouxe à discussão alguns diálogos de Platão. No entanto, era justamente isso o que ela não queria… Do contrário, sequer teria proferido a sua crítica. Seu pedido, na verdade, era para que apenas falássemos o que achamos das coisas, sem que estes achismos sejam relacionados a qualquer saber válido. Ela queria apenas o velho negócio de “jogar conversa fora” – coisa que, aliás, amigos fazem melhor do que ninguém.

Embora eu não tenha problema algum em apenas papear, e sobre o que quer que seja, esse ato banal de conversar livremente com a minha velha amiga, no entanto, passou a estar como que sob o jugo de um “Grande Outro” que a qualquer momento iria me acusar por eu estar pensando conforme Maquiavel, Kant, Marx, e tantos outros filósofos que, felizmente, sempre se intrometem nos meus pensamentos, até nos mais banais. Resultado: eu não consigo mais relaxar em uma conversa com ela. Não porque eu tenha que cuidar para não falar besteira, mas, ao contrário, para que eu não deixe de falar besteira e comece a fazer relações intelectualisadas.

Eu era adolescente na década de 1980, e, à época, ser “Nerd” (pessoa que exerce intensas atividades intelectuais) causava embaraço, tanto que eles se confinavam em grupos bem afastados da galera “descolada”. Para escapar da “nerdice”, tinha-se de ser ou das artes, ou dos esportes, ou ainda ser punk. Porém, durante as décadas de 1990 e 2000, a coisa mudou. Os “Nerds” passaram a ser “cool”. Doutores em História e físicos/matemáticos passaram a ser heróis de Hollywood e de seriados de TV. “The Big Bang Theory” é a vingança dos “Nerds”!

Quando a minha amiga pediu, mutatis mutandis, para eu não ser “Nerd”, é como se estivesse me convidando para uma amizade “old school”, ao velho estilo 1980. Pedido que, no entanto, eu estou tentando aceitar, pois, ironia do destino, a nossa amizade começou justamente naquela época. Por enquanto, enquanto eu não me desilumino, fico com a boa tirada de um outro amigo meu, filósofo, que, quando ouve alguém dizer que “pessoas que estudam filosofia se tornam chatas”, ironicamente responde: “É verdade. Porém, pior ainda é quem é chato sem estudar nada”.

Fazer história na era da Pós-história

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Vivemos em uma época na qual, como já disse Marx no Manifesto Comunista, “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. E a história não escapa a esse destino. Até mesmo o Holocausto, historicizado como o maior crime de que a humanidade foi capaz, pouco mais de meio século depois começa ter essa sua gravidade desintegrada. Basta ver a atual ascensão apologética do neonazismo no mundo. Estamos condenados a ser, como se diz, vítimas das circunstâncias, ou haverá espaço para sermos novamente senhores da história?

Nossa época não só evapora a história consolidada, como também impede que se historicize os novos acontecimentos. Um exemplo disso é o golpe de estado que se deu no Brasil de 2016, que ao mesmo tempo e irredutivelmente significa, para uns, uma “Ponte para o Futuro”; para outros, uma “pinguela” do presente a ele mesmo; e para outros ainda, um tobogã indigesto para o passado. Interpretações incompatíveis que não constituem história, apenas engrossam o falatório perspectivista pós-moderno cujo vício obsceno, contudo, é manter indefinida a univocidade dos fatos.

Superar a impossibilidade de se historicizar fenômenos presentes, portanto, deve trilhar um caminho menos relativista; quiçá nada relativista. Comecemos, portanto, pelo que hoje em dia é universalmente inquestionável: o império do capital que a tudo e a todos engloba e desmancha inequivocamente. A dificuldade de mantermos sólida a história, bem como a de a fazermos está, em primeiro lugar, no próprio capitalismo. Alguém lembra do que disse Francis Fukuyama na década de 1980, que “o capitalismo global é o fim da história”?

Como historicizar justamente em uma era que sustenta ter superado a história; ou, em termos mais precisos, ser pós-histórica? Entretanto, em que sentido o capitalismo é pós-histórico? Slavoj Žižek, em sua obra “Às portas da revolução”, responde essa pergunta dizendo que o capitalismo é “um movimento que nunca atinge a completude … e que sempre posterga o acerto de contas final”. Ou seja, não faz história; apenas repete a si mesmo; leva indefinidamente adiante o presente no qual existe, carregando inconclusivamente consigo todo resto.

A fórmula capitalista par excellence, D-M-D (Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro) exemplifica muito bem a pós-historicidade genética do capital. Formuladas capitalisticamente, não são as muitas e diferentes coisas, e até mesmo os fatos, que são intermediados pelo dinheiro. A função deles, e de tudo o que se possa imaginar, ao contrário, é apenas intermediar o movimento do capital, que é, e deve ser o início e o fim de todas as “histórias”. O que surge com o capitalismo, portanto, é sempre e apenas mais do mesmo. E esse excesso de si atende pelo nome de mais-valia: a mudança apenas quantitativa daquilo que deu origem ao processo, qual seja, o próprio capital. E história do mesmo é tudo menos história.

O nó que impede os fenômenos de serem historicizados nessa conjuntura pós-histórica imposta pelo capitalismo global se forma porque, diante da voracidade do capital, aponta Žižek, “o presente é vivenciado como uma confusa sucessão de fragmentos que se evaporam rapidamente de nossa memória”. Novamente o Marx do Manifesto: “tudo o que é sólido se desmancha no ar”.

“O problema de nossa era pós-histórica”, prossegue Žižek, “não é que não conseguimos nos lembrar do passado … mas sim que não conseguimos nos recordar do próprio presente – não conseguimos historicizá-lo, narrá-lo apropriadamente”. Em relação a qualquer fenômeno, incontáveis causas podem ser elencadas e articuladas de várias maneiras; pode-se investir inclusive o passado inteiro. Não obstante, é o presente na era do capital que não dá suporte a esse tipo de trabalho, que, afinal de contas, é o da história. Desmancha-o! O paradigma capitalista mantém sólido somente a si mesmo.

De modo que a única história que, sem erro, pode ser feita dentro do capitalismo é a seguinte: as causas dos fenômenos se devem às necessidades do capital porque as suas consequências devem satisfazer as necessidades do capital. Simples e solipsista assim! A fórmula mágica do capitalismo, D-M-D, onde o segundo “D” é o mesmo que o primeiro, todavia acrescido de uma certa mais-valia, mutatis mutandis, é a mesma do pós-historicismo. Adaptada ela fica assim: C-F-C (Capital-Fenômeno-Capital), com o capitalismo, obviamente, mais-valorizando-se através dos fenômenos. Entretanto, desvalorizando-os, desmanchando-os.

Como então superar o pós-historicismo estrutural da era capitalista que, se a priori impede que se constitua história, consequentemente furta a possibilidade de que ela seja revolucionada? Devemo resistir e historicizar mesmo assim, malgrado o capitalismo? Žižek, contudo, adverte: “não devemos subestimar a capacidade que o capitalismo tem de colonizar domínios que lhe opõe resistência”. A armadilha de se fazer história no domínio do pós-histórico é que podemos facilmente terminar com histórias que explicam mais os próprios “historiadores” do que os fatos objetivos de que inicialmente pretenderam tratar. E esse ardil, não nos iludamos, é o próprio pós-historicismo.

Žižek, no entanto, aponta um caminho promissor para se driblar a impossibilidade histórica que o capitalismo global impõe, lembrando da hegeliana máxima antievolucionista de Marx, “a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”. Com ela, o autor pretende reavivar a ideia de que história se faz, não exatamente do presente para o passado, como se se tratasse simplesmente de uma cronologia retrospectiva, mas, antes, das formas mais evoluídas às formas menos evoluídas. Retrospectivamente, sim. Mas de modo lógico; e não cronológico.

E uma vez que, como descreve Žižek, vivemos na era do capitalismo global digital virtual pós-industrial, ou seja, a sua forma mais evoluída, temos nas mãos, portanto, a forma perfeita sobre a qual aplicar a chave lógica e libertar a possibilidade de se fazer história trancada pelo capitalismo global. A partir desse momento, no entanto, o filósofo reaciona a teoria marxista e a pragmática leninista, bem como aciona as suas psicanálise cinematográfica e filosofia anedótica para seguir lidando com a questão.

No que eu lamento ser um afastamento pós-moderno do problema, entretanto, Žižek relembra de uma campanha publicitária de uma selftrade cujo anúncio trazia a imagem da foice e o martelo comunistas feitos em ouro e cravejados de diamantes, encimando o pós-verdadeiro slogan: “E se todo mundo lucrasse com o mercado de ações?”. Sua crítica jocosa à vilania capitalista, cuja pós-historicidade visa justamente apagar, desmanchar a verdadeira história, qual seja, que o capitalismo existe somente se cada vez menos gente lucrar, deu-me, não obstante, a pista da trilha que, creio, o filósofo esloveno deveria ter seguido.

A metafísica de publicitário com a qual Žižek se ocupou, sugeriu-me que, em vez de nos voltarmos contra o grilhão pós-histórico próprio do capitalismo, devemos, em troca, levá-lo absolutamente a sério, mais do que o próprio capitalismo quer que o façamos. E levar o capitalismo a sério é começar pela sua fórmula essencial: D-M-D. Todavia, como o objetivo aqui é a superação do seu pós-historicismo, prosseguiremos mediante a adaptação que dela fizemos: C-F-C (Capitalismo-Fenômeno-Capitalismo).

Ora, se a única “história” que é possível fazer é a do repetitivo, porém mais-valorativo movimento capitalista, e se isso sintetiza tudo, talvez seja essa sintetização mesma a dificuldade que devamos enfrentar. Abramos então a fórmula pós-histórica C-F-C (Capitalismo-Fenômeno-Capitalismo). Seu modo extenso, portanto, é: C-F1-C-F2-C-F3-C … (Cap.-Fen.1-Cap.-Fen.2-Cap.-Fen.3-Capitalismo …).

A chave lógica a ser aplicada é a seguinte: abstrair estrategicamente o “C”, isto é, o capitalismo da sequência. O que resta é, em primeiro lugar, uma sequência de fatos objetivos – objetos concretos à história; e, em segundo e mais importante lugar, um excedente, precisamente a mais-valia que o “C” busca para si mesmo em cada etapa do processo. Excedente esse que, por articular os fatos determinados, afirma-os. Ainda que os desmanche imediata e necessariamente, solidifica-os nos ciclos aos quais eles pertencem. Eis o calcanhar de Aquiles do pós-histórico capitalista: não poder prescindir aqui, daquilo que, ali, ele desmancha.

Talvez só assim seja possível fazer história na era do pós-histórico: historicizando o que é desmanchado sistematicamente. Não a despeito do capitalismo, mas justamente através dele, usando-se subversivamente a sua própria lógica. Assim como não é a mera sequência cronológica de fenômenos que faz história, mas sim a articulação lógica deles, de modo que produzam sentido, assim também, na era do capital, não são os fenômenos em si mesmos que fazem história, mas o entroncamento deles em função da lógica da mais-valia capitalista, que a tudo concatena, inescapável e solidamente.

O Estado ideal de Platão e os reais estados desunidos do brasil

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Nesse momento, no qual grande parte dos brasileiros acha que o Estado não faz jus aos seus cidadãos, “A República” de Platão é mais que pertinente. Nela, o pai da filosofia faz o exercício de imaginar um Estado ideal, dizem as boas línguas, em resposta à decadência em que se encontrava a sua Atenas real. Uma das grandes virtudes do diálogo foi estabelecer que as qualidades do Estado são as qualidades dos indivíduos que o compõem. Esquecemo-nos, ou, antes, queremos esquecer que o Estado não é, nem nunca foi uma instituição cujas virtudes e vícios advenham de cima para baixo, dos governantes aos governados, mas, ao contrário, é o resultado da soma dos estados individuais de cada cidadão, que, entretanto, se tornam notórios, e sobretudo criticáveis apenas na figura do Estado?

Antes de prosseguir, peço licença à convenção que usa a palavra “Estado” com letra capital para distinguir o Estado moderno das unidades políticas, econômicas e sociais anteriores ao século XVIII, como por exemplo, as cidades-estado gregas. Doravante, “Estado” se referirá indiscriminadamente à unidade final da totalidade dos cidadãos, e “estado”, à condição de um indivíduo ou grupo deles dentro do Estado.

Diferença essencial entre o Estado ideal platônico e o nosso, contudo, é que aquele era o que, todavia anacronicamente, poderíamos chamar de comunista. O comum deveria imperar, fosse em relação à propriedade, fosse ainda em respeito a cônjuges e filhos. E isso porque a propriedade individual, segundo Platão, era o germe do mal a contaminar paulatinamente os cidadãos. E, consequentemente, o Estado, cujo objetivo não deveria ser outro que o bem-estar geral. Tão logo um homem começasse a ficar rico, adverte o filósofo, deveria mais que tudo exercitar as suas virtudes, pois estas seriam as primeiras a serem sepultados sob sua riqueza nascente; e por último, a virtude do Estado.

Um contemporâneo nosso mais reacionário que estivesse dialogando com Platão, certamente argumentaria em defesa da meritocracia. O filósofo, contudo, repetiria contra ele o seu argumento: o intuito de um Estado é o bem-estar geral, e não o bem particular. Além do que, um Estado no qual a competição entre seus indivíduos permitisse diferenciações econômicas, e consequentemente sociais, não seria um Estado, mas sim muitos estados, notoriamente antagônicos, em espécie de guerra interna. Havendo desigualdades sociais dentro do Estado, haverá tantos estados quantas forem essas desigualdades. E, conforme Platão, o Estado desigual internamente fatalmente ruirá sob o peso dos seus próprios antagonismos.

Podemos, hoje, imaginar um Estado nos moldes d’A República platônica? Para tal, precisaríamos necessariamente fazer o árduo exercício de desimaginar os antagonismos socioeconômicos, mui concretos nos nossos Estados modernos, entre os estados de riqueza, satisfação e liberdade dos famigerados 1% mais ricos, e os estados de pobreza, carência e opressão dos 99% restantes. “Tal homem, tal Estado”, reforça Platão. Um homem rico e poderoso é, a um só tempo, um homem e um estado; ao passo que um pobre e explorado, é outro e outro. Por isso, platonicamente, um Estado só pode ser chamado dessa forma quando todos os cidadãos gozarem de bem-estar.

Entretanto, para nós que achamos que o nosso Estado está aquém do que merecemos, não causa espécie alguma o esforço individual no sentido de um estado melhor apenas para nós mesmos e nossas famílias. Infelizmente, a ideia de um Estado bom para todos permanece apenas uma ideia. Na prática, contudo, o bem comum é sistematicamente preterido em benefício do bem privado. O problema dessa pragmática individualista é que ela não constitui nem verdadeiros cidadãos, nem um Estado propriamente dito, mas sim uma miríade de indivíduos egoístas e, por conseguinte, a mesma quantidade de estados contraditórios.

Parafraseando a máxima de Wittgenstein, “os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, para então intrometê-la na problemática platônica com a qual estamos lidando, poderíamos dizer que “os limites dos cidadãos significam os limites do seu Estado. Dentro dessa lógica, o Estado brasileiro só não ultrapassa o limite que tanto criticamos, qual seja, não ser um estado de bem-estar a todos os seus cidadãos, porque esse é o limite dos seus cidadãos – ou pelo menos o da maioria deles. Se isso parece falacioso, proponho que se imagine a resposta que teríamos se fizéssemos a seguinte pergunta à maioria dos brasileiros: o que você acha mais importante, o bem-estar geral ou o seu bem-estar individual?

Será que é necessário relembrarmos aqui banalidades individualistas e contrárias ao bem-estar geral, tais como estacionar o carro em vagas reservadas para deficientes físicos; consumir álcool e dirigir assim mesmo, burlando através de aplicativos a Lei Seca; sonegar imposto; lucrar uma bolada em algum investimento financeiro sem ter de derramar uma gota de suor enquanto milhões de concidadãos trabalham de sol a sol para não ganharem o suficiente sequer para alimentar os filhos; ou, como bem sintetizou o historiador pop Leando Karnal, “colar do colega durante a prova de ética”? Agindo assim, instituímos apenas estados, reais e de péssima qualidade aliás,mas de forma alguma o Estado que alhures idealizamos.

Seria bem mais corajoso, sem dizer minimamente justo com o Estado que deliberadamente criticamos, se nós, brasileiros, assumíssemos que, em primeiro lugar, não temos condições de produzir o Estado que pensamos merecer. Ainda somos uma colha malcozida de retalhos/estados egoístas, em conflito uns com os outros, incapazes de priorizar o bem-estar geral. Todavia, não nos privamos de exigir um Estado que cumpra essa tarefa independentemente de seus cidadãos. Por isso “A República” de Platão é fundamental nesse momento, pois lembra-nos de que as qualidades do Estado são as qualidades dos indivíduos que o compõem.

Resta saber, contudo, se há alguma verdade nesse desejo dos cidadãos brasileiros de que seu Estado seja realmente de qualidade, ou, antes, isso é somente uma mentira politicamente correta que contamos uns aos outros para encobrir a obscenidade de desejarmos, no final das contas, um estado bom apenas para nós mesmos, e que dane-se a totalidade. E se, para além de qualquer platonismo, qualquer comunismo (com ou sem aspas), essa coisa chamada bem-estar só faça algum sentido concreto para nós se for distribuída desigualmente?

Se for assim mesmo, ao menos deveríamos deixar de culpar o Estado, que, como ensinou o pai da filosofia, é apenas o resumo da ópera dos nossos verdadeiros estados individuais. Seria então menos hipócrita se, em vez de chamarmos o nosso Brasil de “República Federativa”, parafraseássemos o velho nome do nosso país, auto intitulando-nos assumidamente de “estados desunidos do brasil”, assim mesmo, tudo com letras minúsculas, para ao menos não esquecermos o tamanho da nossa capacidade ou desejo de constituirmos um Estado.

Uma crítica da ideologia pós-colonialista

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Imagem: The Sale of Venus – Lili Bernard

O pós-colonialismo, surgido nos anos 1970 como um conjunto de teorias acadêmicas cujo objetivo era analisar os efeitos que as nações colonizadoras, sobretudo as europeias, deixaram na cultura dos países colonizados, hoje em dia, entretanto, jaz vulgarizado em uma problemática ideológica multiculturalista que orbita estreitamente em torno do direito das minorias – étnicas, sexuais, religiosas etc. – de narrarem, livres de qualquer crítica, as suas próprias experiências singulares. Slavoj Žižek, no livro “Às portas da revolução”, mais especificamente no capítulo chamado “Direito à verdade”, faz uma crítica dessa ideologia pós-colonialista que, a meu ver, vale a pena ser ecoada, por mais que o discurso politicamente correto exija ou apologia ou silêncio a respeito dela.

E isso porque, para Žižek, uma crítica da ideologia “nos obriga a inverter a frase de Wittgenstein, ‘do que não se pode falar, deve-se guardar silêncio’, para ‘o que não se pode falar, não se pode calar’”. O que o filósofo esloveno quer salientar com essa inversão é que, antes de se pretender dizer toda ou “mais verdades” sobre determinado fenômeno, o fundamental no discurso que não se cala diante da proibição ética/política é dar voz ao excesso inerente a esse mesmo fenômeno que, se por um lado o ameaça, por outro o completa. Além do que, uma crítica que não vai além do que critica, isto é, que não se aventura a dizer mais do que o criticado “permite”, faria um trabalho tacanho demais.

A primeira parte da crítica žižekiana da ideologia pós-colonialista recai sobre os próprios acadêmicos pós-culturalistas contemporâneos. O filósofo, em primeiro lugar, lembra-nos de que “a grande maioria dos acadêmicos ‘radicais’ da atualidade, silenciosamente conta com a estabilidade de longo prazo de uma posição de trabalho segura”. E isso para dizer que eles, quando lidam de modo politicamente correto com questões de sexismo, gênero, racismo, xenofobia, exploração dos trabalhadores etc., estão na verdade presos “a um ritual compulsivo cuja lógica oculta é: Falar o máximo possível sobre a necessidade de uma mudança radical, para nos assegurarmos de que nada realmente vai mudar!”.

Ou seja, as questões com que grande parte dos acadêmicos pós-colonialistas se ocupam, e para as quais buscam “soluções” teóricas, é melhor que, na prática, não encontrem solução, pois só assim, mantendo vivo o problema de que tratam, eles manterão pertinentes as suas pesquisas e, consequentemente, os seus privilegiados salários acadêmicos. E isso porque, critica Žižek, suas escolhas e atos já são “um ato dentro das coordenadas ideológicas hegemônicas”. Dito de outro modo, eles são concretamente o mundo colonizado a respeito do qual fazem abstrações teóricas descolonializantes. Para Žižek, são como o pós-moderno padrão, cuja lógica é “vamos continuar mudando algo todo o tempo para que, globalmente, as coisas fiquem iguais”.

Dessa visada, pode parecer que Žižek está dizendo que somente aqueles que não têm nada a perder poderiam abordar a realidade de modo autêntico. “Só que não!” Face à inautenticidade dos acadêmicos pós-colonialistas do Primeiro Mundo, o filósofo faz um elogio aos ideólogos e práticos do Terceiro Mundo. Estes, pelo menos assumem mais honestamente o fato de serem cativos das coordenadas globais do capitalismo. E aceitar corajosamente que se é parte do problema com o qual se está envolvido, porventura não é começar justamente por aquele excesso intrínseco que todavia pede desesperadamente para que se cale a respeito de si?

Já a segunda parte da crítica žižekiana da ideologia pós-colonialista ataca o hoje popularizado – e por que não dizer sacralizado? – “direito de narrar”. Para Žižek, o Calcanhar de Aquiles do direito de narrar é que ele usa “uma experiência particular singular como argumento político”. Por exemplo: só um jovem pobre gay latino-americano pode dizer o que significa ser um jovem pobre gay latino-americano. Entretanto, adverte o filósofo, “tal recurso a uma experiência particular que não pode ser universalizada é sempre, por definição, um gesto político conservador”. E o perigo disso é que, se qualquer um pode se valer de sua experiência singular para se justificar, pode-se com isso ser justificado experiências abomináveis. Dentro dessa lógica absolutamente permissivista, deveríamos nos calar diante de muçulmanos radicais que matam seja lá quem for. Afinal… não sabemos o que é ser um muçulmano radical.

Mutatis mutandis, a crítica do pós-colonialismo e do pós-modernismo se confundem. A pós-modernidade é conhecida por ser a Idade onde inexistem certezas absolutas, verdades universais, ou, nietzschianamente falando, a era na qual “Deus está morto”. O problema é que, aponta Žižek, sem a referência a uma dimensão universal de verdade, o que resta é uma profusão de perspectivas, de narrativas, que, no final das contas, dá espaço à “narrativas ridículas”, tais como “a supremacia da sabedoria aborígene holística”, e o que é mais grave, o desprezo à ciência como se se tratasse de “apenas mais uma narrativa entre as superstições pós-modernas”.

Para escapar a esse relativismo, que, como vimos, pode facilmente endossar absurdos, Žižek propõe que qualquer abordagem pós-colonialista deve estabelecer a priori critérios externos à narrativização – atitude paradoxalmente contrária à ladainha pós-moderna pós-colonialista. Retomemos o exemplo anterior. Um jovem pobre e gay latino-americano narrando a sua experiência existencial a um grupo de senhores ricos heterossexuais europeus. O critério que estes têm de preestabelecer é o seguinte: nada do que aquele narrar será alienígena a eles, às suas possibilidades de compreensão. Afinal, “jovem” só faz sentido contraposto a “velho”; “pobre”, a “rico”; “gay”, a “heterossexual”; e assim por diante.

Ainda que somente negativamente, uma pessoa pode, em determinado nível, compreender a experiência existencial singular de outra, afinal, estamos falando de seres humanos que a priori pertencem a um universal comum, qual seja, a humanidade. Desse modo, o medo pós-colonialista de que a comparação de singularidades as anule, atenta justamente contra o fundo comum sem o qual a própria ideia de singularidade deixa de fazer sentido.

Para esclarecer melhor o seu argumento, Žižek vale-se provocativamente da defesa politicamente correta da singularidade do Holocausto. Contra aqueles que acham que comparar, que relativizar a ignomínia nazista é inadmissível, o filósofo sustenta que “sim, o Holocausto foi singular, mas a única maneira de estabelecer essa singularidade é compará-la com outros fenômenos similares”. A provocação do autor ataca justamente a proibição à comparação, pois, nas palavras dele, “a suspeita atormentadora que emerge [da proibição à comparação] é que, se nos fosse permitido comparar o Holocausto com outros crimes similares, este seria privado de sua singularidade”.

Ora, se algo, alguém ou grupo desfruta de singularidade, o faz não porque foi resguardado de ser relativizado, comparado, mas, antes, porque pode sê-lo, sem que essa singularidade corra o risco de ser solapada. O zelo pós-culturalista em respeito às singularidades das narrativas na verdade é covarde: é o medo de que as suas “singularidades” não se sustentem diante de singularidades minimamente diversas.

Pós-culturalismo corajoso é aquele que garante a singularidade de uma narrativa, de um fenômeno, justamente através do universal, do comum de que eles participam, ainda que seja da essência de uma singularidade resistir internamente a isso. A universalidade, fantasma à ideologia pós-culturalista, muito antes de comprometer uma singularidade, na verdade traz à luz o seu excesso, “aquilo” do singular sem o qual ele não é; ou, lacanianamente falando, “aquilo mais do que ele mesmo” que, entretanto, faz com que ele seja justamente o que é: uma singularidade dentro do (ou de um) universo.

Povo desmaquiavelizado: povo impotente.

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Dizer que é errado os ricos e poderosos oprimirem cruelmente o povo em busca de mais riqueza e poder – em vez de produzirem uma sociedade mais justa, igualitária, blá-blá-blá -, porventura não é como, a despeito da natureza, decidir que é errado a água (ao nível do mar…) ferver a 100°C, e não a 50? Assim como seria em relação à ebulição da água, é muita ingenuidade o povo desejar que a classe dominante não aja conforme a sua natureza, que é dominar e nada mais. Dessa perspectiva, o povo que, dominado, segue achando que os dominantes agem erradamente; que depende da boa vontade dos poderosos a liberdade e felicidade do povo; este povo merece a dominação que sofre, pelo menos até levar à cabo a sua própria natureza, que nasce no desejo de não ser dominado; e que vive somente na luta contra a dominação.

Desde Nicolau Maquiavel sabemos que a sociedade é composta pela relação conflitiva, e sobretudo amoral entre “grandes” e “povo”; cada um com sua natureza própria. Aqueles, dominar; este, não ser dominado. E o trabalho do filósofo renascentista foi justamente ter retirado dessa relação toda a velha moralidade que orbitava entre bem e mal, certo e errado, falso e verdadeiro. Moralidade esta que desde a antiguidade raptava a realidade da política. Retomando a nossa analogia, assim como a água, em determinada pressão e temperatura, entra em ebulição, assim também os grandes, em sociedade, oprimem o povo; tão necessariamente quanto as leis físicas! Dizer que isso é errado, convenhamos, é preferir quimeras em lugar do real. E o amargo preço dessa ilusão, pago inescapavelmente pelo povo, é justamente uma maior liberdade aos grandes dominadores, pois estes, em momento algum, alienam-se moralmente da – nem deixam de investir politicamente na – sua natureza dominadora.

Embora o desejo – e a ação objetiva! – dos grandes seja dominar o povo, e para isso precisem roubar descaradamente liberdades e direitos populares, a natureza do povo não é dominar os grandes, mas, assimetricamente, desejar não ser dominado. Entretanto, ensina Maquiavel, o desejo popular de não ser dominado, para se realizar, precisa se converter em luta política objetiva por liberdade. Não obviamente para circular livremente dentro do universo dos grandes – não como queria Lula: que o povo brasileiro fosse “livre” apenas para comprar eletrodomésticos e viagens ao exterior, coisa que em verdade só alimentava o bolso e o universo dominador dos grandes -, mas liberdade para lutar contra os grandes, contra o natural desejo deles de dominação.

O povo fica aquém de sua própria natureza enquanto reclama da dominação que sofre; enquanto apenas acusa os grandes – quase sempre vitoriosos – de serem maus, desumanos, gananciosos, etc. Ora, quando o povo, parte envolvida no conflito político, não atualiza a sua potência natural, ao passo que os grandes, a outra parte, o faz “sem dó nem piedade”, não é mistério algum qual parte sairá, e deverá sair vencedora. E, para além do ressentimento popular, não há nada de errado nessa vitória dos grandes, uma vez que o real é o conflito entre eles, e que vence quem realiza melhor a sua própria natureza.

Da perspectiva dos grandes empresários, banqueiros, latifundiários, por exemplo, só pode parecer patético, ignorância ou ressentimento impotente o povo crer que os grandes deveriam deixar de dominá-lo e desejarem, como o povo, o fim da dominação e a liberdade irrestrita. A imperdoável ingenuidade popular é precisamente crer que os grandes devam ser como o povo; que há algo de errado em os grandes serem como são. Não! O fato de os grandes desejarem dominar é como a água ferver a 100°C, ora bolas. Agora, o fato de o desejo último do povo ser a liberdade em relação à dominação dos grandes parece não ser tão claro assim para o próprio povo. “Em que mundo você pensa que vive?”; “Quem você pensa que nós somos?”; “Você conhece a realidade e sabe como lutar dentro dela?” – perguntariam justamente os grandes ao povo.

Algo realmente errado é o povo achar errado os grandes agirem como agem! Para sair desse erro, contudo, a primeira coisa que o povo deve fazer é reconhecer, e maquiavelianamente!, que os grandes, para muito além do bem e do mal, do certo e do errado, do falso e do verdadeiro, fazem unicamente o que a sua natureza prega. Fosse de outra forma, isto é, se os grandes ou não quisessem dominar, ou fossem definitivamente eliminados pelo povo, isso significaria o fim da sociedade ela mesma, que, como ensina Maquiavel, é o resultado do conflito político entre grandes e povo.

Desse modo, o desejo acertado do povo, ou seja, a realização plena de sua natureza, deve ser: ser tão ou mais forte que os grandes. Não, como seria ingênuo pensar, que os grandes devam ser fracos para serem finalmente vencidos. E isso porque é somente dentro dessa batalha, árdua e, como ensinou Maquiavel, amoral por natureza, que qualquer vitória do povo no sentido de sua liberdade terá algum valor; e, o mais importante, constituirá uma verdadeira sociedade. Não mais uma sociedade utópica, na qual o povo contaria com a benevolência de seus oponentes; na qual é errado os mais potentes vencerem os mais impotentes na luta da qual ambos não têm como escapar; mas sim uma sociedade onde cada lado do sempiterno conflito político atua com toda a sua potência contra a potência do outro lado.

A sociedade definitivamente não é o lugar de os indivíduos serem livres e felizes gratuitamente, como algum deus bom poderia ter desejado. Antes, ela é a árdua e humana conversão do combate bárbaro-animal, no qual uns aniquilam definitiva e violentamente outros, em conflito político, onde as diferenças podem coexistir, todavia ao preço de uma sempiterna luta de forças. O fato de os grandes liderarem esse conflito na maior parte das vezes não deve ser moralizado, considerado um erro, um mal, porquanto o moralismo custa sempre muito mais caro do que aceitar o real amoralmente. Todavia, muito embora o povo inadvertidamente predique moralmente a ação daqueles que o domina, seu primeiro “acerto” político deve ser reconhecer o “erro” enquanto seu. E esse erro é não ter feito o seu dever cívico básico, isto é, não ter sido, e a qualquer preço, tão ou mais forte que o seu oponente opressor.

Trump e o maquiaveliano retorno à origem.

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Donald Trump presidente dos Estados Unidos é um trauma político inclusive para os seus próprios eleitores, pois o bilionário venceu não por conta de virtude política alguma, mas, ao contrário, justamente pelo seu despotismo escancarado. A defesa pública e violenta da superioridade branca, masculina, heterossexual e aristocrata baseada apenas na opinião contingente do próprio Trump é o que senão a reencarnação à la americana do despótes? A melhor coisa a ser feita a partir do resultado das eleições norte-americanas, e talvez a única, é entender por que a nudez do déspota venceu a fantasia do político.

Traumático, sobretudo, é que, do belvedere da crise de representatividade política que boa parte do mundo civilizado atravessa, a escolha por Trump seja a mais racional, uma vez que, como disseram muitos e esclarecidos comentadores, “Hilary é o mal com máscara; Trump, o mal desmascarado”. Assim como, psicanaliticamente, não se supera um trauma sem atravessá-lo corajosamente, assim também, politicamente, a superação da atual crise de representatividade parece estar exigindo que se comece justamente pela má-representatividade, de forma assumida, cruelmente desnudada.

Se os políticos não conseguem mais representar os seus eleitores como estes esperam, mas, como cada vez mais se vê, asseguram prioritariamente os interesses daquilo que o Ocuppy Wall Street chamou de o 1%, é porque a relação política entre a massa de representados e seus representantes está corrompida. E como se ver livre do inimigo votando justamente nele? Trump foi a alternativa apolítica, e por isso mesmo trágica, para esse dilema. Como, entretanto, a tragédia trumpeana pode ajudar a resolve o problema da corrupção da representatividade política?

Nicolau Maquiavel dizia que para se combater a corrupção em uma república era necessário um retorno à origem dessa república. Um retorno lógico, e não cronológico; não farsesco, mas, autenticamente trágico. Para o filósofo italiano, Roma só era a maior e mais “eterna” porque tinha a virtude de retornar sistematicamente à sua origem trágica, qual seja, o fratricídio de Remo por Rômulo. Mutatis mutandis, não estão os americanos fazendo exatamente isso com a sua res pública ao elegerem Donald Trump, isto é, dando um maquiaveliano “passo para trás”, como quem toma distância para o salto necessário, passo retrógrado sem o qual não superarão o abismo da corrupção que percebem entre eles e os seus representantes políticos?

Para Maquiavel, uma república é virtuosa enquanto suas leis são capazes de serem sustentadas por suas instituições. O problema é que as leis são dinâmicas, mudam conforme a necessidade pública, mas as instituições, ao contrário, são estáticas. Desse modo, com o tempo, as instituições não conseguem mais fazer valer as leis. E é aí que cresce o vício da corrupção. Tentar resolver tal corrupção sem retornar à origem seria o mais abjeto reformismo; algo como dar uma demão de tinta nova sobre a velha casa carcomida. Retornar ao momento fundacional, em troca, é fazer a ruína ruir, fortuita e totalmente, para só então haver a oportunidade de se reconstruir a res pública desde seus alicerces.

E isso porque, segundo Maquiavel, é só no ato fundacional de um estado que lei e instituição coincidem. Somente nesse átimo não há espaço para a corrupção. No exemplo excelente do filósofo, Roma ressincronizava  leis e instituições, e portanto se via livre da corrupção, sempre que retornava à sua raiz violenta/fratricida, recolocando-se a questão fundamental, qual seja: Rômulo não mataria Remo por quê? Como, porém, Rômulo cometeu o fratricídio, os romanos reencontravam nas respostas que davam  a essa pergunta a razão de ser do seu estado.  Por mais angustiosamente trágico que o fosse o “revival” lógico desse “momentum” violento fundacional, nele a “Cidade Eterna” refundava-se livre da corrupção.

Agora, como Trump presidente faz esse serviço aos norte-americanos? Obviamente, a razão fundacional dos Estados Unidos é outra que a de Roma. Foi para pôr fim ao despotismo colonizador do Império Britânico que os Estados Unidos se independizaram. Jaz aí a razão de ser da República Constitucional Federal dos Estados Unidos da América. E é a ela que, segundo a pragmática maquiaveliana, os sobrinhos do Tio Sam retornam ao se sujeitarem democraticamente a um governo como o de Trump. O apolitismo declarado do magnata topetudo porventura não sujeita novamente os EUA a espécie de rei despótico todo-poderoso, algo como outrora estavam sujeito aos impérios da coroa britânica?

Elegendo Trump, os norte-americanos escolheram o protagonista perfeito para a tragédia que com sorte fará com que reencontrem – não se sabe todavia em que ato – a razão de ser do polités, e a civilizada vantagem deste sobre o despótes. Assim fizeram os antigos gregos quando inventaram a política. Assim também precisam fazer os americanos – mas não só eles! -, pois se a política perde o seu jaez virtuoso, é somente porque o despotismo, embora espetacularmente presente, mascara-se, e isso para poder ser tão ou mais despótico.

A razão de ser da política é ser a alternativa civilizada ao despotismo. No entanto, quando a civilização escolhe um déspota declarado, isso se dá não porque optaram entre este e um político stricto sensu, mas, antes, porque não havia político stricto sensu na jogada, somente déspotas, um com máscara, o outro sem. Mesmo que o que as pessoas menos desejem para si mesmas é estarem sujeitadas aos desígnios de um déspota, quando isso é inevitável ao menos hão de preferir um algoz que não dissimule o seu despotismo. Hilary seria tão ou mais despótica que Tump, mas os americanos estariam estrategicamente alienados disso. Por pior que seja, a verdade venceu, ainda que traumática.

O “White Trash”, isto é, a massa de eleitores bancos, homens e sem formação superior que elegeram Trump fizeram quiçá o maior favor ao futuro político daquele país. Como não tinham mais confiança nos representantes que há muito os decepciona; como a representatividade política é hoje uma instituição corrompida; agora ao menos os norte-americanos não vão se decepcionar em termos de representatividade. Elegeram o real em sua crueza desnudada. Mesmo que o “White Trash” americano desconheça Maquiavel, a sabedoria do italiano os atravessou intuitivamente nesse retorno trágico à origem despótica. E isso porque quando o polités está doente de corrupção, precisa de doses traumáticas de despotismo para civilizar-se novamente.

 

Eu, o Brasil, e a filosofia.

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Dois mil e quinhentos anos é o tempo da filosofia no mundo. Faz pelo menos vinte que ela é presente na minha vida. E há três eu decidi graduar-me nela. “Mas, por quê?” – perguntavam-me à época. A resposta banal que eu dava era que a minha “philia” pela “sofia” era tamanha e tão antiga que eu precisava conhecê-la intimamente antes de morrer, afinal, não é bom que seja assim com as coisas que nos fazem felizes?

Em 2014, quando eu então ingressei na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, o senso comum acerca da filosofia me dizia, através dos comentários de familiares, amigos e conhecidos, que essa era uma profissão que não me daria dinheiro algum, muito embora fosse “bem interessante”. “Ainda bem que vc já tem uma profissão, pois sobreviver de filosofia vai ser bem difícil”, era o texto – ou o subtexto – que eu mais ouvia.

A despeito dessas pessoas, o meu objetivo íntimo com o “amor ao conhecimento”, era, e ainda é, ser professor/pesquisador em uma universidade, e pública, de preferencia. Objetivamente, o salário e as condições de trabalho, na época, me pareciam bastante dignos, e, subjetivamente, eu não tinha dúvida de que era a melhor ocupação até a minha morte, porque, citando Montaigne, “filosofar é aprender a morrer”.

Já no governo Dilma, contudo, a coisa começou a mudar. A terceirização de professores passou a ser presente no horizonte das universidades públicas brasileiras. Em outras palavras, as universidades não teriam mais pesquisadores em filosofia, dentre cujas atividades estaria dar aulas, mas simples horistas, funcionários contratados por outras empresas prestando serviço às universidades, como já acontece com a limpeza e a segurança dessas instituições. Uma quase “uberização” de tão nobre profissão.

Entretanto, o meu amor ao “amor ao conhecimento” não me deixou afastar um milímetro sequer dos meus estudos filosóficos. Resistência! Antes, a crise que aterrissava na universidade pública, e por consequência na da pista essencialmente crítica da filosofia, eram cada vez mais compreensíveis, e sobretudo suportáveis, quanto mais eu estudava Maquiavel, Espinosa, Kant, Hegel, Marx, entre tantos outros. Paradoxalmente, a própria faculdade de filosofia prometia me salvar da crise nas faculdades de filosofia.

Só que a coisa piorou mais. A partir de 2015 o espetáculo do impeachment que ocupou o palco da vida brasileira, muito antes de tirar Dilma da presidência, de imediato já “impitimou” a maioria das pessoas da presidência de suas próprias razões. “Intervenção Militar Já” e “Monarquia no Brasil”, só para citar duas das muitas barbaridades que passaram a ser inacreditavelmente lógicas na terra brasilis, implicitamente ameaçavam o horizonte do pensamento crítico e do culto ao saber.

A história nos lembra de que, diante de reis e ditadores, aqueles que questionam a realidade são enforcados, torturados, ou, com sorte, exilados. Agora chegou a vez de serem lumpemproletarizados! No entanto, novamente, o tsunami irracional que passou a assolar o  Brasil apenas me dizia que a torre da filosofia era o lugar mais seguro, não só para mim, mas para quem não quisesse se afogar na barbárie. Até porque a barbárie só é observável do belvedere da civilização, cujos arquitetos excelentes foram aqueles gregos filósofos da antiguidade. Do contrário, a barbárie é o real sem nome, sem conceito, e portanto sem escapatória.

Porém, em 2016, com o golpe de estado dado pela velha oligarquia política/econômica, o pensamento crítico deixou de ser um inimigo implícito do então poder protagonista. O “Escola sem Partido”, e sobretudo o fim do ensino de arte, sociologia e filosofia nas escolas, golpisticamente travestido de “desobrigatoriedade”, são ações concretas, não só contra o conhecimento, como principalmente contra o amor a ele.

Hoje em dia é o Estado que me diz, verticalmente e com todas as suas tortas letras, que filosofia é um péssimo negócio. E o terremoto da razão tupiniquim que começou em 2015, em 2016 faz com que o fato de alguém estudar filosofia – mas também sociologia, história, artes – seja considerado falha de caráter. “Pobre”, “vagabundo”, “comunista”, e até mesmo “petista” passaram a ser sinônimos de quem se ocupa com ciências sociais ou arte, claro, de acordo com a (des)razão que impera no Brasil atualmente

E com a PEC 241, mais conhecida como “PEC do fim do mundo”, o fato de se ter uma graduação em filosofia, mais do que antes, não dará dinheiro mesmo, e agora, pelo menos durante os próximos 20 anos. Sem dizer que, ideologicamente, será uma chaga purulenta da perspectiva da classe golpista dominante. Só que o domínio dessa classe, embora notadamente econômico e político, para por aí. Pois o desprezo dela em relação à razão e ao saber, embora fantasiado de senhor,  não deixa de ser escravo, e o que é mias grave, do pior de si mesma.

Se, diferente do que planejei em 2013, o meu destino em filosofia, no Brasil, a partir de 2016, é ser pobre e marginalizado, que assim seja. Tamanha adversidade pode inclusive fazer com que a filosofia brilhe mais forte, não só em mim, mas, com sorte, no meu país, mais do que se o pensar se encontrasse em condições totalmente favoráveis, o que, na verdade, estimula-o menos. Afinal, parafraseando o dito popular, o que é proibido e marginalizado por uma ideologia retrógrada e golpista é muito, muito mais gostoso, sem dizer necessário.

O protofeminismo de Montaigne

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Michel de Montaigne, em pleno século XVI, inventou o “ensaio”, estilo literário cuja característica é a expressão de um ponto de vista pessoal e subjetivo sobre um tema; mais especificamente, um modo de escrita que orbita em torno do “eu”. Até então sem espaço de expressão para além das esferas filosófica, científica e poética, e cem anos antes de Miguel de Cervantes abrir o universo do romance com o seu Dom Quixote de La Mancha, este “eu” teve de ensaiar-se para além das tradicionais Torres de Marfim literárias. E nessa aventura algo inédito na intelectualidade de até então surge: a consideração do inferior lugar reservado à mulher enquanto fruto da deliberação masculina apenas.

O que, entretanto, levou Montaigne a ensaiar em si mesmo espécie de protofeminismo, visto que, sendo homem, nobre, rico, branco, heterossexual e cristão, não lhe faltavam razões para dar seguimento à tradição da velha e forte superioridade masculina? Arrisco dizer que, na onda de um famoso contemporâneo seu, o filósofo René Descartes, cuja máxima era “Eu penso, logo eu existo”, Montaigne fez algo como “Penso o eu, logo outros ‘eus’ existem”. E com essa existência pessoal e subjetiva pluralizada, os costumes de sua época não escaparam de serem relativizados. Dentre eles o sexismo secular de que o próprio Montaigne, antes de pensá-lo ensaisticamente, era reprodutor inadvertido.

Escrevendo livremente da proa de seu “eu”, Montaigne traz à superfície o mundo masculino, demasiado masculino, fundamentado em ideias tais como: “as mulheres não são muito aptas a tratar das matérias de teologia”, visto que “não lhes custa passar por cima de uma razão, tanto quanto por cima de outra”; ou, que “é uma tendência natural das mulheres discordar dos maridos […] dada a fraqueza habitual desse sexo”. Seus “Ensaios” explicitam muitas considerações desse calibre, que, entretanto, não precisamos citar para que fique clara a “ideia masculina de mulher” presente no século XVI, e que infelizmente até agora sobrevive, embora  desde sempre condenável.

Entretanto, é somente encarnando e atravessando esse sexismo assaz naturalizado trazido à letra por Montaigne que podemos acompanhá-lo nos seus primeiros passos para longe dessa vil naturalização. Permanecer com ele ao longo de suas sentenças machistas é um modo de encontrar algo da “arché” do movimento intelectual moderno que constituiu a ideia da igualdade entre os sexos que até hoje, no entanto, resta inconclusa. Algo não permanece no lugar do “eu” de Montaigne depois que ele, falando dos costumes de seu tempo, diz, por exemplo, que “educamos as mulheres desde a infância para os preparativos do amor: sua graça, seus adereços, seu saber, suas palavras, toda a instrução delas só tende a esse objetivo”.

Na tentativa de se afastar desse “eu” sexista que acabava de se assumir literariamente, Montaigne ainda tropeça no seu próprio machismo com frases que visam justamente superá-lo, tais como: “é preciso soltar-lhes um pouco as rédeas”; “temos de deixar boa parte de sua conduta à própria sensatez delas”; ou ainda pior, “ensinemos as mulheres a se valorizarem, a se estimarem, a nos divertir e a nos embair”. Todavia, algum “perdão” começa a ser possível quando ele finalmente reflete que “as mulheres têm infinitamente a temer nossa dominação e nossa posse integral: depois que se entregaram totalmente à mercê de nossa fé e de nossa constância estão um tanto em perigo”.

Na promenade que iria afastá-lo do lugar comum usucapido pelos homens, clara quando Montaigne realiza que “nossos pais formavam o comportamento de suas filhas para a vergonha e o medo, e nós, para a segurança, muito embora os corações e os desejos sempre foram iguais”, o ensaísta localiza não somente a gênese da dissimetria entre homens e mulheres na educação que ambos recebem, como também a subsistente, porém negada, igualdade entre os sexos. Seu “eu” é obrigado a reconhecer que, enquanto os homens gozam de plena liberdade, “os costumes fazem em geral a lei tão dura para as mulheres e tão escravizante que a mais remota relação com um estranho é considerada tão grave quanto a mais íntima”.

Montaigne faz-se então a pergunta que, se não é suficiente para torná-lo um feminista, pelo menos tem a virtude livrar-lhe do latifúndio do machismo de até ali: “de onde pode vir essa autoridade soberana e usurpada que nos arrogamos sobre as mulheres que, à própria custa delas, nos garantem seus favores?” Tanto a secularidade da qual o ensaísta era conhecedor profundo, quanto o dogma religioso do qual era crente devotado, não bastavam mais para justificar ao “eu” de Montaigne a submissão das mulheres aos homens. Tanto que vaticina: “As mulheres não estão nada erradas quando recusam as regras de vida que se introduzem no mundo, porquanto foram os homens que as fizeram sem elas.”

Passa a defender que “ouçamo-las descrever nossos assédios e nossas conversas” e que “não lhes oferecemos nada que não saibam”. Uma evolução e tanto para um “eu” que, páginas antes, sustentava que em matéria de razão elas não eram tão aptas quanto os homens. Não obstante esse singelo progresso, o sexismo de Montaigne insinua-se novamente, como que ferido por si mesmo. Tentando compreender a igualdade entre os sexos a qual a sua escrita o levava, pergunta-se: “seria isso que diz Platão, que outrora elas foram rapazes libertinos? Aqui podemos perceber o autor tentando encontrar a igualdade que ensaiava entre homens e mulheres no fato de “elas”, em algum momento, terem sido “eles”.

Montaigne, porém, não deixa de trilhar o caminho protofeminista aberto nos seus ensaios. Sobre a sexualidade feminina, o grande tabu da época – suplantado somente pela sexualidade infantil revelada por Freud quatro séculos mais tarde-, o autor escreve que “a própria ideia que fazemos sobre a castidade delas é ridícula”. Ora, coloca Montaigne, assim como “os deuses forneceram-nos um membro desobediente e tirânico, da mesma forma, proveram as mulheres de um animal glutão e ávido”. Vemos aqui que o ensaísta se afasta do ideário de seu tempo na medida em que não mais entende a libido feminina como se fosse pecaminosa, problemática, nem tampouco diversa da masculina.

Criticando a exigência masculina sobre as mulheres que o seu tempo havia naturalizado, todavia às custas da liberdade delas – percepção que só foi possível a ele através da livre expressão de seu si -, Montaigne diz a todos os homens do mundo e a ele mesmo que “seria preciso que elas se tornassem insensíveis e invisíveis para nos satisfazer.” Porém, como para o “eu” ao qual chegou o autor depois de muito ensaiar-se, “os homens e as mulheres, salvo a educação e os costumes, são feitos do mesmo barro”, a invisibilidade e a insensibilidade delas é tão antinatural e imprópria quanto a dos homens. Não mais fruto da costela masculina, como a tradição teológica sempre defendeu, Montaigne deixa escrito nos seus ensaios que a mulher é tão obra do Oleiro divino, ou, espinosanamente falando, da natureza, quanto o homem.

Se, por um lado, o nobre do Castelo de Montaigne, pelo fato de muito ter replicado o sexismo de seu tempo ao descrevê-lo ensaisticamente não merece ser chamado de feminista, por outro lado, contudo, temos de reservar a ele um lugar distinto que não o continente machista povoado por todos os homens, desde a antiguidade até o seu tempo. E mesmo que seja – e deva ser! – uma afronta ao feminismo defender que este movimento só foi possível porque um dia um escritor homem e ensimesmado questionou o machismo do qual ele mesmo, ao modo de boiada, era constituinte, Montaigne todavia é notável por ter produzido quiçá a primeira rachadura na secular muralha do Império Masculino.

Retornando às raízes do Estado com Thomas Hobbes

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“Quem tem medo do Lobo Mau?”, cantarolava Chapeuzinho Vermelho enquanto cruzava o bosque, não porque destemesse verdadeiramente a fera, mas, ao contrário, porque precisava se alienar desse temor para seguir caminhando. Visto que “homo homini lupus”, isto é, que o homem é o lobo do homem,  como disse o dramaturgo romano Plauto duzentos anos antes de Cristo, e como repetiu categoricamente o filósofo inglês Thomas Hobbes dezenove séculos depois, os seres humanos têm medo do Lobo Mau na medida em que sabem que o maior perigo – o lobo – é o outro – humano.

Assim como Chapeuzinho, todavia nas nossas urbes globalizadas, cantarolamos para nos distrairmos do perigo que somos uns para os outros. Só que fora da ficção, entoar melodias ingênuas não basta. Hobbes deixou bem claro no seu “Leviatã” que precisamos da pesada ópera do Estado Civil para que o frágil espetáculo das nossas vidas prossiga com um mínimo de segurança. Usamos o “earplug” leviatânico para deixar de ouvir o ruído insuportável do “homo homini lupus”, que na teoria do filósofo inglês se eternizou no “medo da morte violenta”, o fundamento seu Estado.

A gravidade dessa fundamentação, todavia, encontra severa resistência nos sujeitos burgueses-tardios que somos. Parece uma afronta até assumir que nos organizamos civilmente por causa do medo de sermos mortos violentamente – muito embora tal temor de fato nunca tenha desaparecido do nosso horizonte. Antes, nos satisfazemos com a ideia de que o Estado está aí apenas para garantir à propriedade privada, para regular as relações trabalhistas, para assegurar o cumprimento de contratos comerciais e civis que os indivíduos travam entre si, e coisas desse tipo.

Sem dizer que, hoje em dia, nesse nosso mundo multiculturalista, demasiado multiculturalista, a função primordial do Estado é como que pervertida no sentido de, antes de tudo, garantir que os gays possam casar e adotar crianças; que as mulheres não sejam oprimidas pelos homens; que os negros tenham os mesmos direitos que os brancos; que muçulmanos e umbandistas desfrutem de liberdade de crença, e por aí vai. Antes que chovam críticas à minha crítica ao multiculturalismo, declaro que não tenho dúvida de que Estado deve também atender às demandas multiculturais. Elas são muitíssimo importantes. Mas não fundamentais.

O que se pretende evidenciar na ideia de que o Estado deve se fundamentar no liberalismo e multiculturalismo, entretanto, é a distância em relação ao Estado hobbesiano cujo fundamento é livrar os indivíduos da morte violenta. Então, pergunto:  não estariam o capitalismo e o multiculturalismo fazendo as vezes da canção ingênua de Chapeuzinho Vermelho no sentido de nos alienar do perigo que nunca deixamos de representar uns aos outros, qual seja, a morte violenta? Considerando as imensas crises que nos ameaçam – ecológica, econômica, social, política, humana -, é preciso cantarolar muito para deixar de ver que seguimos sendo os nossos próprios e maiores lobos.

Embora o Leviatã hobbesiano tenha vindo ao mundo para livrar os indivíduos do perigo da morte violenta, por meio dele intentamos mais, muito mais – burgueses que somos. Desejamos, na verdade, alienar-nos da ideia desse perigo. Por isso o Estado deve ser fortuitamente a (des)unidade de uma miríade de burocracias menores e cada vez mais particularistas em vez de ser o fruto do contrato social travado por todos os indivíduos cujo objetivo primordial é impedir que sejamos mortos violentamente – ou que ao menos haja justiça no caso de sermos.

Pensando assim, todavia, nos esquecemos de que a morte e a violência combinadas subsistem, seja nas megafavelas que se multiplicam na Ásia, África e América Latina, nas toneladas de agrotóxico que consumimos nos nossos alimentos, seja ainda nas ações do Estado sempre que ele faz a manutenção de sua (des)ordem. Hobbes se compadeceria conosco pelo fato de não mais considerarmos o universal medo da morte violenta como o fundamento da nossa Constituição Civil, mas, no lugar dele, uma sorte de pseudofundamentos mais fracos e particularistas, cujo custo não obstante é outra sorte de mortes e violências que, se por um lado são menos violentas, por outro são muito mais presentes.

Talvez a dureza da ideia hobbesiana, qual seja, que fundamos nossos Estados para evitar a morte violenta, seja o arquétipo mais efetivo para evitarmos não só a própria morte violenta, obviamente, pois as estatísticas provam que dessa vulnerabilidade ainda não nos libertamos, como também as micro&múltiplas mortes que nos acossam despudorada e diariamente, tanto no ar que respiramos, na água que bebemos, na exploração que sofremos no trabalho, quanto nas imigrações forçadas por guerras e crises econômicas. Ou pelo menos para que elas não permaneçam demasiadamente desconsideradas.

Com efeito, é um proposta radical retirarmos a teoria hobbesiana do seu estado zumbi para a reencontrarmos em sua insuportável gravidade. Todavia, um retorno às raízes do Estado Moderno, à fundamentação do Leviatã que Hobbes descreveu tão bem, é urgente, pelo menos na medida em que, como muitos dizem, nunca deixamos de ser modernos. Metaforicamente, é como as árvores, que só podem “evoluir” na medida que também são, o tempo todo, as suas raízes. Se se alienassem disso, morreriam. Outra coisa não seriam que lobas de si mesmas. Como, entretanto, é o homem que é o lobo de si mesmo, o mínimo que devemos fazer é não nos esquecermos disso, radicalmente.

Maquiavel contra o golpe

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Contra a circunstancial “vitória” da oligarquia política brasileira, ou, sem papas na língua, contra o golpe, em vez de indignação, melancolia, e até mesmo apatia plena, a minha aposta radical – que retorna às raízes – é na visão política de Nicolau Maquiavel. E isso porque o inaugurador do “pensamento político moderno”, tendo revelado a essência conflitiva das relações políticas, faz-nos compreender tanto ímpeto de dominação dos “grandes” contra o “povo”, como também e principalmente o desejo de liberdade do povo, e, mais importante, o modo de construí-la a partir do conflito político ele mesmo.

Em primeiro lugar, devemos dispensar a ideia vulgar de que, para este autor, “os fins justificam os meios” apenas. Ora, quando se justifica certas causas em função de um efeito, retrospectivamente, fora do tempo em que tais causas de fato “causam”, perde-se o caráter plenamente agonístico da política. Em suma, justificar o passado através do presente é sempre um anacronismo insuficiente. Toda ação política tem de ser justificada em si mesma, no seu átimo kairológico, sem contar com “perdão” futuro algum. Reside aí um princípio de justiça muito elementar, pois, como bem coloca o filósofo Thomas Berns, quando “os fins justificam os meios” essa justificação “chega sempre tarde demais”.

Enquanto crermos que “tudo vale para se conseguir um fim”, o que por sua vez justifica inclusive as mais pérfidas tiranias, deixamos de ser agraciados com a potência republicana das ideias de Maquiavel. O pensamento do renascentista demonstra, de modo muito mais sofisticado e autojustificado que a teoria moral de Kant, o caminho para a liberdade, que na verdade é o desejo genuíno do povo, bem como o sempiterno “tecido conflitivo” da política, sobre o qual aliás essa liberdade –sempre desejada pelo povo e sempre contestada pelos dominantes- deve ser, digamos assim, “bordada” fortuitamente.

O Maquiavel republicano faz do embate entre “grandes” e  “povo” a cena excelente e sempiterna do palco político. Na linguagem pré-sociológica do autor, o “humor” objetivo dos grandes é o de dominar; enquanto o do povo é o de não ser dominado. A grande revolução trazida ao mundo por este pensador é a desmoralização do conflito político, que, para além de qualquer bem ou mal substancial, sustenta que a realização do humor essencial do povo, qual seja, a liberdade, só calha de parecer um bem a partir do conflito com o humor essencial dos grandes, qual seja, dominar.

O filósofo francês Gérard Sfez explica que a insolubilidade do conflito político na teoria maquiaveliana se deve a uma dupla assimetria. Em primeiro lugar, diz o autor, ambas as partes disputantes não querem a mesma coisa: os grandes querem dominar; o povo, não ser dominado. É importante atentar para a diferença entre os objetos desses desejos. Em segundo lugar, grandes e povo tampouco buscam a realização dos seus díspares humores do mesmo modo: os grandes dominam às custas dos direitos do povo, ao passo que este, diferentemente, só alcança a sua liberdade ao preço de todos, grandes e povo, compartilhares dos mesmos direitos.

Se cada lado do conflito quisesse a mesma coisa que a outra, por exemplo, dominar apenas, bastaria o povo “cortar as cabeças” dos grandes para instituir o seu domínio. Nesse caso, não obstante, o povo realizaria, não o seu humor essencial, que é o de ser livre, mas o humor do inimigo, que é o de dominar. O problema disso é que, excluindo o outro –os grandes- da relação política, Maquiavel nos faz ver que a própria ideia de povo se desfaz, e por conseguinte, o próprio tecido político no qual ela se inscreve agonisticamente. Pior ainda, diz o italiano, um conflito de mesmo calibre se estabeleceria no corpo político formado somente pelo povo mediante toda sorte de oportunismos particularistas.

Eliminando o seu outro, o povo perde a sua identidade política, que se torna concreta somente a partir da oposição em relação aos grandes, pois, conforme Maquiavel, o conflito entre grandes e povo é a condição de existência do fenômeno político. A realização de um não deve significar a inexistência do outro, visto que querem coisas distintas, e de modos distintos. O povo quer liberdade. Para isso precisa ter seus direitos respeitados e ampliados conforme a ideia objetiva de bem-comum, que não obstante só se revela na presença opositiva dos grandes. Já estes, querem dominar. E para tal precisam furtar os direitos povo, afastando-se da ideia de bem-comum. Entretanto, a existência do outro/povo é fundamental aos grandes. Do contrário, a quem dominariam?

A visão política de Maquiavel é tão intuitiva e universal que sequer precisamos fazer paralelos explícitos com a circunstância brasileira. O conflito entre grandes/golpistas e povo/golpeado é insuportavelmente aclarado sob a lanterna maquiaveliana. Que no Brasil os “grandes” estejam realizando o seu “humor” dominador de forma tão contundente não deve ser visto, maquiavelianamente, em termos de bem e de mal, pois a liberdade do povo só pode ser um objeto de desejo, e moralmente figurar como  um bem, porque furtada pelos grandes. Mutatis mutandis, não ser dominado é um humor que só se revela e se pode positivar contra um humor dominador. Do contrário, seria um idealismo que não faz verão no moderno pragmatismo político de Maquiavel.

Uma lição fundamental de Maquiavel é a seguinte: o povo não deve querer a extinção dos grandes, mas sim conquistar para si o poder de, agonística e politicamente, conter o ímpeto dominador deles, a ponto de ser o agente de sua própria liberdade. A empresa do povo, entrementes, precisa primeiro positivar o seu “humor” essencial, que nasce negativado na forma de “não ser dominado”. E essa positivação se dá quando o “não ser dominado” se torna  “ser livre”, ao modo da distinção marxiana entre trabalhador e proletário: o trabalhador é o agente negativo da revolução; sua positivação se dá quando ele encarna o proletário.

Ora, não basta desejar não ser dominado, pois nesse aquém negativo não se contempla o inimigo em sua obstacular positividade. Para tanto, o povo precisa conhecer tanto o seu desejo essencial, quanto o do seu oponente. Só assim, na agonia do conflito político, não desejará inadvertidamente o desejo do outro, ou seja, o humor dominador dos grandes, que faria do povo o seu próprio inimigo. Para Maquiavel, a completa falta de virtude política! Uma segunda lição de Maquiavel, portanto, é o velho “Conhece-te a ti mesmo” socrático.

Em terceiro e mais árduo lugar, temos a lição maquiaveliana do combate à corrupção das instituições republicanas que desequilibra o conflito político sempre em benefício dos grandes. Para Maquiavel, o conflito político permite a realização do humor do povo somente enquanto as leis, que estabelecem as regras do conflito político, puderem ser sustentadas pelas instituições. Só assim é possível conter os excessos da cada um dos lados, ao mesmo tempo em que ambos expressem os seus desejos. O problema, aponta o autor, é que, republicanamente, as leis se modificam em função do bem-comum, ao passo que as instituições que as devem sustentar não acompanham essa dinâmica. E é nesse descompasso que a corrupção – que prefere os grandes e pretere o povo- faz carreira.

Em solução a isso, Maquiavel propõe uma “refundação” sistemática da república. Pragmaticamente falando, trata-se de um retorno lógico, e não cronológico!, ao momento pré-legal/institucional que fundamenta a existência das leis e das instituições. Somente nesse “ground zero” a corrupção inexiste, pois só aí lei e instituição se alinham absolutamente ao modo de se confundirem. O exemplo clássico de Maquiavel é o mito fratricida de Rômulo e Remo que funda Roma, ao qual o povo romano deveria “retornar” –a cada dez anos, no máximo, vaticina o italiano- para então reencontrar a razão de ser de suas Leis e instituições.

No caso romano, uma pergunta simples e estratégica bastava para produzir o tal “retorno à origem” pré-legal que justifica tanto a necessidade da Lei, quanto o seu sustento institucional pleno: Rômulo não mataria Remo por quê? Em resposta a ela, entretanto, não devemos vir com moralismos do tipo “porque assim Deus deseja”. Antes, é a angustiosa falta de resposta que deve nos ocupar nesse exercício lógico. Ora, na inexistência de uma lei, Rômulo não comete crime algum ao matar seu irmão. Mas por que deveria haver uma lei que o tivesse proibido? Por quê? Essa resposta justifica inequivocamente tanto a existência da Lei como principalmente a necessidade de instituições que a façam valer. Do contrário, a lei passa a ser um idealismo que somente permitiria a “Rômulos” seguirem matando “Remos”.

E no caso brasileiro, que átimo pré-legal e institucional fundador devemos retornar a fim de atualizar a razão de ser da nossa república, de ressincronizar suas leis e instituições? A violência assassina fundamental maquiaveliana, irmã mais velha do “medo da morte violenta” hobbesiano, é a resposta mais fácil, todavia demasiado genérica. Façamo-nos então a mesma pergunta maquiaveliana que os romanos deveriam fazer a si mesmos, buscando no entanto uma resposta à lá brasileira: os “grandes” não devem dominar o “povo” por quê? Dito de modo mais direto ainda: a nossa oligarquia política-econômica não deve golpear o povo em função de quê? Com esta resposta encontraríamos o casamento perfeito, ainda não corrompido, entre leis e instituições, ao menos no sentido de golpistas serem barrados de alguma forma.

O atual golpe de estado dado pelos “grandes” do PMDB e do PSDB é a prova de que as nossas instituições estão aquém das leis que dizem defender. Por isso a Constituição, como se diz, está sendo rasgada. Todavia, maquiavelianamente falando, não é que as instituições estejam corrompidas, nem que sejam a sede excelente da corrupção, mas, antes, que elas apenas não estão a par da atualidade das leis que deveriam fazer valer. As atuais instituições político-jurídicas brasileiras encontrariam plena atualidade num Brasil de cem anos atrás ou mais, mas não no país pós-Lula, no qual o povo também passou a ser objeto de contemplação das leis. Usar “Maquiavel contra o golpe”, portanto, é tornar insuportável a necessidade de reencontrar a resposta para a seguinte pergunta: os grandes não devem golpear o povo por quê?

Kuntas Kinte contemporâneos

KUNTA

150 anos depois da Guerra de Secessão, cujo virtuoso resultado histórico foi o fim da escravidão de negros na América do Norte, novamente “os Estados Unidos estão em situação de quase guerra civil em torno das tensões de origem racial”, alerta Flávio Aguiar, correspondente internacional da Rede Brasil Atual. Essa crise, no entanto, está anunciada desde 2014 quando a morte do jovem negro Michael Brown por um policial branco, no Missouri, originou a mobilização “Black Lives Matter” (Vidas dos Negros Importam) e a denúncia sistemática das práticas racistas das forças policiais norte-americanas. E com as mortes, também por policiais brancos, de outros dois negros, Alton Sterling, em 5 de julho de 2016, na Louisiana, e Philando Castile, no dia seguinte, em Minnesota, a tensão racial voltou a conturbar a arena social dos EUA, com milhares de pessoas protestando nas principais cidades do país.

A “resposta negra” à “violência branca”, porém, não está dispensando a violência. Em julho de 2016, o jovem negro Micah Johnson matou cinco agentes brancos e feriu outros sete em Dallas, e, na capital da Louisiana, outros seis policiais brancos foram atacados por um negro, com três deles terminando mortos. A “barbárie negra” só não é tão bárbara quanto a “branca”, pois, conforme afirma Heidi Beirich, a líder do Centro Legal para a Pobreza no Sul, o “extremismo negro” é apenas a resposta, na “língua” do imimigo, à velha “opressão branca”. E em certas conjunturas políticas emergenciais, “a violência se torna o único modo de reequilibrar as balanças da justiça”, reconhece Hannah Arendt no seu ensaio “Sobre a Violência”, escrito em 1969.

Só que mesmo mediante a violência, a situação parece tão insolúvel dentro da sociedade americana que o “Novo Partido das Panteras Negras para Autodefesa”, um dos principais grupos separatistas negros do país, está mobilizando outros grupos com o mesmo propósito, como a “Nação do Islã” e o “Partido da Liberação dos Cavaleiros Negros”, bem como milhares de cidadãos, para a fundação de uma “Nação Negra”. Só mesmo cindindo a Norte-América em duas estes extremistas acreditam que os negros se verão definitivamente livres da brutalidade policial branca, uma vez que a simples promoção de uma reforma policial em vista da tão necessária justiça racial nos Estados Unidos defendida pelos ativistas do “Black Lives Matter” não parece promissora.

Antes de seguir pensando na eclodida crise racial estadunidense, vale a pena relembrar a “facção” (mistura de “fato” e “ficção”) publicada pelo escritor negro norte-americano Alex Haley em 1976 chamada: “Raízes: A Saga de uma Família Americana”. O personagem central do manifesto/romance é Kunta Kinte, africano nascido na Gâmbia de 1750 e criado para ser guerreiro da tribo Mandinga. Com 17 anos, o até então livre Kunta procurava madeira para fazer um tambor ritual quando foi capturado por ingleses que buscavam escravos para serem vendidos aos EUA. As primeiras humilhações do guerreira africano foram: ter sido amordaçado, exposto nu, sondado em todos os seus orifícios corporais, marcado com ferro quente e, com outros 170 negros, jogado no porão fétido de um navio negreiro por cem dias até chegar a Maryland.

Uma vez nos EUA, Kunta foi comprado por John Waller, que em primeiro lugar exigiu de seu escravo que assumisse o nome Toby, já que doravante ele seria uma “coisa” americana, e não mais um ser africano. O Guerreiro Mandinga, desde sempre orgulhoso de si e de sua origem, resistiu veementemente à alcunha americana. Porém, algumas horas de extenuantes chibatadas ao troco convenceram-no a ao menos mentir ao seu senhor que aceitava se chamar Toby. Sobrebutalidade branca que, não satisfeita em escravizar um negro, ainda por cima exige o enterro do seu passado livre.  Kunta Kinte, entretanto, em nenhum dia sequer deixou de reafirmar, a si mesmo, aos seus familiares e amigos, a sua nobre e livre, e por isso mesmo inesquecível graça africana.

A liberdade que Kunta mantinha viva sob a sua pele negra escravizada o levou a três tentativas de fuga. Como castigo teve a metade de seu pé direito amputada e e, seguida foi vendido a “preço de banana” para o socialmente desqualificado irlandês William Waller, de quem foi jardineiro e cocheiro até seus últimos dias. Nesse meio tempo, teve a permissão do seu senhor para casar-se com outra escrava, Bell, com quem tem uma filha, Kizzy, a quem ensinou secretamente a cultura e as técnicas guerreiras mandinga, pois sonhava para ela a liberdade negada aos escravos. A força e o carisma de Kizzy a aproximaram da filha de seu senhor, que, também secretamente, ensinou-lhe a leitura, o que até então era proibidíssimo a escravos. Mesmo vetada a leitura aos negros em geral, os Kinte nunca mais seriam analfabetos.

Para pagar dívidas de jogo Kizzy foi vendida. Kunta não mais veria a filha. Alhures, Ela teve um filho, Chicken George, a quem fez saber e adorar a história e os sonhos do avô guerreiro africano. A força e a grandeza da ideia de Kunta Kinte na vida de George levou-o, já no fim de sua escravizada vida, a finalmente conseguir comprar a sua liberdade. Sua esposa e filhos, entretanto, permaneceram escravos de um senhor absolutamente cruel até o final da Guerra de Secessão, em 1865, quando então todos os negros foram libertados. Todavia, mesmo livres, George e a sua família ouvem do despótico e derrotado senhor sulista: “nunca os negros serão reconhecidos como iguais a nós, os brancos”; mais ainda, que “nós, os brancos, faremos de tudo para reconquistar o que é nosso por direito divino”.

E a brutalidade dos atuais policiais brancos norte-americanos contra os negros porventura não é o eco contemporâneo daquela fatídica promessa repetida pelos combalidos escravocratas brancos, bem representada na derradeira fala do último senhor do neto de Kunta Kinte? Aqueles “derrotados” Senhores de escravos, que no entanto se tronaram os Senhores do capital, parecem não se satisfazer com o seu novo modo de subjugação: a proletarização, mais ainda, a lumpemproletarização dos ex-escravos não foi suficiente para que a elite branca mantivesse a velha ideia de sua superioridade racial. A precarização econômica da vida de milhares de pessoas não basta; assim como não bastou ao primeiro dono de Kunta Kinte a mera escravização do guerreiro africano: foi preciso ainda por cima arrancar-lhe o nome e a história, ou seja, a sua humanidade.

A violência racial, hoje espetacularizada nos atos dos policiais norte-americanos, ao mesmo tempo que precisa acabar, deve fazer a sua devida sua mea culpa. Quanto mais não seja, como bem ressaltou Hannah Arendt, porque “o racismo não é um fato da vida, mas uma ideologia, e os atos a que ele conduz não são atos reflexos, mas ações deliberadas baseadas em teorias pseudocientíficas”. Em outras palavras, o racismo é uma estratégia fundada em falsas verdades cujo objetivo é à dominação violenta de uma raça pela outra. A violência racista, prossegue a filósofa, “não é ‘irracional’; é a consequência lógica e racional do racismo, que eu não compreendo como certos preconceitos vagos, mas como um sistema ideológico explícito”.

A história de Kunta Kinte e sua família é uma trágica, no entanto pertinente alegoria dessa ideologia que a modernidade colonialista voltou contra os negros, e que, como os últimos acontecimentos nos EUA deixam bem claro, prossegue contemporaneidade adentro. Em uma imagem “kunta-kinteana, o negro africano foi arrancado de sua ancestral liberdade, escravizado pelo Novo Mundo e, depois de séculos de exploração e desrespeito, recebeu algo chamado de liberdade. Não, obviamente, aquela liberdade de que desfrutava no seu continente-pai, mas sim a “liberdade” capitalista-madrasta que o manteve escravo, embora com uma nova alcunha: “proletário”. Há quem sustente, não sem razão, que só se trocou velhas e pesadas correntes por novos grilhões, mais abstratos, mas nem por isso menos escravizadores.

A selvageria racial do “Poder Branco de Estado” que oprime os negros americanos atualmente é muito maior do que aquela africana-ancestral, cujas bestas eram leões ou gorilas, por exemplo, que apesar de facilmente poderem matar uma pessoa em um instante, nunca a humilhariam nem a explorariam por uma vida inteira. Sem dizer que também é mais selvagem que a selva-branca-escravocrata-moderna, que ao menos tinha a coragem de deixar bem claro aos negros que ele eram escravos. Hoje em dia, em troca, violenta-se os negros como se eles ainda fossem escravos, todavia mentindo que eles são livres.

Hannah Arendt, no entanto, nos leva a entender que onde há violência não há mais poder, mas só a tentativa condenada de, digamos assim, ressuscitar um poder defunto. Sendo assim, a crescente violência dos policiais norte-americanos contra os negros daquele país outra coisa não é que a assunção de que o Império Branco já está solapado. A persistência dessa violência apenas mostra que os senhores brancos não querem aceitar a derrota, do mesmo modo como o último senhor branco do neto negro de Kinta Kunte não quis. Baseados no que disse Arendt, qual seja, que o uso da violência apenas corrói o poder, nunca o preserva nem o aumenta, podemos ter certeza de que o abuso da violência por parte do poder branco estadunidense é apenas a aceleração do fim desse mesmo poder.

Em contrapartida, a violência dos negros norte-americanos contra os seus violentos policiais brancos, por ser reflexiva, isto é, ser uma reação e não uma ação, de acordo com a lógica arendtiana não reduz o poder dos próprios negros, apenas acrescenta mais violência à violência de seus algozes, e, portanto, catalisa a ruína do poder destes. Não é o caso, todavia, de dizer que a violência reativa dos negros contra a violência ativa dos policiais brancos é a única solução para o fim da crise racial norte-americana –ou a de qualquer outro país-, mas sim de entender que qualquer violência, longe de garantir ou criar mais poder, apenas cria mais violência. Em suma, menos poder. Não adianta esperar que os negros não ajam violentamente usando-se de violência contra eles. Absolutamente inteligente –e por isso mesmo improvável de acontecer, infelizmente- seria essa “força branca” decadente empoderar os negros, pois só assim se empoderaria junto com eles, todavia pagando o preço da igualdade e da divisão do poder.

Entretanto, não é isso o que está acontecendo. Basta ver o maciço apoio da população branca ao candidato à presidência dos Estados Unidos, o racista –e também sexista e xenófobo- Donald Trump. A branca sociedade norte-americana está deixando claro que não está evoluída suficientemente para dividir com os negros o poder que historicamente carrega consigo. Como na Guerra de Secessão, a guerra civil que se anuncia na terra do Tio Sam é a preferência de que o país se divida em dois, para que pelo menos em algum dos lados o poder permaneça nas mãos dos brancos. Até mesmo os negros radicais separatistas que querem a fundação da “Nação Negra” refletem essa incapacidade de se imaginar um país onde os brancos dividam o poder com os negros e não os violente.

Só que na selvageria de um guerra civil, os negros, cujo potencial para a violência é bem menor do que o dos brancos, uma vez que não detêm o estatal direito à violência, são os únicos que não terão o seu poder reduzido, mesmo que sejam profundamente vitimados pela violência generalizada. Já o “poder branco”, atolando-se mais um pouco na violência inerente a qualquer guerra, só tem mais poder a perder. Ainda mais se cada soldado negro com o qual se confrontará nesse anunciado conflito carregar em suas veias, senão o sangue de Kunta Kinte, ao menos o inquebrantável espírito do guerreiro de Mandinga, que, como na “facção” de Alex Haley, resistiu dignamente até, três gerações depois, reconquistar a liberdade furtada pelos brancos.

E ainda que novamente vitoriosos os negros não voltem para paraíso perdido algum, assim como os escravos libertos depois da Guerra de Secessão também não voltaram, oxalá gozem de liberdade e igualdade suficientes para não serem mais subjugados e assassinados pelo ódio nem pelo cano da arma de qualquer branco decadente. Para tanto, a sociedade americana precisa deixar para trás aquela ideia de Mao Tse Tung, mui criticada por Hannah Arendt aliás, que diz que o “Poder político cresce do cano de uma arma”, para finalmente entender o que coloca a filósofa alemã, qual seja, que enquanto uma relação é mediada pela violência, nenhum dos lados tem poder.

Sociabilidade insociável

sociabilidade insociável

O filósofo alemão Immanuel Kant, no ensaio chamado “Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita”, publicado em 1784, fala da tendência humana natural a uma sociabilidade absoluta. Tal cosmopolitismo, porém, parece um projeto fadado ao fracasso diante da atual marcha xenófoba no mundo. Agora, se, como coloca Kant, “toda a cultura e toda a arte … e a mais bela ordem social são frutos da insociabilidade”, talvez a distopia antissocial que parece estar sendo construída na contemporaneidade outra coisa não seja que o alicerce de uma utopia social futura.

Se descesse do topo de seu moderno farol iluminista, e caminhasse pela areia movediça da obscura contemporaneidade, que sob a superfície mentirosa da globalização esconde a crescente e profunda recusa ao outro -simbolizada mormente pela recusa declarada ao outro imigrante-, será que ainda assim Kant sustentaria o destino cosmopolita da humanidade? Para responder essa pergunta é preciso primeiro compreender a paradoxal “sociabilidade insociável” proposta pelo filósofo enquanto o fundamento da mais excelente organização humana, a Sociedade Civil.

Para o iluminista alemão, sociabilidade e insociabilidade são capazes de harmonizarem-se nos homens porque eles “não procedem de modo puramente instintivo, como os animais, e também não como racionais cidadãos do mundo em conformidade com um plano combinado”. De modo que a inclinação para viver em sociedade, que assegura e abre oportunidades, anda de mãos dadas com uma propensão ao isolamento devido à resistência que os planos e desejos de cada um encontra na íntima relação com os dos demais.

No entanto, diz Kant, “esta resistência é que desperta todas as forças do homem e o induz … a obter uma posição entre os seus congêneres, que ele não pode suportar, mas dos quais também não pode prescindir”. E é nesse ínterim que se passa da insociabilidade inerente à barbárie para a sociabilidade própria da civilização. Obviamente, não é o bárbaro solitário que realiza o potencial humano, mas o civilizado socializado, e isso porque o uso da razão –a ação própria do ser humano- “desenvolve-se integralmente só na espécie, e não no indivíduo”, coloca o filósofo.

Não obstante a paradoxal “sociabilidade insociável” humana, que por um lado nos leva a viver em sociedade, mas que por outro lado ameaça dissolver essa mesma sociedade, é essa contrariedade mesma que faz o homem evoluir, segundo Kant, de modo patologicamente condicionado. Ora, cada homem quer viver confortavelmente entre seus iguais; quer os benefícios do acordo civilizado com eles; mas estes, que também querem o mesmo, impõem a cada um e a si mesmos obrigatoriedades que, por conseguinte, tolhem a liberdade individual. Eis o “pathos” do qual não nos vemos livres mas sem o qual não avançamos.

Em uma bela metáfora o filósofo esclarece a virtude da “sociabilidade insociável”: “tal como as árvores num bosque, justamente por cada qual procurar tirar à outra o ar e o sol, se forçam a buscá-los por cima de si mesmas e assim conseguem um belo porte, ao passo que as que se encontram em liberdade e entre si isoladas estendem caprichosamente os seus ramos e crescem deformadas, tortas e retorcidas.” E aqui devemos entender esse “bosque” enquanto a Sociedade Civil, o estado ideal para a realização do objetivo cosmopolita humano de que fala Kant.

Sem a limitação individual inerente à pertença a uma sociedade, Kant garante que  “cada um, pois, abusará sempre da sua liberdade”. E, como na metáfora acima, se desviará de sua humanidade. Em uma imagem, crescerá “torto”. Absolutamente livre já éramos enquanto selvagens. No entanto, para Kant, vimo-nos compelidos a renunciar à nossa “liberdade brutal para buscar a tranquilidade e a segurança numa Constituição Civil”, pois só limitados por nós mesmos, e em suprema instância por um governante, deixamos ser bárbaros escravos de nossos impulsos e passamos a ser senhores de uma liberdade propriamente humana, qual seja: viver de acordo com uma vontade universalmente válida.

O que Kant quer dizer é que o homem, para atualizar plenamente a sua natureza, tem de galgar para si uma outra liberdade que não aquela experimentada na selvageria primordial. Os homens, começando por limitarem-se uns aos outros em vista de maior conforto e segurança, e, insistindo nesses objetivos, organizando-se em forma de Estados Nacionais, trazem ao mundo -a si mesmos- uma especial liberdade cuja virtude é não poder ser contestada, visto que universalmente acordada. Mutatis mutandis, a civilizada liberdade universal exige que seja abandonada a bárbara liberdade individual.

Portanto, enquanto não impusermos a nós mesmos um conjunto de regras e leis, e principalmente um indivíduo -ou grupo deles- que nos obrigue à conformidade com essas regras e leis, disporemos apenas da menor e mais primitiva liberdade, cujo inconveniente é ser contestável por qualquer outro, seja por palavras, seja pela força. Só que essa Constituição Civil que garante a maior das liberdades não é fruto de uma deliberação pontual e contingente, mas, antes, como o título do ensaio kantiano pretende deixar bem claro, apenas mediante uma “Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita”.

E tal ideia pode ser alcançada, por exemplo, na letra de Kant, “se partirmos da história grega, se seguirmos a sua influência na formação e na desintegração do corpo político do povo romano, que absorveu o Estado grego, e a influência daquele sobre os bárbaros que, por seu turno, destruíram o Estado romano, e assim sucessivamente até aos nossos dias; se, além disso, acrescentarmos episodicamente a história política dos outros povos … descobrir-se-á um curso regular da melhoria da constituição estatal”.

Essa espécie de pré-hegelianismo kantiano outra coisa não é que a busca de um fio condutor que nos guie ao “absoluto cosmopolita” no qual o inescapável devir político da humanidade se torne, nas palavras do próprio Kant, “a arte política de predição de futuras mudanças políticas”. Desse modo, a condenável xenofobia que vemos crescer no presente pode ser compreendida, por exemplo, como o amargo, todavia necessário primeiro passo na histórica construção de sua condenação universal futura. Mas isso, é claro, se Kant estiver certo, ou seja, se a natureza humana tiver mesmo um “Propósito Cosmopolita”.

Deus, volte a ser brasileiro!

deusbrazuka

Deus, que os brasileiros insistem em tomar por conterrâneo, poderia “salvar” o Brasil da imoralidade política, ou essa tarefa é exclusivamente mundana? Não obstante o brazuka estar querendo mais que tudo a moralização dos seus representantes políticos, é paradoxal ver esse povo que mantém vivo o paralegal “jeitinho brasileiro” estar exigindo moralidade dos seus políticos em primeiro lugar.

Embora os paradoxos sejam insolúveis, todavia não são imunes à compreensão de sua insolubilidade. Aliás, compreendê-los é a chave para não se ficar aprisionado neles. Como, então, o povo brasileiro pode superar a sinuca-de-bico na qual ele mesmo se coloca, e que pode ser bem resumida na seguinte imagem: plantar imoralidade esperando colher moralidade? Os pensamentos do italiano Nicolau Maquiavel e os do alemão Immanuel Kant podem ser de grande ajuda nesse sentido.

Treze anos depois do descobrimento do Brasil, Maquiavel escrevia a sua obra-prima, “O Príncipe”, dizendo ao mundo moderno que ele mesmo ajudava a inaugurar que, ao contrário do que até então pregava o longevo casamento entre fé e poder, moral e política não se misturam. Para o pensador italiano, o político virtuoso não é aquele que segue as regras estabelecidas nem tampouco o que se pauta pelo bem do povo, mas, precisamente, aquele que consegue manter ou aumentar o seu próprio poder, seja por que meio for.

Decerto que dentro da lógica maquiavélica a justeza moral é um empecilho. E essa semente imoral encontrou solo fértil no Brasil politicamente virgem dos 1500. Desde então a imoralidade política vem sendo extensivamente cultivada, a ponto de hoje ser colhida nos quatro cantos desse país, qual mato. Não se espantem com isso -diria Maquiavel- mas sim com essa insistência, melhor dizendo, com a ingenuidade de vocês em ainda esperarem que vossos políticos sejam éticos!

E o pensador renascentista poderia dar dois exemplos bem locais. O primeiro, que Lula só é considerado um dos maiores políticos do mundo porque soube driblar a amoralidade da Fortuna com uma “tabelinha” estratégica entre moralidade e imoralidade. E o segundo, que Dilma Rousseff merece a crítica de que não sabe fazer política justamente por causa de seu moralismo intransigente. Realmente ela não foi política, afinal, decidiu ser ética. E o preço dessa escolha: o impeachment.

Entretanto, apesar Maquiavel ter percebido lá atrás que política e ética não coabitam o mesmo espaço, isso não significa que não possa vir a ser diferente. A crise de representatividade política espetacularmente deflagrada no Brasil em Junho de 2013 com o seu popular “Ninguém me representa!”, mas que seguiu ecoando decadentemente a partir de 2015 na boca das elites com o slogan “Intervenção Militar Já!”, são manifestações diversas, todavia, em repúdio ao mesmo problema: a imoralidade do mundo político.

Agora, para que o contemporâneo desejo popular de representantes políticos éticos possa se realizar, a primeira coisa a ser feita é dispensar a covarde e preguiçosa ideia de que tal moralização deva começar de cima para baixo, isto é, da própria casta política imoral para a base da sociedade, qual dádiva. Até porque, relembra-nos Aristóteles: “a qualidade de um Estado é a qualidade dos seus cidadãos”, o que provavelmente inspirou o historiador Leandro Karnal a dizer que “não existe país com governo corrupto e população honesta”.

O que é fundamental entender dos dois filósofos é que só teremos políticos éticos na nossa sociedade na medida em que nós, os indivíduos que constituem essa sociedade, e que por nossas vezes elegemos aqueles, formos éticos antes de tudo. A moralidade deve ser primeiramente posta por quem a exige, ora bolas! Do contrário, o que exatamente se está exigindo? Como, então, moralizar-nos individual e basilarmente para que, consequentemente, tenhamos o edifício social moral de que estamos carecendo?

Kant é fundamental para esse desafio, e isso porque ele coloca que a moralidade não é algo transcendente que precise ser procurado alhures, mas, ao contrário, é uma faculdade imanente da nossa razão. Desse ponto de vista, cabe a cada um de nós conhecer tal faculdade, melhor dizendo, reconhecê-la em nós mesmos e, sobretudo, exercitá-la se quisermos que ela paute os nossos atos e, por conseguinte, esteja presente nos políticos que nos representam.

Conhecer essa nossa faculdade moral, diz Kant, é saber que sua pedra de toque é o bem. Não o que por acaso é bom a alguém em particular, como pensaria o egoísta –ou o político corrupto. Ao contrário, o bem moral é aquele que é bom em si mesmo, independentemente de qualquer benefício particular, porquanto não visa os objetos-fins das nossas ações, mas as ações em si mesmas, ou seja, o meio com a qual se obtém os fins. Para o bem que é fruto de interesses egoístas, em troca, é justamente o resultado da ação que vale. Aqui, são os fins que determinam as ações.

Dito de outro modo, moralidade é a razão dar as suas leis às nossas ações, ao passo que imoralidade é os objetos ditarem leis à razão. Como bem podemos ver, na imoralidade a razão é escrava das ações e de suas finalidades. Para uma ação ser plenamente moral, portanto, deve-se abstrair dela todo e qualquer objeto de desejo, até que nada influencie a razão no seu trabalho, pois só assim ela não é, como diz Kant, “uma mera administradora de interesse alheio”. Reconhecer a moralidade em si mesmo é perceber-se sustentando um bem que, antes de ser bom para tal e qual caso, é bom em si mesmo, seja em que caso for, ainda e principalmente que não se frua dele.

Tarefa difícil para nós, sujeitos profundamente hedonizados  desde a modernidade, para os quais os prazeres individuais e as vantagens pessoais são os motores principais. “Não se deve mentir”, por exemplo, é um imperativo moral que mesmo o maior dos mentirosos reconhece, uma vez que até mesmo ele não tem como achar bom ser alvo de mentiras. E Kant vai mais longe ainda dizendo que não é somente quem mente que é imoral, mas também aquele que não o faz apenas para continuar honrado. Para o filósofo, só existe moralidade naquele que pensa: não devo mentir ainda que mentir não me traga prejuízo algum.

Só que a ideia de bem fundamental com o qual a nossa faculdade moral determina os bens a serem perseguidos é anterior a esses mesmos bens; afinal, estes só podem ser considerados bons por causa daquela ideia de bem fundamental. A metáfora “não colocar a carroça na frente dos bois” é pertinente aqui. Qual seria então esse bem primordial, racional e a priori que, a partir de todas e ações possíveis, determina quais são as éticas?

De acordo com Kant trata-se da liberdade. Estritamente falando, da liberdade da própria razão em relação ao império dos sentidos e às inclinações subjetivas. Ora, quando julgamos boa alguma coisa porque ela satisfaz algum desejo nosso -sacia a nossa fome, sede, tesão, nos enriquece ou privilegia privadamente etc.- decerto que esta coisa mente ser um bem. Entrementes, é um bem menor, e de forma alguma um bem moral, uma vez que apenas obriga a nossa razão a buscá-lo. Nesses casos, a nossa razão não é livre, mas escrava de desejos patológicos. Só mesmo a moralidade não rouba a liberdade da razão nem impõe o contrário do que ela ordena.

Dessa visada, a condenável imoralidade dos nossos representantes políticos não é outra que a de cada um de nós, indivíduos-cidadãos sempre dedicados ao que é bom primeiramente para nós mesmos. E para nos alienarmos dessa imoralidade celular, não só nos esforçamos para projetá-la no organismo político que nos representa, como mais covardemente ainda exigimos dele que seja ético em primeiro lugar. Melhor dizendo: no nosso lugar. Só que eles, por suas vezes, ou pensam o mesmo, ou, aferrados ao maquiavelismo, sequer dão bola para isso.

Mas o sumo bem, esse objeto fundamental da nossa faculdade moral, felizmente não desaparece sob essa imoralidade toda. Como dito antes, ele é imanente à nossa razão. Subsiste incólume naquilo que cada um entende por “dever”, mesmo que não se o respeite deliberadamente. O dever, na verdade, nasce justamente da nossa incapacidade em atender plenamente aos imperativos morais racionais, seduzidos que somos pelas promessas e gratificações egoístas. E aquilo que não fazemos necessariamente, devemos fazer pelo dever, pois a moralidade não é a lei do que é, mas a do que deve ser.

Para a razão escapar à servidão em relação aos nossos desejos e interesses patológicos, coloca Kant, ela precisa todavia de um referencial metafísico que não seja corrompível por qualquer condição física. Quanto mais não seja, sem esse bem metafísico a ideia de bem incondicional, que por sua vez nos impõe a sensação de dever, não tem como escapar do relativismo, em cuja esfera roubar em função do enriquecimento pessoal, por exemplo, pode passar por um bem -como aliás vemos acontecer fartamente na nossa sociedade.

O que seria então esse sumo bem metafísico absoluto que fundamenta sem relativismo algum uma conduta moral? Para Kant, trata-se da mais perfeita ideia que a nossa razão é capaz de produzir, ou seja: Deus. E Deus só representa o bem absoluto porque, muito antes de ser aquela figura cristã demasiadamente antropomorfizada e problemática, é na verdade a liberdade plena da razão em relação ao mundo sensível e às suas contingências. A ideia de Deus é tão perfeita que dispensa o dever, pois somente nela qualquer querer já coincide com o bem absoluto.

Para a nossa razão produzir a ideia de Deus, entretanto, ela precisa necessariamente excluir qualquer imperfeição ou finitude; qualquer bem menor, particular, egoísta. Porventura Deus precisaria se empanturrar de comida ou bebida; enriquecer; mentir; roubar; trair? Logicamente que não. Portanto, só mesmo com a ideia de Deus a nossa razão pode indicar-nos o que é incondicionalmente bom e, portanto, a regra moral plena. Transgredindo o bem supremo que a nossa razão representa através da ideia de Deus, podemos no máximo ser imorais conscientes, ou, como se diz, “moralistas-de-cuecas”.

Entretanto, a modernidade que começou com Maquiavel cindindo ética e política, e que foi simbolicamente encerrada por Nietzsche com o seu “Deus está morto”, de certa forma foi uma abertura epocal à imoralidade. Com efeito, sem moral e sem Deus nada é mau nem pecado. Então, mentir, roubar, trapacear etc. em função de prazeres e benefícios pessoais, desde que obviamente não se seja descoberto por nossos pares ou leis mundanas, não ameaça trazer dano ulterior. Aqui, o imoral não precisa ser moral, só não deve ser descoberto em sua imoralidade

Só que do outro lado dessa moeda imoral por meio da qual cada um de nós pode se beneficiar individualmente, jaz a imoralidade angustiante dos nossos representantes políticos que se beneficiam justamente às nossas custas. E aqui porventura não vale o provérbio “ladrão que rouba de ladrão tem cem anos de perdão”? De que adiante então sair às ruas e encher as redes sociais de clamores por moralidade política se nós mesmos não cultivamos, pré-politicamente, uma prática moral efetiva? Exigir que um outro realize o que nós mesmos não conseguimos realizar é o que senão imoralidade pura?

Devemos voltar a ser crentes, é isso? Não necessariamente! Basta que reconheçamos em nós mesmos a ideia de bem supremo. Não é necessário ressuscitar aquele Deus cristão. Aliás, tanto melhor que ele não ocupe o lugar do Deus-racional que, em outra palavras, é a própria liberdade da nossa razão em relação às exigências patológicas da existência. O filósofo Baruch Spinoza disse que “Deus é a natureza”, o que, para mim, é irrefutável. Como, porém, o objetivo aqui é mais pragmático, qual seja, pensar uma moralização política que não obstante comece pelos indivíduos, “Deus é a razão” é um bom começo.

Ora, a perfeição da ideia de Deus é maior liberdade da nossa razão; de onde surge a ideia de bem supremo; que por sua vez fundamenta incondicionalmente todos os bens ulteriores que procuramos com nossas ações. A ideia de Deus, portanto, é fundamental para conseguirmos ser éticos. E somente depois de realizada essa tarefa é que podemos passar a exigir moralidade dos nossos representantes políticos sem sermos covardemente imorais, isto é, sem exigirmos moralidade sem primeiramente a colocarmos no mundo.

Vitória absoluta da razão, por conseguinte, será quando todos os brasileiros “endeusarem” em si mesmos a ideia de bem incondicional que tanto estabelece o que não deve ser feito de jeito algum, quanto impõe inescapavelmente o dever ao bem. Aí sequer seria necessário exigir moralidade dos outros, afinal, teríamos moralizado o mundo imanentemente, a partir do que já somos, seres de razão, locus único da moralidade. Talvez o povo que repete insistentemente que “Deus é brasileiro” deva imanentizar essa proverbial conterraneidade divina para realizar a priori a moralidade, e, só então, a posteriori, exigi-la de seus representantes políticos.

 

“O Príncipe” maquiavélico tupiniquim

09.03.2016  DD dia a dia --  Lula   --  CONTRA -- Foto: Divulgaçao

Nordestino que nasceu pobre, cresceu analfabeto, tornou-se metalúrgico, virou líder sindical, fundou o maior partido de esquerda do Brasil e, como “cereja do bolo”, considerado o maior presidente que esse país já teve, Lula é admirado internacionalmente, amado pela maioria dos brasileiros e, principalmente, temido pelas elites nacionais. Estas, em 29 de junho de 2016, finalmente o colocaram no banco dos réus por “tentativa de obstrução da justiça”. Mestras em tal obstrução quando se trata de suas próprias e muitas injustiças, essas elites construíram um teatro moralista para emparedar Lula, em cujo palco, no entanto, elas são incapazes de representar a mais pálida e curta pantomima moral. Já Lula, para além da moralidade e da imoralidade, ainda é a maior estrela do espetáculo político nacional.

Pode ser dito inclusive, sem medo de errar e sem intenção de denegri-lo, que Lula é o político mais maquiavélico que este país já conheceu. Isso, claro, desde que entendamos que a teoria de Nicolau Maquiavel, ao contrário do que vulgarmente se pensa, vai muito além da rasa máxima “os fins justificam os meios”. Desse ponto de vista apenas, pode-se pensar até barbáreis como por exemplo o nazismo. Mas não é o caso. O filósofo renascentista italiano, fundador do pensamento político moderno, trouxe ao mundo uma compreensão muito mais profunda da dimensão política e do que é, de fato, ser um político virtuoso.  É a partir desta profundidade maquiavélica, portanto, que devemos pensar Lula, o nosso grande estadista.

Na sua célebre obra, “O Príncipe”, publicada em 1532, Maquiavel esclareceu que política e moral não andam juntas. Mais ainda, que não devem andar caso um político deseje êxito. Auto lá! –protesta o povo brasileiro traumatizado com a aclarada imoralidade de seus representantes políticos, que, concretamente e no final das contas, resulta na corrupção que tanto o vilipendia. Com efeito, a maioria desse povo, mais do que nunca está exigindo que a classe política moralize-se. Decerto não há nada de errado nesse desejo, afinal, o futuro sempre está para ser construído, e o presente é a prancha de projeto e o canteiro de obras para tal. Porém, é ingenuidade, sem dizer profunda ignorância em relação ao Maquiavel deixou bem claro há 484 anos, surpreender-se com o fato de que até aqui o nosso castelo político não foi morada da moral.

Se, vulgarmente falando, ser moral é seguir um conjunto de regras -sociais, religiosas, etc.-, ser imoral, em contrapartida, é desrespeitar tais regras, no entanto, reconhecendo-as. Não respeitar regras porque não se as reconhece é ser amoral. Por exemplo: se de acordo com a lei é proibido roubar, o moralista não roubará de forma alguma; o “imoralista”, entretanto, poderá roubar de acordo com seus interesses particulares e momentâneos, todavia, sabendo que está infringindo a lei; já o “amoralista”, para quem a única lei é a da necessidade particular e momentânea mesmo, se porventura roubar não estará quebrando qualquer regra preexistente, pois para ele, estas não existem.

Em se tratando de política, obviamente não há lugar para o amoralismo, pois o político que não reconhece regras sociais, na verdade, é um déspota. Por outro lado, sabemos muito bem que, pelo menos no Brasil, políticos verdadeiramente morais são raros. Como conclusão, temos que até hoje o mundo político tupiniquim é o habitat da imoralidade. Há inclusive uma expressão que traduz poeticamente essa sempiterna imoralidade: “o jeitinho brasileiro”. Percebendo isso, não há nada com o que se espantar com um líder de esquerda ter flertado estrategicamente com a imoralidade afora o fato de ele, pública e propagandisticamente, ser contra ela.

Não obstante a democratização da imoralidade no mundo político brasileiro, uma diferenciação há de ser feita no caso de Lula. Aqui precisamos entender que quando um moralista atende fielmente à lei, não é ela o que realmente importa, pois a lei é apenas a indicação pragmática de algo mais abstrato, todavia essencial, qual seja, o bem maior. E não havendo Deus algum ditando um bem supremo e inquestionável às sociedades, esse bem maior a ser perseguido deve ser construído socialmente. E tanto maior é, quanto mais democraticamente for estabelecido, isto é, quando é -ou promete ser- o bem para a maioria das pessoas. Politicamente falando, ser moralista é acatar a esse bem maior projetado pela maioria dos indivíduos. Ser imoral, em troca, é preterir esse bem maior de que no entanto se tem consciência justamente em função de benefícios particulares, ou de bens menores, se se preferir.

Essa régua moral/política, que vai dos menores bens (os mais privados) aos  maiores (os mais coletivos), serve para medir uma diferença essencial entre o imoralismo da elite tupiniquim e o de Lula que com efeito faz deste último o grande maquiavélico brasileiro. Não é mistério algum que o objetivo sempiterno das elites sempre foi resguardar e conquistar privilégios para si mesmas, e em detrimento da maioria da população. Os bens que buscam são tão baixos, porque para tão poucos, que jazem muito próximos do zero. Imoralidade quase que plena, beirando a amoralidade aliás. Já Lula, mesmo conhecidos os seus imorais mensalões e caixas-dois-de-campanha, por meio deles é que conseguiu possibilitar à maioria das pessoas justamente aquilo que para elas é bom, por exemplo: a maior distribuição de riqueza da história do Brasil, a erradicação da fome, a democratização do acesso à educação, entre tantos outros bens inquestionáveis.

A imoralidade de Lula por pouco não passa por moralidade. Tendo realizado um feito prodigioso, o ex-metalúrgico de nove dedos conseguiu ao mesmo tempo deixar os ricos mais ricos e os pobres menos pobres. Todos saíram ganhando: quem sempre ganhou e quem nunca. Claro, de acordo com uma rígida régua socialista, Lula não avançou muito na escala. Resta saber, porém, se algum socialista radical conseguiria realizar o bem à maioria do povo adstrito à moralidade apenas. Péssimo, todavia indispensável exemplo dessa impossibilidade foi o comunismo de Stalin, cujo bem, que era para ser coletivizado, no entanto, ficou restrito a ele mesmo e à sua pesada burocracia, ambos responsáveis pelo insucesso do grande projeto socialista russo. Se, de um lado, Lula foi “pelego das grandes corporações” ao permitir que elas seguissem engordando, de outro, foi revolucionário ao fazer com que no Brasil não mais se morresse de inanição.

Outro ponto interessante na teoria de Maquiavel que faz de Lula o nosso “Príncipe” é a boa conjunção entre “Virtù” (conhecimento prático do governante para obter e manter o poder) e “Fortuna” (o curso dos acontecimentos que não dependem da vontade humana, tampouco da do governante). Para Maquiavel, o governante virtuoso é aquele que bem governa porque saber aproveitar os movimentos da Roda da Fortuna, isto é, a imprevisibilidade da realidade. Em respeito à Virtù, Lula não tinha propriamente um conhecimento prático quando se tornou presidente, afinal, este foi o seu primeiro cargo oficial. Entretanto, a sua intuição política fez as vezes, e na verdade superou em muito esse conhecimento faltante. Já em relação à Fortuna, desculpe-me a redundância, Lula foi muito afortunado. Durante a sua gestão, houve uma bonança econômica mundial movida pela sobrevalorização das commodities, como o petróleo e os minérios por exemplo, que Lula soube aproveitar magistralmente. A conjunção de uma Virtù intuitiva incomparável e uma sagacidade invejável diante da Fortuna faz com que Lula seja o mais maquiavélico dos políticos brasileiros.

Companheira de Partido e de projeto de Estado, Dilma Rousseff sucedeu Lula na presidência da República. No começo de seu primeiro mandato ela até surfou a mesma boa onda dele. No entanto, faltou-lhe Virtù. Seu primeiro defeito, pasmem, foi ser demasiado moralista: recusar-se abertamente a participar de estratagemas ilícitos, e o que é mais moral ainda, investigar a corrupção e punir corruptos e corruptores, e isso de dentro de um sistema político-econômico corrompido dos pés à cabeça. Isso acabou sendo o seu tiro no pé. Sua impertinente moralidade fez o Brasil imoral mergulhar em grande crise. Os ricos, os pobres, e principalmente ela mesma, todos saíram perdendo. Maquiavel ainda é tão pertinente! Sem dizer que, para o italiano, a Virtù, além de tudo, é a capacidade de manter a paz e a estabilidade do Estado, coisa que definitivamente ela não conseguiu. Foi afastada por uma canetada oligárquica-parlamentar vergonhosa.

Esse ensaio, no entanto, não estaria completo se não falássemos da maquiavélica relação entre amor e temor do povo com o governante. Para o filósofo, um bom governante é aquele que é ou amado, ou temido. A primeira opção é a mais desejável pois estabelece vínculos mais estáveis com o povo. Já a segunda é mais frágil; basta o povo temerário se reunir suficientemente para depor quem lhe causa medo. Em ambos os casos, porém, Lula é Hors Concours. Tendo terminado o seu segundo mandato com 87% de aprovação popular, mais que Nelson Mandela na África do Sul, Lula foi o presidente mais amado do mundo. E como se não bastasse, além de adorado pela maioria, até hoje é temido pelas minorias, as elites, que se borram de medo de sua força política. Colocá-lo no banco dos réus -e se essas elites tiverem Virtù suficiente, na cadeia- é a estratégia covarde para que Lula não concorra na próxima eleição presidencial em 2018, na qual, de acordo com recentes pesquisas de opinião, ele teria vitória garantida, mesmo que profundamente combalido pela atual oposição jurídica, política e midiática.

Já Dilma não conseguiu ser temida, nem tampouco amada pelo povo. Sua saída forçada do governo até  fez com que ela se tornasse objeto de certo amor coletivo -todavia paralelo a um ódio irracional extremado. Agora, se fizermos uma crítica dos afetos a partir do presente golpe de estado brasileiro, como sugere o filósofo Vladimir Safatle, veremos apenas melancolia. O colateral amor por Dilma, na verdade, é uma máscara à tristeza pela perda da democracia e do valor de 54 milhões de votos populares legítimos. Dilma realmente não tem porque ser amada, seja por sua pálida Virtù, seja por sua questionável relação com a Fortuna, seja ainda por não ter obtido um bom equilíbrio entre estas duas. E isso, maquiavelicamente falando, por conta de sua insistente moralidade. Se tivesse flertado cirurgicamente com a imoralidade -bem menos que Lula até-, Dilma não só teria mantido o poder nas suas mãos, como também sob o governo de um partido de esquerda, o que por sua vez seria muito melhor para a maioria da população. Sem dizer que teria impedido a velha elite política oligárquica brasileira, a mais imoral de todas, de ter retornado ao poder e estar governando sozinha o país.

No entanto, ser um animal político como o ex-líder sindical, isto é, ter Virtù suficiente para espremer o melhor da Fortuna, é para pouquíssimos. E a grande Virtù de Lula, da perspectiva maquiavélica, foi perceber onde e quando deveria ser moral, isto é, colocar o bem maior como o seu motor político –e aqui não precisamos citar novamente os seus grandes feitos-, e onde precisava ser imoral, ou seja, se relacionar com a velha, resistente e corrompida estrutura política brasileira, pagando todavia alto preço -que também não precisa ser repetido aqui. Tática ideal? Não, obviamente. Prática virtuosa, no entanto. Afinal, não sucumbir diante da amoralidade da Fortuna é para quem sabe dosar moralidade e imoralidade. E se Paracelso, médico alemão contemporâneo de Maquiavel, está certo, e “a diferença entre remédio e veneno está na dose”, Lula foi o nosso mais doce e virtuoso alquimista político.

 

Homem lobo solitário do Homem

solus lupus

Homo homini lupus”, ou seja, o homem é o lobo do homem, disse o dramaturgo romano Tito Mácio Plauto em 200 a.C., máxima que o filósofo inglês Thomas Hobbes, dezoito séculos depois, usou para justificar o contrato social que institui o Leviatã, isto é, o Estado, cuja função primordial é a de proteger os homens da morte violenta. As palavras de Plauto e o posterior uso que Hobbes fez delas, a meu ver, explicam muito melhor o fenômeno assaz contemporâneo, bastardo do terrorismo, encarnado nos “lobos solitários” do que a ideia fácil que diz apenas que “os lobos caçam solitariamente”.

Quanto mais não seja, porque a recência dos “solus lupus” na arena contemporânea ainda nos deixa com muito mais perguntas do que respostas. Pois bem, que o lobo solitário age desconectado de organizações terroristas, digamos assim, oficiais, é óbvio pelo próprio nome. Obscuras, todavia, são as ideias que o movem. Provavelmente, a ideologia insólita do lobo solitário seja um híbrido de psicopatologia, ignorância, frustração pessoal e informações desconexas que ele saca da mídia e das redes sociais, porém, e tal hibridez infeliz o impele incontrolavelmente ao terror. Afinal, é aterrorizante mesmo tamanha confusão. A sombra ideológica sob a qual vive o lobo solitário faz com que entendê-lo seja tão difícil quanto prever um ato seu.

Agora, se, como dissemos no início, afirmar que “o homem é o lobo do homem” é uma metáfora para o fato de o homem ser o seu próprio e maior inimigo, quem, então, seria seu amigo? Impossível não lembrar do provérbio popular “o cachorro é o melhor amigo do homem”. Não podemos esquecer que esse amigão canino, como sabemos, não existia na natureza até a existência do homem em sociedade primitiva. O lobo é um produto genuinamente humano, a partir da matéria prima do lobo selvagem, ou seja, do seu inimigo simbólico. Essa gradual e real domesticação, do lobo selvagem em cachorro amigável, representa a questão hobbesiana da instituição do Estado Absoluto: o “homo homini lupus”, pelo chicote do Leviatã, tornado o “homo homini canis”.

Tanto da perspectiva de Hobbes, como dessa imagem acima, a do lobo feito cão pelo homem socializado, o lobo solitário terrorista pode estar querendo mostrar algo dos imensos canis que são os nossos Estados: em primeiro lugar, que a segurança que os Estados deveriam assegurar não está mais funcionando. O terror que esses lobos trazem ao mundo dá o seu recado, efetivamente, por mais amargo que seja. O recado: voltamos a ser lobos de nós mesmos. Ou, ao menos, um: “Olhem! Vejam como é fácil ser Lobo de nós mesmos!” O protesto radical do Lobo Solitário traz uma imagem: a do cachorro, frustrado e desesperado, em pele de lobo valente e revolucionário diante do lobo do Estado, violento e dominador, em pele de cachorro, fingindo melodramaticamente que é amigo.

Pensando nos lobos solitários, é impossível também não lembrar da “Idade do Lobo”, expressão usada para falar da fase da vida na qual certos homens, por volta dos 40 anos, entram na famigerada “crise de meia idade”. A psicologia explica que na Idade do Lobo os homens percebem que não viveram as suas vidas conforme desejaram porque seguiram apenas as regras da sociedade. Isso os leva então a querer fazer tudo o que nunca fizeram, e com pressa, pois sentem que não lhes resta mais muito tempo. A patologia a ser percebida aqui é a seguinte: o Lobo busca desesperadamente “fazer as coisas que não fez” em vez de simplesmente “fazer o que gostaria de fazer”.

A analogia entre o lobo solitário e o homem na Idade do Lobo é válida. O terrorista insólito seria aquele que, a certa altura de sua vida, percebe que é escravo de um sistema opressor muito maior do que ele; que é vítima de imperativos que não o satisfazem, nem tampouco o satisfará. Então, a certeza de que sucumbirá o leva a fazer coisas que nunca fez.

A expressão Idade do Lobo, todavia, é inspirada no conflito psicopatológico analisado por Freud e nomeado por ele de “O Homem dos Lobos”. O Lobo freudiano é o indivíduo vítima de um excesso pulsional causado pela sensação de castração devido à sempiterna “ausência do pai ideal”. Como essa falta é cada vez mais insuportável, ele se vê num processo vicioso de, por um lado, admiti-la e, por outro, negá-la. Em suma, esse dilema resulta na “divisão do eu”, ou seja, a divisão do ego como forma de defesa. Um “eu”, resignando-se à falta, renuncia ao seu desejo frustrado, frustrando-se em definitivo, e o outro “eu”, em contrapartida, desmente o primeiro; nega a realidade, e se recusa a aceitar qualquer limitação.

O lobo solitário terrorista, da perspectiva do “O Homens dos Lobos” freudiano, seria o indivíduo cujo “pai ideal” faltante se apresenta enquanto “o mundo ideal ausente”. Orbita obsessivamente esse seu mundo ideal, sem, no entanto, alcançá-lo. Tal é a estrutura da pulsão. Se, ao contrário, atingisse a sua meta, isto é, o centro da órbita onde esse objeto idealizado foi colocado por ele mesmo, no caso, a conquista de seu mundo ideal, teria a frustrante visão de que tal mundo, assim como o pai ideal, não existe. E para evitar essa sobrefrustração, a velha sensação de castração lhe convence do contrário, e assim o lobo solitário reintroduz-se em sua mórbida órbita pulsional.

Então, o “Solus Lupus”, egoicamente, divide-se em dois: um dos quais, aceitando a falta insanável e renunciando ao desejo frustrado, foge da inexistência desse mundo idealizado; enquanto o outro, negando a realidade e se recusando a limitar o seu desejo, segue obsessivamente na sua busca. Ao mesmo tempo nega e afirma o mundo ideal. Só mesmo a forma pulsional para sustentar esse problema: orbitar em torno do mundo ideal faltante, tanto para assumir centrifugamente a incapacidade de tocá-lo, quanto ainda para mantê-lo centripetamente no seu horizonte de possibilidade. A tensão é grande. Só que a tentação de seguir buscando o objeto impossível é maior do que a resolução de abandoná-lo definitivamente.

Lacan diz muitas coisas muito importantes acerca da pulsão. Uma delas, que o objeto que jaz no centro da meta pulsional, para ele o “petit objet a”, é desde sempre algo a nunca ser alcançado. A meta principal da pulsão é nunca alcançar as suas metas secundárias. E isso porque o gozo da pulsão é tão somente a busca, não aquilo que é buscado. Compreender essa paradoxal dinâmica é fundamental para entender o lobo solitário. Decerto ele sabe que, no fundo, o terror que promove é tudo menos a realização de quaisquer mundos ideais. Mas como o “petit objet a” do lobo solitário, qual seja, o mundo ideal, não é para ser alcançado, apenas buscado, o mundo real piorado que o seu ato terrorista produz acaba sendo espécie de altar e  adubo para o seu mundo ideal impossível

A violência e a morte que o lobo solitário traz ao mundo real, com efeito, é a tentativa de convencer todos à sua volta de que a busca obsessiva da qual ele não consegue se ver livre é mais que necessária. Sua solidão quer atenção mundial! A contundência de seus atos, sem dúvida, só reforça a ideia de que um mundo melhor precisa ser construído. Só que ele, vítima da pulsão, antes de todos já sabe que tal mundo não existe, que é só um fantasma: o negativo, real e coletivizado, de sua presente e insuportável frustração por ter sido castrado do mundo que idealizou, abstrata e solitariamente.

Para Freud, “O Homem dos Lobos” seria o “Édipo invertido”, isto é, aquele que, em vez de matar o pai e casar com a mãe, acabou desejando o pai, todavia sob o preço de se colocar no lugar da mãe. E para se ver livre, tanto desse desejo homossexual pelo pai, que ele percebe não ter espaço na realidade, quanto da identificação com a mãe, que por seu turno estimula aquele desejo problemático, o Édipo invertido se esconde atrás de um fetiche/máscara cujo objetivo é ocultar dele próprio a imagem da sua irrealização sexual. Por trás do semblante viril com que “O Homem dos Lobos” se apresenta jaz, no entanto, a triste sensação da sua distância em relação ao seu desejo desde sempre impossível.

Seria demais, contudo, investigar aqui a possível homossexualidade do lobo solitário. Basta que tenhamos em mente o seguinte: a frustração diante da impossibilidade do seu grande desejo, nesse caso, o mundo ideal, ou ao menos idealisticamente melhor; a angústia de permanecer em um lugar que é o seu, mas que não é desejado que seja, pois é ruim; e, sobretudo, o mascaramento dessa tensão mediante uma virilidade radical, que em seu extremo pode sim ser vista na adesão insólita do Lobo Solitário ao terror. O fetiche do lobo solitário terrorista deve ser a destruição pública e violenta do mundo real para com isso dar realidade ao seu mundo privado e idealizado.

Por certo que a belicosidade destrutiva do Homem dos Lobos freudiano é bem menor que a do lobo solitário terrorista. E isso porque objetos que o primeiro elege como responsáveis por suas frustrações são mais concretos e tangíveis: sua sexualidade, seu corpo, sua profissão, sua família, etc. Já os do segundo são assaz abstratos, e por isso mesmo, dificilmente alcançáveis: a humanidade, a sociedade, o Estado, o capitalismo, e por aí vai. Contra estes, cuja medida obviamente escapa a qualquer indivíduo isolado, pois só começam a ser tanto perceptíveis quanto atacados a partir da perspectiva de uma coletividade, o lobo solitário, que se opõe à coletividade, só pode agir desmedidamente. Nesse sentido, e talvez somente nesse, alistar-se ao terror do Estado Islâmico pudesse ser menos infeliz do que investir insolitamente no terror.

Porém, terror algum será capaz de fazer do mundo um lugar melhor.  “O Homem dos Lobos” deve aceitar a sua homossexualidade para então se ver livre da asfixiante pulsão de mascarar a sua frustração sexual. Do mesmo modo, o homem da Idade do Lobo deve deixar de perder tempo com o que até então não fez, mas compreender que há, de um lado, coisas que jamais realizará, e, de outro, realizações possíveis que ele bem gostaria de fazer; assim também o Lobo Solitário deve aceitar a sua irremediável limitação individual diante dos grandes problemas mundiais e dos desmedidos desafios que impõe a si mesmo.

Em outras palavras, o lobo solitário precisa mais que tudo rever a sua meta, redimensioná-la à modéstia do indivíduo que é. Participando de uma organização terrorista, ele seria apenas menos patético, porém, igualmente patológico, monstruoso e condenável. Sem dizer que não estaria reduzindo os problemas do mundo que ele mesmo percebe e contra os quais protesta. Muito pelo contrário, aliás. A modéstia que seria bom o lobo solitário adquirir é a consciência de que a saída para o problema que lhe afeta é cada vez mais coletiva e positiva, e não solitária e negativa. Ou seja: cada vez mais política. E é muito mais fácil um déspota solitário se convencer disso do que um Estado despótico todo.

A psicologia diz que a “Idade do Lobo” pode ser uma crise importante na vida de alguém, uma vez que envolve tomadas de consciência próprias do humano, tais como das rígidas imposições sociais; dos limites próprios da vida; da desmedida dos desejos individuais; e sobretudo da necessidade de se produzir um futuro com mais liberdade e oportunidade de realização. Da mesma forma, para o que aqui eu chamo de “A Idade do Lobo Solitário”, ou seja, o momento crísico e individual no qual alguém cogita ser um terrorista insólito, pode também ser positivo, porém, se, e apenas se, for o átimo no qual esse indivíduo finalmente toma consciência, digamos assim, do mal da sociedade a ser combatido sem trégua, não solitária e barbaramente, mas coletiva, política e civilizadamente.

Ora, não é alienígena para ninguém aquela vontade de, como se diz, “chutar o balde”, isto é, explodir o patrão capitalista, jogar os homofóbicos na fogueira, metralhar os racistas, socar os machistas etc. Decerto que sempre nos depararemos com o semibárbaro que se jaz incorrigível sob a nossa pele civilizada. Porém, civilização é superar as nossas resistências bárbaras constantemente, e nunca replicá-las. É nesse sentido que até mesmo o lobo solitário terrorista, porque também está com um pé na civilização e outro na barbárie, tem a oportunidade de saltar o lodo bárbaro que vê diante de si para quiçá alçar um patamar mais elevado de civilidade.

E o leviatã hobbesiano, que fez do “homem lobo do homem” o “cidadão amigo do cidadão”, é talvez a maior encarnação da civilização. Barbárie alguma pode oferecer produto melhor. Se alguns discordam disso, trata-se, novamente, apenas de uma combinação confusa de psicopatologia, ignorância, frustração pessoal e informações impróprias. O lobo solitário, se tomasse consciência disso, perceberia que é mais fácil desfazer essa sua confusão e, com calma, tratar de suas mazelas pessoais, do que, antes, sair solitária e desesperadamente tentando mudar o mundo. Afinal, coagir os outros à mudança para não precisar mudar nada em si mesmo é o espírito mais primordial do despotismo.

Esse ensaio sobre os lobos mais simbólicos do mundo, contudo, ficaria incompleto se não falássemos do Lobo Mau de “A Chapeuzinho Vermelho”. Nas palavras do seu autor, o francês Charles Perraut, “o Lobo é um tipo com uma disposição receptiva – sem rosnado, sem ódio, sem raiva, mas dócil, prestativo e gentil, seguindo as empregadas jovens nas ruas, até mesmo em suas casas. Ai de quem não sabe que esses lobos gentis são de todas as criaturas as mais perigosas!” A moral perraultiana da estória é trazida aqui para refletirmos sobre muitos dos depoimentos de parentes e amigos de lobos solitários terroristas. Em suma, geralmente ouve-se daqueles que estes são pessoas boas, trabalhadoras, divertidas, amigáveis, amáveis até.

É perturbador confrontar tal dimensão, digamos assim, civilizada dos lobos solitários com a barbárie que promovem. A solução, obviamente, não é evitar aqueles que se aproximam receptivamente, como disse Perrault, “sem rosnado, sem ódio, sem raiva, mas dócil, prestativo e gentil” só porque podem ser “criaturas as mais perigosas”. Isso seria se privar das benesses da civilização elas mesmas. Talvez a moral desse ensaio queira apenas concluir que o lobo solitário, bastardo de um mal muito maior e anterior a ele, é apenas uma pessoa como qualquer outra, como eu e você, com suas humanas frustrações, desejos e limitações, que, entretanto, em determinado momento patológico, erra o passo e se atola no lodo da barbárie, que, de certa forma, está sempre logo abaixo da porcelana da civilização.

Porém, qual gelo fino, essa civilidade de onde nos aterrorizamos com os lobos solitários e os criticamos, assim como aconteceu com eles, pode ruir sob os nossos pés. Então, enquanto estamos no privilegiado belvedere civilizado, seria bom que nos empenhássemos na construção um mundo melhor, oxalá capaz de dar vida ao clássico lema anarquista “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, pois só mesmo um ambiente assim dispensará qualquer pertinência ao terrorismo.

Poesia e filosofia, ontem, hoje e amanhã.

poes filo

“No princípio era o Verbo”, diz a abertura do Evangelho de João sobre a criação do universo. O cosmos sobre o qual nos debruçaremos doravante, todavia, não é o bíblico, mas o poético e o filosófico. Foi em relação a estes, aliás, a frase do apóstolo. A poesia e a filosofia têm um extenso ontem a ser rememorado; um justo hoje a ser intuído; e um aberto amanhã diante do qual, no entanto, podemos apenas vaticinar. Pensar a poesia e a filosofia, a relação de cada uma delas com a vida e sobretudo entre si, eis o que este ensaio pretende fazer.

Sabemos que a poesia precedeu a filosofia. Então, se “no princípio era o verbo”, esse verbo primordial foi poético. Muito antes de homens filosofarem naquelas ilhas gregas da antiguidade, Hesíodo, um camponês que vivia nas proximidades de Téspias, na Beócia, em suas próprias palavras, uma aldeia amaldiçoada, cruel no inverno, penosa no verão, jamais agradável, já poetizava sobre a vida simplesmente ao dizê-la. Homero, autor da Ilíada e da Odisseia, foi outro antigo grego que verbalizou poeticamente o mundo.

E a poesia bastava! Mais do que isso, fazia sobrar interfaces para a humanidade entender o real e para este compreendê-la. Tanto que os primeiros homens que, posteriormente, foram chamados de “os primeiros filósofos”, quais sejam, os pré-socráticos, muitos deles se valiam do assaz naturalizado estilo poético para dizerem da realidade por uma via outra que não mais estritamente poética. Estes, todavia, poetas não eram mais.

Essa hibridismo entre poesia e filosofia fica claro no poema do filósofo Parmênides de Eléia, Sobre a natureza, no qual o pré-socrático valeu-se da tradição poética de seu tempo para iniciar sua conversa com o leitor e desse modo apresentar a questão filosófica da qual trataria sem, digamos assim, causar estranheza. Não esqueçamos, estamos falando de uma sociedade absolutamente tradicional, na qual a mudança era vista com maus olhos .Tanto chamavam-na de corrupção!

Entretanto, imediatamente ao preâmbulo poético, Parmênides, sem dó nem piedade, revoluciona o mundo discursivo, e porque não dizer a história do pensamento, ao escrever argumentativamente, num ato de invenção da prosa lógica que dispensou não só os elementos míticos como o estilo poético de forma geral. A passagem desse segundo movimento do poema parmenídico que melhor representa essa revolução é: “o que é, é, e não é para não ser … o que não é, não é, e tem de não ser”.

Não obstante, antes de dizermos que essa invenção do pensador de Eleia foi uma apunhalada no coração da poesia, o importante aqui é ressaltar apenas que ela perdia o seu longevo e exclusivo belvedere a partir do qual humanidade e realidade eram mediados. Doravante, nunca mais o pensamento se restringiria apenas ao modo poético para dizer o que era e o que se passava como mundo.

Parmênides, no entanto, foi um revolucionário deveras respeitoso, pois mesmo tendo demarcado uma rígida fronteira entre os dois modos de dizer o real, a poesia e a prosa argumentativa, na terceira e última parte de seu “poema filosófico” o grego faz uma cosmologia que mistura os dois estilos anteriores, como que para tentar juntar novamente o que acabara de cindir tão evidentemente. Depois dele, porém, a filosofia como a conhecemos não se privou de trilhar um caminho cada vez mais apartado da poesia e cada vez mais próximo da lógica.

Antes de separarmos de vez poesia e filosofia, cabe todavia lembrar dos sofistas, homens que circulavam pela Grécia antiga, cuja produção intelectual era algo entre poesia e filosofia. Desde sempre híbrida, a sofística dizia o que se passava com o homem e com seu mundo. De um lado, com uma liberdade aparentada à poesia. Porém, de outro, com uma objetividade assaz pragmática, própria do pensar filosófico. Com efeito, os sofistas criavam e vendiam discursos de verve poética, contudo estrategicamente políticos, que até o vertical verbo platônico se voltar contra eles, eram confundidos com filosofia, mas que depois jazeram estigmatizados.

O pai da filosofia negava pertinência, não só às produções sofísticas, mas também às poéticas, alegando que estas não tratavam do que realmente importava, ou seja, daquilo que é necessária e universalmente válido, isto é, o Ser. Para o daddy-cool da filosofia, as ideias: o real mais real do que qualquer outra coisa, não podem ser conhecidas e fruídas de outro modo senão filosoficamente. E para Platão, poesia e sofística, ao tentarem falar das coisas, quando muito dizem apenas de suas corrupções terrenas, uma vez que não as atingem em suas origens, isto é, nas alturas celestes e ideais onde elas vivem eternas e incorruptíveis.

Como sabemos, o idealismo platônico nega a sensibilidade e o mundo dinâmico que ela revela aos homens, pois tudo o que é sensível diz apenas daquilo que será corrompido pelo devir. Expressar-se a partir do que se percebe sensivelmente, para Platão, outra coisa não era que ler a sentença de morte dos objetos dessa expressão. A realidade imediata, material, sensível, no entanto, era a matéria prima com a qual os poetas e os sofistas se aventuravam discursivamente. Mas para Platão, o voo que alçavam não se aproximava do que mais importava, das ideias das coisas a respeito das quais falavam.

Tanto que em vários de seus famosos diálogos Platão se empenhou em mostrar a limitação dos poetas e dos sofistas. Em Hípas Maior, evidenciou a impertinência do fazer sofístico de modo contundente. E na sua maior obra, a República, não se privou de banir a poesia de sua sociedade ideal. Justiça seja feita, Platão poupou apenas a poesia homérica, e isso porque ela relatava os grandes feitos heroicos do passado que, a seu ver, eram dignos de sobreviverem enquanto exemplos aos gregos. Dizia Platão que qualquer outra poesia causava apenas sensações, e mais afastava do que aproximava o homem da verdade e da virtude, objetos excelentes da sua República.

Com Platão, portanto, temos a ereção de um muro intransponível onde Parmênides havia apenas deitado uma fronteira. Diferente do pré-socrático, o pai da filosofia não aproximou filosofia e poesia em cosmologia alguma, uma vez que avizinhá-las apenas corromperia a sua filha preciosa, a filosofia. A poesia, marginalizada, só mesmo travestida de tragédia manteve lugar cativo na sociedade grega. Porém, em se tratando de verdade, a poesia nada mais podia.

Aluno de Platão, Aristóteles comprou a filosofia absolutamente. Aqui todavia vale ressaltar que o pupilo foi mais filosófico que o mestre, uma vez que a dialógica platônica carregava um certo verniz poético que de forma alguma reluziu no racionalismo aristotélico, profundamente mais prosaico, chamado por muitos de tedioso até. Talvez a sensação de tédio que o racionalismo de Aristóteles cause seja a marca da distância instituída entre poesia e filosofia.

Digna de nota é a diferença entre Platão e Aristóteles no tratamento da poesia. Aquele, como vimos, condena-a na República. Todavia, na forma de diálogo essa condenação ainda é de certa forma poética porque vivazmente encarnada nas vozes e gostos de Sócrates e seus companheiros. Já Aristóteles, na sua Poética, mesmo na intenção de apologizar a poesia o faz racional, metódica e tecnicamente, tratando dela como se de política ou de biologia fosse.

Saltando da antiguidade ao medievo, na chamada Idade das Trevas a poesia não reconquistou lugar excelente algum. O mundo medieval-cristão não podia deixar-se seduzir pela poesia sem o terrível risco de incorrer em pecado devido à dimensão sensual a que ela expõe os homens. Ademais, nenhuma poesia poderia nem deveria estar no lugar da palavra de Deus. Sensações e tergiversações como os que a poesia é capaz de causar eram a senda para se desencaminhar do paraíso prometido no fim de uma vida de privações.

A poesia e a sensibilia que ela envolve, portanto, permaneceram marginalizadas no mundo medieval. Até mesmo a filosofia, por ser um método humano de se alcançar a verdade, desafiava os preceitos cristãos, uma vez que o caminho, a verdade e a luz eram tão somente Deus, e só através da palavra dEle poderiam ser alcançados. Para sobreviver na Idade Média, a filosofia como os gregos a faziam teve se ser mutilada. As obras de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, por exemplo, levaram Platão aonde ele sequer poderia imaginar. Muitos dizem que o platonismo no medievo foi espécie de estupro ao seu criador.

Todavia, a modernidade irrompeu com muitos cristãos filosofando sem que a fé ou a palavra de Deus os intimidassem tanto. Muito pelo contrário. Provar a existência, a perfeição e a infinidade de Deus de modo filosófico de certa forma foi o estopim da modernidade. A prova ontológica de Deus cartesiana é o ícone do casamento perfeito de Deus e o pensamento humano. Pensar o infinito sem o qual Deus não é passou a ser o desafio filosófico por excelência. A poesia, obviamente, nada podia nessa empresa. Sobreviveu enquanto entretenimento burguês. Porém, tampouco a filosofia se mostrou capaz de dar conta da infinidade.

Então entrou em cena a ciência moderna, que longe de se pautar pela sensibilidade poética, e ciente da impotência dos argumentos metafísicos, se valeu da matemática euclidiana e da física newtoniana para explicar o real infinito. Se restava alguma dúvida de que a filosofia era incapaz de tocar a verdade, Immanuel Kant, na sua Crítica da Razão Pura, deixou isso irreversivelmente claro. O filósofo evidenciou os limites da razão metafísica e estabeleceu que somente a ciência e a matemática podiam tratar da verdade, não obstante ao modo de produzi-la.

Apesar de ter apunhalado definitivamente a metafísica, o filósofo alemão deixou os campos da ética e da política ao encargo dela.  Porém, ela não poderia mais versar sobre o que válido necessária e universalmente, apenas sobre a dinâmica das relações sociais e dos valores morais, contingentes por natureza. E na sua Crítica da Faculdade do Juízo, a última de sua trilogia, Kant, tratando da beleza, outro lugar não reservou à poesia além de uma contingência particular de pretensão universal.

Contra essa herança inglória legada à filosofia por Kant, o filósofo alemão Friedrich Hegel empreende seu contundente sistema de pensamento, cuja pretensão era não deixar nada do que já havia sido produzido pelo homem de fora. Muitos dizem que Hegel tentou salvar a filosofia. Todavia, sua dialética “espiral histórica” que compreendia todo e qualquer movimento da razão não foi suficiente para tirar da ciência moderna seus cetro e coroa no reinado da verdade.

Outro filósofo alemão, Karl Marx seguiu o caminho hegeliano, todavia modificando o idealismo de Hegel no seu materialismo histórico. Marx, dando sobrevida ao pensar filosófico, revolucionou o pensamento ocidental ao propor que a filosofia não devia apenas seguir interpretando o mundo, como tinha sido feito até então, mas sim modificá-lo. Filosofia = revolução! Foi mais profético do que poético todavia. E, fazendo a crítica da economia política de seu tempo, mais economista do que filósofo. Entretanto, é considerado um dos filósofos mais influentes da história da humanidade.

Foi só com Friedrich Nietzsche que a ciência encontrou resistência à sua confortável exclusividade em relação à verdade. Filosofia e poesia receberam o vigoroso impulso do martelo nietzschiano e foram reapresentadas como expressões capazes de tocar e produzir o real. Para tanto, o filósofo, que na verdade era filólogo, teve de retornar às origens míticas dos antigos gregos para, de lá, intempestivamente, dizer à sua modernidade demasiado historicista que a ciência era mais um vício temporal do que uma virtude sempiterna. A destruição niilista nietzschiana dos fundamentos que deu cabo da modernidade não poupou a onipresença e a onipotência científica e função da vida, da vontade de potência, e, o que importa aqui, da poesia e da filosofia.

E o método de Nietzsche para relativizar tanto a ciência quanto a história, consideradas por ele de as prisões da modernidade, valeu-se da intempestividade, que sustentava que devemos sair do nosso tempo, sem no entanto deixá-lo totalmente, para, de outros tempos e com outras perspectivas, tratarmos dos assuntos que nos tocam, trazendo o passado ao presente com roupagens que a contemporaneidade ela mesma não conseguiria cozer. E mediante essa extemporaneidade estratégica e libertadora, a poesia e a filosofia puderam reingressar dignamente no pensamento e na expressão humanas.

Com a contemporaneidade a ciência não morreu, obviamente. Porém, a poesia e a filosofia se viram como que revivificadas. Claro, há quem diga que o que realmente estrutura a vida contemporânea é a ciência mesmo; que não há um espaço ou atividades humanos que não sejam atravessados completamente pelas produções científicas; blá-blá-blá… Não obstante, esquecem-se de que filosofia e poesia outrossim atravessam e constituem todos os espaços e atividades humanas, e cada vez com mais força aliás. Para ver somente a primazia da ciência há mesmo que se fazer um forte exercício de abstração para desconsiderar as esferas metafísicas e poéticas que atravessam o mundo.

Um belo exemplo disso é explicitado pelos próprios cientistas, mais especificamente os físicos quânticos que, tocando as fronteiras últimas do átomo, depararam-se com a dualidade partícula-onda na qual ora uma existência é partícula, ora onda; nunca as duas coisas, todavia, sem deixar de sê-las simultaneamente. Cada um desses dois modos existenciais, para esta ciência, se dá de acordo com o modo como se observa a realidade. Para então poderem falar dessa dualidade insuperável referente às partículas subatômicas, muitos cientistas afirmaram que a física quântica fez desaparecer a diferença entre ciência e poesia. Se non è vero, almeno è poetica!

O filósofo esloveno Slavoj Žižek segue mantendo aberto espaço para a poesia na compreensão da realidade para muito além de sua predileção por filmes hollywoodianos e anedotas demodês. Em sua obra A Visão em Paralaxe, o filósofo relembra a invenção renascentista da perspectiva que cartografou com precisão matemática a condição do sujeito moderno. A característica central da perspectiva medievalista era o estabelecimento rígido do ponto-de-vista (o sujeito), e do ponto de fuga (o infinito ao qual todas as paralelas convergem). Com essa apresentação, Žižek prepara o terreno para as imagens contemporâneas evidenciarem algo muito diferente: não mais o estabelecimento de um ponto-de-vista e de um ponto-de-fuga relacionados inexpugnavelmente entre si, mas, em vez disso, uma miríade de pontos-de-fuga e pontos-de-vista, misturados e alheios uns aos outros, todos ao mesmo tempo constituindo a superfície imagética do real.

A pertinência da poesia em respeito ao real que o pensador esloveno quer evidenciar está justamente no fato de que a liberdade do observador em relação ao que vê (resultado virtuoso da crise dos fundamentos; fruto do niilismo nietzschiano), se dá porque que não estamos mais presos a um ponto-de-vista e condicionados a um ponto-de-fuga determinados, mas, em troca, diante de infinitos pontos, que tanto podem ser tomados como sendo de fuga como de vista. Podemos, com efeito, montar tantas relações imagéticas perspectivadas quantas forem as nossas tomadas do real: poesia que ciência alguma é capaz de produzir.

Uma vez que a contemporaneidade niilizada dispensa qualquer hipóstase, qualquer substancialização, qualquer absoluto prévio de onde adviria alguma verdade eterna a ser capturada somente pela ciência e doravante deificada, é nessa livre verificação que a nós se apresenta a partir de infinitos pontos-de-vista-e-de-fuga-ao-mesmo-tempo que surge o que podemos chamar de verdade, se assim quisermos, ou, dependendo da verve com o qual nosso olhar se lança sobre o real, de poesia ou de filosofia.

Considerando as promenade históricas da poesia e da filosofia, em suma: o surgimento da poesia e o seu ultrapassamento pela filosofia ainda na Antiguidade; as trevas que ambras enfrentaram no Medievo; a superação delas duas pela ciência na Modernidade; e as suas intempestivas recuperações Pós-modernas; podemos até pensar que esse devires continuam obedecendo à espiral hegeliana. Se é assim, a poesia reinará absoluta novamente até que a filosofia lhe ultrapasse mais uma vez, e, decerto, a ciência supere ambas de novo. Hegel, então, repousaria eternamente em paz no seu túmulo.

Hipostasiar o movimento proposto pelo filósofo idealista alemão, entrementes, seria fazer do passado, melhor dizendo, de um pensamento passado, um claustrofóbico logos para o pensamento futuro. Vício indesejável que, se parece aparentado à virtuosa extemporaneidade nietzschiana, é porque se confunde regra com referencial. O futuro, se livre, não mais hierarquizará poesia e filosofia, mas, provavelmente, aumentará não só a pertinência de cada uma delas, como também a tensão entre elas duas, a ponto de cada vez mais ambas serem capazes de propor, senão dois ou mais reais distintos, ao menos muitos e distintos modos de pensar o único real que há.

A beleza salvará o mundo

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Parafraseando o poeta Vinícius de Moraes, os revolucionários que me perdoem, mas a beleza é fundamental. Esse perdão parafraseado, na verdade, é um pedido de paciência àqueles que, não sem razão, enxergam os perigos da frivolidade e da alienação na beleza, afinal, a besta capitalista há muito a sequestra para melhor e mais dissimuladamente agir contrarevolucionariamente. “Hesitamos a aprovar tal fascinação pelo belo: sabemos que ela dissimula a face atroz da realidade” diz o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov no seu livro intitulado com uma frase de Dostoievsky, que é o cerne do que se quer pensar aqui, qual seja: “A Beleza Salvará o Mundo”.

Em primeiro lugar, os revolucionários que não acreditam que a beleza nos salvará da vilania do inimigo capitalista deveriam saber que o “amigo” fiel, não só deles, mas em verdade de todos nós, qual seja, o comunismo, não é e não deve ser refratário ao belo. Afinal, “a beleza não conhece privilégios sociais e nem de classe”, diz Todorov, para quem “todos são iguais diante da beleza, e podem participar dela nas mesmas condições”. Mais ainda, de acordo com o filósofo alemão Immanuel Kant na sua “Crítica da faculdade do juízo”, o belo é alavanca do sentimento de comunidade; nas palavras dele: do sensos communis.

Antes, porém, de trazermos os argumentos de Kant e de seguirmos nos de Todorov e outros pensadores, o amor ao conhecimento, ou seja, a filosofia exige que comecemos pela investigação sobre o belo por excelência, o diálogo socrático escrito por Platão, “Hípias Maior”. Nele, o filósofo Sócrates pede ao sofista Hípias uma definição do belo. As respostas do sofista ao filósofo sobre a beleza são as seguintes: uma bela jovem; o ouro e o marfim com que se adorna as coisas; ser rico, respeitado e tratado com honrarias; o que é útil; o que é bom; o que agrada os sentidos; e, finalmente, que a Beleza é a salvação proveniente de um discurso bonito.

Não obstante, todas as tentativas do sofista não convencem o filósofo, afinal, Sócrates quer saber, não o que por acaso é belo, mas o que é “o belo”, isto é, aquilo que faz com que as coisas sejam, possam ser belas. A grande questão, infelizmente, permaneceu sem resposta. Não só porque o sofista sequer compreendeu o ponto do filósofo, uma vez que só pensou em coisas e ações belas em vez do belo-em-si, como também porque até mesmo Sócrates não sabia defini-lo. Em vez disso, mediante o seu paradoxal “só sei que nada sei”, o filósofo conclui o diálogo dizendo apenas: “o belo é difícil”.

Vinte e dois séculos depois, na modernidade, Kant encontrou uma solução para a questão irresoluta da beleza das mais elegantes. O alemão concorda com Sócrates em que o belo não está nas coisas belas, que não é uma propriedade que exista nelas independentemente da percepção humana. Porém, o filósofo moderno supera o antigo ao entender que o belo é um produto da nossa faculdade de ajuizar as coisas, que em si mesmas não são belas, mas sim a nossa disposição subjetiva diante delas.

Para Kant, quando nossos sentidos, mais privilegiadamente a visão, percebe um objeto que lhe causa espécie de prazer e, diante dessa complacência subjetiva espontânea, resistimos, de um lado, a conceituar tal objeto e, de outro, a dar-lhe qualquer utilidade, mas permanecemos apenas nessa relação de prazer contemplativo com ele, eis o belo: não o objeto, não a nossa capacidade para contemplá-lo complacentemente, mas a relação com ele livre dos conceitos e do pragmatismo humanos.

Porém, para entender como “a beleza salvará o mundo”, é preciso compreender que, para Kant, não basta um objeto, um indivíduo e o prazer subjetivo deste. Chave para o belo kantiano é uma paradoxal universalização desse particular subjetivo. Funciona assim: quando me comprazo contemplativamente com determinado objeto, o meu juízo só pode sustentar que ele é belo se, antes, eu pressupor que qualquer pessoa que porventura entre em contato estético, isto é, sensível com este mesmo objeto o ajuizará da mesma forma que eu.

Em suma, kantianamente falando, eu só consigo achar que uma coisa é bela ao presumir que ela será bela para todos. Mesmo que posteriormente certos indivíduos não concordem com o meu ajuizamento de gosto -o que é bem provável aliás- ainda assim esse meu juízo só é possível se a priori eu pressupuser que ele será universalmente considerado belo. Nas palavras do filósofo, “em todos os juízos pelos quais declaramos algo belo não permitimos a ninguém ser de outra opinião, sem com isso fundarmos nosso juízo sobre conceitos, mas sobre nosso sentimento: não como sentimento privado, mas como um sentimento comunitário.”

Espero que a esta altura o revolucionário refratário ao belo já possa baixar sua guarda, pois se o belo, por um lado, exige a pressuposição de um gosto comum, nas palavras de Kant, um sensus communis, isto é, um sentido comunitário, a beleza -embora fortemente coagida pelo capitalismo para alienar-nos da vil realidade que ele mesmo impõe-, por outro lado, é a essência daquilo pelo qual este revolucionário desde sempre esteve em luta, qual seja, o comum. E para quem acha que a revolução é antes racional, intelectual do que sensorial, Kant tem a dizer que “a faculdade de juízo estética, antes que a intelectual, pode usar o nome de um sentido comunitário”.

E isso porque a faculdade de ajuizamento estético, isto é, o gosto considera, e a priori, o gosto de todos os demais. Quando, ao contrário, tenho certeza de que algo é prazeroso apenas para mim, levo em consideração somente a minha sensibilidade, impossível de ser universalizada. Esse não seria o horizonte intransponível do burguês? Quando, ainda, o que me compraz parece que causará o mesmo somente em determinados indivíduos, isso se dá porque levo em consideração certos valores. Nesse sentido, se meu prazer, parecer-me, será igualmente prazeroso à maioria, meu sentimento subjetivo dirá que o objeto que o causa é bom. Então sou moral. Aqui não estamos no limite socialdemocrata?

Agora, enquanto pressuponho que todos terão prazer com aquilo que me apraz, o belo, que é o que surge dessa reflexão, é a ideia de que a mais espontânea e menos interesseira disposição subjetiva que eu posso experimentar não se dá sem a consideração de que a humanidade é uma só. Com efeito, coloca Friedrich Schiller, outro filósofo alemão, “a beleza revela nossa humanidade, ela é o nosso ‘segundo criador’”. E uma segunda criação seria o que senão a primeira revolução humana? A beleza, e o communis sem a qual ela não é, deve ser um princípio ao revolucionário.

“Não podemos ser um sem o outro; só a comunidade exprime a humanidade”, diz Feuerbach. Rousseau diz o mesmo, todavia de modo mais poético: “para conhecer seu coração é preciso começar por ler o coração de outrem”. E a beleza, segundo Kant, mutatis mutandis não exige o mesmo de cada indivíduo? Sem ela, ou temos o individualismo, cujo vício é o de remeter todos os prazeres somente a quem os sente, e dane-se o resto, ou, com sorte, a democracia, cuja pseudovirtude é se satisfazer com o prazer da maioria, não com o de todos.

Reduzindo a verticalidade entre a torre de marfim filosófica kantiana e o chão comum do revolucionário, Schiller afirma que, se a revolução se perdeu, é porque seus atores não estavam maduros para a liberdade. Seria preciso, portanto, proceder à educação desses atores; transformá-los em seres morais. E essa educação, garante o filósofo, é estética. Nas suas palavras, “é pela beleza que nos encaminhamos para a liberdade”. Grosso modo, para Schiller, submeter a vida às exigências do belo é o verdadeiro caminho para a liberdade.

Aqui já podemos ver, não a vitória, mas a dianteira do estético em relação ao político, e até mesmo ao ético. O escritor britânico Oscar Wilde concordava com isso. Para ele, a estética é um enriquecimento da ética e da política, muito mais do que a substituta alienante delas. Na sua controversa apologia à beleza, o antológico “O retrato de Dorian Gray”, Wilde sugere que “é melhor ser belo do que ser bom”, uma vez que a beleza não é apenas preferível ao bem, mas também “a única capaz de perdoar o mal”.

Dandismos à parte, o que o revolucionário deve tirar dessa ideia wildeana é que o bem não é tão potente quanto o belo no sentido de “perdoar toda a humanidade”, quer dizer, de contemplá-la em uma só disposição prazerosa de espírito. Ora, o bom, o moral, é aquilo que seria melhor em dada circunstância e em função de determinado fim. Nessa dimensão, entretanto, há espaço por exemplo até mesmo para o capitalismo passar por um bem, por fim a ser perseguido. Sua força e incontáveis apólogos worldwide provam isso muito cruelmente.

Já o belo é a perfeição incondicional! Há na sua contemplação um prazer que, embora produzido subjetiva e individualmente, todavia porque só se finaliza na contemplação a prior de todas as demais subjetividades, ou seja, da humanidade inteira, assalta-nos a nós próprios e faz com que sintamos que a perfeição só é produzida coletivamente, comunitariamente. O belo, para ser, sopra ao mesmo tempo duas coisas maravilhosas no nosso ouvido: um gratuito e espontâneo prazer contemplativo, e a certeza de que temos um gosto em comum com a humanidade inteira. A beleza e o communis sem o qual aliás ela não é, é essencial ao comunismo.

Kant, além de resolver elegantemente a antiga questão socrático-platônica acerca do belo, com a sua “Crítica da Faculdade do Juízo” também dá o caminho das pedras ao revolucionário, evidenciando que o indivíduo, diante de seu gosto, para poder ajuizar que algo é belo, precisa se colocar em pé de igualdade com todos os gostos do mundo. Claro, o comunismo tem muitos outros e dificílimos desafios. Todavia, sem esse princípio prazeroso, universalizante, comunitário envolvido na beleza, sequer poderia pensar em um primeiro passo.

A revolução, portanto, é primeiramente estética. Só depois pode ser ética, moral, política, econômica, científica etc. Pois, como já disse o ensaísta francês Michel de Montaigne, “no estado estético, todo mundo, mesmo o trabalhador que é um mero instrumento, é um cidadão livre cujos direitos são iguais aos do mais alto nobre”. Ao contrário do que disse Sócrates à Hípias, não é o belo que é difícil. Ele é fácil e acessível a qualquer um. Mudar o mundo, fazer a revolução é que ainda seguem complicados para nós. Talvez porque ainda acreditemos que esses desafios não têm e não devem ter nada a ver com a beleza.

Uma reflexão sobre a banalidade da corrupção

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A corrupção estrutural do sistema político brasileiro nunca esteve tão desnudada. Não que os brasileiros não soubessem dela, mas até bem pouco tempo ainda era mistério para a maioria seu modus operandi detalhado e, principalmente seu alcance. Essa parcial ignorância, por sua vez, mantinha silenciosa espécie de permissividade em relação à corrupção. Não foi à toa que os brasileiros cunharam e repetiram resignadamente por muito tempo a famigerada máxima “rouba, mas faz”.

Hoje, porém, com investigações como a Lava Jato, e com a  massiva divulgação midiática dos esquemas de corrupção entre a classe política e grandes empresas, como empreiteiras e a Petrobras, a permissividade da população em respeito à corrupção -a dos políticos, diga-se de passagem- se reduziu drasticamente. Afronta-nos profundamente, aliás. Arrisco dizer inclusive que há uma perigosa histeria instantânea ao menor indício de envolvimento de qualquer político nesse velho esquema corrompido.

Já não era sem tempo! Entretanto, há certa desmedida, altamente alienante, é preciso frisar, nessa radicalidade coletiva contra a corrupção. Tanto que milhares de brasileiros, indignados com a evidenciada corrupção sistêmica, de uma hora para outra foram às ruas, de verde, amarelo e panelas ruidosas, contra uma presidenta suspeita de crime fiscal, ao lado, e o que é pior, sob ordens implícitas de políticos deslavadamente corruptos. Note-se, a presidenta em questão, até aqui, não consta em nenhuma das longas listas de ladrões e propineiros, estes sim apólogos do impeachment daquela! A desmedida da indignação popular produz esse absurdo: crucificar uns para que paguem pelos “pecados” de outros, muito mais “pecadores”.

A histeria é uma patologia. Sua presença não faz com que se pense ou aja de modo racional. Sem dizer que, por outro lado, a recência do conhecimento pormenorizado da corrupção sistêmica confronta o brasileiro com a incapacidade de lidar com ela de modo objetivo. Não que se deva perdoar os corruptos. Isso seria justificar o injustificável. Todavia, para agirmos com justiça, melhor dizendo, para que justiça seja feita, é fundamental que entendamos, e coletivamente, não só o que a corrupção tem de mais evidente e recente, mas, principalmente, suas velhas e ocultas raízes.

Tarefa difícil que, não obstante, eu tive necessidade de praticar por conta de um situação particular e contingente. Diferente da maioria da população, que vê nas redes sociais, nos jornais e na televisão um político atrás do outro ser incriminado por recebimento de propina e desvio de verba pública, e que a esta distância midiática resta somente o ódio e o desprezo a eles, eu conheço intimamente um dos envolvidos e punidos na operação Lava Jato. Para evitar expor o meu conhecido ainda mais –e uma vez que um nome em particular nada altera o que se quer pensar aqui- irei chamá-lo de X.

X é um pai de família, educado, gentil, carinhoso, atencioso e com um bom coração. Quando eu, certa vez, atravessava uma grande dificuldade na vida, X, sem que eu pedisse, e sem exigir nada em troca, salvou-me do apuro. Minha gratidão só não é constante porque eu me esqueço dela no prazer de estar com ele e com sua família em aniversários, natais, réveillons etc. Foi essa particular conjuntura, portanto, que impediu que eu fosse histérico, isto é, cegamente taxativo em relação ao crime de que X foi primeiramente acusado, e pelo qual, atualmente, paga pena.

Novamente, não que a minha intenção seja a de justificar o fato de X estar envolvido nos esquemas de corrupção. Desde o princípio, porém, minha tendência foi a de entender porque cargas d’água uma pessoa com tantas boas qualidades se envolve em procedimentos, hoje em dia, inaceitáveis. Algumas pessoas que conhecem minha relação com X costumam perguntar: “será que ele não se arrepende de ter roubado?”. Ou ainda: “valeu a pena ser preso e sujar o nome da sua família por dinheiro?”

Obviamente, ser preso, afastado da família e estigmatizado nacionalmente é terrível, seja para quem de fato roubou, seja para qualquer um. Só mesmo um psicopata para não se sentir péssimo e extremamente arrependido com tal situação. Mas, como eu sei muito bem, X não sofre de psicopatologia alguma. Muito pelo contrário. Reforço: é uma pessoa bastante sensível, amorosa e gentil. Como, então, entender o envolvimento dele em um universo tão vil e condenável?

Para tal entendimento, o título desse relato, qual seja, “Uma reflexão sobre a banalidade da corrupção”, faz referência à obra de Hannah Arendt chamada “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, na qual a filósofa reflete sobre as responsabilidades individuais no moderno estado burocrático a partir das ações de Adolf Otto Eichmann, político/militar da Alemanha nazista, responsável por organizar o transporte de judeus para os campos de concentração. Em suma, para a morte. E por tentar entender os atos de Eichmann para além do próprio Eichmann, Arendt foi extremamente criticada ao desenvolver a sua tese sobre a “banalidade do mal”.

Eichmann, segundo Arendt, não demonstrou ser um homem violento, rancoroso nem sanguinolento. Em suma, não era nem de perto o monstro que todos esperavam que fosse. E questionado sobre sua consciência, se se arrependia do genocídio com o qual colaborou, o nazista afirmou que, de início, até se sentia inseguro, mas ao perceber que todos os seus pares vivenciavam com honra a construção do extermínio judeu -e isso porque todos acreditavam que se tratava objetivamente da recuperação econômica da Alemanha-, suas dúvidas se dissiparam.

No controverso livro, Arendt evidencia que o mal, uma vez banalizado, pode ser cometido inadvertidamente por pessoas comuns, que nunca optaram por ser más nem fazer mal a alguém, mas que, diante de imperativos circunstanciais, pela necessidade de cumprir certas regras urgentes, agem maleficamente, todavia, sem ter a menor consciência disso. Por isso a filósofa foi criticada, afinal, como é possível entender um genocida afirmando ele não tinha consciência do mal que praticava, mas estava apenas seguindo cumprindo a burocracia?

Assim como Arendt em relação ao suposto mal de Eichmann, eu recebo críticas por tentar entender o meu amigo X diante do crime pelo qual paga. Não obstante, outrossim como a filósofa alemã sabia que o mal genocida de Eichmann precedia e superava o próprio Eichmann, eu sei que o mal da corrupção na qual X esteve envolvido precede e supera em muito X. Isso, aliás, não é mistério para brasileiro algum. Afinal, tanto faria se X fosse ciente do mal que seu envolvimento com a corrupção traria ou a ele ou ao Brasil. Se ele tivesse se recusado desde o princípio a participar do círculo corrompido, certamente teria sido substituído por alguém que não se negasse ao velho modus operandi do real político tupiniquim. O mal da corrupção teria seguido com passos firmes. Suas pegadas, porém, apenas não seriam as de X, mas as de Y, Z, etc.

Demonizar histericamente X pela corrupção estrutural do Brasil que hoje está desmascarada, portanto, é uma dupla injustiça. Em primeiro lugar, contra o próprio X, que, individualmente, não inventou a corrupção generalizada nem tampouco seria capaz de fazer com que ela desaparecesse com virtude individual de consciência alguma. E em segundo lugar, com a própria corrupção sistematizada, pois, uma vez ela disfarçada com a máscara de X, mais facilmente prosseguiria firme e forte, corrupta como sempre, e o que é pior, impune. Entender isso é evitar fazer do boi-de-piranha a voracidade mortífera da piranha ela mesma.

Assim como Arendt, que por ser judia ficou presa em um campo de concentração, viu o mal de perto e pôde observar como ele consegue ser banal, X, por sua vez, porque estava imerso no corrompido campo político brasileiro, também viu o mal da corrupção banalizado, a ponto de sequer percebê-lo como tal, mas, culpa da banalização, como procedimento de rotina. Do mesmo modo como foi assombroso entender que o mal genocida nazista não tinha a intenção da maldade pura e simples, é chocante ter consciência de que o mal da corrupção tupiniquim não tinha, até bem pouco tempo, o propósito da corrupção ela mesma. Antes, era dissumuladamente o modo como as coisas sempre foram.

Sobre o genocídio nazista, as leis eugênicas de Hitler, conta-nos o filósofo Michael Sandels, foram muito elogiadas na época, inclusive pelos EUA. A morte de milhões de judeus pelos nazistas, pasmem, atendia a um objetivo progressista, racionalizado e por isso mesmo banalizado, capaz de ser compreendido e admirado internacionalmente. Tanto que, para Eichmann, cuidar do transporte de milhares de judeus à Auschwitz ou Treblinka era uma simples questão de logística, devendo ser realizado com competência e presteza. Só para termos noção da banalização, Eichmann confessou que ninguém nunca lhe disse que isso era errado ou que poderia ser questionado futuramente.

Disso devemos concluir que, assim como o genocídio não era considerado uma monstruosidade até o extermínio dos judeus pelos nazistas, participar da estrutura corrupta brasileira, até bem pouco tempo, também não era o fim do mundo. Na verdade, culturalmente, até significava espécie de esperteza, de senso oportunidade, muito mais que uma vergonha a ser evitada a qualquer preço. Assim como o monstro genocida como o conhecemos foi inventado após 1945, a monstruosidade escancarada e imperdoável dos políticos corruptos brasileiros é um produto da década de 2010.

Arendt fez questão de frisar que Eichmann não se arrependia do genocídio do qual era cúmplice porque não se considerava culpado. O político-militar alemão via a si mesmo apenas como um soldado patriota cumpridor de seus deveres. Tanto que era chocante ver a frieza e indiferença com que narrava suas cruéis práticas genocidas, como se se tratasse apenas do cumprimento de um cronograma, tamanha a banalização. E independentemente de o meu amigo X ter se arrependido ou não – posição subjetiva de que não tenho como saber verdadeiramente-, chamou-me atenção suas descrições, na delação premiada que fez para reduzir a sua pena, das transações ilegais, seja das quais participou, seja das quais tinha conhecimento, de forma corriqueira, como se se tratasse de procedimentos convencionais. E isso porque eram convencionais até então.

A banalidade do mal de Arendt ensina a entender que quando algo é praticado em larga escala, seja a morte de milhões de judeus, seja o roubo de bilhões de reais, o mal acaba se tornando coisa habitual, e ninguém mais dá a ele a devida atenção. Depois de algumas centenas de judeus mortos na Segunda Guerra, o extermínio do restante dos cinco milhões pelos nazistas foi fruto de uma automaticidade, de uma banalidade. Da mesma forma, depois que a corrupção já era uma velha senhora na terra brasilis, participar dela era banal. Outrossim, depois que meia dúzia de negros pobres são assassinados pela polícia carioca, suportamos sem alterar a nossa rotina o fato de, no Brasil, ocorrem quase 60.000 homicídios por ano. O mal é facilmente banalizável.

Por isso, quando penso no meu amigo X, esse pensamento é e deve ser duplo e distinto. Por um lado, pelo crime particular em função do qual foi condenado, acho ele deve sim pagar a pena devida. Disso resulta o grão mínimo de justiça no nosso país. Por outro lado, porém, não deve ser sobrecarregado com a corrupção sistêmica que o precede e supera em muito. E isso porque, demonizando-o pelo que existe a despeito dele, o grande demônio da corrupção generalizada escapa, pois se disfarça com máscara de X -ou de Y, ou de Z. Essa segunda consideração, por sua vez, traz a possibilidade de uma justiça em nível macro.

A histeria de se mascarar o mal com o rosto de alguém especifico, na verdade, pode ser o desesperado daqueles que não querem ver nesse grande mal os seus próprios rostos. E isso porque, como diz o historiador brasileiro Leandro Karnal, “não existe país com governo corrupto e população honesta”. Também pelo que disse Aristóteles, qual seja, que “a qualidade de um estado é a qualidade de seus cidadãos”. Tal é a patologia envolvida na histeria da maioria da população brasileira em relação à corrupção que, somente para além de suas auras pessoais é aceita que seja “generalizada”. Fazer de X o rosto do mal da corrupção brasileira outra coisa não é que dar prosseguimento ao longevo baile à fantasia da corrupção política tupiniquim.

Exigir que Eichmann soubesse que o genocídio viria a ser considerado um mal absoluto antes dessa maldade absoluta ser histórica e coletivamente construída, é uma injustiça individual. Claro, sua ignorância em relação aos conceitos e valores futuros não deve justificar perdão algum, mas certa compreensão. Puni-lo, exclusiva e espetacularmente, apenas dissimulou a origem e a responsabilidade do mal genocida. Tanto que até hoje vemos grupos nazistas em vários lugares do mundo cometendo, em menor escala todavia, absurdidades como as que Hitler acreditava serem fundamentais.

Aqui lembro de uma polêmica afirmação do filósofo Slavoj Žižek, qual seja, que Hitler não foi mau o suficiente. O que Žižek queria dizer com isso é que se Hitler tivesse sido absolutamente mau, não teríamos até hoje pessoas e instituições achando que a solução de certos problemas é a morte de judeus –ou negros, ou gays, ou muçulmanos. Mas como a persistência do pensamento nazista é algo real, Žižek tem razão: faltou Hitler ser mau a ponto de sua maldade ser universalmente considerada inaceitável. E a demonização particular de Eichmann, de certo modo, é a parcial absolvição de demônios maiores: o próprio espírito nazista.

Mesmo que Eichmann tivesse se recusado às ordens de Hitler, no melhor dos casos ele teria sido substituído, e, com certeza e infelizmente, nenhum dos judeu mortos teria escapado da ignomínia nazista. Igualmente, se meu amigo X tivesse se recusado a participar da velha e corrompidíssima máquina política brasileira, outro faria isso no seu lugar, pois o verdadeiro problema é a estrutura, e não uma ou outra engrenagem sua, todas banalmente substituíveis. Sendo assim, meu amigo X deve pagar o seu quinhão, porém, não mais que isso. Do contrário, estigmatizado pela longeva corrupção brasileira, pagará sozinho por um crime muito maior do que ele. E assim a grande corrupção segue parcialmente ocultada e, consequentemente, parcialmente livre. E enquanto isso, não há justiça, tampouco o fim da corrupção no Brasil.

Filosofia pop: utopia do pensamento?

pop

Diante da filosofia secular&acadêmica, qualquer outra forma de pensar que se pretenda filosófica tem a receber apenas um lugar indevido. Um não-lugar. Em uma palavra: atopos. Quem quer que seja que busque lugares outros para o pensamento que não o tradicional acadêmico é chamado ou de incompetente, por não pensar com eficiência nem com cientificidade, passaportes V.I.P à Torre de Marfim filosófica, ou, no melhor dos casos, de utópico, uma vez que utopia é o que não tem lugar ainda –mesmo que não haja nada nela mesma que a impeça de ter lugar na realidade.

Como a incompetência, porém, não é exclusividade somente de pensadores marginais e alternativos, mas também é compartilhada por muitos dos que povoam e povoaram as academias de todos os tempos e lugares, o pensar para além dos muros acadêmicos não é essencialmente incompetente, ficando a cargo de cada pensador realizar sua tarefa pensante com a envergadura de que é capaz. Sendo assim, ao pensar alternativo resta a dignidade de ao menos ser utópico: um pensamento que, se não encontra lugar ainda, não é por culpa sua, mas por responsabilidade desse “ainda” até então refratário ao novo. O que seria essa utopia do pensamento em alternativa à realidade acadêmica?

O filósofo brasileiro Charles Feitosa, na mesa de discussão chamada “A terceira margem da cultura”, aponta um caminho interessante para acossarmos uma outra via de pensamento que não a academicista,  nem tampouco a popular -de que os acadêmicos tradicionais aliás têm aversão declarada. Antes, porém, de nos debruçarmos no que Feitosa coloca de interessante a respeito de um pensar diverso do tradicional e do popular, é preciso frisar que “A terceira margem da cultura” faz alusão óbvia à “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, conto que participa de “Primeiras Estórias”, publicado em 1962.

Na narrativa rosiana, um homem manda construir uma canoa para habitar a famigerada terceira margem do rio. Depois de se isolar do mundo em sua canoa terceiro-marginal, isto é, de deixar as duas velhas margens do mundo, este homem, na verdade, passa a habitar a categoria do diferente, do insólito, da estranheza, aspectos recorrentes da literatura de Rosa. De modo geral, os personagens de Primeiras Estórias são sempre seres de exceção, de atitudes surpreendentes, que transgridem as regras sociais ou apresentam anormalidades físico-psíquicas.

Entretanto, segundo a teórica e crítica literária Linda Hutcheon em sua obra “Poética do Pós-modernismo”, os personagens de “Primeiras Estórias”, e consequentemente o canoeiro marginal de “A terceira margem do Rio”, mesmo manifestando suas excepcionalidades e estranhezas contundentemente, são dotados de intrigante coerência, ainda que tal pertinência não seja percebida imediatamente por aqueles que os margeiam. Daqui já podemos reservar a ideia de que qualquer que seja a terceira-marginalidade, seja a do rio, seja a da cultura, seja ainda a do pensamento, a este estranho topos devemos resguardar seu potencial lógico e racional, por mais aberrativo que a princípio possa parecer.

Hutcheon ressalta que “A terceira margem do rio” apresenta a imagem da travessia como alegoria do viver. Uma vez que essa imagem traz consigo a simbologia da existência humana, a escolha do personagem pela terceira margem é a escolha de um espaço de exceção, marcada pela eleição do insólito, do entrelugar, do não-lugar que é uma terceira margem em relação às duas que formam qualquer rio. Mais ainda, a autora aponta que a simbologia do três indica a fase final de um conflito, a sua resolução dialética.

Desse modo, a canoa insólita é o não-lugar que recusa tanto o lugar do uno, do absoluto, como também o lugar da bipolaridade. A terceira margem, na qual a canoa ancora ao modo de ser o próprio ancoradouro, é o topos terceiro no qual as contradições e opostos estão reunidos. Em um termo filosófico: o momento de síntese. Preferir continuar na canoa, e não nas margens que o mundo oferece gratuitamente, fala da “consciência do aspecto mutável da existência. Se a travessia representa a vida, a embarcação seria o próprio meio de conduzi-la”, reitera Hutcheon.

Então, para nos aproximarmos do que seria uma terceira margem ao pensamento, comecemos pela pergunta de Feitosa: “Qual seria a terceira margem da cultura?” . O filósofo, todavia, começa lembrando quais são as primeiras duas. “Então –diz ele- eu tô [sic] partindo do pressuposto que as primeiras duas margens da cultura são a divisão entre o erudito e o popular. E a busca de uma terceira margem é uma tentativa de escapar desse antagonismo, dessa oposição, e provavelmente de uma hierarquia que costuma existir entre esses dois polos: de um lado, a cultura acadêmica … de outro lado, a cultura de massa e a arte popular”.

E Feitosa assim coloca para lembrar que em filosofia essa dicotomia também é muito presente. De um lado, o erudito, de outro, o popular. Sem deixar-nos esquecer de que em filosofia o popular é visto como muito negativo. “Tudo que tá [sic] ligado ao cotidiano é visto como algo inferior. E todas as tentativas de popularização da filosofia são consideradas simplificações e empobrecimentos”, aponta o filósofo. Talvez o rigor acadêmico pense assim porque de sua Torre de Marfim não mais possa enxergar que, nas palavras de outra filósofa brasileira, Marcia Tiburi, “o verdadeiro pensamento é sempre orgânico, ele nasce da vida vivida de cada um”.

Com um pé na soleira da Torre Erudita e Marfínea, e outro no chão nômade e popular do pensamento comum, Feitosa diz: “a minha tentativa é experimentar um caminho que escape dessas duas margens e tente uma terceira, que eu chamo -quer dizer, na verdade eu roubo o conceito do Deleuze, filósofo francês- de filosofia pop, uma experiência de pensamento que tá [sic] tentando desrespeitar os limites dessas duas margens tradicionais”.

“Mas aquele que se dedica à filosofia também deve ter alma de um engenheiro e de um arquiteto. Deve ser um bom construtor de pontes. A ponte é o método, o caminho, capaz de ligar territórios isolados”, diz Tiburi. A terceira margem do pensamento, aqui a filosofia pop, seria uma estranha arquitetura do pensamento, uma insólita engenharia do desejo de conhecer, que deve ser capaz de pensar/unir o que até então está cindido. Nas palavras de Feitosa, ser “capaz de falar sobre o uso de controle-remoto, tanto como falar também de um conceito como liberdade em Hegel … capaz de entrar tanto em diálogo com Kant como com Lupicínio Rodrigues … de dialogar com Shakespeare quanto com as letras da Legião Urbana.

Depois de navegarmos pela terceira margem do rio de Rosa, onde está atracada a estranheza, todavia coerente e vivaz, distante da normalidade duas margens; pela terceira margem da cultura, que entremeia a cultura erudita valorizada e a popular desvalorizada; e aqui o que mais importa, pela terceira margem do pensamento, que na lógica de Hutcheon equivaleria à superação da rivalidade dialética entre as duas margens pensantes, a erudita/acadêmica e a popular/comum, temos que a filosofia pop, em uma imagem, é a canoa rosiana que se recusa a ancorar definitivamente nas duas margem tradicionais do rio do pensamento.

Canoa nômade. Ancoradouro clandestino e semovente. Ilha utópica. Tudo isso cabe como metáfora para a filosofia pop. Se o pensamento erudito e o pensamento popular são os dois lugares de onde costumeiramente se pensa, a filosofia pop não deve ver problema em ser o não-lugar da perspectiva daqueles.

Antes, porém, de nos perguntarmos o que afinal é filosofia pop?, cabe nos familiarizarmos com esse estranho lugar chamado não-lugar que estamos fazendo ser o lugar mesmo do pensar pop. “Não-lugar” é um termo cunhado pelo antropólogo francês Marc Augé no início da década de 1990 para designar os espaços de passagem incapazes de dar forma a qualquer identidade. Como exemplo fáceis de não-lugares Augé cita as auto-estradas, os aeroportos, os supermercados, os estacionamento, os elevadores. Em suma, lugares nos quais os indivíduos permanecem em trânsito, em espera ou apenas estão de passagem.

Não obstante, antes de deduzirmos que o não-lugar augéano está mais próximo do atopos ou do distopos do que do utopos, o que definitivamente aridificaria este estranho lugar à harmonia a que se pretende a filosofia pop, é fundamental ressaltar que para o antropólogo é através dos não-lugares que se revela um mundo provisório e efêmero, envolvido com o transitório e, em plena consonância com a terceira margem rosiana. Em suma, os não-lugares são os topos excelentes para uma época que se caracteriza pelo excesso de fatos, de espaços e de referências.

Talvez somente nessa esquisita ilha/canoa chamada filosofia pop possamos pensar de um só golpe, e sem sermos devorados pela complexíssima esfinge da contemporaneidade, a existência do controle-remoto nas nossas vidas, a liberdade em Hegel, o moralismo político de Kant, o sentimentalismo rasgado de Lupicínio Rodrigues, o estilismo supérfluo porém genial de Shakespeare, a melancolia Rock and roll das letras da Legião Urbana –para ficarmos nas imagens de Feitosa-, e todo o resto que nos cerca excessivamente.

Insistindo um pouco mais na nas ideias de Augé, seus não-lugares, por essência, promovem tanto o abandono quando o retorno a elementos de nossa cultura. Aqui reencontramos as pontes arquiteturais-filosóficas de que falava Tiburi. O filosofo pop, habitué dos não-lugares, mantém o privilégio de poder pensar, se assim desejar, só em Kant, ou só em Beyoncé, por exemplo, e o que é mais importante, daquele a esta, ou vice-versa, uma vez que não se desconecta definitivamente de nenhum dos dois.

Dando mais uma e última volta no parafuso augéano, o autor avisa que o usuário do não-lugar -para nós o filósofo pop-, infelizmente tem a tarefa inglória de provar constantemente a sua inocência. E isso porque quem frequenta os não-lugares está sempre voltando aos lugares com palavras e noções estranhas que, no entanto, como os estranhos personagens rosianos de Primeiras Estórias, fazem pleno sentido aos que nunca deixaram tais lugares. A estranha experiência de explicar o óbvio!

Porque embarca na canoa/utopia do pensamento novo, e se afasta deliberadamente dos “continentes” do pensamento tradicional, o filósofo pop, em qualquer retorno, não escapará de pagar pedágio epistemológico aos que nunca saíram de suas zonas de conforto. Essa é a estranheza, para muitos incompreensível, do não-lugar de Augé, que é a mesma tanto para o personagem de A terceira margem do rio quanto para o filósofo pop: a experiência solitária da comunhão de todos os destinos. Mas isso somente porque não está em destino algum, mas no trânsito infindável entre todos eles.

Agora chegou a hora de aportarmos na ilha utópica da filosofia pop, que transita clandestinamente entre o erudito e o popular, e fazermos a pergunta que Feitosa usa para intitular seu manifesto: “O que é isso – Filosofia Pop?” Abstratamente, “trata-se de uma maneira de ler, de escrever, de pensar”, coloca o filósofo. Todavia, de modo mais concreto, “a filosofia pop cumpre o que a sua época exige; busca atender as tarefas que a sociedade lhe impõe”.

Entretanto, no seu manifesto Feitosa adverte que se a tarefa da filosofia pop for simplesmente tratar do que está em voga, ou seja, daquilo que é “urgente”, e não do que é “essencial”, sendo que, para o filósofo, “urgente é tudo o que pertence à ordem do imediato”, e que “o essencial de um problema pertence a um outro plano, para além dos ditames da moda”, então não estamos falando de uma nova forma de pensar, mas de outros modos preexistentes de falar do real, como o jornalismo, ou de produzir realidades acessórias, como a propaganda.

Feitosa, não obstante, adverte que “a filosofia pop não é ‘filosofia engajada’, mas é micropolítica, promove e permite desterritorializações. Abandonar o território, com suas regras, repressões e microfascismos e reterritorializa-se, quer dizer, buscar alternativas dentro do sistema, abrir linhas de fuga”, e não vias absolutas e impositivas. “Na verdade a filosofia tem um que de antimoda, de extemporâneo, de não-pop”, coloca Feitosa.

Mas se a filosofia em si mesma não pode prescindir do extemporâneo, do não-pop, a filosofia pop, por ser também filosofia, tem uma tarefa árdua, qual seja, ser pop e anti-pop ao mesmo tempo. Até onde ser atual e até onde não? A partir de que ponto assumir o urgente e em que estágio descartá-lo para suprassumir o essencial? Certamente os filósofos tradicionais e acadêmicos não se deparam com este dilema, uma vez que tratam do que é universal e necessário. Tampouco os pensadores populares, cujo universo de pensamento orbita em torno do que é particular e contingente. Aliás, de outra perspectiva, não seriam estas as duas margens, a da universalidade e necessidade e a da particularidade e contingência, em relação às quais a filosofia pop é e deve ser a terceira e estranha?

A pop filosofia não teria a tarefa de pensar, por exemplo, a liberdade, de um lado, em sua forma necessária e universal -e aí entram Hegel, Kant, e quem quer que seja da Torre de Marfim filosófica-, e, de outro, não deixar de fora desse pensamento as experiências particulares e contingentes envolvidas na privação da liberdade, para, mediante um hibridismo demiúrgico e intempestivo, não emudecer diante de um real contemporâneo que ao mesmo tempo em que ordena que as pessoas realizem os seus desejos livremente, também contém regras e privações que vão justamente no sentido contrário?

Podemos ou não dizer que a filosofia pop é uma ilha utópica onde se harmoniza a esquizofrenia que nasce da oposição das duas margens do real, que tanto podem ser as do erudito e do popular como também as do certo e do errado, do livre e do interdito, do bem e do mal? Arquipélago relacionista? Essa dicotomia claustrofóbica da contemporaneidade, com cada polo jazendo irredutível em cada uma das duas sempiternas margens, porventura não seriam horizontes distópicos em meio aos quais a terceira margem pop transitaria utopicamente?

Para entender melhor a questão entre filosofia pop e filosofia tradicional vale percorrer a relação que Feitosa faz entre a filosofia pop e a arte pop. Assim como os pensadores pop se libertam do pensamento tradicional, os artistas pop também experimentaram uma impertinente liberdade, por exemplo, em relação ao expressionismo abstrato da arte moderna, considerado por eles demasiado intelectual, e o que é pior, alienado da realidade. Nas palavras de Feitosa, os artistas pop “ajudaram a consolidar o conceito ‘pop’ como algo imaginativo, rebelde, original, irreverente, crítico e alegre. Era uma nova estética, uma nova sensibilidade, enfim, uma linha de fuga de dentro do sistema”.

Aqui é inevitável não fazer um paralelo entre essa “linha de fuga” justamente de “dentro do sistema” e o conceito de TAZ (zona autônoma temporária), cunhado pelo pensamento filosófico-anárquico-poético, e por que não dizer, pop, de Hakim Bey. De fato, a TAZ é um espaço de não-sistema. Em uma palavra, um não-lugar necessariamente originado dentro do lugar em relação ao qual a autonomia se faz necessária, ainda que efemeramente. A TAZ seria uma ilha intempestiva e utópica dentro do continente temporal e distópico do real. Aliás, esse real distópico a ser “desaparecido” local e efemeramente é o princípio ativo das TAZes! Sendo assim, tanto a arte pop quanto a filosofia pop seriam zonas autônomas temporárias que irrompem de dentro do sistema estabelecido para dar origem ao novo, ao estranho, ou mais generosamente, ao que é reprimido.

Entretanto, adverte Feitosa, “a filosofia pop segundo Deleuze não pretende ser apenas uma forma de tolerância com o não-filosófico, mas é um assumir com dignidade a dimensão não-filosófica que está no coração mesmo da filosofia”. Na metáfora da ilha/terceira-margem utópica, em distinção às duas margens/continentes distópicos, a filosofia pop seria o não-lugar harmônico onde tanto a filosofia tradicional poderia reencontrar algo de sua essência perdida, quanto o pensamento vulgar avistar horizontes mais expandidos. E uma TAZ onde o pensamento se reconcilia com todas as suas possibilidades é o que senão a mais necessária utopia?

É de suma importância atentar ao que coloca Feitosa, que “a filosofia pop segundo Deleuze caracteriza-se justamente por colocar em relação constante a filosofia e a não-filosofia, deixando assim que diferentes saberes se interfiram, ressoem, repercutam entre si”. Por isso, diz Deleuze, todavia nas palavras Feitosa, “uma maior preocupação com a forma do que com o conteúdo”. E isso porque, trazendo Tiburi para corroborar com os dois filósofos, “quando falamos em filosofia o importante é entender caminhos, não simplesmente conteúdos”.

Feitosa encerra o seu manifesto à filosofia pop contando de sua apreciação por uma expressão inglesa, qual seja: “to pop the question”, usada para se “propor em casamento”, mas que, literalmente, significa “explodir a questão”. E isso para dizer que “talvez a filosofia tenha que ser sempre e de cada vez ‘pop’ no sentido de deixar explodir as questões que são essenciais, ex-vertendo e reorganizando insolentemente as distinções e hierarquias entre conceito e imagem/som; ciência e arte; profundo e superficial”, coloca Feitosa.

Desse modo, “to pop the question”, isto é, “explodir a questão”, seja, tanto para Deleuze, Feitosa e Tiburi, dar forma a um conteúdo de maneira que este conteúdo seja pensado, pensável, não estritamente de modo filosófico, mas sem deixar de sê-lo, todavia num hibridismo com o popular que não torna nem esse conteúdo nem essa forma alienígenas à filósofos e não-filósofos. Afinal, a utopia de uma filosofia terceiro-margista institui um topos para si quando o não-filósofo aprende a pensar filosoficamente porque o filósofo reaprendeu a pensar não-filosoficamente.

 

A pseudomelancolia da intelectualia de esquerda

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“Melancolia de esquerda” é o nome de um ensaio de Walter Benjamin, escrito na década de 1930, a respeito da “poesia de esquerda” do alemão Erich Kästner, mas que, de modo geral, trata da pretensa intelectualidade revolucionária de sua época. Prestes a fazer noventa anos, o texto de Benjamin, no entanto, tem uma juventude assaz pertinente, senão à conjuntura mundial, pelo menos a todos os que são afetados negativamente pela crísica realidade política brasileira.

Vladimir Safatle, filósofo brasileiro, disse recentemente que a melancolia dos brazukas diante do atual Golpe Branco de Estado é mais do que uma simples reação triste e impotente diante de algo que foi perdido. Antes, e estrategicamente, é o afeto mais conveniente aos “Golpeadores Brancos”, pois melancólicos podemos muito menos contra eles. Por isso Safatle coloca que, diante do golpe, “nós precisamos fazer uma crítica dos nossos afetos”, mais especificamente da melancolia, pois sem esse trabalho crítico seguiremos afetados negativamente, isto é, melancólicos e golpeados, e os nossos algozes, realizados e potentes.

As manifestações contrárias ao atual golpe brasileiro que mais chamam a atenção, tais como os virtuais&hashtaguicos #nãovaitergolpe, #foraTemer e #voltaDilma, ou os presenciais-quase-hedonistas shows de artistas consagrados da MPB em prol da democracia por exemplo -sem dizer dos alienantes encontros do tipo Ioga ou pedalada contra o golpe-, por mais entusiasmantes e revolucionários que possam parecer, na verdade, são apenas formas coletivas através das quais a melancolia individual, portanto a impotência, é cultivada inadvertidamente. Em primeiro lugar, porque enquanto nos deliciamos ouvindo juntos boas e clássicas músicas e digitamos hasthtags indignadas nas redes sociais virtuais, os golpistas, na “rede social real”, seguem nos golpeando. E, em segundo, durante essa deliciosa alienação, não exercitamos, muito menos inventamos, formas verdadeiramente revolucionárias e afetos efetivamente potentes capazes de rebater os nossos reais inimigos com a força necessária.

Em uma palestra na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, a filósofa brasileira Marcia Tiburi chamou de “esquerdo-fofos” aqueles que, contrários à adversidade da realidade política brasileira, agem de forma “cool”, puramente estética e subjetivamente gratificante, em vez de agirem coletiva e objetivamente de modo efetivo. A filósofa fala de uma “esquerdo-fofice” que, mutatis mutandi, é a crítica que Benjamin faz à inefetiva literatura da esquerda burguesa alemã de seu tempo, encarnada na obra de Erich Kästner, demasiado comprometida com os interesses hedonistas das classes média e alta e, por isso mesmo, melancólica. Ou seja, impotente. Por isso, a impotência dos brazukas diante do atual golpe pode encontrar na crítica de Benjamin à “esquerdo-fofice” alemã do início do século passado pistas para deixar esse espaço melancólico, melhor dizendo, de impotência contemplativa, no qual nos encontramos.

Assim como para Benjamin a “poesia radical de esquerda” de Kästner era um mero objeto de consumo destinado “à fruição diletante de sujeitos sem a menor capacidade política”, a esquerdo fofice das nossas atuais hashtags e ocoolpações é a mercadoria mais consumida por quem, antes de mudar o mundo, quer primeiramente um ambiente agradável em volta de si, mesmo que essa fronteira alienante não seja maior do que poucos passos, sejam eles reais ou virtuais. Em ambos os casos, o efeito é um só: sob a entusiasmante aparência da atividade, a vil essência da paralisia melancólica. O que a “poesia de esquerda” de  Kästner criticada por Benjamin e a “esquerdo fofice” tupiniquim denunciada por Tiburi trazem é somente a impotência travestida de um falso sentimento de humanidade. Mas para Benjamin, que aqui não se afasta um passo de Marx, a verdadeira humanidade só deve ter um discurso, e este é sobre a luta de classes.

Sem encarnarmos essa questão pungente, somos apenas uma humanidade alienada de si própria. Crentes de que hashtags virtuais e deliciosos shows musicais presenciais são manifestações políticas efetivas, que resolverão “o problema”, somos apenas animais entretidos por um cenário mentiroso que, com efeito e paliativamente, mantém longe dos olhos a única verdadeira cena do espetáculo do mundo de até então, que deveria ser vivenciado por nós se quisermos que seja revolucionado. E essa ópera dantesca que não enxergamos enquanto vestimos a “esquerdo-fofice” é o sempiterno protagonismo dos interesses opressores das elites, que produzem “non stop” uma realidade social cruel e estrategicamente injusta, versus o antagonismo dos interesses populares, outrossim sempiternamente oprimidos e injustiçados.

“Melancolia de esquerda”, de Benjamim é extremamente útil nesse nosso momento crísico para relembrar-nos de que, nas nossas atuais manifestações políticas, hashtaguicas&ocoolpatórias, a própria revolta que proclamamos contra a “burguesia dominante” tem um dissimulado aspecto pequeno-burguês. A pseudoliberdade em postar hashtags nas redes virtuais e em gritar “Fora Temer” nas ocoolpações, embora minta alguma efetividade e prazer, é o meio melancólico mediante o qual permanecemos aprisionados pela classe dominante. Pior ainda é quando essas práticas esquerdo-fofas melancólicas viram rotina, pois, nas palavras de Benjamin, “estar sujeito à rotina significa sacrificar suas idiossincrasias e abrir mão da capacidade de sentir nojo. Isso torna as pessoas melancólicas”. Sobre a rotina virtual da esquerda brazuka, o ativista do movimento 15M espanhol Javier Toret disse que a esquerda brasileira perdeu as ruas porque é ruim na internet. E pela pouca potência das ocoolpações presenciais, podemos dizer que inclusive na rua ela é ruim…

E melancólicos, isto é, envolvidos com a tristeza e a lembrança do que não mais temos, deixamos de enxergar o que temos agora, melhor dizendo, o que nos têm, qual seja, a luta de classe, aquilo de que não deveríamos nos alienar em hipótese alguma. Hashtags e ocoolpações tem pouquíssimo a ver com a luta de classes, ou quase nada. Na verdade, diria Benjamin, “são a mímica proletária da burguesia decadente. Sua função é gerar cliques, e não partidos; sua função literária é gerar modas, e não escolas; sua função econômica é gerar intermediários, e não produtores”. Para o ensaísta alemão, essa “política revolucionária” é apenas a “conversão de reflexos revolucionários em objetos de distração, de divertimento, rapidamente canalizados para o consumo”, isto é, ao modus operandi que fortalece justamente aqueles contra os quais devemos nos revoltar objetivamente.

Quase cem anos antes de Safatle propor que precisamos mais que tudo fazer uma crítica dos nossos afetos melancólicos, Benjamin já nos propunha a seguinte questão: “o que encontra a ‘elite intelectual’ ao confrontar-se com esse inventário dos seus sentimentos?”. O alemão é cruel ao responder que “eles já foram vendidos, a preço de ocasião”. E aqui, reforço, as ocasiões mais escancaradas nas quais nos vendemos ao inimigo são os precisos momentos em que, postando uma “hashtag-de-ordem” a mais, no imenso mar hashtaguico da contemporaneidade-em-rede-social, ou estando nos shows-dos-nossos-artistas-prediletos-contra-o-golpe, achamos que estamos produzindo alguma revolução. Assim deixamos de ver que, na verdade, estamos consumindo, ao modo de lamber os beiços, a nossa própria servidão. E o que é pior, a mercadoria mais conveniente produzida pelos nossos opressores: a impotência, essencialmente melancólica, muito embora travestida de alegria evolucionária.

“Hoje as pessoas afagam estas formas ocas, com gestos distraídos”, relembra-nos Benjamin, mesmo que o seu hoje não seja o mesmo que o nosso. Ou será que ainda não saímos daquele hoje quase centenário? Observando a população brasileira, golpeada antidemocraticamente indo trabalhar todos os dias e pagando subservientemente os altíssimos e injustos impostos que seus inimigos lhe impõem, e, contra o golpe, apenas postando hashtags cantando boas canções, Benjamin é assustadoramente atual: “nunca ninguém se acomodou tão confortavelmente numa situação tão inconfortável”. E essa comodidade é o sacrifício covarde da verdadeira ação política. Benjamim dizia que a esquerda de seu tempo não estava “à esquerda de uma ou outra corrente, mas simplesmente à esquerda do possível. Porque desde o início não tem outra coisa em mente senão sua autofruição”. Autofruímos nossa esquerdo-fofice, não à esquerda, mas de fato aquém de qualquer possibilidade, e, enquanto isso, sem perceber, transformamos aquilo que deveria ser luta política em objeto de prazer. Só que o verdadeiro prazer, não nos enganemos, é daqueles que seguem golpeando-nos cotidianamente: a classe dominante.

Benjamin, em outro ensaio, chamado “O autor como produtor”, fala da esquerdo-fofice dos teóricos revolucionários de esquerda de sua época “para mostrar que essa tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contrarrevolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor”, que em verdade é o que o proletariado oprimido é. Produzir, e não apenas pensar eventualmente sobre a produção e a exploração, não é o que Max quis dizer nas suas “Teses sobre Feuerbach”, qual seja, que “os filósofos até aqui limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo”? Enquanto apenas pensamos, diz Benjamin, o que temos é uma “logocracia”, isto é, “o reinado dos intelectuais”. E como até aqui a intelectualidade ainda é privilégio das elites, o investimento no império solitário do logos é a manutenção do velho império burguês, opressor e vendedor de melancolia e impotência.

Não que pensar não seja fundamental. Porém, só o pensamento não basta. No mínimo ele deve produzir pensamento. E por acaso não é isso o que quis dizer o dramaturgo alemão Bertold Brecht ao afirmar que “o decisivo na política não é o pensamento individual, mas sim a arte de pensar na cabeça dos outros”? Slavoj Žižek, recentemente, desdisse a máxima de Marx, sustentando que, hoje em dia, importante mesmo é pensar, apenas pensar, e não agir. Se esse só pensamento ao menos pensar na cabeça dos outros, Brecht não se revirará na sua tumba, pois sua pax aeterna será mantida conquanto o intelectual não abasteça o aparelho de produção sem modificá-lo num sentido socialista. Todavia, para o ensaísta alemão, “o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo produtivo”. E produção, materialmente falando, é ação, não somente pensamento.

Abastecer um aparelho produtivo sem modificá-lo é a aparência revolucionária por excelência. Quanto mais não seja, porque “o aparelho burguês de produção … pode assimilar uma surpreendente quantidade de temas revolucionários, e até mesmo propagá-los, sem colocar seriamente em risco sua própria existência”, diz Benjamin, para quem “isso será verdade enquanto esse aparelho for abastecido por escritores rotineiros [isto é, melancólicos], ainda que socialistas”. A rotina melancólica das nossa hashtags de protesto e ocupações em forma de festivais culturais é a transformação não só do golpe, mas também das velhas exploração e miséria em objeto de fruição estética. Nas palavras de Benjamin, é “abastecer um aparelho produtivo sem modificá-lo”. Em outras, é ser reacionário, e não revolucionário. Um belo exemplo disso é a obra do grande fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que, sob a superfície hipnotizante de seus preto&branco antologizados, cheios de camponeses e garimpeiros miseráveis, faz da miséria humana a mais refinada mercadoria para o consumo burguês.

Mais ainda, Benjamin diria de Salgado que ele “transformou em objeto de consumo a luta contra a miséria”. E como a roda capitalista exploradora funciona melhor com o consumo ininterrupto e crescente, a manutenção da miséria por meio do seu consumo exige a manutenção da própria miséria, não a sua superação. E Benjamin diria a nós que nossas hashtags e ocoolpações outra coisa não são senão “a metamorfose da luta política … em objeto de prazer contemplativo”, melancólico. Novamente, sua função política é gerar cliques, e não partidos, a única organização capaz de revolucionar verdadeiramente a vil realidade. A esquerdo-fofice tupiniquim diante do golpe é a sensação de liberdade aonde ela não existe. A “produção” de hashtags em favor da democracia e de deliciosos shows contra o golpe, diria Benjamin, “não é um instrumento a serviço do produtor, e sim um instrumento contra o produtor”.

Recusando-nos à imediatidade inócua das nossas hashtags e à espetacularidade disfarçadamente hedonista das nossas ocoolpações haverá mais sobriedade àqueles que verdadeiramente querem mudar alguma coisa. Para Benjamin, deveríamos manifestar a  nossa solidariedade com o proletariado do modo mais sóbrio possível. Ao criticar os intelectuais de esquerda de sua época, o ensaísta traz uma boa resposta, dada pelo advogado e filósofo René Maublanc, à pergunta lançada pelo jornal francês Comune à intelectualidade revolucionária da época, qual seja, “Para quem você escreve?”. Essa resposta seria bom que todos os esquerdo-fofos tupiniquins mantivessem viva enquanto retuítam hashtags e vocalizam com seus artistas prediletos nos recreios que chamam de ocupações. A resposta de Maublanc:

“Escrevo quase que exclusivamente para o público burguês. Em primeiro lugar, porque tenho que fazê-lo e, em segundo lugar, porque sou de origem burguesa, de educação burguesa e venho de um meio burguês, e, por isso, tenho uma tendência natural a dirigir-me à classe a que pertenço, que conheço melhor e que posso entender melhor. Mas isso não significa que escrevo para agradar a essa classe, ou para apoiá-la… O proletariado precisa hoje de aliados no campo da burguesia do mesmo modo que no século XVIII a burguesia precisava de aliados no campo feudal. Gostaria de estar entre esses aliados”.

Dessa resposta podemos tirar a seguinte lição: os esquerdo-fofos precisam jogar fora a ilusão de que são a classe oprimida em luta. Não o são! Tanto que podem se dar ao luxo de seguir postando hashtags e cantando às sextas-feiras à noite com seus artistas de estimação mesmo que esses protestos pretensamente revolucionários não tirem do poder aqueles que, intocáveis, oprimem a verdadeira classe oprimida. Os fofo-revolucionários seriam bem mais úteis, e estariam à esquerda de algo real, se assumissem sem disfarce as suas burguesias e as colocassem, como Maublanc, a serviço consciente e efetivo da luta de classes, a verdadeira e inalienável luta do proletariado. Porém, mais sobriamente, como gostaria Benjamin, para quem “a proletarização do intelectual quase nunca faz dele um proletário”.

Usar o tempo e a força física disponíveis para caminhar com professores em greve; segurar cartazes e gritar ao lado de operários nas portas das fábricas; compartilhar presencialmente conhecimento com os bravos estudantes que ocupam suas escolas para que o inimigo não as ocupe; em suma, não deixar os verdadeiros oprimidos sozinhos e em menor número na “rede real” enquanto postamos hashtags em favor deles nas redes virtuais, isso sim é colocar a intelectualidade a serviço da revolução. Permanecer no gabinete, escrevendo manifestos revolucionários, é tão velho quanto a própria opressão que esse manifestos intelectuais pretendem destruir. E isso porque, diz Benjamin, “a luta revolucionária não é entre capitalismo e inteligência, mas entre o capitalismo e o proletariado”. Esquerdo-fofice-mor é achar que a verdadeira luta é a primeira. Tolice alienante, pois ela é a segunda, a luta de classes, que só não resta clara e absolutamente necessária porque gastamos tempo e atenção com hashtags diárias e protestos-shows nas nossas horas livres.

Melancólicos por perderem os direitos de que necessitariam caso fossem a verdadeira classe oprimida, mas que de fato não necessitam por conta dos privilégios ainda envolvidos no elitismo resistentemente inerente à intelectualidade, os nossos intelectuais de esquerda nada mais são que pseudorevolucionários. Por isso a crítica dos afetos de que fala Safatle, pois só ela mostrará que o que com efeito afeta essa intelectualidade de esquerda não é o medo de seguir sendo explorada, coisa que ela nunca foi, mas, covardemente, a angústia de, de algum modo, ser juntada, contragosto seu, à verdadeira classe oprimida. A melancolia das manifestações políticas esquerdo-fofas é pseudomelancólica: é o sentimento de perda de algo que os esquerdo-fofos nunca perderam.

De qualquer modo, não carece que percam algo para se juntarem à luta dos que realmente perdem e perderam sempre, seja com as velhas exploração e miséria, seja com o jovem golpe brasileiro. A privilegiada intelectualidade revolucionaria de esquerda pode contribuir com os desprivilegiados sim. Em primeiro lugar, socializando com eles o privilégio de que sempre dispôs, e, em segundo e mais desafiador lugar, aceitando “ser socializada” na miséria que eles, contragosto deles próprios, sempre estiveram expostos.

 

A desafiadora revolução socialista tupiniquim

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Mais uma vez, na história do Brasil, nunca estivemos tão longe da revolução socialista, isto é, do início do fim da exploração da maioria dos indivíduos pela minoria. O mote antissocial da vez, obviamente, é o golpe de estado dado pela oligarquia político-econômica tupiniquim. Antidemocraticamente, medidas reacionárias&austeras estão sendo verticalmente aplicadas contra a população para que a colossal riqueza produzida por ninguém menos que essa mesma população siga sustentando confortavelmente os velhos privilégios das minoritárias classes dominantes.

Será que o povo brasileiro não sabe fazer revolução? Ou será simplesmente porque, conforme diz o historiador, filósofo, sociólogo e economista baiano Edmundo Moniz, “Não há um manual da revolução. A revolução é uma tempestade histórica e as tempestades não se repetem igualmente”? Em uma palavra, o brazuka erra quando tenta revolucionar a sua vil realidade ou não sabe experimentar formas revolucionárias? Ou nem sequer tenta? O que há no “clima” brasileiro que mais facilmente repete os furações reacionários do que precipita a “tempestade” revolucionária de que tanto o povo desse país necessita?

Moniz, corroborando com Marx e Trotsky, entende por “revolução a mudança das estruturas sociais que termina com a exploração do homem pelo homem e cria condições históricas para a passagem da sociedade de classes para a sociedade sem classes”. A teoria marxista, entretanto, baseada na particular evolução histórica do velho continente, enxerga a revolução socialista como um interregno estratégico que procede da escravidão, do feudalismo e do capitalismo, necessariamente nessa ordem, e que precede o comunismo, ou seja, o fim da exploração da maioria pela minoria.

Bela teoria que, não obstante, só não tem como vingar no Brasil porque neste país, que nasceu colônia e que cresceu dependente, as formas econômicas não seguiram a ordem da evolução econômica e social europeia. Usando impertinentemente as palavras de Trotsky, o Brasil é “um amálgama de formas arcaicas e modernas”. Com efeito, temos escravidão, feudalismo e capitalismo convivendo, profunda e desarmoniosamente, na realidade econômica brasileira. Pior ainda, a realidade econômica do Brasil foi construída invertendo-se o processo histórico europeu.

Com efeito, foi o capitalismo, mais evidentemente seu credo econômico mercantilista, que trouxe os portugueses ao Brasil. E uma vez conquistada esta terra, o jovem e vigoroso capitalismo português, anacronicamente, implantou o velho e caduco feudalismo na divisão do território em capitanias e sesmarias, que eram “doadas” a administradores mediante relações pessoais com a realeza portuguesa. E mais anacronicamente ainda, para sustentar seu sistema de relações pessoais, os portugueses encravaram a escravidão no âmago do sistema feudal tropical, em uma tácita inversão do que havia acontecido no velho mundo.

Por isso a revolução socialista tupiniquim não tem como vingar conforme dita o ideário velho-mundista. Se quisermos proceder conforme Marx, são necessárias pelo menos duas revoluções efetivas antes do passo socialista, a feudal, que dá cabo da escravidão, e a capitalista, que por sua vez supera o feudalismo. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), durante muitos anos insistiu nessa lógica, sustentando que primeiro deveríamos superar o feudalismo, depois a democracia burguesa, para só então termos condições históricas para a revolução socialista.

No entanto, dada a particularidade da realidade histórica brasileira, não podemos nos dar ao luxo de priorizarmos uma besta econômica por vez. Lutar frontal e exclusivamente contra o velho e resistente feudalismo, ou contra o maduro e vigoroso capitalismo, separadamente, é dar as costas a um inimigo ou outro. Criticamente, é matar um sistema desigualitário e deixar o terreno livre para o outro. Sinuca de bico! Por isso, na Brasilândia, o fim da exploração das massas pelas elites significa lutar simultânea e frontalmente contra um inimigo múltiplo: a escravidão, o feudalismo e o capitalismo.

Para fazer a revolução socialista no Brasil em um único movimento, temos de esquecer a clássica racionalização estrangeira e inventar formas revolucionárias totalmente nossas, que tenham capacidade para superar de uma só vez os muitos passados e vícios que insistem no mui viciado presente brasileiro, e que impedem a virtuose de um futuro igualitário. Como, então, será possível a revolução socialista no Brasil?

Para, Moniz, isso é possível somente com a organização de um verdadeiro partido de massas, de uma vanguarda consciente que esteja disposta a preparar o povo para a República Democrática Socialista. Entretanto, porventura temos no Brasil um partido que represente plenamente os interesses da maioria explorada? Um partido que assuma a vanguarda das transformações sociais? Infelizmente não.

O PCB, embora dono do melhor ideário, está distante léguas de ter oportunidade de ser pragmático. O pragmatismo do Partido dos Trabalhadores (PT), aventurado nos últimos 13 anos, está longe de ser ideal, visto que engordou tanto as feras exploradoras como as presas exploradas.  Em uma palavra, tornou o lobo mais forte e as lebres mais suculentas. Não temos, no Brasil, portanto, partido ou vanguarda capaz de iniciar a revolução, pois não há força política organizada para efetivamente socializar a terra, os meios de produção, os bancos, a mídia; para romper o monopólio do comércio exterior e implantar a planificação da economia nacional.

Enquanto isso, carentes de um pensamento organizado e vanguardista o suficiente capaz de mobilizar as massas no sentido da prática revolucionária efetiva, e sob as vis égides do desenvolvimento e do crescimento econômico, as velhas estruturas exploratórias dominam o país. E o atual golpe de estado brasileiro é o que senão a dominação do passado sobre o presente? Com efeito, a oligarquia política brasileira ainda encontra terreno livre para, mediante o seu atual golpe, representar os interesses do capital internacional por meio do endividamento do povo local.

Por acaso a atual elite golpista não está repetindo o famigerado “milagre brasileiro” da década de 1970, quando, em nome do desenvolvimento, o Brasil tomou emprestado e enfiou goela-abaixo do povo mais de cem bilhões de dólares? Devíamos três bilhões de dólares em 1964, antes do golpe militar. Duas décadas depois, devíamos cem vezes mais, e em dólares inflacionários! Eis a força reacionária atuando livremente no espaço social que o pensamento e a ação revolucionários ainda não ocupam contundentemente. E como não há força organizada para acabar com a crise, a velha estrutura oligárquica segue administrando o Brasil, sua desigualdade estrutural,  e a crise econômica que, em essência, lhe favorece exclusivamente.

Entretanto, para Moniz, o Brasil tem condições econômicas e materiais para o socialismo. Só não tem ainda condições políticas para tal, pois falta-nos um partido verdadeiramente popular que possa assumir o papel de vanguarda, instituindo conscientemente a república democrática socialista. Esse é o grande impasse do Brasil. Enquanto isso, a oligarquia nacional não resolve as crises social política e econômica do país precisamente porque tais crises lhe engordam e fortalecem.

Uma vez que a prática é o cerne de qualquer revolução, não basta apenas uma ideia revolucionária, por mais perfeita que seja. Aí devemos dispensar, senão toda a teoria marxista, ao menos a parte que não coincide com a evolução histórica brasileira. Do velho mundo, contudo, devemos manter a ideia de que é preciso de uma vanguarda política revolucionária capaz de motivar o povo a finalmente impor seus interesses sobre os das classes dominantes. Aí teremos iniciado a verdadeira revolução socialista, e não só pensado nela. Para tanto, relembra-nos Moniz, é preciso que a teoria coincida com a prática e a prática confirme a teoria”.

Todavia, como dito antes, no Brasil formas econômicas e políticas arcaicas e modernas coexistem desde sua colonização até hoje. Numa metáfora de Trotsky, “os selvagens passaram da flecha ao fuzil de um golpe, sem percorrer o caminho que separa no passado estas duas armas”. Ou seja, os colonizadores portugueses na américa não começaram a história pelo princípio”. Coincidir prática e teoria em terras tupiniquins, portanto, é um desafio sui generis que não pode se pautar por ideários e experiências extrínsecos. Nossas teoria e prática revolucionárias devem ser outras que as do velho mundo, pois a nossa história é outra, muito embora historicamente explorada por aquelas.

Do contrário, em outra metáfora, estaríamos obrigando o índio, nu e oprimido, a usar ou um uniforme soviete, ou a cartola da velha e distante intelectualidade europeia. Ou seja, estaríamos representando uma revolução muito mais do que a praticando. E isso porque, segundo Moniz, “ a essencialidade da revolução encontra-se no conteúdo revolucionário de sua própria essencialidade”. A verdade e a efetividade da revolução socialista tupiniquim, por conseguinte, está na essência da realidade histórica brasileira: a coexistência anacrônica de escravidão, feudalismo e capitalismo em função dos interesses das classes dominantes.

No Brasil, todos esses inimigos históricos do povo devem ser superados de um só golpe. Passo bem maior e hercúleo do que o que Marx profetizou há quase um século e meio para a implantação do socialismo contra um único algoz, o capitalismo. Respeitando-se a essência do que se deu historicamente no Brasil é que encontraremos uma teoria, isto é, um pensamento que ponha as massas a praticar a defesa inarredável dos seus interesses, e em detrimento das velhas elites golpistas, que até hoje roubam a realidade para si. E quando essa teoria de vanguarda coincidir com a prática cotidiana do povo brasileiro, a angusta luta por igualdade será uma coloquial igualdade, não mais na luta, mas na existência.

Servidão informacional e a cifra de sua revolução

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A informação na contemporaneidade tem seus céu e inferno na falta de limites. Em primeiro lugar, devido à tecnologia computacional e ao advento da internet que, juntos, permitem que se produza, divulgue e acesse montantes astronômicos de informação, à distância de um clique, bastando apenas uma conexão com a World Wide Web, isto é, a rede. O céu informacional contemporâneo é justamente a democratização da informação aberta pelo mundo da internet. O inferno, em contrapartida, é que tamanha abertura permite que ideologias totalizantes se valham dessa aventurosa horizontalidade democrática para alcançar, ao mesmo tempo e contundentemente, indivíduos do mundo inteiro. Uma boa metáfora para isso é o soldado que, no campo de batalha e de posse de uma metralhadora giratória potentíssima, tem poder para atingir todos a sua volta. Dessa metáfora devemos guardar que, dependendo da munição que é disparada pela potencialidade da comunicação na contemporaneidade internética, podemos conquistar a tão necessária liberdade tanto quanto sermos sujeitados verticalmente à servidão informacional.

Em A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade, Manuel Castells discorre sobre essa ambiguidade inerente às tecnologias da Era da Informação. De um lado, tratando do ideal de liberdade na democratização da informação. De outro, falando do atravessamento de tecnologias de controle -comerciais e governamentais- no sentido vigiar, investigar e identificar todos os terminais envolvidos nessa interconexão democrática. A Galáxia da Internet do sociólogo espanhol refere-se a A Galáxia de Gutenberg, obra em que Herbert Marshall McLuhan, um destacado educador, intelectual, filósofo e teórico da comunicação canadense, conhecido por vislumbrar a Internet quase trinta anos antes de ser inventada, responsável pela célebre máxima: “o meio é a mensagem”. McLuhan dizia que a prensa, na verdade a imprensa, revolucionou o mundo e a comunicação. Castells, por sua vez, e mediante sua referência ao pensamento do canadense, pretende apontar que a Internet é a nova prensa, a nova forma da revolução informacional na contemporaneidade.

Para tanto, Castells investe na análise das interações entre Internet, economia e sociedade que revolucionaram o velho conceito inerente às sociedades, qual seja, a vida em rede. Para o sociólogo, a Internet tem o poder de transformar o conceito de rede, essa antiga e essencial ferramenta de organização humana, seja em um modelo centralizado, vertical e de controle, seja em uma plataforma descentralizada, horizontal e flexível. A ambiguidade da internet e da informabilia que a constitui é tácita ao percebermos que, em rede, tanto se pode manipular as massas –e portanto e a priori cada indivíduo- com doses certeiras de informação a serviço do reacionarismo, quanto abrir um horizonte no qual os indivíduos/usuários podem revolucionar inclusive a proposta inicial em função da qual a própria internet foi criada.

Castells aponta que a livre troca de arquivos tipo MP3 e MP4, que aliena as grandes indústrias fonográfica e cinematográfica da produção, da distribuição e do consumo maciço de música e filmes; a panfletagem política e contracultural ilimitada; bem como a ágora de cultura e de entretenimento que se abre com a proliferação de revistas e jogos on-line, são provas de que os usuários podem fazer da rede -que não existe sem eles- algo que lhes convenha absolutamente. No entanto, é preciso apenas observar, quiçá vencer os poderes totalizantes que ao mesmo tempo e mediante a mesma rede tentam fazer dessa intercomunicação assaz democratizada e de todos os seus terminais/usuários massa de manobra subserviente aos seus interesses.

Em relação a esse inimigo a ser vencido, que com todos os bits tenta fazer da democratização da informação uma ferramenta tirânica sua, vale trazer à discussão a análise que o filósofo Gilles Deleuze fez da diferenciação foulcaultiana entre as sociedades disciplinares e as de controle, ambas tentativas de alcançar os indivíduos que compõe a sociedade. Conforme Deleuze em POST-SCRIPTUM – sobre as sociedades de controle, Foucault situa as sociedades disciplinares desde os séculos XVIII e XIX, cujo apogeu, entretanto, se deu no início do século XX. O que é importante saber dessas sociedades disciplinares é que nelas os indivíduos não cessam de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis inexpugnáveis: a família, escola, a caserna, a fábrica, o hospital, a prisão, e assim por diante. Disciplinados&Confinados, desde a maternidade até o cemitério seria o slogan perfeito para esse tipo de sociedade.

Porém, ressaltam os dois filósofos franceses, a partir do início do século XX, o mundo observa a crise generalizada de todos os meios de confinamento. Em outras palavras, a prisão, a fábrica, a escola, e até mesmo a família passaram a ser “espaços” cujo confinamento, no entanto, viabilizava não a disciplina, mas o seu contraexercício. Esses claustros disciplinares passaram a se comportar como bunkers de resistência que permitiam o exercício da indisciplinaridade. Aqui, basta imaginar um sujeito conectado ao mundo pelo seu smartphone  dentro de um desses espaços das sociedades disciplinares. Como seria controlado se, de fato, ele não está ali, ainda que virtualmente fora dali? A crise das instituições disciplinares tradicionais, portanto, deveria ser superada pela implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. E para Foucault as sociedades de controle foram instituídas para evitar que os indivíduos gozassem plenamente de liberdade. Com efeito, coloca Deleuze, as sociedades de controle substituíram as sociedades disciplinares. Para o filósofo, Foucault identifica o futuro à formas ultrarápidas de controle, não mais claustronômicas, mas agorísticas, capazes de se darem ao ar livre, e por que não dizer wireless, em substituição à antiga disciplinaridade que operava mediante sistemas materiais e fechados.

Com Deleuze podemos perceber que a cada uma destas duas sociedades –a disciplinar e a controladora- corresponde certos tipos de ferramental, instrumento, aparato, maquinário para cumprir seus fins. Não que as máquinas, os aparatos em si mesmos, sejam determinantes, aponta o francês, mas porque são as expressões genuínas das formas sociais capazes de lhes dar nascimento e utilizá-los. A disciplina e o controle são a priori ideológicos. Todavia, imediatamente maquínicos.

As antigas sociedades aplicavam suas soberanias mediante máquinas simples movidas a alavancas, roldanas, cordas. A forca e a espada, em suma, o cadafalso espetacular dos príncipes, bem evidenciado por Foucault em Vigiar e Punir, são exemplos dessa simplicidade instrumental, todavia eficientíssima, nas mãos do poder totalizante. Já as sociedades disciplinares que as sucederam exerciam soberania através de equipamentos menos espetaculares, outrossim suficientemente eficientes,  como a rígida organização dos espaços nos quais os indivíduos todos passavam as suas vidas. Aqui temos o panopticismo disfarçado de escola, de prisão, de igreja e até mesmo de família: equipamentos que tiraram os indivíduos da inobservância pré-punitiva da Era Cadafálsica Principesca para então alocá-los em um sistema de vigilância disciplinar indoor cujo Calcanhar de Aquiles, entretanto, era o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem.

Daí a crise das sociedades de vigilância disciplinar da qual falam os filósofos, e a qual gerou a necessidade que uma nova forma de dominação coletiva: a sociedade de controle. Com efeito, as sociedades de controle se valem de máquinas de uma terceira espécie: máquinas de informática; computadores; a rede em si; cujos calcanhares de fragilidade, todavia, são dois. Passivo: a interferência constante e o registro a priori de todas as atividades -virtuais e reais- dos indivíduos/usuários, o que os vulneralibiliza para qualquer observância e punição a posteriori. E ativo: a pirataria, a introdução de vírus e o hackeamento intempestivo.

Aqui é preciso colocar que a ação das sociedades de controle sobre os indivíduos que a compõem se dá de modo mais efetivo do que nas sociedades disciplinares, e mais ainda que nas punitivas-cadafálsicas, porque o maquinário, o aparato totalizante-controlador é mais obscuro aos terminais individuais. Paradoxalmente, mais obscuros e mais transparentes ao mesmo tempo. Cordas, roldanas, espadas, salas de aula, celas prisionais e torres de vigilância são estruturas de fácil visualização e compreensão. De inimigos físicos/corpóreos podemos fugir mais facilmente. Já de um algoz que virtualiza-se e age mediante trincheira informacionais apenas, fica bem mais difícil escapar, quiçá reconhecê-lo. Ainda mais em uma sociedade para a qual a informação é a um só tempo o chão físico e o éter metafísico que o encima. Eis a contemporaneidade.

Para dar corpo a essa invisibilidade estratégica dos aparatos totalizadores da sociedade de controle é de muita ajuda transcorrer as ideias que Vilén Flusser traz na sua obra Filosofia da caixa preta. Nesta obra temos a análise da informação em forma de imagem, exemplificada centralmente com a fotografia, cuja ideia chave, entretanto, é a da imagem técnica –em contraposição à imagem artística-artesanal-, e cujo aparato é a máquina fotográfica, instrumento que, mesmo desconhecida a sua maquinagem, gera o real que consumimos –imageticamente. Para Flusser, até mesmo o fotógrafo, que domina o aparelho –a máquina fotográfica- na verdade conhece apenas o input e o output dessa caixa preta. Resultado: tanto os produtores quanto os consumidores desse mundo imagem técnica desconhecem o que se passa no interior da caixa preta, do aparato, da máquina central da sociedade de controle contemporânea.

Embora Flusser ressalte que as imagens são mediações entre homem e o mundo, com o propósito de representar esse mundo, as imagens técnicas –produzidas pelas caixas pretas- são janelas e não imagens. O observador-usuário, em vez de enxergar nas imagens técnicas as janelas imagéticas que denotam o aparato misterioso que as produz, bem como as suas pretensões totalizantes, em vez disso trata o real enquanto aquilo que seus olhos veem apenas, como se o que é visto fosse a realidade última, e não o sistema social de controle agindo através dessas imagens. As imagens técnicas, a qualidade e democratização que elas envolvem, têm o poder de fazê-las passar pelo real ele mesmo, fazendo-nos esquecer de que são apenas aparelhos ideológicos fortíssimos. Por isso, salienta o filósofo, “o que vemos ao contemplar as imagens técnicas não é ‘o mundo’, mas determinados conceitos relativos ao mundo”, conceitos esses já ideologizados, instrumentalizados para manter todos os que o observam imageticamente sob controle total; caixapretificados.

Flusser é categórico ao afirmar que a tarefa primordial das imagens técnicas é estabelecer o código geral que reunifique a cultura, que arranque os objetos da natureza e os aproxime dos homens. No entanto, mediante imagens técnicas produzidas por caixas pretas, essa aproximação significa a modificação estratégica de tais objetos. A ponto de, diz o filósofo, a fotografia passar a ser a realidade ela mesma. A um só tempo a desobjetificação dos objetos e a estratégica objetificação de significações que servem ao sistema de controle social. Ademais, tal inversão do vetor da significação caracteriza o mundo pós-industrial, arremata o autor tcheco.

E se na contemporaneidade é a fotografia do real o real ele mesmo, temos que, fiéis a Flusser, a decadência do objeto é a emergência da informação acerca dele. Pragmaticamente: pensamos e vivemos como as imagens técnicas –produzidas sabe-se lá como e por quem. As imagens técnicas pensam por nós; vivem em nós; são o mundo no qual vivemos. Resultado: somos vítimas da caixapretice aparelhística produtora de símbolos de controle. Mas, o filósofo não nos deixa esquecer: “a aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas quanto o são todas as imagens”. Dessimbolizá-las, reificá-las, decifrá-las, portanto, é reconstituir o real que tais imagens significam verdadeiramente. Esse real a ser decifrado, porém, é muito menos os objetos em si que as imagens técnicas representam do que a ideologia de controle por trás dessas representações técnicas do real, justamente o que permanece caixapretificado.

Em um mundo no qual o próprio real outra coisa não é senão as imagens técnicas que o traduzem e reportam massivamente, o real a ser dessimbolizado é justamente a intencionalidade oculta na eleição dos objetos que vivem nas imagens técnicas –que, de um ponto de vista marxista, é o velho fetiche da mercadoria-; os enquadramentos desses objetos nessas imagens técnicas –os rígidos pontos-de-vista que esse fetichismo imagético do real impõe-; e sobretudo a reprodução ao infinito e a distribuição em rede desses produtos técnicos ideologizados e essencialmente caixapretificados. “Toda crítica da imagem técnica deve visar o branqueamento dessa caixa”, indica Flusser.

Para relacionar Flusser à Castells sem muita delonga, uma importante colocação do primeiro: “programaticamente, aparelhisticamente, imageticamente … estamos pensando do modo pelo qual ‘pensam’ os computadores”. E para não deixar Deleuze e Foucault de fora dessa relação, cabe dizer que pensamos e vivemos conforme a nova noção de rede porque a sociedade de controle precisa que assim seja. Aqui vale apontar o alinhamento entre o tcheco e os dois franceses. Se para aquele “a cultura da Internet é a cultura de seus criadores”, é porque, para estes, a internet é o corpo que controla as sociedades contemporâneas. A rede informacional contemporânea, portanto, seria a própria sociedade de controle em forma de realidade, em forma de mundo, de imagem técnica indecifrabilíssima. A caixa-preta-mor, diga-se de passagem. Ou, dizendo melhor com as palavras de Flusser, “complexo de aparelhos, de caixa preta composta de caixas pretas”.

Agora, se, como colocou o pensador tcheco, a tarefa da filosofia da fotografia é apontar o caminho da liberdade em relação às imagens técnicas e à caixapretice do real ideologicamente imageticizado, pois, para Flusser, essa filosofia é a única revolução ainda possível -e urgentíssima!-, podemos dizer, em uma paráfrase, que a tarefa da filosofia da informação é fazer o mesmo, isto é: apontar o caminho da liberdade em relação à caixapretificação da produção e da distribuição da informação, outrossim produto ideológico das sociedades de controle, pois, para essa filosofia da informação, esse é o único movimento verdadeiramente revolucionário, e não mesmos urgente. Como, então, baseados na teoria de Flusser e nos apontamentos de Castells, Deleuze e Foucault, tal filosofia revolucionária é possível, ademais a partir de dentro da sociedade de controle informacional?

A primeira coisa a atentar é que, seguindo a ideia de Flusser, é o homem, e somente ele que pode produzir informação, bem como transmiti-la e guardá-la. E se são os próprios homens que são vitimados pela informação mediada pela sociedade de controle, é porque eles mesmos oferecem munição ao seu algoz. Assim como disse Étienne de La Boétie, qual seja, que os mil olhos e mil braços do tirano não são instrumentos que de fato sejam dele, visto que ele é um homem como qualquer outro, com dois olhos e dois braços apenas, mas são os mil braços e mil olhos dos que são tiranizados por ele, sequer é necessário os tiranizados irem até o forte do tirano para matá-lo. Basta que não mais doem seus braços e olhos, afinal, a arma com a qual a sociedade de controle nos mantém cativos dos seus desígnios e aparelhos, isto é, a informação, é produzida por nós, homens. Somos nós que produzimos as condições para a nossa própria servidão informacional: a informação, os aparelhos e as imagens técnicas com os quais somos subjugados.

Castells, entretanto, nos diz que as novas formas de interação social na Era da Internet têm poder para substituir as comunidades estabelecidas estrategicamente pelas sociedades de controle por comunidades baseadas em afinidades alheias a desígnios ideológicos extrínsecos. Cabe aqui trazer o anarquismo impertinente de Hakim Bey que constitui o seu conceito de TAZ (zona autônoma temporária). Mesmo que a sociedade de controle informacional seja A Zona de Dominação Absoluta na contemporaneidade, dentro dela essas redes sociais baseadas em afinidades alheias a desígnios ideológicos extrínsecos podem funcionar como  TAZes, dentro do inimigo. Senão matando-o, ao menos reduzindo, ainda que efemeramente, sua onipotência.

Para tanto, aponta Castells, é fundamental que a arquitetura de interconexões seja ilimitada, descentralizada, distribuída e multidirecional em sua interatividade; que todos os protocolos de comunicação e suas implementações sejam abertos, distribuídos e suscetíveis de modificação. Claro, não devemos esperar que a própria sociedade de controle faça isso pelos controlados. São estes que, anárquica e coletivamente, devem abrir suas TAZes informacionais impertinentes no cerne da TAZ Totalitária. Afinal, onde há uma zona autônoma, ainda que temporária, na qual a sociedade de controle informacional não pode nem sacar nem incutir informações, tampouco verificar as que estão sendo trocadas lá, há o enfraquecimento do sistema de controle da sociedade contemporânea. Fundamental todavia, é que essa máquina, esse aparato, esse instrumento revolucionário que é a TAZ seja tão caixapretificada à sociedade de controle quanto essa mesma sociedade o é para os indivíduos que ela, por sua vez, controla opacamente. Usar a arma do inimigo contra ele mesmo! Esse é o passo mais econômico para a revolução.

Nesse sentido, o que podemos tirar de Castells é a proposta de redefinição do conceito de comunidade, baseada não mais nos ordenamentos ditados pelos sistemas de controle, mas no apoio aos próprios indivíduos tiranizados por tal ditadura e aos laços informacionais que eles podem travar entre si, a despeito da sociedade de controle que primeiramente os uniu/enclausurou inexoravelmente em torno da informação com o propósito exclusivo de controlá-los. Para o espanhol, o novo padrão de sociabilidade deve ser caracterizado pelo paradoxal individualismo em rede. Esta deve ser a nova forma dominante de sociabilidade contra a dominação das sociedades de controle informacionais. Para o autor, essa revolução pode se dar mediante a cooperação entre leis, tribunais, opinião pública, mídia, responsabilidade coorporativa, agências políticas, e, sobretudo, a partir da restauração da confiança recíproca entre os próprios indivíduos e, universalmente, entre os povos e seus governos. E para Castells isso é possível porque dependem exclusivamente da ação humana.

Deleuze reforça essa revolução dizendo que não devemos desistir porque estamos diante de uma sociedade –de controle- mais opaca que outras –a disciplinar, por exemplo. O francês coloca que em cada uma delas se pode enfrentar as sujeições e construir a liberdade. Portanto, nas palavras de Deleuze, “não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”.

Que armas, todavia, são essas? Ora, se as sociedades disciplinares se estruturavam na assinatura e na localização do indivíduo em uma massa, e nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura nem um número, mas uma cifra, isto é, uma senha, nossas armas contra o controle informacional é, retrazendo Bey à discussão, estabelecermos TAZes cifradas que possibilitem o acesso dos indivíduos anarquistas informacionais à informação que eles criam e que habitam suas TAZes. Contudo, mais importante de tudo, que rejeitem, que vetem, que cifrem o acesso do controle externo sempre que ele tentar adentrá-las. Se nas sociedades de controle das quais queremos nos ver livres os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, nas sociedades revolucionadas pós-controle as TAZes informacionais devem ser indivisíveis, porque caixapfetificadas estrategicamente àqueles que querem tirar delas apenas amostras para dadificá-las. Por quê? Por que dentro da TAZ, assim como dentro da sociedade, é a vida que habita, e é ela que importa e que não pode ser reduzida. Aqui é fundamental saber o que realmente importa e o que é primeiro no conceito “vida em rede”. Vida, obviamente.

Para concluir, a revolução das sociedades de controle começa pela percepção de que, nas palavras de Flusser, “o que vale não é determinado ponto de vista, mas um número máximo de pontos de vista”. Como então instituir essa plurivocidade de perspectivas no cerne das monológicas sociedades de controle? Fixando-nos na metáfora da fotografia que perpassa a Filosofia da caixa preta, contra essa sociedades de controle foucaultianas,  que outra coisa não querem senão fazer do real propriedade sua, a frase do pensador tcheco: “a distribuição da fotografia ilustra, pois, a decadência do conceito propriedade”. Afinal, ainda nas palavras do autor, “a práxis fotográfica é contrária a toda ideologia; ideologia é agarrar-se a um único ponto de vista, e o fotógrafo age pós ideologicamente”, ou seja, para além da ideologia que o quer controlar. Em suma, quanto mais houver indivíduos fotografando, tanto mais o sistema que quer dominá-lo será incapaz de decifrar o mundo de fotografias que eles produzem para si.

Se, como disse Flusser, “fotografias nos cercam”, porém, “toda fotografia individual é uma pedrinha de mosaico”, a Big Picture da realidade outra coisa não deve ser além do resultado mosaico das fotografias do real que cada indivíduo faz. Todavia, se essas imagens-informações que somente nós, homens, trazemos ao mundo, com as quais aliás as sociedades de controle nos dominam, não forem cifradas à essa mesma sociedade tirânica, ela fará, obviamente, com que o real seja ou o recorte, ou a rediagramação desse material que imanentemente produzimos.

Hipostasiando  o que disse La Boétie, que os mil braços e mil olhos do tirano são os braços e olhos dos seus mil súditos, com Flusser podemos dizer que as mil imagens técnicas do sistema de dominação são as mil imagens individuais de cada um dos dominados; com Castells, que os  mil nós da Galáxia da Internet Total são os mil usuários/terminais dessa mesma rede internética; e, por fim, com Deleuze e Foucault, que as mil informações com as quais as sociedades de controle subjugam seus mil controlados são as informações produzidas, mais ainda, encarnadas, imanentemente, por esse mil controlados. Basta, portanto, atendendo ao conselho de La Boétie: não darmos ao tirano nossos braços e olhos, melhor dizendo, nossos nós na rede da internet, nossas imagens individuais, nossas informações. Em uma palavra, devemos cifrar-nos contra os sistemas que tentam nos controlar. Já entre os “anarquistas” beyanos libertos do controle externo no interior seguro de suas TAZes impertinentes, código aberto e infinito, pois assim deve ser a vida.

Cosmonoopolitismo

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Noopolítica é um conceito cunhado pelos cientistas informacionais estadunidenses John Arquilla e David Ronfeldt que junta a palavra grega “nous”, que pode significar tanto inteligência quanto pensamento, mas que para Platão era a faculdade humana capaz de captar verdades fundamentais por uma via intuitiva, à palavra política, que embora bem conhecida de todos, é problematicamente pragmatizada pela maioria.

Noopolítica, portanto, seria uma política inteligente baseada no conhecimento direto, claro e imediato dos indivíduos e de suas questões coletivas. Para ser mais preciso, no reconhecimento intuitivo do que, em verdade, é a sociedade à qual esses indivíduos pertencem. Filha hipercontemporânea e virtuosa da biopolítica foucaultiana, a noopolítica é caminho para se reencontrar a harmonia –alienada pela política tradicional- entre homem, sociedade, natureza e conhecimento. Em particularíssima instância, indivíduo e vida.

Para tanto, a noopolítica se funda na livre comunicação entre os indivíduos, na eleição do conhecimento que melhor serve à coletividade, e no repudio à violência e à arbitrariedade dos interesses supra individuais que negam este melhor conhecimento. Valoriza a expressão individual enquanto “grão de areia” essencial e a priori de uma “duna social” não opressora a ser alcançada. Utopia? Considerando-se que utopia é o que apenas não existe ainda, e não o que não tem como existir de forma alguma –atopia-, a noopolítica é o caminho da verdadeira revolução.

Com efeito, a noopolítica se contrapõe à realpolitik, isto é, à velha e reacionária política cujo objetivo é assegurar o interesse e a estabilidade nacionais, supra individuais, e que muitas vezes exige inclusive a violação dos direitos humanos. Enquanto a realpolítica se fundamenta em uma forma hierárquica de organização encimada pelos interesses imperiosos do Estado, em vertical oposição às instâncias imanentes dos indivíduos que o compõem, a noopolítica, em troca, pretende solapar esse desumano edifício mediante uma organização em rede, horizontal, na qual os indivíduos e suas relações sejam o paradigma social: “a verdade, o caminho e a luz” da sociedade.

E se a realpolítica, que atende prioritariamente aos interesses transcendentes do Estado, em um mundo assaz globalizado exige que seus atores sejam primeiramente cosmopolitas, isto é, cidadãos do mundo antes de serem cidadãos locais, a noopolítica, em contrapartida, por priorizar a vida e as questões que afloram na rede coletiva imediata, solicita de seus atores o cosmonoopolitismo, ou seja, uma cidadania imanente cuja única universalidade válida é aquilo que melhor atende aos interesses de seus próprios atores, a ser conhecido por meio da intuição.

O cosmopolita é impotente no enfrentamento dos desafios mais importantes porque politiza primeiramente com o mundo, com o outro mais distante. Assim, expatria, ainda que inadvertidamente, aqueles que, imediata e imanentemente, estão relacionados em rede com ele. Já o cosmonoopolita, porque se pauta no conhecimento, sobretudo no reconhecimento mútuo, tem por princípio não preterir os terminais individuais imediatos da rede a que pertence. Em primeiro lugar, porque não tem como negá-los, a não ser por força de grande abstração. Em segundo, porque uma relação política é tão melhor quanto mais concreta for. Desse modo, o cosmonoopolismo é a virtude de não se alienar do que mais proximamente importa: as relações concretas e evidentes entre os indivíduos, e a deles todos com a vida.

Se Platão definia o “nous”, ou seja, a inteligência, como a parte racional e imortal da alma, e a política enquanto a arte de saber conduzir os homens, podemos tirar do pai da filosofia que a noopolítica, mistura virtuosa dos dois conceitos, seria a parte racional e imortal do espírito coletivo -que aliás só vem ao mundo em rede-, qual seja, o conhecimento humano, na excelente condução dessa coletividade humana.

O cosmopolita, porque equivale os terminais da rede mais distantes aos mais próximos, não é um bom artesão político. Sem cerimônia ou por inadvertência confunde ecos distantes com vozes próximas, deixando estas sem a devida atenção. O cosmonoopolita, em troca, politiza primeiro com os que imediatamente se relacionam com ele. E ciente de que esse é o conhecimento mais importante, tanto para ele quanto para os demais, encarna a melhor cidadania de todas.

Democracia em desencanto

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Diante do atual golpe de estado, o Brasil clama pela sua democracia furtada. Aparentemente, essa pecha parece ser a mais digna de ser empreendida diante do assalto oligárquico à “cracia do demos”, isto é, ao “governo do povo”. Entretanto, seria a democracia inquestionavelmente a nossa melhor opção? Sem essa resposta, nosso presente clamor corre o risco de ser um tiro no pé. Pior ainda, se a democracia com efeito não for a melhor forma de governo, outra coisa não estamos sendo senão massa de manobra a quem realmente esta forma de governo interessa, senão ao povo, que é a maioria, paradoxalmente às minorias.

Antes de atravessarmos esse aparente paradoxo envolvido na nossa democracia, vale relembrar que Aristóteles, na sua Política, disse que a democracia é, ao mesmo tempo, a pior das formas boas de governo, mas a melhor entre as más. Nossa contemporânea luta por ela parece se fixar somente nessa segunda definição. Agora, se atentássemos à primeira, é tácito que é uma burrice lutar por ela. A Aristóteles, portanto, a melhor pergunta que poderíamos fazer é: quais são então as boas formas de governo em relação às quais a democracia é a pior? Dessa resposta depende uma busca mais inteligente.

Para o filósofo grego, as boas formas de governo são a monarquia (o governo de um só em favor de todos); a aristocracia (o governo dos mais virtuosos em prol de todos); e a “politeia”, a parente virtuosa da democracia (o governo de muitos em benefício de todos). Já as más formas de governo, que na verdade são as degradações destas três, correspondem, respectivamente, a tirania (o governo de um só em função de interesses privados), a oligarquia (o governo de uns poucos em prol de si próprios) e a democracia propriamente dita (o governo do povo em função de si mesmo).

Com efeito, a democracia comparada com as duas outras formas degradadas de governo sustenta um verniz de virtude. Seu vício oculto, entretanto, é esclarecido por Aristóteles: a democracia “surgiu quando, devido ao fato de que todos são iguais em certo sentido, acreditou-se que todos fossem absolutamente iguais entre si”. Aplicando esse vício à realidade tupiniquim, se todos são absolutamente iguais entre si, e portanto todos merecedores de terem seus interesses contemplados, como conciliar, democrática e satisfatoriamente, um povo tão plural quanto antagônico, que em última e trágica instância, diante do golpe de estado, se separa em duas forças inconciliáveis, quais sejam: a liberal-oligárquica-fundamentalista, e a social-democrata-laica?

Não podemos deixar de considerar, portanto, que, democraticamente, uma pode, legitimamente, se impor contra a outra. E porventura não foi exatamente isso que aconteceu no Brasil com a minoritária elite oligárquica-fundamentalista do “PMSDB” (o Frankenstein formado pelo PMDB e o PSDB), que afastou do poder os majoritários 54 milhões de votos legítimos do governo do petista, legados a esse partido por conta dos 12 anos de governo prévio à reeleição Dilma que revolucionaram o conceito de povo, fazendo participar dele não só os homens velhos brancos ricos, mas também as mulheres, os jovens, os negros, os pobres, os LGBT, em suma, os historicamente excluídos sociais em geral?

O atual caso brasileiro é a prova de que a democracia é o meio de uma minoria -novamente, os homens velhos brancos ricos- se impor sobre a maioria. Mas isso não é novidade, pois no seu berço grego a democracia já era exclusivista. Dela participavam apenas indivíduos livres (não-escravos) do sexo masculino. Dos 300.000 habitantes de Atenas, somente 30 mil desfrutavam da democracia. Algo como 10% da população.

Na sua versão moderna-representativa-burguesa, que ainda é a nossa contemporânea, a democracia outrossim é para pouquíssimos, embora minta muito bem que é para a maioria. Considerando que, infelizmente, é o capital que com efeito melhor garante direito de participação ativa no governo de uma sociedade, –vide os astronômicos e lucrativos investimentos empresariais nas campanhas políticas-, e sem deixar de fora o fato de que quem financeiramente comanda o mundo composto por sete bilhões de indivíduos são mais ou menos trinta milhões de pessoas consideradas ricas, algo menos que 0,005% da população mundial, temos que a modernidade transformou a já contraditória democracia da Grécia antiga em algo profundamente mais desigualitário.

É esse o sistema de governo que estamos defendemos com unhas e dentes no Brasil diante do golpe, a democracia, esse ambiente político onde qualquer barbaridade pode ser viabilizada, bastando que uma minoria com potencial financeiro ideologize a maioria em função de seus interesses? Não nos esqueçamos de que foi a democracia que colocou Adolf Hitler no poder! E porque, democraticamente, o genocida alemão ideologizou eficaz e estrategicamente sua nação inteira, o extermínio da raça judaica passou a ser um projeto racional. Pior ainda, “o” projeto perfeito para salvar a Alemanha. A democracia nas mãos da burguesia consegue ser catastroficamente pior do que nas mãos da antiga aristocracia grega.

Agora, se não é pela democracia que devemos lutar, uma vez que ela é a forma de governo que concretamente privilegia a minoria já privilegiada, em qual forma de governo devemos investir coletivamente? Ora, se o PMDB e o PSDB, ambos com a palavra democracia nos seus nomes – o questionável “D” que os antepenultimalizam-, tiraram do poder justamente o governo petista cujo mérito inegável foi ter aproximado mais do que qualquer outro a maioria da população brasileira não só do conceito de povo brasileiro, como também e principalmente do governo do Brasil, ser antidemocrático, nessa conjuntura, é lutar pelo interesse da maioria, do povo de verdade. Tarefa aparentemente paradoxal, contudo, uma vez que até mesmo o PT golpeado defende a democracia.

Entretanto, retomando Aristóteles, e concebendo a democracia enquanto a pior das melhores formas de governo, e isso comparativamente à monarquia e à aristocracia, seria investir em uma dessas duas a coisa mais racional a se fazer no Brasil? O problema é esses conceitos estão viciadíssimos. A monarquia jaz atrelada à moderna ideia de um rei absolutista que prefere construir palácios espetaculares para si mesmo em vez de pensar no bem de seus súditos. E isso porque a confundimos com a tirania. E a aristocracia, o governo dos melhores, soa como se esses “melhores” se referisse à qualidades naturais de certos indivíduos. Outrossim a confundimos com a oligarquia (o governo de poucos). Não sabemos mais diferenciar as formas de governo em suas expressões virtuosas e viciosas.

O governo petista, cujos vícios políticos e econômicos são evidentes, ao menos tem a notória virtude de ter feito o melhor governo desse país, afinal, nenhum outro tirou 36 milhões de pessoas da pobreza extrema, 42 milhões da pobreza dita “normal”, levou saúde a 50 milhões que não a tinham, 7 milhões às universidades, só para citar as mais objetivas inclusões sociais dos últimos 14 anos, se não é democrático, sem a menor sombra de dúvida é aristocrático no que esse conceito tem de mais probo. Não, obviamente, que os “indivíduos petistas” sejam melhores que os dos outros partidos. Inegavelmente melhores, entretanto, são os resultados sociais dos governos do PT. Aí é que entra a virtude do conceito de aristocracia: o governo de um grupo cuja excelência é alcançar o melhor, não para si mesmos, obviamente, mas, senão para todos, ao menos para a maioria absoluta.

No sentido de encontrarmos algo melhor que a democracia que vive na boca da elite golpista brazuka, resta, das boas formas de governo aristotélicas, a monarquia. Lula, por sua vez, não seria o bom governo encarnado em uma única pessoa, uma vez que fez mais e melhor por todos se o compararmos a todos os presidentes que oi precederam? Podemos dizer que sim na medida que tirano ele não foi, isto é, não governou para interesses privados. Afora os assaz classe média tríplex de Guarujá e sítio de Atibaia, que dizem ser as suas “conquistas” pessoais indevidas, mas que até aqui não há prova de que sejam de fato seus, Lula não governou para enriquecer-se, como a maioria dos representantes declaradamente democratas que deram o golpe no Brasil.

Tudo isso para dizer que, baseados, de um lado, nas formas mais virtuosas de governo identificadas por Aristóteles há mais de vinte séculos, e, de outro, na atual conjuntura brasileira, na qual partidos democratas roubaram o poder para si, há formas de governo melhores pelas quais lutar nesse momento crísico que não a democracia. Seja o governo de alguns melhores, uma aristocracia, seja o de um homem só, a monarquia, todavia em suas saúdes aristotélicas plenas, isto é, não corrompidas em tirania e oligarquia, respectivamente, se servirem de fato à maioria, quiçá a todos, são muito mais dignos de serem buscados por nós, o povo, do que a democracia, que, se literalmente significa “governo do povo”, pragmaticamente tem significado o contrário.

Seja na Grécia antiga, naquela democracia direta-oligárquica, seja hoje em dia, na nossa democracia representativa-burguesa, em ambos os casos temos que esta forma de governo é feita para poucos governarem a maioria em função de seus interesses privados. 10% antigamente, 0,005% atualmente, são as parcelas da população beneficiadas pela democracia ao longo do tempo. E se hoje compramos massivamente a pecha da “restauração da democracia brasileira”, outra coisa não estamos fazendo que lutar por uma forma de governo que, historicamente, vem reduzindo a centralidade dessa mesma massa, isto é, do povo, na governança que deveria ser para todos, mas que apenas mentirosamente sobrevive na palavra democracia.

Se, conforme Aristóteles, das melhores formas de governo a democracia é a pior, ainda que das piores seja a melhor, seguir batendo nessa tecla democrática -tecla com a qual aliás a minoria mais bate na maioria do que o contrário-, é ou burrice, ou masoquismo. Inteligência seria lutarmos pelas formas mais virtuosas definidas pelo maior gênio da história da humanidade: a aristocracia ou a monarquia; seja em forma de partidos políticos socialistas, seja em forma de um rei político e carismático ao bom estilo Lula, pois mediante tais governanças certamente o “todos” ao qual as virtuoses políticas aristotélicas necessariamente se referem não será alienado em função de poucos ou de um só.

Para tanto, precisamos desencantar a democracia, superá-la, e finalmente aceitarmos o que a filosofia política de Aristóteles diz há mais de vinte séculos. Senão para nos livrarmos da ambiência próxima da tirania e da oligarquia e nos aproximarmos de formas mais virtuosas tais como a aristocracia e a monarquia, o que já seria um avanço, ao menos, e com sorte, para introduzirmos no presente a velha, porém alienígena para nós, “politeia” grega, a melhor das melhores formas de todos serem governados

Homens são políticos; mulheres, cosmopolíticas.

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Imagem: Rosie Tasman Napurrurla

Lugar de mulher é na política? A resposta a essa pergunta é desafiadoramente afirmativa na contemporaneidade. Entretanto, ao longo da história, a coisa foi bem diferente. Desde o seu surgimento, na Grécia antiga, a política sempre foi coisa de homem. E se hoje a política não mais é exclusividade masculina, temos aí a prova material de que as mulheres tem plena capacidade para revolucionar a realidade. Não à toa, atualmente, metade do governo do Canadá é composto por mulheres. Sem se intimidar com o peso fálico do passado, o primeiro ministro canadense, Justin Trudeau, tem orgulho em dizer que no seu país é assim “porque estamos no século XXI”.

Etimologicamente, política vem de “pólis”, que em grego significa cidade. “Polites”, portanto, era o indivíduo que constituía a “pólis”. Não obstante, naquela época, somente os homens –brancos, livres e gregos- tinham o direito de ser “politikos”. E isso porque, como o poeta Hesíodo (750-650 a.C.) fez entender, o surgimento da política no mundo grego fundamentou-se nos ideais de homens e filósofos (atividade que também era exclusivamente masculina).

Antes da “pólis”, todavia, a vida se dava em núcleos familiares, os “genos” (daí genética), que outrossim eram comandados apenas por homens. Não é preciso dizer que nessa organização social ancestral a condição da mulher era igualmente restrita. A elas restava apenas seguir subservientemente os desígnios despóticos dos “seus homens”, os “despótes” (em grego: senhor, mestre). E ser um déspota significava impor, sem escapatória, suas vontades aos demais, principalmente à mulheres, independentemente da consistência ou da compreensibilidade dessas vontades. Autoritarismo puro que, entretanto, só não deve ser chamado de machismo por conta da extemporaneidade desse conceito –moderno- em relação aos gregos antigos.

A transformação do “despótes” em “polites”, isto é, do déspota em político, não significou a abertura de espaço social efetivo algum às mulheres gregas. Todavia, foi um primeiro passo no sentido de reduzir o abismo que separava os sexos. Como? Ora, mesmo permanecendo despóticos na esfera doméstica, os homens, no exercício político, tinham o desafio de lidar com a alteridade -ainda que esses “outros” fossem somente homens. Com a política, o homem teve de aprender outra maneira de fazer valer as suas vontades que não pela força física nem por misticismo algum, fundamentos do despotismo. E o “polités”, ao regressar ao mundo doméstico no qual era “despótes”, não tinha como evitar trazer consigo a ideia de que sua vontade pessoal não era universal.

Aqui cabe a pergunta: por que os homens investiram em uma organização social, a “pólis”, e em uma maneira de organizá-la, a política, se nessa esfera eles desfrutavam de menor poder do que nos “genos”? Marx diria que foi o preço a ser pago para eles e suas famílias subsistirem materialmente. Idealistas dão outras razões. A indefinição da resposta, contudo, não nos priva de enxergar na política o exercício masculino de redução de seu poder absoluto, despótico. É como se na assembleia política, ainda que inadvertidamente, o homem experimentasse, um pouco que seja, a impotência de qualquer mulher diante de qualquer homem; o gosto amargo de ter de calar diante da força de um outro homem, coisa que o déspota, no seu reino genético, nunca teve de fazer.

Todavia, o fato de a ágora política ser o espaço no qual os homens não mais podiam ser despóticos -para um macho uma ferida- pode muito bem ter convertido essa nova experiência masculina de não-potência absoluta em mais opressão doméstica contra as mulheres. Não à toa, na decadência da política grega, séculos depois de seu surgimento, Aristóteles ainda sustenta que as mulheres estavam mais próximas dos escravos e dos cachorros do que dos homens. A política, no seu nascimento grego, portanto, foi apenas um movimento masculino mediante o qual os próprios homens reconheceram, uns perante os outros, que, na cidade, nenhum deles era nem podia ser despótico.

E a política seguiu como um playground estritamente masculino por séculos. Levou mais de dois mil anos para que as mulheres pudessem fazer política ao lado dos homens, todavia com um poder mais simbólico que efetivo. Não é mistério para ninguém que até hoje em dia -e o Brasil golpeado é um exemplo disso- as maiores decisões políticas ainda são sistematicamente sequestradas pelos homens. Tanto que em pleno século XXI ainda causa certo espanto em muita gente metade de um governo, o do Canadá, ser composto por mulheres.

Dizer que “lugar de mulher é na política” é verdadeiro apenas parcialmente, pois o gene grego da política ainda insiste em fazer dela um exercício masculino de relativização do poder dos próprios homens diante de si mesmos. Se o “lugar da mulher é na política”, o é apenas para revolucioná-la, para fazer a política deixar de ser o que é: um reduto resistentemente masculino. Levando ao extremo, obrigar às mulheres somente ao espaço político criado pelos homens é como querer que a elas tenham um espaço confortável dentro do machismo.

Com efeito, as mulheres têm direito, dever e capacidade para compartilharem o comando da nau da realidade ao lado dos homens. A ideia aqui, entretanto, é justamente a de fazer pensar se na esfera política como a conhecemos –esse ambiente viciado, criado pelos homens e para eles mesmos- as mulheres não permaneceriam lutando ingloriamente em terra inimiga. Ora, se a política de fato foi a “brincadeira” masculina na qual o todo-poderoso déspota doméstico viu o seu poder ser confrontado e reduzido, fazer essa mesma política só levará as mulheres a experimentarem mais do mesmo, isto é, a limitação do seu poder, justamente o contrário do que a atual “jihad” contra o machismo exige.

As mulheres precisam de práticas e ambientes deliberativos que lhes empoderem. O saneamento do abismo entre os sexos, despoticamente criado e encimado pelos homens, não se dará através da velha cartilha política criada por eles e mantida em suas mãos por milênios. À mulher é fundamental um espaço político outro que não o criado pelos homens; um ambiente para além da política no qual nunca entre em discussão a presença e a pertinência da mulher no comando da vida coletiva; um lugar no qual a alteridade que a mulher sempre foi em relação aos homens esteja desde sempre na essência, pois só assim o jogo despótico masculino não terá como excluí-la despoticamente, como aconteceu recentemente com a presidenta Dilma Rousseff.

Qual seria então esse espaço ainda político, mas essencialmente além-político, no qual as mulheres estarão finalmente livres do despotismo masculino? Se a política é o velho e resistente “clubinho dos garotos”, a nova forma de organização social da qual as mulheres serão inalienavelmente partes essenciais merece outro nome, ou ao menos a modificação desse. Ora, se a palavra grega “cosmos” designa o universo em seu conjunto, a estrutura universal em sua totalidade, “o lugar da mulher” deve ser na cosmopolítica, uma política que não deixa nenhuma parte do todo social de fora da manutenção desse todo. Não há dúvida de que a presença efetiva da mulher nas deliberações sociais explode a velha e viciada roda política masculina. Mais ainda, inaugura um círculo virtuoso do tamanho da humanidade. Às mulheres, portanto, a cosmopolítica.

Machismo extremo: estupro

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Foto: Piotr Ciuchta – br.freepic.com

Uma menina brasileira de 16 anos foi à casa do namorado que havia conhecido na escola fazia três anos. Era sábado. Ela lembra de estar à sós com o garoto e de, de repente, acordar nua e dopada, em uma outra casa, com 33 homens armados que, não satisfeitos em terem-na estuprado coletivamente, ainda por cima a fotografavam e filmavam para então postarem esses “troféus” imagéticos perversíssimos nas redes sociais. Já era domingo. Porém, somente na terça-feira a garota voltou para casa, descalça, descabelada e com uma roupa masculina toda rasgada, sem dizer nada aos seus pais, tamanha a vergonha que sentia.

Depois de sofrer a barbaridade cometida pelos 33 homens, que são melhor definidos como monstros, não só a menina estuprada, mas também seus familiares e amigos, todos profundamente abalados, ainda tiveram de se confrontar com os vídeos e fotos do estupro postados nas redes sociais pelos próprios estupradores. Como se não bastasse, nessas postagens perversas e em muitas outras que polemizavam o terrível estupro, muitos dos comentários ainda culpavam a menina pelo acontecido. Essas barbáries subsequentes diziam absurdos tais como: se estivesse em casa, se estivesse na igreja, se não usasse drogas; se usasse roupas decentes etc., não teria sido estuprada.

Aqui vale lembrar o que disse a filósofa Marcia Tiburi, que “pela lógica do estupro, pensa-se mais no ‘erro’ da vítima do que no ‘erro’ do criminoso”. É exatamente essa lógica perversa que, por um lado, levou os 33 estupradores a se sentirem livres para estuprar a garota, pois certamente tinham certeza de que o “erro” dela seria mais evidenciado e condenado do que o deles, e por outro, “autorizou” centenas de pessoas a “estuprarem-na” posteriormente com vis comentários nas redes sociais. Grosso modo, o que estes “estupradores-comentadores” fizeram foi dizer que a menina estuprada é a culpada. Seja por não ter escapado, seja por não ter desconfiado da barbaridade que lhe aconteceria. Ou o que é pior, como coloca Tiburi, “por ter ‘parecido’ mulher demais”.

Tanto os 33 estupradores quanto as centenas de comentadores perversos agiram do modo que agiram porque, conforme a filósofa, “o status da mentalidade brasileira relativamente à questão do estupro define a vítima como culpada … É a mesma lógica que permitia que brancos privassem de liberdade, espancassem e matassem pessoas negras”. Embora o Brasil ainda seja um país fortemente machista e racista, o racismo, entretanto, é mais facilmente detectável e condenável do que o machismo extremo, qual seja, o estupro.

Mas por que um estuprador, um machista extremo, ainda goza de tamanho e abjeto privilégio? Porque “um estuprador não consegue isso sozinho … Ele precisa do apoio de uma sociedade inteira”, ressalta a filósofa. E essa sociedade que apoia estupradores é bem conhecida de todos. Quem não está habituado com a realidade machista na qual o pai tem mais poder que a mãe; o irmão, mais liberdade que a irmã; o homem, maior salário que a mulher etc.?

Sem esquecer que essa “sociedade protetora dos estupradores” é a mesma que ainda não conseguiu –talvez porque não queira- deixar de fazer piadas machistas. Barbaramente, a sociedade machista ainda ri, diverte-se com o seu próprio machismo. E essa lógica perversa, levada ao extremo, isto é, o estupro de uma mulher, chega a prometer espécie de “diversão” maior. Como se não bastassem as velhas jocosidades machistas contra as mulheres, temos agora o rol de comentários nas redes sociais a darem nova e altamente publicizada roupagem ao machismo extremo. Somado ao machismo em forma de piadas de mau gosto, temos hoje toda sorte de “opiniões machistas” deliberadamente vomitadas na internet.

E quando a garota de 16 anos estuprada disse em recente entrevista que “não dói o útero e sim a alma”, certamente não se referia apenas ao que os 33 bárbaros estupradores fizeram com seu corpo e espírito, mas também às centenas de comentadores perversos” que, ao culpá-la por ter sido estuprada, absolvem os verdadeiros algozes e a si mesmos pelo machismo extremo que ainda resiste na nossa sociedade. Pois, nas palavras de Tiburi, “na lógica do estupro toda e qualquer culpa recai sobre a vítima … o estuprador não é responsabilizado por seu ato”.

Não é à toa que em uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), realizada em 2014, 60% dos entrevistados -homens e mulheres- concordaram totalmente com a frase: “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Não que a maioria das pessoas seja a favor da violência pura e simples contra as mulheres. Não obstante, essa mesma maioria entende o estupro enquanto um violência menor, de certa forma justificável em algo de errado que as próprias vítimas dos estupros -as mulheres- fazem.

Afora o estupro em si, um mal abominável, as mulheres sofrem ainda uma segunda e talvez mais brutal violência, vinda da sociedade, que afirma contra elas que mereceram o estupro que sofreram. Essa sobre violência é a inversão perversa da vítima em culpada, para, desse modo, os estupradores poderem permanecer impunes e estuprando, alimentando o machismo extremo que resulta no que hoje está em todas as bocas e manchetes: “a cultura do estupro”. Nessa “cultura”, ou nas palavras de Tiburi, “na lógica perversa do estupro, ‘ser mulher’ é condição ontológica passível do estupro”.

Para os estupradores, as mulheres são objetos estupráveis porque eles ainda cultuam a si mesmos como os únicos e verdadeiros sujeitos da realidade. Com efeito, para um “sujeito machista”, o outro -a mulher- é apenas mais um objeto; uma coisa que pode lhe satisfazer. Tiburi deixa isso bem claro ao dizer que “o estuprador é aquele que se vê tendo um estranho ‘direito ao estupro’ … Paranoico, ele se sente o centro do mundo, o mundo no qual ele é o rei e a mulher é, quando muito, uma serva”. A relação entre homem e mulher enquanto relação entre sujeito e objeto ou rei e servo é a lógica do estupro, ou, como se diz hoje, a “cultura do estupro”, em sua perversa e vigorosa forma; ainda faz com que, no machismo extremo, as vítimas –mulheres- sejam mais “criminosas” que seus algozes –os estupradores.

A particular tragédia da carioca de 16 anos vítima de 33 estupradores e de centenas de “comentadores perversos”, todos machistas extremos, está dizendo em alto, universal e bom tom que a nossa sociedade precisa urgentemente ser revolucionada. Os homens precisam deixar de achar que são mais sujeitos que as mulheres. Essa resistente ficção é talvez o nosso mais abjeto fundamentalismo social. Revolucionar a sociedade machista extrema, todavia, não é tarefa fácil. Exigirá muitas batalhas. Uma delas é confrontar o macho com o seu insustentável mito de superioridade. A outra, forçar o macho à verdade social mais necessária à nossa época, qual seja: a igualdade entre os sexos. Por quê? -perguntaria o conservador criacionista. Porque estamos no século XXI, responde a parte sã da sociedade que já está na guerra contra o machismo, seja ele brando, seja extremo.

 

Lógica do golpe / lógica do estupro

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A primeira mulher eleita presidente do Brasil sofreu um golpe branco. Em bom português, um golpe baixo. Afastada do seu cargo devido à práticas financeiras as mais corriqueiras, cometidas fartamente inclusive por aqueles que a afastaram, Dilma Rousseff se diz vítima de violência e injustiça brutais. Como, porém, violência e injustiça contra as mulheres ainda são coisas assaz naturalizadas na nossa brutal sociedade, o país seguiu adiante como se Dilma fosse apenas mais uma histérica a reclamar indevidamente da vida; da vida “como ela é”; e como muitos ainda insistem, como ela deve ser. Não à toa o jornal britânico The Guardian ressaltou em manchete que “Machismo e rancor da direita pesaram em queda de Dilma”.

Metaforicamente podemos dizer que Dilma foi estuprada jurídica e politicamente pelos “falos golpistas” que a cercavam, muito embora a definição estrita de estupro seja: crime que consiste no constrangimento a relações sexuais por meio de violência. Essa definição, todavia, não generaliza quem comete nem quem sofre o estupro. Entretanto, se considerarmos a misoginia institucionalizada que impera no Brasil – e de forma geral no ocidente pelo menos desde a Grécia antiga-, temos que as mulheres sempre foram as maiores vítimas do estupro, e os homens, seus grandes algozes. Tanto que a filósofa Marcia Tiburi, no ensaio “Como conversar com um fascista”, pôde dizer categoricamente que “na lógica perversa do estupro, ‘ser mulher’ é condição ontológica passível de estupro”.

Dilma, ainda que não tenha sido estuprada stricto sensu no golpe político que sofreu, como ela mesma disse, foi “vítima de uma violência brutal”, e ademais cometida por uma cambada de homens para os quais o poder deve ser deles somente. Para pensarmos a violência da qual Dilma não foi poupada, considerando que foi maior pelo fato de ela ser mulher, doravante trataremos o golpe como se estupro fosse. E para penetrarmos mais fundo nessa violência misógino-política que vitimou a presidenta vale atentar à “lógica do estupro” ensaiada por Tiburi, segundo a qual “a vítima – uma mulher – não tem saída: de qualquer modo ela será condenada quando, de antemão e sem análise, ela já foi julgada.”

Dilma foi acusada por “pedaladas fiscais”, algo que seus acusadores – homens – praticam corriqueiramente. Primeira injustiça: homens podem “pedalar” fiscalmente, uma mulher, não. E de nada adiantou Dilma defender-se dizendo que os homens que a acusavam faziam o mesmo; que para eles não era nem nunca foi crime o que para ela estava sendo. Por que, analogicamente, isso representa um estupro? Ora, porque, segundo Tiburi, “o estupro é o ato em que a outra – a estuprada – não tem nenhuma chance de defesa porque a priori está condenada”. Com efeito, Dilma estava condenada ao afastamento independentemente do que dissesse ou provasse. Os “machos golpistas” apenas queriam que ela caísse fora. E conseguiram.

Agora os “golpistas estupradores” estão presidindo despótica e odiosamente o país, e o que é pior, sem nenhuma mulher por perto. Eis o absurdo: um ministério sem nenhuma presença feminina em pleno século XXI. Violência universalizada contra a mulher. Mas não só contra elas. Também de fora do governo golpista estão negros, gays, índios, e qualquer um que não seja homem, branco, rico e evangélico. Tiburi tem toda razão ao afirmar – todavia parafraseando Aristóteles em relação ao ser – que “o ódio ao outro se diz de muitas maneiras” Porém, segue a filósofa, “as mulheres sempre foram vítimas especiais desse ódio”.

Se, na lógica do estupro de Tiburi, “o estuprador é aquele que se vê tendo um estranho ‘direito ao estupro’ … Ele só pode pensar assim porque é uma personalidade autoritária, que, como tal, não tem capacidade de ver o ‘outro’”, na lógica do golpe contra Dilma, os golpistas são os que se veem tendo um estranho “direito ao golpe”. E eles pensam assim porque são personalidades autoritárias, que, outrossim, não tem condições de ver o “outro”. No caso, as mulheres – mas também os negros, os pobres, os gays, os índios etc.

E por que os “golpistas estupradores” de Dilma gozam de tamanhas liberdade e ela não? Segundo Tiburi, na lógica do estupro é a vítima – a mulher – que é sempre questionada. Na lógica do golpe contra Dilma, portanto, foi somente ela que foi questionada, e por uma corja de machos que há muito mais tempo que ela habita a mesma questão, sem, contudo, ser confrontada com ela. E assim podem agir porque “o criminoso [o homem] não é questionado, porque ele é homem e, segundo a lógica do estupro, não se objetifica o homem”, completa a filósofa. Já a mulher é o ser que os homens – mas também a sociedade – primeiramente transformam em objeto útil.

E no Brasil o abismo entre a inquestionabilidade masculina e a a priori suspeição feminina é mais dramático ainda, país subdesenvolvido que ainda somos. Assim como, nas palavras de Tiburi, “o status da mentalidade brasileira relativamente à questão do estupro define a vítima como culpada”, na lógica do atual golpe de estado o status da mentalidade golpista definiu Dilma como culpada por algo que, no entanto, aqueles que a culpam são tão ou mais culpados que ela. E isso porque, diz-nos a filósofa, “pela lógica do estupro pensa-se mais no “erro” da vítima do que no “erro” do criminoso”

Tiburi segue dizendo que na lógica do estupro “é como se a vítima fosse culpada por não ter escapado … por não ter desaparecido antes”. Na lógica do golpe tupiniquim, com efeito, os golpistas, antes de vestirem essa sórdida carapuça, bem que tentaram fazer com que Dilma renunciasse; que desaparecesse da cena política da qual eles pensam serem os donos exclusivos. Mas ela resistiu. E, segundo a lógica golpista, Dilma só fez por merecer ser afastada, “estuprada”, por ter peitado os déspotas da oligarquia política tupiniquiim. “O estuprador, autoritário e irresponsável, reivindica a supremacia masculina na qual ele se compraz. Ainda vivemos na idade Média”, conclui Tiburi.

Os “golpistas estupradores” da presidenta conseguiram culpá-la e afastá-la, para então gozarem de uma anacrônica e inacreditável liberdade, porque já na lógica do golpe/estupro que ainda subjaz na mentalidade machista brasileira o golpista/estuprador projeta sua culpa nas suas vítimas para só então poder gozar. Entretanto, esclarece Tiburi, “um estuprador não consegue isso sozinho. Ele precisa do apoio de muita gente. De uma sociedade inteira” aliás. Aqui é impossível não lembrar das hordas de paneleiros que gritaram “fora Dilma” nas ruas, dos 367 deputados que disseram “tchau querida” na votação na câmara federal, e dos 55 senadores que, um pouco mais sóbrios, mas nem por isso menos machistas, admitiram o processo de impeachment contra Dilma.

Sim, a nossa sociedade é tão culpada pela lógica do estupro que vitima milhares de mulheres brasileiras quanto pela lógica do golpe que injustamente vitimou Dilma, a despeito mesmo de sua honestidade e dos 54.501.118 de cidadãos que a elegeram presidenta. E essas vis lógicas são tão naturalizadas que mesmo depois da tremenda violência imputada contra Dilma o sórdido e imediato gozo do criminoso governo Temer foi governar sem mulher alguma por perto.

Confrontados com esse abominável machismo, os golpistas bem que tentaram se desvencilhar do estupro político que foi não darem espaço algum no governo deles para uma mulher sequer – a não ser, obviamente, para a jovem, “bela, recatada e do lar” esposa de Temer. Porém, como estupro e golpe são crimes sim para além da “macholândia” golpista, os criminosos “estupradores”, bem representados pelo Chefão do DEM, o senador José Agripino Maia, não escaparam de ouvir da jornalista Mariana Godoy a alfinetada: “não tem mulher no governo Temer porque não tem mulher precisando de foro privilegiado”. Contra essa verdade, que talvez só uma mulher pudesse perceber e afirmar, mais violência. Agripino então disse: “boa piada”. Ou seja, mulher, quando fala a verdade para um homem, é chamada de palhaça.

 

Contra o golpe, qual o melhor afeto?

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Tristeza é o sentimento confesso de grande parte dos brasileiros diante do golpe de estado dado pelo “PMSDB” (o Frankenstein antidemocrático formado pelo PMDB e pelo PSDB). Tristeza maior, todavia, é que seja justamente tristeza o afeto mais afirmado em resposta ao golpe. Sentir outra coisa porventura é possível nesse momento? Como não estarmos tristes perante tamanho assalto? Mais ainda, poderia a alegria ser de alguma serventia contra os golpistas? Baruch Spinoza, o filósofo dos afetos, pode mostrar que sim, e como.

Para Spinoza, a tristeza seria um afeto inútil no enfrentamento do golpe tupiniquim porque ela outra coisa não é senão a passagem de um estado de potência maior para um menor. Ou seja, quanto mais tristes estamos, menos potentes somos. A tristeza, portanto, é o afeto que nos fragiliza ainda mais frente ao que já nos fragilizou. Os brazukas que desejam dar cabo dessa até aqui venturosa empreitada da oligarquia política tupiniquim devem cultivar outro afeto, pois, tristes, menos podem contra a besta “peemeessedebista”. Qual seria, entretanto, este outro afeto?

Desprezo? Spinoza diria que não, pois este afeto nos leva a imaginar mais o que a coisa desprezada não tem do que aquilo que ela tem. Quando desprezamos algo, portanto, lidamos mais com inimigos imaginários do que com o verdadeiro e real. Temer e sua tropa golpista agradeceriam que os desprezássemos apenas, pois assim permaneceríamos ocupados com a nossa ignorância, e quanto mais ignorantes, mais vulneráveis.

E o ódio aos golpistas, substituiria melhor a tristeza? Também não, uma vez que para o filósofo dos afetos o ódio outra coisa não é que uma tristeza que aponta uma causa externa. Ao odiar ainda permanecemos tristes, consequentemente menos potentes, e o que é pior, tornamos transcendente, isto é, absolutamente separado de nós a causa da nossa tristeza. E sem poder afetá-la, não temos como vencê-la. O ódio, viciosamente, só aumenta a nossa impotência.

Indignados seriamos mais potentes contra a elite golpista? Infelizmente não. Spinoza diz que a indignação é o ódio por alguém que fez mal a um outro. Aqui temos dois problemas. Primeiro, sendo ódio, a indignação ainda assim é uma tristeza, ou seja, uma forma de impotência. Segundo, em se tratando de um golpe de estado, isto é, de algo que afeta a todos simultaneamente, afetarmo-nos pela ideia de que esse mal foi causado a um outro é ignorar que esse mal nos afeta igualmente. E ignorância definitivamente não é a melhor arma.

Vergonha também não é um afeto que aumenta nossa potência contra os golpistas nem diminui a potência deles, uma vez que, para Spinoza, a vergonha ainda é uma tristeza, e além do mais, acompanhada da ideia de que alguma ação nossa foi desaprovada pelos outros. Ora, o afeto que devemos cultivar diante dos golpistas para que eles não sejam mais potentes que do nós é um que reforce que a ação imprópria, condenável, foi cometida por eles, e desaprovada por nós! Do contrário, culparíamos a nós mesmos, cidadãos golpeados, pelo ato dos golpistas.

A vingança, que por ódio nos leva a fazer mal a quem nos causou algum dano, e a ira, que nos leva a fazer mal a quem odiamos -ambos afetos que parecem cair muito melhor ao revolucionário do que a tristeza-, também não seriam indicados por Spinoza para nos tornarmos mais potentes do que a elite golpista que negativamente nos afeta. Sendo espécies distintas de ódio, vingança e ira ainda assim são formas de tristeza. No fim das contas, de impotência.

Podemos ainda ser afetados pelo temor, pavor, aversão, escárnio, decepção, sevícia etc., porém, são todos formas diversas de tristeza. Nada nos ajudam nesse momento no qual precisamos aumentar a nossa potência contra os golpistas oligarcas. Com efeito, nenhuma espécie de tristeza serve ao brasileiros golpeados

Em oposição à tristeza, Spinoza coloca a alegria: a passagem de um estado de potência menor a um maior. Alegres, portanto, nos fortalecemos. O problema é conseguir ser afetado de alegria diante de um golpe de estado… Dita simplesmente, alegria pode parecer abstrata demais para encontrar lugar na angusta realidade brasileira. Porém, assim como a tristeza é bem mais palpável para nós em forma de desprezo, ódio, indignação, vergonha, vingança, ira etc., a alegria outrossim tem suas expressões mais concretas, tais como: a admiração, a segurança, o reconhecimento, a satisfação etc.

No rol das alegrias spinozanas temos ainda a esperança. Para o filósofo, entretanto, trata-se de uma alegria instável, pois acerca de algo, passado ou futuro, de cuja realização não temos como ter certeza. Pseudo alegria, a esperança, como o desprezo, nos mantém atentos mais à nossa imaginação do que à realidade. Nutrir esperança de que venceremos os golpistas, portanto, é deixar o real para eles enquanto permanecemos no mundo dos nossos sonhos. Categoricamente, Spinoza diz que a esperança é o refúgio da ignorância. Por isso é uma péssima arma na guerra contra o golpe.

Agora, se quisermos ser efetivamente potentes contra os golpistas, devemos ter em mente que, para Spinoza, a mais virtuosa forma de alegria, portanto de potencialização, é o amor. Nas palavras do filósofo, “o amor é uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior”. Dito de outro modo, o amor é a passagem de um estado de potência menor a um maior do qual, no entanto, pensamos não ser os responsáveis. Amando, o aumento de nossa potência parece vir de fora, como se fosse uma dádiva. E como não temos consciência de que somos nós que o produzimos, mas algo externo, tampouco sabemos como parar essa afetação. Eis a virtuose do amor.

De modo algum estamos falando aqui do amor cristão, aquele que se é obrigado a cultivar aqui na terra para que se tenha direito à eternidade celeste. Aos golpistas, obviamente, ninguém deve oferecer a outra face ao tapa. O amor spinozano não visa futuro transcendente algum, mas, ao contrário, recuperar, presentemente, a imanência perdida entre parte e todo. E no caso do golpe brasileiro, o amor deve recuperar a harmonia rompida entre o cidadão e o seu Estado.

Como, então, vencer a adversidade do golpe com o amor? De que causa externa devemos ter ideia para que seja aumentada a nossa própria potência no sentido de não sermos afetados negativamente pela potência dos golpistas? Mais ainda, que ideia deve nos acompanhar para que sejamos mais potentes que os golpistas; para que os vençamos definitivamente? Obviamente não é a ideia do golpe ela mesma, visto que apenas nos causa a pá de tristezas que vimos anteriormente, e que estas apenas nos tornam mais impotentes.

Portanto, se em Spinoza o amor recupera melhor do que qualquer outro afeto a perfeita ordem entre parte e todo, na luta contra o golpe, que é a recuperação da ordem entre o cidadão e o seu Estado, o nosso amor deve ter um objeto definido. Considerando que o Estado brasileiro é composto por 200 milhões de outros cidadãos, e que estes também são vítimas do mesmo golpe, tenham consciência disso ou não, é a eles que devemos amar, isto é, tê-los enquanto a ideia externa que acompanha uma alegria potencializadora em nós mesmos.

Assim, fazendo com que estes outros milhões de cidadãos golpeados sejam a causa, não de uma imensa tristeza, raiva, ódio ou indignação, mas de uma alegria suprema em nós mesmos –como nas vezes nas quais nos alegramos por haver “o povo brasileiro”-, enfim, quando conseguimos amar o todo-povo é que a parte-cidadão que cada um de nós é adquire potência e virtude suficientes para lutar contra o inimigo comum sem se entristecer, ou seja, sem se despotencializar inadvertidamente.

Em suma, não é porque os golpistas afetam negativamente a mim, particularmente, que devo lutar contra eles. Meu desagrado privado é assaz impotente contra inimigos públicos. Em troca, é porque o golpe de estado do “PMSDB” afeta negativamente todas as demais partes-cidadãs do meu país que eu, uma dentre elas, devo lutar contra os oligarcas golpistas. Afinal, só no dia em que todos os cidadãos brasileiros estiverem finalmente livres desse inimigo é que eu também estarei. Virtuose absoluta, obviamente, é quando todas as partes agem assim, e em função da alegria do todo, pois quando o todo está alegre, potente, cada parte não tem como  não estar. Contra o golpe, portanto, amor ao povo golpeado.

 

Utopia e revolução

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O ser humano precisa da utopia”, afirma o sociólogo Antônio Ozaí da Silva no seu artigo Ideologia e Utopia. Isso porque o homem é um ser imaginativo, o único capaz de pensar realidades para além da realidade imediata. E quando essas realidades imaginadas passam a ser habitadas por outros que a partir de então começam a sonhar o mesmo sonho, as utopias são passíveis de serem realizadas. Importante é saber que o pensamento utópico que transcende o status quo não pode se efetivar solitariamente, pois utopias estão relacionadas a grupos sociais, e enquanto não forem incorporadas por eles não terão efeito. Qual é, então, o papel da utopia e da coletividade que ela engendra na esperança de construção de um futuro melhor?

Outro sociólogo, Karl Mannheim, autor do clássico Ideologia e utopia, sustenta que “a desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático em que o próprio homem se transforma em coisa”. Ou seja, sem imaginar outras realidades ele apenas é essa coisa chamada realidade. Por isso é fundamental manter aberto um espaço para as utopias, pois elas renovam a possibilidade para os indivíduos insistirem em um outro mundo. Quanto mais não seja, para Mannheim, “A erradicação da utopia só é possível com a sua realização”. Pragmaticamente falando, mesmo que derrotada em suas respectivas épocas, as utopias sobrevivem e são incorporadas pelas gerações vindouras.

Marilena Chaui, nas suas Notas sobre utopia, esclarece que a utopia nasce na renascença como um gênero literário — a narrativa sobre uma sociedade perfeita e feliz — e um discurso político — a exposição sobre a cidade justa. Porém, para vir ao mundo seu percurso foi longo. Chaui conta que, primeiro, teve de haver o colapso do teocentrismo medieval para que o homem tivesse participação no destino do mundo e para que percebesse que é dotado de capacidade e força não só para conhecer a realidade, mas sobretudo para transformá-la. Aqui vale citar o adágio celebrizado por Francis Bacon: “o homem é o arquiteto da Fortuna”. Em segundo lugar, fundamental para o vir-a-ser do pensamento utópico foram as viagens marítimas iniciadas no século XV e a descoberta de novas terras e povos que inspiraram fantasias de sociedades perfeitas vivendo em plena harmonia com a natureza.

E dizendo que, etimologicamente, utopia significa não lugar ou lugar nenhum, Chaui quer reforçar não só que utópico é o lugar que nada tem em comum com o lugar em que vivemos, como também e principalmente que “utopia significa, simultaneamente, lugar nenhum e lugar feliz … Ou seja, o absolutamente outro é perfeito”. Afirmando a perfeição do outro, o utópico outra coisa não faz que propor uma ruptura com a totalidade existente. Para a filósofa, a sociedade imaginada pode ser vista como negação completa da realidade existente ou como visão de uma sociedade futura a partir da supressão dos elementos negativos da sociedade existente. Temos aqui a utopia compreendendo tanto o horizonte revolucionário quanto o reformista? Chaui corrobora com isso dizendo que “o utopista é um revolucionário ou um reformador consciente do caráter prematuro e extemporâneo de suas ideias”.

Mannheim aqui é de grande ajuda, pois, para ele, a mentalidade utópica deve ser compreendida segundo maneiras de pensar, sentir e agir que são coletivamente determinadas no sentido de transformar a realidade dominante de acordo com as aspirações do próprio grupo que deseja transformá-la. O sociólogo compreende essas formas de pensar, sentir e agir no mundo ou como ideológicas, ou como utópicas; Ambas, porém, motivações coletivas que determinam a forma como os indivíduos agem e pensam. A diferença principal, entretanto, é que ideologia identifica-se com conservação, e utopia, com mudança. Fazer de ideologia e de utopia sinônimos é um erro, mais difícil de ser percebido na expressão ideologia revolucionária do que no absurdo utopia conservadora. Utopias são contestatórias por natureza; colocam a revolução diante da ordem estabelecida; apontam a possibilidade do não-lugar justamente no lugar que não dá lugar a ela.

Com efeito, são os grupos dominantes que determinam o que será utópico no ato de criticar as concepções dos grupos que lhe são opostos. Em contrapartida, são os grupos que fazem oposição aos grupos dominantes que determinam como ideológicas as concepções destes. Em suma, as ideologias refletem a ordem social dominante, e as utopias, um futuro almejado que supera essa ordem dominante. Mannheim exemplifica isso relembrando-nos de que no momento histórico em que a burguesia se fortalecia economicamente, suas aspirações eram consideradas utópicas pela aristocracia feudal dominante. Porém, uma vez que a burguesia conquistou o poder, isto é, realizou a sua utopia, a sua concepção de mundo passou a ser dominante, e, doravante, o grupo que passou a ser oprimido por ela, o proletariado, passou determiná-la de ideológica.

Chaui corrobora com Mannheim afirmando que a utopia surge como possibilidade objetiva, inscrita na marcha progressiva da história. A filósofa esclarece, contudo, que nenhuma utopia mudou o curso da história por seu realismo, mas, ao contrário, pela negação radical das fronteiras do real instituído e por oferecer aos agentes sociais a visão de inúmeros possíveis. Segundo a filósofa brasileira, “O utopista desloca a fronteira daquilo que os contemporâneos julgam possível”, e que ao passar do u-tópos ao tópos, isto é, do não-lugar a um lugar na história, a utopia se transforma em ideologia.

A crítica de Engels e Marx ao socialismo utópico não escapa das considerações de Chaui sobre utopia. Segundo ela, para os dois filósofos alemães a utopia socialista “é um pressentimento ou uma prefiguração de um saber sobre a sociedade … Assim como da alquimia se passou à química e da astrologia à astronomia, assim também é possível passar do socialismo utópico ao socialismo científico”. Passagem do afetivo ao racional, do parcial ao totalizante, do pressentimento à revolução, o socialismo utópico é o primeiro movimento contra a opressora ordem estabelecida. O socialismo científico, por sua vez, é o passo derradeiro: o conhecimento racional das causas materiais da humilhação e da opressão, ou seja, o modo de produção capitalista.

O pensamento utópico, seja em que área for, é a assunção da incapacidade de diagnosticar corretamente a realidade na qual pensa. Entretanto, tem a virtude de dirigir a ação coletiva. Utopia não é exatamente um vir-a-ser, mas um não-ser-que-não-obstante-já-é, uma vez que o lugar do não-lugar é justamente a resistência do real em ceder lugar a outra coisa que não ele mesmo. Por mais que as utopias, de certa forma, sejam discursos sobre o não existente, com isso não podemos dizer que são quimeras, delírios de indivíduos incapazes de ver a realidade. O que o utopista pensa é a mudança, a revolução, pois se o pensamento humano permanecesse prisioneiro da realidade as sociedades estariam condenadas a permanecerem estacionadas no que já são.

Vale seguir as principais características de uma utopia feita por Chaui, feita a partir da Utopia de Thomas More. Segundo a filósofa, uma utopia: é normativa na proposição de um mundo tal como deve ser; é sempre totalizante, pois utopia é criação de um mundo completo; é a visão do presente sob o modo da angústia e da crise; busca a liberdade e a felicidade totais graças à reconciliação entre homem e natureza, indivíduo e sociedade, sociedade e Estado, cultura e humanidade; busca combinar o irrealismo com o realismo; não ocultar nem dissimular nenhum de seus mecanismos e nenhuma de suas operações (ou seja, não é ideológica!); é um discurso de fronteiras são móveis, isto é, pode ser literária, arquitetônica, religiosa, política, etc. Mais do que um programa de ação, uma utopia é um exercício de imaginação, permanecendo assim no plano potencial e hipotético.

Na sequência, Chaui enumera o conjunto de aspectos utópicos que passaram a operar como modelo para obras e discursos utópicos posteriores. Quais sejam: a busca pela cidade feliz ou justa se encontra na excelência da legislação, na estabilidade social, política e institucional; a identificação de cada indivíduo com  a lei ou com o Estado, o desaparecimento da família, da propriedade privada, do dinheiro, da desigualdade social e da competição; a escolha de uma locus insular e isolado de todo o restante do mundo, cuja localização, por segurança, permanece secreta; o planejamento geométrico, urbanístico e arquitetônico enquanto produto da razão que organiza o espaço segundo exigências sociais, políticas e econômicas; demarcação do lugar do poder; a beleza e a salubridade da cidade ideal; e, seguindo Platão na sua utópica República, a recusa do isolamento engendrado na escrita e na leitura solitárias em proveito dos encontros, conversar e debates coletivos.

Foram esses aspectos que, a partir do século XVI, fizeram da utopia um jogo intelectual que passou a combinar a nostalgia de um mundo perfeito porém perdido com a imaginação de um mundo novo instituído pela razão. Francis Bacon se vale disso para criar a sua ilha utópica, Nova Atlântida, na qual projeta todas suas expectativas de um futuro baseado em uma nova racionalidade. Sem duvidar um momento sequer de que o homem pode se tornar “ministro e intérprete da natureza”, Bacon descreve uma espécie de utopia da ciência futura. Seu esforço fez dele profeta da sociedade moderna.

Por que nova Atlântida? Bacon faz alusão à civilização Atlântida, formulada por Platão no diálogo Crítias, enaltecida pelo grego pelas belas instituições e feitos de seus habitantes, sobretudo pela valorização da filosofia, da ciência e pela virtude e sabedoria. O inglês buscou no ideal platônico o protótipo de uma sociedade paradisíaca a ser seguida, modelo, segundo ele, capaz de tornar seres humanos perfeitamente virtuosos. A nova Atlântida de Bacon é uma sociedade harmônica, feliz e próspera, na qual o conhecimento e sua aplicação superaram as limitações da condição humana. As virtudes cívicas não são religiosas; a civilidade ideal nasce do conhecimento e não da fé. Ou seja, Nova Atlântida é a utopia da ciência.

Chaui ressalta que depois de Nova Atlântida o racionalismo e o experimentalismo científicos passam a integrar o discurso utópico. A utopia de Bacon exalta as artes liberais e o trabalho manual e técnico. Nova Atlântida é uma civilização do trabalho; antecipa a sociedade racional produtora de sua própria felicidade mediante a instalação de uma ordem social perfeita. E para não esquecer do que coloca Mannheim, qual seja, que as utopias falam da realidade ao negá-la, que propõem justamente o que não tem lugar na realidade imediata, é importante frisar que Bacon transferiu para sua utopia aquelas aspirações suas que a ordem econômica e política de sua época impediam de serem realizadas. Com efeito, a Nova Atlântida de Bacon era uma crítica à sociedade medieval tardia da qual o pensador gostaria de se ver livre. O pensar, sentir e agir contemporâneos a Bacon, senão romperam com o passado, ao menos revelaram a ruptura sócio histórica que estava em curso.

Com efeito, a utopia de Bacon serviu de paradigma para o pensamento utópico posterior. Tanto que, aponta Chaui, a partir do século XIX a utopia deixa de ser apenas um jogo intelectual-imaginativo para se tornar projeto político no qual o possível se insere na história e constrói o futuro. Doravante a utopia passa a ser deduzida de teorias sociais e científicas. É tida como inevitável porque a marcha da história baseada no conhecimento garante sua realização. A utopia deixa de ser apenas literatura contestatória e se torna prática organizada. A cientifização das utopias resultam em um projeto de reforma global como ciência aplicada.

O problema da viabilidade das utopias mediante a racionalidade e a técnica humanas, entretanto, é que elas passam a ser encaradas pelos poderes dominantes reacionários, isto é, ideológicos, como perigo real. Começam a ser censuradas, desacreditadas e abafadas por bombas de gás lacrimogêneo pelo poder que elas ameaçam. Todavia, a virtude subversiva das utopias está em que, conforme destaca o sociólogo Antônio Ozaí da Silva, a sociedade que nega veementemente uma utopia outra coisa não faz senão produzir as condições para a sua realização. Mais ainda, com Mannheim podemos dizer que é a própria ordem existente, absoluta e ideologicamente contrária à sua própria ruptura, que, entretanto, dá vida a utopias que rompem com o real, abrem a história, possibilitam a mudança, seja ela revolucionária, seja reformista. A utopia, portanto, é uma não-ordem que, na marcha da história e por força de uma coletividade, possibilita as ordens seguintes.

 

A uma periferia da verdade

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O desejo de alcançar a verdade, seja sobre o cosmos, seja sobre si mesmo, levou o homem a criar os mitos, isto é, relatos fantásticos protagonizados por seres que encarnam as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana. Foi preciso milhares de anos para que a mitologia perdesse seu posto de locus da verdade e fosse irreversivelmente substituída pela ciência que, com precisão matemática, acredita-se dizer o que e como as coisas são. Agora, seria um absurdo perguntar se a ciência, em vez de efetivamente tocar a verdade, não estaria apenas inventando as ficções mais efetivas da história da humanidade?

Os mitos lidavam com personagens e situações particulares para, todavia, dizer do universal, ou seja, daquilo que sempre foi, é, e será. O mito de Prometeu, por exemplo, contando a história da sabedoria roubada de Zeus para que os homens pudessem viver longe do paraíso, conta, na verdade, de nós, seres humanos, e da necessária sabedoria que a cada instante devemos furtar para vivermos na natureza. Sendo assim, somos todos nós os eternos larápios, porém, projetados miticamente em Prometeu, pois só a certa distância podemos vislumbrar, sem padecer, aquilo que eternamente somos.

O mítico Édipo Rei, cuja eternidade, todavia, é trágica, só revelou a verdade sobre os desejos incestuosos que todo os homens têm em relação aos seus progenitores à distância de uma plateia e sob o pretexto de um texto. Ora, se se disser a uma pessoa qualquer que ela de fato deseja matar o seu pai e ter relações sexuais com a sua mãe, de forma alguma compreenderia, tampouco aceitaria tais desejos. O mito tem a capacidade de torna o difícil fácil; o inaceitável, palatável. A história da capacidade humana para lidar com o insuportável, não obstante, é contada por outro mito, o de Ulisses e as sereias, que, nas palavras de Adorno, outra coisa não é senão a história da invenção da plateia, ou seja, da distância contemplativa segura.

Por conseguinte, o primeiro passo do homem para além da arena mítica foi trágico. As tragédias gregas, espetáculos nos quais a mitologia seguiu performando a sua pretensão de ser o veículo da verdade, outra coisa não foram que uma nova proximidade, uma nova segurança, em relação àquilo que da natureza e de si mesmo o homem não tinha condições de suportar. Entretanto, o passo derradeiro que definitivamente negou ao mito a posse da verdade foi científico. O tipo de verdade que a ciência inaugurou não carecia, ao contrário do mito, de crença nem de repetição, pois, por um lado, não se corrompe longe da audiência humana, e, por outro, não deseja ser descoberta, dado que aguardou, paciente e incólume, os milênios de protagonismo mítico.

Porém, assim como a tragédia foi um dos veículos da mitologia, é justo desconfiar que a ciência, embora afirmando-se alheia às fantasias, veicule, contudo, algo delas. Ora, os cientistas contemporâneos, diante de equações matemáticas elegantérrimas, no final das contas falam delas mediante enunciados assaz poéticos tais como buraco de minhoca, buraco negro, partícula de deus, etc. Não parece mitológico os nossos físicos dizerem que “uma partícula subatômica ora é onda, ora matéria”? Não estariam eles assumindo que não sabem o que ela de fato é, sempre, e, para remediarem essa incerteza, contam uma boa história?

Portanto, mítica ou cientificamente, estamos condenados a projetar em todas as nossas questões centros de verdade a serem alcançados, contudo, a partir da imensa circunferência das nossas próprias dúvidas. Porém, dessa periferia não escapamos. Prometeu nos dirá sempre que precisamos furtar a sabedoria de que necessitamos, pois ela não nos pertence. Édipo repetirá eternamente que desejamos matar os nossos pais e casar com as nossas mães, pois somos sempre ignorantes em relação aos nossos desejos primordiais. Ulisses, por sua vez, narrará sempiternamente que apenas à distância de uma plateia podemos suportar a verdade, observá-la.

Imaginemos que a relação do homem com a verdade tem a forma de um círculo, a verdade ocupando o centro e o homem a circunferência. O raio desse círculo pode ser de qualquer tamanho e, partindo do centro, apontar para qualquer um dos infinitos pontos que formam a circunferência, mas será sempre uma distância determinada a afastar o homem da verdade central. Podemos nos aproximar desse centro, mas como o raio que nos separa dele é uma reta, isto é, é constituído de infinitos pontos, chegar ao centro verdadeiro exigiria que transpuséssemos o infinito. Tarefa impossível para seres finitos como nós!

Podemos perambular peripatética ou histericamente ao longo da circunferência curiosa na qual estamos, qual o desejo lacaniano em torno do seu pequeno objeto a, que, se tocado, é destruído. Pensando em aproximação em relação ao centro no qual jaz a verdade, podemos inclusive fazer uma gradação entre as infinitas periferias que se estabelecem em relação à verdade central: o mito um círculo maior, a filosofia, um menor, e a ciência, o menor deles, um tanto mais próxima da verdade. Porém, o homem é de uma natureza que estabelece raios irredutíveis entre as verdades centrais e a sua vontade de conhecê-las, Se o homem conseguisse abandonar a periferia de suas dúvidas e conquistar o centro da verdade, não mais a veria, mas somente ele mesmo, um outro mito.

Amor e medo urbanos

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Imagem de domínio público

 

A essência da vida urbana está na constante relação com o Outro. Essa proximidade causa grandes prazeres, mas também medos intensos. Estes dois sentimentos extremos são chamados de mixofilia e mixofobia, amor à mistura e pavor da mistura, respectivamente, pois da mesma forma que a cidade virtuosamente conecta o cidadãos com os demais e com a realização de suas próprias necessidades, também pode, viciosamente, roubar tal conexão. Na urbe, portanto, vive-se a mais intensa experiência de amor e medo em relação à alteridade.

 

Entretanto, o amor e o pavor que o Outro-cidadão pode causar, muito antes de figurarem na heterogênea big picture urbana, são afetos individuais, produzidas pela população de desejos e medos que residem dentro de cada indivíduo. Isso porque uma pessoa só pode nutrir pelos outros sentimentos que ela tenha primeiramente experimentado por si mesma. De que outra forma a subjetividade angariaria objetividade? Antes de amar ou se amedrontar com o exterior, o próprio sujeito já é um mundo simultaneamente amado e amedrontado interiormente, por ele próprio. Todavia, na urbe amor e medo se evidenciam grandemente, e deles pode ser dito que são causados pelos outros.

 

No germe da cidade está a mixofilia, pois ela tem a virtude de aproximar os indivíduos, fazendo brilhar o prazer e a vantagem da presença do Outro. O carnaval, por exemplo, é um evento mixofílico por excelência. Da mixofobia, entretanto, não pode ser dito o mesmo, pois o medo do outro é sistematicamente convertido em isolamento, distanciamento, exclusão; o que desdiz sobremaneira o propósito citadino. Para esse medo: muros, câmeras de vigilância, condomínios e semblantes fechadíssimos!

 

Porém, o medo do Outro não desaparece apenas ao se adquirir distância dele. Essa distância, aliás, é o medo realizado, espacializado: a sua medida urbanizada. Ainda mais angustiante é perceber que esse Outro de quem se tem medo e de quem se deseja separação é um concidadão: foge-se dele dentro da mesma gaiola. O maior problema da mixofobia urbana é que ela institui o não-diálogo entre quem se sente atemorizado e quem causa tal temor. Felizmente, a mixofilia, o amor à mistura, é cidadã a priori da cidade. Pode e deve ser trazida à ágora urbana sempre que o pavor da mistura estiver tiranizando os cidadãos. Na praia, nas festas ou nos estádios de futebol, por exemplo, nos misturamos com prazer, sem o medo ditador imperar.

 

Lutar contra a mixofobia diante da massiva alteridade urbana, imanentemente, é transformar a sempre vulnerável individualidade em uma cidadania mais forte, acolhedora, mixoifílica. Afinal, não foi por segurança que o homem se aglomerou em cidades? Paradoxalmente, o medo de perder tal segurança é que cinde a cidade a partir de dentro. Cada cidadão, portanto, deve encontrar um semovente lugar afetivo dentro da urbe que lhe disponha a cultivar e a viver mais o amor à mistura que à separação. Somos mais cidadãos agrupados no passeio público do que segregados no Alphaville, ora bolas!

 

É na relação mixofílica que somos capazes de estabelecer com o Outro-cidadão que reside a arte de viver na cidade. Até porque, é bom não esquecer, cada cidadão também é um Outro em relação aos demais. Desse modo, o melhor remédio para o cidadão amedrontado com a  presença e com a proximidade do Outro é investir no amor à mistura. Afinal, essa atitude outra coisa não faz senão dizer para esse Outro que ele também amará se misturar, e o que é melhor, sem medo.

Tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser

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O ser humano é transição, e, exclusividade sua, consciência disso. Somos a espécie que não só conhece, mas, principalmente, promove a própria evolução. E essa ininterrupta promenade se expressa em todas as dimensões humanas. Economicamente, vemos isso nas transições históricas, por exemplo, do escravismo para o feudalismo; deste para o capitalismo; e deste último para algo que ainda não sabemos o que, mas que até bem pouco tempo se acreditou piamente ser o socialismo. Entretanto, hoje em dia a descrença nas profecias econômicas à lá Marx nos permite chamar o sucessor do capitalismo apenas de pós-capitalismo.

As transições econômicas que fizeram dos escravos servos e dos servos proletários são conhecidas, cognoscíveis, embora sempre abstratas para nós, contemporâneos. Já a transição de igual envergadura na qual estamos compreendidos, essa não nos poupa da angústia concreta em não saber para onde estamos indo. O fato de não conhecermos o que é esse até então tautológico pós-capitalismo, com efeito, é motivo para espécie de angústia histórica. Os conceitos-bengala pós-proletáriado e pós-capitalismo dão conta apenas parcialmente do ainda desconhecido horizonte diante de nós; pouco anestesiam a dúvida do que de fato virão a ser.

Embora não estivesse falando de economia, o filósofo alemão Martin Heidegger expressou o dilema do homem em meio à transição, todavia do realismo ao relativismo, através da seguinte frase: “Chegamos tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser“. O filósofo queria dizer que a sua idade histórica –que ainda é a nossa- perdeu a fé nas verdades absolutas, isto é, nos deuses, mas ainda não sabe lidar com o Ser, ou seja, com a multiplicidade infinita de interpretação do real. Nesse ínterim no qual nem os deuses nem a pluralidade de sentidos do real nos oferece um chão seguro, ou acreditamos que nada é verdadeiro, ou que a única verdade absoluta é o nada. Eis o efeito colateral do niilismo que deu cabo da modernidade e inaugurou a contemporaneidade humana.

Retomando a dúvida e a perplexidade acerca do que será chamado esse pós-capitalismo tautológico-acessório que com efeito capitulará o inconcluso capítulo econômico histórico  do qual somo os protagonistas, a frase do filósofo alemão pode ser de grande ajuda. A transição econômica pela qual passamos não poderia ser expressa assim: chegamos tarde demais para o capitalismo e cedo demais para o ____________? Um marxista, obviamente, completaria a máxima tascando, sem pestanejar, um socialismo. Isso, no entanto, não seria apenas fazer de um fundamento passado a regra para um presente e um futuro outros? Em outras palavras, a reeleição de um velho deus?

Dizer que chegamos tarde demais para o capitalismo significa que, embora ainda estejamos absolutamente imersos nele, não conseguimos mais crer que ele possa dar conta das necessidades econômicas de todos os indivíduos, mas só de uma minoria deles, cada vez mais minoritária aliás. Não há mais dúvida de que a liberdade revolucionária que o capitalismo significou para o servo medieval, hoje em dia, é liberdade apenas para as elites. Nem o jovem deus que prometeu libertar as pessoas das regulações, qual seja, o Neoliberalismo -termo cunhado em 1938 Ludwig von Mises e Friedrich Hayek- consegue mais manter-nos beatos seu.

Quanto mais não seja, porque segundo George Monbiot, no artigot Para compreender o neoliberalismo além dos clichês, a vangloriada liberdade neoliberal resultou na liberdade dos patrões para reduzir os salários e explorar os trabalhadores; a liberdade em relação à regulamentação significou destruição da natureza; e a liberdade para distribuir a riqueza findou como liberdade para não fazê-lo. De fato, conforme aponta Thomas Piketti no seu Capital no século XXI,  hoje em dia a concentração de renda nas mãos de cada vez menos gente é maior do que em qualquer outro período histórico. É de espantar seguir até o final o texto e os gráficos da obra do economista francês!

Muito tarde para o neoliberalismo e muito cedo para o pós-neoliberalismo? Por certo, mas outrossim demasiado tautológico. Muito cedo para que exatamente? Eis a pergunta que não quer calar. Se, entretanto, a difícil transição metafísica de que falava Heidegger era entre os deuses e o Ser, isto é, entra a univocidade e a plurivocidade absolutas do real, a que está sendo abordada aqui deve ser dita entre a univocidade de uma doutrina econômica, cujo vício entretanto é atender cada vez menos indivíduos, e a plurivocidade de um devir econômico no qual o interesse de todos seja contemplado.

Em se tratando de economia, o que seria então o Ser heideggeriano, isto é, a multiplicidade infinita de interpretação do real? Ora, se, como aponta Monbiot, o deus neoliberal elege “a competição como definidora das relações humanas, e os cidadãos como consumidores que decidem democraticamente o seu destino apenas ao comprar e vender“, a pluralidade de sentidos do real pós-neoliberal, por sua vez, deverá no mínimo significar que as relações humanas não sejam pautadas exclusivamente pela competição nem pelo consumo. Não que a plurivocidade do real econômico vindouro deixe de constar dessas práticas, afinal, menos plural o real seria, e, consequentemente, mais próximo dos deuses permaneceria.

Economicamente, pluralidade absoluta, ausência total de deuses e de verdades únicas, portanto, deve ser uma realidade na qual cada indivíduo possa realizar as suas necessidades materiais da forma que melhor lhe convir, sem, contudo, tal liberdade impedir quem quer que seja de realizar o mesmo, da forma que achar melhor. Os críticos da social democracia dirão que tal liberdade repetirá vícios históricos; que atenderá somente os interesses da burguesia; que o neoliberalismo se aproveitará dela para exercer-se imperiosamente sobre todos. E têm certa razão nisso inclusive.

Porém, tal crítica é pertinente até o ponto onde percebemos que o neoliberalismo, encimando imperiosamente a realidade econômica outra coisa não faz senão se colocar como um deus absoluto. O maior problema dessa doutrina econômica é até aqui não ter conseguido compatibilizar-se com a pluralidade absoluta em relação a qual, segundo Heidegger, chegamos cedo demais. Entretanto, como dito antes, a plurivocidade do real à qual chegaremos não será total se a famigerada liberdade neoliberal for excluída desse real. Tarefa difícil conciliar o real todo com suas expressões mais contraditórias! E é justamente essa dificuldade que aponta a nossa precocidade em relação ao Ser!

Nesse sentido, o passo que precisamos dar para, senão estar definitivamente no Ser, ao menos mais próximo dele e mais distantes dos deuses, deve ser fazer com que o neoliberalismo possa não ser absoluto e invencível; impedi-lo de ser um deus ele mesmo. Pensando assim, estar entre o deus capitalista e o Ser pós-capitalista significa que estamos no tempo de furtar do neoliberalismo a sua patológica tendência absolutizante. Os revolucionários radicais, por certo, dirão que se trata de reformismo. Entretanto, até onde podemos garantir que a revolução rápida e violenta do Manifesto Comunista de Marx e Engels, corroborada por Lenin no seu O Estado e a Revolução, seja a melhor saída depois de termos visto que as revoluções russa e cubana em menos de um século ruíram diante dos ditames neoliberais?

Para quem busca o Ser, isto é, a plurivocidade de interpretação do real, insistir na clássica, todavia monológica estratégia que prega que devemos começar com a revolução violenta em função da ditadura do proletariado não seria nos mantermos demasiado próximo dos deuses? A modernidade que levou Marx a escrever tal cartilha, com efeito, estava muito mais próxima das verdades absolutas, ou seja, dos deuses, do que nós, contemporâneos. Embora tenham sido os verdadeiros assassinos de Deus, os modernos ainda estavam com o punhal e com as mãos sujas do sangue divino; demasiado contemporâneos daquilo que nós, contemporâneos, já somos e devemos ser avant garde. Reviver velhas doutrinas apenas nos fará démodés.

Se ainda não conseguimos precisar em relação a que chegamos cedo demais para além das tautologias “pós-capitalismo”, “pós-liberalismo”, se ainda é um enigma que real plural fará com que a competição e o consumo não determinem exclusivamente as relações e a sobrevivência material humanas, é porque ainda não conseguimos nos desvencilhar totalmente dos deuses do passado, das verdades de pretensão absoluta que ainda nos convencem de que devem ser interpretadas univocamente. Aqui podemos parafrasear a máxima heideggeriana novamente para nos encontrarmos na transição histórica em que estamos: chegamos cedo demais para nos desvencilhar totalmente dos deuses e, portanto, muito mais cedo ainda para sermos capazes de encarar o Ser.

A tarefa histórica da nossa particular transição, por conseguinte, deverá ser seguir na cruzada contra as verdades absolutas, aberta todavia antes de nós, justamente porque ela não foi concluída. Isso fica claro quando percebemos que diante do real não vemos muitas alternativas além da permanência do neoliberalismo ou da revolução socialista. Que pobreza imaginativa! Quão pouco plurívocos ainda somos! Ora, duas possibilidades nos afastam quase que diametralmente da pluralidade de interpretações do real que o Ser que deverá se seguir exige. Dois deuses não fazem o Ser. Negam-no duplamente aliás.

Como colocado no início, estarmos livres dos deuses e sermos finalmente contemporâneos do Ser, ou seja, da plurivocidade infinita do real, de forma alguma deve significar sustentar que nada é verdadeiro nem que a única verdade absoluta é o nada. O niilismo é bem mais virtuoso do que isso! Inclusive os monológicos liberalismo e socialismo não devem ser negados, nadificados, mas compreendidos entre muitas outras formas de, economicamente, a humanidade existir no mundo. Só não podemos seguir insistindo somente nessas duas teclas. A história da nossa transição, que dará cabo dos deuses e conta do Ser, exige que usemos todas as teclas disponíveis e que, ademais, inventemos todas as outras que nos faltam. Só então teremos condições de gozar o real em suas infinitas possibilidades.

O socialismo negativo de Lula

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Foto: Rodrigo Stuckr / Instituto Lula

 

O socialismo, essencialmente, é a doutrina política e econômica que prega a coletivização dos meios de produção e de distribuição da riqueza através da supressão da propriedade privada e das classes sociais. Entretanto, muitos dos que tentaram implantá-lo cometeram o pecado de sobrelevar a teoria em detrimento da prática. Em outras palavras, preferiram o ideal ao real. Lula, o maior líder político da história do Brasil, em recente entrevista ao jornalista Glenn Greenwald, deixou bem claro que o seu projeto socialista para o Brasil tem ao menos a virtude de não incorrer nesse pecado.

A certa altura da entrevista, Greenwald afirma que o PT é parecido com os partidos da esquerda da Bolívia, Venezuela, Cuba, Equador, e que Lula e Dilma querem colocar o Brasil no mesmo caminho. Lula então protesta: “não seja injusto com o PT, pelo amor de Deus, porque o PT tem muita ligação com o SPD alemão; com o partido trabalhista inglês; com o partido socialista francês; com o partido socialista espanhol.”

O ex-presidente metalúrgico assim rejeitou a afirmação do jornalista americano para esclarecer que o percurso socialista que ele abriu no Brasil não se deu de modo autoritário como nas demais repúblicas latino-americanas. A diferença que Lula aponta entre o projeto socialista do PT para o Brasil e os dos demais países hermanos fica ainda mais clara quando ele assume que “o PT nem sequer definiu o tipo de socialismo que quer, porque o PT diz que o socialismo será a construção; será construído pelo povo; não será o PT que terá meia dúzia de intelectuais e dirá que tipo de socialismo NÓS queremos. O PT é um partido muito mais aberto do que outros partidos que existem na América Latina”.

Está precisamente aí a virtude esquerdista do partido do presidente proletário: não eleger teorias socialistas abstratas e de pretensão universal como regra para a realidade brasileira concreta e particular. Em outras palavras: não subjugar a construção ao construto; a prática à teoria; em suma, o real ao ideal. Quando diz que não será meia dúzia de intelectuais nem o PT que dirá que tipo de socialismo o Brasil terá, Lula coloca o futuro da sociedade brasileira acima dos interesses do seu partido e dos da intelectualidade em geral.

Proletário durante anos, Lula foi vítima concreta da histórica divisão social que desvaloriza do trabalho braçal diante do trabalho intelectual. E foi contra essa sobrevalorizada intelectualidade que não só no Brasil se confunde com a aristocracia que o metalúrgico teve de lutar para provar que um trabalhador comum não vale nem pode menos do que qualquer doutor? Não foi exatamente isso que ele provou contra seu antecessor de governo, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso?

Recusando-se implantar no Brasil teorias socialistas pré-fabricadas, ademais escritas em língua estrangeira, e ao mesmo tempo assumindo que o PT nem sequer definiu o tipo de socialismo que quer, sem, contudo, deixar o horizonte socialista de lado, o que Lula faz é defender um socialismo negativo. O que seria então esse socialismo negativo?

Ora, se em sua forma positiva o socialismo é a implantação, imediata ou gradual, da doutrina socialista em uma determinada sociedade em função da coletivização dos meios de produção e das riquezas sociais, sua versão negativa há de ser apenas a exclusão sistemática daquilo que em uma sociedade a impede de realizar tal coletivização. O socialismo negativo é mais o esvaziamento de entraves contrários à socialização da riqueza do que o preenchimento da sociedade com novas e impositivas ordens.

O socialismo negativo não é a negação do socialismo, mas a não positivação de teorias socialistas historicamente construídas, a maioria delas eurocêntricas, passadistas. Até mesmo a mais cultuada delas, o socialismo científico/profético de Marx e Engels deve receber a mesma crítica que o filósofo Baruch Spinoza, duzentos anos antes deles, fez às escritura das grandes religiões monoteístas, qual seja: que estes livros são verdadeiros e úteis somente enquanto registros históricos de épocas e povos determinados.

Por mais que a teoria marxista seja uma excelente chave para se pensar a dinâmica do capital em determinada conjuntura histórica, querer que ela valha para além do seu tempo é como querer que a Bíblia, a Torá ou o Alcorão sejam fundamentais ao tempo que lhes sucede. Em outras palavras, é ser fundamentalista. Não é à toa que o marxismo é chamado por muitos de religião.

É para evitar tal fundamentalismo, que também é anacronismo, que Lula não quer enfiar goela abaixo dos brasileiros teorias socialistas que em nada tem a ver com a particular realidade social brasileira nem com as atuais aspirações do povo desse país. Não, obviamente, que o conhecimento pregresso deva ser desconsiderado. Lula não faz apologia à ignorância. Antes, seu projeto socialista sustenta que é o próprio povo brasileiro que, no andar de sua carruagem, descobrirá de que modo quer que se dê a coletivização dos meios de produção e de distribuição da riqueza.

Para tanto, o que Lula fez no Brasil nos seus oito anos de governo foi investir profundamente na inclusão social, aliás, como nunca antes na história desse país, para que mais pessoas, quiçá toda a população tenha oportunidade de participar dessa construção que deve ser coletiva, democrática, e não autoritária, fundamentalista.

Se ao tomar o poder em 2003 Lula tivesse perguntado à sociedade brasileira de que modo ela gostaria de distribuir a sua riqueza, muito menos vozes ouviria, pois a sociedade na época era mais refém das elites do que agora. Hoje, 14 anos depois de iniciado o socialismo negativo de Lula, mesmo que a resposta da sociedade brasileira à mesma pergunta ainda não seja o socialismo, o coro no entanto é muito maior e múltiplo.

Depois do presidente metalúrgico as elites brasileiras já não são mais a única voz. Também os trabalhadores, os nordestinos, os gays, as mulheres, os negros e os pobres têm condição e força para participar coletivamente da construção do futuro do Brasil, pois com grande esforço foi retirado, melhor dizendo, foi negativado muito do que os impedia de ser, de fato e de direito, a sociedade brasileira.

Uma das maiores críticas à Lula se dá porquanto seu governo mais estimulou o consumo do que investiu na formação de uma consciência de classe trabalhadora que, para a teoria socialista clássica, é a chave para a revolução. Mas aqui não reencontramos a questão da impertinência prática do metalúrgico em relação às teorias estrangeiras?

Entretanto, até mesmo a teoria marxiana que diz que o socialismo sucederá o capitalismo no momento que este se tornar insustentável corrobora com o investimento de Lula no consumo. Afora o fato de que ainda há muito ranço feudal a ser erradicado por essas terras, o próprio capitalismo tupiniquim está longe sucumbir diante de suas próprias contradições. Investir todas as fichas numa revolução socialista imediata nessa conjuntura não seria de certa forma repetir os fracassos das revoluções russa e cubana que tentaram tornar economias, se não ainda feudais, ainda jovens capitalistas, em socialistas, isto é, sem, experienciarem o vil ciclo completo do capitalismo?

Por isso o investimento de lula no consumo não merece tamanha crítica, sequer dos marxistas, mas compreensão particular. O que o ex-presidente fez erradicando a pobreza do Brasil e dando condições para a maioria das pessoas consumir foi botar a sociedade brasileira inteira, e não só as classes mais abastadas, a girar a roda capitalista. Investir no consumo de massa como acelerador do esgotamento do sistema econômico que impede a coletivização dos meios de produção e a distribuição da riqueza não deixa de ser socialismo, só que em sua forma negativa.

O socialismo negativo de Lula tem a primeira virtude de não pré-estabelecer verticalmente um tipo de socialismo ao povo brasileiro. Em última instância, significa liberdade não só para esse povo decidir quais são suas atuais necessidades e desejos, como também para construir ele mesmo o futuro que quer para si. E o que é mais importante, a despeito de teorias que apenas nos livros são infalíveis e de teóricos que no passado convenceram muita gente intelectualizada.

Graças ao socialismo negativo de Lula o futuro do povo brasileiro e o modo como se dará a coletivização dos meios de produção e a distribuição da riqueza no Brasil não foram outorgados nem pelo PT nem, nas palavras do metalúrgico, “por meia dúzia de intelectuais”. O socialismo negativo, portanto, é a forma menos autoritária e fundamentalista de socialismo. E é por isso que o ex-presidente pode dizer que “não tem nenhum partido no mundo que seja democrático e aberto como o PT”.

Metafísica da saideira

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Foto:Marcos Santos/USP Imagens

Saideira é o nome dado à última bebida que se pretende tomar antes de se deixar um bar. Porém, quem já viveu uma boa mesa de boteco com amigos sabe muito bem que a saideira pode ser várias. Daí a necessidade de uma metafisica a seu respeito, pois se a saideira, fisicamente, em nada difere da bebida que a antecede, nem sequer precisa ser a última, algo além dela mesma, ou seja, algo metafísico, a define e qualifica.

Mesmo que a saideira, em seu sentido estrito, seja uma só e a última bebida antes de se deixar o bar teríamos a seguinte questão: ela é a antecipação do fim da bebedeira ou, ao contrário, o seu adiamento? O fato de ser várias em nada facilita a resposta, pois, digamos, três saideiras ao mesmo tempo que são a antecipação da antecipação da antecipação do fim, podem ser também o seu triplo protelamento.

Considerando a primeira opção, isto é, que a saideira é a antecipação do fim, temos que quem está bebendo não gostaria de parar de beber, mas já sabe que deveria fazê-lo. E para que esse fim esteja definitivamente no horizonte, mais uma(s). Já a segunda opção, qual seja, a saideira enquanto adiamento do fim, temos que quem está bebendo também tem ideia de que deveria parar de beber, só não sabe ou não importa quando. E enquanto isso, mais uma(s).

Em ambos os casos a saideira se relaciona com o fim da bebedeira. É esse fim, aliás, que metafisicamente faz com que a mesma bebida passe a ser outra coisa que não o que vinha sendo até então. Os experts em saideiras sabem muito bem que a saideira, embora fisicamente a mesma bebida, tem um gosto só seu. E esse gosto especial é justamente o sabor de transgredir a ideia que mais hora menos hora ocorre a quem está bebendo, qual seja: que deve parar.

A saideira, portanto, tem o gosto do excesso. Não o excesso cometido pelo alcoolista, pois esse sabe de antemão que, se depender dele, não terá fim a sua bebedeira. Chamar as doses que bebe de saideiras é apenas a desculpa do alcoolista para não parar de beber. Sem dizer que para ele todas as doses têm um e mesmo gosto.

Para concluir essa pequena metafísica é preciso ressaltar que a saideira não diz respeito somente ao excesso de bebida, isto é, às doses a mais além daquela que deveria ser a última. A saideira se relaciona sobretudo com prazer de cometer deliberadamente um excesso etílico sem, contudo, esse ato excessivo ser fruto de uma patologia, como no caso do alcoolista.

A saideira, portanto, é muito mais o amor ao beber do que à bebida. E é esse amor que, metafisicamente, converte qualquer bebida em saideira. Até mesmo Cristo, que por amor às pessoas que se divertiam em um casamento que estava prestes a ser encerrado porque o vinho estava acabando, fez seu primeiro milagre: transformou água em vinho. Oxalá a nossa mundanidade pudesse ser milagrosa assim! Caídos no mundo, entretanto, podemos pelo menos pedir ao garçom mais uma(s) saideira(s).

 

A cidadania da impotência e uma outra cidadania

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Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Os verdadeiros cidadãos brasileiros, aqueles que são contrários ao impeachment de Dilma Rousseff porque sabem que, na verdade, trata-se de um golpe contra o Estado brasileiro, sua jovem democracia e sobretudo contra as políticas sociais implantadas no Brasil a despeito dos interesses da velha oligarquia tupiniquim, estes cidadãos experimentam perplexos a impotência dessa instituição chamada cidadania em uma democracia representativa.

O fato de as discussões acerca do golpe contra Dilma estarem tergiversando mormente sobre a divisão da opinião pública, as crises política e econômica e sobretudo a corrupção generalizada, entretanto, tem o vício de fazer-nos esquecer do cerne da questão, trazido à luz pelas manifestações brasileiras de junho de 2013, mas que parece ter “saído de moda” já em 2016, qual seja: a crise de representatividade política no Brasil.

Para o cidadão revolucionar essa crise, contudo, é fundamental que ele tome responsabilidade na insatisfatória representatividade que recebe dos seus políticos eleitos. Afinal de contas, os péssimos representantes estão onde estão, inclusive votando contra a democracia que os elegeu, por conta do voto direto e secreto dado a eles pelos próprios cidadãos brasileiros. Vitimarmo-nos pela presença deles, portanto, é colocar a culpa bem longe dos verdadeiros culpados.

Para tanto, precisamos, por um lado, responsabilizar-nos pela eleição desses vis representantes, e, por outro, e mais importante, encontrar, em nós mesmos, cada um dos cidadãos brasileiros, “o grão” maldito de uma representatividade ineficiente que, seja nas urnas, seja na atividade política cotidiana de cada um de nós, resulta na “duna” da má representatividade generalizada, muito mais fácil de enxergar no topo do que na base da pirâmide política.

Com efeito, o povo não ser capaz de auto-representar-se politicamente com qualidade e eficiência resulta em representantes políticos que outra coisa não fazem senão repetir essa má qualidade representativa que, é importante manter em mente, nasce no grão-cidadão. Dois exemplos disso, todavia os mais extremados, mas por isso mesmo bastante evidentes, são os Blakc bloc de 2013 e os coxinhas de 2015/2016.

Representando as suas insatisfações em relação a representatividade política brasileira estiveram os radicais de 2013 que negavam a política partidária mediante uma miríade de pautas difusas e em um cenário de quebra-quebra de equipamentos públicos e bancos e lojas privadas. Também os radicais de 2015-2016, batendo panela em função da monocórdica pauta golpista, e outrossim mediante um quebra-quebra, só que da própria democracia, estes também estão reclamando uma representatividade política que não lhes convém.

Agora, falemos sério, quando cidadãos começam manifestar suas insatisfações em respeito à representatividade que recebem de seus governantes representando-as e a si mesmos dessas maneiras, de uma coisa podemos ter certeza: a crise de representatividade não nasce nem oprime os cidadão de cima para baixo, transcendentemente, mas ao contrário, imanentemente, é a crise da própria cidadania como a conhecemos.

Os cidadãos menos radicais outrossim não escapam de representarem a si mesmos de modo lamentável. Os mais de dez milhões de votos em branco que tivemos nas eleições de 2014 atestam isso. Como reclamar dos representantes políticos eleitos quando sequer se participa da eleição deles? Dito de outro modo, como querer ser bem representado politicamente sem no entanto contribuir para a eleição de representantes que possam realizar esse desejo?

Fazendo um virtuoso contraponto a essa representatividade crísica que, disfarçada ou descarada, é a crise político-institucional pela qual o Brasil passa, estão as ocupações das escolas brasileiras feitas por estudantes insatisfeitos tanto com a precárias situação do ensino como sobretudo com os projetos governamentais para suas escolas e para a educação de um modo geral.

Estes estudantes, que ainda não são eleitores, nem, portanto, cidadãos “ipsis litteris”, não fizeram como a maioria dos cidadãos “oficiais” que esperam dos seus representantes políticos soluções para os seus problemas e insatisfações. Em troca, ocupam, com seus corpos e discursos, por semanas e meses até, a ágora crítica que querem ver revolucionada. Não ficam em casa diante da TV ou do Facebook reclamando do sucateamento da educação, mas, em troca, não deixam as escolas, fazendo delas seus bunkers de protesto.

Tais “jovens ocupadores” nos oferecem uma via para se revolucionar a crise de representatividade que assola o nosso país, qual seja: a assunção de que a boa representatividade política não vem de cima para baixo, mas deve nascer precisamente nos grãos cidadãos, para quiçá “contaminar” virtuosamente a estrutura política que se sobrepõe a todos eles. Estes estudantes, sabendo ou não disso, corroboram com a máxima de Aristóteles: “a qualidade de um estado é a qualidade de seus cidadãos”.

Intuitivamente bem fundamentados, os estudantes ocupantes das escolas paulistas tiveram no início de 2016 uma vitória considerável -ainda que não definitiva- contra o monstro peessedebista de Geraldo Alckmin e a sua reorganização escolar. A atual ocupação das escolas no Rio de Janeiro, pelo ativismo e resistência que esses jovens estudantes estão demonstrando, é bem possível que consiga o mesmo ou maior feito contra a besta peemedebista que muito mal os representa.

Não que essa tática de ocupação direta seja inédita. A política dos antigos gregos é reconhecidamente virtuosa justamente porque nela os cidadãos atuavam direta e presentemente nas deliberações coletivas. A vantagem da tática dos ocupantes escolares, todavia, está em que o sistema político atual, demasiado representativo, não sabe mais lidar com cidadãos que representam a si mesmos diretamente.

Nesses casos, o Estado ou bombardeia moral e “lacrimogeneamente” os que se manifestam diretamente contra ele, como manda sua vertical cartilha, ou, em troca, tem de ceder à diretiva manifestante, como pudemos ver em São Paulo. Ora, o Estado sufocar jovens estudantes com bombas de gás seria assumir uma intransigência e uma desumanidade que voltaria toda a opinião pública contra ele.

Eis a vantajosa estratégia que esses jovens ocupantes de suas escolas oferecem como opção aos cidadãos brasileiros que se sentem impotentes diante dos alienados desígnios de seus representantes: manifestar-se de modo que uma ofensiva do Estado contra essa manifestação seja o fim do próprio Estado. Em suma, fazer com que o Estado seja novamente os seus cidadãos, e não os seus representantes políticos que, na verdade, apenas tentam fazer do Estado o meio para realizarem seus interesses particulares.

Os jovens ocupantes de escolas mostram melhor do que ninguém que a democracia representativa com a qual estamos habituados é o espaço onde se cultiva a impotência cidadã e onde os representantes políticos torna-se livres daqueles que os elegem. Mostram também uma outra política na qual a cidadania significa potência, pois substitui a desacreditada esperança depositada na representatividade política pela potência de uma cidadania presente e direta na construção de uma sociedade que é e que deve ser dos cidadãos.

Os cidadãos ocuparem a política toda, desde as câmaras municipais até o Congresso Nacional, seria essa a venturosa ação política que os jovens estudantes de suas escolas tem a nos sugerir? Apesar de radical, essa tática ou garantiria menos insatisfação em relação à representatividade política no Brasil, ou, imanentemente, evidenciaria que a má qualidade da representatividade que vemos somente nos nossos políticos não é outra que a nossa, a de cada um dos cidadãos. Neste último caso, se o problema nunca deixou de estar conosco, tanto mais fácil revolucioná-lo.

PMDB, o Leviatã brasileiro.

Foto José CruzAgência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Etimologicamente, Estado vem do Latim “status”, e significa a condição ou situação do que está, do que fica de pé. E diante da turbulência política e da fragilidade institucional que o Brasil enfrenta, que tem como ícone maldito o golpe do PMDB contra a presidente Dilma Rousseff, é inevitável perguntar: o que “ficará de pé” no Estado brasileiro?

Instituição soberana, o Estado é composto por uma série de outras instituições hierarquizadas em cuja base estão os cidadãos. De uma perspectiva materialista, a cidadania é instituição primeira, pois erigida a partir de indivíduos concretos, em função do quais aliás um indivíduo supremo e abstrato, o Estado, existe.

Todavia, depois de instituído, o Estado se transcendentaliza em um indivíduo primeiro e absolutamente necessário que passa a contingenciar os cidadãos e suas necessidades.  Tal é a força do ser que o teórico político inglês Thomas Hobbes chamou de Leviatã: indivíduo soberano, resultado do contrato social travado por todos os indivíduos que o compõem em busca de segurança e justiça.

O Estado hobbesiano angaria extrema substancialidade, em outras palavras, “fica em pé” porque, embora resultado de um contrato coletivo, não fez trato com ninguém. O Leviatã é absolutamente único, portanto livre. Segundo Hobbes, cria e anula as leis que comandam os cidadãos conforme sua necessidade de “permanecer estando”.

O filósofo inglês coloca inclusive que é burrice os cidadãos tentarem revolucionar o Estado, pois quando este é golpeado são os seus cidadãos, melhor dizendo, o trato que travaram entre si que recebe tal golpe. Ora, se o Estado não mais está, tampouco estão os cidadãos, e o que se tem doravante é uma situação onde não mais há segurança nem justiça.

Pois bem, pensando a partir da teoria de Hobbes, o golpe de Estado que está em curso no Brasil outra coisa não trará aos cidadãos brasileiros senão insegurança e injustiça. Sendo assim, estaríamos chamando os cidadãos brasileiros de espécie de kamikazes ao sustentar que são eles os arquitetos desse golpe.

Dito isso, temos de responder à seguinte pergunta: quem no Brasil não se autodestruiria com o golpe? Solapar o Leviatã tupiniquim só não será considerado burrice, ou melhor, significará inteligência para aqueles que têm certeza de que não padecerão de insegurança e de injustiça.

De grande segurança, pelo menos desde a redemocratização do Brasil em 1985, goza o PMDB, partido político sem o qual nenhum outro chegou ao poder, e, como estamos podendo observar, tampouco se mantém aí sem ele. Então, se há um indivíduo a quem o golpe não afeta, mais ainda, interessa, esse deve ser o PMDB.

Agora, se falarmos de justiça a coisa se complica, pois o golpe que o PMDB tenta dar no Leviatã petista serve justamente para escapar à justiça deste, procedimento que Eduardo Cunha, peemedebista presidente da Câmara dos Deputados em cujas costas pesam muitos crimes e suspeitas criminosas, deixa bem claro. Cada vez mais claro também é que, para o PMDB, escapar à justiça do Estado petista, depondo-a, é a manutenção da injustiça que oferece ao PMDB a segurança de que goza há cinquenta anos.

Todavia, se o PMDB tem poder para depor o Leviatã petista para não estar sujeito à lei deste, o verdadeiro Leviatã é o próprio PMDB, pois, conforme Hobbes, quem cria ou infringe a lei ao seu bel-prazer e necessidade é o poder absoluto. O PMDB é o Leviatã, muito embora o jogo democrático dos últimos 26 anos tenha nos convencido de que foram e de que poderiam ser outros.

Em se efetivando o que Dilma e o PT estão chamando de golpe, resta a eles assumirem que outra coisa não foram nestes últimos 14 anos além de operários convenientes do poderoso Leviatã peemedebista enquanto, e somente enquanto, o trabalho que ideologicamente vinham fazendo não ameaçou a injustiça que dá suprema segurança ao indivíduo mais poderoso do Brasil, o PMDB.

Analfabetismo político: capítulo ou capitulador da era Lula?

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Foto Lula Marques/Agência PT

Senso comum esses dias é que a era Lula chegou ao fim. Concordam com isso a esquerda e a direita brasileiras. Sendo que esta última contribuiu muito com esse ocaso, como atestam os trabalhos iniciados pelo PSDB do perdedor Aécio já nas eleições presidências de 2104 e os quase finalizados trabalhos do PMDB do gangster Cunha no processo de impeachment de Dilma Rousseff. O deputado federal Jean Wyllys, do PSOL, contudo, tenta mostrar a responsabilidade da própria era Lula com a sua alardeada capitulação.

Reconhecendo que a maioria da população brasileira esteve desde sempre “alijada do direito a uma educação de qualidade que lhe faça cidadã com capacidade de pensamento crítico”, Jean esclarece o cenário que Lula encontrou ao tomar o poder, o qual, aliás, o ex-presidente se propôs revolucionar.

Porém, para o deputado, na era Lula a ampliação do acesso ao sistema formal de educação, principalmente ao ensino superior, não resultou em uma educação de qualidade, mas na produção em larga escala de “diplomados analfabetos funcionais”. O mui criticado aumento do consumo, investimento central de Lula para que, com o crescimento econômico, políticas sociais pudessem ser implantadas sem tanta resistência por parte das elites, resultou, no entanto, na educação enquanto mercadoria.

E para Jean essa reificação da educação levou esse contingente de novos estudantes precarizados a aderir mais facilmente a “discursos demagógicos e manipuladores que interpelam preconceitos e sensos comuns históricos e propõe soluções fácies, mas mentirosos e/ou autoritárias para as questões complexas que nos envolvem diariamente.” Ou seja, para o deputado, a era Lula criou analfabeto políticos.

E Jean relembra-nos de que, conforme afirmou Bertold Brecht, “o pior analfabeto é o analfabeto político”. Nas palavras do dramaturgo alemão, esse tipo de analfabeto “é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política”. Porém, ressalta o deputado, o diferencial do “analfabeto político da contemporaneidade” é que este, mesmo odiando a política, participa ativamente dos acontecimentos políticos, sobretudo nas redes sociais digitais, mas sem qualquer cuidado crítico.

O exemplo concreto que Jean oferece do que ele chama de analfabetismo político contemporâneo é um comentário em uma postagem sua no Facebook quando da aprovação do Marco Civil da Internet. Qual seja: “o marco servil [sic] vai acaba [sic]com o Facebook e traze [sic] o comunismo vai manda [sic] mata [sic] todo mundo começando por você seu viado filhodaputa  [sic]”.

Com efeito, o exemplo dado por Jean leva-nos a pensar que a alienação orgulhosa do analfabeto político da época de Brecht produziria uma realidade muito menos miserável do que o impertinente “ativismo” dos “analfabetos políticos contemporâneos”. Entretanto, são com estes que temos de lidar em vias de uma educação política de qualidade superior.

Agora, lidar com o analfabetismo político contemporâneo passa necessariamente por entender as suas causas. E, como apontou Jean, uma delas, a mais contemporânea e universal aliás, foi justamente a universalização a qualquer custo de uma educação-mercadoria de baixa qualidade que criou cidadãos-embalagens em cujo interior qualquer conteúdo pode ser acriticamente inserido.

E a elite brasileira, afrontada não só por essa universalização da educação, mas também e principalmente pela todavia tímida distribuição de renda garatujada pela era Lula, se aproveitou desse “analfabetismo político contemporâneo” produzido pela própria era Lula para capitulá-la. Os elitistas-oligárquicos PSDB de Aécio e PMDB de Cunha sequer precisaram produzir a massa de analfabetos-invólucros acríticos nos quais incutir as suas ideologias golpistas que, massificadas, estão dando cabo da era Lula.

Justiça seja feita, os atuais analfabetos políticos tupiniquins são apenas massa de manobra nas mãos da reacionária elite brasileira. Mais ainda, Jean não nos deixa esquecer de que “o analfabeto político é uma vítima daquele Brecht considera o pior de todos os bandidos: o político vigarista, desonesto intelectualmente, corrupto e lacaio das grandes corporações”.

Os peessedebistas e peemedebistas todos –mas não só estes, obviamente- parecem se encaixar perfeitamente nesse perfil corrupto, vigarista e pelego das grandes corporações traçado por Brecht que tanto vitima os analfabetos políticos. Até mesmo Lula e o seu PT encontram dificuldade em demonstrar que não participam dessa vitimização, uma vez que a corrupção e a subserviência à grandes corporações também brilhou forte desde que o poder esteve com a estrela vermelha petista.

Entretanto, uma diferença deve ser feita entre o “modus operandi” elitista e o petista. Quando Jean sustenta que  “é preciso ter alguma compaixão pelo analfabeto político: insistir na luta para que ele tenha acesso a educação de qualidade”, ainda temos que foi na era Lula que essa “compaixão”, melhor dizendo, essa consideração com os analfabetos, sejam eles políticos ou não, se deu de maneira mais efetiva, ainda que a realidade esteja distante da idealidade. Realidade e ou projeto que, é importante frisar, nunca foi nem será pauta da elite.

A tão criticada produção lulista do que Jean chamou de “diplomados analfabetos funcionais” que hoje são um exército de analfabetos políticos, entretanto, participa ativamente da rendição do que resta do lulismo mais pela manipulação golpista da elite reacionária do que pelo próprio projeto iniciado por Lula. Até onde podemos sustentar que a falência da era Lula não é precisamente a interrupção a qualquer custo, pelas elites, do projeto do presidente metalúrgico?

As palavras de Jean Wyllys sobre do que deve ser feito com os analfabetos políticos, quais sejam, “é preciso ter alguma compaixão pelo analfabeto … insistir na luta para que ele tenha acesso à educação de qualidade”, mutatis mutandi, não cabem perfeitamente na boca e nos feitos de Lula? Só é possível negar isso, contudo, estabelecendo-se para essa desafiadora revolução histórica um prazo menor do que 14 anos – o tempo de vida do projeto de Lula- e, ao mesmo tempo, esquecendo-se do “Brasil, Pátria Educadora” de Dilma.

Não fosse a apressada sede golpista das elites em retomar o poder e a exclusividade no acesso à educação de qualidade no Brasil, do projeto educacional de Lula poderia ser dito apenas que está longe de ser concluído. Transformar milhões de analfabetos em cidadãos alfabetizados que, no entanto, ainda são analfabetos políticos, mas que, compreendidos em um processo histórico-geracional contínuo, futuramente formará uma população mais educada, inclusive politicamente. Eis o caminho que a era Lula abriu no Brasil.

Essa senda só não pode ser considerada utópica porque a própria vida de Lula é um exemplo concreto dessa revolução. Nordestino pobre e analfabeto, Lula alfabetizou-se minimamente para exercer sua profissão de torneiro mecânico em São Paulo. Essa parca e funcional alfabetização, em meio à exploração da indústria paulista que ele e os seus iguais sofriam, mas que ele ansiava reduzir, levou-o a perceber seu analfabetismo político e a desejar saná-lo. E a virtuosidade desse processo pessoal fez com que ele se tornasse não só presidente do Brasil como também Doutor Honoris Causa em 27 universidades ao redor do mundo.

Em se tratando de alfabetização política, como então acreditar mais no vil projeto histórico e desigualitário das elites, hoje mascarado de impeachment e que de forma alguma pretende democratizar o acesso à educação, do que no revolucionário, todavia inconcluso projeto educacional da era Lula, que segue insistente com Dilma no seu “Brasil, Pátria Educadora”? À boa crítica de Jean Wyllys à educação da era Lula, a seguinte pergunta: em se tratando de educação, a pressa não é inimiga da perfeição?

 

O atual Leviatã brasileiro

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Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O filósofo Thomas Hobbes, autor de o Leviatã, uma das obras mais importantes sobre o pensamento político, fala da sociedade enquanto um contrato social travado por todos os cidadãos com o objetivo de dar cabo da “eterna luta de todos contra todos”. Para Hobbes, essa tarefa só pode ser realizada pelo governo de um soberano absoluto: o Leviatã.

Dono das leis e do destino de seus súditos, o Leviatã, criado e empoderado por estes, representa uma força invencível à qual todos os súditos devem se curvar obrigatoriamente. Já o Leviatã, ao contrário, por não ter feito trato algum com quem quer que seja, mas ser o resultado desse trato, não deve nada a ninguém. O Leviatã, portanto, é absolutamente livre, seja para criar leis, seja para desrespeitá-las quando achar necessário.

Novamente: o Leviatã é invencível! Quando é vencido, entretanto, é porque o verdadeiro Leviatã é outro: justamente o vencedor.

Algum paralelo com que aconteceu na Câmara dos Deputados da República Federativa do Brasil em 17 de abril de 2016 na aprovação do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, até então a figura soberana do Estado, ou seja, “A” Leviatã? A vitória do presidente da Câmara e articulador central do golpe, Eduardo Cunha, cujo poder iniciou a subjugação de Dilma, não o coloca como o verdadeiro Leviatã Tupiniquim?

Dilma, a soberana oficial, está sendo acusada, acuada, e já começou a ser punida pela lei por um crime que muitos dizem sequer existir. Cunha, o Leviatã intempestivo em cujas costas pesam muitas suspeitas e investigações, que, diga-se de passagem, em nada diminuem seu poder, parece não ser tocado pela lei, mas, em troca, toca-a ao seu bel-prazer e interesses particulares. Como em Hobbes não há dois Leviatãs, mas um só, quem então é o verdadeiro Leviatã tupiniquim esses dias?

Considerando a teoria de Hobbes, não é que Cunha tenha saído do meio do povo e, por força e poder próprios, tenha se colocado acima da lei e contra os interesses do povo. Na teoria hobbesiana, é sempre o próprio povo que erige seus Leviatãs. Cunha, portanto, é o soberano que, ainda que indiretamente, foi posto lá por todos os cidadãos brasileiros. Não aceitar o poder e a liberdade política de Cunha é uma coisa. Outra bem diferente, todavia, é não se colocar como responsável por tal empoderamento e liberdade.

Com efeito, a escolha democrática que cada um de nós cidadãos faz nas urnas tem a perigosa capacidade de mentir que aqueles que ocupam o poder mas que não receberam o nosso voto não são produtos nossos. Isso, porém, é “o” ledo engano no ambiente democrático. Na verdade, todos os que votam, não importando em quem, constituem o contrato único que coloca alguns no poder. Por mais amargo que seja essa engolir essa verdade, todos nós fizemos de Cunha o Leviatã que ele goza ser.

Menos difícil de enxergar, contudo, é que fomos nós, o povo brasileiro, que elegemos, com nossos votos, os 367 deputados que, ao votarem em favor do impeachment de Dilma, outra coisa não fizeram que corroborar o poder de Cunha. Entretanto, o processo que colocou os 367 golpistas no poder é o mesmo que fez de Cunha o detentor de um poder leviatãnico capaz de depor a Leviatã Dilma.

Para os que não votaram nesses 367 deputados golpistas nem em Cunha não é difícil restar a sensação de traição, de tristeza. Tais sentimentos, no entanto, são infrutíferos, covardes até, pois além de nublarem o fato de que a eleição dos golpistas e de Cunha foi uma produção coletiva, alienam-nos do verdadeiro inimigo: nós mesmos, o povo, os eleitores dos nossos próprios algozes.

Essa indigesta verdade está muito bem contemplada pela frase de Plauto, escrita em 200 a.C., que Hobbes tornou célebre no século XVII: “O homem é o lobo do homem”, que significa que o homem é o maior inimigo do próprio homem. Para adequá-la ao “momentum brasilis”, entretanto, o célebre lema fica melhor assim: o eleitor brasileiro é o lobo do próprio eleitor brasileiro. Depois da votação do dia 17 quem não iria concordar com isso?

Atentar para a filosofia de Thomas Hobbes, portanto, é o difícil exercício de não transcendentalizarmos os revezes da sociedade que nós, imanentemente, constituímos. Enquanto culparmos Cunha, os 367 deputados golpistas e os seu eleitores apenas, e nos colocarmos como vítimas deles todos, cometemos um duplo erro. O primeiro é esquecer de que o nosso inimigo é também produção nossa. O segundo, e mais importante, é deixar de considerar que se o inimigo é produto nosso, sua deposição outrossim permanece nas nossas mãos.

Embora Cunha seja o maior candidato a Leviatã tupiniquim, mais poderoso que a própria Leviatã eleita democraticamente, uma vez que a está depondo, ele só goza de tanto poder porque fomos nós, o povo, que demos, pelos longos e tortuosos caminhos da nossa democracia representativa, tal poder a ele. Sem esse poder, contudo, Cunha é só mais um de nós, tão impotente quanto os que se frustram por nada poderem contra o golpe que o próprio Cunha comanda soberanamente.

O golpe de Cunha contra Dilma, na verdade, é um golpe contra a democracia, e, portanto, contra o poder que os cidadãos historicamente conquistaram para não estarem absolutamente sujeitados a um poder supremo e invencível que Hobbes chamou de Leviatã. E Eduardo Cunha é esse projeto em curso de Leviatã tirânico. Dilma, em troca, por estar se sujeitando à lei brasileira e aos seus procedimentos, é uma melhor encarnação do poder soberano, pois veste a toga do Leviatã sem com isso se esquecer de que essa veste é apenas seu uniforme de trabalho. Dilma, portanto, é uma Leviatã democrática.

Agora, por que o Leviatã tirânico Cunha está vencendo a Leviatã democrática Dilma? Ora, se atentarmos ao princípio que institui o Leviatã apontado por Hobbes: “a eterna luta de todos contra todos”, e ao lema que o filósofo celebrou: “Homo homini lúpus” (o homem é o lobo do homem), o Leviatã Cunha, enquanto encarnação do “Lúpus Máximus”, aliena mais eficazmente os seus súditos da verdade mais difícil de suportar, qual seja: que eles mesmos são os seus próprios e únicos inimigos, afinal, Cunha permanece o Grande Lobo espetacular!

Já Dilma, mediante a democracia que há décadas defende, que inclusive lhe custou sessões de tortura na ditadura militar, faz questão de não esconder essa sempiterna guerra de todos contra todos. Suas políticas sociais, tais como, o Bolsa Família, o Minha Casa Minha vida,  o PROUNI que universaliza o acesso à universidade pública, só para citar alguns, tudo isso, apesar de extremamente necessário e venturoso, é a impertinência de não esconder que, sim, há fortes e históricos lobos sociais que abocanham lobos mais fracos e que é preciso aclará-los e encará-los se quisermos exterminá-los.

A tirania leviatãnica de Cunha, por seu lado, visa justamente esconder essa guerra. Não, obviamente, para que ela seja amenizada, mas, ao contrário, para que os lobos fortes como ele se fortaleçam mais ainda e para que os fracos se tornem mais inofensivos, e, portanto, mais facilmente abocanháveis. Fazer de Cunha o Leviatã é coisa de quem tem medo de aceitar a verdade hobbesiana da guerra de todos contra todos. Manter Dilma no lugar da figura mítica e poderosa, em troca, é enfrentar essa guerra corajosamente. Não é à toa que ela é chamada de coração valente. Oxalá o Leviatã democrático vença o tirânico!

Depressão pré-golpe

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Quem prima pela democracia não pode estar tranquilo esses dias no Brasil. Muito pelo contrário! O golpe parlamentar que está sendo montado há mais de um ano por grupos oligárquicos que, é importante frisar, não conquistaram democraticamente o direito de comandar o país, está chegando ao seu clímax neste domingo 17 de abril de 2016 com a votação da câmara deputados para que, finalmente, seja enviado ao senado a proposta de impeachment contra Dilma Rousseff.

 

E o fantasma golpista é ainda mais assombroso porque sobre as costas daqueles que o encenam pesam crimes e suspeitas criminosas gravíssimas. A falta de tranquilidade, melhor dizendo, a depressão pré-golpe pela qual muitos de nós está passando esses dias, portanto, advém desse horizonte distópico no qual o golpe que está para ser votado não é outro que o golpe da corrupção, o golpe da velha, mui corrompida e arraigada elite brasileira contra a igualdade social que finalmente começou a ser construída no Brasil desde que o PT assumiu a presidência do Brasil há 14 anos.

 

Para dramatizar ainda mais a depressão democrática pela qual o Brasil passa, a vítima espetacular do golpe, em primeiro lugar, é uma cidadã e política brasileira contra quem nenhum crime foi provado, que não enriqueceu ilícita nem suspeitamente, e que não apareceu em nenhuma das muitas e longas listas de propina que elencam os verdadeiros nomes da corrupção tupiniquim. E, em segundo e mais importante lugar, o golpe é justamente contra a presidenta que investiu como nenhum outro líder nacional na investigação e na punição da corrupção que, mais do que ter feito história “no” Brasil, fez “a” história deste país.

 

Como não estar deprimido diante de tamanho absurdo? Porém, o que realmente deprime os espíritos democráticos no golpe que está nesse horizonte próximo? Em primeiro lugar, a perda da nossa jovem democracia, como muito se fala hoje em dia. Entretanto, algo mais angustiante se evidencia nesse processo golpista. Todos aqueles que se indignam profundamente com o possível golpe forjado pelo PSDB de Aécio e levado adiante pelo PMDB de Cunha –estes sim nomes constantes em muitas das listas de propina- são golpeados na intempestiva crença de que a ação política precisa ser também ética.

 

Se há algo que o presente momento político brasileiro tem para cruelmente relembrar a todos é que, como bem esclareceu Maquiavel lá na renascença da humanidade, o poder político não é e não deve ser ético se de fato visar o poder efetivo. Tanto lá e antes como aqui e agora, trata-se somente da vil luta pelo poder, na qual quaisquer valores éticos que porventura venham moderar esta luta devem ser, como de fato são, descartados sistematicamente.

 

Talvez a não eticidade intrínseca do jogo político pelo poder há muito evidenciada pelo autor de O Príncipe e atualmente escancarada pelos golpistas tupiniquins seja o maior golpe contra os jovens e utópicos ideais democráticos contemporâneos, pois sujeita-os verticalmente ao velho e distópico jogo-a-qualquer-custo pelo poder que atravessa incólume os tempos e as aventuras de cunho socialista.

 

Realmente, para muitos é bastante difícil aceitar que uma presidenta (até aqui) honesta e democraticamente eleita pelo povo seja deposta por indivíduos e grupos políticos e midiáticos corruptos que querem tomar o poder e presidir o brasil ilegitimamente. Entretanto, o que vemos é justamente isso: a luta pelo poder completamente alienada da ética.

 

Diante dos fatos, devemos nós, que estamos sofrendo de depressão pré-golpe, abandonar a utopia na qual a política deve se pautar eticamente para, finalmente e a contragosto, aceitarmos a insanável alienação da política em relação a ética? Para os democratas angustiados resta somente a distopia da luta a qualquer preço pelo poder?

 

É preciso, contudo, esclarecer que custo é este. A aventura política-antiética-golpista brasileira começa cobrando o seu alto preço da própria democracia, fazendo-a valer muito menos, quase nada, para findar exigindo não menos da igualdade social que com muito esforço, mas também com muita ventura, começou a ser construída no Brasil nos últimos quatorze anos. O preço do golpe, portanto, é o fim do projeto sócio igualitário e da democracia que, somente ela, pode realizar maximamente.

 

Estar deprimido pela possibilidade de um golpe no Brasil, por mais alienado que seja em relação ao que esclareceu Maquiavel, não é insanidade nem ignorância. Ao contrário, é o sentimento lúcido de quem não aceita que as coisas devam ser eternamente como já foram. Desacreditar do teórico político medieval que mostrou a cisão irreconciliável entre política e ética, portanto, é acreditar na revolução. Cultivar a depressão pré-golpe é insistir que a política deve sim estar sujeita a princípios éticos.

 

E que essa depressão pré-golpe de tantos, no pior cenário, isto é, no sucesso do golpe, torne-se a depressão pós-golpe de muitos, quiçá de todos, pois mesmo que o presente projeto sócio igualitário brasileiro seja golpeado inoportuna e injustamente, pelo menos o futuro tupiniquim não estará totalmente escravizado pelo passado. Maquiavel está certo e é absolutamente manualesco para os golpistas, mas não para todos aqueles que querem igualdade social e uma verdadeira democracia para si.

 

 

Capadócias capitalistas

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A Capadócia é uma região montanhosa da moderna Turquia, muito visitada atualmente para a prática do balonismo recreativo. Porém, as mesmas montanhas que, hoje, por um punhado de dinheiro, os turistas podem observar das alturas, antigamente, serviram de esconderijo aos cristãos que fugiam da perseguição religiosa do Império Romano pagão. Dentro delas jazem quilômetros de túneis, milhares de alcovas, e dezenas de capelas-igrejas, nas quais aqueles que ousaram acreditava em um Deus único e bom podiam cultuá-lo em paz.

De certo modo, o labirinto claustrofóbico que aqueles refugiados religiosos abriram dentro pedra natural foi um esboço não só do que seria a organicidade outrossim labiríntica e claustrofóbica da cidade medieval, na qual os cristãos seguiriam cultuando o mesmo Deus, como também das nossas verticalizadas metrópoles contemporâneas, onde vivemos adensados uns sobre os outros cultuando, entretanto, outro deus: o capital, o Senhor absoluto da existência metropolitana.

Na cidade medieval, o Deus cristão ocupava a “laje” mais elevada. Suas fundações, entretanto, já pertenciam, ainda que não claramente, ao florescente capitalismo que precisava adensar e empilhar as pessoas para mais lucrar com elas. Agora, se as vorazes e rizomáticas bases capitalistas ainda permitiam que Deus as encimasse espetacularmente era porque isso interessava senão ao próprio capital. Se assim não fosse, ele teria, desde o início, despejado Deus da cobertura urbana e colocado outro inquilino mais lucrativo no seu lugar, ou ocupado o topo privilegiado ele mesmo.

Para a cidade capitalista nascente, ter Deus dentro de suas fronteiras era tão estratégico quanto o Coliseu era para Roma. Com efeito, a maior edificação da antiguidade foi dada aos cidadãos romanos para que lá eles despejassem catarticamente as suas barbaridades, e, ao deixarem o “Stadium Maximus”, desfilassem pelas “vias ápias” da Cidade Eterna apenas a civilidade que a ela interessava. A diferença, entretanto, é que o ópio do cidadão romano pagão era assistir aos cristão sendo devorados por leões, ao passo que o do cristão medieval era rezar para não ser devorado pelos leões pagãos que impertinentemente rugiam dentro de si.

E enquanto os cristãos medievais se preocupavam em não serem abocanhados pelo pecado, o lobo-capital-em-pele-de-cidade podia devorá-los até se empanturrar, pois os crentes mais se preocupavam com os seus demônios internos do que com a ainda não totalmente conhecida besta capitalista que, cada vez mais, os encurralava nas estreitas vielas do medievo. A fé em Deus, portanto, era uma espécie de Coliseu do capital, dentro do qual os cristãos eram iludidos de que estavam a salvo dos seu próprios leões. No resto da cidade, entretanto, o capital lhes sangrava sem dó nem piedade. Nesse sentido é que a velha esfera divina foi de muita serventia ao jovem capitalismo citadino.

Já o capital adulto, em forma de metrópole contemporânea, fez diferente. Despejou Deus de sua cobertura privilegiada e colocou-se, sem disfarce algum, no lugar dEle. Doravante, o leão que devora seria o mesmo para quem se pede proteção para não se ser devorado. Fidelidade ao onipresente deus metropolitano significa rezar diariamente por cifrões que, entretanto, são simultaneamente profanados e espoliados por esse mesmo deus para quem se reza. A benção do deus-capital, isto é, o dinheiro, é sistematicamente dado por uma mão sua e tirado pela outra. No paraíso metropolitano-capitalista, portanto, quanto mais beato se é, mais condenado se está.

Se, por um lado, a metrópole é o lugar no qual só se está protegido da fome capitalista deixando-se devorar por ela, e, por outro, diferente de Roma, que dava no Coliseu aquilo que não queria fora dele, o absoluto deus-capital tira, em todos os lugares, a mesma e única coisa que exige outrossim em todos os lugares, isto é, dinheiro, então temos aí uma perseguição sistemática que por si só justificaria uma fuga da metrópole a algum esconderijo secreto e seguro, assim como os primeiros cristãos que escaparam da Roma pagã que lhes perseguia.

Agora, uma vez que, hoje, o mundo inteiro é uma conurbação capitalista, não há Capadócia interiorana alguma em cujas montanhas possamos escavar rotas de fuga secretas nem templos alternativos. Em relação à onipresença do deus-diabo-capital, podemos apenas fingir a sua ausência, não obstante, no interior de suas montanhas urbanas feitas de aço, vidro e concreto, dentro das quais estão insculpidos os nossos refúgios-lares-apartamentos, onde, por breves e caros instantes, podemos descrer brevemente do deus-capital absoluto.

Os edifícios de concreto das nossas metrópoles contemporâneas estão para o capitalismo que a todos persegue assim como as escavadas montanhas de pedra da Capadócia antiga estiveram para o paganismo romano que perseguia os cristãos. A diferença, entretanto, é que, para estes, a distância física dos seus perseguidores significava proximidade metafísica com Deus, enquanto nós sequer podemos crer que quaisquer milhas nos afastam do nosso perseguidor onisciente, o capital. E isso porque o nosso algoz supremo é, ao mesmo tempo, o nosso deus absoluto.

Assim com os primeiros cristãos, refugiarmo-nos no interior de montanhas, todavia artificiais e criadas pelo deus-capital, para encontrarmos, a altos preços, diga-se de passagem, alguma paz e liberdade. E quando o capital abunda, podemos inclusive ir à Capadócia, embarcar em um balão, e, das alturas, como se fôssemos deuses nós mesmos, espiar o esboço da nossa civilização naquelas montanhas-refúgios-naturais.

Que “nós” para o futuro?

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Em vez de passiva&alienadamente perguntarmos “que futuro nós precisamos?”, a questão deveria ser colocada de forma mais ativa&responsável: que “nós” precisamos ser presentemente para que tenhamos o futuro de que precisamos? Quanto mais não seja, porque a qualidade do futuro será a qualidade do seu passado, isto é, disso que agora é presente.

A radical questão ecológica que a contemporaneidade enfrenta seja talvez a que mais indique que a preocupação com o futuro não engendra a preocupação com o presente. Se engendrasse, veríamos que a nossa preocupação como futuro é a nossa não preocupação presente com a poluição e a devastação da natureza que produzimos indiscriminadamente.

E como esse “nós” presente não consegue preservar o planeta para o seu próprio futuro, exige que o futuro faça isso por ele. Esse ponto-de-vista, entretanto, emoldura apenas alienação. E, no centro da “Big Picture” da natureza, um ponto-de-fuga-buraco-negro-humano, que suga não só as retas paralelas, mas a natureza toda e o próprio presente caótico para si, e futuro adentro. Nesse futuro, no entanto, outra coisa não estará presente que a nossa insustentabilidade atual.

A ciência, com o seu imenso poder para modificar o mundo, que deveria produzir senão vida e sustentabilidade, tem mais êxito em destruir a natureza em em mensurar em enésimo grau essa destruição do que em evitar com todas as suas forças a catástrofe ecológica. Cientistas antiecológicos esses da nossa História! Sintomático é o fato de cada vez mais pessoas estarem sendo cientistas, doutores, pós-pós-doutores.

Se lembrarmos que a ciência nasceu na modernidade com o lema, assaz burguês aliás, de espremer a natureza para fin$ humano$, e compararmos com o quadro ecológico atual, no qual a natureza posa pálida&espremida depois de parcos séculos escravizada pelo devir científiuco, a produção de mais cientistas só aponta um futuro ainda mais preocupante.

Entretanto, que tipo de cientistas e de doutores precisamos nos preocupar em produzir hoje para nos ocuparmos verdadeira e eficientemente do futuro? De cientistas especializadíssimos cujas produções, entretanto, atendam melhor a uma ou duas megacorporações capitalistas do que à natureza e ao futuro comum?

Não! Isso já era. Precisamos de super intelectuais competentes o suficiente para produzirem, nas suas lidas diárias, sustentabilidade à insustentabilidade que todos produzimos, inclusive à da própria ciência. Produzir “cientificamente” apenas o veneno, mas não o antídoto, desculpe-me, faz da ciência a maior burrice. Ciência deveria ser a não produção de venenos, para que não fosse necessário antídoto algum.

Realmente, nós não podemos ter qualquer tranquilidade em relação ao futuro enquanto não tivermos uma intelectualidade ativa&inventiva no sentido de reconstruir a harmonia perdida entre o homem e a natureza, espremida, no entanto, por essa mesa intelectualidade ativa&inventiva.

Que os números da física dos multiversos se materializem em mais natureza. Que os “papers” dos doutores pelo menos resultem em mais lixo reciclado. E que em vez de nos perguntarmos como o futuro deverá ser para que “nós” não precisemos deixar de ser como somos atualmente, isto é, absolutamente insustentáveis, nos ocupemos com aquilo do nosso presente que causa a preocupação com o futuro, qual seja, esse “nós” presente e insustentável!

Ora, o futuro outra coisa não será além de outras e novas relações que não as de agora. Porém, os objetos das relações futuras são produzidas antes de serem relacionados, ou seja, agora. Se for uma natureza degradada um dos objetos que o presente legará ao futuro, é com esta degradação que todas as partes da natureza, desde as bactérias, os animais, os homens, e inclusive os cientistas, estarão relacionadas e se relacionando.

Agora, se a herança do presente ao futuro imediato for a consciência de que para o homem existir ele deve espremer não a natureza, mas aquilo que, nele mesmo, leva-o a espremê-la, os próximos tempos antes do futuro que tanto nos preocupa poderão ser mais promissores e livres de preocupação. Portanto, plenos de vida. Para tanto, um “nós” melhor, e imediatamente!

Filosofia e palhaçada

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Da filosofia, na sua séria investigação do real, não se espera que brinque em serviço. Por isso, antes de qualquer coisa, a palhaçada é descartada enquanto uma das faces da realidade. Agora, e se a face do real não se fechar sem a máscara de um palhaço, não estariam os filósofos fechando os olhos justamente para aquilo que mais querem enxergar? Como então experimentar a dimensão palhaça da filosofia sem, contudo, ela deixar de ser o que é, ou seja, amor à sabedoria? Ou só será possível amar a sapiência seriamente?

Aqui, os filósofos de plantão devem estar se perguntando sobre a definição de palhaçada, obviamente. Pois bem, segundo Renato Ferracini, o palhaço é aquele que não interpreta; simplesmente é a sua própria ingenuidade patológica em ato. Portanto, é absolutamente verdadeiro. Temos aqui a primeira coincidência do objeto do palhaço e o da filosofia: a verdade!. A palhaçada, portanto, reconecta o indivíduo com a verdade subcutânea que culturalmente somos levados a esconder, a fingir que não existe em nós. Ou seja: a nossa patologia inerente.

Sócrates, por exemplo, foi uma espécie de palhaço. Ora, o filósofo grego começava perguntando aos seus interlocutores – supostos sabidos – coisas de que não sabia. Porém, sistematicamente refutava as respostas que recebia até deixar claro que ninguém sabia do que ele também não sabia. Quando Sócrates iniciava seus diálogos, tinha-se um ignorante (um palhaço), o próprio Sócrates, e um sabido (sofista) qualquer. Porém, quando terminava, eram dois os ignorantes; dois os palhaços! Não seria a maiêutica socrática também a técnica de parir palhaços?

A palhaçada da filosofia socrática veio ao mundo por uma aventura dialógica. Entre outras coisas, um diálogo é a relação de dois “pathos”. E a patologia que desses encontros decorre só não é considerada uma das verdadeiras expressões do real caso lhe seja negada tal dimensão. Contudo, o palhaço é justamente aquele que revela, ademais graciosamente, a patologia que vem ao mundo senão a partir da existência humana. Prova: não vemos palhaçada nos demais animais, somente em nós mesmos.

Diógenes, o cínico, uma espécie de sábio-bufão que habitava um barril na aristocrata e cosmopolita Atenas, quando perguntado por Alexandre, o Grande, o que mais gostaria de receber dele, disse-lhe: “quero de volta aquilo que tu não podes me dar”. Na verdade, pediu para que Alexandre saísse da frente do sol que antes lhe banhava gratuitamente. Ora, fazer troça do homem mais poderoso do mundo e não ser morto, escravizado, mas, pelo contrário, ter sua sabedoria reconhecida, não é para simples filósofos, mas somente para aqueles que também são grandes palhaços.

Bufonesco também foi o bigodudo Nietzsche. O Filósofo restaurou não só a dimensão trágica da filosofia como também relembrou a todos a esquecida e inalienável esfera dionisíaca da vida. Vale ressaltar que Dionísio, ao contrário do equilibrado Apolo, representa justamente a desmedida, ou seja, o “pathos”. E Nietzsche se esforçou em filosofar zaratustronescamente, em dançar com o seu martelo niilista em torno dos rígidos fundamentos morais, religiosos, culturais de sua época como um Clown Augusto. Por isso, talvez, desde lá seja um dos filósofos mais populares.

Contemporaneamente, Slavoj Žižek é considerado o grande clown da filosofia. Seu muitos cacoetes e tiques nervosos, sua fala duplamente enrolada – de um lado a língua eslovena, de outro, a língua presa -, sem falar da sua predileção por ideologias desacreditadas, anedotas démodés e filmes de quinta categoria a partir dos quais filosofa, tudo isso saca Žižek desse lugar demasiadamente sério, e por que não dizer apolíneo, que se espera que os filósofos habitem exclusivamente. O filósofo, entretanto, defende-se: “chamam-me de clown para não levarem a sério a minha filosofia”.

Não está justamente nessa resposta de Žižek o lado negro da questão entre filosofia e palhaçada? Melhor dizendo: não seria precisamente quando um filósofo ou uma filosofia revelam algo demasiado sintomático e problemático, e por isso mesmo insuportável, seja da condição humana, seja da realidade mesma, que decidimos não levá-los mais tão a sério? Ora, um palhaço não é perigoso. Dele podemos rir despreocupadamente, pois o filtro da palhaçada transforma as profundidades mais angustiantes da existência em superfícies cômicas, inofensivas.

Porém, o lado iluminado da relação entre filosofia e palhaçada brilha quando um filósofo sabe da impossibilidade de se alienar totalmente da patologia inerente à existência humana, e, por conta disso, não confia somente na sua pretensa seriedade, na sua monocórdica retidão. Novamente: Sócrates e a sua suma sabedoria: “só sei que nada sei”; o cínico Diógenes, que, com o império aos seus pés, pede somente pelo sol que sempre teve; Nietzsche, o sábio que criticou a modernidade como ninguém, mas que, entretanto, terminou a vida completamente dominado pela demência; e, por fim, Žižek, para quem a verdade é nervosa e se revela justamente através das ficções da realidade.

A seriedade, na filosofia, funciona como as viseiras colocadas ao lado dos olhos dos cavalos de tração, para que, em vez de olharem tudo o que tem para ser visto, foquem somente naquilo que “querem” que eles vejam. A seriedade, portanto, deve dispensar a visão periférica. A palhaçada, ao contrário, é a arte de evidenciar justamente os detalhes excêntricos e patológicos que resistem em se harmonizar nos centros dos quadros mais pretensiosos. Aliada à filosofia, isto é, ao amor à sabedoria, a palhaçada outra coisa não faz senão dar a ser amado tudo o que até então não é objeto de amor justamente porque não é visto.

Esquerdas brazukas

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Quando se afirma que um partido político não é “mais” de esquerda, de onde exatamente é proferida essa crítica? Do mesmo chão material e contraditório a partir do qual esse tal partido atuou e atua, ou, em vez disso, do topo de algum ideal abstrato que não muito valentemente preestabelece o que é e o que deve ser “a esquerda”, independente das contingencias da realidade?

No primeiro caso, a crítica é pertinente pois não exige do criticado conhecimento nem performance alguns que já não sejam conhecidos nem tenham sido “performados” por quem critica. No segundo caso, entretanto, a crítica é vazia porque solicita do criticado conhecimento e performance que quem o crítica ou não exigiu de si, ou não teve oportunidade de conhecer nem “performar” antes de criticar.

Muitos são os “esquerdistas” que sustentam que “o PT não é mais um partido de esquerda”. Assim falam pois pensam que os governos de Lula e Dilma foram demasiadamente permissivos com o liberalismo econômico, que não investiram na construção de uma consciência de classe àqueles que dão nome ao partido, quais sejam, os trabalhadores, e que não conseguiram escapar ilesos do mar de lama da corrupção brasileira.

Quem critica o PT do belvedere teórico de Marx e Engels ou de algum parlatório moralista não tem papas na língua para afirmar que o PT não é “mais” um partido de esquerda. Agora, quem acha que a prática vale mais que a teoria, certamente terá dificuldade em sustentar que o PT deixou de ser de esquerda ao considerar a aventura igualitária inédita que este partido trouxe e ainda está tentando trazer ao Brasil.

Considerando-se, por exemplo, a exclusão do Brasil do mapa mundial da fome, o revolucionário acesso ao ensino superior desde que o ENEM foi instituído, a energia elétrica e a água potável que finalmente chegaram aos confins do historicamente desassistido nordeste brasileiro, e, recentemente, a lei que aumenta o imposto sobre ganhos de capital, sancionada em 18 de abril pela presidenta Dilma Rousseff, de que lado da régua política esquerda-direita o PT deve ser locado?

Mesmo levando-se à risca a teoria marxista, do PT ainda não pode ser dito que não é “mais” de esquerda. Se, por um lado, o Partido dos Trabalhadores não realizou a revolução rápida e violenta que lemos no Manifesto Comunista, por outro, a revolução lenta e histórica que pode ser lida n’O Capital ainda mantém o PT dentro do necessário horizonte revolucionário.

A revolução rápida e violenta, que muitos consideram “a” utopia do sistema marxista, tem o vício de não contar com as contradições do inimigo para dar cabo dele. Pretende pulá-las. Entretanto, ao não serem levadas em conta, o revolucionário tampouco leva em conta as suas próprias contradições, que, estas sim, devem ser conhecidas e superadas antes de se atacar as do adversário.

Já a revolução histórica, que trabalha árdua e ininterruptamente sobre e contra as contradições do inimigo, que, não obstante, pode ser acusada de “reformista”, essa tem ao menos a virtude de poder conhecer as suas próprias contradições nesse processo, de reformá-las, melhor dizendo, superá-las, paralelamente ao conhecimento e à superação das contradições do inimigo.

E se a abertura liberal do PT nos seus três governos e meio, o não investimento imediato numa consciência de classe total, até mesmo a vulnerabilidade à corrupção, forem justamente as contradições desse jovem partido que, primeiro, devem ser conhecidas, não teoricamente, mas na prática concreta, para só então poderem ser verdadeiramente superadas?

Um partido de esquerda deve nascer pronto e nunca dispor do direito de evoluir? Não é isso que estão exigindo do PT?

O Partido Comunista Brasileiro, com efeito, é o que mais pode criticar a “não esquerdice” do PT. No entanto, o forte e íntegro idealismo do PCB nem de perto produziu as mudanças materiais concretas que o seu alvo de crítica implantou. É muito fácil permanecer íntegro longe da realidade. Bem mais difícil, corajoso, e por que não dizer verdadeiramente revolucionário é construir essa integridade com as mãos sujas do sujo barro da realidade.

Da segurança de um ideal de esquerda é fácil dizer que o PT não é “mais” um partido de esquerda. Agora, e se o verdadeiro esquerdismo só ganhar sentido a partir do chão material sobre o qual ele é tentado, chão esse que em momento algum está livre de contradições, sejam as da realidade que se deseja revolucionar, sejam ainda as do próprio exercício de um diretiva de esquerda?

O próprio Lula é um exemplo concreto desse esquerdismo material. Entre escapar da miséria nordestina e ser explorado pela indústria metalúrgica paulista, o ex-presidente “analfabeto” elegeu o pragmatismo como via revolucionária. Se tivesse se aferrado apenas a ideias revolucionários anacrônicos e eurocêntricos provavelmente não teria tirado tantos milhões de pessoas da miséria nem colocado outros milhões na universidade pública, coisas que nenhum idealista de esquerda fez no lugar dele.

Idealismos à parte, Lula e o seu PT são as forças de esquerda mais efetivas da história do nosso país, apesar da intimidade que tiveram –e ainda têm- com o liberalismo, da consciência de classe trabalhadora até aqui não investida como prega a cartilha marxista, e da corruptividade com a qual se veem envolvidos uma vez imersos na não menos corrupta estrutura política que faz a história do Brasil.

E se a verdadeira revolução for nada além de processo histórico de tentativas e erros em busca de um futuro menos errático?

Portanto, se é de um ideal de esquerda que muitos insistem que o PT não é “mais” um partido de esquerda, essa crítica, digamos assim, platônica, que acha que a mudança material concreta realizada pelo PT no Brasil deveria ter se dado de outra forma, esses críticos deveriam, em primeiro lugar, experimentar o gosto amargo que é conduzir um país cercado de velhas oligarquias. Em segundo lugar, realizar uma mudança material tão ou mais efetiva que a que o PT construiu. Só assim teriam o direito de dizer que o PT é “menos” de esquerda do que eles.

Dilma Rousseff, grampeada e prostituída

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Injustamente chamada nas ruas de quenga, regionalismo nordestino que significa prostituta, por manifestantes pró-impeachment que, entre outras coisas, pedem por justiça, e outrossim injustamente grampeada pela pretensa justiça do juiz de primeira instância Sérgio Moro, que, ao que tudo indica, também quer depô-la, a presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, parece, está sofrendo injustiças por todos os lados. Entretanto, quando é um juiz que age injustamente em nome da justiça, como saber se os ataques à Dilma são justos ou injusto?

Aos que a chamaram de prostituta, coisa que sabidamente ela não é, a presidenta teve a nobreza democrática de dizer que todos os seus cidadãos têm o direito de se manifestarem livremente. Já a respeito de ter sido grampeada por Moro, e, o que é gravíssimo em se tratando de uma líder de estado, conteúdos de conversas telefônicas suas terem sido divulgadas publicamente a partir da arbitrariedade do juiz, Dilma dispensa a nobreza e se aguerri à justiça, tanto para investigar a responsabilidade dessas ações criminosamente inconstitucionais, quanto para puni-los.

Agora, por que Dilma solicita a mesma justiça brasileira que, ao grampeá-la inconstitucionalmente, foi tacitamente injusta com ela? Dizer que “presidente do Brasil, presidente de qualquer país democrático do mundo não pode ser grampeado. Em muitos países do mundo, quem grampear um presidente, vai preso”, como ela fez em dois discursos recentes, nos dias 17 e 18 de março, por acaso não é assumir publicamente que não há justiça no Brasil, uma vez que ela de fato foi grampeada e que até aqui ninguém foi preso por isso, e, pelo andar da carruagem tupiniquim, ninguém será?

Não só Dilma, mas todos nós que concordamos que houve injustiça com ela talvez devamos rever o nosso conceito de justiça, pois pelo jeito nossa teoria não está correspondendo à prática. O filósofo Baruch Spinoza, no seu Tratado Político, nos diz que cada cidadão, por não estar sob a jurisdição de si próprio, mas do estado, não tem direito algum de decidir o que é justo e o que é injusto, uma vez que determinar essas coisas é poder do estado. Dilma, eu, você, e Moro, individualmente, portanto, não podemos dizer o que é justo e o que não é.

Para dificultar ainda mais a definição de tais objetos, Spinoza explica que na natureza não há essas coisas chamadas justiça e injustiça, mas só no estado, de forma que a existência deste é a própria existência daquelas. Porém, se o estado são os seus cidadãos, justiça e injustiça devem ser o que, para eles, elas são. Como então sair desse círculo que, por um lado, impõe que cada cidadão não tem o direito de hipostasiar o que é justo e injusto, e, por outro, diz que são os próprios cidadãos que, ao constituírem o estado, constituem automaticamente o que é justiça e injustiça?

Onde justiça e injustiça, no Brasil, estão pretensamente hipostasiadas é na Constituição. Entretanto, não foi em nome da justiça que seu suposto guardião de primeira instância, Sergio Moro, rasgou a Constituição e grampeou Dilma? Para não deixar a questão sobre o que é justo e injusto somente entre os indivíduos Moro e Dilma, devemos considerar que milhões de brasileiros acham que o juiz foi justo, e outros milhões, injusto. Quem tem razão?

Afora o que consta claramente na nossa constituição, ou seja, que ninguém, nem mesmo Moro pode grampear a líder soberana, temos a sabedoria ético-política de Spinoza a nos lembrar que “usurpa um estado o súdito que, por seu exclusivo arbítrio … lança mão de algum assunto público, mesmo que creia que aquilo que tentou fazer seria o melhor”. Temos aqui a nossa Constituição e a filosofia spinozana dizendo que o juiz Moro, ao arbitrariamente usurpar o estado, foi injusto não só com Dilma, mas também com todos os cidadãos brasileiros.

No entanto, por ele não estar preso, e, mais ainda, estar sendo defendido ferrenhamente por milhões de concidadãos, nossa Constituição e o nosso filósofo parecem falar de uma quimera. Só que em Spinoza encontramos uma razão para a ação de Moro e os muitos que acham que ele age justamente, pois o filósofo diz também que “as leis pelas quais a multidão transfere o seu direito para um só conselho ou para um só homem devem, sem dúvida, ser violadas quando interessa o bem comum violá-las”.

Em uma democracia, o bem comum é o que o bem é para maioria. Moro e os seus por acaso são essa maioria para rasgarem a Constituição em nome do que para eles é o bem comum? Um sufrágio popular, nesse momento, responderia inquestionavelmente quem é e o que pensa a maioria, e consequentemente, o que é justiça e injustiça para esse caso. Todavia, vivemos em uma democracia demasiadamente representativa, e assuntos como este ficam a cargo exclusivo ou dos nossos representantes eleitos, ou, mais alienados de nós ainda, sob a cátedra daqueles escolhidos por nossos representantes.

Se não temos como ter certeza democrática se a maioria efetiva dos cidadãos acha que o grampo de Mouro contra a presidenta é justo ou injusto, uma vez que a Constituição parece não estar fazendo a menor diferença, essa querela, como estamos vendo diariamente, está se resolvendo por via de uma guerra de forças alheia à Lei, portanto, ao estado. Na falta de uma medida democrática concreta que legitime ou reforme a letra aparentemente morta da nossa Constituição, resta mesmo a guerra de uns contra outros. Não é à toa que Spinoza disse que a virtude do estado democrático serve muito bem na paz, mas não na guerra.

E a guerra tupiniquim que se desenrola alheia à democracia é entre Moro e os que concordam com ele, uma vez que não querem ser cidadãos inertes em um estado, que, para eles, está sendo usurpado por Dilma, e a própria Dilma e os que concordam com ela, que, por suas vezes, não querem ser cidadãos usurpados por aqueles. Dilma e os seus tem a seu favor a legalidade democrática, embora, como estamos vendo, ela nada esteja valendo no momento. Já Moro e os seus, declarando guerra aberta, dispensam-se automaticamente da democracia.

O que temos então é a guerra do estado presente, porém agonizante porque divididíssimo, que compreende Dilma, Moro e todos os brasileiros, contrários e favoráveis a ela, com o “estado” que Moro e a sua corja querem fazer do Brasil. A vantagem destes fica evidente quando atentarmos ao que coloca Spinoza, qual seja, que um estado corre sempre mais perigos por causa dos cidadãos que dos inimigos externos, pois o estado de Dilma, apesar de ter a Constituição do seu lado, é muito mais frágil porque, nele, seus inimigos são também cidadãos.

Já o “estado” que Moro tenta instituir –não obstante, como se trata de uma iniciativa da direita é mais coerente dizermos reinstituir-, esse “estado” não tem inimigos internos. É ilegal, sem dúvida, porém puríussimo na sua ilegalidade. O pior de tudo é que cada vez mais, ilegalmente e com a ajuda do estratégico espetáculo da mídia golpista, sequestra os cidadãos do estado que Dilma representa e quer seguir representando. Infelizmente, estamos muito próximos de ver inclusive Dilma se tornar cidadã -todavia ingrata- do “estado” que Moro representa.

Entretanto, se nos afastarmos um pouco que seja da presente polêmica envolvendo a possibilidade de Dilma ser impedida ou não, e considerarmos que desde que reeleita há quase dois anos ela não consegue governar, dada a constante ofensiva da oposição, não fica difícil enxergar que, na realidade, ela já está impedida a muito tempo. Como disse Spinoza, “tem um outro sob seu poder quem o detém amarrado, ou quem lhe tirou as armas e os meios de se defender” .O que se desenrola entre ela e Moro, portanto, é só uma das paralelas retóricas espetaculares que, aos poucos e a posteriori, vão contando aos brasileiros o que já aconteceu de fato.

O crescente isolamento em que Dilma se encontra, produzido pela voraz oposição que tem em Moro a régua de sua Lei, faz com que ela sirva cada vez menos ao estado que ela mesmo quer representar, pois, citando Spinoza: “um rei sozinho … não pode saber o que é útil ao estado”. Nesse vazio deixado por Dilma, Moro cresce, aparece e é ovacionado nas ruas por milhões de brasileiros. Entrementes, ainda conforme Spinoza, “as condecorações e outros incentivos à virtude são sinais de servidão, mais do que de liberdade”.

Os servos que aplaudem Moro e batem panela contra Dilma acreditam piamente que com essa performance receberão como recompensa um estado novo, livre daquilo que não gostam no estado que Dilma, com muito esforço, vem tentando representar. Esquecem-se, todavia, de que esse seu “estado prometido” já é corrompido desde a semente. Talvez devessem considerar o que diz Spinoza, que “quando se depõe um monarca não se faz uma mudança de estado, mas só de tirano”. Mas disso parecem não querer saber.

Dilma, por sua vez, cada vez mais vulnerável na sua presidência, acaba tendo de se vender paulatinamente aos interesses da oposição. Nesse movimento, ela acaba parecendo, ainda que metaforicamente, a prostituta de que a própria oposição a chama nas ruas. Cada vez mais frágil, precisa se expor publicamente explicando até as conversas privadas que teve ao telefone, que foram grampeadas e liberadas à imprensa por Moro, como se o grampo ilegal do juiz de primeira instância estivesse lhe perseguindo em todas as demais instâncias de sua vida política. Dilma Rousseff está grampeada e prostituída por aqueles que não a querem como presidenta. Historicamente, isso findará sendo considerado justo ou injusto?

O index Petralha de Constantino

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Em pleno século XXI, o liberalíssimo Rodrigo Constantino, um economista e colunista brasileiro, publicou no seu blog uma lista com 767 nomes de artistas e intelectuais brasileiros que devem ser boicotados, pois, segundo o próprio Constantino, “querem transformar o Brasil numa Venezuela, num Cubão”. O blogueiro coxíssimo outra coisa não faz que ressuscitar as práticas medievo-católica e moderno-nazistas que impunham aos seus seguidores o que e quem eles não podiam ler, ver, fazer, ou seja, conhecer. Do contrário, excomunhão, fogueira, fuzilamento ou câmara de gás.

Pelo menos até aqui, Constantino não tem tanto poder, e isso graças ao que resta de democracia no Brasil. No entanto, mesmo assim ele não tem “papas no blog” ao vociferar: “Boicote nos vagabundos, gente! Sem dó nem piedade … Não comprem nada deles! Não leiam suas colunas! Não frequentem seus shows e peças. É boicote geral a petralha!”.

Ao contrário do que gostaria de fazer parecer, Constantino não tem o privilégio de ter inventado o “ódio coxista” ao PT e à esquerda. Não criou a fogueira das vaidades liberal anti-petista que pretende carbonizar a democracia para que de suas cinzas renasça o velho paraíso oligarco-aristocrata, lar-doce-lar da elite. Sua demiurgia miserável apenas atiça esse fogo antidemocrático com livros e espetáculos artísticos que, para a aridez de sua patológica ideologia, devem ser realmente infernais

Entretanto, para quem sabe que em uma democracia o único index a ser seguido para que não se seja súdito de alguma ditadura ideológica é o “index sui”, ou seja, o índice de si mesmo, a abjeta (re)iniciativa do outrossim abjeto blogueiro liberal acaba sendo -perdoem-me a redundância- o mais indicado indício do que se deve consumir para não se ser tão abjeto quanto o próprio Constantino. É como dizer para uma criança: “não faça isso”; e, pronto, não temos dúvida do que a criança fará na primeira oportunidade.

Na história asfixiante dos index restritivos há uma passagem que, para mim, é muito simbólica, atentada contra o “filósofo dos afetos”, o ibero-holandês-judeu Baruch Spinoza, cujo controverso nome, para alguns, significa “bendita esperança”. É muito sintomático que, com esse nome, e, mais ainda, com seus imanentes objetos filosóficos, quais sejam, os afetos, Spinoza tenha sido excomungado pela Igreja Católica, pela comunidade judaica e proibidíssimo de ser lido em todas as universidades europeias no século XVII.

Para não nos esquecermos de que Rodrigo Constantino apenas dá novo fôlego à velha asfixia ideológica das grandes religiões monoteístas, todavia com uma miséria discursiva que envergonharia os escrivães medievais, vale a pena ler a publicação que indexou Spinoza na lista de autores malditos publicada pela Sinagoga de Amsterdã em 1656, intitulada “Maldito seja Baruch de Espinosa”:

“Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa… Maldito seja de dia e maldito seja de noite; maldito seja quando se deita e maldito seja quando se levanta; maldito seja quando sai, maldito seja quando regressa… Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor algum, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele.”

Depois disso, foi necessário mais de um século para que voltasse a ser permitido ler a obra do filósofo que, doravante, inspirou as filosofias de Diderot, Hegel, Marx, Nietzsche, Bergson, e muitos outros mais, inclusive a minha, assumidamente incipiente, que, de qualquer forma, para desgosto meu, não foi indexada por Constantino.

A “decisão dos anjos e o julgamento dos santos” de excomungar, expulsar, execrar e maldizer Spinoza, não obstante, coloca inevitavelmente a seguinte questão: qual a potência da filosofia desse judeu para que tenha sido tão proibida? Assim como a criança é mais curiosa justamente com a parte da vida que os adultos lhe proíbem, qualquer um que seja verdadeiramente amante do saber, ou seja, filósofo, mais que tudo deseja saber “a parte do saber” que lhe tentam furtar.

Nesse sentido, indexações restritivas como as da Igreja Católica e da comunidade judaica são, como se diz, um tiro no pé. O idiota do Constantino, que tem toda a História disponível para ser lida no mesmo terminal de computador no qual escreveu o seu natimorto index, teve oportunidade de saber que tentar impedir o acesso a determinado conhecimento ou produção humana apenas os marcam espetacular e distintivamente para que, na primeira oportunidade, eles sejam lidos, assistidos, consumidos, e ademais, com muito mais voracidade.

No entanto, a falta de sagacidade de Constantino é apenas o index de sua própria patologia intelectual, que só aumenta à medida que a sua longa lista de obras a serem boicotadas e autores a serem amaldiçoados cresce. Para concluir, duas perguntas interligadas e uma única resposta. Será que o coxinha leu todos livros e artigos e assistiu a todos os espetáculos dos 767 intelectuais e artistas que indexou restritivamente, uma vez que isso é o mínimo que se espera de um crítico, ainda mais um tão radical? Em caso afirmativo, como ainda conseguiu escrever tamanha abjeção? Resposta: quando alguém quer proibir os outros de “lerem” o mundo livremente, é porque esse alguém já não é livre, e o que é pior, já não sabe ler o mundo.

Socialistas ainda utópicos?

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Por que ainda causa surpresa em muitos que se consideram de esquerda ver a atual “jihad” da direita brasileira no sentido de reconquistar o Leviatã tupiniquim a qualquer preço, inclusive ao custo altíssimo da democracia? Está certo que as ações e os discursos da direita brasilis desde a última disputa presidencial de 2014 estão de espantar. Ética, política, jurídica e economicamente eles realmente estão “botando para quebrar”. E quebrando justamente o Brasil menos desigual aventurado desde a eleição democrática de Lula, há treze anos.

Entretanto, é ingenuidade se surpreender com tal movimento da direita, pois é exatamente isso que ela sempre fez, seja no Brasil, seja em qualquer outro lugar. A esquerda, por sua vez, também não está sofrendo nenhum ataque novo. Desde que o mundo é mundo, ou seja, desde que há desigualdade social entre as pessoas, há os que querem reduzi-la, quiçá eliminá-la -e destes é dito que são de esquerda. E há também os que querem ou produzir, ou radicalizar, ou simplesmente manter a desigualdade social, e a qualquer custo – e destes é dito que são de direita.

Então, por que o espanto em ver mais do mesmo, isto é, mais do jogo sujo da direita, não só contra a esquerda, mas contra qualquer um que deseje a igualdade social? A falta de ética, escrúpulos e justiça da direita, como pudemos ver na gigantesca manifestação contra o governo PT ocorrida em 13 de março de 2016, deveria nos surpreender? O que esperávamos? Que em determinado momento -e justamente agora- a direita deixaria de ser o que sempre foi, que pensaria como a esquerda, ou, no mínimo, não se importaria mais com a construção da igualdade social no Brasil? Que utopia é essa?

Antes de Engels e Marx criarem o socialismo científico, cujo escopo era o de compreender a real dinâmica do capitalismo e, principalmente, as suas contradições, por meio das quais aliás esse sistema econômico produtor de desigualdade sucumbiria, pensadores da “Primavera dos Povos” de 1848, tais como Saint-Simon, Fourier, Owen e Proudhon, sustentavam que o socialismo teria lugar certo no mundo, de forma pacífica, e, ademais, por meio da boa vontade da burguesia. Estes foram chamados por aqueles de socialista utópicos.

Não estaríamos nós, socialistas tupiniquins contemporâneos, sendo tão utópicos quanto os do século XIX por acharmos que há algo de impróprio na “jihad” da direita brasileira, na sua tentativa de tirar do poder o que resta da esquerda? Pela indignação de muitos “brazucas” de esquerda diante das ações da direita, parece que sim. Agora, por que é utopia em crer que a direita tomaria alguma consciência e deixaria de seguir produzindo e mantendo a mui antiga desigualdade que a faz ser quem sempre foi?

É preciso salientar todavia que utopia não é algo que não existe e que não tem como existir. O que não existe porque não tem como existir é atópico, sem “topos”, sem lugar. Utópico, na verdade, é o que não existe apenas por motivos circunstanciais, mas que pode vir a ser, pois não há nada de absurdo que impeça a sua existência. O feudalismo era utópico enquanto as sociedades humanas eram estruturadas pela escravidão da antiguidade assim como o capitalismo era nada além de uma utopia durante a longeva vida do feudalismo. Porém, como a história não nos deixa ignorar, todas estas utopias encontraram horizonte para ser, e foram.

Embora o socialismo utópico tenha sido muito criticado por idealizar a realidade, ou, em outras palavras, por realizar apenas ideias, essa crítica se esquece de que habitar uma utopia é flertar, dentro da realidade presente -uma vez que é impossível abandoná-la-, com ideias que podem, e até mesmo devem ter lugar dentro dessa realidade. Dizer apenas que os socialistas utópicos partiam do ideal ao real, portanto, é só metade da história, pois, por outro lado, é por causa do real concreto que ideias outras acerca dele surgem entre os homens e, historicamente, viram realidade.

Ideal mesmo seria se tivéssemos em comum com os socialistas utópicos apenas a defesa da igualdade entre as pessoas e a crença de que a propriedade privada é a origem de toda a desigualdade. Entretanto, na prática, todos os que estamos surpresos com as jogadas da direita brasileira temos em comum com aqueles socialistas anteriores à Marx a utopia de que a direita e o seu voraz capitalismo gerador de desigualdade, em algum momento, por alguma sã razão e espontaneamente, darão espaço à esquerda e ao seu socialismo produtor de igualdade.

Por isso, mesmo que a utopia não seja uma patologia intelectual, seria muito saudável e produtivo que os muitos esquerdistas que até aqui seguem surpresos com a barbárie da direita brasileira contra o projeto sócio igualitário nacional se colocassem deliberadamente sob a crítica de Engels e Marx aos socialistas utópicos, qual seja, que o modelo socialista deles não tinha como ser implementado porque que não atentava para as conexões reais entre proletariado e burguesia.

Aceitar tal crítica pode fazer com que vejamos de modo mais realista as conexões entre esquerda e direita, para assim compreendermos que o que ocorre hoje no Brasil não é um erro crasso da realidade, mas a realidade ela mesma, nua e crua, sem nada para ser desacreditado, mas tudo compreendido. Enxergar as estratégias da direita com naturalidade é manter-se mais próximo da revolução, pois a revolução só é necessária por conta do sempiterno modus operandi da direita.

A revolução, ou seja, a vitória da esquerda, não é nem nunca foi a ausência da direita nem alguma permissão, educação ou consciência dela no sentido de a esquerda colocar seu programa em prática. A revolução, com efeito, é a vitória da esquerda sobre a direita presentíssima, e ademais contraríssima a qualquer projeto de igualdade social. Esse é o real da dimensão política de que não devemos nos esquecer para que a utopia da igualdade tenha lugar no mundo. Não se espantar com quaisquer práticas da direita, normalizá-las dentro da realidade, talvez seja o primeiro passo histórico e material para converter a utopia socialista em realidade.

Não se chocar com quaisquer movimentos da direita, como por exemplo a arquitetura e os discursos da manifestação contra o PT do dia 13 de março é fortalecer-se, pois a direita e suas estratégias são muito menos os entraves à revolução do que os parceiros dialéticos da esquerda, insuportáveis e irredutíveis, porém, necessários não só à construção da ideia de revolução, como, principalmente, os que a justificam.

Ao contrário dos socialistas utópicos, Marx e Engels não se preocuparam em pensar como seria uma sociedade ideal. Ocuparam-se, em primeiro lugar, com compreender a dinâmica do capitalismo, estudando a fundo suas origens e, mais importante, suas contradições. Da mesma forma, os companheiros de esquerda não devem perder tempo imaginando que a direita deva parar de agir desigualmente, mas, em troca, conhecer proximamente sua dinâmica, reificá-la, e, mais importante, compreender suas contradições, pois é baseado nelas que a verdadeira revolução se fará.

Ao contrário do que se pode pensar, não é a bondade ou a verdade da esquerda que faz com que a revolução seja necessária, mas a ruindade e a mentira da própria direita. Surpreender-se com os estratagemas da direita é negar-lhes o devido lugar na realidade, é idealizá-la, e, consequentemente, enfraquecer o motivo pelo qual ela deve ser superada. Espantar-se com a vilania do inimigo é ocupar-se com um outro inimigo, todavia imaginário, e, o pior de tudo, desocupar-se do inimigo real, que em nenhum momento vê erro algum em seus próprios atos nem nos de que quem quer que seja.

Se a direita está vencendo no Brasil, a virtude desse processo de vitória talvez esteja no fato de ela não se surpreender nem se espantar com as tentativas da esquerda. Com efeito, odeia mais que tudo qualquer projeto igualitário. Porém, de forma alguma os toma como errados, pois para a direita não há certo nem errado. Para ela, há somente a manutenção do seu projeto de criar e manter uma vertical desigualdade social, sem a qual aliás não há topo privilegiado a ser conquistado e mantido por ninguém menos que ela.

A direita não desacredita nem se espanta com a horizontalidade socialista. Apenas não a quer. Por isso luta sem limites contra ela, não se importando inclusive em ser antiética, injusta e antidemocrática. Sua força vem da crença de que nada há para se espantar com as estratégias da esquerda. Já a esquerda, mantendo essa dimensão pretensamente utópica na qual, por exemplo, a tentativa da direita de depor uma presidenta até aqui lisa figura como um absurdo, apenas distancia-se do real, e, consequentemente, enfraquece-se.

Uma vez que utopia é apenas o que ainda não tem lugar na realidade, mas que pode ter, pode ser considerada utópica, ou seja, realizável, a ideia de que a direita não mais jogue baixo em função dos seus objetivos históricos? Se sim, infelizmente, a revolução terá de esperar, pelo menos até tal utopia se mostrar impossível. Afinal, é somente porque a direita nunca agirá dessa forma que a esquerda e a revolução são necessárias.

No caso atual do Brasil, a cada vez mais presente derrota da esquerda está em ela ainda esperar que partidos políticos e instituições direito-oligarcas tais como o PSDB, o PMDB, o Democratas e a Rege Globo ajam ética e democraticamente. Isso, porém, não é utopia, mas tolice. Já a vitória em curso da direita tupiniquim decorre de ela não se surpreender nem com os ideias da esquerda, nem tampouco com as suas próprias vilanias. Para ela, tudo é normal, tudo é obvio, inclusive o jogo absolutamente baixo. Portanto, na utopia socialista da esquerda, para que seja efetivamente realizável, deve constar que nada há para se espantar com as ações da direita. Em relação a elas, apenas a revolução, pragmaticamente.

Prêt-à-Porter jornalístico

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Jornais, telenoticiários e feeds de notícias das redes sociais diariamente inundam-nos com uma infinidade de fatos noticiados. Ora, dirão os conectados, isso é bom para manter-nos informados sobre o que pode interferir diretamente nas nossas vidas. Além do que, em um mundo assaz globalizado e hiperconectado, o simples e inofensivo bater de asas de uma borboleta na Coréia do Norte deve causar sim um tsunami na intimidade de um lar carioca. Por isso todos os fatos findam igualmente importantes, sendo ofertados e consumidos 24 horas por dia, indiscriminadamente.

Sem fatos, entretanto, existiria apenas o caos harmonioso da Natureza em sua miríade infinita de movimentos perfeitamente relacionados. A Natureza, porém, produz somente a si mesma, e não fatos. Estes, são mercadorias exclusivamente humanas, demasiado humanas. Portanto, em um fato qualquer subjaz a ideia de que ele foi feito, e, sobretudo, com determinada finalidade.

Fato também significa roupa, vestimenta; o que diz muito bem da fantasia com que o homem veste a nudez dos acontecimentos da Natureza, para que ela, doravante, se ofereça a nós como uma diva de ópera burguesa, fácil de ser compreendida. Isso porque não sabemos o que fazer com as coisas enquanto não as fazemos nós mesmos. Então, produzimos não o real ele mesmo, mas versões mundanas suas: fatos. Uma vez feita tal “tradução”, tudo passa a pertencer ao mundo, podendo, portanto, ser pensável, tratável, manuseável, e inclusive comercializável. Os fatos estão para nós, humanos, assim como a Natureza está para si mesma.

É em função do mundo que os fatos devem ser massivamente produzidos e consumidos. E o jornalismo é essa linha de montagem apressada que cose costumes imediatos a todos os acontecimentos que se apresentam na cronologia do mundo. A ciência é mais cautelosa; a Filosofia, mais paciente. O jornalismo, por sua vez, laborando sobre o pântano do real, sem dar, como se diz, tempo ao tempo, cria latifúndios imediatos que se pretendem seguros e secos de dúvidas. Todavia, essa empresa é contrária à alforria do real em tantas unidades factuais quantos são os homens que percebem esse real. O jornalismo faz do real a sua coleção de fatos noticiados que outra coisa não fazem senão outorgar diariamente um real só seu.

Um recente exemplo disso é o que foi noticiado no dia 3 de março de 2016 a partir de uma suposta delação premiada dada por Delcídio do Amaral, senador brasileiro preso, libertado, mas ainda investigado pela Polícia Federal, na qual era citado o ex-presidente Lula como recebedor de privilégios indevidos. A Rede Globo, esquecendo-se intencionalmente de que tal delação sequer poderia ser verdadeira, renoticiou o “fato” como se verdade fosse. Uma jornalista da Globo chegou ao extremo de dizer, ao vivo, que mesmo que fosse desmentido que Delcídio tivesse feito a tal delação, o que eles, os jornalistas, estavam dizendo, já estava dito, e que era impossível voltar atrás.

Como assim? Porventura não é instituir algo como uma demiurgia da mentira noticiar como fato algo que sequer poderia ter ocorrido? Se tivessem provas de que Delcídio acusou Lula, o fato estaria dado, e só aí poderia ser noticiado. Mas não foi isso que ocorreu. A possibilidade de o senador criminoso ter feito uma delação era o “fato” concreto do jornalismo da emissora golpista. Agora, se houve um fato real no dia 3 de março, este fato foi a Rede Globo ter resolvido, mais uma vez, tornar suposições em fatos reais. Algo como vestir a realidade com trajes apropriados para determinado baile. No caso, o baile da direita golpista que quer fora do salão principal qualquer força contrária.

Só que é bom não esquecer, não só o jornalismo produz fatos, mas também cada ser humano, a partir daquilo que lhe acontece ao redor. Os fatos produzidos pelas pessoas, individualmente, ao passo em que se deparam com o real, têm as seguintes virtudes: valem todos a mesma coisa; podem se refutar mutuamente; e existem uns independente dos outros. Já os fatos jornalísticos têm o impetuoso vício de querer se imporem, vertical e imediatamente, às nossas factuações individuais; de antecedê-las; de torná-las inclusive desnecessárias. Mediante a histeria do jornal, o mundo não chega a nós senão histericamente.

Entretanto, o que seria do mundo se a produção dos fatos que o constituem aguardasse pacientemente até que cada um de nós se deparasse com aquilo que os gera, sem pressa, em vez de virem todos ao nosso encontro pela via de mão única do jornalismo? Teríamos, com sorte, sete bilhões de fatos sobre cada mesmo acontecimento, todavia desconectados, porém, não por muito tempo, pois mesmo que o real não passasse pelo jornal, de onde angaria as suas primeiras fantasias, ele não tardaria em se travestir ou de ciência ou de Filosofia, porque sem fato, costume, roupa, nós não o reconheceríamos.

Com efeito, a nudez do real nos envergonha e espanta. Então, vestímo-la adequadamente até que ela possa circular, de fato, pelo mundo. O jornalismo, contudo, intromete-se no baile à fantasia da humanidade trazendo consigo um Prêt-à-Porter com o qual veste o real. Porém, devido à sua pressa, nem sempre adequadamente. Enquanto os fatos através dos quais nos relacionamos com o real forem recortados dele por nós mesmos, e por mais ninguém, somos tão livres quanto a Natureza é consigo mesma. Entretanto, se pré-fabricados pelos jornalistas, são espécie de cabresto a nos alienar diariamente da nossa própria capacidade individual de fatiar o real em fatos e de compreendermos essas fatias por nós mesmos.

O homem de nove dedos e seus nove milagres

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No discurso que o ex-presidente Lula fez na sede nacional do Partido dos Trabalhadores em resposta à condução coercitiva da Polícia Federal de Sérgio Moro em 4 de março de 2016, estavam lá os velhos –mas nem por isso mentirosos- ideais do torneiro mecânico que conseguiu tornar utopias inclusivas, distantes um horizonte, em realidade próxima e concreta para milhões de brasileiros historicamente vitimados pela exclusão social. Há quem concorde e, obviamente, quem discorde disso. Porém, uma das ideias de Lula é muito intrigante: a sua fé nos milagres e, mais ainda, que foram eles que o fizeram.

Isso ficou bem claro no seu último discurso. Primeiro, querendo justificar o fato de ter se tornado um conferencista mundialmente importante, o metalúrgico disse: “As pessoas queriam que o Lula falasse das coisas que foram feitas no Brasil. Que milagre vocês fizeram para aprovar as cotas? Que milagre vocês fizeram para aprovar o PROUNI? Que milagre vocês fizeram para aprovar o FIES? Que milagre vocês fizeram para levar energia à quinze milhões de pobres nesse país? Era isso que as pessoas queriam saber”. Só aqui, quatro milagres, que, no entanto, para o mundo que o convidou a palestrar devem ser apenas práticas absolutamente mundanas, ainda que de grandes efeitos.

Mais adiante na sua fala, o ex-presidente emenda uma outra sequências de fatos que ele classifica milagrosos: “antes dos cinco anos de vida eu escapei de morrer de fome. Esse foi o primeiro milagre da minha vida. O segundo milagre: eu tive um diploma de torneiro mecânico. Aconteceu um terceiro milagre comigo: eu ter tomado consciência política e ter criado um partido. Aconteceu um quarto milagre comigo: meus companheiros me levaram à presidência da república. Aconteceu um quinto milagre comigo: eu fui melhor do que todos eles que governaram esse país”. Na eleição desses outros cinco milagres fica ainda mais claro que a realidade para Lula não se explica por si mesma, mas se finaliza mediante intervenções milagrosas.

Ora, não morrer de fome na infância, tornar-se torneiro mecânico na juventude, criar um partido político na maturidade, ser presidente da república na idade do lobo, e até mesmo ser o melhor de todos na velhice, nada disso deve ser considerado milagre. Importante aqui é perceber que o que para Lula são milagres trata-se apenas de vida, de sua vida, que, como a de todos nós, não precisa da suspensão das leis da natureza ou da realidade para se dar. Muito pelo contrário aliás. É porque não há suspensão do real que ele quase morreu de fome; que foi torneiro mecânico e não engenheiro, que fundou um partido político e foi melhor presidente da república em vez de ter aberto um empresa de sucesso e ter sido um Eike Batista (nas sua melhor fase, obviamente)

Para a filosofia de Baruch Spinoza, um milagre, se fosse possível algo assim, seria a suspensão das leis da natureza por Deus em vista de algum fim que o próprio Deus não havia previsto quando institui as suas leis eternas. Milagres são impossíveis para Spinoza justamente porque com eles Deus afirma que não planejou bem a realidade. Em outras palavras, se em algum momento Deus precisou suspender alguma Lei sua para que um nordestino pobre não morresse de fome, pudesse se tornar metalúrgico, fundar um partido político e ser o melhor presidente de um país latino-americano, é porque, antes, ele devia ter instituído que os nordestinos pobres devem morrer de fome, não podem sem metalúrgicos, não devem fundar partidos políticos nem serem presidentes da república, muito menos o melhor de todos. Aqui fica claro que a ideia de milagre é absurda.

Então, por que Lula insiste tanto na existência e na interferência de milagres em sua vida uma vez que, de fato, quem criou e sustenta Leis que impedem os desfavorecidas como ele de se realizarem na vida não pode ter sido Deus, mas os próprios homens? Se Deus não errou, porque alteraria a sua “constituição”? E se o erro é somente humano, porque Ele teria de suspender as suas regras eternas? Para que um homem ou outro fosse dispensado do real? Deus porventura seria bom privilegiando milagrosamente apenas alguns de seus filhos enquanto outros sucumbem sem escapatória das vicissitudes da realidade?

Milagres, portanto, além de fazerem de Deus um ser injusto e de dizerem que Ele é um péssimo arquiteto, ainda fazem com que Ele pareça humano, demasiado humano, isto é, um ser incompetente que no meio do caminho descobre que falhou e que precisa corrigir seus erros. Só que, no caso dEle, milagrosamente. Antes, o que até poderíamos chamar de milagroso -mesmo que Spinoza diga que não se trata disso – é o fato de todos os seres compartilharem indiscriminadamente da obra divina que, para o filósofo, é a natureza, pois só isso mostraria que Deus não errou ao conceber a realidade nem que prefere umas criaturas suas a outras por via de milagres.

Todavia, não é o fato de Deus ter distribuído igualitariamente alguma coisa aos homens que Lula chama de milagre. Antes, o metalúrgico toma por milagroso o fato de ter escapado da desigualdade que ele mesmo vê na realidade. Apesar de, com isso, Lula dizer que Deus errou até a hora de ser milagroso com ele -e com pessoas como ele-, esse absurdo manifesto esconde uma percepção latente bastante verdadeira: a realidade humana é desigual por natureza. Só isso explica o fato de alguém não morrer de fome, tornar-se um profissional, ascender politicamente e realizar uma grande obra ser considerado milagre.

Entretanto, é precisamente nessa crença que Lula tem nos milagres que reside a sua mais pragmática percepção da realidade: ela é desigual sim; privilegia uns em detrimento de outros; e que só revolucionando-a radicalmente é que se realiza a utopia da igualdade. O crente diria que se trata de reconstruir a igualdade natural arruinada pelo homem. Porém, para o proletário nordestino que virou o maior presidente do Brasil, trata-se mais de produzir laboriosamente a igualdade que, para ele, nunca existiu no mundo, mas que deve existir.

Embora esteja sempre com a palavra milagre na boca, não pode ser dito que Lula é crente, pois não crê que Deus tenha feito o mundo perfeito, muito pelo contrário. Antes, o Deus de Lula deixou um mundo de coisas a serem feitas. Que Deus é esse? O que o metalúrgico chama de milagre, na verdade, é a superação humana dentro do mundo humano, sem intervenção divina alguma. Mais ainda, Lula acredita que a realidade precisa dele, de Lula, para se tornar um pouco mais perfeita, um pouco menos desigual.

Complexo de Deus? Um pouco, mas quem nunca? Sem dúvida, Lula é uma espécie de Deus para muitos brasileiros com os quais até então só era compartilhado desigualdade. Para estes, quando as coisas começam a ir bem, só pode ser milagre mesmo, tamanha a dificuldade que experimentam em suas vidas. Isso, entretanto, é mais velho do que Lula. Quem não lembra que no início dos anos 1970 a bonança econômica oriunda do petróleo foi chamada de Milagre Brasileiro?

Em um país tão desigual como o Brasil, um passo no sentido da igualdade social parece uma dádiva tão grande que poucos creem que isso possa se dar por intervenção humana apenas. Antes, é preciso de um Deus boníssimo e milagroso para que a dura realidade não siga ordinariamente desigual. Daí a construção de uma espécie de silogismo popular que, erroneamente, conclui que Lula é um Deus: Deus é brasileiro e só quer um mundo perfeito; Lula é brasileiro e só quer um mundo perfeito. Portanto, Lula é Deus.

O problema é se o próprio Lula acredita nessa ilógica. Os milagres com que o ex-presidente se diz constantemente agraciado não dizem exatamente isso, embora sugiram que ele está mais próximo de Deus do que todos os nordestinos que morreram de fome na infância, todos os homens que não conseguiram se profissionalizar, e todos os políticos brasileiros que não conseguiram ser o melhor presidente do Brasil. Agora, se houvesse mesmo um Deus extremamente bom e justo, ele confirmaria isso? Obviamente que não.

Portanto, o único jeito de Lula acreditar em Deus e não fazer dEle um ser incompetente e injusto, que vai resolvendo Suas incompetência e injustiça aos poucos por meio de milagres, é acreditar que ele mesmo, Lula, é Deus. Ainda mais tendo sido um garoto humilde do sertão nordestino que, por meio de muito trabalho, mas, segundo ele, por causa de nove milagres, findou como o maior presidente do seu país, compartilhando com milhões de brasileiros a superação das misérias da fome e da exclusão social. Talvez somente a falta de um dedo nas mãos, perdido nesse “processo milagroso”, lembre Lula de que ele não é Deus, pois, se fosse, teria feito um milagrezinho a mais para não tê-lo perdido.

A minha pulsão petista

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Diante dos fatos, por que eu ainda defendo o Partido dos Trabalhadores? A minha resposta imediata é que, desde Lula, o PT transformou o até então abstrato e eleitoreiro discurso político sobre igualdade social em realidade concreta para milhões de desfavorecidos históricos, objeto de extremo valor para  mim.

Entretanto, as ineficientes estratégias tentadas pelo partido diante das crises econômica e política, e, ademais, a corrupção interna que não se rogou de fazer lugar dentro do partido, e que faz dele o mesmo que tantos outros que eu desaprovo veementemente, tudo isso faz a minha defesa querer se calar. 

Agora, se, como disse Søren Kierkegaard, o pensamento objetivo traduz tudo em resultados, mas o  pensamento subjetivo coloca tudo em processo, omitindo o resultado, a minha reprovação em relação ao PT, objetivamente, é baseada nas más performances do atual governo, mas a minha insistente aprovação ao PT se dá por eu, subjetivamente desconsiderar tais resultados, omiti-los, e, em troca, valorizar apenas o processo, ou seja, o “modo” como ele governa.

Qual seria, entretanto, a justa equação entre a minha subjetiva concordância com o modo petista de governar e a minha objetiva discordância em relação aos fracassados resultados do partido?

Ora, quando a realidade vai contra as nossas mais profundas convicções, ou a reprovamos objetivamente, ou, em vez disso, subjetivamente a sublimamos, isto é, seguimos crendo que há uma verdade mais nobre e profunda escondida nos fatos aparentemente vis. Desse modo, eu só sigo defendo o PT porque, sublimando sua adversa realidade, acredito que ainda há nele uma virtude, ainda que oculta, ou o que é pior, golpisticamente ocultada.

A minha relação com o Partido dos Trabalhadores me remete à frase de Jacques Lacan: “amo-te, mas há algo em ti que amo mais do que tu”. Não obstante, o que é essa coisa que eu amo no PT mais do que ele mesmo? Ora, a igualdade social que o partido aventurou no Brasil e a tentativa de reduzir o poder das elites locais, feitos que, objetivamente, ninguém encampou no nosso país de modo mais efetivo.

Entretanto, como sustentar racionalmente esse estranho amor pelo PT diante dos seus atuais fracassos e vulnerabilidade à corrupção? Considerando o que disse Lacan, qual seja, que a pulsão transforma o fracasso em triunfo, meu insistente amor pelo PT é fruto de uma pulsão

E se, ainda conforme o psicanalista, a razão da pulsão não é atingir a sua meta, mas girar compulsivamente em torno dela sem, no entanto, alcançá-la, as minhas fantasias fundamentais, quais sejam, que as elites caiam do cavalo para sempre e que a igualdade social se estabeleça, se em forma de pulsão estão protegidas das vicissitudes da realidade.

Considerando o que disse o filósofo Slavoj Žižek, que “nosso senso de realidade se desintegra no momento que a realidade chega muito perto de nossa fantasia fundamental”, consigo entender que, para o meu sonho igualitário permanecer íntegro, algo da realidade petista deve ser desintegrado, pois, conforme o filósofo, quando sonho e realidade se encontram, um dos dois deve morrer.

Entretanto, Lacan está aí para não me deixar esquecer de que a pulsão é o modo subversivo dos sonhos permanecerem vivos e íntegros dentro da realidade, mais precisamente, em torno dela, girando sem parar, sem nunca tocá-la, pois só assim eles nunca serão desintegrados por ela. A minha permanência pulsional em torno do PT, portanto, é o modo subversivo mediante o qual preservo vivo o meu sonho de igualdade social no Brasil justamente num momento onde tal realização parece mais distante.

Se eu fosse uma máquina, ou seja, absolutamente objetivo, haveria um limite a partir do qual eu deixaria de defender o PT e o abandonaria. Da mesma forma, se eu fosse um animal puramente instintivo haveria outrossim um limite, pois, como disse Žižek, “quando se vê diante de um objeto que está fora de seu alcance, o macaco desiste de alcançá-lo depois de algumas tentativas frustradas e concentra-se em um objeto mais modesto; já o ser humano persiste no esforço e permanece fixado no objeto impossível”.

Então, é por que eu sou algo entre a máquina e a besta, melhor dizendo, porque sou humano demasiado humano que ainda insisto no PT, pois através das realizações concretas ao longo de sua curta história no poder eu permaneço na órbita desse impossível objeto de desejo chamado igualdade social. Ao PT, atualmente, pelo menos a minha pulsão!

À ciência, filosofia.

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Desde sua vitória sobre os poetas e os sofistas da Grécia antiga, a filosofia atravessou vinte séculos como herdeira legítima e detentora da verdade. Como queria Aristóteles: “A Ciência Primeira”. Porém, a revolução científica iniciada no século XVI deu cabo do longevo reinado da filosofia. Com as publicações de Copérnico, Galileu Galilei, Kepler, Newton, só para citar os mais importantes, as verdades universais que estiveram com os filósofos desde a antiguidade e durante todo o medievo passaram a ser objetos exclusivos dos cientistas modernos.

Sem escapatória, a filosofia teve de aceitar o ultrapassamento da ciência no que tange à posse e, mais importante, à produção das verdades objetivas. Quando Immanuel Kant, na sua Crítica da Razão Pura, expôs os limites da razão metafísica e a larga vantagem das ciências matemáticas, a filosofia sofreu o golpe mortal.

Entretanto, até hoje os filósofos querem sustentar uma outra dimensão do pensamento em relação ao real que não apenas a científica-matemática. Henri Bergson, à sua maneira, traduz muito bem essa pretensão da filosofia: “não haveria lugar para os dois modos de conhecer, filosofia e ciência, se a experiência não se apresentasse a nós sob dois aspectos diferentes”.

O filósofo francês Quentin Meillassoux afirma que a filosofia pós-kantiana é dominada pelo o que ele chama de “correlacionismo”, teoria que diz, grosso modo, que os homens não podem existir sem o mundo, o que é bastante óbvio, mas, o que é mais difícil para a ciência aceitar, que o mundo não pode existir sem os homens. Isso porque o correlacionismo limita qualquer hipóstase, isto é, qualquer substancialização dos objetos do conhecimento, como se eles existissem cognoscíveis fora das nossas mentes e independentes delas, pois não há correlação que seja dada em outro lugar do que em nós. Para o correlacionismo, de forma alguma podemos sair de nós mesmos para descobrir o que há do outro lado da correlação, independentemente de nós, pois um mundo somente tem sentido desde que seja conosco, para-nós.

Mesmo assim, a ciência enuncia verdades que hipostasiam um mundo real independente do homem. Por exemplo, as enunciações científicas acerca da formação do universo e do planeta Terra, acontecimentos que não podem ter se dado exatamente como propõe a ciência justamente porque não se deram ao homem. São ancestrais em relação a ele. Tais enunciados da ciência referentes a eventos ancestrais, do ponto de vista de um correlacionismo estrito, são impossíveis. Ora, como o universo e a Terra se manifestariam das formas determinadas enunciadas pela ciência se toda manifestação pressupõe alguém a quem se manifestar? Eis a encruzilhada que o correlacionismo coloca à ciência.

Com efeito, o mais pretensioso enunciado científico, qual seja, “o universo ‘se formou’ há 13,3 bilhões de anos antes do surgimento do homem”, não será refutado pelos filósofos, pois estes não podem aferir data mais precisa para o evento primordial. Porém, o filósofo pode sustentar que, de fato, o universo conforme diz a ciência, mas, “para a ciência”. Essa é a performance máxima da filosofia contra a ciência atualmente: dizer que há, no mínimo, 2 níveis de sentido em um enunciado como este. Segundo Meillassoux: o sentido imediato, realista, científico; e um sentido mais original, correlacional, filosófico.

O cientista, não obstante, recusa veementemente que haja outro regime de sentido para a compreensão de seus enunciados, sustentados por equações matemáticas, e, por isso, a filosofia terá de ficar de fora da apreciação deles. Porém, é exatamente isso que o filósofo não pode aceitar, pois, do contrário, teria de concordar com coisas que são absurdas para qualquer filosofia pós-crítica, por exemplo, que o Ser não é inerente à sua própria manifestação, isto é, que ele pode ser sem se manifestar; ou, o que é pior, que o pensamento pode pensar um tempo anterior ao homem – sendo que, desde Kant, o tempo é mera representação sensível que reside exclusivamente em nós, homens.

Se o filósofo pode sustentar alguma coisa contra a produção do cientista, é porque a formação do universo, por exemplo, não pode ter se dado conforme está sendo ingenuamente enunciado pela ciência, isto é, não correlativamente a uma consciência. O cientista, todavia, pretende-se mais sofisticado do que o filósofo, avançando sem problemas mediante enunciados “objetivos” desprovidos justamente de objetos pensáveis, uma vez que a abstração matemática é a sua concretude suficiente.

Talvez a pertinência da filosofia contemporânea esteja no apontamento da impossível universalidade das enunciações científicas. Segundo o filósofo contemporâneo Slavoj Žižek, “toda ‘verdade’ tem de ser enunciada para se efetivar, e que o momento (e o lugar) dessa enunciação é sempre contingente”. Para ele, a filosofia está aí para dizer que esse momento contingente não é apenas externo, mas imanente. Nas palavras de Žižek: “a expressão contingente de uma verdade necessária sinaliza a contingência dessa própria verdade necessária.”

Para não negar à filosofia a possibilidade de contribuir com a ventura científica, quiçá corrigi-la, basta lembrar do que Bergon disse: que “filosofar consiste em inverter a direção habitual do trabalho do pensamento. Devemos a essa inversão -inventada pela filosofia- o que foi feito de mais importante inclusive nas ciências. Afinal, o mais poderoso dos métodos de investigação que de que o espírito humano dispõe, a análise infinitesimal, nasceu dessa própria inversão”.

O filósofo é aquele que pode -e talvez o que deve- apontar os absurdos de enunciados científicos que, embora metaforicamente, dizem que certos objetos reais descritos por determinadas equações matemáticas são, digamos, “buracos negros” ou “buracos de minhoca”, pois, como a própria já ciência sabe, tais objetos não são, nem têm como ser “buracos”, nem “negros”, nem “de minhocas. Todavia, a ciência não enuncia suas produções sem se valer dessas miseráveis metáforas. Ás misérias da ciência, portanto, filosofia!

Quem senão o filósofo para desvelar a ingenuidade das metáforas científicas? Quem senão a filosofia para prevenir que as verdades de validade universal produzidas pela ciência não soem como poesia ou sofística? A filosofia, nos seus primórdios, salvou o universal das contingências da poesia e da sofística. Atualmente, tem o dever de fazer o mesmo com as universalidades assaz abstratas da ciência.

Ecologia spinozana

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Diante da extinção de tantas espécies animais em decorrência do antropoceno, isto é, do impacto do homem sobre a natureza, o que pensar de um intelectual que, em um lugar, identifica Deus com a natureza ao dizer Deus sive natura (Deus, ou seja, a natureza), e, em outro, sustenta que “é evidente que a lei que proíbe matar os animais funda-se mais numa vã superstição e numa misericórdia feminil do que na sã razão”, como de fato fez Benedito Spinoza na sua célebre Ética? O grande pensador moderno, mais conhecido como o filósofo dos afetos, não estaria querendo dizer algo como: Homem sive natura?

 

Imediatamente é o que parece, pois pouco importa aqui Spinoza dizer: “não nego, entretanto, que os animais sintam”, se, ali, diz: “nego que não nos seja permitido, por causa disso, atender à nossa conveniência, utilizando-os (os animais) como desejarmos e tratando-os da maneira que nos seja mais útil, pois eles não concordam, em natureza, conosco, e seus afetos são diferentes, em natureza, dos afetos humanos”. Quer dizer que pelo fato de não sabermos como os animais sentem nem como são afetados podemos fazer o que quiser com eles? É isso mesmo Spinoza?

 

Entretanto, antes de acusarmos Spinoza de insensibilidade em relação aos animais, e de o chamarmos de antiecológico, é muito importante lembrar que ele foi talvez o filósofo mais mal compreendido de toda a história da filosofia. Foi o primeiro pensador não cristão a ser excomungado pela Igreja Católica e, enquanto judeu, excluidíssimo da comunidade judaica-portuguesa pelo que pensou.

 

Obviamente, o desagrado irremediável que Spinoza causou nas comunidades cristã e judaica se deu muito menos pelo que disse dos animais do que pelo que sua filosofia falou das duas grandes religiões. Não obstante, essa rejeição histórica por parte dos fundamentalismos das duas grandes religiões em relação a Spinoza outra coisa não deve indicar senão que sua filosofia propunha uma horizontalidade racional incompatível com a verticalidade da fé.

 

Portanto, para não sustentarmos fundamentalismos, e não repetirmos a falta de entendimento dos últimos quatro séculos em respeito à filosofia de Spinoza, atravessemos racionalmente o aparente paradoxo entre, de um lado, a afirmação de que Deus é a natureza, e , de outro, a ideia de que alguns dos seres criados por Ele, quais sejam, os animais, possam ser utilizados e tratados por nós, homens, da maneira como melhor nos convém.

 

Ora, se tudo o que Deus sive natura cria é igualmente divino sive natural, todas as criaturas são igualmente “a” natureza e todos devem ter lugar dentro dela. Porém, se, como escreveu Spinoza, o “homem tem mais direito sobre os animais do que estes sobre ele”, o homem parece ter uma posição hierárquica superior dentro da natureza, coisa que, entretanto, somente o próprio homem poderia dizer, mas nunca a própria natureza.

 

Antes, da perspectiva da própria natureza, não seria absurdo concluir que esta criatura sua autointitulada humana que a degrada interna e sistematicamente é a mais baixa e indesejável de todas. Todavia, se Deus sive natura concluísse isso, estaria assumindo automaticamente que errou ao criar o homem. Isso, porém, para o próprio Spinoza seria um absurdo maior ainda, pois Deus sive natura é essencialmente perfeito, nunca erra. Mantenhamos então a ideia de que o homem, por mais que destrua a natureza e mate os animais ao toque de suas necessidades, ainda assim é uma acerto da natureza, sem o qual aliás ela seria menos perfeita do que é.

 

Seria então a natureza sadomasoquista ao criar e manter dentro de si uma criatura que a destrói sistematicamente? Obviamente que não, pois, conforme o próprio Spinoza, não há na essência de nada, muito menos na da natureza, qualquer princípio de autodestruição, mas, pelo contrário, de afirmação, de existência, de vida. Antes, tudo o que há na natureza é a sua perfeição se expressando positiva e necessariamente de infinitas formas.

 

Agora, se, de um lado, o homem e a sua antiecologia sistemática não são erros da natureza, mas acertos dela, e o fato de matarmos outras criaturas como bem entendemos só faz ela, a natureza, ser exatamente o que é, sive perfeita, porém, de outro lado, o próprio homem tem a ideia de que se os animais não fossem mortos por nós a natureza seria ainda mais perfeita, ou o homem não entendeu o que é perfeição para a natureza, ou, antes, seu conceito de perfeição pretende ir mais longe do que o dela.

 

Com Spinoza, no entanto, não é possível afirmar que uma criatura possa ser mais perfeita do que o seu criador, sequer imaginar mais perfeição que a dele. Desse modo, a ideia de que nenhum animal deva ser morto para a satisfação das necessidades humanas é menos perfeita do que a perfeição da própria natureza que criou o homem que extermina animais para se satisfazer. Como, entretanto, de nosso ponto de vista ecológico, aceitar que os animais possam ser mortos por nós e que ainda por cima isso seja a naturalidade, a positividade e a perfeição da própria natureza?

 

Pois bem, para absolver Spinoza do crime da antiecologia, é preciso colocar que, para ele, o simples amor aos animais não faz a natureza ser melhor. Para o filósofo, é amando a natureza como um todo que qualquer perfeição, inclusive o amor aos animais de que estamos falando, surgirá verdadeiramente. Isso fica claro quando, no seu Breve Tratado, o filósofo coloca que “não vamos nos fortalecer em nossa natureza por amar as coisas perecíveis e nos unirmos com elas, pois elas mesmas são débeis”.

 

Ora, os animais são perecíveis. Amá-los por si sós, portanto, é uma fraqueza, uma debilidade. Com efeito, diz Spinoza, “quem se une a coisas perecíveis é realmente muito miserável”. O importante a ser compreendido na frase de Spinoza é que só não há miséria nem debilidade no amor e na união à natureza como um todo, pois só ela não é perecível. Então, amá-la, não por que ela criou esta ou aquela espécie animal, mas porque criou todas as coisas, é a virtude humana de que a natureza precisa para ser o que somente ela pode ser: perfeitíssima.

 

A aparente antiecologia spinozana se desfaz, aliás, torna-se o mais perfeito princípio ecológico quando finalmente compreendemos que o amor que sentimos por este ou aquele animal, por tal ou qual espécie viva, é um amor miserável, pois ama mais uma parte do que o todo que a criou. Para Spinoza, devemos primeiro amar a natureza inteira, muito antes de ela se expressar em animais – plantas, homens, etc.-, pois se a amarmos desse modo, tudo o que dela decorre será amado adequadamente, e, portanto, naturalmente preservado.

 

Spinoza, na verdade, é absolutamente ecológico ao tentar mostrar que enquanto amarmos somente partes da natureza, e não a natureza que as cria e relaciona perfeitamente todas as suas partes, tal amor não salvará nenhuma parte da natureza de ser destruída por nós. O único amor que salva a natureza, e, com a salvação dela, a de todas as suas criaturas, é o amor à própria natureza. Amando-a, não temos como não amarmos todas as suas criaturas igualmente, pois ecologia, em Spinoza, é amor ao todo, e nunca a uma parte ou outra.

 

A polêmica afirmação de Spinoza, qual seja: “nego que não nos seja permitido … atender à nossa conveniência, utilizando-os (os animais) como desejarmos e tratando-os da maneira que nos seja mais útil”, deixa de ser antiecológica a partir do momento que, amando a natureza como um todo, é impossível abusarmos de alguma parte sua ou outra. Agora, em troca, se amarmos mais a uma parte do que o todo de que ela é parte, por exemplo, se amarmos mais a nós mesmos que aos animais, ou a estes mais do que às plantas,aí sim não nos parecerá absurdo que umas partes destruam outras convenientemente. Porém,  nesse amor parcial jaz a imperfeição da natureza.

Oscar, Glória e ataraxia.

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A postura indiferente e os comentários, digamos assim, apáticos da atriz Glória Pires causaram espécie na transmissão do Oscar 2016 pela Rede Globo. Quem não assistiu à performance de Glória como comentadora da festa do cinema americano ao vivo, certamente pôde conferir os “grandes momentos” dela no rol de memes que se seguiram nas redes sociais. Alguns chamavam-na de perdida, outros de “lesada”, outros ainda sugeriam que ela estava com problemas mentais. Entretanto, por que Glória causou tanto com tão pouco?

Vejamos alguns exemplos do pouco que muito causou. Sobre a canção premiada, “Writing’s on the wall”, do filme 007 contra Spectre, ela disse, nada mais nada menos: “gosto médio”. Quando perguntada sobre qual filme ganharia a estatueta dourada, esquivou-se:” “sou ruim de previsões”. Já a pérola da noite foi a resposta que deu quando solicitada a discorrer sobre a canção que Lady Gaga tinha acabado de apresentar: “não sou capaz de opinar”.

Realmente, é de espantar que, hoje em dia, na era dos quinze minutos de fama preconizada por Andy Warhol, uma estrela da televisão não faça questão de ocupar, absoluta e vaidosamente, o espaço midiático de que dispõe. No entanto, da segurança de sua longeva e reconhecida carreira artística, a atriz pôde confortavelmente mandar um “beijinho no ombro” para o “recreio famoso” warholiano e não abusar do seu espaço de evidência, ocupando-o minimamente.

Não sem pagar um alto preço, contudo. Ainda durante a cerimônia do Oscar, memes debochados já pipocaram nas redes sociais. Alguns ofensivos inclusive. A reação dos telespectadores-internautas foi tamanha e tão imediata que, no dia seguinte, ainda pela manhã, Glória, em um vídeo-resposta, veio se explicar. Muito tranquila, disse: “Gente, fui convidada para comentar o Oscar, aceitei, e como não sou especialista, falei e agi como se estivesse na sala da minha casa, junto de amigos, só isso”.

No entanto, a onda memética que, no melhor dos casos, a acusou de apatia, e, no pior, de doença mental, deixou bem claro a alta expectativa que o público tem das figuras que vê na “telinha”. Tivesse Glória fingido, isto é, encenado uma empolgação que não tinha em relação às perguntas banais que recebia, e, em resposta, outrossim mentirosa e empolgadamente, tivesse devolvido mais banalidades, o público teria ficado satisfeito, pois é isso que as pessoas esperam da TV, ainda que ganhem somente falsidades televisivas de presente.

Porém, algo fugiu do script. Glória Pires foi apenas ela mesma; foi cruamente verdadeira: não encenou uma hollywood movie expert, coisa que assumidamente não é. Ocupou seu lugar de convidada, nada mais. Não encheu os ouvidos dos telespectadores com as banalidades com as quais estão acostumados a ser entretidos, deixando-os, desse modo, com o vazio de suas próprias opiniões -ou falta de opinião- sobre as melhores músicas e filmes concorrentes. Glória, como se diz, não “alugou” ninguém, tampouco a si mesma.

Por que então a massiva reclamação memética contra ela? Será que os telespectadores não vivem sem “micos histéricos” diante de si o tempo todo? Qual a dificuldade em lidarem com a quietude, com a tranquilidade, até mesmo com a apatia dos seus supostos entertainers? A primeira pergunta é respondida com a segunda: porque eles querem sim micos histéricos lhes entretendo ininterruptamente, para assim ficarem absolutamente entretidos e satisfeitos. Já à terceira pergunta, a resposta é mais sutil. Reperguntemo-la: por que a apatia causa tanta espécie?

A apatia (não-pathos), isto é, a ausência de paixão, que também significa tranquilidade de ânimo, era chamada pelos gregos antigos de ataraxia. Em filosofia, ataraxia é a atitude fundamental do cético que não acredita no valor ontológico do conhecimento. Em outras palavras, o ataráxico é aquele que não se perturba pelo fato de a verdade não ser alcançável pela razão humana e, por isso, dispensa-se de discorrer sobre ela.

O cético-mor, qual seja, Pirro de Élis, ciente das limitações da sensibilidade e da racionalidade humanas, foi aquele que, em estado de ataraxia absoluta, encontrou tranquilidade não proferindo mais juízos sobre o que quer que fosse, vivendo completamente calado. Daí chamarmos quem não opina de pirrônico. E não foi uma quase ataraxia que Glória Pires atuou diante de milhões telespectadores ao dizer quase nada sobre a badalada e esperadíssima cerimônia do Oscar? Glória se deu ao luxo de ser pirrônica ao vivo, em cores, e na Globo ao dizer: “não sou capaz de opinar”.

Agora, por que a tranquilidade mental de um entertainer incomoda tanto aos que querem estar entretidos por ele? Ora, porque, hoje em dia, mais do que nunca, espera-se que o entretenimento não seja tranquilo. Se for sossegado demais, é o público que se inquieta. Nunca é demais lembrar que para “acalmar” o populus da Roma Antiga, nada menos que cristãos sendo devorados por leões no espetacular Coliseu. Para a audiência ficar “tranquila”, é o entertainer que deve ser histérico. Porém, como Glória, a suposta entertainer, foi serena, apática (livre de paixão), o público é que explodiu, histérica e patologicamente, contra a pirronice dela. Seus memes outra coisa não queriam vociferar que: entertain us or die, bitch!

Porém, a ataraxia de Glória mandou um “beijinho no ombro” inclusive para a patologia memética voltada contra ela. No seu vídeo-resposta, gravado provavelmente em sua casa, com ela vestindo um pijama, sem usar maquiagem e com os cabelos despenteados, a atriz, que na telinha está sempre “preparada”, disse inclusive que se divertiu muito com os memes que fizeram “para ela”; que os memes são mesmo um “espaço” de criação e de diversão para as pessoas; e que não havia nada de errado com ela durante a transmissão da cerimônia do Oscar. Isso sim é tranquilidade de ânimo! A glória! E o Oscar de melhor ataraxia vai para: Glória Pires!

Consumir o consumismo que nos consome

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iPhones, férias no Caribe, internet de alta velocidade, dúzias de cervejas, é quase impossível não sermos consumidos por tais mercadorias, concupiscentemente tornadas ícones materiais da idealizada realização pessoal. Porém, como nos disse Érico Veríssimo, “o objetivo do consumidor não é possuir coisas, mas consumir cada vez mais e mais a fim de, com isso, compensar o seu vácuo interior, a sua passividade, a sua solidão, o seu tédio e a sua ansiedade”. O tempo e o vento do consumismo nos conclamam convincentemente a tapar o “intapável” buraco humano que somos, mesmo que nessa empresa impossível sejamos consumidos pelo consumismo que consumimos.

E consumindo concupiscentemente, nos alienamos tanto do nosso vazio intrínseco, quanto do fato de que somos consumidos pelo que consumimos.  Acreditamos cegamente que, aqui, uma ou duas mercadoriazinhas à mais darão cabo do nosso tédio, e, ali, que somos somente nós que as consumimos. Realmente, essas são mentiras muito bem contadas, e, ademais, muito bem acreditadas. O capitalismo e Noam Chomsky sabem muito bem que “não se pode controlar o povo pela força, mas se pode distraí-lo com consumismo”. Quem nos distrai: o capitalismo. Qual seu método: o consumismo. E os distraídos, quem são? Ah, estes dispensam apresentação.

Para entender melhor o teatro capitalista que nos distrai do fato de que o consumismo que consumimos nos consome, vale lembrar que “consumir”, derivado do Latim “consumere”, quer dizer destruir, desgastar, desaparecer, sumir. Aqui podemos ver que, consumindo, outra coisa não construímos que um mundo de destruição. Isso fica ainda mais claro quando compreendemos que o sufixo “ismo”, que, indica sistematização, aderido à palavra consumo com uma força histórica tremenda, faz do nosso modus vivendi um sistema de destruição, de desgaste, de desaparecimento. Escaparíamos nós, consumidores, desse aniquilamento consumista?

O consumo, obviamente, não foi inventado pelo capitalismo. Na verdade, é intrínseco à vida, que, de acordo com Nietzsche, é um processo contínuo de destruição (consumo) e criação. A sistematização do consumo, porém, não encontrou melhor expressão do que no universo do capital, a ponto de hoje ser um absurdo negar que capitalismo e consumismo sejam absolutamente consubstanciais. Millôr Fernandes fala bem mais poeticamente da relação desses dois monstros: “quando começou a comprar almas, o diabo inventou a sociedade de consumo”. Não é demais ressaltar que a gestalt poética dessa máxima está precisamente no apelido mui próprio dado ao capitalismo.

O objetivo do casal mais insaciável e prolífico da história econômica mundial não é que as suas muitas filhas-mercadorias desapareçam definitivamente. As mercadorias que consumimos constantemente, embora feitas para serem sistematicamente sumidas por nós, renascem sempiternamente das cinzas, feito Fênix mítica. A destruição envolvida no conceito de consumo, portanto, não as visa centralmente. Tampouco o fim do capitalismo está em foco no desaparecimento das mercadorias, muito pelo contrário aliás. Quem são, então, os sujeitos destruídos nessa conjuntura que, de um lado, conta com a nossa concupiscência, e, de outro, com a ganância capitalista? Há muito a Torá nos diz que “a ganância insaciável é um dos tristes fenômenos que apressam a autodestruição do homem”.

Sim, somos nós, consumidores, que somos consumidos, melhor dizendo, destruídos pelo que consumimos. Não exatamente como queria Leon Tolstoi, que dizia que “para se viver com honra, é preciso consumir-se, perturbar-se, lutar, errar, recomeçar do início, novamente recomeçar e lutar e perder e ganhar eternamente”. A frase do escritor russo é fraca, quiçá utópica, diante de um capitalismo que, sistematicamente, recomeça a sua luta desonrosa para ganhar e ganhar e ganhar, ad aeternum. Quantas gerações não foram consumidas do mapa desde o surgimento do capitalismo senão para que hoje ele estivesse mais vivo e mais  vivo que nunca? E quantas ainda não serão desgastadas em função do ganhar-ou-ganhar capitalista?

Como, entretanto, evitar sermos destruídos pelo capitalismo, ou o que é o mesmo, consumidos pelo consumismo que consumimos? A fórmula de Abraham Lincoln, qual seja, “a melhor forma de destruir seu inimigo é converter-lhe em seu amigo”, poderia ser de alguma ajuda aqui? Para tal, precisaríamos pressupor, como os liberais mais ingênuos, que capitalismo e consumismo podem de fato ser amigos nossos. Agora, isso não seria confiar demais em alguma mão invisível, mais ainda, mágica? Permaneçamos por enquanto com os pés no chão no qual está escrito com o nosso próprio sangue que aquele que nos destrói para construir-se não é nem tem como ser propriamente nosso amigo.

Para ser amigável conosco, o capitalismo precisaria consumir outra coisa que não a nós, seus consumidores. Para tanto, teria de consumir a si mesmo, uma vez que o consumo é a sua essência inalienável. Não obstante, há alguma indicação de que essa ficção possa ser realizável, e ainda assim ser chamada de capitalista? Ou o ato subsequente da longeva ópera humana, no qual o protagonista econômico será mais amigável, já não tem um nome próprio: socialismo? Portanto, desculpe-me Lincoln, essa balela de amizade com o capitalismo está fora de questão.

Desse modo, as opções que nos restam são: ou sermos indiferentes em relação ao capitalismo, e, como em um lugar queria Marx, deixá-lo sucumbir diante de suas próprias contradições; ou, em troca, inimizá-lo radicalmente, e, como em outro lugar também queria Marx, derrotá-lo rápida e violentamente. Agora, se o objetivo principal é findar com o consumo de vidas pelo consumismo capitalista, temos todavia de considerar que lutar contra esse monstro em ambos os casos consumirão milhares de vidas. No primeiro, ao longo do tempo em que o capitalismo se contradirá até sucumbir, e, no segundo, na própria revolução rápida e violenta, haja visto que a besta capitalista é tão ou mais rápida e violenta, sem dizer belicosa até os dentes.

Resta ainda uma terceira via, trilhada por aqueles que acreditam que deixarem-se ser consumidos pelo capitalismo, conforme o próprio capitalismo quer, é uma forma subversiva de fazer com que ele chegue mais rapidamente à sua contradição derradeira. Estes são chamados de aceleracionistas. No entanto, do ponto de vista do capital, no que diferem os consumidores concupiscentes e os aceleracionistas? A fera econômica há de preferir estes últimos inclusive. Para entender o desserviço do aceleracionismo, façamos uma analogia: se o inimigo fosse, digamos, a destruição da natureza pelo homem, o aceleracionista seria aquele que se juntaria aos destruidores dela para, não havendo mais natureza a ser destruída, a destruição enfim cessasse. De que adiantaria tal luta?

O aceleracionista responderia contrariado que a virtude de sua ideologia em relação ao vício concupiscente está em que ser consumido para mais rapidamente destruir daquilo que o destrói é muito mais produtivo e honroso do que ser sumido enquanto se está distraído pelos encantos mentirosos do inimigo. Realmente, há aí uma vantagem, que, no entanto, só não é absoluta porque mais virtuoso é aquele que, sem se permitir ser corrompido, mesmo que subversivamente, rápida e violentamente tenta dar cabo do algoz-mor, ainda que seja o primeiro a ser destruído por ele.

A solução para o problema de sermos consumidos pelo consumismo que consumimos certamente não virá do consumista concupiscente, pois seu consumo não só o aliena de sua própria destruição, como também da destrutividade própria do consumismo. Provavelmente o consumista aceleracionista também não dará conta da questão, pois, embora engajando a sua própria e inevitável destruição na destruição futura do inimigo, enquanto age só fortalece este último. Só o revolucionário ainda mantém alguma possibilidade de vitória em seu horizonte. Duas, aliás. A primeira, na sua morte rápida e violenta em resposta à sua outrossim rápida e violenta ofensiva contra o capital, uma vez que, morto, não mais será consumido pelo consumismo que tenta consumi-lo. Aqui, morrer, é como matar um soldado do inimigo. Já a segunda, mais desejada e substancial vitória está no êxito da revolução que dará cabo do capitalismo.

A conclusão não poderia nem deveria ser outra. Para quebrar o círculo, que para nós é vicioso, mas para o capitalismo é absolutamente virtuoso, que a frase outrossim circular ser consumido pelo consumismo que consumimos expressa, a concupiscência é incompetente. Tampouco o aceleracionista mais empenhado no extermínio do capitalismo demonstra bom rendimento, uma vez que sua estratégia só fortalece o inimigo naquilo que ele quer ser fortalecido. Só mesmo o revolucionário tem a vitória em sua ação, pois só ele sabe, assim como o kamikaze, que a sua eventual morte não significa derrota se algo do inimigo morrer com ele. E também que ser consumido, destruído, derrotado, é sê-lo pelo inimigo, não por sua própria e deliberada ação. Por isso, ‘consumir o consumismo que nos destrói’, para o revolucionário, de outra forma não é lido senão: “destruir a destruição que nos destrói’.

Panelas, vergonha alheia e Spinoza

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Da minha janela para a avenida Nossa Senhora de Copacabana, assisti a mais um estridente “panelaço” contra o atual governo, contra o Partido dos Trabalhadores e, como não podia deixar de ser, contra o ex-presidente Lula. Na noite de 23 de fevereiro de 2016, novamente, os elementos predominantes do maravilhoso cenário da Princesinha do Mar eram os patéticos e histéricos cidadãos que faziam do ruido de suas panelas os seus melhores discursos políticos. Diante de tamanha miséria retórica, pensei sentir vergonha alheia de todos eles.

No entanto, não podia ser vergonha o que me passava, afinal, este é um sentimento que nos afeta por reprovarmos algo que nós mesmos fazemos. Ou ainda, segundo o filósofo Baruch Spinoza, “a vergonha é uma tristeza acompanhada da ideia de alguma ação nossa que imaginamos ser desaprovada pelos outros”. Sendo assim, se a ação da qual eu parecia estar me envergonhando, embora alheiamente, não era produzida por mim, nem a minha reflexão silenciosa parecia ser desaprovada pelos outros, vergonha é o que eu não deveria sentir.

Na verdade, o que eu sentia era uma espécie de orgulho -orgulho próprio!- por descrer piamente que bater em uma panela pudesse resolver, em qualquer instância, seja a atual crise brasileira, seja ainda  patologias históricas, tais como a mui antiga e democratizada corrupção política tupiniquin e os vis movimentos de uma economia completamente refém do capitalismo global.

Por que então essa vergonha alheia pareceu me afetar? Como foi a partir da minha janela física que cheguei a essa questão, para esclarecê-la é conveniente debruçar-me sobre uma janela metafísica. E se a vergonha é um afeto, a metafísica de Spinoza, o filósofo dos afetos, é a melhor janela para eu ver à distância a minha vergonha alheia, que, no entanto, tilintava silenciosamente um forte orgulho próprio por eu não ser um reles paneleiro político. Para raciocinar melhor, eu deveria me afastar dessa vergonha intrusa, pois, como diz o filósofo, “a vergonha é uma espécie de tristeza, não diz respeito ao uso da razão”.

Spinoza afirma que a vergonha, embora não seja uma virtude, é boa à medida que indica um desejo de viver lealmente. A minha pretensa vergonha alheia, portanto, era apenas o sinal de que eu desejava ser mais leal ao meu país do que aqueles desavergonhados que batiam panelas. Da minha perspectiva, lealdade seria protestar, argumentativa e racionalmente, em um diálogo político civilizado e maduro, sem o qual não um Brasil melhor não será construído.

A minha maior lealdade cidadã em relação aos histéricos paneleiros pode se justificar no que diz Spinoza: “quem sente vergonha é mais perfeito do que o desavergonhado, pois este não tem qualquer desejo de viver lealmente”. Entretanto, se, como coloca o filósofo, “o pudor é o medo da vergonha”, a vergonha alheia que eu inicialmente senti pelos tilintadores de plantão, na verdade, era meu pudor de não ser desleal ao meu país. Não era orgulho, portanto, o sentimento que barrou a minha vergonha alheia, mas pudor! Era esse o afeto que eu tilintava reflexivamente da minha janela silenciosa .

Sem dizer que aderir à vergonha alheia seria um tremendo desserviço político. Em primeiro lugar, porque é aquele age vergonhosamente que deve se envergonhar dos seus atos. E em segundo lugar, porque sentir vergonha pelos atos de outrem dispensá-lo de ser afetado por aquilo de que ele mais precisa para ser um pouco mais virtuoso. Com efeito, quem sente vergonha no lugar de alguém age, gratuita e espontaneamente, como um “personal-vergonha” dele, enquanto ele, tendo esse afeto, digamos, terceirizado, pode até sentir-se orgulhoso de si, o que é um absurdo -muito embora aqueles que deixavam a avenida Nossa Senhora de Copacabana mais ruidosa do que já é evidenciassem um inacreditável orgulho próprio.

Sinceramente, o que eu mais desejei durante o panelaço foi que os paneleiros histéricos pudessem se confrontar com suas vergonhosas manifestações políticas. Agora, mesmo que eles não se envergonhem disso, sequer se entristeçam com a pobreza de suas estratégias políticas pessoais, pois caso o fizessem certamente se tornariam cidadãos mais leais ao seu país, a melhor coisa que eu tenho a fazer é pensar como Spinoza, ou seja, nunca esquecer de que “a vergonha é uma tristeza acompanhada da ideia de uma causa interior”, nunca causada por outra pessoa. Eles não podem e não devem me causar vergonha, mesmo que alheia.

Não foi nem felicidade nem orgulho o sentimento que os tilintadores de Copacabana me causaram sob a máscara da vergonha alheia, mas, em troca, pudor. Pudor de não agir como eles!  E se tal pudor, causado por mim mesmo, causava-me espécie de orgulho e felicidade próprios, esses sentimentos eram a minha própria glória, pois, conforme Spinoza, “a glória é a alegria acompanhada da ideia de uma causa interior”, ou seja, causada por quem a sente.

Se, como diz o filósofo dos afetos, “a vergonha é uma tristeza acompanhada da ideia de uma causa interior”, e provém do fato de alguém se julgar reprovado pelos outros, a minha glória, melhor dizendo, o meu silencioso pudor em não ser desleal ao meu país, diante do monótono e ineficiente ruído de centenas de panelas, era o mais virtuoso protesto que eu poderia fazer.

Entretanto, ainda que a minha silenciosa virtude não conduza os paneleiros histéricos à vergonha nem à tristeza, que, do meu ponto de vista, é o que eles deveriam sentir por suas barulhentas deslealdades cidadãs -e que, se sentissem, mostrariam a intenção de serem um tanto mais leais ao Brasil-, pelo menos de me sentir envergonhado por eles eu me sinto dispensado! Sou alheio a histeria deles. Essa é a minha glória. Glória cidadã.

O patrimônio da humanidade, a barbárie e a civilização.

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Assistimos indignados, das críticas torres envidraçadas da nossa pressuposta civilidade, ao Estado Islâmico destruir patrimônios arqueológicos da humanidade, como por exemplo as antiquíssimas estruturas arquitetônicas da cidade síria de Palmira. Nós, ocidentais, que quase tudo destruímos do nosso patrimônio arqueológico e arquitetônico, para no lugar dele construirmos as nossas metrópoles modernas, do topo do nosso belvedere civilizado só conseguimos ver a barbárie daqueles lá longe. Já a nossa, que está bem próxima, fazemos de conta que não vemos.

O que provoca essa nossa hipermetropia? Em outras palavras, por que a mesma coisa, se “produzida” por aqueles fundamentalistas é chamada de barbárie, e se produzida por nós, é desenvolvimento? Ontem mesmo, caminhando pelo centro histórico do Rio de Janeiro, dito tombado, recoloquei-me essa pergunta ao ver, incrédulo, a demolição de dois palacetes que há mais de trezentos anos faziam a beleza patrimonial arquitetônica e cultural da esquina da Rua do Rosário com a avenida Primeiro de Março, bem em frente ao Centro Cultural Banco do Brasil.

Ao lado do que ainda restava dos antigos edifícios, já dava para ver as fundações apressadas do que provavelmente serão mais dois arranha-céus comerciais antipáticos e revestidos de vidros espelhados que outra coisa refletirão senão a civilização seguir barbarizando o patrimônio carioca que ainda resta. Só que esse patrimônio carioca que vai sendo barbarizado também é dos brasileiros e, sumamente, da humanidade. Porém, os prédios novos que em pouco tempo jazerão impávidos no coração Rio antigo refletirão mentirosamente apenas a ideia de desenvolvimento.

Agora, se em um ano o Estado Islâmico continuar destruindo as arquiteturas antigas do mundo árabe – o que é bem provável, afinal, “assim caminha a humanidade” -, os executivos das torres pós-modernas que estarão no lugar das arquiteturas destruídas da Rua do Rosário dirão daqueles: são uns bárbaros, destroem o patrimônio da humanidade! Entretanto, nem precisaríamos destas duas novas torres tupiniquins críticas para que a “jihad” desenvolvimentista do “Estado da Guanabara” fosse tão abjeta quanto a jihad fundamentalista do Estado Islâmico.

Basta lembrar de Pereira Passos, que, apelidado de “bota-abaixo”, barbarizou o Rio antigo dos 1900 para, no seu lugar, edificar o belo Rio de Janeiro da Belle Époque, imitando o Barão Haussmann que, cinquenta anos antes de Passos, fez o mesmo com a Paris medieval, da qual era prefeito. Todavia, de tais bárbaros é dito que fizeram “cirurgias urbanas”. E por esse corpos plastificados, como Paris e Rio exemplificam muito bem, temos inclusive adoração cega, praticamente fundamentalista.

Outro exemplo histórico da barbárie carioca contra o patrimônio da humanidade, cometido pelo sucessor de Pereira Passos,  foi o “desmonte” do Morro do Castelo, que se situava bem no centro do Rio de Janeiro, que abrigava não só fortalezas coloniais de valor histórico inestimável, que foram “desmontadas” com o morro, como também um panteão imaterial de religiosidades negras mal vistas e malquistas pela “civilização” da época, outrossim colocadas por terra.

A histórica destruição de patrimônios nas terras cariocas, que sege firme até hoje com o “desmonte” dos dois palacetes da Rua do Rosário, entretanto, parece não recebe críticas tão radicais quanto as que despejamos contra os radicais islamitas. Por quê?

Ora, criticamos radicalmente e sem pestanejar o Estado Islâmico pela destruição do patrimônio da humanidade para que sejam eles, e apenas eles, os bárbaros destruidores do patrimônio humano. Agindo desse modo, de um lado, podemos seguir destruindo o patrimônio da humanidade que ainda existe no nosso quintal, e, de outro, nos alienamos eficientemente do triste fato de que o “patrimônio” humano mais perene é mesmo a destruição de seu próprio patrimônio, seja em Palmira, seja em São Sebastião do Rio de Janeiro.

O mais irônico de tudo é que quando queremos civilizadamente preservar algum patrimônio arquitetônico ou cultural da nossa incontrolável barbárie, usamos a expressão “tombar”. Embora “tombar” signifique “preservar”, essa palavras não deixa de remeter a “fazer cair”, a “botar-abaixo”. Talvez usemos a palavra “tombar” para, própria e civilizadamente, dizer a nós mesmos que queremos preservar os nosso patrimônios, mas, comezinnha e barbaramente, para não nos esquecermos de que nós também somos radicalmente destrutivos em se tratando de patrimônio da humanidade.

A barbárie e a medida da nossa indignação

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Foto: PCO – Presídio de Pedrinhas, Maranhão.

Ao lermos a notícia primeiramente divulgada pela agência curda “Arab News”, mas rapidamente replicada por jornais de todo o mundo, de que no dia 18 de fevereiro de 2016 o adolescente Ayham Hussein, de 15 anos, foi decapitado em praça pública por jihadistas do Estado Islâmico, simplesmente por ouvir música Pop ocidental, quão indignados ficamos ou achamos que devemos ficar? Muito, diremos nós. Afinal, no nosso ocidente laico&liberal jovem algum é decapitado em praça pública por con$umir música Pop. Somos civilizados, ora bolas, bem diferentes daqueles bárbaros radicais. Por isso não temos dúvida de que devemos devemos ficar absolutamente indignados com o que aconteceu a Ayham. Entretanto, seria essa a justa medida para a nossa indignação em relação à barbárie cometida contra Ayham?

O problema dos sentimentos, posturas ou crenças absolutos é que inviabilizam sobremaneira a reflexão, ou seja, o virtuoso uso razão. Se em Filosofia “absoluto” é definido como realidade suprema e fundamental, independente de todas as demais, qualquer filósofo nos dirá que se a nossa indignação a respeito do destino que o E.I. deu a Ayham é absoluta, ela não é menos radical que a indignação absoluta dos jihadistas em relação ao gosto do adolescente por música Pop ocidental. O vício do radicalismo jihadista parece ser muito claro para nós. Agora, o vício do nosso radicalismo, a partir do qual criticamos aquele, é igualmente claro?

Ora, se é só pelo fato de os membros do E.I. seguirem fundamentos absolutos que eles são criticados por nós, ocidentais, enquanto os criticarmos absolutamente, do topo dos nossos caros fundamentos laicos&liberais, desculpem-me, merecemos a mesma crítica, gostemos ou não dessa consequência. Isso porque a nossa indignação absoluta nos impede de pensarmos a questão reflexivamente. O absoluto não reflete. Em que iria refletir-se se só há ele? A recusa dialética que toda ideia absoluta envolve, no caso da morte de Ayham, rouba-nos, por exemplo, a possibilidade de perguntarmo-nos se além da compaixão pelo adolescente árabe fã de música Pop a nossa indignação absoluta diz mais coisa, e o quê.

Uma vez que absoluto também é definido como a quintessência da abstração, a essência e o termo da generalização, a nossa repulsa absoluta ao que concretamente aconteceu a Ayham, primeiramente, é uma forma de nos alienarmos justamente do indivíduo concreto Ayham, para, em seguida, mediante essa abstração, colocarmos no lugar dele qualquer adolescente que possa ser decapitado pelos mesmos motivos, senão para, em terceiro e último lugar, imaginarmos os nossos filhos, irmãos, netos, sobrinhos, e até nós mesmos, sendo decapitados pela barbárie fundamentalista dos outros.

A sordidez desse movimento, que não é fácil de aceitar, é análoga à análise que  Slavoj Zizek fez acerca da assistência humanitária que os países ricos dão aos miseráveis do terceiro mundo. Para o filósofo, tal humanitarismo nunca serviu para realmente ajudar o terceiro mundo, mas para que os próprios países ricos possam desfrutar de igual assistência no caso de futuramente precisarem. Se, como esclarece Zizek, o desejado altruísmo é mesmo apenas a melhor máscara para o indesejado egoísmo humano, a nossa indignação absoluta com a barbárie cometida contra Ayham desconsidera o próprio Ayham senão para endereçar a nossa indignação a nós mesmo, mais especificamente, ao nosso desejo de não sermos decapitados radicalmente pelo que gostamos ou acreditamos. Tal assunção é radical!

A indignação absoluta a respeito do que o E.I. fez com Ayham nos submete a uma espécie de cegueira que, entre outras coisas, faz com que esqueçamos, por exemplo, de que muitos dos nossos jovens, principalmente os que não seguem à risca o “playlist” ocidental, sofrem um tipo de violência que, embora não os decapite espetacularmente, impede-os subterraneamente de viverem as suas vidas, de modo tão irremediável como se suas cabeças tivesse sido arrancadas. Estou falando obviamente do mui ocidentalizado “bullying”, que, como nossas agências de notícia cada vez mais divulgam, leva muitos adolescente a darem cabo de suas próprias vidas, não em praça pública, mas na solidão insuportável de suas sensações de inadequação em relação ao mundo que, por violência externa, foram levadas a sentir.

Condenar absolutamente os jihadistas do E.I pelas bárbaras decapitações que promovem nos seus domínios, faz também com que nos esqueçamos de que no nosso próprio quintal brasilis acontecem decapitações tão ou mais bárbaras que aquelas. O que em 2014 se deu quase que sistematicamente no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, mas que ainda hoje acontece, seja lá mesmo, seja em outros presídios brasileiros, isto é, presos decapitando presos e usando suas cabeças como moeda em troca de celas menos lotadas, de alimentos não apodrecidos, até de fornecimento de maconha, tal barbárie, digamos assim, doméstica, não deveria ficar de fora das nossas reflexões sobre a barbárie e as decapitações do E.I. No entanto, a nossa indignação absoluta com aqueles bárbaros outra coisa não faz que nos alienar das nossas.

A nossa reflexão, todavia, não será realista se, para finalmente considerarmos as nossas barbaridades tupiniquins, tomarmos alguns do presos de Pedrinhas como os radicais bárbaros absolutos, e os decapitados enquanto vítimas absolutas. Pelo menos no caso maranhense, todos os presos eram vítimas de uma barbárie muito mais radical: o sistêmico descaso do governo daquele estado com seus cidadãos em função da manutenção de seu podre poder. E na barbaridade de Pedrinhas, ainda que sem sujar as mãos com o sangue dos presos, o bárbaro-mor era ninguém menos que Roseana Sarney, princesa da oligarquia peemedebista maranhense que, desde 1966, é encabeçada por seu pai, José.

A barbárie que Pedrinhas evidenciou, que até hoje pode ser vista pelo Youtube, e da qual nos esquecemos ao nos indignarmos absolutamente com a barbárie do E.I., pode ser ainda mais bárbara que a dos jihadistas radicais. E isso porque o governo do PMDB tocado por Roseana, que criou as condições concretas para aquelas decapitações, esconde a sua barbárie justamente no fato de ter sido eleito democraticamente, mentira todavia tornada real por conta do poderio midiático do clã Sarney, proprietário de seis afiliadas da TV Globo, de emissoras de rádio e de vários jornais. Ainda que disfarçadas, as decapitações que se seguiram do “jihadismo” oligárquico dos Sarney são tão equivalentes às que se seguem do jihadismo do E.I que ambas têm lugar indiferenciado no Youtube. Basta digitar duas palavras e, voilà, barbáries árabes ou brasileiras!

A “jihad” dos nossos Sarneys, essa histórica cruzada familiar cujo objetivo nunca foi outro senão manter o Maranhão como curral exclusivo de seus fundamentos supremos, e que, para tal, inclusive dezenas de cabeças tiveram de rolar, é mais bárbara que a jihad do E.I. no sentido de que é estrategicamente dissimulada. A barbárie do E.I. tem ao menos a virtude de não esconder de ninguém que é absolutamente tirânica. Já a maranhense, de José e Roseana, se vale do moderno vício oligárquico de se disfarçar com a toga branca da democracia. Porém, para que ambas as barbáries sejam condenadas -pois é isso que merecem!-, a estrangeira não deve monopolizar absolutamente a nossa indignação. Temos de sujar as mão, melhor dizendo, as nossas ideias com no mínimo a barbárie que rola solta no nosso quintal, ainda que a um maranhão de distância de nós.

Do contrário, se a nossa indignação com a barbárie do E.I. for absoluta, isto é, se for suprema e independente de todas as demais, outra coisa não faz que dispensar os nossos bárbaros domésticos de receberem a mesma e merecida crítica, o que pode fazer com que inclusive sejam eleitos democraticamente outras vezes. Além do que, a nossa indignação absoluta com o que aconteceu com Ayham, trazendo à nossa revolta a quintessência da abstração, aliena-nos inclusive da barbárie concreta dos jihadistas muçulmanos. Absolutamente indignados com as decapitações do E.I. findamos, de um lado, com uma revolta abstrata contra os jihadistas muçulmanos, e, de outro, com uma alienação concreta em relação à barbárie brasileira que, consequentemente, só favorece os nossos “jihadistas” pátrios.

Então, ao lermos sobre a triste morte de Ayham, a justa medida para a nossa indignação deve estar entre a apatia total -que, infelizmente, é quase generalizada-, e a indignação absoluta –que, não menos felizmente, é como as pessoas que se permitem ser atravessadas pela questão imediatamente se sentem. O que deve ficar claro é que tanto não dar bola para o que aconteceu com Ayham, quanto achar que o triste fim do adolescente é a pior coisa do mundo, outra coisa não é que agir como um bárbaro que deliberadamente deixa de ver a complexidade da realidade. E o que se deixa de ver, seja com a cegueira apática, seja com indignação absoluta, é justamente que a barbárie não é coisa somente de muçulmanos radicais, que cabeças que falam português também são decepadas por motivos radicalmente vis.

Não é só além-mar que estão os bárbaros contra os quais devemos nos indignar. As dezenas de presos decapitados em Pedrinhas pela barbárie maranhense estão aí –na nossa história, no Youtube- para não deixar os brasileiros se esquecerem disso. Mesmo que a barbárie além-mar nos aliene espetacular e absolutamente da barbárie tupiniquim, pelo menos o Maranhão, que, ironicamente, em Tupi, significa “mar grande”, ainda é o oceano-totem bárbaro suficientemente concreto para nos sacar da abstração a que nos submetemos ao nos indignarmos absolutamente com a barbárie jihadista do Estado Islâmico.

Bernie Sanders, o Al Gore da vez?

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Será o discurso ascendente do democrata Bernie Sanders, candidato à candidato às próximas eleições presidenciais americanas, “An inconvenient truth”, isto é, “Uma verdade inconveniente”, nome do documentário sobre alterações climáticas vencedor do Oscar de 2007, estrelado pelo também democrata Al Gore, que, em 2000, foi escolhido pela maioria da população na disputa presidencial, mas que, por conta da obscura estrutura eleitoral daquele país –em bom português: maracutaia- não foi eleito? Sim e não. A plataforma de Sanders, assim como a de Gore, é inconveniente aos interesses imperialistas. Aos anseios populares, entretanto, é absolutamente conveniente.

Entretanto, assim como Gore, cujo ativismo ecológico imporia limites crescentes ao voraz capitalismo americano, mas que, por isso mesmo, foi deposto peremptoriamente de sua vitória, não estará Sanders outrossim condenado à derrota, ainda que angarie a maioria dos votos populares, uma vez que seus ativismo político-econômico de espectro socialista ameaça com análoga intensidade as ambições capitalistas? Não nos esqueçamos de que Sanders, em 1981 quando eleito prefeito de Burlington, cidade do pequeno Estado de Vermont, foi chamado pelos jornais de “O primeiro prefeito socialista da América”.

Seja em 1981, seja em 2016, Sanders não faz questão alguma de se descolar desse rótulo socialista, muito embora sua plataforma seja tipicamente social-democrata. Além do mais, atualmente dividindo palanques com figuras como Donald Trump e Hillary Clinton, Sanders surfa na sua fama socialista a ponto de fazer as vezes de o Robin Hood norte-americano. No entanto, essa poderosa e revolucionária característica pode ser o seu maior calcanhar de Aquiles. Afinal, em se tratando da presidência da maior potência econômica do planeta, nada que seja verdadeiramente inconveniente aos ditames do capital, como por exemplo a frase de Sanders na sua vitória na primária de New Hampshire, qual seja, “o governo pertence ao povo, não a um punhado de bilionários”, é conveniente, a não ser em forma de utopia.

Porém, como os votos dos americanos a Gore em 2000 e as intenções de voto à Sanders em 2016 deixam bem claro, utopias são fundamentais! Embora o significado comezinho de utopia aponte para fantasia, devaneio, ilusão -o que não lhe atribui potencial revolucionário algum-, desde o século XVI, quando Thomas Moore juntou os termos gregos “Ou” (não) e “Topos” (lugar), utopia passou a dizer “em lugar nenhum”. Por isso, o que é utópico não é necessariamente inexistente, fantasioso, ilusório, mas pode ser também algo real, factível, que, entretanto, só não encontrou ainda lugar para ser. A utopia ecológica de Gore, infelizmente, não deixou de ser uma ilusão até hoje, como a marcha da destruição da natureza deixa bem claro. Já a utopia socialista de Sanders ainda é fiel à definição de Moore, e, quem sabe, pode encontrar lugar no mundo. Aliás, já não está encontrando?

Ora, se o real da política norte-americana –mas não só o dela- é o lugar de doações empresariais milionárias às campanhas políticas, a recusa à essa vil fonte atuada por Sanders, que só aceita doações de cidadãos, e no valor máximo de US$ 3, outra coisa não é que uma utopia que encontrou lugar para existir. Outras propostas de Sanders, que a princípio soam utópicas, mas que, oxalá, podem encontrar lugar na realidade, são: resgatar a democracia das mãos dos milionárias e lobistas; aumentar impostos para os mais ricos; fazer Wall Street bancar o ensino gratuito nas universidades públicas; quebrar os grandes bancos em instituições menores; criar imposto à especulação financeira; instituir um sistema público universal e gratuito de saúde; legalizar imigrantes; combater o preconceito e a discriminação às mulheres, aos negros e às pessoas LGBT; só para citar algumas ideias que, para o $istema, é melhor que sejam utopias no sentido corriqueiro do termo.

Entretanto, ainda que a utopia de Sanders pareça um devaneio, é exatamente ela que a população americana mais está querendo que encontre lugar de existência. Nessa onda utópica, Sanders catalisa como nenhum outro candidato a insatisfação popular, dando novo fôlego à velha luta pelos direitos civis que brilhou nos anos 1960, mas que hoje está tão ofuscada, obesa e sedentária quanto o capitalismo precisa que ela esteja. Para animar essa apatia cética, Sanders tenta fazer um novo movimento de massa com o povo americano para produzir uma revolução política que dê cabo da $órdida $ituação que $itua centralmente os interesses capitalistas e que $itia perifericamente os interesses populares.

Agora, não deverá nos surpreender se Sanders tiver a maioria dos votos populares e ainda assim não assumir a presidência dos EUA, uma vez que, como Gore exemplifica melhor que ninguém, a escolha do presidente dos Estados Unidos, na verdade, se dá nas secretas reuniões dos colegiados eleitorais americanos, que outra coisa não devem ser que “lounges” absolutamente gentrificados nos quais petrolíferas e bancos privados decidem verticalmente o que e quem é mais conveniente para eles. Assim como ativismo ecológico de Gore não era conveniente para os peixe$ grande$ de 2000, o ativismo social de Sanders não deve ser menos inconveniente para os lobo$ voraze$ de 2016. Há 16 anos, a virtude ecológica de Gore “foi deposta” pelo vício bélico-imperialista de Bush filho, o idiota. E hoje, a virtude socialista de Sanders sucumbirá diante do vício xenófobo-liberal de Trump, o palhaço?

Foi porque Al Gore tinha em mãos a mais pura verdade –a necessidade da preservação da natureza a despeito dos interesses econômicos- que ele foi considerado absolutamente inconveniente pelo $istema de há década e meia. O fato de não ter sido empossado apesar da maioria de votos populares é a prova cabal e antiecológica disso. Sanders, por sua vez, e a sua popularíssima verdade social-democrata, são outrossim inconvenientes ao $istema, cuja sordidez nos leva a crer inclusive que se o atual Robin Hood americano findar realmente com a faixa presidencial no peito, é porque ele não é tão verdadeiro nem tão Robin Hood assim. Se Bernie Sanders, em troca, findar como Gore, isto é, nas próprias palavras de Gore, como o “ex-futuro presidente dos Estados Unidos da América”, então teremos certeza de que ele “era” absolutamente verdadeiro e conveniente.

 

Pensando fracamente a transexualidade infantil

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Em 28 de janeiro de 2016, a justiça brasileira, pela primeira vez, determinou a mudança de nome e de gênero de Luiza, de 9 anos, antes chamada de Leandro. A menina Luiza se sentia “aprisionada” no corpo do menino Leandro e, com a compreensão de seus pais e a autorização da justiça, pôde se libertar. A metáfora da prisão é bastante usada por transexuais para expressarem o que sentem a respeito de seus corpos biológicos. Como, entretanto, pensar a questão da transexualidade, ainda mais a infantil, sem ficar circunscrito no insistente fundamento que diz que o sexo biológico de uma pessoa é e deve ser mais determinante do que o sexo psicológico? E uma vez em ruínas tal fundamento, como e o que pensar sobre a transexualidade?

Questão delicada, a transexualidade, por um lado, é oprimida pelos fundamentalismos biológico, social e religioso de uns, e, por outro, sequer pensada pelo medo de errar ou pelo ceticismo de outros. Um caminho intermediário para pensarmos a transexualidade entre o radicalismo e a apatia é o “pensamento fraco” desenvolvido pelo filósofo italiano Gianni Vattimo: uma atitude contemporânea que aceita o “erro” do pensamento, senão porque, para o filósofo, é a noção de verdade que se deve adequar à dimensão humana, e não o contrário. De característica libertadora, o pensamento fraco se sustenta na ideia de que pensar é estar ciente de que nossos pensamentos são apenas meios, sujeitos ao erro, e não fins certos e absolutos. Ou seja, para Vattimo, o pensar não deve almejar findar como novos fundamentos, mas ser mobilidade cognitiva ativa a nos afastar constantemente do fundamentalismo.

Pensando fracamente acerca da transexualidade, portanto, não corremos o risco de “aprisionar” os transexuais com os nossos pensados, pois a ideia é que o pensamento, e a própria filosofia, o seu meio excelente, tragam ideias novas que nos libertem. E no caso da transexualidade, a nós e aos transexuais dos resistentes preconceitos. Partamos então, fraca e cuidadosamente, senão para o transcendermos, do fundamento que diz que transexual é todo indivíduo cuja identidade de gênero difere da designada no seu nascimento pelo seu sexo biológico.

No caso de Luiza, seus pais, inicialmente, não sabiam o que pensar sobre a transexualidade de Leandro. Então, procuraram ajuda com um pastor evangélico, cuja prescrição, não é de surpreender, foi a de reprimir ao máximo a conduta da criança enquanto ela estivesse acordada, e, enquanto dormisse, proferir orações ao pé do ouvido dela, pois assim “expulsariam o demônio de seu corpo”. Fundamentalismo radicalíssimo! Porém, depois de alguns meses de “tratamento religioso”, a feminilidade do garoto só fazia acentuar, e, colateralmente, nas palavras do pai do até então Leandro, “de repente, tínhamos ali um filho em depressão, agressivo, piorando na escola”.

Diante da ineficácia dos verticais fundamentos religiosos, os pais de Luiza encontraram no documentário americano Meu Eu Secreto uma explicação mais horizontal sobre a questão da transexualidade infantil. Doravante, dentro de casa, Leandro podia ser Luiza, andar de calcinha e vestido, brincar de boneca, etc. Entretanto, na rua e na escola, Luiza deveria ser Leandro. A problemática e esquizofrênica dupla personalidade a que os pais sujeitavam o filho-filha, todavia na tentativa de encontrar uma solução para o problema, chegou no limite quando, no dia em que um amigo da família visitou-os sem avisar, viram Luiza se esconder amedrontada atrás de uma churrasqueira até que o amigo fosse embora. Deram-se conta de que estavam criando um problema a mais para o filho, e não ajudando-o a libertar-se do que já tinha.

Então, os pais de Leandro procuraram o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, cujo diagnóstico apontou que “a personalidade da criança, seu comportamento e aparência remetem, imprescindivelmente, ao gênero oposto de que biologicamente possui, conforme se pode observar em todas as avaliações psicológicas”, e que, portanto, para a saúde do garoto, era recomendado que Leandro fosse Luiza dali para frente. O pai de Luiza, sargento aposentado do Exército, vibrou de emoção. A mãe declarou: “a felicidade é muito grande, já imagino quando ela for arrumar emprego ou casar vai ser tudo mais fácil”.

A transexualidade, quando experienciada por uma criança, exige mais do nosso pensar, uma vez que a certeza de um adulto sobre a inadequação de seu corpo biológico em respeito à sua realidade psicológica é bem mais compreensível. Isso fica claro no filme A Garota Dinamarquesa, que conta a história do primeiro transexual da história, Lili Elbe, antes Einar Wegener, um homem casado e tranquilo com sua identidade de gênero masculina que, aos poucos e diante da audiência, explica sensivelmente a sua transição transexual. Já a transexualidade infantil é mais difícil de ser compreendida, uma vez que a incipiente sexualidade das crianças nos deixa como que sem a metade da história.

Porém, em relação à transexualidade, seja em adultos, seja em crianças, pensemos, como Vattimo, isto é, fracamente, pois enquanto pensarmos fortemente, como materialistas ou religiosos ferrenhos, se os transexuais apenas submetem ou não o real às suas idealidades, ou ainda se afirmam ou não que a natureza ou Deus “erraram” com eles, apenas deixamos de entender a profundidade da questão transexual que os atravessa. A complexidade da questão fica mais clara quando Einar, de A Garota Dinamarquesa, perguntado por um amigo se, ao se submeter à até então inédita cirurgia de mudança de sexo para se tornar Lili, estaria corrigindo um erro da natureza. Então, Einar responde: “a natureza já acertou comigo, fez-me mulher por dentro. Agora é só tirar o disfarce masculino que esconde Lili”.

Aqui, contudo, o nosso pensamento fraco precisa perguntar se o fato de a primeira transexual da história não ver erro algum no fato de ela, mulher, ter nascido no corpo de um homem, mais ainda, dizer que a natureza acertou em tê-la feito mulher com um corpo-disfarce masculino, não é apenas um malabarismo de ideias no sentido de se alienar da complexidade da questão. Outrossim fracamente, o nosso pensamento deve considerar que Einar-Lili, com seu modo peculiar de encarar a própria condição, faleceu um dia depois de realizada a sua cirurgia transex. Dividida em duas complexas etapas, a mudança de sexo aventurada na Dresden da década de 1920 exigia alguns meses de recuperação entre a remoção do órgão masculino e a construção do órgão feminino. Einar, já sem pênis, e apressado para ter uma vagina e ser definitivamente Lili, porém, fez malabarismo com as prescrições médicas, encurtando o prazo estabelecido, o que acabou lhe custando a vida. Lili, apressada, infelizmente, existiu por um único dia. O filme, entrementes, faz-nos achar que esse único dia valeu a pena.

Malabarismo ideal ou não, o nosso pensamento fraco sobre a transexualidade de Luiza deve se curvar compreensivamente diante da força do pensamento dela, qual seja: “agora, não vou ter mais problemas nas chamadas na escola. Às vezes me chamavam pelo nome masculino, no postinho de saúde e nas viagens, e era sempre era aquele zum zum zum quando olhavam para mim e para o meu documento. Eu me sentia muito mal, mas agora isso vai mudar.” Todavia, pensar fracamente sobre a transexualidade de Luiza não é calar diante da realidade que doravante se imporá; não é deixar de pensar no que o ato de mudar de nome e de gênero traz à vida da própria Luiza. O pensamento fraco, antes, deve pensar no sentido de compreender como se dará a realidade da nova menina a longo de sua vida, afinal, a questão principal não terminou na decisão judicial que fez de Leandro Luiza.

Para a menina que agora ela é ser uma mulher, terá de se submeter sistematicamente à medicamentos e hormônios que, de um lado, impeçam que na puberdade a sua natureza masculina aflore, e, de outro, no restante da vida, incentivem a natureza feminina que seu corpo biológico sozinho não expressará. Sem esquecer ainda a cirurgia de mudança de sexo na qual o caminho que ela a partir de hoje trilha provavelmente desembocará. Outra coisa importante, o seu atual desejo de, no futuro, ter filhos, não se dará conforme quem nasce com corpo de mulher, mas terá, necessariamente, de se deparar com a questão da adoção. Em suma, o atual pensamento de Luiza, diante do qual nenhum pensamento deve ter mais força, qual seja: “agora me sinto uma menina inteira”, terá de, no entanto, mais hora menos hora, encarar o forte desafio de ser “uma mulher inteira”, tarefa bem mais árdua, pois, para além do bem e do mal, Luiza outra coisa não desafiará senão a sua natureza biológica.

São justamente questões como estas que o pensamento fraco deve trazer à tona e manter na arena de pensamento, tanto na da menina, quanto na dos pais dela, quanto ainda na da sociedade como um todo. Longe de querer destruir niilisticamente a presente vitória transexual de Luiza, pensar fracamente outra coisa não é que, através do pensamento, dar completude a essa vitória, não deixando nada de fora, compreendendo não só a delícia, mas também a dor que qualquer ato comporta. Do contrário, se à Luiza for colocado que a partir de agora todos os problemas referentes à sua sexualidade e à sua escolha de gênero estão resolvidos, esse pensamento outra coisa não é que uma mentira de forte pretensão fundamentalista.

Valendo-me do erro que o pensamento fraco vattimiano comporta no sentido de que as verdades se adequem à dimensão humana, arrisco-me a pensar a atitude dos pais de Luiza a partir da minha experiência pessoal. Pois bem, eu sou um homem adulto e homossexual. Na minha infância, porém, só vivia a minha homossexualidade imaginando-me menina, afinal, só assim estaria conforme os desígnios de Deus e da minha família. Assim eu pensava, obviamente, por conta dos tacanhos referenciais que meus pais haviam me fornecido. Não obstante, adolescendo, e, mais ainda, tornando-me adulto, isto é, conhecendo o mundo para além dos estreitos limites que até então me continham, percebi que eu não precisava ser mulher para me realizar sexualmente. No meu caso, sem libertar-me da minha masculinidade, libertei-me do que tolhia a minha homossexualidade e da ideia de que só sendo uma menina eu poderia realizá-la.

Sem querer impor meus fundamentos à questão transexual de Luiza, meu pensamento fraco precisa perguntar -todavia aceitando a crítica de ser forte demais, fundamentalista até- se o fato de os pais de Leandro terem solicitamente viabilizado a vinda de Luiza ao mundo não foi o modo de eles deixarem de lidar com a homossexualidade do filho. Assim como, vulgar e preconceituosamente, tem-se que a bissexualidade é “menos grave” que a homossexualidade, é preciso perguntar fracamente se a transexualidade latente de Luiza não foi a solução para a incapacidade dos pais de lidarem com a homossexualidade manifesta de Leandro. Seja no caso de Luiza, seja no caso de qualquer outra criança que a princípio esteja expressando um gênero que não o seu biológico, é preciso investigar se a transexualidade é uma realidade legítima e imperiosa ou se, antes, é apenas um modo transitório-acessório de se viver uma homossexualidade que ainda não encontra via de expressão.

Não podemos deixar de trazer Freud à discussão. Para o pai da psicanálise, o que toda criança deseja, mais que tudo precisa, é de limites, pois é muito angustiante para elas não saberem o que não podem fazer. Então, tentando tudo o que podem, conhecem, através da reprovação ou aprovação de seus pais, o que realmente podem e não podem no mundo. Esse conhecimento funciona como uma espécie de alívio: regras! Caso não as conheça na infância, o adulto as buscará, não mais nos seus pais, mas no mundo, até que alguém lhe diga o que ele pode e o que não pode. Sendo assim, no caso de a transexualidade de Luiza se enquadrar nessa “testagem” que, para Freud, é intrínseca à infância, seus pais não atenderam o desejo de Leandro de conhecer certos limites. Claro, o nosso pensamento fraco deve tratar com igualdade dialética a possibilidade de a transexualidade de Luiza nada ter a ver com busca por limites, mas ao contrário, por liberdade. Nesse caso, seus pais lhe deram o que ela mais precisava.

Mais uma coisa a respeito da qual o nosso pensamento fraco não deve se calar: a concessão, às crianças, dessa dimensão assaz moderna chamada Sujeito: um universo pessoal em cujo centro, feito um Sol-Deus-todo-poderoso, jaz o Eu e a sua miríade de desejos. Como vários historiadores apontam, no passado, as crianças não eram consideradas Sujeitos. Antes, deveriam viver à sombra dos exemplos dos Sujeitos-pais, até que um dia, já adultos e Sujeitos, pudessem decidir os rumos de suas vidas. Hoje em dia, porém, parece que as crianças são mais Sujeitos que os adultos. Para muitos pais, é como se um universo inteiro fosse solapar sempre que seus filhos são contrariados ou se deparam com alguma limitação ou frustração. Os pais contemporâneos, contudo, se esquecem de que, para seus filhos, e até para eles mesmos, enfrentar circunstâncias adversas sempre foi mais um virtuoso aprendizado do que o fim do mundo.

Então, a última pergunta que meu pensamento fraco lança aos pais de Luiza é a seguinte: qual seria o problema de terem deixado Leandro conviver mais demoradamente com suas inquietantes questões particulares, todavia amando-o e ouvindo-o, em vez de, ainda na infância, época em que, como disse Freud, mais se quer conhecer limites do que transgredi-los, terem resolvido a questão excluindo o problemático Leandro da jogada? Porventura arruinariam a vida do filho caso tivessem explicado que ele-ela era menino E menina ao mesmo tempo; que nenhuma das duas condições estava errada ou precisava ser corrigida com pressa, já na infância? Uma vez Luiza, não está Leandro praticamente alienado de vivenciar a questão crucial que é só sua, que nem seus pais nem a sociedade na qual Luiza pensará por ela? Se estas minhas perguntas parecem descabidas, fortes demais para o pensamento fraco a que me propus, é por que parto da minha homossexualidade, que, na infância, levou-me a desejar ser menina, ideia que, entretanto, com o tempo mostrou-se mais uma fuga do problema do que seu atravessamento. Aqui, no entanto, meu pensamento fraco se autocritica: a diferença entre Luiza e eu é que ela é transexual, eu, homossexual.

Não há dúvida de que pais e sociedade aceitarem e se curvarem diante do fato de a sexualidade psicológica de um indivíduo, até mesmo a de uma criança, não ser conforme a sua sexualidade biológica é uma evolução imensa. Que a biologia deva imperar é apenas um problemático e insustentável fundamento. Agora, que a dimensão psicológica não deva ser questionada, mantida na arena de pensamento, são outros quinhentos. E para dialogar com ela, sem tolhimento nem desrespeito, o pensamento fraco de Gianni Vattimo é o melhor método, uma vez que aceita estar errado, e, ademais, não visa destruir nem substituir as coisas acerca das quais pensa, mas, ao contrário, busca compreendê-las. Só assim o pensamento pode fazer com que seus objetos sejam tudo o que são. Sobre a transexualidade em geral, e especialmente sobre a infantil, mais virtuoso que, de um lado, o fundamentalismo radical, e, de outro, o ceticismo apático, o pensamento fraco!

O tal do próximo e o nosso egoísmo

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“Ame o teu próximo como a ti mesmo”, disse Mateus. Todavia, quem é esse próximo? Apesar da abstração com qual os objetos da Bíblia estão envolvidos, o “amor” e o “próximo” de que fala a Escritura são coisas bem concretas. Do “amor” não temos dúvida, uma vez que amamos inclusive coisas odiáveis, como o dinheiro, por exemplo. Já a respeito do tal “próximo” não temos tanta certeza de quem ele é. Ao lermos a passagem bíblica resta a ideia de que esse próximo é um ser tão transcendente quanto Deus, afastado de nós por um universo inteiro. Porém, imanentemente, devemos entender que esse próximo é, como o significado da palavra diz, quem está próximo de nós.

Porém, de que forma amar o próximo como a si mesmo em um mundo no qual estamos, sete bilhões de pessoas, demasiadamente próximos uns dos outros? Antes, temos capacidade para amar, ou somente para desejar coisas para nós mesmos, como o dinheiro, todavia chamando indevidamente o nosso egoísmo hedonista de amor? Ou, ainda que tenhamos uma ideia adequada de amor, não conseguimos amar o próximo como a nós mesmos simplesmente porque não amamos a nós mesmos? Seria a nossa indiferença em relação ao próximo o cumprimento estrito do preceito de Mateus?

Pois bem, como, acima, a abstração bíblica foi criticada, eis um exemplo concreto. Eu estava caminhando pela movimentada Av. N. Sra. De Copacabana quando vi um homem muito velho, negro, imundo, com um pé bastante machucado, sentado no chão molhado da chuva e esticando a mão às pessoas que passavam, pedindo alguma coisa, a qual, nem as pessoas nem eu queríamos saber o que era. Três quarteirões depois, porém, eu não conseguia deixar de pensar naquele pobre senhor. Havia em mim vontade de ajudá-lo. Todavia, pensei eu, o que eu poderia fazer?

Na minha cabeça, ele precisava de, no mínimo, um prato de comida, um copo de café, um banho, roupas limpas, remédio para o seu pé machucado, uma casa até. Agora, como eu, sozinho, poderia resolver todos os problemas dele? Todavia, a ideia de que a felicidade toda dele dependia da minha ajuda só fez com que eu me alienasse da possibilidade de tentar ajudá-lo. Por isso eu, a exemplo das demais pessoas, fiz de conta que ele não estava ali. Mesmo assim, algo em mim que eu ainda não quero nomear fez-me dar meia volta e ir até ele para perguntar o que ele estava precisando.

Qual não foi a minha surpresa ao ouvi-lo dizer que queria apenas ajuda para levantar. Simples assim! Então, sem pestanejar, desvencilhei-me do imediato nojo que socialmente fui ensinados a ter de quem não toma banho e mora na rua e passei meus braços sob os dele para colocá-lo em pé. Ele sorriu, agradeceu e, apoiando-se num cabo de vassoura que fazias as vezes de bengala, seguiu seu rumo. Do mundo de necessidades que eu a priori achei que aquele senhor tinha, ideia todavia errada que só fez com que eu o ignorasse da primeira, aquele meu próximo estava apenas precisando levantar.

O “próximo”, que na Bíblia sempre me pareceu tão abstrato, mostrou-se absolutamente concreto e cognoscível. Além de estar fisicamente próximo –estar diante de mim e viver no mesmo bairro que eu-, o que já deveria ser suficiente para eu me importar com ele, quiçá amá-lo, o fato de eu não conseguir tirá-lo da cabeça alguns quarteirões depois deixou claro também quão metafisicamente próximo aquele próximo estava de mim. Então, dando-me conta dessa dupla proximidade, não foi nada difícil amá-lo como a mim mesmo, pois, caso eu quisesse apenas levantar e não pudesse, o amor de alguém por mim seria nada outro que uma ajuda para levantar-me.

Assim como aconteceu comigo, será que “amar o próximo como a si mesmo” só se concretiza mediante uma espécie de egoísmo? É para sermos amados pelos outros como eles amam a si mesmos que devemos amá-los como a nós mesmos? O nosso próximo só será amável na medida em que, do nosso lado, formos amados por ele enquanto o próximo dele? Agora, se não fôssemos intrinsecamente egoístas, se amássemos uns aos outros espontânea e naturalmente, Mateus precisaria ter cunhado o seu preceito?

Ora, se a natureza dotou-nos de amor próprio, e também do seu exagero, qual seja, o egoísmo, não é porque ela errou, mas porque não existiríamos sem esses afetos. Porém, se fôssemos absolutamente egoístas, desejando a ruína dos outros para que toda a natureza fosse só nossa, valeria a pena existir nessa satisfeita e abastada solidão? Obviamente não, pois a felicidade dos outros também constitui a nossa, assim como a nossa, a dos outros. Então, sem deixar de sermos egoístas, o que, creio eu, é impossível fora da ficção bíblica, esse afeto demasiado humano claramente reconhecido como amor próprio tem escondido em si a receita do amor ao próximo.

Aqui reencontramos o “pharmakon” grego, conceito que diz que a diferença entre veneno e remédio está na dose. Se o egoísmo nos aliena de amar o próximo, é porque sua dose está errada, e então é venenoso. Se, em troca, é capaz de levar-nos a tal amor, sua dose está certa, e aí nosso egoísmo é remédio. Como disse o filósofo Spinoza, nada há na natureza que, em si, seja bom ou mau. Somos nós que fazemos com que as coisas e os afetos recebam esses predicados. A prova está em que as mesmas coisas são boas para uns e más para outros. Sendo assim, tampouco do egoísmo e do amor pode ser dito que são bons ou maus em si mesmos. Antes, suas bondades ou maldades são aquilo que fazemos deles.

Desse modo, se o bem e o mal são produções exclusivas humanas, todavia a partir de coisas e afetos que existem natureza, mas que, nela, não são nem boas nem más, cabe a nós sermos demiurgos virtuosos e fazermos com que as nossas coisas e os nossos afetos, como, por exemplo, o egoísmo e a sua cria mais famosa, qual seja, a alienação acerca das carências dos nossos próximos, possam ser bons para nós, e não apenas maus.

Sumamente, não precisamos de um Deus para dar o que nos falta, como se o bem e a virtude jazessem nalgum céu árduo de alcançar. Basta um de nós, todavia apelidado de apóstolo, para lembrar-nos de que o amor próprio pode e deve ser convertido em amor ao próximo. Isso porque temos em nós todo o amor de que nós e os outros precisamos. Da mesma forma -e isso é mais difícil de entender- temos todos o egoísmo de que também precisamos, seja para seguirmos existindo diante do egoísmo dos outros, seja para sermos amados egoisticamente pelo amor próprio dos outros, uma vez que, como disse o Poeta, “é impossível ser feliz sozinho”. Ou seja, a nossa felicidade precisa da felicidade do nosso próximo.

Machismo folião

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Carnaval é só alegria! Isso, porém, é verdadeiro apenas abstratamente, pois concretamente, como o carnaval de rua carioca -mas não só este- tem deixado bem claro é também lugar de desrespeito, assédio sexual e machismo. Impressiona, em pleno 2106, o número de mulheres que são sitiadas pelo “desejo folião” de alguns homens. Algumas delas, por recusarem um simples beijo, são achincalhadas; outras, pior ainda, agredidas fisicamente, deixando a folia com um olho roxo, como várias fotos-redes-sociais têm mostrado –e, concretamente, uma amiga pessoal. Em relação a isso, duas perguntas não podem deixar de serem feitas. Que querem estes homens regredindo os pouquíssimos passos que os homens em geral deram no sentido da igualdade, liberdade e dignidade das mulheres? E também, que querem as mulheres prestigiando uma festividade que não lhes garante o devido prestígio?

A lamentável impostura dos machistas-de-bloco-de-carnaval não deveria impressionar quando vemos que, de acordo com pesquisa feita pelo Instituto Data Popular em janeiro de 2016, 61% dos homens afirmam que uma mulher solteira que vai pular Carnaval não pode reclamar de ser cantada e, mais grave ainda, 49% disseram que bloco de Carnaval não é lugar para “mulher direita”. Pelo jeito, também não é lugar para “homem direito”, pois, por mais desnecessário e patético que seja definir “direito”, seja para homem, seja para mulher, assédio e agressão física não deveriam estar na definição de nenhum dos dois. A fálica insistência masculina na expressão-cabresto “mulher direita”, entretanto, parece apenas querer dispensar os próprios homens que a usam de, eles sim, agirem “direito”.

Embora o machismo não se restrinja apenas ao carnaval, na folia carnavalesca ele é escancarado. Por quê?

Segundo historiadores, o carnaval como o conhecemos surgiu no século XI com a invenção da Semana Santa pela Igreja Católica. Como a Igreja ditava padrões éticos e morais muito rígidos, as bacanais e saturnálias eram proibidas, principalmente durante os quarenta dias que antecediam a morte e a ressurreição de Cristo. Então, nos últimos dias antes da abstinente Quaresma, as pessoas aproveitavam para fazerem tudo a que “tinham direito”. O Carnaval, portanto, desde seu início comportou a tensão entre os prazeres da carne e a salvação da alma. Evento paradoxal, o carnaval é marcado, por um lado, pelo “adeus à carne” que o próprio nome em latim “carnis levale” denota, uma vez que “levale” significa privação, e, por outro, pelos prazeres da carne, atinentes a outra expressão latina que também compete no termo “carnaval”, qual seja, “carnis valles”, com “valles” significando prazeres.

Diante dos rígidos ditames do Deus Cristão, o carnaval era a oportunidade de as pessoas agirem livremente, como se ainda fossem pagãs, cultuando, ainda que por poucos dias, os seus demônios particulares. Não é à toa que Momo, o rei da festa, entregava a chave da cidade à Satanás, senão para que este reinasse, por parcos dias, sobre as pessoas –hoje em dia, ironicamente, Momo a entrega ao prefeito da cidade! Nas palavras de Mateus, “Satanás é tão astuto que traz para todas as culturas e povos um modo de ser adorado”. E o maior evento desse seu “modo” é o Carnaval! Porém, para não permitir que o mundo se tornasse um inferno sempiterno, no último dia antes da Quaresma, diz-nos o santo, Jesus ordenou: “Retira-te, Satanás”. A astúcia da Igreja esteve em, uma vez Deus não ter poder para aniquilar o demônio, ter “agendando”, anualmente, um curto reinado-recreio a Satanás, senão para que nessa estreita agenda o mal, regozijando-se, gastasse sua energia, de modo que, no restante do ano, Satanás vivesse uma ininterrupta quarta-feira de cinzas ressacosa.

Separados mil anos da Cristã origem carnavalesca, ademais por uma Modernidade na qual, avisou-nos Nietzsche, Deus morreu, deuses e demônios, melhor dizendo, a tensão entre bem e mal, não obstante, segue vivíssima dentro de nós. Quem, atualmente, em sua sã consciência, não concorda que o machismo é um mal, e sua superação, um bem absolutamente elevado? Todavia, os nossos machistas-de-bloco-de-carnaval, que ao longo do ano agem -ou no mínimo se sentem obrigados a agir– como se as mulheres não devessem ser sujeitadas a eles, mas que “no bloco” fazem justamente o contrário, estes fazem como os antigos cristãos que, inescapavelmente sujeitados ao bem divino, aproveitavam o átimo pagão anual para cultuar o mal que resistentemente jazia neles.

Entretanto, para não se deparar com o seu próprio mal, no nosso caso, o seu machismo assedioso, o machista-de-bloco sustenta, de um lado, a existência de uma coisa chamada “mulher direita”, e, de outro, que “bloco de carnaval não é lugar de mulher direita”, para, por fim, concluir, num silogismo absurdo, que aquelas mulheres que ele encontra nos blocos não são “direitas”, e que, portanto, não precisa respeitá-las. Essa estratégica ilogicidade visa justamente abrir, ainda que efemeramente, ao modo da festa pagã Cristã, um espaço onde o machão não precise deixar de ser machista, onde a voz de sua carne possa e deva falar mais alto que a da razão e a das mulheres, uma vez que no restante do ano ele certamente não gozará de tamanha, todavia indevida liberdade.

Então, às perguntas iniciais, quais sejam: ‘que querem estes homens regredindo nos pouquíssimos passos que os homens em geral deram no sentido da igualdade, liberdade e dignidade das mulheres?’, e, ‘que querem as mulheres prestigiando uma festividade que não lhes garante o devido prestígio?’, as respostas são as seguintes: os machistas-de-bloco-de-carnaval, na verdade, querem dizer que, embora aceitem superficialmente a igualdade entre eles e as mulheres, subterraneamente, seus demônios lhe dizem o contrário. São estranhamente sinceros e corajosos no carnaval, porém, mentirosos e covardes o resto do ano. Já as mulheres que, longe de deverem deixar de “brincar o carnaval” para não serem desrespeitadas, levam suas igualdades e dignidades para a avenida e lá são desrespeitadas, achincalhadas, arroxadas, estas mulheres, lá, outra coisa não devem querer senão o respeito que ainda não têm.

Assim como os homens –e os machistas odeiam enxergar isso-, as mulheres são muito corajosas, e deixam isso bem claro inclusive ao não se privarem do carnaval apesar dos riscos que correm. A coragem carnavalesca delas, entretanto, é absolutamente superior, pois, diante da coragem maléfica dos machistas-de-bloco, a coragem delas outra coisa não sustenta que o bem, que, para nós, é a liberdade de ir e vir, de beijar ou não beijar e, sobretudo, a dignidade de uma natureza não violenta que não soca olho alguém por conta de um beijo negado. Embora o maniqueísmo Cristão entre bem e mal esteja desacreditado, pois desde a modernidade sabemos que bem e mal não existem na natureza senão relativamente, em relação ao machismo o mal ainda não deve deixar de ser identificado, e, em relação a igualdade entre homens e mulheres, o bem ainda é seu melhor predicado.

Um brinde à filosofia de botequim

Filosofia significa, literalmente, amor (philia) à sabedoria (sofia). Ao contrário do que os doutores, pós-doutores e pós-pós-doutores tentam nos convencer, “filósofos nunca foram sábios, são apenas perguntadores, provocadores dispostos à aventura do conhecimento”, relembra-nos a filósofa Marcia Tiburi. Então, por mais que a filosofia, desde a modernidade, seja refém da Academia, esse não é e não deve ser o seu único lugar. Entretanto, quando alguém alheio à Torre de Marfim Acadêmica ama o conhecimento, pergunta-o, provoca-o, ou seja, filosofa, muitos dizem que se trata apenas de vã filosofia, ou o que é mais pejorativo ainda, filosofia de botequim. Por que tamanho preconceito?
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Desqualificar filosofias alternativas, “botequinescas”, é querer fazer desaparecer que “a filosofia era em seu início mais que um desejo de saber: ela existia como circunstância do “estar junto” de homens (pessoas) que compartilhavam o mesmo ideal da contemplação”, diz Tiburi. Ora, Sócrates filosofava ao vivo, junto de outros homens, caminhando, bebendo vinho, olhando a paisagem… Vivendo e filosofando! Afinal, aponta Tiburi, “o mundo e a vida são para nós o que podemos conhecer”. Na verdade, foi com Platão que a filosofia passou a ser uma solitária conversa da alma consigo mesma.
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Sócrates, ao contrário de Platão e de todos os que vieram depois, nunca escreveu uma linha do que filosofou. Era no diálogo com os outros que sua filosofia nascia, não para morrer no esquecimento, obviamente, visto que seu pensamento vive até hoje. Os acadêmicos, todavia, retrucarão seguros de si: se não fosse Platão ter escrito sobre a filosofia socrática não teríamos conhecimento dela! Contra estes, nas palavras de Tiburi, para o próprio Sócrates “a escrita era mera documentação, mera história, não filosofia. A filosofia não era algo que se realizava pelo texto”.
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Com efeito, conta-nos Tiburi, foi o “endeusamento” do livro pela tradição cristã medieval que deixou de herança para a tradição filosófica o texto escrito como lugar da verdade. Entretanto, a crença de que a filosofia devia ser escrita filosófica, além de levar à separação entre filosofia e realidade, separou também a filosofia de si mesma ao separá-la de seu modo primordial. Como se isso não bastasse, a modernidade filosófica, enquanto filosofia estritamente textual, acadêmica, finalizou burguesamente a cisão entre intelectuais e proletários, tão oportuna àqueles e tão desfavorável a estes.
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E não adianta dizer que os intelectuais tem grande conhecimento e que os proletários não, pois, de acordo com Tiburi, “filosofia é a liberdade do pensar; e que pensar começa com o pensar em nada”. Nietzsche mesmo, em pleno século XIX, dizia que filosofia outra coisa não era senão autoconfissão. E todos temos muito a confessar, seja na Academia, seja no botequim! Todavia, a Academia, por meio de sua filosofia exclusivista, quer mesmo esconder que qualquer um pode fazer a pergunta fundamental, qual seja, nas palavras de Tiburi: “a quem sirvo enquanto não acordo para o meu próprio potencial hermenêutico, ou seja, para a minha habilidade em interpretar o que há; em outras palavras, o que posso pensar e dizer sobre algo?”; sobre o mundo?; sobre a vida?
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Porém, onde podem filosofar os proletários, os bêbados, os leigos? Na Academia-bunker da “Intelligentsia”? Nas doze horas dentro da fábrica ou nas poucas horas em que dormem exaustos da fábrica? Obviamente não. A oportunidade de os “comuns” perguntarem-se e provocarem-se uns aos outros em função de um conhecimento que lhes falta, mas ao qual amam, é enquanto caminham juntos da cama ao posto de trabalho, quando fazem suas refeições juntos ou quando bebem em volta de uma mesa de bar nas suas parcas horas livres. É em circunstâncias banais como estas, na verdade, que vive o “o que é?” desacademicizado, que, no entanto, só não é considerado filosofia pela intelectualidade porque esta ainda deseja preservar a sua vã superioridade.
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Academia X fábrica, Academia X botequim, ou seja, Academia X vida enquanto manutenção da desigualdade social. No entanto, também desigualdade da filosofia em relação a ela mesma, pois, desqualificando as “filosofias de botequim”, a intelectualidade apenas nubla a universalidade da própria filosofia. Portanto, à moderna, acadêmica e burguesa filosofia que, com Descartes, nasce do “penso, logo existo” deve ser contraposta a sempiterna, leiga e sem classe filosofia que precisa de um único axioma para filosofar, qual seja, nas palavras de Márcia Tiburi: “Penso, logo penso”. Afinal de contas, diz a filósofa, “a filosofia é algo ‘em comum’ desde os seus primórdios”. Brindemos e filosofemos ao mesmo tempo! E que melhor lugar que o botequim para tal?

Deus, a ideia ecológica

Deus existe? Para o crente, sim. Para o ateu, não. Já para o agnóstico, impossível dizer que sim nem que não. Porém, uma coisa nenhum dos três pode negar: a existência da ideia de Deus, a partir da qual, aliás, uns podem crer nEle, outros, negá-Lo, e outros ainda serem céticos a Seu respeito. Portanto, antes de sabermos se Ele existe ou não, devemos prestar atenção na ideia que temos dEle para sabermos se esta ideia convém ou não a um Deus existente. Caso contrário, crer, descrer ou ter dúvida a Seu respeito é só uma postura vã diante da nossa própria ignorância acerca do teor de uma ideia nossa. E uma vez ignorantes em respeito à maior ideia que podemos ter, qual seja, a de Deus, tudo o que é igualmente imenso, por exemplo, a natureza, também é ignorado. E como temos sido ignorantes em relação a ela!

Preterir a existência de Deus em função de Sua ideia, entretanto, não é tarefa fácil. René Descartes, filósofo que inaugurou o pensamento moderno, não escapou de colocar a carroça na frente dos bois e privilegiar a existência de Deus em detrimento da ideia dEle. Depois de metodicamente excluir qualquer certeza de sua mente, para ficar com apenas uma, a respeito da qual não tinha como haver dúvida, qual seja, a de que ele, Descartes, pensava, logo existia, o filósofo quis saber se as suas demais ideias, das quais não tinha a mesma certeza, eram verdadeiras ou falsas. Sua solução: se verdadeiras, Deus não lhe enganava, era veraz; se falsas, em troca, Deus seria enganador.

A existência de um Deus enganador, entretanto, é contrária à perfeição de um Deus. Como poderia Deus prescindir da verdade? Porém, o Deus cartesiano, em determinado momento, esteve sob suspeita de ser enganador, mentiroso. O despautério da dúvida cartesiana acerca da veracidade ou da falsidade de Deus se deu porque o filósofo partiu da existência certa de Deus antes de verificar se a ideia que tinha dEle, que lhe convencia de que Deus existia, estava ou não errada, se cabia só a Deus ou se, antes, era a ideia de um ser imperfeito que, por algum motivo, precisa enganar para ser. A onipotência dEle dispensa a mentira, e a Sua onisciência, o priva disso.

Foi Baruch Spinoza, um filósofo judeu, que esclareceu a confusão de Descartes: se Deus, por um instante sequer, pode parecer enganador, a ideia de Deus da qual se parte é que está errada. Ora, se a ideia de Deus é a mais perfeita ideia que podemos ter, aponta Spinoza, dizer que Deus não é enganador depois de haver suposto que Ele poderia nos enganar só comprova que não se tem a ideia verdadeira dEle, mas uma ideia cujo ideado bem poderia ser um homem, este sim capaz de mentir e de toda a sorte de imperfeição.

O feito de Spinoza, portanto, foi ter deslocado a questão acerca da existência de Deus para a da ideia de Deus. Nas palavras de Marilena Chaui, “de nossa ignorância quanto à existência de Deus para a ignorância quanto à ideia verdadeira de Deus”. Para Spinoza, ainda que Deus pudesse não existir, Sua ideia nas nossas mentes, que existe, é que deve ser perfeita. Do contrário, como foi dito, o crente, o ateu e o agnóstico estarão apenas tomando postura em relação às suas respectivas ignorâncias, assim como Descartes, que, guiado por sua ideia inadequada de Deus, cogitou a possibilidade de Ele ser enganador.

Embora Spinoza tenha sido acusado de ateísmo, excomungado pela Igreja Católica e expulso de sua comunidade judaica, o filósofo acreditava tanto na existência real de Deus que, para ele, Deus era a própria natureza: Deus sive natura (Deus, ou seja, a natureza). Então, não é que Spinoza achasse que existia apenas a ideia de Deus, mas que ela deve ser a primeira coisa que devemos observar antes de acreditarmos ou não na existência de um Deus conforme essa ideia. Não obstante, o que prova que Spinoza tenha partido da ideia verdadeira de Deus para, por meio dela, chegar à existência verdadeira de Deus enquanto a natureza?

Pensemos nas coisas que existem na natureza: as pedras, as plantas, os animais, os planetas, as galáxias até. O que as causou? A natureza. Quem mais? E esta, que tudo causa, quem a causou? Para não ficarmos pressupondo naturezas criadoras de naturezas, o que seria absurdo, além de um trabalho infinito, Spinoza resolveu essa questão provando que a natureza não foi criada por nenhum outro ser senão por si mesma. Para o filósofo, a natureza é causa de si mesma e de todas as demais coisas. É dessa ideia de natureza causadora de si mesma que Spinoza partiu para nunca duvidar de que ela, ou Deus, pudessem ser enganadores.

Com Spinoza podemos perceber que, acreditando-se ou não em Deus, uma ideia inadequada de Deus produz em nós uma ideia outrossim inadequada da natureza. Então, tanto o crente, quanto o ateu e o agnóstico, de posse de vil ideia, outra coisa não são além de vilões da natureza, podendo até cogitar, como Descartes, que ela engana, que pode nos fazer algum mal, ou que é preciso nos proteger dela, quando, na verdade, é apenas uma ideia errada de Deus na nossa mente, à qual nos atemos, que inicia a confusão toda.

E em tempos de destruição da natureza pelo homem, temos de nos perguntar se a sistemática antiecologia humana não é fruto direto da má compreensão da ideia de Deus que temos em mente. Pensemos, portanto, não se Deus existe ou não existe, mas, antes, na ideia dEle, que existe em nossas mentes, independentemente de sermos crentes, ateus ou agnósticos, até que tenhamos uma ideia de Deus que não comporte nenhuma imperfeição ou dúvida. Desse modo, partindo dessa ideia, é à existência da natureza conforme ela causou a si própria que chegaremos. E diante de tal perfeição, quem sabe, não a destruamos mais.

A caverna X

“The X-Files”, o antológico Arquivo X de Chris Carter, está de volta, 23 anos depois, com Dana Scully e Fox Mulder novamente envolvidos com casos de fenômenos paranormais sistematicamente ocultados pelo governo americano. Está de volta também o mais famoso slogan da série: “The Truth Is Out There” (A verdade está lá fora). Aqui, a analogia com a alegoria da caverna, de Platão, na qual a verdadeira realidade “está lá fora” da caverna, é inevitável. O que Platão teria a dizer sobre a volta do Arquivo X? Provavelmente, que o seriado, em 2016, está mais platônico do que nunca. Por quê?

Ora, em 1993, os investigadores lidavam com fenômenos paranormais que não podiam ser revelados. Agora, em 2016, eles tratam de fenômenos demasiadamente normais e sistemáticos do próprio governo americano que, ocultando-se sob a provável existência de seres extraterrestres, busca ocultar senão o seu plano, assaz humano e nada secreto aliás, de dominar da humanidade. Hoje, os desconhecidos extraterrestres são só os bois-de-piranha do sórdido poder terrestre. Todavia, por que isso é mais platônico?

Na alegoria do pai da filosofia, os homens viviam no interior da caverna, entretidos por um ininterrupto espetáculo de sombras projetado no fundo da caverna por titereiros – políticos? -, cujo objetivo era fazer com que as sombras fossem tomadas pela realidade em si. Desse modo, ninguém desconfiava que havia uma realidade verdadeira “out there”, e assim os manipuladores – políticos? – sustentavam o mundo mentiroso no qual os homens permaneciam ignorantes acerca do real. Então, um dos iludidos – Platão? – percebe a farsa na qual está imerso, levanta-se, deixa o teatro de sombras para trás e, saindo da caverna, encontra a dura luz da realidade verdadeira, para, só então, retornando à caverna, contar aos demais que lá dentro há só mentiras.

Na alegoria de Carter, enquanto na sua primeira versão eram os extraterrestres a verdade oculta que estava “lá fora”, que nem o governo americano nem os investigadores-x conseguiam entender e esclarecer plenamente, toda a humanidade era cativa da caverna. Se “todos nós somos essas pessoas da caverna, então, como poderíamos, mergulhados no espetáculo da caverna, subir em nossos próprios ombros, por assim dizer, e entrar na realidade verdadeira?”, pergunta Slavoj Žižek, na sua “A visão em paralaxe”,

No primeiro Arquivo X, portanto, a humanidade inteira estava alienada da verdade alienígena externa. O governo americano, embora ciente da existência dos E.T.s, permanecia ignorante em relação aos propósitos deles e manipulados por eles. Ou seja, ainda preso na caverna. Até Fox Mulder, o investigador obsessivo que bem poderia fazer o papel do filósofo que desconfia da ilusão intracavernosa e que dela escapa, mesmo repetindo incessantemente outro slogan famoso, “I Want to Believe” (eu quero acreditar) – na existência de alienígenas -, inclusive ele permanecia cativo da caverna, uma vez que era sistematicamente desencaminhado de sua intuição pelo governo americano.

Agora, com os E.T.s sendo só mais uma das sombras mentirosas projetadas pelo titereiro governo americano, senão para que as pessoas não desconfiem da sórdida realidade política que este mesmo governo empreende “out there”, temos que o seriado assume de vez a ideia da caverna platônica: são sempre titereiros terráqueos, e não alienígenas, que criam o espetáculo mentiroso que aliena o restante da humanidade da verdadeira realidade.

O “Trust No One” (Não confie em ninguém), outro slogan que sempre estruturou a trama do seriado, na sua versão atual faz com que a caverna na qual os cidadãos americanos se encontram seja mais parecida ainda com a caverna platônica. “Não confie em ninguém” não quer dizer que não devamos confiar uns nos outros, afinal, como apontou Žižek, estamos todos acorrentados e iludidos pelos titereiro-mor. Enquanto iludidos, somos, uns para os outros, a obscura, porém resistente verdade da mentira da caverna.

“Trust no one”, agora, refere-se apenas ao titereiro-mor, qual seja, o governo americano, que, mais do antes, precisa que permaneçamos na caverna, bastante iludidos, obesos, sedentários e consumidores. Mais do que ocultar uma verdade extraterrestre que, se aclarada, abalaria a humanidade, o governo americano precisa ocultar uma verdade absolutamente terrestre: a verdade dos seus planos. Esta sim, se iluminada, causaria uma perigoso abalo, não à humanidade, que estaria como que liberta da caverna, mas nos planos do próprio governo americano e na sua estratégica caverna.

Mulder nunca confiou no seu governo. Porém, sua desconfiança nunca o levou para fora da caverna, onde a luz da verdade brilha gratuita. Também pudera, desde 1993, esteve procurando por verdades extraterrestres, que, somente hoje, em 2016, mostram-se plenamente terráqueas. Não saiu da caverna porque, esse tempo todo, esteve entretido com uma sombra! Agora, pelo menos sabe que a escuridão da qual nunca se viu livre não se dá porque ele desconhece os aliens, mas porque estes foram a sombra com que o titereiro-mor manteve viva a escuridão mentirosa.

Saber disso, entretanto, é o início da trilha que levará Mulder definitivamente para fora da caverna, ou, antes, já é o próprio exterior iluminado? Se, na alegoria platônica, quando o filósofo sai da caverna a luz é insuportável, e se, na alegoria X, Mulder sente mais vontade de luz ao ver o lampejo da verdade, temos que a sordidez aclarada dos desígnios do governo americano não é o “out there” ainda. Até porque tal sordidez atravessa a realidade X, e um seriado que retornasse depois de 23 anos para se resolver no seu primeiro episódio, estaria completamente fora da realidade que quer aclarar.

A burrice do luto

(à minha irmã, Graziela)
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Dizem que o homem é o único animal que sabe de sua mortalidade. Se é assim, sabemos da morte, em primeiro lugar, porque vemos outros morrerem, e, em segundo, por vermos tudo o que vive morrer. Tal é a vida da nossa perspectiva. Entretanto, quando é que temos certeza de que, um dia, nós mesmos morreremos? E quando sabemos disso, o que doravante sentimos? Quando alguém próximo a nós morre, e ficamos de luto, a nossa morte também nos toca. O que teria o luto, então, a dizer de nossa própria morte?
 
Quando somos bebês, a morte é só desaparecimento. Parentes, amigos ou animais de estimação, ao morrerem, apenas desparecem das nossas “vidinhas”. Quando crianças, e temos consciência de que a morte existe, ela é somente a morte dos outros. É somente mais tarde na vida, depois de sermos bastante golpeados por ela, que sabemos que também a morte nos golpeará; que é só uma questão de tempo.
 
Entretanto, ter certeza de que vamos morrer é diferente de saber o que é a morte. Para o filósofo grego Epicuro, não temos como saber o que ela é, pois, diz ele, “a morte, não é nada para nós, pois enquanto vivemos, ela não existe, e quando ela chega, não existimos mais”. Segundo o pensador, a morte sequer existe, seja para os vivos, seja para os mortos, pois, para os vivos, é a vida que existe, não a morte, e para os mortos, são eles que não existem mais, e a morte, por consequência, não pode existir para eles.
 
Porém, ainda que o filósofo nos convença graciosamente de que não temos como saber o que é a morte, e que ela sequer existe, temos uma certeza inalienável dela. Temos a ideia da morte. Essa ideia, aliás, como foi dito, é o que nos diferencia dos demais animais. Que ideia então temos da morte uma vez que nunca saberemos o que ela é na realidade?
 
Nosso mais íntimo envolvimento com a morte, em vida, é o luto. Portanto, nesse período/processo que se segue à morte de alguém, geralmente próximo e querido, está o nosso telescópio/microscópio para investigarmos a morte. O que o luto nos diz? Ora, primeiramente, que a morte de uns afeta, entristece a nossa vida. Porém, sob essa tristeza, diz também que, embora aqueles que morreram não mais existam, nós, a despeito da morte deles, seguimos existindo, plenamente vivos.
 
De modo que o luto, ao passo que reflete a morte, também afirma a vida: a vida de quem está de luto. No entanto, por que o luto parece querer dizer apenas de tristeza? Onde colocamos, durante o luto, a alegria por permanecermos vivos, por não termos sido nós as vítimas da morte? Seria impossível, ou ainda desumano assumirmos, de cara, que o fato de não termos sido ainda escolhidos pela “ceifadora” é a melhor coisa da vida? Desrespeitaríamos os nossos mortos com a felicidade de permanecermos vivos?
 
Se, conforme Epicuro, os mortos não podem saber nem o que é a morte, nem mais nada, tampouco do que se passa com os vivos eles podem saber. Entristecendo-nos ou não, nossos sentimentos em nada agradam ou desagradam aos idos. Então, a tristeza do luto é uma estranha homenagem apenas aos que vivem. De que forma? Ora, é porque sabemos que vamos morrer, e que, depois de estarmos mortos, os vivos seguirão vivendo, e, ademais, felizes por estarem vivos, que nos entristecemos.
 
Com o luto, portanto, sofremos a nossa própria morte, todavia por antecipação, através da morte dos outros, pois os que permanecem vivos, embora temporariamente chorosos e vestindo preto, são sempre mais felizes pelas suas próprias vidas do que tristes pela morte dos outros. Tanto que um dia o luto acaba, envolvemo-nos novamente com vida, como se a morte nunca tivesse se aproximado de nós. A tristeza insistente no luto, na verdade, é a consciência de que a nossa morte, quando chegar, será só nossa, de mais ninguém.
 
O que, então, em vida, devemos saber da morte para que não soframos dissimuladamente a nossa morte através da dos outros? Para Epicuro, sábio é aquele que não teme a morte porque crê que não é um mal não mais existir. É burrice, portanto, crer que morrer é ruim. Não existir não é nada! Saber-se mortal e seguir feliz mesmo diante da morte dos outros, é, nas sábias palavras de Epicuro, saber que “nada há de temível na vida, pois nada há de temível na morte”.

Pandorgas cariocas

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A minha janela, doze andares acima do asfalto, encara anã o imponente Morro do Cantagalo, pedra incrustada no coração da zona sul carioca, tão alta e íngreme que sequer a vegetação consegue se fixar. Pedra estéril? Muito pelo contrário! No seu topo, acumulada feito neve perene, a favela Pavão-Pavãozinho, cobertura artificial que antagoniza com a não menos artificial Copacabana asfaltada.

A dialética favela-asfalto resiste à síntese na cidade maravilhosa que pretere os seus pobres bastardos urbanos. Cientes da falácia-placebo homeopaticamente repetida no asfalto, qual seja, “a praia é o lugar mais democrático do mundo”, os “favelados” só encontram essa coisa chamada cidadania dentro dos limites das suas comunidades

Por isso a molecada do Pavão-Pavãozinho gosta brincar lá em cima da enorme pedra mesmo. Em dia de vento, empinam pipa e colorem o céu com brinquedos de uma infância não totalmente digitalizada. Não adianta, para mim, será sempre lindo ver uma criança brincar com um brinquedo analógico, coisa cada vez mais rara nos playgrounds do asfalto.

As pipas cariocas, no entanto, não são só brinquedo de criança inocente, mas também instrumento de gente grande, usadas para comunicar, qual sinal de fumaça, ou algum acontecimento à própria comunidade, ou, ao asfalto, que “chegou droga na favela”, mais ou menos como os chineses que, em 1200 a.C., já as usavam como sinalização militar: cada movimento e cor era uma mensagem estratégica específica.

No sul do Brasil, “pipa” é chamada de “pandorga”. Oriunda do espanhol, pandorga significa cantoria, serenata ruidosa, mas também bebedeira, boemia. Por isso o brinquedo aéreo foi chamado de pandorga, afinal, seu voo sacudido lembra o andar incerto de um bêbado. As errantes pipas, além de fazem a alegria da molecada -carioca-, relembram-nos do significado -espanhol- de “pandorga” e também mantêm viva a função -chinesa- primeira do objeto.

Uma dessas pandorgas cariocas erráticas “da favela” entrou pela minha janela “no asfalto”. Tomei-a nas mãos e fiquei, por alguns instantes, observando, nostalgicamente, a simplicidade acessível do brinquedo feito apenas com duas varetas de bambu, um losango de papel-seda vermelho, cola, uma “rabeta” e uma linha.

Quantas tardes inteiras a minha infância não ganhou com esse artesanato-brinquedo que em meia-hora eu mesmo conseguia confeccionar! Hoje em dia, infelizmente, a minha “pandorga” vespertina oficial é o iPad, brinquedo sofisticado que, no entanto, eu não sei nem nunca poderei produzir.

De repente, a pandorga é puxada. Seguro-a mais firmemente. Outro puxão. Aproximo-me da janela e observo a linha até onde ela parecia desaparecer no ar. Mais um puxão. Minha curiosidade se aguça e meus olhos avançam um tanto mais no sentido da quase invisível linha. De puxão em puxão, encontro, do outro lado da linha esticada sobre os altos prédios de Copacabana, uma criança, sobre a laje de uma casa, lá de cima da pedra do Cantagalo. Embora os mais ou menos quatrocentos metros que nos distanciavam não permitissem que eu visse a “cara” da criança, é como se ela me encarasse.

Antes de eu descobrir o “pandorgueiro”, ele já havia me descoberto. Fiquei absorto na singela conexão entre favela e asfalto que a pipa havia proporcionado. No entanto, o garoto não parava de pedir de volta o seu brinquedo por meio de puxões cadenciados lá da outra ponta da linha que ainda tinha em mãos. Eu ainda mantinha a pandorga nas minhas não porque a queria para mim. Sabia que era dele e que a ele deveria retornar. Era a magia da conexão que eu não queria perder.

Ele começou a puxar o fio cada vez mais forte. Então, com medo de que a linha se rompesse, e que o moleque ficasse sem o seu brinquedo, entrei no ritmo dos seus puxões solicitantes e, na hora que me pareceu a “H”, soltei a pipa para que ela alçasse voo novamente. Deu certo! Mal a pandorga voltou ao céu, achei ter visto o moleque sorrir. Porém, como na verdade eu não conseguia ver nada além de sua silhueta magrela, tive certeza de que esse sorriso moleque meu.

De mãos vazias, mas com o sorriso cheio, debrucei-me na janela, feito busto-de-mulata, “brincando” de ver o garoto brincar, como se a brincadeira fosse minha e dele. Frágil síntese entre o asfalto-tese e a favela-antítese. Acidente feliz que trouxe, pela janela, a lembrança das tardes simples da minha infância à uma tarde complexa da minha vida adulta. Linha do tempo? Sim! A errática pandorga me distanciou décadas do meu “assertivo” iPad.

Conexão inócua, dirá o comunista que não viu reduzir a diferença entre o asfalto e a favela na efêmera brincadeira dos dois. Porém, assim como a linha que os conectou materialmente não foi arrebentada, mas, antes, serviu para que o o brinquedo voltasse ao brincante, deixo aqui o companheiro comunista a sós com o seu lema: “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”.

Que a praia não é o lugar mais democrático, como insiste o asfalto, a cisão favela-asfalto ainda deixa bem claro. No entanto, aquela pandorga que entrou pela minha janela pelo menos criou uma ágora etérea e efêmera onde dois cidadãos, social e urbanisticamente cindidos puderam se encarar e, mediados pela retórica ritmada do cerol, decidirem que a brincadeira na polis podia e devia seguir. O moleque, brincando com a sua pandorga de verdade, e eu, com a minha, o meu iPad, no qual brinco de contar da brincadeira que tive com ele.

O design do dasein

Dasein é uma palavra alemã que significa ser-aí ou ser-aí-no-mundo. Expressão sobejamente “latifundiada” por Heidegger para significar “homem enquanto ser que pode questionar os outros seres”, no contexto geral da filosofia, no entanto, é sinônimo para existência. Mais especificamente, aquilo cuja existência pode ser conhecida por nós. Baseado nesta última significação, a água, por exemplo, é indubitavelmente existente, é-aí-no-mundo pois é conhecida por nós por ser líquida, incolor, insípida e inodora, tal é o seu ser-aí.

Já da controversa quintessência, isto é, aquele quinto elemento do qual, segundo Aristóteles, seria composto o universo, ou, para os místicos, a essência que comporia os espíritos, dela podemos dizer o quê? Como conhecê-la, ou sequer ter certeza de sua existência, se ela não tem um dasein, ou seja, um ser-aí-no-mundo mediante o qual possamos conhecê-la?

O que tem a água, e o que falta à quintessência, para que sejam conhecidas por nós? Dasein! Existência! Um ser-aí-no-mundo! Responderiam, sem erro, os dois parágrafos acima. Materialidade, ora bolas! Diria um materialista. Porém, a existência é um conceito metafísico, isto é, está para além da física. Então, seres imateriais, como o amor, a justiça, a esperança, também são-no-mundo, pois fazem-se conhecer apesar de suas tácitas idealidades.

Agora, o que faz com que o amor seja-aí-no-mundo, e a quintessência não, visto que ambos são ideias? Em outras palavras, qual a forma de um Ser para que ele possa cumprir a função de ser-aí-no-mundo, de ser conhecido por nós? Ora, quando falamos de forma e função, e da relação de uma com a outra, não estamos mais no terreno da metafísica apenas, mas também no do design. Então, metafisicamente falando, qual é o design do dasein?

Design, todavia, é uma palavra inglesa, oriunda do Latim “designare” (de=fora; signare=sinalizar) que, ordinariamente, quer dizer: desenho; plano; projeto. Uma análise mais conceitual, porém, dirá que “designar”, ou seja, “sinalizar-fora”, significa “expressar”. Então, a pergunta: “qual é o design do dasein?”, também é esta: qual é a expressão do dasein? Ou ainda: o que expressa o ser-aí?

O conceito clássico-bauhausiano de design diz que “a forma deve seguir a função”. O design de uma cadeira, por exemplo, deve fazer com que ela realize apenas as funções de assentar e recostar uma pessoa. Para tal, um acento, um encosto e quatro pés bastam. Qualquer coisa além disso, como ter braços, ser estofada ou giratória está para além da função de uma cadeira, para além do seu design; não pertence, portanto, à essência da cadeira.

Aqui, metafísica e design se encontram na busca das essências; tratam do que é fundamental a uma existência qualquer. Embora o design seja vulgarmente relacionado ao que tem materialidade, o seu ideal primeiro são as essências das coisas. O design, portanto, possui  uma dimensão assaz metafísica: pensa para além do que é físico, material. Por isso o design, que é a racionalidade entre forma e função, pode participar filosoficamente da explicação da forma mínima da função “existência”, isto é, do dasein.

Qual é, então, a forma mínima à função “existência”? O que a existência não pode dispensar para continuar existindo? O que o ser-aí precisa ter para seguir sendo-aí? A metafísica pura titubeia nesse momento, pois, para ela, a existência já é “a” forma mínima de todo ser-aí. O design, por sua vez, pode dizer mais, pois, para ele, o que realmente importa é o ser-aí-NO-MUNDO das coisas, ou seja: o ser-aí-das-coisas-para-nós-humanos-na-nossa-mundanidade.

Então, para o design, o dasein, ou seja, o ser-aí-no-mundo, deve constar de, no mínimo, três existências: a nossa, a do mundo, e também a existência de uma relação entre aquelas duas existências. Aqui, para a graça da filosofia, os conceitos genérico e heideggeriano de dasein se reencontram! A função “existência”, o dasein, portanto, para ser um objeto de puro design, deve se realizar minimamente com as formas humana, mundana, e com a forma do homem se relacionar com o mundo que ele mesmo é/cria/conhece.

Revisão: Sarah Barreto

Design e ecologia

Para a Bauhaus, escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda da Alemanha da década de 1920, o conceito de design diz que “a forma deve seguir a função”. Ou seja, que as coisas, sejam elas utensílios domésticos ou obras arquitetônicas, devem ser produzidas em vista de suas funcionalidades apenas, e não de suas aparências. Desse ponto de vista, tanto mais design um artefato tem quanto mais a sua função se realiza com o mínimo de forma. Não estaria nessa economia formal-funcional bauhausiana quase centenária a virtude ecológica de que o atual mundo humano parece ter se esquecido?
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Vulgarmente, pensamos que o design está mais nos excessos estéticos do que na racionalidade formal-funcional envolvida em alguma coisa. O design do Arco do Triunfo de Paris, por exemplo, ao contrário do que imediatamente se pensa, não está nos seus requintados adornos que tanto deliciam os olhares humanos. Tire toda a “decoração” do monumento parisiense e ele continuará um arco, plenamente funcional, talvez menos digno de simbolizar os triunfos de Napoleão Bonaparte, porém, nessa nudez estética reside justamente o triunfo do design – quiçá o da natureza.
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A decoração causa-nos sensações. O adorno é sensual por natureza. Todavia, para a racionalidade envolvida no conceito de design, qualquer ornamento apenas obscurece a verdade formal-funcional daquilo onde é colocado. “Enfeitar” a posteriori a forma puramente funcional de um artefato qualquer outra coisa faz que esconder o design intrínseco deste artefato, ademais, com detalhes que não fazem ele realizar melhor a sua função. Em vista de quê? Beleza? Ora, o design é de uma beleza ímpar. Porém, para fruí-la, é preciso atentar para a racionalidade que colocamos nas coisas que produzimos.
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A “beleza racional” das Colunas do Palácio da Alvorada, projetadas por Oscar Niemeyer, não está naquilo que primeiramente vemos nelas, nas suas curvas ou brancura modernistas, mas justamente naquilo que não se vê em coluna alguma: a sua função pura; que, entretanto, por motivos puramente formais, não se faz ver. O maior arquiteto brasileiro foi um excelente designer pois a forma de suas colunas palacianas está completamente em função dos esforços internos que elas suportam enquanto suportam o teto do palácio.
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Explicando melhor: uma coluna, essencialmente, é feita para suportar o peso daquilo que é colocado acima dela. Porém, ela mesma também pesa. De modo que a base de uma coluna suporta o peso do que ela sustenta mais o peso da própria coluna. A Coluna Brasília faz desse fato design. Racionaliza-o. A famosa estrutura vai se tornando cada vez mais delgada à medida que o seu próprio peso deixa de pesar sobre ela mesma, para, no seu topo, a forma mínima – a espessura – realizar a justa função – suportar apenas o /
peso do teto, e não gerar peso desnecessário à sua base.
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Na Coluna Brasília, o conceito de design da Bauhaus, “a forma deve seguir a função”, parece encontrar o conceito biológico de design natural ressaltado por Steven Pinker, qual seja: “o menor caminho entre forma e função”. Um design natural, um olho, digamos, que porventura tivesse estrutura para ver e digerir alimentos ao mesmo tempo, mas não digerisse nunca, somente olhasse, teria excesso no seu “design”. Antes, não seria design, pois haveria um caminho maior, portanto desnecessário, entre forma e função. Porém, a natureza é uma grande designer, quiçá a maior, justamente por não colocar em nada forma alguma que não sirva para uma função específica.
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O design bauhausiano, por excluir tudo o que é desnecessário de um artefato, é absolutamente econômico. Diria mais: ecológico; tanto quanto o design biológico. Com efeito, se a natureza agisse desnecessariamente – como um burguês hipersensualizado – e “decorasse” superfluamente todas as suas criaturas, colocando nelas coisas de elas que não carecem, não haveria matéria suficiente no universo para sustentar tal “luxo”. Aliás, não é exatamente isso que a atual crise ecológica está nos dizendo?
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Por isso, para uma natureza saudável, o design humano deve estar para a própria natureza assim como a forma, no conceito de design bauhausiano, está para a função, ou seja, em função dela. Em outras palavras, as coisas que o homem produz, sem as quais não pode viver adequadamente, devem ser formalmente tão mínimas a ponto de cumprirem apenas com suas funções essenciais, pois só assim não consumiremos desnecessariamente a natureza.
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As nossas roupas, por exemplo, se fossem feitas apenas para nos proteger das intempéries, ou ainda para dar conta da vergonha da nossa nudez, não precisariam ser tingidas nem estampadas. Isso porque os pigmentos e desenhos que nelas colocamos não aumentam nem melhoram essas suas duas funções imediatas, mas, em troca, atendem a outras funções, nada ecológicas, portanto irracionais, tais como o consumismo e a ostentação.
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A natureza, com efeito, agradeceria eternamente se as coisas que nós produzimos para o nosso próprio consumo envolvessem um design que primasse pelo “menor caminho entre forma e função”, e não pela longa promenade entre forma e função onde cabe um mundo de detalhes dispensáveis que, no entanto, só são colocados nas nossas coisas para que elas sejam mais do que precisam ser. Esse excesso, digamos, burguês, do ponto de vista do design bauhasiano, é irracionalidade pura, e, do ponto de vista da própria natureza, insustentabilidade máxima.

Realeza X realidade

Real se diz tanto daquilo que existe, que é, como também daquilo que envolve os reis. Estes, intrigantemente, são os dois reais ao mesmo tempo: primeiro, porque existem, e, segundo, devido às suas respectivas realezas. Por isso os reis eram considerados sobre-humanos pelos seus súditos, afinal, duplamente mais reais do que eles. Entretanto, essa sobre realidade régia é uma construção assaz contraditória, portanto, insustentável.
 
A realidade física que os reis compartilham com seus súditos faz deles seres tão ordinários quanto estes. Tal é a natureza. Porém, os reis escapam dessa ordinariedade existencial por via de suas realezas, que, metafisicamente, fazem com que eles, e somente eles, tenham uma outra realidade que a dos súditos, uma sobrenatural, por meio da qual jazem acima da existência banal, primeira.
 
Deparei-me concretamente com a dupla realidade da realeza no Palácio de Versalhes, construído por e para Luís XIV, rei da França. Na materialidade do palácio, nas suas formas assaz requintadas, reconheci o original de que muitos cenários de filmes e óperas, e também os pastiches arquitetônicos, são cópias. Que Versalhes é real porque existe, não há dúvida. Que é real por ser a residência de Reis, também. Todavia, aqui vimos que é real também por ser o original de onde suas muitas cópias/imitações provieram.
 
Primeiramente, fiquei intrigado com a imensidão e o luxo do palácio de Versalhes. Seus setecentos aposentos, todos revestidos com mármores raríssimos e brocados caríssimos, os magníficos candelabros de cristal, a mobília extravagante, chamada de Estilo Luís XIV em homenagem ao rei que construiu e decorou o palácio para si, e, sobretudo, o estonteante Salão dos Espelhos, tudo isso me dizia uma única coisa: sofisticação!
 
Vulgarmente, falamos que uma coisa é sofisticada quando queremos dizer que ela é chique, requintada. Não obstante, “sofisticar” deriva de “sofismar”, ou seja, de falsificar. Platão deixou bem claro nos seus diálogos: um sofisma é um argumento falso. Então, afirmar que a realidade exclusiva dos reis precisa de sofisticação para existir acima da realidade dos súditos, outra coisa não é que dizer que os reis precisam de falsidade para serem reis.
 
Por que, então, tal falsidade, tal sofisticação, é chamada de “real”, se a falsidade, que é oposta à verdade, também o é em relação à realidade? Ora, o que não existe, não é real, tampouco verdadeiro. A realidade sofisticada dos reis, portanto, precisa envolver uma contradição, visto que não é possível algo falso, sofisticado, ser real. Todavia, é justamente essa “realidade contraditória” que faz com que o reis sejam duplamente reais.
 
Aqui é preciso perguntar: é o rei que gera a contradição, ou, antes, é esta que gera aquele. Bem, nem sempre houve reis, e, nessa época, uma única realidade era compartilhada por todos. Porém, historicamente, a concentração de poder nas mãos de alguns fez com que a realidade destes parecesse ou devesse parecer diversa da realidade dos desapoderados. E, no limite do poder, os reis, aqueles cujas sobre realidades falsificadas, produzidas estrategicamente em função do poder, são mais importantes que a realidade ordinária, primeira, natural.
 
A contradição intrínseca da realidade exclusiva dos monarcas produz uma “realidade” mais real que a própria realidade. No entanto, como vimos, sofisticada, portanto falsa. O problema dessa falsidade, é tornar menos real justamente a realidade primeira e inalienável que lhe tornou possível. Desse modo, a realidade régia, diminuindo a realidade ordinária sobre a qual se fundamenta, apenas reduz a estabilidade dessa sua realidade forjada. Por isso insustentável;
 
Talvez por isso a realidade sobrenatural de reis, como por exemplo a de Luís XIV, que construiu o Palácio de Versalhes precisamente para estimular tal sobrenaturalidade, venha desaparecendo ao longo da história. Não que a república, forma de governo que superou a monarquia absoluta, deixe de prescindir de uma realidade ligeiramente outra que a dos cidadãos. A diferença, entretanto, está em que a realidade republicana não está aí para reduzir a realidade comum dos cidadãos, mas, ao contrário, fazer com que ela seja, de fato, “o” real, sem nenhum real ulterior.
 
Portanto, se “real” se diz daquilo que existe e daquilo que envolve os reis, mas esta última realidade, a da realeza, é falsa, sofisticada, essa última significação não possui um objeto real por natureza. Em segundo lugar, pelo fato de a sofisticação do real intrínseca à monarquia estrategicamente reduzir a realidade do real primeiro, visto que só assim pode ser mais real do que ele, outra coisa não faz senão tentar eliminar o único objeto verdadeiramente real, qual seja, a realidade ordinária da natureza compartilhada por todas as pessoas.
 
A república foi resposta história para esse problema. Entretanto, a superação da monarquia não eliminou a possibilidade de alguns poucos produzirem e vivenciarem realidades exclusivas, superiores, que, entre outras coisas, permite-lhes ir contra a lei comum. A diferença entre o cidadão e o súdito, entretanto, está em que o real mais elevado, para aquele, é res pública, enquanto que, para este, é res exclusiva do rei. Portanto, a sofisticação de templos do poder, como Versalhes, é a falsidade de uma realidade imprópria minando e solapando a realidade propriamente dita, inalienável: o real ele mesmo.
 
 

2015 e o seu sentido

O que é 2015? Tudo o que acontece nos 365 dias consecutivos entre 2014 e 2016? Concretamente, sim. O problema é que assim fica impossível falar o que é 2015, pois foram muitíssimos os acontecimentos, as interações, etc. Temos, então, de sair dessa densa cronologia e fazer como a História, buscar um sentido geral para os acontecimentos, e não a coleção indiscriminada deles. Fazer a história de um ano, entretanto, não fica muito distante da cronologia. Procuremos, na sequência dos principais acontecimentos de 2015, algum sentido histórico.

Pois bem, em 1º de janeiro de 2105, Dilma Rousseff tomou posse para o seu segundo mandato. Nem a presidenta, nem nós, imaginávamos o que ela enfrentaria ao longo deste ano. Devido à crise econômica que o ano anterior já anunciava, e ao quase empate com Aécio Neves nas eleições de 2014, o ano já começava exigindo atenção extrema. Porém, em 7 de janeiro, todos nos distraímos e voltamos nossas atenções ao atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo.

No final do mesmo mês, em 25 de janeiro, começa o maior folhetim político-econômico mundial do ano: a extrema-esquerda vence eleições na Grécia e, cinco dias depois, em 30 de junho, a Grécia já é o primeiro país desenvolvido a não pagar dívida com o FMI. Os próprios gregos, na sequência, em 5 de julho, decidiram, em plebiscito nacional, que não iriam pagar os seus credores internacionais. Duas semanas depois disso, em 13 de julho, ao contrário do que era de se esperar, os países do Euro chegaram a um acordo e não excluíram a Grécia do bloco e, o mais interessante, liberaram outro pacote de ajuda econômica ao país inadimplente.

Outros países do mundo também vão mal das pernas. E alguns, inclusive, mal das ideias… Em 24 de março, o avião da alemã Germanwings foi jogado contra os Alpes franceses pelo copiloto da aeronave. Andreas Lubitz, de quem foi dito ter problemas psicológicos. Cinco minutos depois de anunciado o acidente-atentado, a polícia já estava na casa do copiloto em busca de provas para chegar à patética resolução de que ele não era normal. De perto, alguém é? Todavia, provaram que não é a humanidade que é insana, mas somente Lubitz e malucos como ele.

Tanta coisa acontecendo no ano, e os brasileiros que estavam descontentes coma vitória de Dilma, encontraram somente em 15 de março, um domingo ensolarado, espaço na agenda anual para fazerem os seus protestos pedindo reformas, a volta da ditadura militar, o fim da corrupção e do Governo Dilma.

Sobremaneira, a tecnologia e a futilidade humanas supera qualquer crise ou tragédia humanas. Em 3 de maio, foi propagandeado o primeiro café expresso feito e consumido no espaço. A astronauta Samantha, enquanto sorvia a cafeína intergaláctica, escreveu no seu twitter: “Espresso fresquinho na gravidade zero!” Beijinho no ombro para a realidade mundana. Enquanto isso, no Brasil e no mundo, gravidade extrema!

E para ficar pior para a Terra, em 23 de julho foi descoberto o exoplaneta Kepler-452b, a uma distância de 1400 anos luz de nós, com condições de suportar a vida. No final do mês, em 31 de julho, as atenções se voltaram ainda mais para o espaço com o fenômeno da Lua Azul. Ah, e no final do ano tivemos a Lua de Sangue, lembram? Com a cabeça no espaço!

No oligárquico chão brasileiro, enquanto isso, em 6 de agosto, o país parou para vaias, gritos e para o argumento político mais idiota já inventado até hoje: o “panelaço”. Durante um programa eleitoral do PT em rede nacional de rádio e televisão, a burguesia pegou nas panelas e argumentou ruidosamente com a mesma consistência de sempre. Pobres burgueses…

Mas eles tentam! A histeria, por exemplo, sintoma burguês clássico, quase chegou ao seu fim com o Viagra feminino. Mas a ilusão durou pouco. Em 16 de agosto finalizaram-se os testes, para, em 20 do mesmo mês, o medicamento já estar nas drogarias. Porém, pesquisas independentes apontaram falha do medicamento, e em 17 de outubro, foi anunciado o abandono do Viagra feminino. A burguesia, pobrezinha, não se livrou totalmente de si mesma. Ainda…

Dos proletários, em troca, ela se livra facilmente. Tal é a onda migratória que em 2015 inteiro levará mais de um milhão de migrantes e refugiados à Europa. Alan, o menino curdo encontrado morto na praia turca em 2 de setembro de 2015, é o grande ícone dessa movimentação populacional épica que fazia séculos o mundo não via.

Problemas terráqueos, como a Rússia bombardeando o Estado Islâmico em 28 de setembro, exigem distrações celestes! Então, no mesmo dia, a Nasa anuncia a descoberta de água líquida no planeta Marte, e alguns dias depois, em 8 de outubro, que foi encontrada água congelada e céu azul em Plutão. Ah, Universo: doce alienação dos terráqueos!

Alguém lembra do meme facebbokiano do vestido ‘azul e preto’ ou ‘verde e dourado’, ou o que deixou de pensar porque estava pensando nele? Ou no que pensou para não mais pensar que, em 10 de outubro, ocorreu o mais mortífero atentado terrorista da Turquia; que, no dia 23 de outubro, o Furação Patrícia, o mais forte história, destruiu costa mexicana; ou ainda que, em 5 de novembro, aconteceu o maior desastre ambiental da história brasileira, o rompimento de barragens de mineração em Mariana, Minas Gerais?

A terra aterroriza. Aterroriza-se consigo mesma. E em 13 de novembro, mais terror: os atentados em Paris, em retaliação a ataques franceses na Síria, realizados pelo Estado Islâmico em locais simbólicos da cultura e da sociedade parisiense. A França declara guerra ao terror. Como se não bastasse, em 24 de novembro, nas manobras da guerra civil síria, a Turquia derruba um avião russo. Às portas da Terceira Guerra Mundial?

No Brasil, muito! Em 2 de dezembro, foi finalmente recebido, por Eduardo Cunha, contra quem pesam inúmeros ilícitos já aclarados, o projeto peemedebista e peessedebista do impeachment de Dilma, contra quem, é preciso ressaltar, nenhum crime foi comprovado. A razão entrou em guerra mundial? Ficou sem palavras! Sim!, Tanto, que em 21 de dezembro o próprio Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, incendiou.

E como se não fosse restar amanhã, 2015 já fez o museu para ele. Em 17 de dezembro, foi inaugurado o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, senão para que a Rede Globo, “a” parceira da prefeitura carioca no projeto, possa hospedar com exclusividade o amanhã, já que está sendo cada vez mais difícil de contar com ele hoje.

De qualquer forma, o melhor acontecimento do ano, foi a Rede Globo tendo de noticiar, ao vivo e em cadeia nacional, e na finaleira do ano, dia 30 de dezembro, que Aécio Neves foi citado em delação premiada por ter recebido 300 mil Reais em propina. William Bonner, obviamente, não deu essa notícia. Férias? Ora, se fosse para apresentar uma denúncia ou uma condenação de Lula ou de Dilma, Bonner viria da Ilha de Caras onde estivesse com o seu sorriso oligárquico-menor-amarelo.

Qual, então, o sentido da cronologia de 2015? Seguramente e proximamente: 2016, 2017, o futuro. Porém, essa é a resposta mais abstrata que poderia ser dada. Em direção à concretude, o sentido de 2015 foi a complexificação da já hipercomplexa sociedade globalizada contemporânea.

Agora, sendo bastante concreto, em termos materiais-econômicos mesmo, o que aconteceu foi que alguns poucos países, bancos e pessoas enriqueceram, enquanto a maioria dos países, e das pessoas – não os bancos, obviamente – empobreceram. Essa dinâmica econômica, no entanto, não é exclusividade de 2105. Não cabe, portanto, buscar saber o que é 2015 em coisas que os outros anos também são ou têm.

Se, concretamente, 2105 é “tudo” o que houve entre 2014 e 2016, e não o que houve em 2014, 2016, nem em qualquer outro ano da história, para sabermos o que 2015 é, o que tem de exclusivo que o definirá adequadamente, é preciso aguardar não somente que 2016 seja, mas que um punhado de décadas ou séculos também sejam, pois aí teremos o distanciamento histórico fundamental para a concepção de um sentido para a populosa cronologia de 2015.

O átomo do problema brasileiro

A proposta de Luciana Genro, fundadora do PSOL, de, em 2016, serem feitas eleições gerais que substituam toda a corrompida classe política brasileira que aí está, é virtuosa apenas por atinar à lógica de que não é o caso que há algo de errado na estrutura política brasileira que a comprometa e que por isso deva ser reformado, mas, antes, e essencialmente, que a estrutura em si mesma seja errada. A estrutura é próprio erro aliás, em relação ao qual nenhuma reforma significaria realmente evolução.

Agora, a substituição total da atual estrutura essencialmente corrompida-corruptora que aí está não significa que a próxima, a ser construída democraticamente pelos próprios brasileiros no promissor vazio deixado pela atual, será mais virtuosa. Como falou Aristóteles lá atrás, a qualidade de um estado “é” a qualidade dos seus cidadãos (não há universal, somente particulares!).

Se Luciana Genro fosse mais ousada, e dissesse que além da atual classe política corrompida precisamos também esvaziar o Brasil de brasileiros coruptos, melhor dizendo, da corrupção que jaz em cada um de nós, para então um povo não corrupto-corruptível ter oportunidade de propor-construir uma nova estrutura livre de corrupção desde sua base, seria possível levá-la a sério. Entretanto, o aparente radicalismo da proposta de Genro vai só até metade do caminho. É reformista ainda assim. Portanto frágil e vulnerável aos mesmos males dos quais quer se ver livre.

A máscara transcendente do imanente Leviatã hobbesiano faz-nos crer que podemos ser, e que de fato somos melhores que nosso Estado; que temos escondido em nós, como se se tratasse de um plano B, a fórmula de um Estado melhor do que o que nos desagrada. Porém, isso outra coisa não é senão a abstração da nossa corrupção intrínseca concreta, em relação à qual, infelizmente, não nos revoltamos. Porventura tudo o que queremos ver deposto na política brasileira já não esteve desde sempre naquilo que chamamos de “jeitinho brasileiro” democraticamente espalhado pelo nosso país?

Ora, depondo uma presidenta, um único partido, ou todos eles juntos até, nos alienamos covardemente do fato de que o mal que nos aflige não nasceu neles nem a partir deles. Em ordem crescente, os políticos, os partidos, as figuras soberanas e, por fim, o próprio Leviatã são apenas expressões mais universais, e portanto mais abstratas do que, na verdade, existe particular e concretamente nos próprios cidadãos.

Sendo assim, se tivéssemos a bravura de vestir, cada um de nós, brasileiros, a veste rota da corrupção que mentimos a nós mesmos só os políticos vestem, ou seja, se imanentizássemos absolutamente a vil realidade éticopolítica brasileira, talvez aí a estrutura pudesse sofrer ou expressar alguma espécie de revolução virtuosa. Agora, enquanto formos vulgares e não resistirmos ao maniqueísmo que nos protege indevidamente no “lado bom” do problema que é de todos, seguiremos sendo esse problema que covardemente se auto ignora e que por isso mesmo permanece intocado.

E se é assim, ou seja, se permanecemos acreditando que a corrupção vem de cima para baixo, e nos recusarmos em ver justamente o contrário, é melhor partir para uma “política de redução de danos”, como acontece com usuários de drogas. Nesse sentido, é preferível a estrutura corrupta colocando cisternas nas casas áridas dos nordestinos, exigindo a construção de milhares de casa populares em troca de “favores mensaleiros”, e filhos de empregadas domésticas e de pedreiros na universidade pública, só para citar alguns, a estrutura corrupta que só proporciona a manutenção dos privilégios da velha e arraigada oligarquia.

A corrupção que nasce nos cidadãos, mas que é tão difícil de encarar, insuportável até, é essa que queremos ver somente em abstrações “transcentalizadas” tais como determinados partidos, representantes políticos, no Leviatã mesmo, porém, para que estes “outros transcendentes” carreguem uma culpa que na verdade é imanentemente de todos, e para que, obviamente, eles sejam punidos espetacularmente no nosso lugar. Essa corrupção que alienamos no outro realmente é mais fácil de ser deposta por nós. Entretanto, depor a corrupção que jaz no núcleo dos átomos brasileiros, ou seja, nos cidadãos, essa é bem mais difícil de ser tirada do poder.

A própria Luciana Genro, que defende veementemente o fim do financiamento empresarial a campanha de partidos políticos, não se privou de receber dinheiro de corporações oligárquicas tais como a Gerdau e a Zaffari. Contudo, antes de afirmar que ela prega moral “de cuecas”, cabe perguntar seriamente se há possibilidade de haver alguma pregação de moral sem ser “de cuecas”. Talvez o único moralismo que não seja contraditório nem vergonhoso seja aquele que não é pregado, mas atuado mudamente, sem propagandeamento prévio e estratégico.

Tire a Dilma do seu cargo, o PT do governo, os demais partidos, todos até, ainda assim restará um povo com as mesmas contradições no papel de operário de um outro Estado que, feito pelas mesmas mãos, em coisa não muito diferente resultará. Com efeito, o Brasil corrupto será concretamente deposto quando “impitimarmos” sistematicamente a nós mesmos sempre que baixamos filmes piratas da internet, aceitamos que os estabelecimentos comerciais nos quais consumimos não nos forneçam a devida e necessária nota fiscal, ou, como disse o historiador Fernando Karnal, quando colamos de um colega, ou damos cola a ele em uma prova sobre a Ética de Spinosa.

Retirando a soberana e transcendente máscara do Leviatã, tudo que veremos será uma relação absolutamente imanente entre aquilo que concretamente fazemos e aquilo que não queremos que seja feito. Entretanto, aqui, colocamos essa máscara abstrata como nossa representante soberana justamente para, ali, não mais nos reconheçamos como responsáveis naquilo que nos aflige. Porém, o problema estrutural aí permanecerá enquanto as peças essenciais dessa estrutura, os átomos brasileiros, quais sejam, nós, os cidadãos em geral, permanecermos nos iludindo de que o nosso problema é um outro que não nós mesmos.

Rafael Silva

Kairologia

“Que é, pois, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”, disse Santo Agostinho. Antes dele, os gregos antigos diziam bem mais. Tinham inclusive duas palavras para falar do tempo: Khronos e Kairós. A primeira dizia do tempo cronológico, de natureza quantitativa. A segunda, do tempo existencial, de natureza qualitativa. A lógica de Khronos, isto é, a cronologia, é bem compreendida por nós. Inexorável até. Já a lógica de Kairós, ao contrário, nos escapa sistematicamente. Por quê?

Primeiramente, tentemos apreender a inapreensibilidade de Kairós através da própria mitologia grega: Filho de Zeus, pai dos deuses e dos homens, e de Tyche, a deusa da prosperidade, Kairós era tão veloz que era quase impossível capturá-lo, a não ser agarrando-o pelo único cacho de cabelos que tinha na testa. A dificuldade de compreender Kairós, portanto, é a mesma que agarrá-lo pelo topete na sua velocidade divinal.

O problema de pensar uma kairologia, porém, só aumenta quando atentamos ao que diz a teologia: enquanto Khronos dimensiona o tempo dos homens, isto é, a duração, Kairós expressa o tempo de Deus, ou seja, a eternidade. Haveria portanto desafio maior para uma criatura do que se colocar no lugar de seu próprio Criador? Tal é a dificuldade envolvida na ideia de kairologia.

Entretanto, se para a lógica divina a kairologia seria a maior das pretensões mundanas, para a arte do discurso humano, qual seja, a retórica, apreender Kairós é desejabilíssimo, pois, segundo E. C. White, autor de Kaironomia, outra coisa não é senão a arte de aproveitar “o momento fugaz em que uma oportunidade se apresenta e deve ser encarada com força e destreza para que o sucesso seja alcançado”.

Como, todavia, arte e lógica são coisas distintas, o conceito retórico de Kairós, para ser científico, isto é, para a kaironomia ser kairologia, a arte de “sacar” o momento oportuno de que fala White deve ser transformada em uma ciência através de cujas leis a captura da oportunidade certa e a garantia do sucesso final sejam sempre, em qualquer experiência, universalmente dadas.

Contudo, como diria o teólogo, a pretensão de obter sucesso sempre, em todas as jogadas, pertence a Deus, não aos homens. Seria a kairologia, portanto, uma ciência estritamente divina, ou melhor, a própria onisciência exclusiva do Criador? Como até hoje não houve uma criatura sequer que não tenha experimentado o fracasso, inúmeras vezes até, a lógica do Kairós, isto é, a ciência de onde estão, ou de quais são as oportunidades que sempre levam ao sucesso, parece ser raciocínio de Deus apenas.

No entanto, esse mesmo Deus que, por um lado, guardou para si a ciência do Kairós, isto é, a lógica da qualidade, por outro, compartilhou com as suas criaturas a ciência do Khronos, ou seja, a lógica da quantidade. Basta o sol estar no mesmo lugar do céu em que esteve ontem para que todos recebamos a universal e irrefutável “prova científica” de Khronos de que houve aí a “quantidade” de um dia. Agora, da qualidade desse dia não temos como ter ciência.

A lógica do Kairós nos deixa tão mudos quanto Santo Agostinho diante do enigma do tempo. No entanto, não estaria justamente no fato de o filósofo cristão não raciocinar kairologicamente, mas apenas cronologicamente, a sua dificuldade de dizer o que é o tempo? E os gregos, eram mesmo sábios kairológicos ou, antes, apenas chamaram de Kairós aquilo de que nunca teriam ciência alguma?

Kairologia; ciência da qualidade; lógica da oportunidade e do sucesso: ambição humana que parece ainda mais quimérica diante da cronológica ciência moderna, para quem as quantidades macroscópicas e infinitesimais da existência são tudo o que realmente importa medir. Também pudera, a ciência é a face de Khronos vista sem distância alguma. Já para estarmos tête-à-tête com o Kairós podemos contar somente com sua intempestividade, pois ele não agenda encontros nem obedece o tic-tac de Khronos.

Talvez a ciência do Kairós, a kairologia, só seja possível ao homem na forma cartesiana mais simples, ao modo “penso, logo existo”, porém, ligeiramente modificado. Afinal, se no momento em que não temos dúvida alguma de que uma oportunidade foi realmente capturada, e também de que o sucesso está garantido, afirmarmos “esse é o tempo da qualidade, logo Kairós”, teremos feito kairologia, ainda que a validade dessa ciência seja tão intempestiva quanto o próprio Kairós e, ademais, não tenha vindo ao mundo para subsistir no tempo de Khronos, absolutamente incapaz de expressar a qualidade da existência.

Antiguidades imediatas

Na contemporaneidade hiper apressada, as coisas não podem mais esperar o tempo passar para serem consideradas antigas. A antiguidade, hoje em dia, é dada pelo ritmo de produção das novidades. Essa pressa em fazer com que o absolutamente recente já seja tomado por antigo traz a seguinte questão: seria a súbita transformação de parte da atualidade em antiguidade o modo do restante dessa mesma atualidade poder ser percebida como novidade? Qual o tempo mínimo necessário para algo ser de fato antigo? Ou, ao contrário, o tempo nada tem a ver com isso?

Há menos de um mês as linhas de ônibus do Rio de Janeiro foram reformuladas; algumas extintas, outras substituídas. Então, de um dia para o outro, uma das novas linhas veio com o seguinte aviso no para-brisa do ônibus: “antiga 125”. Impressionante! Em menos de um dia, a linha 125, de atual, passou a ser antiga. Entretanto, chamar algo que foi ontem com o mesmo nome usado para falar de algo que foi há mil ou dois mil anos, por exemplo, é não querer falar na imensa diferença que o tempo traz às coisas.

Então, que palavra mais adequada poderia ter sido usada no lugar de “antiga” para designar a recente não-atualidade da linha 125 que, outrossim recentemente era absolutamente atual? Difícil! Até agora não encontrei um termo que melhor fale da diferença que o tempo faz nas simultâneas não-atualidades das coisas. Ok, de certo ponto de vista, tudo que não é atual é antigo. Mas, como dito antes, o antigo de há milênios e o antigo de ontem solicitam diferenciação. Seria o caso então de chamar aquele de “muito antigo”, e este de “recém-antigo”? Não. Isso seria fugir do problema.

O ataque aos Charlie Hebdo em Paris, por exemplo, que se deu em janeiro de 2105, em dezembro desse mesmo ano é o quê? Antigo? Atual? Nenhum dos dois exatamente. Antes, é de uma espécie de atualidade, e também de uma espécie de antiguidade que não se encaixa bem em nenhuma das duas definições. Por um lado, devido ao intenso fluxo de acontecimentos que a contemporaneidade nos traz, um mês depois o massacre dos cartunistas já parecia ser parte de um passado quase distante. Agora, por outro, o fato de estarmos ainda no mesmo ano do atentado nos autoriza dizer que é um fato do presente.

O problema é que o presente absoluto, isto é, o átimo temporal no qual o atual performa a sua plena atualidade, é demasiado estreito. Por isso o que aconteceu, digamos, ontem, ou há dois meses, pode ser chamado apressadamente de antigo. E em relação ao ataque aos chargistas franceses, tanto melhor para a mídia que a tragédia figure como artefato arqueológico dias depois de ocorrido. Afinal, desse modo há espaço, melhor dizendo, necessidade de novas mercadorias midiáticas.

Na contemporaneidade hiperinformacional o já estreito presente está sendo cada vez mais estreitado precisamente para que todos os “agoras” sejam cada vez mais carentes de substância, isto é, de acontecimentos, de mercadorias. A obsolescência apressada das coisas, a antiguidade imediata delas, são coprodutoras do presente atualíssimo a ponto de dizermos que só é possível uma atualidade total se espreitada, cada vez mais de perto, por uma antiguidade estrategicamente imputada a tudo que não queremos que seja considerado verdadeiramente atual. Produção de passado, mais do que nunca, é produção de presente!

E como a contemporaneidade não está aí para brincadeira, essa sua sede de atualidade, que converte cada vez mais presente em passado, chega ao extremo de desatualizar completamente o próprio presente em função de um atual ideal que que precisa ocupar o lugar do atual concreto. Hoje em dia, até o presente já é visto como uma espécie de passado que solicita uma atualização do que sequer deixou de ser. E porventura não é exatamente isso que faz o mundo da moda ao lançar uma tendência que, quando chega às lojas e veste as pessoas já traz outra tendência que faz com que a atual seja já antiga?

A antiguidade apressadamente imputada a tudo que recém deixou de ser, ou até mesmo àquilo que ainda é, é o combustível excelente do motor capitalista contemporâneo que não pode se dar ao luxo de esperar que as coisas envelheçam naturalmente, que fiquem antigas “com o tempo”, para só então produzir mercadorias-novidades que preencham os cada vez mais estreitos e exigentes agoras. Antes, tudo o que há deve necessariamente deixar de ser, o mais rápido possível aliás, inclusive enquanto ainda está sendo, para que o novo seja cada vez mais necessário, e o motor capitalista funcione em velocidade máxima, a sua preferida.

Se a contemporaneidade me impressionou ao chamar de antiga uma coisa que há um dia era atual, impressionaria muito mais se, um mês antes de a linha 125 deixar de existir, já trouxesse o seguinte aviso: “esta linha será a antiga 125”. Seria bem mais a cara da contemporaneidade assumir que até o que é plenamente atual, para ela, já é idealmente antigo. Pois, respondendo à pergunta inicial, não é mais questão de tempo a antiguidade das coisas. Na verdade, o que temos é o sórdido projeto capitalista que, de um lado, produz antiguidade, para, de outro, haver necessidade de um outro produto seu, a novidade.

A lógica dos monstros: de Aristóteles à Lady Gaga.

O que é um monstro? Qual é a lógica da monstruosidade? Antes de imaginarmos figuras ficcionais hollywoodianas, que somente nos afastariam da concretude dos monstros que habitam o nosso “mundo real”, tentemos enxergar essa monstruosidade justamente em pessoas como nós, que, entretanto, por algum(ns) motivo(s) assim são consideradas.
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 Hitler, aqui, não seria o exemplo de monstro ao qual queremos chegar. Antes, o líder nazista seja talvez o maior produtor de monstros da história. Ora, o que foi o Estigma Judeu, na Segunda Grande Guerra, senão a maior empresa de monstruosidade da história? Para construir o seu ideal, Hitler precisou produzir a monstruosidade dos judeus, a “desnormalização” absoluta deles, para com isso dar algum sentido à estratégica “normalidade” alemã – que, na verdade, era um projeto de superioridade.
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Jota Mombaça, mais conhecido Monstra Erratika, corrobora com essa ideia colocando que os monstros são construções sociais produzidas por aqueles que desejam ostentar o rótulo da “normalidade”, cunhado, entretanto, às custas daqueles que a priori são privados do direito de definirem a si mesmos conforme suas naturezas individuais. Essa é uma definição moderno-contemporânea bastante apropriada. Todavia, não é a única.
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Aristóteles, há mais de dois mil anos, já havia escrito a sua Lógica dos Monstros, isto é, a sua Teratologia. Para o filósofo antigo, monstro era quem não tinha capacidade para atualizar a potência de sua natureza. Se, por exemplo, um homem devesse ser a atualização das potências de falar, caminhar, reproduzir etc., mas por alguma contingência da natureza é mudo, aleijado ou estéril, eis um monstro: aquele que nunca poderá atuar a potência humana em toda a sua plenitude.
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Se para Aristóteles os monstros eram produções da própria natureza, para Monstra Erratika, ao contrário, são construções sociais. O próprio Mombaça é um desses monstros socialmente construídos, pois, pelo fato de ser, segundo ele, uma “bicha gorda transex” em um mundo vitimado pela “normalidade”, ele é a priori tomado enquanto monstruosidade, pois ameaça justamente a pretensa normalidade a qual a humanidade crê que deve estar restrita.
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A Teratologia aristotélica, é preciso esclarecer, é física. Isto é, é a natureza, a própria “Physis”, que cria os seus monstros. Já os monstros de que fala Mombaça são produzidos socialmente, pela necessidade social de uma “atmosfera de normalidade” que, entretanto, precisa da anormalidade para se definir. Nesse caso, não seria a Teratologia Modernocontemporânea a própria Sociologia enquanto a Lógica da produção de monstros colaterais que sustentam a “normalidade central” da sociedade?
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Lady Gaga, musa Pop de adolescentes cujas sexualidades não encontram lugar no estreito hall da normalidade, chama seus milhões de fãs de “little monsters”, ou seja, pequenos monstros. Eles mesmos orgulhosamente se auto intitulam “monstrinhos”. Não seria essa aderência deliberada dos seguidores de Gaga à monstruosidade um ato absolutamente subversivo em relação à normalidade hegemônica de uns que, para ser, precisa pressupor a monstruosidade de outros?
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Mediante sua efêmera fama, Gaga ousou abrir num mundo verticalmente normatizado um espaço clandestino de conforto, de normalidade, quiçá de orgulho, àqueles que, por suas naturezas, sentem-se oprimidos pelo fato de não serem “normais”, nesse caso, Heterossexuais Cisgênero. Por isso, há uns três anos, Gaga lançou o álbum chamado “Born This Way”, cuja mensagem central era: não se culpe nem se deixe culpar pelo que você é, você é “Nascido(a) Assim”.
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Agora, não estaria Gaga, com o seu “Born This Way”, fazendo um Remix da teratologia de Aristóteles com a Sociologia-monstruosa-modernocontemporânea de que fala Mombaça ao dizer que, por um lado, a monstruosidade socialmente produzida é mentirosa, condenável, e, por outro, que o que realmente importa é o “jeito” como seus fãs nasceram, mas, ainda assim, chamando-os de “Monsters”?
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Gaga enfrenta a modernocontemporaneidade livrando os seus seguidores da monstruosidade justamente sem abrir mão do famigerado rótulo “Monstro” com o qual essa mesma modernocontemporaneidade tenta oprimí-los. E, ao sustentar que “normal” é qualquer “jeito” que uma pessoa nasça, e mesmo assim insistir que essa pessoa seja chamada de “monster”, outra coisa não faz senão levar Aristóteles ao extremo.
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A lógica dos monstros de Lady Gaga extrapola a teratologia aristotélica dizendo que, independentemente de como nascemos, ninguém é capaz de atualizar toda a potência disso que chamamos “Ser Humano”. Para a estrela Pop, a normalidade seria a assunção da impossibilidade de qualquer pessoa concreta atualizar, em si mesma, a potência dessa abstração que é conceito de humanidade que insiste em nos cercar.
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Para a “Mother Monster” Gaga, para a Monstra Erratika de Mombaça, e para o maior “monstro” da história da filosofia, Aristóteles – todavia, no caso de sua teratologia ser levada ao extremo -, ser “normal” é ser um monstro; é estar concretamente no mundo atualizando não exatamente a nossa potência de sermos humanos, mas principalmente a nossa impotência de sermos plenamente humanos conforme a abstração “Ser Humano” tenta nos convencer.

Fundamentalismo fraco

Quando criticamos o fundamentalismo religioso, por exemplo, o dos muçulmanos radicais, de onde exatamente proferimos nossa crítica? Obviamente, cremos nós, de um lugar descontaminado justamente daquilo que criticamos. Entretanto, o fundamentalismo não se restringe apenas às religiões. É-se fundamentalista inclusive quando se crê piamente, digamos, que o crescimento econômico é absolutamente bom e desejável, que devemos empreendê-lo sem nunca questioná-lo. Deus e o Capital, com efeito, não reinam sem doses elevadas de fundamentalismo. Entretanto, para além destes dois, seria o fundamentalismo intrínseco à nossa existência no mundo?
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Quase todos os países do Mundo Contemporâneo são laicos. Todavia, guiados inquestionavelmente pelo fundamento do Crescimento Econômico, em função do qual aliás até explodem-se uns aos outros. E pouco importa que o fundamentalista laico, aguerrido ao seu tão amado crescimento econômico, só explicite que segue um mau fundamento, quiçá o pior de todos, porque incompatível com as necessidades básicas dos indivíduos em geral e, mais ainda, insustentável de acordo com as possibilidades da natureza.
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Mesmo assim, o Mundo Contemporâneo Laico sustenta e leva adiante, com uma fé cega, o fundamento do crescimento econômico. E uma vez que, como canta Liza Minnelli em Cabaret, “money makes the world go round”, o que temos no cabaré mundano são sete bilhões de crentes no capital fazendo o mundo girar – ou o que é pior, chamando esse monstro piruetado histericamente por nós de mundo.
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O fanático religioso tem na Palavra do seu Deus o seu maior fundamento – mesmo que abaixo deste tenha outros, dentre eles o próprio capital. O fanático capitalista, por sua vez, tem no seu céu mais elevado ninguém menos que o onipotente Deus Capital – ainda que abaixo dele haja inclusive deuses religiosos eletrodomésticos. Ou seja, ambos têm os seus próprios fundamentos, uns supremos, outros de menor espectro, muitos deles em comum inclusive, dos quais não abrem mão e pelos quais são capazes de destruírem-se uns aos outros.
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Em novembro de 2015, o “laico” Estado Francês foi atacado por fundamentalistas do Estado Islâmico. Os franceses, obviamente, ficaram aterrorizados com as mortes no cabaré mais famoso do mundo, o Bataclan. Tal terror, no entanto, não levou em consideração que a própria França – mas não só ela – já estava, antes disso, aterrorizando as vidas de milhares de pessoas com bombardeios destinados ao EI. Porém, a França não foi taxada de fundamentalista nem quando, dois dias depois dos ataques em Paris, seguiu aguerrida ao velho fundamento “destruir os inimigos”, bombardeando novamente o EI.
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O predicado “laico”, do qual a maioria ocidentais se orgulha tanto, e com o qual se sentem inquestionavelmente superiores aos religiosos árabes-orientais, não isenta ninguém do fundamentalismo em si. Muitas vezes o fundamentalista laico é mais fundamentalista e destrutivo que o religioso. Todavia, enquanto ser laico ou ser religioso for uma verdade suprema, em função da qual vale explodir pessoas, seja a partir de drones orientados por GPS, seja com metralhadoras, dentro de cabarés famosos, desculpe-me, só falamos de fundamentalismo radical.
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Slavoj Žižek propõe uma reviravolta no modo de vermos e criticarmos o fundamentalismo ao perguntar-nos: o que é pior, o EI explodir os franceses por que Alá ordenou, ou os franceses explodirem os muçulmanos radicais simplesmente por acreditarem que é isso a coisa certa a ser feita? Não seria o francês laico muito mais cruel que os radicais religiosos muçulmanos ao explodi-los simplesmente por assim achar melhor? E o religioso, em troca, não seria, digamos, mais “absolvível” pelo fato de explodir os seus inimigos por não ter opção diante das ordens do seu Deus?
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Não obstante, a melhor coisa que temos a responder à Žižek é que ambos os fundamentalismos, tanto o laico quanto o religioso, são igualmente condenáveis. Do contrário, aventando a possibilidade de um fundamentalismo ser “menos pior” do que o outro, estaremos aderindo deliberadamente a este que sobrelevamos. Todavia, não se faz isso senão para atribuir colateralmente alguma dignidade ao fundamentalismo a partir do qual se critica os demais, o que é sempre questionável, para não dizer perigoso.
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Na verdade, é praticamente impossível se libertar completamente do fundamentalismo. Mesmo que se condene com a mesma veemência todas as formas fundamentalistas, essa postura mesma outra coisa não é além de mais um fundamentalismo. O pior de todos aliás, pois o fundamentalismo que se coloca sobre os demais, reprovando-os todos, é o mais fundamentalista. A não ser, é claro, que se seja absolutamente pirrônico, isto é, incondicionalmente cético e não se leve em consideração nem os próprios juízos sobre a realidade.
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Seguindo o exemplo de Gianni Vattimo, filósofo italiano defensor do “pensamento fraco”, ou seja, o pensamento que não precisa destruir nenhum outro pensamento para poder pensar, devemos aceitar o desafio de vivermos uma espécie de “fundamentalismo fraco”, para evitar sermos fundamentalistas radicais, afinal, o fundamentalismo também tem os seus “cinquenta tons de cinza”. Ora, não é difícil concordar com o fato de que o fundamentalista ecológico, por exemplo, é deveras necessário num mundo no qual o fundamentalismo capitalista poluí e destrói a natureza.
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Entretanto, o fundamentalismo fraco que podemos “comprar” e universalizar sem medo de errar, pois nos distancia, de um lado, do fundamentalismo radicalmente pernicioso, e, de outro, do nada cético que nos aliena do mundo, é precisamente este: estar no mundo. Obviamente, para que este fundamento não se transforme em um problema, devemos aceitar e defender que todos tenham direito a ele. O direito de “estar no mundo” do meu inimigo deve ser o limite para todas as minhas demais ideias fundamentais. Do contrário, em vez da virtude do “fundamento fundamental”, teremos somente o vício do fundamentalismo radical.

Uma pequena história da Moda

Nem sempre a Moda esteve “na moda”. Antes dela, o mundo e as coisas eram de determinado modo, e, ademais, deveriam ser exatamente do modo que eram. Mudá-los era ou burrice, ou pecado. Porém, nalgum lugar da história, as coisas precisaram mudar. Não para doravante serem de um outro modo e não mudarem mais, mas, ao contrário, para poderem mudar o tempo todo. Estamos falando, obviamente, da Modernidade, época na qual a humanidade passou a seguir modas, a inventar novos modos, novas maneiras para o mundo ser e de ser no mundo.
Antes da Modernidade não faz sentido falar em Moda. Para os gregos antigos, por exemplo, era irracional viver em função daquilo que muda o tempo todo. Racional, para eles, era se voltar para o que é sempre, o tempo todo, e não para o que muda constantemente. Aliás, não temos aqui o cerne da filosofia grega: a questão entre o Ser e o devir, ou seja, entre “o que é sempre” e “o que muda o tempo todo”? E Platão, por desprezar mais que todos o mundo da mudança e ser absolutamente fiel ao imutável mundo das ideias eternas, porventura não seria o “Inimigo Número 1” da Moda?
Já para os medievais, seguir modas seria, no mínimo, um grande pecado. Ora, se os cristãos da Idade Média aderissem às modas, outra coisa não estariam fazendo senão afirmar que aquilo que Deus criou certa vez, e que obrigatoriamente deveria ser perfeito e eterno, não era bom o suficiente, precisava ser mudado, melhorado. A perfeição divina, por conseguinte, desqualificava a priori qualquer outro modo de as coisas serem. A moda, a mudança, na Idade da Trevas, poderia apenas tornar o mundo menos perfeito do que já era. Por isso, enquanto Deus esteve vivo a Moda não entrou “na moda”.
Entretanto, na Modernidade, como Nietzsche deixou bem claro, Deus morreu. E “se Deus está morto, então tudo é permitido”, escreveu Dostoiévski no seu Os Irmãos Karamazov. Então, sem perfeição divina alguma solicitando que as coisas continuassem do modo irretocável como Deus as havia criado, a humanidade pode mudar o mundo e a si mesma a seu bel-prazer. Esse foi, portanto, o momento no qual a Moda entrou “na moda”.
A Pós-modernidade, que insiste em se colocar como sucessora da Modernidade, não deve todavia ser entendida como a Idade na qual a humanidade deixou de seguir modas. Aliás, o atual fluxo de mudanças que atravessa e constitui o nosso mundo deixa isso bem claro, não? Antes, a pós-modernidade deve ser vista como uma modernidade excessiva, uma “sobremodernidade”, como diria Marc Augé. Com efeito, a Pós-modernidade é a época na qual se é mais moderno que os próprios modernos. Portanto, a Moda está mais “na moda” hoje em dia do que na própria Idade das modas.
Atualmente, o suceder incessante das modas, a mudança contínua do mundo, se dá não por que o mundo-ele-mesmo se mostra defeituoso, carente de mudança, de melhoria. A Moda dos nossos dias muda o mundo simplesmente porque pode mudá-lo. Mesmo que as coisas estejam de modo que nos pareçam satisfatórias elas devem mudar. Sabemos, obviamente, que a histeria da Moda é aliada fiel do capitalismo. De outra perspectiva, Moda, Modernidade e Capitalismo podem ser vistos como um único Ser Histórico. Porém, isso já é outra história.
O objetivo aqui é ressaltar que se com os modernos a Moda entrou “na moda”, e isso porque as coisas deveriam mudar, entretanto, para serem de outros modos, necessariamente diferentes do já foram – “por que mudar”, perguntariam os modernos, “se é para voltarmos ao que já fomos?” -, para os pós-modernos, em troca, não há problema algum em elas serem novamente o que já foram em outras épocas. É perfeitamente normal a moda dos anos 1950, por exemplo, ser “a” Moda em algum momento dos anos 2015.
“Por que mudar somente no sentido de sermos diferente de tudo o que já fomos”, perguntariam os pós-modernos, “se podemos mudar inclusive para voltarmos aos nossos antigos modos de ser?” A Pós-Modernidade, portanto, é o espaço/tempo no qual a Moda é circular pelas modas, isto é: “ser de tal modo” que seja possível ser os diferentes “modos de ser” da humanidade; sejam eles atuais, sejam inéditos, sejam ainda aqueles que já experimentamos. Pecado, ou burrice, hoje em dia, é se privar dessa livre circulação pelos diversos modos de o mundo ser e de sermos nele.

Invejas tonalizadas

Inveja tem cor? Antes de responder que sim, vale lembrar que, para Spinoza, a inveja é uma tristeza que diminui a potência de agir de quem a sente. Talvez por isso seja tão vergonhoso confessar que sentimos inveja, afinal, é um afeto produzido por nós mesmos que produz a nossa própria impotência. Já aqueles por quem sentimos inveja não é afetado negativamente. Aliás, quando alguém percebe que está sendo invejado, geralmente experimenta aquele orgulho abjeto chamado vanglória.
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Então, quando alguém sente inveja, está se rebaixando, voluntariamente, e, ao mesmo tempo, elevando aquele a quem inveja. Podemos pensar inclusive que não é a inveja que gera o rebaixamento, mas que este é primeiro. Porventura não é isso que Spinoza queria deixar claro quando disse que “ninguém está mais propenso à inveja que aqueles que se rebaixam”? Com efeito, aquele que sente inveja outra coisa não faz além de dizer a si mesmo que já se julga inferior àquele a quem inveja.
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Entretanto, por mais que desejemos secretamente não sentir inveja dos outros, Spinoza afirma que “a natureza dos homens está, em geral, disposta de tal maneira que eles têm inveja pelos que vão bem”. Sendo a inveja, portanto, uma disposição natural do ser humano, mas, por outro lado, algo que o diminui, rebaixa, refreia a sua potência de agir, sentimo-la e, ao mesmo tempo não queremos senti-la. Por isso é tão difícil sentir e, mais ainda, confessar que sentimos inveja de alguém, tal é a natureza dos sentimentos ambíguos.
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Para amenizar o drama solipsista no qual a inveja nos coloca, muitas pessoas usam um subterfúgio que, no entanto, não deve passar sem ser questionado. Para assumirem esse afeto natural e espontâneo do qual, ao mesmo tempo, desejam estar livres, dizem que sentem “inveja branca”. Entretanto, o que é a “inveja branca”, e em que medida ela é diferente da inveja, essa bem conhecida nossa, e que não precisa de cor alguma para nos afetar nem para nos envergonhar?
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Ademais, haveria uma “inveja preta” que completasse, por oposição, o sentido da tal “inveja branca”, ou, antes, a “inveja preta” já seria a própria inveja? Assumamos, por enquanto, que há somente a inveja e, oposta a ela, a dissimulada “inveja branca”: aquela, o afeto de que temos vergonha de confessar, e esta, uma vergonha minimamente confessável.
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Entretanto, qual o critério para classificar o rebaixamento no qual nos colocamos de inveja ou de “inveja branca”? Bem, Spinoza diz que “ninguém inveja a virtude de um outro, a menos que se trate de alguém que lhe seja igual.” Ou seja, não invejamos uma montanha pela sua imponência, um gato pela sua elegância, tampouco uma flor pela sua cor, mas apenas seres iguais a nós. Portanto, só podemos invejar pessoas; mais especificamente, aquelas nas quais percebemos virtudes que nós, justamente por sermos iguais a eles, deveríamos ter, mas, como a inveja deixa bem claro, acreditamos que nos falta.
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Agora, se a inveja é mesmo um afeto que se interpõe entre iguais, porém pelo fato de um deles se sentir desigual, melhor dizendo, inferior, podemos colocar que ela instaura uma desigualdade justamente onde não deveria existir. Uma vez vítima da inveja, aquele a quem invejamos nos parece, todavia por pressuposição nossa, contrário à igualdade. Spinoza nos garante isso ao propor que os homens que são movidos pela inveja são “reciprocamente contrários”.
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Portanto, é o invejoso que traz contrariedade às suas relações, porquanto não são os invejados que partem do pressuposto de que são carentes de alguma coisa nem que são inferiores a alguém. A inveja, com efeito, faz aquele que a sente ver contrariedade onde há igualdade. Indo mais longe: a inveja tem duas faces. Uma mentindo uma desigualdade, a outra escondendo uma igualdade. A “inveja branca”, por sua vez, não seria a inversão dessas duas faces da inveja, uma estratégia para vermos uma igualdade justamente onde nós mesmos colocamos a desigualdade?
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Entretanto, não nos enganemos, pois a “brancura” de uma inveja não faz com que esse afeto alcance um estatuto de maior dignidade. Ela ainda é inveja; ainda nos rebaixa; ainda rouba a nossa potência de agir, mesmo que a confessemos. A “inveja branca” é apenas a “inveja normal” fingindo uma dignidade que não lhe cabe. Ora, se, como disse Spinoza, a inveja é um afeto que faz parte da natureza dos homens, mas que não obstante os rebaixa, não estaria a tal “inveja branca” querendo assumir e dissimular, simultaneamente, a baixeza de quem a sente?
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Portanto, sentir essa coisa chamada “inveja branca” é apenas o modo de seguirmos alienados do rebaixamento a que nós mesmos, por nosso esforço, auto imputamo-nos em relação a quem invejamos, sem, contudo, ocuparmos assumidamente esse lugar inferior. O invejoso “branco” é aquele que sente inveja e ao mesmo tempo finge não ser carente daquilo que acredita que só o invejado tem. Desse modo, a “inveja branca” é um sobre-rebaixamento: invejar é o rebaixamento primeiro, e “clarear” esse afeto para que não pareçamos tão rebaixados assim, o segundo.
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Se o “invejoso branco” fosse um criminoso, seria aquele que comete o crime deliberadamente mas que prefere se fazer de vítima das circunstâncias. Em vez de confessar o ilícito de modo transparente, tonaliza-o com cores, digamos, mais absolventes. Em troca, se assumisse opacamente que a inveja que sente não tem cor apaziguadora alguma, que é só inveja mesmo, obviamente não escaparia de se apossar desse espaço de rebaixamento que a inveja lhe lega. Todavia, desse chão inglório não passaria.
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Porém, branquear estrategicamente esse afeto outra coisa não é que reduzir ainda mais a própria potência de agir. Ora, se invejar é o primeiro sinal de que já nos sentimos rebaixados, dissimular este afeto apelidando-o com uma tonalidade mais amena apenas nos aliena ainda mais da baixeza que nós mesmos inventamos para nós. Ao contrário, assumindo a inveja, nua, sem fantasias coloridas, podemos enxergar melhor o desnível que inventamos entre nós e aqueles a quem invejamos. Desse modo, fica bem mais fácil superá-lo, isto é, agir contra aquilo que rouba a nossa potência de agir.

Marcados como inseguros

Fulano “foi marcado como seguro nos ataques em Paris”. Imediatamente, essa ferramenta que o Facebook está disponibilizando assim que ocorre uma tragédia em determinado lugar, como os ataques de 13/11, em Paris, é positiva. Afinal, é bom ser informado, o mais rápido possível aliás, de que alguém que conhecemos, ou de quem gostamos, que está ou poderia estar nalgum lugar atacado por terroristas, destruído por um terremoto ou pelo rompimento de uma barragem tóxica, está seguro. Entretanto, um segundo olhar pode mostrar que essa ferramenta que decide e informa “worldwide” a segurança de alguns dos seus usuários tem o seu lado negativo.
Em primeiro lugar, como não são as próprias pessoas que tomam a iniciativa de informar aos seus contatos que “estão seguras”, mas o próprio Facebook, baseado nas cidades que estão marcadas nos perfis dos seus usuários, nas localizações dos seu smartphones ou tabletes, ou nos locais a partir dos quais eles acessam a internet, e, outrossim, considerando que no mundo globalizado de hoje a localização geográfica de alguém é um dado assaz obsolescente, a tal ferramenta pode errar tanto quanto acertar.
Um exemplo: vi que uma amiga estava “marcada como segura” nos ataques parisienses. Na mesma postagem, entretanto, estava o comentário dela informando que estava no Brasil. Ou seja, o Facebook informou algo que teve de ser “desinformado” em seguida para que, digamos assim, “a verdade” terminasse informada. Melhor seria, obviamente, que a própria pessoa marcasse a si mesma “como segura em Paris” – no Nepal, ou em Mariana. Todavia, o que temos é uma pressuposição da empresa de Zuckerberg que precisa ser confirmada ou negada a posteriori.
Outro ponto negativo dessas particulares “marcações de segurança” é a imediata, todavia subjetiva, redução da gravidade dos eventos trágicos trazida justamente pela informação de que alguém das nossas relações pessoais está seguro em respeito a eles. Em outras palavras: 1) ficamos sabendo que mais de 150 pessoas morreram em um atentado na França; 2) isso é inquestionavelmente grave; em seguida, 3) ficamos sabendo que tais e tais pessoas que fazem parte das nossas vidas não foram afetadas; por fim, 4) temos uma tragédia que, para nós, é menos trágica. No entanto, mesmo que as vítimas do atentado parisiense tenham sido somente pessoas que não conhecemos, a tragédia em si mantém a mesma gravidade objetiva.
Agora, o ponto mais negativo de tudo isso é que ter sido “marcado como seguro” esconde o fato de que nós, na periclitante babilônia contemporânea, estamos completamente vulneráveis à ignomínia humana, ou seja, peremptoriamente “marcados como inseguros”. Afinal, não é exatamente isso que diriam os Charlie Hebdo assassinados em Paris, os mineiros soterradas pela lama tóxica da Vale, os refugiados sírios que se aventuram diariamente pelo Mar Mediterrâneo, só para citar alguns, todavia, todos comprovadamente “marcados como inseguros”?
Sim, somos “marcados como inseguros” no mundo em que vivemos. Melhor dizendo, “estamos” marcados como inseguros “pelo” mundo em que vivemos. E as marcações de segurança que o Facebook informa apenas escondem esse triste fato. Em troca, não estaríamos tão alienados da vulnerabilidade a que estamos sujeitos se a mesma rede social que eventualmente informa a segurança de alguns dos seus usuários informasse também, constantemente, a sempiterna insegurança de todos.
Por que somente “os seguros” merecem um “status” informativo? Não estariam os não-seguros, ou seja, todos nós, sendo varridos para baixo do tapete pela ferramenta facebookiana? Pior ainda, não seriam essas tranquilizantes “marcações de segurança” virtuais uma estratégia do mundo contemporâneo cunhada justamente para nos alienar ainda mais daquilo que de fato gera a nossa real condição de insegurança, qual seja: o próprio mundo contemporâneo?
Não obstante, para que não vejamos a angustiante imagem que mostra que estamos inseguros o tempo todo, em todos os lugares, recebemos, na segurança dos nossos feeds de notícia, pílulas-postagens que tentam nos convencer de que, pelo menos para alguns, há essa coisa tão desejada por todos, mas que cada vez mais falta, chamada “segurança”. Agora, a informação que realmente faria diferença, e que sem dúvida todos gostariam de ver postada nas redes sociais, mas que no entanto empresa privada alguma pode dar, não seria precisamente a seguinte: “o mundo foi marcado como seguro”?

Mariana: o nosso Carma e a nossa lama

Com a minha fé na capacidade sustentável e ecológica do homem completamente soterrada pelas toneladas de lama contaminada que a Vale do Rio Doce esparramou pelas Minas Gerais, pelo Espírito Santo, e que jazerão indefinidamente no já bastante poluído oceano, só me resta fazer como os budistas: suprassumir as vicissitudes da “Roda de Samsara” (o ciclo existencial no qual reinam o sofrimento e a frustração produzidos pela ignorância), ao valioso desejo de encontrar o “Caminho da Libertação”. Em outras palavras, transformar o “Carma” dessa catástrofe ecológica em “Dharma”, ou seja, o “Caminho para a Verdade Superior”.

Entretanto, qual seria a verdade budista absolutamente elevada que superaria a verdade indesejada, e por isso baixa, do desastre ecológico mineiro? Com efeito, a primeira verdade dessa baixeza cármica é o “meio-ambiente capitalista” que, pelo que nós e a natureza podemos ver, parece ser o único que realmente importa para a Vale. Verdade também é que, se culpamos a Vale por ter despejado a sua lama no mundo de milhões de pessoas, antes, devemos culpá-la por ter produzido e estocado sistematicamente, em açudes/represas, toneladas de resíduo venenoso.

Agora, se a represa na qual a Vale estocava a fatídica lama tóxica não tivesse rebentado, a opinião pública em geral estaria hoje tão alienada em relação a esse monstro devastador como se ele nem existisse. Porém, o Monstro de Lama da Vale já estava lá, tóxico e ameaçador, sendo produzido, gerado, engordado, o tempo todo. A indignação que a opinião pública expressa agora, no entanto, não abarca essa parte, digamos assim, “a priori” do desastre. Nossas preocupações ecológicas parecem ser tão “a posteriori” quanto as da Vale: só depois de “a merda ser jogada no ventilador”, é que nós e a Vale paramos para pensar e para tentar remediar o problema.

No entanto, o budismo sussurra convincentemente que não há Caminho da Libertação apenas se nos revoltarmos contra o vazamento do resíduo mortífero da Vale. Se não houver a mesma revolta em respeito à longeva produção e à sempiterna estocagem desse veneno, ademais na natureza, estaremos eternamente presos em uma das trágicas estações de Samsara. Então, cativos de um dos estágios do Carma, não ascenderemos ao Dharma, que, nesse caso, deve ser entendido como “um mundo no qual a humanidade e a natureza convivam sem se destruir”.

Ademais, se quisermos atravessar o Carma, isto é, cruzar definitivamente o ciclo existencial no qual reinam o sofrimento e a frustração produzidos pela ignorância, não podemos deixar nós mesmos, cidadãos brasileiros, de fora desse indesejado “devir antiecológico” que, hoje, é representado pela Vale. Entretanto, por mais que essa empresa priorize sobretudo os seus interesses econômicos, ela só está aí porque interessa ao Brasil, portanto, aos brasileiros. Se, de um lado, temos a abjeta destruição da natureza pela Vale, por outro, temos as tão desejadas e necessárias divisas que esse antiecológico empreendimento traz ao Brasil, portanto aos brasileiros.

Quantas estradas, escolas, universidades, hospitais, só para citar algumas coisas que os brasileiros solicitam e necessitam, foram possíveis pelos impostos que a Vale paga? Desse ponto de vista, o brasileiro em geral, mais precisamente o seu silêncio ou ignorância em relação ao mar de lama que a Vale ia construindo paulatinamente nalgum lugar de Minas Gerais, também precisou desse lamaçal tóxico tanto quanto a própria Vale. Precisamente aqui é o lugar de não nos excluirmos dessa insuportável etapa cármica que gerou este último e maior desastre ambiental tupiniquim.

Por isso não podemos dizer que os antiecológicos interesses da Vale são tão diferentes dos interesses dos brasileiros em geral. De certa forma, ambos querem sobreviver e evoluir da melhor forma possível. Entretanto, pelo menos desde a modernidade, o modo de a humanidade realizar isso infelizmente se dá a despeito da natureza. Para ser mais preciso, explorando-a, destruindo-a.

As nossas tão desejadas viagens de avião ao exterior, por exemplo, só são possíveis ao custo de uma tonelada de monóxido de carbono lançados no ar por viajante, em um único voo. Porém, antes, durante e depois dos nossos passeios por Paris ou Londres, por exemplo, não nos culpamos diretamente pelo aquecimento global. Nem precisamos ir muito longe: os nossos ambientes artificialmente refrigerados, hoje em dia, também só são possíveis se queimarmos toneladas de carvão nas usinas termelétricas, aliás, cada vez mais usadas no Brasil. Por aí vai o homem. Entretanto, por aí também se esvai a natureza.

Desse modo, o aviltado sentimento ecológico que reclama nos nossos peitos é um afeto extremado cujo excesso, não obstante, visa justamente nos alienar do fato de que somos nós, e somente nós, homens e mulheres, os promotores concretos da destruição da natureza. Entretanto, a nossa ignorância faz com que o Monstro Antiecológico seja bem melhor representado em abstrações como, por exemplo, a Vale. Porém, enquanto não computarmos nós mesmos nesse devir antiecológico, nossa ignorância em relação a ele não nos levará a outro lugar senão a mais antiecologia. Por isso a solução para o atual desastre ocorrido em Minas deve compreender não só a Vale, mas os brasileiros, quiçá a humanidade em geral.

Ora, enquanto insistimos em deslocar a culpa da destruição da natureza para empresas ou instituições, como se se tratasse de um inimigo transcendente e Mau, deixamos de fora da tão necessária revolução ecológica os únicos que realmente podem mudar os tortos rumos do nosso mundo: nós mesmos; indivíduos que, de um lado, destroem a natureza, e, de outro, não querem tal destruição. Querer estas duas coisas é senão estar preso na Roda de Samsara. É estar tão distante do Dharma quanto da verdade, portanto, do Caminho da Libertação.

A antiecologia da Vale é a mesma que a nossa na medida em que destruímos a natureza para construir um mundo dito melhor para todos. Resistir em aceitar profundamente esse fato é manter-se senão na senda da ignorância e da alienação. Só existe uma Vale porque existem pessoas, que precisam umas lucrar astronomicamente, outras trabalhar arduamente em troca de salários miseráveis, e, todos, de um país que tenha uma receita gorda o suficiente para que todos tenhamos aquela “vida com um mínimo de qualidade” que, entretanto, sabemos ser a maior destruidora da natureza.

De modo que, para atravessarmos o Carma do desastre ecológico mineiro, brasileiro, e porque não dizer mundial, devemos nos colocar como corresponsáveis por ele. Afinal, por um lado, é o mundo no qual vivemos, do qual fazemos parte, mas também e principalmente o mundo do qual solicitamos a satisfação das nossas necessidades individuais, das mais básicas às mais supérfluas, o produtor do mar de lama tóxica que ninguém queria que existisse. Porém, uma vez existindo, e espalhado pela natureza, imediatamente queremos que seja só da Vale. Ora, se o mundo é feito senão pelos homens, temos que são estes, todos nós, aliás, os responsáveis pelas toneladas de lama tóxica em questão.

A sabedoria elevada do budismo, o seu Caminho da Libertação, no entanto, deve tornar verdade o fato de que tanto faz se a lama venenosa permanecesse contida/escondida em uma represa ou tragicamente espalhada pelo mundo. O Mal não é a lama ter rompido a represa. Somente a produção dessa lama também não é todo o Mal. Antes, o Mal absoluto é esse modo humano de viver no mundo que não consegue respeitar e proteger o meio-ambiente do nosso mundo, isto é, a natureza.

O Dharma que deve se seguir do presente Carma que nos atormenta desde que a represa tóxica em Minas Gerais rompeu é justamente a assunção de que, hoje em dia, mais do que nunca, o Mal concreto da natureza somos nós, os humanos. Podemos, com efeito, abstrair essa nossa culpa; culpar uma empresa particular ou uma instituição qualquer pelas vicissitudes ecológicas que nos ameaçam. Todavia, agindo assim, apenas mantemos a Roda de Samsara girando contra a natureza, e, no fim das contas, contra nós mesmos. Será esse o nosso Carma?

Sexualidades idealizadas

O que define a sexualidade de uma pessoa? Suas relações afetivas e ou sexuais objetivas, ou, antes, simplesmente a ideia que ela mesma faz – ou mesmo quer fazer – de sua própria sexualidade, ou seja, um critério meramente subjetivo? No primeiro caso, temos uma definição baseada em um juízo materialista correspondente às relações concretas que a pessoa tem. Já no segundo caso, ao contrário, a sexualidade é fruto de um idealismo, isto é, é definida apenas pela ideia que o sujeito tem de sua própria sexualidade, não importando se suas práticas sexuais convenham ou não com tal ideia.

O idealista, entretanto, pode findar chamando “urubu de meu louro”. Por exemplo, afirmar que é heterossexual enquanto mantém – ainda que esporadicamente – relações sexuais com alguém do mesmo sexo que ele. E não é exatamente isso que vemos nos “G0y” (assim mesmo, escrito com zero), homens que, por um lado, se dizem heterossexuais, mas, por outro, não têm problema algum em assumir que se relacionam sexualmente e inclusive afetivamente com outros homens?

A ideia aqui não é restringir ninguém de realizar seus desejos sexuais, mas problematizar o fato de alguém vivenciar concretamente uma sexualidade determinada e, ao mesmo tempo, determiná-la como se fosse outra. Novamente os “G0y”: homens que fazem sexo com homens e mulheres mas que não se consideram bissexuais. Haveria, porventura, alguma coisa de errado ou de aviltante no conceito de bissexualidade: a atração afetiva, seja ela sexual, romântica ou emocional, por pessoas de ambos os sexos?

Por outro lado, temos que o conceito de bissexualidade oferece a algumas pessoas como que uma aura virtuosa. Conheci duas meninas, uma de nove e outra de doze anos de idade, que nunca fizeram sexo, tampouco se apaixonaram, seja por um menino, seja por uma menina, mas mesmo assim afirmam categoricamente que são bissexuais. Não estamos lidando aqui com um caso de idealismo puro?

O fato de as duas garotas definirem previamente as suas bissexualidades, melhor dizendo, pressuporem-nas antes mesmo de terem qualquer experiência concreta, empírica, evidencia, de um lado, que se trata apenas de uma ideia desconectada da realidade. Entretanto, de outro, aponta para o perigo de que as suas sexualidades genuínas sejam pautadas por essa apressada ideia, até mesmo forçadas por ela.

Porventura não seria melhor as duas garotas esperarem até serem espontaneamente atravessadas por suas sexualidades, e, baseadas nesse atravessamento natural, perceberem com qual, ou com quais sexos as suas sexualidades são concretamente realizadas, para só então, lastreadas nas suas experiências, afirmarem que são bissexuais – ou hetero, ou homo? Da mesma forma, não seria menos confuso alguém que transa com ambos os sexos definir-se como bissexual em vez de chamar essa prática de um “nome fantasia” qualquer, como fazem os “G0y”?

No entanto, o que vemos é justamente um crescente espaço de confusão no que tange a definição que cada um faz de sua própria sexualidade: bissexuais praticantes não aceitando o conceito que lhes cabe – os “G0y” -, e pessoas que sequer se “inauguraram” na afetividade sexual atribuindo a si mesmas sexualidades que sequer podem vir a se expressar nelas, ou através delas – as duas meninas.

Idealismo e materialismo são modos antagônicos de se pensar alguma coisa. Por isso quem define a sua sexualidade de modo idealista não computa – ou não quer computar! – as suas práticas sexuais concretas. O antagonismo resultante dessa confusão, nos nossos exemplos, se expressam da seguinte forma: os “G0y” são heterossexuais idealizados “e” bissexuais materializados; as duas garotas, bissexuais idealizadas “e” pré-sexuais materializadas.

Onde exatamente jaz a impossibilidade de muitas pessoas assumirem as suas sexualidades concretas, refugiando-se covardemente em sexualidades idealizadas? No preconceito que ainda impera na nossa sociedade? Os “G0y”, na verdade, não estariam temendo serem tomados por bissexuais, e justamente por esse motivo se definem com esse “apelido”? E as duas garotas, não estariam tentando esquecer o fato de ainda não terem suas sexualidades concretizadas determinando peremptoriamente que são bissexuais ?

Infelizmente, vivemos em um mundo onde o sexo é superestimado. E a sexualidade, outrossim, não escapa de tal escrutínio. Ora, se materialmente algo é “X”, dizer que é “Y” ou “Z” é só um malabarismo das ideias. Todavia, em um mundo no qual a sexualidade é supervalorizada, muitas pessoas “manipulam-na” idealmente para nunca ficarem aquém das expectativas desse mesmo mundo.

Por isso a heterossexualidade idealizada dos “G0y” não está nem aí para o fato de eles serem concretamente bissexuais. Da mesma forma, a bissexualidade idealizada das duas garotas não se preocupa com o fato de que elas sequer conhecerem as suas dimensões sexuais. Podemos ou não dizer que os “G0y” apenas reciclam o velho conceito “gay no armário”? E das duas garotas, por acaso, apenas não ressignificam o conceito clássico de histeria: eu quero tal coisa (a definição de minha sexualidade) mesmo que eu não precise dessa coisa ainda?

A pergunta que eu gostaria que os “G0ys” se colocassem é a seguinte: qual é o problema da definição de bissexualidade, e até mesmo de homossexualidade, para que resistam em conformarem-se nelas? Às duas garotas, a pergunta seria: qual é o problema em ainda não terem uma sexualidade naturalmente estabelecida? A ambos, pediria que considerassem as suas práticas sexuais concretas – ou a ausência delas, no caso das duas garotas – para ver se ainda assim as sexualidades que declaram idealmente se sustentam no mundo material onde elas são, ou serão exercidas.

O Rio Olímpico e a caverna de Platão

A alegoria da caverna, de Platão, fala de como podemos nos libertar da escuridão, melhor dizendo, da ignorância na qual nos encontramos aprisionados, e que caminhar para fora da caverna é o meio de encontra a luz (o sol) da verdade. O breu de que fala o filósofo grego pode se justificar no fato de o seu Sol ser deveras brilhante, ameaçando inclusive cegar quem se aventure a sair da caverna escura para encará-lo. Com efeito, em Platão, a metáfora da fotofobia é o meio para pensarmos a “sapiofobia”, isto é, o medo do saber com que muitos de nós, quiçá todos, nos mantemos prisioneiros da ignorância.

Podemos usar essa “sapiofobia” de que fala a alegoria platônica para pensar uma “urbanofobia”, ou seja, um “medo da cidade”. Para tanto, esse real de que somos ignorantes deve ser pensado enquanto o real das cidades nas quais vivemos. Que real seria este? E que caverna faria o papel de aprisionadora, de alienadora da verdadeira Luz Urbana? Uma vez que a compreensão do mito platônico se dá no traslado entre dentro e fora da caverna, a analogia com a nossa condição dentro das nossas cidades deverá repetir tal promenade.

Todavia, seria ingênuo demais pensar que as nossas casas são as cavernas, que são elas que obscurecem a iluminada verdade urbana, que a cidade é o local da verdade, e que fora das nossas casas-cavernas jaz a Luz desejada. Antes, a cidade toda deve ser vista como A Caverna: suas ruas, praças, equipamentos, shopping centers etc. Inclusive os caros metros quadrados nos quais nos refugiamos, e que inocentemente chamamos de casa, são senão a forma escura com que nos mantermos distantes da Luz.

Se na caverna de Platão os homens vivem acorrentados e voltados para uma parede na qual titereiros (ideólogos?) projetam sombras para que creiamos que elas são as coisas reais, na caverna urbana, outrossim, estamos acorrentados e voltados à sombras que chamamos banalmente de ruas, praças, hospitais, escolas, shopping centers e casas; sombras estas que são projetadas pelos nossos titereiros (especuladores imobiliários e políticos) para que pensemos que a cidade é, e deve ser, somente isso que vemos e experienciamos enquanto cativos dela.

No gentrificado teatro de sombras urbano carioca, por exemplo, o vulto do aluguel mais caro do mundo, o fantasma da segregação espacial que nos finais de semana barra cidadãos suburbanos às portas da elitizada Zona Sul, o monstro dos congestionamentos em que nos aprisionamos em cada deslocamento, só para citar alguns urbano-personagens do Mal, são, sem dúvida, grandes sombras. Porém, são as mais verdadeiras, pois revelam a Luz mentirosa que tenta nos convencer de que a cidade é um espaço pleno de liberdade e de oportunidade para todos os que nela vivem.

Slavoj Zizek, na sua “A Visão em Paralaxe”, pergunta se a caverna de Platão não seria, antes de ser aquilo que nos afasta da verdade, a construção propriamente humana para nos protegermos do excesso de luz do Sol platônico. Desse ponto de vista, a caverna seria o primeiro estágio da civilização, aquilo que nos diferencia dos demais animais. Aqui a minha analogia agradece, pois a cidade é propriamente a construção humana feita para o homem se proteger das verdades/vicissitudes da natureza. A caverna platônica, portanto, é a natureza civilizada: a cidade.

Entretanto, a cidade-sombra, na qual a maioria das pessoas vive aprisionada, é efeito colateral da projeção de uma cidade-Luz gentrificada a uma minoria que, esta sim, pode pagar o aluguel mais caro do mundo, não ser barrada nas praias da ZS – porque já vive lá -, e com seu helicópteros fugir das avenidas congestionadas, etc. De modo que, na cidade, para alcançarmos alguma Luz, é preciso sair dela. Não é nela que reside a verdade. Antes, nas cavernas-cidades permanecemos cegos em respeito àquilo que as nossas vidas poderiam ser de verdade.

Porém, quando um cidadão qualquer, imerso na escuridão urbana e acorrentado por ela, decide romper os grilhões, levantar-se e sair, os titereiros urbanos projetam novas sombras que mentem novas verdades. No caso carioca, o tal legado dos jogos olímpicos é a mais nova e forte sombra insistentemente projetada para fazer com que os cidadãos dessa cidade acreditem que estão mais distante das trevas e mais próximos da Luz. O que vemos, no entanto, são sombras ainda mais negras: alugueis ainda mais caros, a Z.S. ainda mais gentrificada, o trânsito mais caótico que nunca etc.

O grande teatro do Rio Olímpico mostra muito bem que não há Luz a ser encontrada na cidade: a cidade é a Sombra-em-si. Portanto, fora da Caverna Urbana não faz sentido algum procurar por alguma Luz Urbana. O Urbano é já-sempre A Sombra. Ao deixarmos tal escuridão, o Sol que encontraremos é aquele que diz que a Luz está fora e longe da urbanidade; que nos limites citadinos estaremos sempre aprisionados às sombras enganosas dos especuladores imobiliários e da corja política que lhes servem.

E porventura não é exatamente isso que sentimos quando, por poucos dias, deixamos a cidade para gozarmos as nossas cada vez mais raras férias, seja no campo, seja nalguma praia deserta? Pode até ser que o tal “campo” e a tal “prainha” sejam sombras de uma caverna ainda maior. Entretanto, como Platão e a sua alegoria me levam a crer, a promenade que afasta das Trevas e aproxima da Luz não precisa ter um final definitivo para se dar. Apenas recusar sistematicamente as sombras que são colocadas diante de nós já é sair da caverna, pois esse é o passo que evidencia a existência da própria caverna.

Em respeito ao Rio de Janeiro, sair da caverna seria deixar para trás todas as suas sombras, estar a salvo delas. Não obstante, como o mito platônico mostra, isso é um processo! Antes de abandonar a Cidade Maravilhosa, cabe primeiro evidenciar que esse “Maravilhosa” já é uma sombra, a mais projetada, aliás; que a Luz olímpica não chega agora para iluminar a cidade “para” os cariocas, mas apenas para fazer com que as sombras que todos eles veem sejam mais eficientemente projetadas, para que os cariocas sigam acreditando que a sua cidade é Maravilhosa, embora ela não seja nem deles, nem Maravilhosa.

A Luz verdadeira, que fica obscurecida pela estratégica escuridão urbana, é a gentrificação da própria Caverna. A Caverna Carioca não escapa disso! E para que os cariocas não descubram que a cidade não tem nenhum Sol ideal no fim do túnel, a politicagem imobiliário-especulatória coloca na porta da caverna urbana um pelotão armado impedindo os “aprisionados” de sair, assim como fez o governador do Rio de Janeiro: proibiu os suburbanos – vítimas excelentes da gentrificação – de acessarem o sol dominical da Z.S.; essa Luz mentirosa que cria/projeta a sombra suburbana. Esta sombra, no entanto, é a primeira verdade que devemos conhecer – e iluminar! – dentro da obscura, todavia pretensiosa, Caverna do Rio Olímpico.

Ética de chocolate – uma dietética

Os chocólatras me perdoem, mas não é exatamente de chocolate que falaremos, mas daquilo que parece ser o mais importante, e sobretudo necessário para o nosso mundo: ética, o conjunto de hábitos e ações que visam o bem comum de uma sociedade. Para os gregos antigos, “ethos”, que originou a palavra “ética”, significava a morada do homem, ou seja, a natureza com o homem dentro dela, vivendo, evoluindo, ao modo de ser um homem melhor, senão para que a natureza e a humanidade juntas sejam ainda melhores. Porém, a situação crítica na qual a humanidade está colocando a natureza, e a si mesmo por tabela, mostra que ética é o que mais anda faltando. Como restaurá-la?

A destruição da natureza e a contemporânea dependência humana por aparelhos eletrônicos, só para citar dois males generalizados, por não trazerem o bem comum, pelo contrário, resultarem em males particulares generalizados, outra coisa não são senão formas de sermos antiéticos sem nos darmos conta disso, uma vez que nos desvirtuam de nossa inalienável morada e de nossa humanidade, as destroem até. E, se o homem, como se diz, colhe o que planta, é importante prestarmos atenção ao que hoje semeamos, principalmente nas nossas crianças, pois disso depende a lavoura ética futura.

Os filmes de bangue-bangue, que levavam multidões aos cinemas no século passado, deixaram para as crianças não só o gosto pelo cinema, mas também por armas de fogo. Qual menino já não desejou “brincar de revolver”? Todavia, depois que passou a ser politicamente incorreto dar revolveres de brinquedo às crianças, seguiu se desenrolando subterraneamente dentro delas o gosto por matar, ainda que se trate apenas de brincadeira. E não só as crianças! Atualmente, os EUA, e inclusive o Brasil não conseguem se livrar dessa dependência em relação às armas de fogo, como se as vidas das pessoas dependessem de uma arma, como se a “morada do homem” se tornasse inabitável sem um revolver por perto. E por acaso os justiceiros-linchadores que vemos nas nossas cidades atualmente não são adultos que brincam de “justiça” ao modo “Faroeste”, como provavelmente faziam quando eram crianças?

Há pelo menos três décadas, fumar cigarros era considerado chique, virtuoso, sendo uma atividade tão aceita, socializadora, quanto hoje ainda é consumir bebidas alcoólicas nas interações sociais cotidianas. Entretanto, essa mania tabagista não ficava restrita aos adultos. Muitos pais compravam para as suas crianças os famigerados cigarrinhos de chocolate, cujas embalagens imitavam tal qual os cigarros de verdade, com filtro amarelo inclusive, para que elas também pudessem brincar de “ser pessoa chique, virtuosa”.O preço dessa brincadeira, contudo, foi o inadvertido plantio, nessas crianças, de uma semente cujo fruto posterior foi senão uma forte afetividade e dependência em relação ao fumo, da qual essa geração, que cresceu inocentemente brincando com cigarros – e vendo os adultos brincarem -, dificilmente consegue se livrar.

Outro exemplo parecido foram os insuportáveis, e por que não dizer desnecessários “Tamagotchi”, que, na metade dos anos 1990, fizeram com que uma geração inteira de crianças desenvolvesse uma inédita e intensa afetividade por aparelhos eletrônicos. Hoje em dia, vendo a centralidade dos “smartphones” e “tablets” nas vidas das pessoas, a angústia que elas sofrem quando os seus iPhones são roubados, caem no chão, ou ficam alguns minutos se conexão com a internet, podemos ter certeza de que, há duas décadas, os adultos por trás dos “Tamagotchi” plantaram a semente certa para que hoje fôssemos demasiados apaixonados por quinquilharias à base de silício e código binário, e consequentemente, assaz obesos e sedentários.

Então, se, de fato, aquilo que os adultos dão para as suas crianças brincarem, além de um inocente passatempo, são germes que crescem e que amadurecem alienados de qualquer controle permanecendo com elas vida afora, mantendo-as, pulsional e inconscientemente, dentro da mesma brincadeira, não seria interessante tornarmos brinquedo justamente coisas de que a humanidade desde sempre precisou, e que portanto nunca deixará de precisar, isto é, de uma forma virtuosa de habitar a sua morada inalienável, qual seja, a natureza? Se sim, estamos no caminho certo em manter proibidos os cigarros de chocolate e as armas de brinquedo. Entretanto, em respeito aos eletrônicos não há proibição, muito pelo contrário, cada vez mais ensinamos às crianças que eles são “a luz, o caminho e a salvação”. E diante dessa inadvertida docência digital padece a natureza, e também nós dentro dela.

Porém, para que a morada do homem seja habitável, não basta proibir a semeadura de coisas que não queremos ver germinadas futuramente. Somente isso é paliativo. Em troca, é necessário o plantio daquilo de que a humanidade mais precisa colher futuramente. Novamente: um conjunto de hábitos e ações que visem o bem comum da sociedade humana. Isto é: ética! Portanto, em vez de armas de brinquedo, de cigarros de chocolate, ou de Tamagotchi-iPhones, deveríamos dar ética para as nossas crianças brincarem. Se, com efeito, elas não deixam as suas brincadeiras para trás, mas, em troca, as levam consigo vida afora, que brinquedo sublimado seria melhor que um que tornasse a única morada do homem um lugar mais apropriado para se morar?

Não obstante, o desafio é encontrar uma forma de fazer com que a mui necessária ética não seja coisa de adulto apenas. A ética, para ser carregada pelas crianças ao longo de suas vidas, deve poder ser brincável, passível de ser dada a qualquer um, de qualquer idade, sem contraindicação. Melhor ainda se conseguíssemos fazê-la de chocolate, como os cigarrinhos de brinquedo. Uma dietética! Com uma “ética de chocolate”, ao mesmo tempo instruiríamos e entreteríamos as nossas crianças; faríamos com que elas consumissem ética desde cedo, se nutrissem dela.

Claro, pode ser dito que chocolate engorda, que “hipertensiona” a morada imediata do homem, isto é, o seu corpo, que então seria melhor uma ética de chocolate diet – uma ‘diet-ética’? Mas isso é tão absurdo quanto a absurdidade da qual devemos nos livrar. Todavia, em resposta, o conceito grego de “pharmakon”: veneno é remédio são a mesma coisa, o que importa é a dose.Portanto, uma ética de chocolate, ou qualquer outra que fosse irresistível às crianças, seria o melhor brinquedo que poderíamos dar a elas. Passariam o tempo e gastariam a inesgotável energia que têm justamente com aquilo que faria da morada delas, hoje em dia poluída, violenta e individualista, uma morada futura um tanto melhor.

Ora, não dá para seguir “plantando antiética” nos quatro cantos do mundo e esperar que desse chão lixiviado e desrespeitado nasça uma verdejante hera milagrosa, de onde a indústria farmacêutica extrairá uma essência ética puríssima, concentrada e para ser vendida em forma de comprimidos -obviamente a preços nada acessíveis. Como, então, fazer com que a ética seja objeto para as crianças, para que, brincando desde cedo com ela, elas tenham uma melhor morada futura, com a humanidade e a natureza existindo harmoniosamente e, consequentemente, resultando em uma morada melhor para todos? Bom mesmo é se conseguíssemos fazer com que a ética tivesse gosto de chocolate, aí ninguém resistiria a ela!

PMDB way of life

O PMDB dispensa apresentações, entretanto, não repreensões. Não que os demais partidos políticos estejam livres de serem repreendidos, corrigidos, melhorados. Afinal, representar o povo e o seu dinâmico universo de necessidades exige de todos os partidos políticos aperfeiçoamento contínuo, trabalho ininterrupto. Porém, no mais das vezes, é justamente o contrário que vemos na ópera política brasileira. Eduardo Cunha, o peemedebista de maior evidência do momento, e sem dúvida o que mais merece repreensão, representa senão os interesses do seu partido, deixando claro a todos os brasileiros, os quais apenas dissimula representar, o velho jeito de ser do PMDB.

Ao falarmos de PMDB não podemos deixar de falar de José Sarney. O oligarca-mor, desde que foi eleito governador do Maranhão, em 1966, articulou praticamente todos os últimos governos do Brasil. Foi presidente do Senado durante a ditadura militar, presidente do partido governista ARENA, vice-presidente de Tancredo Neves, presidente da república, apoiou os governos de FHC, Lula e Dilma, presidindo novamente o senado nestes períodos. Afora isso, José Sarney é latifundiário, proprietário de seis afiliadas da TV Globo, de emissoras de rádio e de jornais. Com essa presença política e midiática, Sarney, permanece há quase 50 anos com as suas mãos sujas no poder.

Oligarca eficaz que é, Sarney colocou sua filha no poder, Roseana Sarney, que começou como deputada federal, foi duas vezes governadora do Maranhão – o curral do clã -, senadora da república, e, em 2010, novamente governadora do Maranhão. Obviamente, não foi por ter bem representado o povo que a princesa da oligarquia maranhense mereceu por tanto tempo, e por várias vezes, a dianteira política. Em 2014, a respeito da crise penitenciária do seu estado, evidenciada tragicamente pelas dezenas de decapitações de presos no presídio de Pedrinhas, ela disse ao Observatório da Imprensa que as coisas por lá iam muito bem, e que a violência só acontecia por que o Maranhão estava rico. Exclusivamente para ela isso era verdade, dado que, um dia antes dessa infame declaração, ela havia autorizado licitações para a compra de camarões gigantes e sorvetes importados para o Palácio dos Leões, sede do “seu governo”.

Hoje temos Eduardo Cunha, deputado federal pelo PMDB do Rio de Janeiro e desde 1º de fevereiro de 2015 presidente da Câmara dos Deputados, representando sublimemente o sempiterno devir peemedebista. Acusado de vários ilícitos, Cunha segue como que inatingível. Tacitamente envolvido em vários crimes, dentre eles contas ilegais no exterior, o político sequer finge uma performance, digamos, mais democrática. Porém, Cunha lidera pautas e votações que fazem justamente o contrário, esforçando-se diariamente para reduzir ainda mais a construção de um pais mais igualitário onde as mulheres, os homossexuais e os índios, só para citar alguns, tem cada vez menos espaço. O espaço excelente, claro, deve ser para o PMDB.

Com o PMDB de Sarney, Roseana e Cunha o coronelismo desafia os tempos e sobrevive impertinentemente, todavia ao modo zumbi, sugando “a vida” do povo em função se sua insaciável fome por mais poder. Para um futuro livre de tal cabresto oligárquico, não devemos deixar de sabatinar todo peemedebista para sabermos se ele não é mais um apólogo do “PMDB way of life”, esse jeito antidemocrático de ser cujo objetivo é apenas o monopólio do poder, todavia sob uma fantasia democrática, que, entretanto, só convence porque aqueles que não se convencem estão sendo ou excluídos da ágora social (as mulheres, os homossexuais, os índios), ou decapitados nos presídios nos quais são estocados (as dezenas de mortos de Pedrinhas). Até aqui, podemos dizer que não há futuro com o PMDB, somente mais do mesmo, isto é, mais do sórdido passado brasileiro, em função do qual, aliás, um futuro realmente novo e descontaminado do velho coronelismo oligárquico se faz tão necessário.

Das roupas dos mundos à Roupa do Mundo

Cada “mundo” tinha as suas roupas, ou, o que é o mesmo, cada roupa tinha o “seu mundo”. Entretanto, depois que os diversos “mundos” foram globalizados em um, as roupas tiveram de se despir de suas particularidades para então vestirem homogeneamente os homens do único mundo – digamos, “pasteurizado” – que restou.

Doravante, a calça jeans e a camiseta branca, o terno ou o tailleur Armani pretos, são uniformes universais que nos autorizam circular em qualquer “mundo” sem corrermos o risco cometer uma gafe. Aliás, quanto mais “neutra” a vestimenta, mais do mundo se é. Em troca, uma saia de penas ou um Niqab, por exemplo, apenas deslocam os seus usuários do “mundão” diretamente para o “mundinho” de onde tal hábito veio. Melhor para o mundo globalizado é que um morador de Nova Iorque e um de Mumbai usem as mesmas roupas.

Entre seus significados, “hábito”, mas também “costume”, significam “roupa”. Hábitos e costumes enquanto roupas outras coisas não são senão as expressões dos hábitos e dos costumes de determinadas gentes, lugares e épocas. As Chola e os Bombín andinos, os Kaftan africanos, os Quimonos japoneses, são a habituação, a “costumização” mais verdadeira da vida dos Andes, da África e do Japão, respectivamente.

Mesmo as rudimentares capas feitas com pele de animal usadas pelos homens das cavernas; as togas de puro linho dos antigos gregos; as alfaiatadas calças ¾ com meias de seda dos cortesões europeus; todas elas são as verdades vestidas e vestíveis de suas gentes, lugares e tempos.

Entretanto, em um mundo habitado por um único tipo de homem – moderna e estrategicamente construído -, onde todos os lugares são e devem ser um só – o mundo global -, e no qual o tempo a ser considerado é apenas o do capital, verdades peculiares, ou seja, étnicas, locais e extemporâneas, não devem mais ser vestidas, sob a pena de se ser destacado desse mesmo mundo.

Esquece-se, contudo, de que a verdade de uma roupa também é tecnológica. A túnica árabe, por exemplo, é a melhor veste para se despir do calor desértico. Quem não se espanta ao ler que a corte portuguesa não abriu mão de suas perucas e casacas invernais mesmo no calor tropical do Rio de Janeiro? Não estaríamos nós repetindo o fiasco lusitano ao vestirmos as mesmas roupas nos quatro cantos do mundo?

Por que o tênis deve seguir substituindo a sandália nos lugares quentes e ventilados? Ou os ternos cinzas dos executivos mexicanos os coloridos trajes típicos desse país? Certamente não é para vestir “o lugar” no qual se está ou do qual se é que são usadas as roupas feitas para serem usadas em qualquer lugar. O preço disso, contudo, é a inadequação, digamos, a mesma da corte portuguesa no Brasil.

A pressuposta adequação das nossas roupas genéricas é uma fantasia: esconde que elas, no mais das vezes, são inadequadas enquanto roupas. Talvez a única pertinência delas mesmo seja o engajamento ao projeto de mundo global que todos compartilhamos, queiramos ou não.

Absolutamente adequado, em troca, seria, no calor infernal nos vestirmos como os beduínos; no frio extremo, como os esquimós; sob a cancerígena radiação solar, em vez de camadas de “Sundown”, algumas camadas de linho, como os árabes sempre fizeram; e para um simples banho de mar, no lugar de roupas de banho de grife, a sempiterna nudez indígena.

Embora o homem seja o único animal da natureza a vestir, com roupas, a sua nudez natural, não devemos chegar ao extremo de impor a ele um único tipo de roupa. Esse é apenas o vil projeto moderno-contemporâneo. Ademais, é bom não nos esquecermos de que essa coisa chamada “o homem” é uma abstração; que, concretamente, existem apenas homens, mulheres e crianças particulares, cujas particularidades advêm senão deles mesmos, de seus lugares e tempos, e que também devem ser vestidas, vestíveis.

A verdade do “costume” de um povo não cabe, tampouco deve caber na pretensão comercial&universal de uma adidas ou de uma C&A, por exemplo. Os muitos e diferentes hábitos com que os homens se vestiram até aqui têm uma verdade que deve ser recuperada, reciclada. Pois, do contrário, findaremos uniformizados, não de animais vestidos, mas de homens universais de lugar nenhum.

Coronelismo contemporâneo

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O coronelismo, ironicamente considerado um “brasileirismo”, surge com a hipertrofia da figura de um detentor do poder, no caso o coronel, sobre o poder público, através de fraudes eleitorais e da desorganização da coisa pública. Pode-se dizer que Eduardo Cunha, presidente da câmara dos deputados, sobrevive o coronelismo ao tentar deslegitimar o poder democraticamente constituído, por meio da articulação de um golpe político – midiaticamente chamado de impeachment – contra a presidente Dilma que, até então, não tem  crime algum comprovado contra si.

Cunha abusa da sua figura de detentor de poder a despeito das graves suspeitas que recaem sobre ele, quais sejam: sonegação de imposto; fraudes em contratos celebrados, em movimentações financeiras e na declaração de rendimentos; improbidade administrativa; captação ilícita de sufrágio; abuso de poder econômico, só para citar os que estão mais aclarados no momento. Porém, o bom coronel é aquele que segue agindo como se a lei nada valesse dentro do seu latifúndio.

E o despotismo de Cunha não para por aí. Diante de da ameaça de ser deposto do seu cargo de poder, Cunha diz: “Esquece, eu não vou renunciar”, e “se me derrubarem, eu derrubo todo mundo também”. Muito sinceramente o presidente da Câmara comunica à população brasileira que permanecerá no poder e, mais ainda, como fará isso: mediante a ciência dos “podres” de outras pessoas e o podre poder que esta vil ciência lhe confere.

Todavia, por mais vergonhosas que sejam as regras do jogo do atual presidente da câmara, pelo menos uma virtude elas têm. Qual seja, Cunha fala a verdade. A pior, no entanto, mais crua verdade. Seria muito pior se ele sustentasse a sua permanência no poder dizendo que é para o bem da população, como a cartilha político-demagógica indica no mais dos casos. Mas não! Ao menos Cunha deixa bem claro a sordidez na qual está atolado até o pescoço.

Historicamente, os coronéis tomam e mantêm o poder de duas formas: ou por meio da violência, ou mediante troca de favores. Bem, tentando um impeachment infundado, Cunha outra coisa não faz além de violentar a democracia, ou seja, todos os brasileiros. E “fazendo o favor” de não denunciar os seus companheiros na condição de eles “fazerem o favor” de não denunciá-lo, Cunha mantém viva a sórdida roda dos favores que sustenta o coronelismo.

O altíssimo preço do coronelismo, não só o de Cunha, é a abstração da democracia e da justiça na concretização de uma espécie de liberdade política e econômica tirânico-despótica, que, estratégica e infelizmente, abstrai ainda mais a democracia e a justiça, e assim por diante, viciosamente.

Falando de coronéis, não podemos deixar de lembrar de José Sarney, do mesmo partido de Cunha. O coronel-oligarca-mor que, desde que foi eleito governador do Maranhão em 1966, articulou praticamente todos os últimos governos do Brasil, foi presidente do Senado durante a ditadura militar, presidente do partido governista ARENA, vice-presidente de Tancredo Neves, presidente da república, apoiou os governos de FHC, Lula e Dilma, presidindo novamente o senado nestes períodos.

Afora isso, José Sarney é latifundiário, proprietário de seis afiliadas da TV Globo, de emissoras de rádio e de jornais. Com essa presença econômica, política e midiática, Sarney, permanece há quase 50 anos com as suas mãos no poder, concretizando cada vez mais uma liberdade política e econômica que aponta não para os interesses do povo que ele sempre disse representar, mas para interesses seus, de seus familiares e de seu partido.

Bom coronel que é, Sarney colocou sua filha no poder, Roseana, que começou como deputada federal, foi duas vezes governadora do Maranhão – o curral do clã -, senadora da república, e, em 2010, novamente governadora do Maranhão. Obviamente, não foi por ter bem representado o povo que a princesa da oligarquia maranhense mereceu por tanto tempo, e por várias vezes, a dianteira política.

Em 2014, a respeito da crise penitenciária do seu estado, evidenciada tragicamente pelas dezenas de decapitações de presos no presídio de Pedrinhas, Roseana disse ao Observatório da Imprensa que as coisas por lá iam muito bem, e que a violência só acontecia por que o Maranhão estava rico. Exclusivamente para ela a riqueza maranhense era verdadeira, dado que um dia antes da infame declaração ela havia autorizado licitações para a compra de camarões gigantes e sorvetes importados para o Palácio dos Leões, sede do governo.

Hoje, é Eduardo Cunha a figura descarada do coronel que não se priva de desorganizar a “res” pública para, com isso, organizar as suas e as do seu partido. Assim (sobre)vive o coronel; assim marcha o coronelismo: um erro que, pela força de seu vício intrínseco, sobrevive mentindo para todos que é um acerto. E tanto faz que o poder de Cunha seja deslegitimado ética, política e economicamente, pois para um coronel não existe coisas tais como lei, ética ou povo, apenas os seus imperiosos interesses particulares.

O coronelismo clássico que dominou o Brasil até o início do século passado foi reduzido quando, a partir da década de 1930, grande parte da população migrou para os centros urbanos, acessando com isso à educação e aos meios de comunicação, e por isso se tornando politicamente mais consciente e crítica. Não seria o caso então de efetuarmos algum tipo de migração, ainda que não geográfica, no sentido de esvaziarmos o curral onde as leis dos coronéis contemporâneos vigem verticalmente?

Todavia, qual é o “lugar” no qual estamos cativos do coronelismo de Cunha que, abandonado por nós, deixaria o coronel sozinho e sem poder sobre ninguém? Seria a democracia esse lugar? Oxalá não seja, pois, concordando com Aristóteles, a democracia ainda é o menos pior de todos os regimes de governo. Talvez o angusto sítio que devamos deixar de ocupar seja o minifúndio, nada cidadão aliás, onde apenas nos indignamos passivamente com as absurdidades dos coronéis.

Ora, qualquer indignação passiva da população apenas vai de encontro aos propósitos ativos do coronel. Devemos, portanto, migrar não “de” nossas indignações para um lugar onde elas não nos aflijam, mas, antes, migrar com as nossas indignações para um lugar onde elas surtam efeito contra aquilo que nos indigna. Do contrário, o poder dos coronéis só crescerá, mais nu e vergonhoso do que nunca.

Se o coronelismo atual, diferente do da era pré-Vargas, não se restringe mais apenas aos maranhões rurais brasileiros, mas ocupa despudoradamente o centro iluminado do poder, é esse centro que devemos abandonar. Porém, não para deixá-lo livre para os coronéis. Antes, “abandonar o centro” deve significar habitar capciosamente sua periferia, a ponto de fazer dela uma trincheira de onde possamos espreitar todas as facetas e estratégias dos coronéis que roubam, dos “observadores periféricos entrincheirados”, o centro para si.

Migrar para a periferia política, ao contrário do que pode parecer, não é desertar o campo de batalha, mas, paradoxalmente, tocá-lo de modo ainda mais direto, isto é: estar asfixiantemente em torno do problema central que nos aflige. Por isso os nossos cinquenta tons de indignação contra o coronel Cunha não serão efetivos enquanto, dentro do latifúndio dele, nos indignarmos apenas nas nossas solitárias navegações no Facebook, leituras de jornais e audiências televisivas. O fim de Cunha, como ele deixou bem claro, não partira dele, e, pelo teor de suas ameaças, tampouco dos que dividem o palácio central com ele.

Já nós, que até aqui apenas nos indignamos passivamente com os desfeitos do coronel Cunha, temos de abandonar esse parlatório inócuo e ocuparmos um lugar bem mais crítico, sabendo, contudo, que a construção de mais um limite aos coronéis, a exemplo do século passado, será lenta, histórica, e sobretudo exigirá movimento ativo do povo, melhor dizendo, sua evolução. Do contrário, Sarneys, Roseanas, Cunhas e demais coronéis sobreviverão impertinentemente, ao melhor modo zumbi, apodrecendo vivos, porém, sugando a vida do povo em função se sua insaciável fome de mais-poder.

Para um futuro livre do cabresto coronelístico, devemos espreitar, seja nas efemeridade das urnas, seja no longo período entre elas, todo e qualquer representante político para sabermos se seus objetivos giram apenas em torno do mais-poder ou se, antes, há alguma verdade sob as togas brancas-democráticas por meio das quais se elegem. Isso porque não há futuro com coronéis no poder, somente mais do mesmo, isto é, mais do sórdido passado brasileiro, em função do qual, aliás, um futuro realmente novo e descontaminado do velho “brasileirismo” chamado coronelismo se faz tão necessário.

O” meu Facebook” X o “Facebook do Facebook”

“Rolando” o meu feed de notícias do Facebook, percebi que as postagens dos meus amigos haviam desaparecido. Tudo o que eu via eram atualizações de páginas de notícia, de arte, de política etc. Teriam os meus amigos todos me abandonado? Rapidamente verifiquei que não; ainda estávamos “marcados” para nos seguirmos. Mesmo assim, eu nada mais via deles. Senti até saudade dos selfies – que na verdade eu nem gostava de ver -, e das reclamações sobre quaisquer coisas – que, entretanto, sempre ficam melhor ou numa mesa de bar, ou num consultório psicanalítico.

Entretanto, mesmo assim eu não tinha como aceitar o fato de o algoritmo do Facebook estar escolhendo por mim o que eu estaria vendo, decidindo que as postagens dos amigos que eu curto são menos importantes do que as atualizações das páginas que eu sigo. Com efeito, Zuckerberg havia me convencido de que eu podia estar conectado à milhares de pessoas, páginas e grupos dos mais diversos assuntos e interesses, tudo ao mesmo tempo. Era só clicar em “Curtir” ou “Seguir” e pronto: doravante eu veria tudo, de todos.

Claro, se o Facebook não “algoritmizasse” o que eu vou ver nele, e enfileirasse todas as postagens, de todas as pessoas e páginas que eu curto, certamente o meu feed de notícias, digamos de um dia, teria alguns quilômetros de extensão. Eu “rolaria” as notícias por horas, simplesmente para ver tudo o que foi postado em apenas cinco minutos facebookianos. Ou seja, nunca veria tudo o que os amigos que curto e as páginas que sigo postam. O Algoritmo de Zuckerberg, de um certo ponto de vista, não torna as coisas piores. Apenas transforma uma impossibilidade em outra.

Entretanto, não poder ver todas as postagens dos meus amigos “porque” elas são muitas, é bem diferente não vê-las “porque” o Facebook, diante dessa impossibilidade, pré-seleciona o que eu vou ver, privando-me ainda mais das tantas postagens dos meus amigos; preferindo no lugar delas as atualizações impessoais de suas tantas páginas. Como reverter a situação? Como vencer o algoritmo de Zuckerberg, e a que preço?

Os clássicos passos para se manter próximo de alguém no Facebook são comentar, curtir e compartilhar as postagens desse alguém. Todavia, tais procedimentos são de pouca eficácia, pois, estrategicamente, o Facebook não converte diretamente o grau de “fidelidade facebookiana” a alguém em maior contato. Mais importante para Zuckerberg é que eu veja exclusivamente aquilo que ele quer que eu veja e saiba. Portanto, não basta apenas interagir com os meus amigos “do” Facebook para tê-los cotidianamente “no” Facebook.

É justamente porque, para Zuckerberg, as atualizações das muitas páginas são bem mais importantes e lucrativas do que as dos meus amigos, que cada atualização delas precisa “engolir” de quatro a cinco postagens destes. Agora, se eu não curtisse tantas dessas páginas, o algoritmo facebookiano teria menos o que colocar no lugar das postagens dos meus amigos. Então, o passo seguinte foi “descurtir”, deixar de seguir tudo aquilo que ocupava o lugar dos meus amigos no horizonte do meu Facebook.

Depois de fazer isso, voltei a ver mais do que os meus amigos postavam. Claro, não tudo, pois hoje em dia postamos mais do que qualquer um pode ver, ler, curtir, comentar ou compartilhar. Ainda que o algoritmo de Zuckerberg pré-selecione tudo o que eu verei, o fato de eu estar curtindo menos daquilo que ele gostaria que eu visse, e ao mesmo tempo privilegiando apenas aqueles que eu gostaria de ver, o meu Facebook, ao menos, voltou a parecer mais o “meu Facebook”, e menos o “Facebook do Facebook”.

Não curtir tantas páginas e não ser amigo de tantas pessoas, portanto, foi o modo que eu encontrei para dar a volta no algoritmo de Zuckerberg; reduzir aquilo que ele queria que eu visse; voltar a ver aquilo que meus amigos fazem nessa rede social. Óbvia&infelizmente, ainda assim há a “algoritmização” zuckerberguiana por trás de tudo o que acontece no “meu Facebook”. Porém, eu bem posso não muni-lo com tantas “curtidas” e “seguidas” à pessoas e páginas que, quando em grande número, apenas se colocam no lugar umas das outras.

“Dando arma ao bandido”, acabava senão vendo somente aquilo que o Facebook queria que eu visse, sem sequer me dar conta de que os meus amigos, precisamente aqueles que me levaram ao Facebook, desapareciam do meu feed de notícias a uma taxa de quatro a cinco atualizações deles para cada atualização de uma página qualquer. Se o Facebook, capitalizando-se mediante o seu alienante algoritmo, tem a sua própria&vil economia, eu, por minha vez, posso ter a minha, ainda que dentro da dele: economizar “curtidas” e “seguidas”, não dar tanta oportunidade para ele manipular o que eu vejo, me alienar do que eu realmente curto e do que eu mais gostaria de estar vendo cotidianamente nessa plataforma virtual.

Alfaiataria X indústria do vestuário

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A arte de medir um corpo, cortar e costurar tecidos para vesti-lo, isto é, a alfaiataria, está morrendo. Seu algoz é a industria do vestuário, cuja característica mais contrária ao artesanato do alfaiate é a produção de roupas em tamanhos e formatos que não são os de ninguém em específico, mas os de um corpo humano abstrato, pretensiosamente o resumo de todos os corpos humanos concretos. A lógica do prêt-à-porter obriga, verticalmente, a sermos de determinado formato e medida para que então possamos nos encaixar nas suas roupas.

Falando em medidas humanas, não podemos deixar de lembrar da célebre frase do sofista Protágoras, cunhada há quase 2500 anos: “O homem é a medida de todas as coisas”. Ora, as nossas roupas exemplificam como poucas coisas a máxima do sofista grego, pois não tem cabimento algum imaginar uma roupa, feita para um humano, que não tenha as as medidas dele. Porém, assim como o idealismo de Platão foi contra o pragmatismo dos sofistas, a indústria do vestuário é contrária à alfaiataria uma vez que afirma massiva&industriosamente que é o homem que  deve ter a medida das coisas. Melhor dizendo: das coisas dela!

Essa mercado-lógica da indústria do vestuário, além de praticamente ter exterminado os artesãos alfaiates, estimula fortemente em nós a cada vez mais banal sensação de inadequação dos nossos próprios corpos, fazendo com que ousemos pensar, ademais contra a perfeição da natureza, que nossos corpos e medidas estão errados; que deveríamos ser mais gordos ou mais magros do que somos (geralmente mais magros, como a publicidade dessa indústria também prega); que nossas cinturas e coxas, por exemplo, precisem sofrer lipoaspirações anuais e/ou sessões de musculação diárias. E tudo isso porque há um mundo de roupas já prontas, cujas medidas&formatos são previamente determinadas&impostas verticalmente contra os nossos corpos particulares.

Por não terem sido feitas para ninguém em particular, as roupas produzidas pela indústria do vestuário pretendem-se universais. Tal universalismo, não obstante, escraviza as nossas inalienáveis particularidades. O indivíduo singular concreto, tendo que se formatar a esse formato universal abstrato imposto de cima pela indústria do vestuário, é obrigado a cumprir a tarefa mais inglória -e por que não dizer impossível– de ser um corpo genérico, ou o que é o mesmo, corpo nenhum.

Etimologicamente, alfaiate vem do árabe “alkhayyát”, e significa “O costureiro”. Ou seja, o artesão do vestir, que as pessoas procuravam para terem roupas para seus corpos. Porém, essa dinâmica se perde completamente diante da dinâmica da indústria do vestuário. Antes mesmo de as pessoas precisarem de roupas, tal industriosidade voraz já produz massivamente tudo o que elas deverão vestir, com tecidos, cores e formatos mercadologicamente estipulados, não importando quaisquer desejos, características e necessidades particulares.

Disso decorre a tentativa, todavia condenada ao fracasso, de se ter um corpo para as roupas, e não o contrário: roupas para um corpo. Para a alfaiataria e isso é um absurdo, pois ela parte de um corpo singular para produzir roupas outrossim singulares que respeitem esse corpo. A indústria do vestuário, ao contrário, alienando-nos sistematicamente dessa conformidade entre a alfaiataria e as nossas características particulares, pressupõe um corpo genérico, universal –portanto inexistente-, findando com mercadorias genéricas que, longe de respeitarem as singularidades dos indivíduos, respeitam apenas a sua própria busca por lucro$ ma$$ivo$.

Apóloga do mais abjeto consumismo, a indústria precisa sobremaneira exterminar a arte da alfaiataria. Quem tem o costume de vestir roupas feitas exclusivamente para si -ou já teve pelo menos um roupa alfaiatada- sabe muito bem que tais artefatos não foram feitos para serem descartados de acordo com a histérica obsolescência tão necessária à ventura industrial. Antes, uma roupa feita sob medida é tão adequada, tão a cara do corpo para o qual foi feita, que esse “corpo” tende a mantê-la até que que ela pua. Ora, é justamente isso que a indústria não pode aceitar, pois, para ela, o consumismo desenfreado é o élan que a nutre.

Se, como bem sabemos, o consumismo massivo, vital para a indústria em geral, é um dos maiores destruidores da natureza, o alfaiate, hoje em dia um zumbi nesse mundo apocalíptico, oferecendo uma opção paradigmática ao consumismo desemfreado, aop passo que respeita as particularidades dos corpos humanos, produzindo roupas que são a exata medida deles, respeita também o mundo no qual esses corpos existem. E qual a melhor “roupa” para a humanidade inteira senão um planeta preservado dos malefícios do consumismo institucionalizado pela indústria?

A alfaiataria, portanto, é a forma mais ecológica para a humanidade ser o que somente ela não consegue deixar de ser: essa espécie animal que não aceita a sua nudez natural. Afinal, roupas só existem porque precisamos esconder a nossa própria animalidade. Para essa necessidade imperiosa, e para que ela não destrua ainda mais a natureza, ninguém mais adequado que o alfaiate, o artesão que, cortando e costurando tecidos, recostura com arte o velho sofisma protagórico, qual seja, “o homem é a medida de todas as coisas”. Entre a indústria do vestuário e a alfaiataria, só esta sabe que o é homem, melhor dizendo, cada homem a medida imanente de suas roupas, e não estas uma medida transcendente para ele. Em suma, a medida do alfaiate é a justa medida para a desmedida indústria do vestuário.

A nudez da nudez

O homem não é nu. Entretanto, quando veste o animal que subsiste inquieto em sua pele – e isso maximamente no sexo – apenas está nu. O inverso disso é o animal cuja nudez natural de forma alguma faz dele algo outro, pois, de acordo com Derrida, “o próprio dos animais, e aquilo que os distingue em última instância dos homens, é estarem nus sem o saber”.

Algo muito próprio do homem, qual seja, a sabedoria, parece ter papel fundamental da invenção da nudez no cerne da natureza desde sempre nua. Para o homem, excluído ele mesmo, tudo mais deve estar nu, exposto em sua verdade, sendo a ciência o eficiente costume humano para desnudar absolutamente o corpo do universo.

assim como os animais, Adão e Eva eram nus sem o saber. Até que souberam demais. Uma vez sábios, tinham tudo a esconder. Sintomaticamente, cobriram seus corpos, as únicas coisas que restavam serem cobertos quando tudo mais estava revelado. Da mesma forma, Caim, quando matou Abel, envergonhou-se irremediavelmente, e fugiu para esconder sobremaneira seu ser assassino então desnudado. Para esse fratricida, nem o linho esconderia a sua animalidade exposta. Ainda nos mitos, a Arca de Noé foi o que senão a épica tentativa humana de vestir a natureza – e os animais – contra ela mesma?

Há nudez apenas no pensamento, não na natureza. E como o pensamento é algo humano, só há nudez humana. Entretanto, o que há, para nós, nessa nudez exclusiva, que demanda constante cobertura? Seria a nudez vergonhosa por natureza? “Vergonha de que?”, pergunta-nos Derrida; “Vergonha de estar nu como um animal”, responde o filósofo.

A nudez do animal é seu nome, sobrenome e sobretudo o seu ser. Já para o homem, nome e o sobrenome são as primeiras vestimentas com as quais o seu ser naturalmente despido é definitivamente encoberto. Essa primeira fantasia nominal, por sua vez, é customizada a partir dos andrajos da cultura, e, uma vez em tais hábitos abstratos, as demais vestes concretas são apenas efêmeros disfarces com que o homem finge não ser “da” natureza.

Entretanto, figurinada a nossa existência natural sufoca. Precisamos, por conseguinte, expressá-la, deixá-la respirar, desesperadamente. Para isso inventamos filosofia, arte, consumismo, a fim de que possamos ser sem sermos exatamente aquilo que, por natureza, somos, isto é, absolutamente nus.

O homem é o único animal que inventou uma vestimenta para esconder o seu sexo; o único que inventou uma cultura para esconder de si a sua vestimenta; o único que inventou a moda para vestir sazonalmente a sua cultura. A humanidade converteu o desconforto com a sua nudez em vitimização em relação à moda, fingindo assim que se veste simplesmente por haver o que vestir. Contudo, esconde de si mesmo que a humanidade mesma é desde sempre nua.

Alain Badiou diz que “jamais há nudez no teatro, tampouco, mas trajes obrigatórios, a nudez sendo ela própria um traje, e dos mais vistosos”. Podemos concluir, então, a partir das palavras do filósofo, a veste do humano, assim como o figurino do ator, é a fantasia com a qual o homem melhor se despe do imponente traje com o qual a natureza primordialmente o vestiu: seu corpo irremediavelmente nu. Doravante, “é necessário uma psique, um espelho que o reflita nu dos pés a cabeça”, alerta-nos Derrida.

Os animais não estão nus porque eles são nus sem o saber, mas nós, em troca, estamos nus porque o sabemos. E diante deste saber, fazenda alguma dá conta de tamanha sabedoria. Derrida condicionou a vontade de vestir-se a “um sentimento de pudor ligado ao [fato de] estar em pé”, à ser ereto. E… a ereção estrutural do macaco-homem desembocou em outra: a ereção do sexo do homem-macaco: a intumescência espontânea de sua natureza selvagem.

Enquanto o ventre do bicho que somos esteve voltado para o chão, os olhos e o sexo de um indivíduo não se enquadravam, ao mesmo tempo, no olhar de um outro indivíduo. Porém, uma vez em pé, ambos passaram a estar disponíveis aos olhos – e também aos sexos – dos outros. E a folha-de-videira tornou-se, ainda que miticamente, o primeiro hábito e o primeiro símbolo da nudez da nudez.

Verdade, opinião e comentário de Facebook

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Se, na realidade, muitas vezes é difícil para nós deixarmos de confundir verdade e opinião, imagina nas redes sociais virtuais, mais especificamente no Facebook, onde opiniões se empoleiram umas sobre as outras, relacionando-se entre si, cada vez mais distantes das pretensas verdades das postagens sob as quais opinam.

Acriticamente, partimos do pressuposto de que nossas opiniões atinam aos fatos, à verdades que carecem do nosso parecer para serem verdades de fato. Contudo, no Facebook é fácil perceber que muitas opiniões são dadas sem sequer levarem em conta fatos ou verdades alguns, mas somente outras opiniões.

A pecha entre verdade e opinião é bastante antiga, tem a idade da Filosofia aliás. Só que hoje, com a facilitada e banalizada intercomunicação virtual, temos um complicador novo, isto é, uma nova forma de nos relacionarmos com os fatos que os aliena tanto da verdade quanto da mera opinião. Qual seja: o comentários de Facebook.

Longe de convencerem de que atentam à verdade, e sequer de que são opiniões pertinentes, muitos dos comentários que lemos abaixo das publicações na mais popular das redes sociais, especialmente nas postagens que falam da política brasileira, dão a ver uma nova e bastante confusa forma de opinião que, para o bem da opinião, nem deve ser chamado assim.

O filósofo pré-socrático Parmênides de Eléia dizia que opinião é apenas uma ideia confusa acerca da realidade. Se é assim, os comentários de Facebook outra coisa não são que a confusão de uma confusão. Como estabelecer então, para o bem da opinião, uma distância entre opinião propriamente dita e comentário de Facebook, assim como, há 2500 anos, Parmênides distanciou verdade e opinião?

Para Platão, a verdade era assunto exclusivo da filosofia, e as opiniões, da sofística. Os sofistas, por suas vezes, contra-argumentavam que só havia opinião. Para os mestres do discurso, aquilo que os filósofos chamavam de verdade era apenas uma grande e potente opinião convencionada sócio-historicamente. Entretanto, a verdade platônico-filosófica venceu a batalha lá mesmo na Hélade antiga, reinando por milênios sobre as opiniões sofísticas.

Fazendo uma analogia da querela platônica-sofística com a atual realidade facebookiana, é como se os filósofos possuidores da verdade fossem, por exemplo, uma Folha de São Paulo ou um El País, cujas publicações se pretendem traduções da mais pura verdade. Já os sofistas, que eram da opinião de que só existia opinião mesmo, seriam os nossos comentadores de Facebook que acham que não precisam se fixar em verdade primeira alguma, apenas opinar indiscriminadamente.

A analogia, entretanto, falha no sentido de que os “sofistas atuais”, isto é, os comentadores de Facebook vão mais longe que os seus ancestrais gregos. A confusa inovação, hoje, está em que o objetivo principal não é ter uma opinião –inevitavelmente confusa, como diria Parmênides- sobre a realidade, mas justamente sobre as opiniões confusas que os outros “sofistas facebookianos” têm dessa realidade. O que importa mesmo é ter opinião sobre as demais opiniões. Dane-se a verdade.

Se, como disse Parmênides, a opinião é mesmo apenas uma ideia confusa acerca da realidade, o Facebook é o espaço excelente de sobreconfusão que distancia opinião e verdade como Parmênides e Platão juntos sequer poderiam imaginar. Por isso os comentários do Facebook não devem ser tomados por opinião de forma alguma, mas por algo muito mais confuso.

Tomemos os comentários de Facebook que se seguem de postagens sobre, digamos, a atual frente do governo federal brasileiro contra o Zika Vírus. Em vez de opinarem sobre as estratégias usadas para eliminar o Aedes Aegypti, se são eficazes ou não, precipitadas ou tardias, o que se vê são centenas de pessoas aproveitando o ensejo para falar da operação Lava Jato, do impeachment de Dilma, do helicóptero do Aécio, e por aí vai.

Em resposta a esses confusos comentários -que na verdade não comentam aquilo que deveriam comentar, afinal, o fato é sobre saúde pública-, outras centenas de pessoas -outrossim confusamente, isto é, sequer fazendo referência ao assunto primeiro- defendem, por exemplo, a Dilma ou governo do PT. Então, no meio dessa confusão generalizada, surgem outros comentários, contrários aos petistas de plantão, bravejando “Intervenção Militar Já”. E a verdade sobre o problema Zika Vírus, a opinião de cada um sobre a tática governamental no sentido de tentar ajudar a resolver o problema, onde ficou mesmo?

Ainda no mesmo exemplo, muitos dos confusos comentadores que, em vez opinarem sobre saúde pública pedem intervenção militar -embora muitos deles sejam acéfalos a ponto de realmente crerem que a ditadura é a melhor coisa para eles mesmos- sabem que, na verdade, pedir pelo fim da democracia é uma solução muito pior do que o problema que confusamente querem resolver.

No entanto, confundem deliberadamente aquilo que eles mesmos têm por verdade -que a democracia é melhor- em resposta às confusões de outros comentadores facebookianos, e assim por diante, restando claro que as opiniões de todos, desde o princípio, não visavam atinar à realidade, isto é, à ação do governo contra o Zika, tampouco à verdade, ou seja, as doenças que esse vírus traz à população, mas tão somente às opiniões confusas uns dos outros. A relação entre verdade e opinião, no Facebook, é uma confusa relações entre opiniões confusas.

A diferença entre verdade e opinião, tão obscura para os usuários do Facebook, para o filósofo alemão Immanuel Kant era claríssima. Para dele, a verdade era coisa exclusiva da ciência, sobretudo da matemática. Inclusive as verdades filosóficas outra coisa não eram que opiniões produzidas por uma razão metafísica que não sabia criticar a si mesma. Kant, nivelou sofistas e filósofos, e bem abaixo da verdade científica.

Fazendo mais uma analogia com o Facebook, agora a partir da crítica kantiana, não podemos tomar nem as postagens da Folha de São Paulo e do El Paí (só para não sairmos dos exemplos usados), que se colocam como verdadeiras! O que temos no universo facebookiano -mas infelizmente nõa no nele- desde o princípio são meras opiniões, que geram opiniões, que por suas vezes geram outras opiniões, e assim por diante: um universo de verdadeiras confusões!

Poderíamos até concluir que o Facebook é o apogeu da sofística. Não obstante, mesmo confundidos pelo universo confuso de Zuckergerg, ainda resiste a ideia de que existe uma verdade sobre os fatos em relação aos quais temos as nossas sobreconfusas opiniões. Só que hoje, com o Facebook, além de decepcionarmos Kant profundamente, envergonharíamos inclusive os próprios sofistas para quem tudo era opinião.

Escandalizaríamos sobretudo Parmênides. Afinal, se, como pensava o filósofo pré-socrático, a opinião é aquilo que confusamente achamos que é a realidade, com o Facebook a opinião gerou um duplo só seu, porém absolutamente mais corrompido e distanciado da verdade do que nunca, qual seja: aquilo que confusamente achamos do que os outros confusamente acham que é a realidade”. Em outras palavras: os comentários de Facebook.

Igualdade social, ceticismo e “fossa-cética”.

Os céticos, ao contrário dos niilistas, creem que há “a verdade”, porém, que é impossível para o homem alcançá-la. Sendo assim, seja lá o que for “a verdade”, o cético é aquele que, de antemão, coloca-se absolutamente separado dela. E se a verdade, por um feliz capricho social, for a igualdade entre as pessoas? Um cético, obviamente, diria que nunca a alcançaremos. Entretanto, afrouxando essa vertical exigência cética, não seria possível pelo menos nos aproximarmos horizontalmente da igualdade social?

O PT, reduzindo a histórica desigualdade social no Brasil, aproximou-nos bastante dessa pretensa verdade. Como ser cético diante disso? Há quem diga que outros partidos políticos que rondam o poder, e que no menos golpista dos casos podem democraticamente retomá-lo, fariam o mesmo, ou até mais. Entretanto, a nossa realidade parlamentar esfrega na cara do povo que, em matéria de igualdade social, tais partidos só tocam em “verdades menores”, isto é, verdades úteis apenas para menos pessoas, ou o que é pior, para a velha minoria historicamente privilegiada: a elite brasileira. Como nos prevenir dessas verdades menores? Como tratá-las?

Acreditar no PT, todavia, não significa ser dogmático a ponto de crer ele é um partido perfeito, ideal. Tal quimera não existe, nunca existiu, nem nunca existirá. Se os partidos políticos são feitos por pessoas – e agora, mais do que nunca, por empresas! -, e não há uma pessoa sequer – muito menos uma empresa – que seja perfeita e ideal, deduz-se que… Agora, como a realidade é o anverso concreto dessa abstração que é a idealidade, as opções políticas mais realistas para tentarmos um país melhor para todos, infelizmente ou não, são o PT, o PSDB e o PMDB. Há outras siglas, é claro, mas elas, contudo, tão cedo não terão vez nessa luta de gigantes.

Então, em qual das opções factíveis investir? Como é a destruição de privilégios elitistas “na” construção de uma maior igualdade entre as pessoas o mais universal dos bens que se pode imaginar, temos que o PT foi o partido que mais fez isso na história do nosso país. O PMDB oligárquico de Sarney e Cunha e o PSDB aristocrático de Alckmin e Aécio, coitados, apenas reforçam a virtuosa dianteira petista – ainda que o PT, a exemplo de todos os demais partidos, não seja imune aos vícios da corrupção e à necessidade de superação de suas próprias contradições. É importante não esquecer: aquilo contra o que protestam as histéricas panelas brasileiras deve tilintar revolucionariamente nos ouvidos de todos os nossos partidos políticos!

Por definição, o cético é aquele que não consegue ter certeza a respeito da verdade, todavia porque assume que é incapaz de compreender o real. Agora, mesmo que nos digam que não podemos compreender “o real”, apostaríamos em que senão que a melhor de todas as verdade imagináveis é a igualdade entre as pessoas? Embora tal aposta tenha sido histórica e aristocraticamente desestimulada, ela é a única que partilha o bilhete premiado com todos os jogadores, indistintamente. Desse modo, é melhor ser anticético em relação ao PT, pois somente ele tornou um tanto mais real a velha utopia da igualdade social.

E é por que “antisséptico” se refere a tudo o que inibe a proliferação de bactérias ou germes, que proponho aqui – ainda que estimulado por um trocadilho – a postura “anticética” em relação ao PT que, mais do que os outros, acreditou na melhor verdade de todas: a igualdade social, independentemente de suas contas bancárias e sobrenomes. Seguindo na analogia, se “fossa séptica” é uma unidade para o tratamento primário de esgoto, e se o esgoto social brasileiro é justamente a nossa elite histórica, logo…

Proponho, então, que todos aqueles que não acreditam na igualdade social – melhor dizendo: não querem que ela seja uma verdade – sejam jogados numa “fossa-cética” para serem “tratados” dessa estratégica incapacidade de crer que a igualdade social é uma verdade a que podemos bravamente chegar. E, como o PT mostrou concretamente na última década, alcançável. Mesmo que o niilista mais radical comprove que não há verdade alguma, e que a igualdade social é só mais uma ficção, ainda assim podemos construir as “nossas verdades”. E tanto melhor se elas forem melhores para todos, não apenas para poucos. Não importa se a igualdade social é uma verdade “de verdade”, mas, com certeza, é a ficção que a maioria das pessoas nunca tentará desmentir.

Natureza, morte de Deus e Capitalismo.

Da perspectiva da Natureza, enquanto os homens eram servos obedientes à Deus, seguindo à risca os Seus mandamentos, ela, a Natureza, era mais preservada do que hoje em dia, quando é no capitalismo – e no seu fantástico paraíso tecnológico – que acreditamos piamente. Ao ignorar os Pecados Capitais, nos alienamos apenas dos “pecados”, mas, infelizmente, não do “Capital”… Com ajuda da Ciência Moderna e de sua filha predileta, a tecnologia, o capitalismo desferiu o golpe fatal contra Deus, e, com a arena universal limpa de um “zelador’ transcendente, explorou e destruiu sistematicamente a Natureza. Entretanto, é urgente uma reunião de condomínio na Terra antes que ela seja totalmente destruída pelo seu profano síndico atual, o Capital.

Onde está a ecologia inerente à velha ficção chamada “Deus” que perdemos ao escrever a nova ficção chamada “Modernidade”? Sim, porque a “Moderna Morte de Deus” em outra coisa não resultou senão na morte da ideia de que a Natureza é o que há de divino. A vida simples outrora ditada por Deus direcionava colateralmente os homens a uma relação mais harmoniosa com a Natureza. Com Deus vivo e lá em cima nós, aqui em baixo, éramos mais ecológicos. Sem Ele, entretanto, e com o Capitalismo no seu lugar, ecologia passou a ser apenas mais um objeto-mercadoria inalcançável, senão para que seja compulsivamente consumida e descartada, conforme a cartilha do capital.

Entretanto, o contraponto que poderíamos chamar de divino em relação ao Capeta-capitalismo que destrói perversamente a Natureza só pode ser a Ecologia, uma vez que ela é a única razão que ainda se sustenta contra a imperiosa destruição capitalista da Natureza. O problema dessa nova deidade ecológica, todavia, é que quando no Mármore Ardente do Capital parece tão transcendente quanto o velho Deus que, frisemos, seria bom ela substituir. Afinal, no mundo em que vivemos, que melhor ópio do povo, como um dia Deus foi, que a ecologia?

É Slavoj Žižek que entende que a Ecologia hoje assume a autoridade inquestionável outrora encarnada em Deus, impondo-nos limites inexpugnáveis às nossas ações e nos convencendo da nossa finitude. Com efeito, não seguir a razão ecológica – ou o que é o mesmo, a razão! – é o que nos condena ao inferno (aquecimento global, desertificação das florestas, falta de água etc.). Se, antes, a ideia de Deus de certa forma limitava a destruição da Natureza por nós, hoje “a Ecologia funciona como ideologia no momento em que é evocada como um novo limite”, diz Žižek. Com efeito, é somente ela que nos avisa, o tempo todo, do pecado insustentável da nossa vida consumista-hedonista que só se sacia consumindo descontroladamente a Natureza.

E se, de fato, é bom e racional que a Ecologia seja o nosso novo Deus, é justamente por conta do mar de pecadores antiecológicos perdidos no mundo. Diante do Diabo Capitalista e de sua catástrofe ecológica infernal o maior pecado, largamente cometido aliás, é encobrirmos o Mal justamente com o falso Bem com o qual próprio o Mal nos engana (as nossas desejadas mercadorias!). Ou, como aponta Žižek, o nosso pecado ecológico engendra “até inclusive a vontade direta de ignorância”. Isso porque, conforme o ambientalista Ed Ayres, “o padrão geral de comportamento entre as sociedades humanas ameaçadas é tornar-se mais tacanha, em vez de mais focada na crise, à medida que desmoronam.”

Se há um paraíso, ele é e sempre foi a Natureza, desde muito antes da invenção de Deus por nós. Todavia, a histeria da modernidade nos fez esquecer de que o “Capetal” – perdoem-me o inevitável trocadilho – só reina roubando incessante e perversamente “da” Natureza. Em troca, se queremos ver o Deus Ecológico reinar e engrandecer “a” Natureza, devemos seguir o conselho de Žižek: “tratar a Terra com respeito, como algo fundamentalmente sagrado, algo que não deve ser de todo revelado, que deve permanecer para sempre um Mistério, uma força que deveríamos aprender a confiar, não dominar.”

Para isso, contudo, o luxurioso casamento entre o Capitalismo e a Tecnologia – cuja prole obscena é o mundo de mercadorias que nos aliena justamente da obscenidade dos seus pais prolíficos – deve ser desfeito. Melhor dizendo: “desdivinizado”; “dessacralizado”; reificado a ponto de restar claro que tal casal é a origem do Mal que profana a Natureza. Só não haverá Mal algum em termos matado o histórico Deus cristão se mantivermos intacta a sacralidade da Natureza, que, aliás, é bem mais antiga do que Ele. Eterna até, diz-nos Spinoza, para quem a eternidade, mas também a perfeição, são a própria Natureza.

Entretanto, as “religiosidades” estrategicamente laicas do capitalismo e da tecnologia ou pregam que nada é sagrado, “tudo deve ser descoberto,devassado, profanado!”, ou, o que é muito pior, afirmam mentirosamente que sagrados são exclusivamente eles dois. Diante de vis mandamentos, somos servos do Mal, estamos condenados ao horror de um futuro infernal em pleno paraíso terrestre, o qual, aliás, destruímos em nome desse Deus Mal. As profanações do capitalismo e da tecnologia juntos nos fazem esquecer da maior – e talvez a única! – utilidade do sagrado, qual seja, parafraseando o poeta Rainer Maria Rilke, que “o Sagrado é o último véu que cobre o horror profano”.

#somostodosMadameBovary

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Madame Bovary, personagem do livro “O Romance dos Romances”, de Gustave Flaubert, escandalizou a sociedade de 1850 ao encarnar literariamente o “pathos” da modernidade, devolvendo cruamente aos seus leitores o indesejado sintoma psicológico produzido pela própria modernidade: a histeria. Nós, pós-modernos, não nos escandalizaríamos mais com uma Madama Bovary, não exatamente pelo fato de a histeria ter sido erradicada da nossa contemporaneidade, mas, ao contrário, porque hoje em dia ela é assaz democratizada. Pelo jeito não somos tão pós-modernos assim! Na verdade, ainda somos absolutamente modernos Absolutamente Madames Bovary.

No livro de Flaubert, Emma casou-se com Charles Bovary na esperança da felicidade burguesa-romântica que a sua época vendia como sendo a “verdadeira felicidade”. Porém, seu marido era um médico entediante e simplório. Então, em pouco tempo, ela já estava aborrecida e infeliz por perceber que a tal felicidade sonhada nunca viria, ou o que é pior, sequer existia. A vida interiorana de Emma e de seu esposo só piorava as coisas, principalmente por mantê-la alienada da roda capitalista-hedonista que já alegrava as capitais do mundo, resolvendo histericamente toda sorte de insatisfações individuais. Isso, porém, até um mascate oportunista abrir-lhe o universo das mercadorias refinadas vindas da iluminada Paris e do exótico Oriente.

Na primeira vez que o mascate ofereceu a Emma as caras sedas javanesas e as revistas de moda parisienses, ela, ingenuamente, disse que não podia comprá-las, alegando que o seu esposo não era rico. Aí o capitalismo, sem papas na língua, finalmente se apresentou mediante as palavras do mascate: “você pode ficar com tudo isso, mademoiselle, à crédito”. Ela ainda não tinha a menor ideia do que “à crédito” significava. Não obstante, entendeu rapidinho, sobretudo amou esse modo “a perder de vista” de amenizar a sua angústia pessoal que justamente queria perder de vista. Doravante, a suspensão do seu tédio, ainda que inadvertidamente paliativa, passou a ter o alto preço do que ela podia consumir à crédito.

A insatisfeita pequeno-burguesa, seduzida pelo capitalismo e pelas ilusões das revistas de moda de sua época, fez o mesmo que nós fazemos hoje em dia, seduzidos que somos pelo nosso (mesmo) capitalismo e pelas nossas (outras) modas: sucumbiu diante dos insustentáveis horizontes expandidos oferecidos ao Sujeito Moderno – assim como nós sucumbimos permissivamente aos ilimitados horizontes que a nossa pós-modernidade nos vende. E tanto faz se esse “nós” é burguês ou não, pois, atualmente, até os mais pobres guardam dentro de si um pequeno-burguês histérico, uma vez que todos somos alvos já alcançados e totalmente seduzidos pelo capitalismo e suas modas.

Porém, como o Sujeito Moderno é um saco sem fundo -tal é a histeria-, Miss Bovary não permaneceu feliz por muito tempo com as muitas mercadorias que comprava. Mal sabia ela que as benesses capitalistas nunca visaram a felicidade dos seus consumidores. Então, para dar conta da sua insistente infelicidade que o consumo à crédito sozinho não podia mais remediar, Emma passou a se envolver em relações amorosas-sexuais extraconjugais. Por um átimo, ela parecia ter encontrado a fórmula Moderna da felicidade: consumo&perversão. Ah! Mais um item fundamental: a mentira. Escondia sistematicamente de seu marido tanto os seus extravagantes gastos quanto, e principalmente!, os seus amantes.

Entretanto, como os amantes de Emma também eram Sujeitos Modernos, tampouco eles permaneceriam muito tempo satisfeitos com ela, ou com qualquer coisa que fosse. Nesse meio tempo, a conta que Emma há muito fazia com o mascate teve de ser irremediavelmente paga. Só que nem todos os bens dela e do marido saldavam a enorme dívida que ela havia contraído nos últimos anos. Procurando seus amantes agora também pelo dinheiro que lhe faltava, eles a rejeitaram terminantemente. Novamente sozinha com a sua velha infelicidade, Emma não suportou a situação. Desesperada, bebeu um veneno do boticário do marido-médico, correu para o meio da floresta, e morreu, deixando para trás o Mundo Moderno que sequer o Sujeito Moderno conseguia suportar.

Quão diferentes somos de Madame Bovary? Muito pouco, certamente, visto que só encontramos alívio para o insaciável vórtice pós-moderno no qual estamos imersos nas mentiras do capitalismo, no hedonismo consumista, na perversão sexual e, quando nenhum destes funciona, drogas venenosas. Mas por que Emma e nós precisamos de tudo isso simplesmente para não sermos infelizes? Ora, porque o Sujeito que nasceu na modernidade, e que cresce pujante na pós-modernidade, só faz mentir às pessoas que elas devem, a qualquer preço, ser mais do que são; que a realidade precisa ser mais do que é. Não que na antiguidade as pessoas e a própria realidade não parecessem faltosas. Porém, o advento da modernidade produziu mercadorias e perversões suficientes para estimular infinitamente essa falta fundamental que o ser humano enxerga no real.

#somostodosMadameBovary porque nunca estamos satisfeitos com a realidade ordinária que nos circunda, sobretudo por crermos piamente que a solução para a nossa insatisfação crônica deve sempre vir de fora, custar caro, ser bela, produzir orgasmos constantes e/ou múltiplos ou, na irrealização destes, matar-nos de vez. Emma morreu vítima de sua Belle Époque, mas segue presente na “notre époque postmoderne” nomeando o sintoma moderno por excelência. A psicologia se inspirou em Miss Bovary para cunhar um termo que falasse da insatisfação crônica de um ser humano, do conflito entre suas ilusões e aspirações, e da realidade insuportável que resulta desse embate: “bovarismo”.

Emma Bovary acreditou na ilusão de sua época que mentia que todo Sujeito deve e pode ser mais feliz do que realmente é. Melhor dizendo: tão feliz quanto o capitalismo e as revistas de moda são capazes de mentir. Os nossos capitalismo e modas outrossim nos convencem de uma felicidade sempre maior do que a que experimentamos ordinariamente. Então, compramos à crédito, trepamos constantemente e nos envenenamos alegremente apenas para fazer jus a tal ideal, que, entretanto, está sempre distante de nós alguns cifrões, orgasmos e doses de veneno. Isso que desde a modernidade chamamos “felicidade” é, na verdade, um mito, pois só os mitos nunca têm lugar na realidade. Não é à toa que o bovarismo é caracterizado como uma forma de mitomania. Desse modo, #somostodosMadameBovary porque insistimos no mito feliz que o capitalismo e a modernidade nos fizeram crer que é a realidade.

PT: o Judeu do monstro político brasileiro.

Se é pela corrupção política ou pela crise econômica que alguns acham que o PT deve sofrer um impeachment – palavra que atualmente corre solta em boca de Matilde midiática, mas que mascara estrategicamente a gravidade que é a deposição de um presidente da república – é porque tratam esse partido político da mesma forma que os alemães trataram os judeus no holocausto nazista, ou seja: trazendo à tona características universalmente indesejadas, e, por um curto-circuito ideológico, afirmar que o PT – ou os judeus – é a causa dessas características.

A irracionalidade do antipetismo decreta uma correspondência entre características gerais e históricas da política brasileira (a corrupção, a luta desmedida pela permanência no poder, a vulnerabilidade econômica etc.) e características hipotéticas de um suposto “caráter petista” (os petistas são corruptos, lutam desmedidamente pelo poder, fragilizaram a economia do país etc.), para chegar à ilógica conclusão de que o PT é a causa definitiva dessas características indesejadas e perturbadoras em nossa sociedade.

Obviamente, afirmar de um petista corrupto que ele é corrupto não faz de alguém um antipetista. O verdadeiro antipetista, em vez disso, diz que fulano de tal é corrupto “porque” é petista. Como a corrupção no Brasil não é, nem nunca foi característica exclusiva do PT, a ilógica lógica antipetista prega que há na essência do PT “alguma coisa que queremos depor imediatamente” que faz com que haja corrupção, manipulação e crises econômicas no Brasil.

O antipetismo, portanto, introduz uma pseudocausa misteriosa que faz do PT o local do surgimento e da permanência da corrupção. A partir desse despautério, o PT é identificado como fonte de todos os nossos problemas. O amargo preço disso, contudo, é que toda a corrupção que preexistiu ao PT, e que existe pujante a despeito dele, é colateralmente alienada das demais siglas partidárias. Só assim mesmo para um PSDB da vida convencer alguém de que luta contra a corrupção sistêmica. Essa realmente é muito boa!

A injustiça verdadeira, seja a dos antipetistas contra o PT, seja a dos alemães nazistas contra os judeus, é começar colocando os nomes “PT” e “judeu” entre fatos universais indesejados, tais como a corrupção e a crise econômica, e, em seguida, achar que esses mesmos fatos são produzidos exclusivamente pelo PT ou pelos judeus. Uma vez que se é vítima dessa irracionalidade, parece lógico bater histericamente panela para depor uma presidenta petista, e, no caso nazista, exterminar mais de seis milhões de judeus.

Para quê? Ora, em terras tupiniquins, para que um PSDB, por exemplo, possa seguir plenamente corrupto sem, no entanto, parecer vestir o estigma da corrupção injustamente gasto apenas contra o PT. E em terras nazistas, para que a monstruosidade de Hitler mentisse alguma espécie de esforço evolutivo; para que o mal absoluto reluzisse algum bem estratégico; para que o capital burguês parecesse mais limpo apenas porque estava “limpo” de determinada etnia histórica.

Agora, assim como a ignominia nazista se revela plenamente quando assumimos que o mal não reside no judaísmo, muito embora alguns judeus sejam pervertidos e corruptos, também o antipetismo não se sustenta pelo fato de alguns petistas serem corruptos. O antipetismo não só é absolutamente injusto com os muitos petistas honestos (a própria Dilma, contra quem nenhum crime foi provado), como também, e principalmente!, é permissivo em relação à corrupção histórica no Brasil, mal que nunca se deu ao luxo de se restringir a uma única sigla partidária. O antipetismo, embora nas manchetes midiáticas pareça revolucionário, é tão reacionário quanto o fascismo de Hitler, e, historicamente, pode ser tão vergonhoso quanto ele.

Admirável Mundo Povo

“AME O POVO. FODA-SE A PÁTRIA”, assim mesmo, em histérica caixa-alta, dizia uma postagem no Facebook, no dia da pátria, sete de setembro. Acima e abaixo do “textículo”, duas imagens, uma dos Black Bloc de 2103, outra dos Coxinhas de 2015, ambos ateando fogo à bandeira brasileira. Fações aparentemente tão antagônicas de uma mesma sociedade protestando de forma idêntica, com efeito, chama atenção. Serão mesmo tão opostos os Black Bloc e os Coxinhas, ou, hoje em dia, a oposição é tão antagônica em si mesma que, para ser, precisa se emparelhar justamente àqueles em relação aos quais deveria ser e agir de modo oposto?

Porém, o que parece escapar tanto aos radicais mascarados quanto aos de cara limpa – tão limpa que nem um cisco de vergonha na cara lhes resta -, é a ideia de que a pátria “se fodendo” o seu povo subsista. Ora, “povo” é justamente o que as pessoas são quando há uma pátria. Afora ela, as pessoas são apenas multidão. Portanto, é ilógico mandar a pátria “se foder” e ainda assim querer ser povo. Se a frase infame pelo menos dissesse “AME A MULTIDÃO”, histericamente ou não, seria igualmente radical, contudo, coerente.

Creio que “PÁTRIA”, na frase, pretendia significar, radicalmente, “O Estado”, cujo conceito assaz abstrato – pelo menos para quem está histérico em relação a ele – não funciona de forma tão efetiva, afetiva e concreta. Por definição, o Estado é a razão abstrata daquilo que a pátria é afeto concreto. Pátria, por conseguinte, entrou na frase como um golpe retórico baixo, senão para pegar os leitores pelo coração, a parte mais vulnerável de todos nós. Ainda assim, persiste a contradição em querer que exista um “povo” sem que haja um pátria ou um Estado.

Se é a inexistência do Estado o que os dois grupos de radicais querem, espero que peçam minimamente pelo anarquismo. Sim, pois somente a anarquia pode unir as pessoas – não mais em forma de povo, obviamente, mas enquanto multidão absolutamente livre – sem ser através de um Estado vertical. Os Black Bloc certamente não teriam nada a objetar quanto a isso, muito pelo contrário. Entretanto, para os Coxinhas, a anarquia que resta da combustão da sua bandeira pátria não só é mais contraditória, quanto declaradamente indesejada. Se estes já não suportam a ideia de socialismo, menos ainda a de comunismo, imagine a de anarquia! No entanto, isso é a melhor coisa que ambos ganham ao mandar a pátria – portanto o Estado – “se foder”.

Agora, o que significa essa ideia-desejo comum de partes tão antagônicas da nossa sociedade de ser um povo sem pátria? Bem, ou 1) não mais ser povo de um Estado que lhe parece absurdo, ou, radicalmente, 2) ser um povo tão absurdo quanto essa sua pátria lhe parece. Sim, pois nada mais coerente do que um povo incoerente a uma pátria outrossim incoerente. A opção 2 pelo menos é lógica, ainda que radicalmente lógica, beirando a irracionalidade. Entretanto, somente os radicalismos dos Black Bloc e dos Coxinhas mesmo para surfarem no limite da razão social e bradarem discursos tão absurdos quando esse que afirma o fim da pátria e a permanência do povo.

Se os nossos radicais pudessem incendiar a própria pátria, e não só a sua bandeira, e se dessa combustão não restasse alguma mínima organização anárquica que desse forma a essa multidão então auto expatriada, sob as inevitáveis cinzas pátrias eles veriam senão o crítico território pré-Estado hobbesiano cuja Lei única rima com a velha frase do dramaturgo romano Plauto, “Homo homini lúpus”, posteriormente popularizada pelo filósofo político Thomas Hobbes na conhecida máxima “O homem é o lobo do homem”. Aposto que, nesse nível, sequer os Black Bloc estariam satisfeitos, quiçá os Coxinhas.

Agora, se contra Plauto e Hobbes, o que os radicais brasileiros, sejam os de 2103, sejam os de 2015, desejam é mesmo aquele estado de natureza de antes do Estado Civil, querem senão a barbárie do olho por olho, dente por dente que, entretanto, expõe todos à vulnerabilidade da morte injusta e violenta com a qual Hobbes justifica a necessidade de um Estado Civil que a evite de todas as formas. Para este filósofo, é justamente o medo da morte violenta e sem punição que faz com que a multidão firme entre si o contrato social que institui o Estado Civil, onde todos são proibidos de matarem-se uns aos outros, ou, se o fizerem, pagam o preço da justiça.

Se é isso que os nossos “Neros” apátridas realmente querem, eles são muito mais radicais do que se poderia imaginar. Selvagens saudosos? Todavia, talvez a virtude deles esteja precisamente em evidenciar, ao modo de uma encarnação sintomática, e da forma mais contraditória à civilização, a barbárie a que a própria civilização pode levar os seus indivíduos. Em outras palavras, esses que queimam a pátria e ainda assim insistem em permanecer povo expressam senão o limite disso que chamamos de pátria, ou de Estado. Nesse ponto, esse radicalismo é uma forma de saúde, ou pelo menos o primeiro sintoma de que o corpo está gravemente doente.

Para mim, é como se o subtexto da postagem facebookiana em questão fosse: você, PÁTRIA, que nos criou, e sem a qual não podemos ser o que somos, isto é, POVO, não está mais à altura da sua criatura. Queimamos-te sim em praça pública para vermos se te comportas como a Fênix, e se de tuas cinzas renasce uma pátria que faça jus ao povo que você inevitavelmente cria. Um renascimento-povo do renascimento-pátria. Sendo assim, por mais que seja uma aberração uma multidão imaginar que possa ser povo sem uma pátria afetiva e sem um Estado racional que faça a conversão da selvageria em civilização, tal imaginação tem ao menos virtude de nos lembrar de que a “criatura povo” pode pretender não ser mais escrava do seu “criador pátria”.

É como se Frankenstein o monstro se autonomizasse a tal ponto que, colocando Frankenstein o médico na fogueira, impedisse irremediavelmente a produção de novos “Frankenstein” monstros. Sim, a criatura pode se voltar contra o criador. Se não de forma civilizada e lógica, pelo menos por meio de radicalismos paradoxais. Ainda não consigo pensar um povo sem pátria, porém, estes que simbolicamente incendiaram a pátria e ainda assim acreditam que são mais povo que nunca aventam a possibilidade, ou pelo menos o desejo de um “povo” poder ser muito mais do que aquilo que a pátria faz de uma multidão. Questionar radicalmente as razões e os afetos que fazem da multidão um povo talvez seja a bárbara civilidade desse Admirável Mundo Povo.

Um tête-à-tête entre a Economia e a Política

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-Economia? É você mesma? Que milagre te ver assim, em carne e osso! Quer dizer… hoje em dia, mais osso do que carne, não é mesmo?

-Sim, sou eu. Mas, por favor, Política, fale baixo meu nome. Não quero ser reconhecida em público.

-Ué, Economia, você está com vergonha? Já sei! É por que você está em crise…

-Não é isso, sua intrigueira. É que eu não posso ser reconhecida pelas pessoas.

-Como assim, Economia? Você está metida na vida de todo mundo, da ventura à ruína delas. As pessoas estão carecas de te conhecer.

-É verdade, Política, elas me conhecem muito bem, mas não euzinha toda. Somente aquela parte minha que as toca, como as suas economias pessoais concretas, entende? Agora, se encontram com o meu lado abstrato, universal, dá problema.

-Explica isso melhor para mim, Economia.

-Lembra que você disse que estava surpresa em me ver “em carne e osso”?

-Sim, Economia, mas eu estava brincando…

-Ahan, Política, sei… De qualquer forma, vou usar a sua “brincadeira” como metáfora para te explicar as minhas duas caras. Pois então, é como se a minha personalidade concreta, aquela que as pessoas conhecem muito bem, fosse minha carne, que está ora mais gorda, ora mais magra, como você mesma falou. Já a minha personalidade abstrata, aquela que não diz respeito a ninguém em particular, é como se fosse os meus ossos. Melhor dizendo, o meu esqueleto, a estrutura a partir da qual a minha carne pode faltar ou abundar, dependendo dos movimentos do mercado, das variáveis climáticas, etc.

-Ah, Economia, estou entendo. Tenho de confessar que sei muito bem o que é sofrer de síndrome de dupla personalidade!

-No seu caso, Política, devemos falar de síndrome de múltiplas personalidades, não?

-Ha ha ha! É isso mesmo, Economia! Eu tenho de ter tantas caras quantos são os cidadãos que represento. Nossa, isso dá um cansaço! No final do mandato estou acabada! Sem dizer que todo mundo fica achando que eu sou falsa, que só me preocupo comigo mesma. E para convencer meus eleitores novamente, preciso de muito dinheiro privado nas veias para, nas minhas campanhas eleitorais, convencê-los de que posso representá-los como eles precisam.

-A diferença entre nós duas, Política, é que todos eles me acham verdadeira demais. Cruelmente verdadeira.

-Ah, então é por isso que você não gosta ser reconhecida em público, Economia?

-Não exatamente, Política. Não tem problema algum as pessoas encontrarem com a minha carne concreta, nas suas vidas, nas suas dificuldades cotidianas, nem com o meu esqueleto abstrato, seja nos telejornais, seja nos relatórios dos meus especialistas, os economistas. Separadamente, eu convenço e envolvo as pessoas sem maiores problemas, sigo economizando todo mundo. Agora, aqueles que me encontram “em carne E osso”, ah!, esses piram!

-Por que isso, Economia?

-Ah, Política, por que, em geral, as pessoas acham que o meu esqueleto abstrato tem de ser o cabide das carnes delas, de suas economias pessoais, que na verdade são minhas carnes e minha economias particulares, mas que por ser a parte minha que elas podem tocar, isto é, economizar ou não, acham que é delas. Só que se enganam. Na verdade, devo confessar, eu as engano… Sabe, fico constrangida em dizer que o que realmente importa é o meu esqueleto abstrato, que ele é a minha verdadeira estrutura, e não as minhas pelancas, essas contingências que os cidadãos conseguem tocar.

-Nossa! E como você faz para que o povo não descubra a sua verdadeira essência, Economia?

-Você está se fazendo de burra, Política, ou é burra mesmo?

-Calma, Economia, não precisa ser grosseira. Eu só queria saber como você faz para o povo não perceber que você, “A Economia”, não está nem aí para eles…

-Ora, Política, sua dissimulada… Vai dizer que você não sabe que para ninguém desconfiar dos meus segredos e contradições eu ponho você a trabalhar para mim?

-Sem essa, Economia! Eu, trabalho para o povo, só para ele. Sou a representante legítima dele aliás.

-Sim, Política, você até trabalha para o povo quando não está envolvida com seus próprios interesses. Porém, para convencê-lo de que eu, a Economia, funciono em função deles. Mentira que eu, sozinha, confesso, jamais conseguiria contar de forma tão convincente. Entretanto, sem euzinha aqui, não haveria necessidade alguma de você, Política.

-Essa é boa! Desde quando, Economia?

-Acho que você é burra mesmo, Política… Desde a Grécia Antiga, sua tonta! Muito antes de você sequer existir eu já estruturava a vida das pessoas. Talvez você não tenha se dado conta porque naquela época eu me chamava “oikonomos”, isto é, administração doméstica, e então…

-Oico o quê?

-Oikonomos, sua estúpida. Então, Política, como eu ia dizendo, foi só por conta das minhas dificuldades domésticas que os gregos da época começaram a fazer política. Por minha causa inventaram a “pólis”, isto é, a cidade, e chamaram a si mesmo de “polités”, ou seja, políticos.

-Quer dizer, Economia, que eu surgi para resolver os teus problemas domésticos?

-Exatamente! E até hoje, 2500 anos depois, segue sujando as mãos por mim, Política parceira. E é assim porque você é muito boa com as palavras, cria discursos maravilhosos, engana todo mundo com eles. O problema, Politica, é que no fim das contas você acaba acreditando nas próprias mentiras e se esquecendo de que, na verdade, você só veio ao mundo para costurar as minhas carnes concretas ao meu esqueleto abstrato com a sua emaranhada linha retórica.

-Então, Economia, Lenin estava falando sério quando disse que, embora tudo seja decidido na luta política, o que me deixava muito feliz e segura de mim, toda luta política é determinada, por você, a Economia?

-Bravo, Política. Prometo que não te chamarei mais de burra. Você finalmente parece ter entendido a hierarquia que nos separa. Isso está bem claro para você ou quer que eu desenhe?

-Não, Economia, não precisa desenhar. Você é melhor fazendo gráficos e planilhas de excell…

-Tampouco você sabe desenhar, não é mesmo, Política? Seu talento é com as palavras. Aliás, foi justamente por causa delas que eu te botei a remendar as minhas partes antagônicas, para que eu pareça sempre absoluta, e assim poder lucrar melhor às custas das pessoas.

-Nós não valemos nada, Economia. Não existimos sem fazer os outros de idiotas. Isso me lembra de quando você…

-Agora chega de gastar teu verbo comigo, Política, pois, como você mesma disse, eu estou em crise. E quando eu tenho problemas é você que deve trabalhar. Então, vá discursar para o povo que assim eu saio mais rápido do buraco. E da próxima vez que você encontrar comigo toda, por favor, seja discreta. Melhor: troque de calçada, pois se o povo nos ver juntas demais vão desconfiar da nossa estreita relação, e aí já viu, né, é ruim para mim. Todavia, tanto pior para você, não é amiga?

O Europeu-hegeliano e a Populaça Imigrante

-Que novidade é essa? O que você faz aqui, Populaça Imigrante, dentro das minhas muralhas felizes?

-O Europeu-hegeliano me chamou de quê? Pergunta o Imigrante clandestino.

-De po-pu-la-ça. O nome que há muito dei para gente como você, excesso humano produzido pelo meu Estado moderno, gente para a qual não há lugar no meu mundo civilizado, Muito embora, é claro, a civilização do meu mundo não se dê sem a estratégica barbárie exportada para o mundo de vocês – Explica o Europeu.

-Deixe-me ver se entendi – interpela o imigrante. -Eu sou aquele que não tem lugar dentro do seu rico mundo, mas também aquele sem o qual o seu mundo não é rico?

-É por aí, Populaça clandestina, pois não é a minha riqueza isolada, mas o contraste dela com a tua miséria que faz de mim rico – confessa o Europeu.

-Se é assim, deixe-me entrar, pois se a minha pobreza estiver bem próxima de você, parecerás mais rico do que se eu estiver lá no meu distante submundo – propõe o Imigrante.

-Não é tão simples assim, Populaça. A minha riqueza é muito exigente, egoísta até.

-Ah, mas de que serve a tua riqueza se ela desaparece ao lado dos miseráveis? – Provoca o Imigrante.

-Não é que eu não seja rico suficiente para cuidar de você – perde a paciência o hegeliano. – O problema é que eu sou rico demais, e, como você e eu sabemos, quanto maior a riqueza, menos se sabe o que fazer com a pobreza.

-É, de fato, disso eu já sabia – completa o Imigrante, fitando gravemente os olhos do Europeu. – O meu problema é justamente esse. Você está tão rico que nada mais faz em relação a enorme pobreza que gera, no caso, a minha, né… Por isso eu estou aqui! Para que você e a sua riqueza sujem as mãos com a insuportável miséria que não conseguem deixar de produzir. Você tem que reconhecer a sua responsabilidade na minha desventura.

-Ah! Então o que você quer, Populaça Imigrante, é que eu reconheça que sou a causa da sua miséria? Quer dizer que o seu problema não é a miserável condição material com a qual você desde sempre esteve acostumado, mas, em vez disso, esse desejo subjetivo de ser reconhecido enquanto empobrecido por mim?

-Gente europeia rica tem a mania de abstrair tudo mesmo – diz o Imigrante. – O meu problema são as duas coisas, mané. Ó aí o burguesinho achando que a minha miséria concreta é menos sofrível do que a miséria de reconhecimento abstrato que ele pode me dar…

-Desculpe-me – interrompe o Europeu-hegeliano -, mas eu tinha consciência de que a pobreza objetiva não era suficiente para gerar você, Populaça. Achei que você só aparecia quando essa pobreza fosse subjetivada, vivenciada como injustiça radical.

-É, mas enquanto o senhor fica achando que somos o que somos apenas por questões subjetivas, a nossa pobreza objetiva segue firme e forte, e insuportável!

-Tá – rebate o Europeu -, mas não é culpa minha que, quando uma sociedade enriquece, a pobreza tome a forma de uma injustiça cometida pela riqueza. Por aqui, costumamos dizer que injusto é alguém querer ser rico, ou até mesmo reconhecido sem trabalhar arduamente para isso.

-Sempre trabalhamos, senhor – responde o Imigrante. –O negócio é que lá onde vivíamos o trabalho ou não existe, ou, quando existe, não compra nem reconhecimento nem comida. Além do mais, pelo que sabemos, aqui tem gente tão rica que nem precisa trabalhar, como os artistas contemporâneos, os especuladores financeiros, os grandes herdeiros e tal. Sendo assim, se é injusto ser reconhecido sem ser por meio de trabalho árduo, como o senhor diz, a injustiça é coisa dessa terra aqui. Vai vendo…

-Olha, Populaça, vou ser sincero com você. Eu não estou preparado para ver as minhas contradições com elas assim tão perto de mim, vivendo junto comigo. Enquanto você permanecia lá no submundo miserável de onde nunca deveria ter saído, nós lidávamos muito bem com as nossas contradições, ou o que é o mesmo, com a tua miséria. Escrevíamos livros, fazíamos documentários, ou seja, teorizávamos. E, como costumo dizer, se a teoria não se encaixa nos fatos, tanto pior para os fatos.

-Ha, ha, ha! É por isso mesmo que eu vim para cá, seu escroto, para que, pelo menos “teoricamente”, sejamos felizes juntos – debocha o Imigrante.

-Populaça, desculpe-me, mas a história do mundo não é um teatro da felicidade – adverte o Europeu. –A felicidade só acontece quando esquecemos das contradições, ou quando elas estão tão longe que podemos fazer de conta que não existem. Agora, com vocês aqui, fica muito difícil ser feliz.

-Olha, senhor, se eu não me tornar feliz aqui, a coisa não muda para mim não, fica elas por elas…

-Então – contra-argumenta o Europeu -, se tanto faz você ser infeliz aqui ou lá onde nasceu, porque não permanece infeliz lá?

-Vou te dizer por que, bobalhão – engrandece-se o Imigrante Clandestino. –Por que a felicidade teatral do seu mundo é muito mais triste e real para mim se eu ficar lá no meu submundinho, custeando-a à distância. Aí é muito pior. Agora, mesmo que aqui eu não seja feliz como você, pelo menos a minha tristeza miserável talvez seja um pouco menor. Sem falar que comigo aqui você não terá para quem exportar as suas tristeza e miséria proletárias produzidas colateralmente pelas suas riqueza e felicidade burguesas.

-Mas, Populaça, olhe a “big picture”. Você aqui não será mais feliz nem rico do que sempre foi. Ao contrário, essa sua tristeza inerente pode inclusive arruinar a única felicidade e riqueza que existem, que, no caso, são as minhas. Como alguém como você, cujo status social oscila entre o de vítima carente de assistência humanitária e o de terrorista que deve ser contido, pode fazer alguém feliz? Não percebe que, na verdade, você é uma ameaça às minhas perenes felicidade e riqueza?

-Ah, desculpe-me, senhor, a sua felicidade e a sua riqueza não são ameaçadas por mim não. Eu sou apenas um lembrete, só que agora insistentemente presente, de que elas são extremamente frágeis e insustentáveis em si. Não sou eu quem as ameaça, mas você mesmo, Europeu, com essa sua essência imperialista e egoísta.

-Ok, eu sei muito bem que é o meu próprio estilo de vida que me ameaça, mas, como falei, sempre coloquei os meus problemas vivendo bem longe de mim. Então, alienado deles, pude inclusive fingir que me importava com você, Populaça estrangeira. Quando ficava muito chocado com a tua miséria, enviava os meus humanitaristas, distribuía gratuitamente o excedente da minha indústria farmacêutica e até alguns Direitos Humanos Universais que não me faziam falta – explica o hegeliano. –Afinal, é assim que eu sempre fui. Esse é o meu velho jeito, não te lembra dele?

-Mas saiba, senhor, que o novo surge justamente a partir do velho. E eu sou a novidade impertinente que aparece repentinamente nesse seu confortável e velho teatro burguês inerte! – Provoca o Imigrante. –Eu, Imigrante, ou como o senhor quiser me chamar, seja de Populaça, seja de “a nova crise da humanidade”, apareci justamente por que o senhor não vem mudando esse seu jeito insustentável de ser. Entretanto, eu sou essa mesma insustentabilidade, antes continentalmente alienada, agora clandestinamente imanente, apresentada em sua mais nova forma nova: a de refugiado humano contemporâneo! Acostume-se, pois eu sou a novidade crítica e verdadeira que veio acabar com essa sua velharia harmoniosa e falsa.

-Populaça, você está coberta de razão. Mas é que eu estou desabituado a considerar outras razões que não a minha própria. Faz tanto tempo que você não bate assim à minha porta… Conhece aquele ditado: “longe dos olhos, longe do coração”? Pois então… Agora, uma vez que você está aqui para ficar, dê-me tempo até eu saber o que fazer com você, ou, como você mesmo diz, comigo mesmo enquanto produtor desse problema único que somos nós dois juntos – disse o Europeu, rendendo-se à pressão da Populaça Imigrante.

-Ah, quer dizer que agora o senhor começa a se preocupar comigo – provoca o Imigrante. –Engraçado, eu tenho o mesmo valor que tinha quando você não me queria ou sequer se lembrava de mim. Mas só agora, comigo no seu pé, o senhor me trata diferente. Ainda bem que eu me arrisquei para chegar até aqui, hein!

-Não é nada disso, Populaça. Mesmo que demore para que eu entenda objetivamente que a sua miséria é causada pela minha riqueza, no exato momento eu estou subjetivamente comovido pela sua miséria. Por enquanto te ajudarei sob o pretexto de que somos irmãos, afinal, não é isso que todos somos todos aos olhos de Deus e da opinião pública? – Despista o Europeu. – Vamos botar um ponto final nessa história?

-Calma, senhor! Primeiro precisamos deixar bem claro que você não me quer aqui, Populaça clandestina, por mim mesma, porque sou a mesma que você não queria antes. Não se esqueça de que o senhor me quer por outra coisa, por algo que não sou eu!

-Mas que coisa seria essa, Populaça?

-Ah, Europeu-hegeliano de uma figa, você não desconfia de nada?

-Deixe-me ver – pensa o Europeu por vários instantes -, por que eu… sou rico, inteligente, privilegiado?

-Sem essa, mané – irrompe a Populaça. É que você, Europeu, é hegeliano demais, é viciado em colocar um ponto final nas histórias em geral, mesmo que teus “finais felizes” se deem apenas depois dessas suas longas dialéticas humanitárias paliativas e aristocráticas. Se liga: a minha presença aqui é uma contradição concreta que não será sintetizada numa historinha abstrata para você dormir em paz. Enquanto eu estiver aqui, é por que a nossa história não chegou ao fim que você tanto deseja. Ao contrário, essa história está bem em seu insuportável meio, mesmo que você não goste sequer de ouvi-la, muito menos eu de vivê-la.

Liberdade aquém-sentido

Algum sentido se apoderará desse texto a qualquer momento. Não por muito tempo estas letras enfileiradas permanecerão absolutamente livres. Apesar de eu, de fato, só escrever letras, que em si são vazias de sentido, é inevitável que, com elas, palavras surjam no caminho. Ainda bem que as palavras ainda guardam sentidos diversos do que elas têm quando muitas delas juntas! Mesmo estas quatro primeiras frases, apesar de expressarem sentidos só seus, ao final do texto se curvarão em conjunto diante de um sentido exigente mais imperioso do que elas. Como escapar disso?

Tento fugir do sentido final porque se ele se fizesse presente desde o início do texto, estas letras, palavras e frases já teriam se tornado escravas suas. Isso porque o sentido age como um Senhor Capitalista transcendente a subjugar a imanente mão-de-obra proletária através da qual devém, abstraindo-a, reificando-a, explorando-a, senão em função de um sentido maior e, infelizmente, unívoco. Por essa razão, uma letra proletária nunca será um poema capital! Que injustiça semântica.

No entanto, mesmo que o sentido deste texto esteja sendo preterido, obviamente para que ele não se assenhore cedo demais destas livres letras palavras e frases, elas, de certa forma, já são escravas suas, como eu e o leitor já desconfiamos. Entretanto, enquanto elas pensam que são livres, trabalham alienadas do sentido que as colocará cada uma no seu posto dessa linha de montagem textual. Afinal, somente enquanto o sentido deste texto aqui não se instalar definitivamente é que esta frase, por exemplo, poderá dizer mais do que ela dirá depois que o último ponto final for colocado.

No entanto, só consigo obscurecer o sentido desse texto, para deixar as letras, palavras e as frases em paz, fazendo do próprio sentido o assunto em torno do qual elas giram, com muito esforço, sem tocá-lo, abstraindo-o intencionalmente. Vingança? Porém, 1597 letras, 305 palavras, 13 frases e três parágrafos e meio depois o poder do sentido já se faz sentir. É inevitável. Diante do derradeiro, a única estratégia destas letras, palavras, frases e parágrafos contra o irremediável assenhoramento do sentido seria o “nonsense” radical, mas, com efeito, nesse caso, a união delas faz a sua fraqueza.

Economia histérica no divã

Oh, meu Deu$, eu estou em crise! – Grita histericamente a Economia no divã econômico de Thomas Piketti. Então, ele pergunta:
– O que te aflige, Economia?
– A instabilidade econômica, ora bolas!
– Então, é a tua própria instabilidade, Economia, que te aflige?
– Sei lá! – responde ela, contrariada – É que eu não consigo mais crescer como nos últimos tempos. Sinto-me paralisada, não sei mais o que fazer!
– Entendo… – Diz o economista “da moda” com a clássica mão no queixo. – Conte-me mais como você vem crescendo nos últimos tempos?
– Ah, na última década eu cresci vertiginosamente, tipo uns 5% ao ano. Na China, por exemplo, em 2007 cheguei a crescer 14%, acredita nisso?
– Nossa, é um crescimento e tanto, hein, Economia! – Concorda Piketti, já cercando a sua paciente para um ataque. Entretanto, ela o interrompe:
– Sim, é exatamente assim. Ou melhor, é somente assim que, hoje, eu gozo: crescendo muito! Posso até suportar um crescimento abstinente de 3 ou 4% ao ano. Agora, menos do que isso, eu entro em CRISE!
– Sei – diz o psicoeconomista. – Mas você sempre cresceu assim?
– Claro que não – responde ela. – Da Antiguidade até a Revolução Industrial, ou seja, por quase 2000 anos, eu crescia no máximo 0,1 a 0,2% ao ano. Eu vivi muita coisa, doutor!
– Ah, então o fato de agora você não estar crescendo 14% ao ano é o seu atual problema! – Diagnostica Piketti. – Mas diga-me uma coisa mais: você, nesses 2000 anos de “baixo crescimento” – ele realmente faz as aspas com os dedos – , era infeliz?
– Infeliz? Na verdade, não! – titubeia a Economia – Eu tinha os meus problemas, as minhas crises particulares aqui e ali, mas nenhuma tão angustiante quanto a atual.
– Então, Economia, você concorda que crescer menos de 1% ao ano, por exemplo, não foi sempre um problema para você – encurrala-a Piketti.
– Não, não foi – irrompe ela a contragosto. – Mas agora é!
– Por quê? – Insiste ele.
– Ora, doutor, hoje em dia, um crescimentinho merreca de 1% parece muito pouco, quase imperceptível, e aí eu e todo mundo temos a impressão de que euzinha estou completamente estagnada.
– Calma, Economia! Você deveria pensar que um crescimento de 1% ao ano corresponde a um crescimento de 10% ao final de dez anos; 100% ao final de cem anos, e, logicamente, 1000% ao final de mil anos. Por que você não relaxa um pouco, tem um pouco de paciência?
-Ah, doutor, você fala como se eu pudesse esperar tudo isso para crescer. Não percebe que eu preciso urgentemente crescer tudo o que puder, e agora mesmo?
– Mas essa pressa, hein, de onde vem? – Pergunta ele, intrigado com a pulsão que a inquieta.

Ela não sabe o que responder. Coloca e tira as mãos dos bolsos compulsivamente. Piketti desconfia de que ela esteja viciada em alguma droga. Qual seria? Capital, que há poucos séculos ela sistematicamente injeta nas veias? Só pode ser isso. Afinal, pensa ele, se não existiu nenhum exemplo histórico de algum país que crescesse, econômica e SISTEMATICAMENTE, acima se 1,5% ao ano, esse desejo de crescer 10% ou mais não pode vir da própria Economia, que em sua longeva vida cresceu em média 0,2% ao ano, mas do próprio capitalismo, pois é ele que vicia qualquer um em crescimentos vertiginosos, todavia insustentáveis. Ainda assim Piketti insiste:
– Economia, precisamos saber o que está por trás desse seu desejo incontrolável de crescimento.
– Ora doutor, que ingenuidade a sua. O que está por trás do meu desejo é a possibilidade de crescer mais ainda, e sempre!
– Ah! – Exclama ele, certo de que encontrou a pulsão da própria economia que a lançava na sua atual neurose. – Então você deseja crescer simplesmente para poder crescer mais, só por isso, sem nenhum objetivo mais elevado?
– É! – diz ela – É isso mesmo o que eu desejo.
– Olha, economia, agora eu entendo seu desejo atual. De qualquer forma, deveríamos nos ater às suas experiências históricas, pois elas talvez nos mostrem que crescimentos econômicos superiores a 1% ao ano, além de serem muito recentes na sua longa vida, são impossíveis de se sustentar eternamente. Ao contrário, geram desigualdade social, explosões demográficas vertiginosas, e, ademais, a destruição da natureza, aliás, já bastante destruída por essa sua sede de crescimento econômico. Preste atenção! “Para o planeta como um todo, tudo leva a crer que a taxa de crescimento não pode ultrapassar 1-1,5% ao ano no longo prazo, quaisquer que sejam as políticas a serem seguidas” ou desejos impertinentes seus.

Mas isso não convenceu Economia. Ela estava histericamente certa de que precisava seguir crescendo. Tal desejo a cegava justamente para a necessidade de questionar esse próprio desejo, por isso a sua histeria. Ela resiste à colocação de Piketti:
– De maneira alguma, doutor! Eu não posso deixar de crescer 3 ou 4% ao ano. Isso está fora de questão. Do contrário, até no Brasil baterão panelas.
– Economia, crescer tudo isso, todos os anos, “é uma ilusão, seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista da lógica”, seja ainda da perspectiva ecológica. Talvez você tenha que considerar que o seu “o crescimento dos próximos séculos está claramente destinado a retomar patamares muito baixos” – diz Piketti, afavelmente. – Aliás, “um ritmo de crescimento na ordem de 1% ao ano é, na realidade, muito rápido, mais ainda do que se imagina”.

Aí a economia histérica explode de vez. Contrariada, levanta-se do divã e caminha descontrolada pelo consultório “economicoanalítico”, dizendo:
– Você não vê, Piketti, que se eu crescer apenas 1% ao ano as nossas poupanças e investimentos não renderão mais do que isso? Que ao final de um longo ano estaremos no máximo 1% mais ricos? É isso que você está querendo propor? Não vê que com isso você, ou melhor, vocês todos, humanos, terão de mudar e deixar de desejar a vida de consumo ilimitado que justamente a minha recente histeria proporciona a vocês?

Nesse momento, quem fica sem fala é o próprio Piketti, pois ele não condena completamente o vício capitalista da economia. Perversamente satisfeita com a mudez do analista, a economia histérica prossegue segura de si:
– Achei que você fosse um marxista, um comunista! Pelo menos é o que muitos dizem de vc. Que decepção! Vejo que estão errados. Esperava que, para a minha neurose, você me prescreveria o mesmo que Marx: uma inicial e revolucionária desintoxicação socialista, seguida de um radical tratamento comunista, para só então, quiçá, eu estar homeopaticamente livre das minhas patologias históricas, ou seja, anarquicamente saudável novamente.

O silêncio de Piketti, por sorte, levou a economia histérica a confessar seu desejo mais íntimo, isto é, uma figura fálica externa que a tolhesse, que lhe impusesse limites! Ele se perguntou, contudo, se era Marx ou o próprio capital o pai despótico que ela estava desejando. Para confrontar ainda mais a economia histérica com o seu desejo de um falo corretor, não obstante para dessimbolizá-lo, Piketti recusa-se a sê-lo, dizendo, lenta e provocativamente:
-Não, Economia, não existe essa suspensão revolucionária do vício em capital, nem a abstinência comunista em relação a ele. Tampouco essa utopia anarquista de que falava Marx. O que temos aqui é apenas o seu atual vício em capital, nada mais.
-Vício em capital? – Interrompe ela, dando-se conta da solidão em que se encontrava. – Eu pensei que meu vício fosse desejar crescimentos altíssimos, e que isso fosse o melhor para todos.
-É exatamente esse o problema! – Coloca o analista. – Você não sabe qual é o seu verdadeiro desejo. Acha que é de grandes crescimentos, mas, na verdade, é de capital. Isso porque se esquece de que antes de se viciar em capital, ou melhor, antes de ele existir!, você, por muitos e muitos séculos, cresceu modicamente, saudável e tranquila, sem essa histeria toda.
-Doutor, o senhor está querendo dizer que o meu problema é o capital? – Pergunta desconfiada a Economia, antes de começar a tocar na contradição que se revelava a ela. – Não pode ser! Eu achei que mais capital era a solução para o meu problema… Todos dizem isso, aliás.

Piketti permanece em silêncio para que a sua paciente faça as suas próprias conexões, o que não demora muito. Ela prossegue:
– Quer dizer que… se eu seguir consumindo capital para me livrar dessa histeria que me consome ficarei mais viciada nele, e portanto mais histérica ainda?
– O que você acha, Economia?
– Olha, doutor, particularmente, acho que se eu deixar de injetar capital nas minhas veias todos nós cresceremos por volta de 1% ao ano. Ou seja, eu terei de crescer de acordo com a necessidade das pessoas comuns e com as possibilidades da natureza.
– E isso não é bom, Economia?
– Como assim, doutor, bom? E o Capitalismo? Como ele vai sobreviver?

Nosso psicoeconomista agora teve certeza de que o capital não era o simbólico Pai despótico da Economia – este permanecia sendo Marx, aquele que a repreende e tenta educá-la verticalmente. Na verdade, o capitalismo é a Mãe simbólica da Economia: a figura mentirosamente frágil cuja felicidade demanda, melhor dizendo, cobra a felicidade de seus filhos, a ponto de eles se tornarem paralisantemente histéricos. Ciente de que a Economia deveria matar simbolicamente essa mãe solicitante, Piketti pergunta, suave e retoricamente:
– Achas mesmo que o capital morrerá se você deixar de consumi-lo compulsivamente? E se por ventura o capitalismo morrer, seja porque você deixou de usá-lo, seja por motivos históricos que sequer podemos imaginar, tal fragilidade não seria um problema exclusivamente dele? Liberte-se, Economia, dessa responsabilidade para com o capital, pois é esse o peso simbólico que você carrega nas costas a ponto de enlouquecer, de estagnar. Mais ainda, enlouquece a todos nós, humanos.
– Mas e se o capitalismo morrer e eu morrer com ele, doutor?
– Economia! Quem não pode morrer, e nem morrerá, é você mesma, pelo menos enquanto houver sociedades humanas, visto que você é tão antiga quanto elas. Esquece-te de que os teus pais etimológicos, a “Oikos” e o “Nomein”, isto é, a “casa” e o “cuidado” com ela, não tinham capitalismo nos seus genes?
– Mas então o que eu devo fazer, doutor, para voltar a antes do capitalismo?
– Temo que não tenhamos como voltar no tempo, Economia. Entretanto, se no passado você já sabia como agir independente do capital, basta seguir adiante como se o capitalismo não fosse a condição da sua existência. Ao contrário, ele só pode ser por que você é. Aliás, você é a causa dele, saiba disso, e pode deixar de ser, só depende de você. Ademais, é a partir do momento que você quiser definitivamente outra coisa que não o capital que o capitalismo não terá mais lugar em você. Ele é um fantasma assombrador, que você mesma inventou, e, portanto, só você pode fazê-lo desaparecer.

Antes que a Economia dissesse mais alguma coisa, o psicoeconomista informa que a sessão chegou ao fim, pois mesmo que ela tivesse muita coisa a dizer e ainda estivesse bastante histérica, era melhor que a Economia deixasse o consultório e voltasse ao mundo considerando as duas melhores conclusões tiradas da sessão, quais sejam: que o capitalismo não é algo externo ao qual ela deve estar sujeita, mas uma produção sua, e, sumamente, que Economia podia crescer menos do que estava se sentindo obrigada ultimamente, pois suas mais tranquilas experiências históricas só foram tranquilas porque dispensavam essa atual obrigação de crescer 10 ou 14 % ao ano.

Os dois lados do Túnel dos Direitos Humanos

A praia é o lugar mais democrático do Rio de Janeiro. Só que não! No último domingo, 23 de agosto de 2015, negros pobres suburbanos da Zona Norte, por ordem do rico e poderoso Governador Pezão, foram impedidos, às portas do Túnel Rebouças que liga o subúrbio à Zona Sul carioca, de usufruírem do “Direito Universal” – que, portanto, deveria ser também deles – de irem e virem, justamente, à praia. Para estes, de fato, os Direitos Humanos universais outra coisa não foram além de uma boa história para burguês dormir – ou tomar banho de mar – sossegado.

Já do outro lado do Rebouças, da perspectiva dos burgueses ricos cosmopolitas cariocas da Zona Sul, apólogos mentirosos da democracia praiana, a mesma ordem do rico e poderoso Governador Pezão possibilitou, melhor do que nunca, que eles fossem à praia e voltassem dela conforme a cartilha dos Direitos Humanos prega. Pelo mesmo em relação ao direito dominical de ir e vir livremente à praia resta muito claro a favor de quem os Direitos Humanos Universais funcionam prioritariamente.

Por isso Slavoj Žižek faz questão de não nos deixar esquecer de que essa coisa chamada “Direitos Humanos Universais” é, na verdade, uma instituição feita pelos ricos e poderosos para, sob a pressuposta universalidade da proteção que ela oferece, permanecerem absolutamente desumanos e, ademais, desumanizando os há muito desumanizados sistematicamente por eles, com a garantia de que se porventura forem punidos pelas suas desumanidades, o sejam “humanamente”.

Entretanto, se de fato os Direitos Humanos Universais são o escudo criado e empunhado pelos os ricos e poderosos para que eles possam ser desumanos à vontade, a humanidade abstrata deles, que, do lado desejado do Túnel Rebouças, lhes assegura o paradoxal direito de serem desumanos, ali, do lado indesejado do mesmo túnel, tal humanidade é concretamente desumana.

Uma vingança ao estilo “olho por olho” por parte dos suburbanos barrados somente os afastaria ainda mais dos já distantes Direitos Humanos que mentem muito bem serem também deles. Talvez a poderosa desumanidade da Zona Sul até achasse essa desforra apropriada, conquanto, é claro, houvesse um túnel privado que os conectasse diretamente ao aeroporto internacional, que, por ironia urbana, fica justamente na Zona Norte.

A ideia, obviamente, não é retornar à barbárie do “olho por olho dente por dente”, mas, ao contrário, desnudar a desumanidade travestida de humanidade sob o privilegiado manto dos Direitos Humanos Universais, para assim, livres de tal andrajo excludente, os seres humanos em geral terem o direito de vestir a tão alardeada humanidade que, entretanto, só será verdadeiramente humana e democrática no dia em que todos puderem ir e vir livremente, seja à praia, seja aonde for, independente do lado do túnel social em que se encontrem.

Temos, portanto, de confrontar estas duas “humanidades” cindidas pelo privilegiado túnel dos Direitos Humanos Universais – no caso carioca, pelo Túnel Rebouças – e esclarecer quem de fato está sendo humano, desumano, desumanizador e desumanizado. De tal esclarecimento depende a instituição de Direitos Humanos VERDADEIRAMENTE universais e, sobretudo, o fim dessa utopia ideológica que ilude os pobres e desapoderados de que eles têm os mesmos direitos que os ricos e poderosos.

Balões cenográficos e a fragilidade humana.

“Conte-me sobre você”, pediu a bailarina ao seu público, em meio a 1500 balões coloridos que compunham o cenário do espetáculo de dança “Sei coisas lindas de ti”. A solicitação dela, obviamente, era retórica. No entanto, a impossibilidade de a plateia efetivamente contar a ela sobre si fez com que o seu pedido permanecesse provocativamente mais vivo e solicitante dentro de cada um dos que ocupavam as poltronas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Ainda mais depois que a dança, essa poesia que dispensa palavras, como afirmou o poeta Mallarmé, começou a desenhar uma bela história diante de todos.

Como eu sou cenógrafo, desde o princípio fiquei intrigado em descobrir onde tantos balões se encaixariam na dramaturgia cênica que Flávia Tápias, Gaetan Jamard e Romual Kabore começavam a apresentar, pois, afinal, todo cenário deve ajudar senão a contar melhor as histórias que ambienta. Entretanto, a resposta não viria do próprio cenário, mas da vida da qual ele deve ser o meio-ambiente poético-ideal. E justamente por que a dança, felizmente, não segue as mesmas regras lógicas das nossas perguntas e respostas linguísticas, era na lógica da linguagem dos corpos e dos movimentos dos bailarinos que dançavam que eu deveria me ater para fazer deles e dos balões uma única e coesa obra.

“Conte-me sobre você” e “por que balões?” eram as duas ideias que me acompanhavam ao longo do espetáculo. Preciso dizer que a minha disposição para com o que eu via era das melhores, pois Tápias é uma bailarina que, a meu ver, transcende a mesmice entediante que não só a arte contemporânea em geral, mas principalmente a dança contemporânea miseravelmente oferecem às suas audiências. Ela é grande, contumaz, e não menos os seus movimentos e propostas cênicas. Impossível não sentir, diante dela, a multidimensionalidade esquecida dessa coisa chamada corpo que a babilônia informacional da contemporaneidade soterra sob o peso asfixiante da mente. Cada vez mais somos cartesianos. Que droga!

Então, diante de uma retórica coreográfica tão generosa, foi realmente um prazer permanecer com as minha dúvidas. Uma delas: o que eu contaria de mim mesmo a alguém que diz saber coisas lindas a meu respeito. A outra: se aquela infinidade de balões afirmava as coisas lindas que é sabido a meu respeito, ou, em troca, apenas solicitava, ainda mais retoricamente, a minha resposta. De vez em quando, um ou outro balão se desgarrava do cenário e pululava, frágil e suavemente, sobre o imenso palco. Era impossível, em certos momentos, não esquecer da coreografia humana diante das coreografias não coreografadas dos objetos. Mas tudo bem, os balões também eram o espetáculo, e, portanto, também guardavam alguma verdade espetacular.

Então, a certa altura, Tápias volta ao microfone e, ofegante, conta-nos algo lindo dela própria, assim como as tantas coisas lindas que cada um de nós tem para contar, mas que só não são contadas porque não são perguntadas: seu falecido avô, meio brasileiro meio francês, costumava cantar La Vie em Rose para ela. Acompanhando o sincero depoimento da bailarina confessa estava Louis Armstrong, “trompeteando” jazzisticamente a música de Edith Piaf.

Então, com imagem dessa singela memória de Tápias em mente, entristeci-me profundamente pelo fato de a morte do seu avó impedir tal memória de ser outra coisa além de uma memória. Como eu queria que o avô dela pudesse seguir eternamente cantando La Vie em Rose para ela! Mais um balão escapa do cenário e dança pelo palco. A minha imaginação, agora triste, imediatamente fez da frágil bolha a presença memorial do avô de que a bailarina, e doravante eu, jamais esqueceremos. Desejei que o balão não estourasse assim como eu estava desejando que a vida do avô dela não tivesse feito o mesmo.

Voilá! O “espetáculo” do espetáculo se descerrou diante de mim. Tápias, Gaetan, Romual, a dança e os balões estavam dizendo, “melhor dizendo”, dançando: “Conte-me sobre você”, pois “Sei coisas lindas de ti”, mas conte-me agora, aqui mesmo, rápido! A qualquer momento um de nós pode estourar, frágeis bolhas que somos, e então será tarde demais. Depois de estourarmos, infelizmente, será tão difícil recolher as nossas memórias quanto juntar o ar que estava dentro de um balão que estourou.

Flávia, no palco, era mais um balão, absolutamente “en rose”, inflada com suas memórias pessoais que, assim como o vento move um balão, moviam coreograficamente o seu corpo. Eu, na plateia do Municipal, era outro balão, inflado com as minhas próprias memórias, mas agora um pouco mais inflado pela memória de Flávia. Ainda bem que eu não estourei antes de vê-la dançar. Ainda bem que ela não estourou antes de dançar para mim. Entretanto, éramos balões resistentes flanando em torno de um balão há muito estourado, o seu avô cantante.

Então, não só inflada, mas também inflamada pelas belas memórias e arte de Flávia, Gaetan e Romual, a minha tristeza em relação à fragilidade da vida – aliás, muito bem cenografada pela fragilidade dos 1500 balões! – pôde ser poetizada, e portanto, suportada. A poesia que aquela dança “contemporaneizou” em mim foi a seguinte: Não só o avô de Flávia, mas todos nós, depois de “estourados”, não somos memórias perdidas, mas ar memorioso livre, liberto da contingência do corpo. O mesmo corpo que, enquanto dança as suas coreografias em torno e junto dos outros corpos, infla-os, compartilha com eles as suas memórias particulares, e, de certa forma, vive eternamente dentro deles, pelo menos até que estourem.

Por isso, “Conte-me sobre você”, pois afora o fato de que eu “Sei coisas lindas de ti”, você e a sua beleza sempre terão espaço dentro da frágil bolha que eu sou. Mas, por tantas razões, eu posso estourar a qualquer momento. Então, conta-me agora. E se não tiver palavras, dance – ou cante La Vie em Rose – mas faça isso antes do meu “boom” derradeiro. Como foi exatamente isso que os três bailarinos fizeram no palco, eles puderam terminar o espetáculo estourando todos os balões do cenário – espetacular apoteose dionisíaca! -, pois mesmo que as memórias simbolicamente guardadas dentro de cada um deles se desvanecessem no ar, um tanto delas permanecerão vivas dentro de cada balão da plateia que eles, belamente, inflaram.

A régua MAD da Lei

A distância que separa reles criminosos de corruptos “pica-grossa”, se medida com a régua que Slavoj Žižek, em seu livro Menos que Nada, irreverentemente recupera da clássica revista MAD, chegaremos à conclusão de que tal distância é zero. Até aí ainda estamos na a-dimensão cega preconizada pela Lei. Porém, os “picudos”, para não usarem o mesmo uniforme que os marginais, dão uma volta inteira na legalidade e, no fim das contas, os caros ternos que resultam dos seus ilícitos conseguem mentir muito bem que eles são conforme a Lei, quiçá ela em pessoa.

Pois bem, de acordo com a régua MAD, Žižek relembra-nos de que, no que diz respeito à Lei, a primeira medida são “os marginais que não se importam com o que ela diz, simplesmente fazem o que querem” ou precisam. Estes criminosos não levam em conta aqueles que seus crimes prejudicam nem se importam com o que a sociedade pense deles. Tampouco se serão taxados de criminosos ou punidos. Por isso seus atos são chamados hediondos.

A segunda medida, segue Žižek, são “os utilitaristas egoístas que seguem a Lei, mas de maneira apenas aproximada, quando convém a seus próprios interesses”. Aqui temos aqueles que só cumprem a Lei quando sabem que estão sendo observados. Afora isso, contudo, estacionam seus carros em vagas para deficientes físicos, compram atestados médicos falsos, não fornecem notas fiscais, etc. O que os diferencia daqueles é que se preocupam com o que os outros pensam dos seus ilícitos, pois são egoístas demais para serem estigmatizados e punidos.

A terceira medida, continua o filósofo, são “os moralistas que seguem estritamente a Lei”. Embora encarnem uma espécie de utopia dentro da realidade que dificilmente oferece um território receptivo a uma absoluta legalidade, os moralistas exercitam sistematicamente o cumprimento irrestrito da Lei, pois os olhos que imaginam lhes observar não são somente os da própria Lei, mas também, e principalmente, os seus, quiçá os de Deus. Eles tentam, o mais que podem, realizar o ideal da Lei. A que preço? Antes disso:

A última medida, que finaliza a régua MAD, são os monarcas e os reis, que, entretanto, na corrupta realidade contemporânea são os grandes políticos, os sumos legisladores, os megaempresários, e por aí vai. Estes últimos, a exemplo dos primeiros marginais, nas palavras de Žižek, “também fazem o que querem, [entretanto] desde que sejam a Lei”. Chegamos aqui na crista da volta que tais marginais dão nos demais, pois, fingindo ou acreditando serem a Lei, infringem-na legalmente na medida em que a medem por si mesmos.

Assim como os marginais mais abjetos, os corruptos “superiores” cometem seus crimes de acordo com suas imperiosas necessidades individuais, e, ademais, pouco se importam com o que se pense deles. Importam-se, todavia, ao modo de não se importar, pois quando, para não serem punidos, valem-se de suas pretensas identificações com a Lei, importam-se senão consigo mesmos. Porém, pelo fato de intencionalmente confundirem seus ilícitos com a Lei, os seus crimes são duplos: além dos ilícitos particulares concretos, há também a imoralidade hedionda em abstraírem a Lei às suas próprias desmedidas.

O criminosos “pica-grossa” dão a volta nos demais se beneficiando da máxima: “ladrão que rouba de ladrão tem cem anos de perdão”. Só que não! Ora, eles não “roubam” somente dos marginais mais baixos, que, entretanto, estão no mesmo nível que eles, e, portanto, não estariam em nível de julgá-los. Também, ao mesmo tempo, e principalmente, são marginais em relação a árdua retidão dos moralistas, que, utopicamente ou não, são os que sustentam o mais alto status que a Lei pode alcançar. Cintila precisamente nos moralistas o espectro da Lei que os “corruptos maiores” tentam dimerizar através das suas pressupostas identidades com ela.

Então, com a medida da régua MAD, e com explicação de Žižek, a precisa distância zero entre os criminosos comuns e os maiores corruptos é alcançada pela seguinte volta: 1) partindo da marginalidade mais baixa, que infringe a Lei custe o que custar; 2) passando por aqueles que infringem a Lei desde que não lhes custe nada; 3) cruzando aqueles que se rendem completamente à lei para não terem custo algum; e, finalmente, 4) chegando àqueles que fazem a Lei se render em função deles mesmos, novamente, custe o que custar – só que, nesse caso, quem paga o preço é a própria Lei, não eles! Nesse “topo”, tão baixo quanto a sua respectiva base, o criminoso superior coincide com seu oposto inferior.

Não obstante, nessas quatro formas de se relacionar com a Lei a lisura é objetivo pétreo apenas de uma delas. Temos aqui mais um caso onde é justamente a exceção que, por meio da Lei, tenta ser a regra, mas… como a nossa realidade bem mostra, a regra, em respeito à Lei, segue mesmo sendo as tantas exceções. E se são as exceções a maioria das regras no reino da Lei, aqueles que melhor conseguem se relacionar com ela de modo excepcional, isto é, fazendo as próprias exceções valerem como se fossem Leis, estes são Reis.

Já os moralistas, coitados, os únicos que fazem da Lei a regra, estes acabam sendo, por um lado, os súditos espoliados dos grandes criminosos, e, por outro, os senhores assaltados dos pequenos. Entretanto, mesmo esmagados pela distância zero entre os muitos marginais da régua que Žižek recuperou da MAD, é precisamente nessa claustrofóbica alcova resistentemente legal que os moralistas ainda mantém viva essa utopia que chamamos de Lei. Além do que, é a partir destes que os demais devem, e de fato são medidos. Em suma, é por conta dos moralistas que, no nível mais baixo, os marginais são lembrados da existência da Lei, e, no topo, os Reis não podem ser a Lei o tempo todo.

A pirrônica Filosofia do Agora

A busca da Filosofia pelos universais é tão antiga quanto ela própria, afinal, para ser uma ciência, melhor dizendo, “A ciência primeira”, como queria Aristóteles, ela deve tratar daquilo que, do Ser, valha universal e eternamente. Do contrário, as verdades filosóficas valeriam apenas em determinados casos e para determinados indivíduos, ou seja, em nada difeririam das múltiplas, contingentes, e portanto descartáveis opiniões humanas. Desse ponto de vista, uma filosofia que pressuponha apenas o agora como limite aos seus objetos, limita-os à validade desse mesmo agora. Por isso, tradicionalmente, o pensar filosófico prioriza o que é sempre.

Todavia, qualquer filosofia só pode ser feita a partir de um agora determinado ou outro, pois o filósofo, assim como o ser humano em geral, está sempre contingenciado por um agora específico. Logo, a despeito dos superestimados e abstratos universais eternos subsistem, de modo concreto, apenas os particulares e todavia efêmeros “agora”. De maneira que é sempre em um agora determinado que a Filosofia tanto pergunta pelo Ser como encontra predicados para ele. Portanto, se a filosofia pretende ter validade universal, deve considerar apenas o universo do Ser que há agora. Todo resto outra coisa não é senão ficção, melhor dizendo, mito.

Entretanto, o que é exatamente o agora absolutamente válido? Ora, o agora pode ser qualquer coisa, ou o que é o mesmo, nenhuma delas necessariamente. Todavia, a única coisa que não se pode negar do agora é que ele “é”, necessária e universalmente! Chegamos, portanto, à encruzilhada paradoxal na qual a efemeridade do agora encontra o seu corpo eterno e necessário: o agora é não só o momento exclusivo do Ser como também aquilo que lhe atribui essência, pois o Ser só é dentro de um agora qualquer. Fora deles, não é, apenas foi ou será.

Agora, se só o Ser “é”, mas não “enquanto” é os seus muitos predicados, ele só “é” o que é agora, pois “só o agora é”. Embora os filósofos se utilizem dos predicados para iniciarem suas relações com o Ser, o respeito a ele, todavia, pede para que tais predicações desapareçam o mais rápido possível. Do contrário, o Ser passa de um agora a outro “na forma” de seus predicados que, entretanto, são contingencias dos limites do agora a partir do qual foi predicado. O Ser, por conseguinte, para “ser”, deve ser livre das vestes predicativas, sempre obsolescentes, cosidas pelos incessantes e diversos “agora”.

Talvez seja o caso de a nada científica Filosofia do Agora não ser nada além do velho ceticismo de Pirro de Élis, cujo radicalismo o impedia inclusive de pronunciar qualquer juízo acerca das coisas, o que o levou ao silêncio absoluto. A filosofia pirrônica via pertinência na silenciosa percepção da existência presente e no exercício sistemático de não predicá-la. Tal ceticismo emudece pois, por um lado, acredita não ter como saber o que o Ser é em si mesmo – pelo menos com a validade e a universalidade que uma ciência pede -, e, por outro lado, uma vez que não se sabe o predicado eterno do Ser, qualquer predicação que se dê a ele desvaneceria já no instante seguinte.

Seria justamente Pirro o primeiro e excelente Filósofo do Agora, ou seja, o primeiro a recusar o antes e o depois como terreno possível aos predicados que o Ser angaria para si no gora em que se apresenta? Se sim, é por que foi ele quem se calou primeiramente sobre o que o Ser é afora o exato agora. Para esse filósofo, para além de um agora “X” decerto se aventuram as predicações com as quais este agora vestiu o Ser. Todavia, o que vale para um agora é impertinente aos demais, pois cada agora é um guarda-roupas exclusivo cujas vestes são apropriadas apenas para o seu próprio e efêmero baile de máscaras predicativas.

Portanto, no intuito de não travestir o Ser com predicados obsolescentes, mais vale a nudez silenciosa na qual a filosofia pirrônica o mantém, e isso em todos os “agora”. Do contrário, predicando-se “agora” o Ser para que ele seja tal predicado nos “agora” subsequentes, quiçá eternamente, faz-se do Ser os seus predicados. Aí há só falatório, ou pior, fofocas. Uma Filosofia, portanto, para ser universalmente científica, deve ser silenciosa acerca do que, a respeito do Ser, há para além das fronteiras do exato agora no qual ele é. Dentro destes limites, entretanto, o silêncio pode ser tão estridente quanto se desejar.

Dispensando Cunha “salvador”

A todos aqueles que gritaram e gritam que Eduardo Cunha, apesar dos seus ilícitos cada vez mais tácitos, é o “Salvador do povo”, começo dizendo a célebre frase de Bertolt Brecht: “O que é o assalto de um banco comparado à fundação de um novo banco?”, para, contudo, terminar perguntando a eles o que é ser assaltado por um corrupto senão a refundação de uma velha corrupção? Concidadãos, o que aconteceu com o sábio e econômico dito popular “dos males o menor”?

Quem, apesar de tudo, ainda prefere Cunha, escolhe, de fato, dos males o maior. Obviamente, o mal maior que preferem é algum bem menor para si mesmos; algum privilégio que, entretanto, pelo fato de ter Cunha como figura salvadora, é de imediato incompatível com a lisura e, portanto, com a democracia. Entretanto, “o sujeito que quer reduzir o Estado a um guardião de sua segurança privada e de seu bem-estar, tem de ser esmagado pelo Terror do Estado revolucionário, que pode aniquilá-lo a qualquer momento”, coloca Zizek, em Menos que Nada, discorrendo sobre o que é o Terror de Estado para Hegel.

Sim, chamam Cunha de “salvador” porque estão aterrorizados diante de um Estado que revolucionariamente ensaia – há pelo menos doze anos – ser bastião do bem-estar e da segurança da maioria, e não apenas dos da minoria historicamente favorecida pelo Estado reacionário que ensaia a sua própria morte. Os pretensos “protégé” de Cunha são, portanto, absolutamente negativos à evolução social brasileira. Com um salvador como este, o que estes “fiéis” querem é ser reconduzidos ao velho&obscuro Brasil que até bem pouco tempo só iluminava oligarquicamente.

No entanto, em respeito ao terror que leva alguém a desejar ser salvo por Eduardo Cunha, Zizek diria o mesmo que Hegel disse ao seu cidadão aterrorizado, isto é, que “o sujeito deveria reconhecer no terror externo, nessa negatividade que ameaça constantemente aniquilá-lo, o próprio cerne de sua subjetividade, deveria identificar-se diretamente com ele”, pois, só assim, dizem os dois filósofos, “o Senhor externo é substituído pelo interno”. Veria, portanto, primeiro, que o mal que teme está dentro de si, e, em segundo lugar, que não é o salvador diante do qual se ajoelha quem o salvará, mas somente a virtuosidade da sua relação individual com aquilo que o aterroriza, sem intermediários.

Por isso, quando Zizek diz que “o sujeito tem de se identificar plenamente com a força que ameaça exterminá-lo”, devemos ouvir que, em relação à grave graça de Cunha, é melhor que os brasileiros aterrorizados se identifiquem e se reconciliem com o problema que os aterroriza, e não com a velha&oligárquica máscara com a qual Cunha finge ser um salvador. Não, o evangélico Cunha de forma alguma possui ou sequer conhece a solução para a nossa realidade, assim como, para Zizek, nem a própria Igreja possui algum conhecimento superior; “ela é como uma carteiro que entrega a correspondência sem ter ideia do que ela diz”.

Por conseguinte, enquanto alguns crerem que alguém como Cunha os salvará do problema que os aterroriza, estão somente revivificando, em torno de si mesmos, tais problema e terror. Se fossem galinhas, seria como se escolhessem a raposa como salvadora. Por isso Zizek tem razão em dizer que o horror do homem é que, nele, o Mal torna-se radical, deixa de ser o simples mal egoísta, como o dos animais, e passa a ser o Mal mascarado, como acontece no totalitarismo, em que um agente político particular apresenta-se como salvador da humanidade. O problema, contudo, é que a máscara total não deixa ver quem a usa. Só assim as galinhas creem que uma raposa mascarada pode protege-las das raposas em geral. E, portanto, só assim, alguém pode querer um Cunha mascarado como salvador.

É por que o terror aponta senão para algo real que ele nos horroriza. Então, se é da verdade nua e crua que os que adoram Cunha têm medo, quanto mais mentirosa for a máscara dele, mais ela os alienará do aterrorizante real, todavia mentindo uma reconciliação com tal realidade. Entretanto, relembra Zizek, “para Hegel, para passarmos da alienação à reconciliação, não devemos mudar a realidade, mas o modo como a percebemos e [principalmente] nos relacionamos com ela”, pois, segue o filósofo, “a única coisa que muda na reconciliação é o ponto de vista do sujeito”.

Ok, nem tudo está perdido para os fiéis de Cunha, pois há salvação em relação à danosa “salvação” que ele oferece. A verdadeira salvação está em que, conforme Hegel, somente o gesto errado cria as condições que possibilitam que o sujeito realmente veja por que o gesto é errado. Portanto, apesar de a fidelidade a Cunha ser realmente errada – pois ser fiel à raposa é o erro máximo da galinha – tais crentes, no entanto, só podem partir dela para então chegarem a ver que estão errados. Como dizem vários filósofos, “todas as coisas, retroativamente, terão sido necessárias”, inclusive o absurdo de ver em Cunha espécie de salvação.

Ora, galinhas de Cunha, o salvador de vocês não é solução para os seus problemas, quiçá para os dele próprio, que, aliás, estão cada vez maiores. O problema de vocês é o mesmo que o de todo cidadão, e não só os brasileiros. Para Hegel, conta-nos Zizek, o Estado em geral é que é o problema. As soluções que se busca para tal problema algumas delas até se parecem com o que Cunha representa, mas transcendem a miséria que ele oferta. Com efeito, o Estado tenta resolver o problema insolúvel que ele mesmo é em forma ora de tirania, ora de oligarquia, ora de aristocracia, ora de democracia. No entanto, cada uma destas tentativas de solução apenas mantém o problema sempre vivo.

Um passo adiante, uma elevação em relação a esse problema sempiterno que é o Estado, portanto, dizem Hegel e Zizek, “ocorre exatamente quando, em vez de continuar procurando uma solução, nós problematizamos o problema em si”. Sendo assim, não só os fiéis de Cunha, mas todos nós, em vez de nos apegarmos à soluções fáceis, que geralmente são máscaras paliativas, deveríamos encarnar, encenar, protagonizar ao máximo o problema do Estado que somos, sem elencarmos, estratégica ou covardemente, atores-representantes que atuem transitivamente os fantasmas que qualquer Estado emana. Só desse modo o nosso galinheiro “brasilis” estará não só livre de Cunhas, mas, principalmente, apto a dispensar tais raposas.

Radicalismos: 2013 e 2015

Tanto as manifestações de 2013 quanto as de 2015 contaram com seus próprios vândalos de plantão. As primeiras tinham os Black Bloc que, pilhando latas de lixo, paradas de ônibus e bancos Itaú, espantaram a opinião pública e forneceram à mídia reacionária o material com o qual ela desqualificou o macro movimento. Já as de 2015 também contam com seus vândalos imediatamente objetáveis, apelidados de “coxinhas”, apólogos da ditadura militar, da monarquia, e cujo vandalismo destrói não o banco Itaú, muito pelo contrário, mas própria democracia. Assim como os arruaceiros mascarados de há dois anos, os atuais desordeiros verde&amarelo expressaram a mais reprovável face do que poderia ser manifestado em prol de um Brasil melhor.

2013 e 2015, embora antagônicos, têm em comum o monocórdico grito contra a corrupção política e o polifônico clamor por um Estado eficiente. Todavia, a pertinência destas demandas foi largamente ofuscada: em 2013, pela garatuja de guerra civil que os Black Bloc e a polícia ofereceram à opinião pública, e em 2015, pelo vômito elitista que pretere a democracia à ditadura militar – não obstante, com o agravante de se servir da própria democracia para tal. Ora, não há grito popular por vinte centavos, saúde e educação padrão FIFA, reforma política ou terceiro turno, pleitos em si civilizados, que resista ao intenso ruído da barbárie, seja a “molotóvica” Black Bloc, seja a “panelosa” coxinha.

Agora, se o revolucionário 2013 e o reacionário 2015 têm seus vândalos inerentes, é por que cada cidadão brasileiro tem dentro de si essa mesma dicotomia, entretanto, em menor grau. Porventura o manifestante pacífico, seja de que ano for, não reflete e sustenta as contradições dos radicais ao lado dos quais se manifestou? Em outras palavras, não seria o radicalismo, impertinentemente representado pelos Black Bloc e pelos coxinhas, a sintomática erupção, na arena social, da barbárie resistente que subjaz em cada cidadão, todavia civilizadamente reprimida? Cabe a cada brasileiro fazer esse “Mea culpa” individual e encontrar o radical fundamentalista solapador de ideais harmônicos escondido dentro de si mesmo, pelo menos antes de exigir que a figura da presidenta faça isso no lugar de todos.

Só então o cidadão, a partir da ínfima parcela que ele representa na opinião pública, deixará de propagandear o radicalismo como um erro condenável, para então entendê-lo como o inexorável outro lado da única moeda com que se negocia a mudança, seja ela para trás, seja para frente. Ter participado do Junho de 2013 e condenar os Black Bloc, ou ter desfilado no março de 2015 sem aceitar os coxinhas, é fingir que se está acima deles. Ademais, é não se unir verdadeiramente à massa a qual se diz pertencer. É, sobretudo, enfraquecê-la, não como os seus respectivos vândalos o fazem, mas de outro modo, silenciosa e covardemente.

Entretanto, levando essa lógica ao limite, o cidadão brasileiro, para fazer parte efetiva do “corpus brasilis”, não deve se iludir de que não produz cotidianamente tanto a pacificidade da maioria, quanto a radicalidade das minorias, cuja virtude, contudo, é gritar barbaramente, em alto e bom tom, aquilo que a civilização têm vergonha de expressar publicamente. Dessa forma, ser brasileiro seria querer, ao mesmo tempo vinte centavos, um Brasil padrão FIFA, a ruína do banco Itaú, o impeachment, a ditadura militar, a monarquia, e todo as demandas que não cabem num único discurso sem que ele soe absurdamente radical.

Seria ideal se a cidadania fosse algo simples e coerente. Porém, a realidade nada mais faz do que frustrar esse sedutor desejo, afrontando-nos com a sua complexidade imanente, cuja pertença, no entanto, exige que não nos coloquemos acima dela, como estrangeiros, burgueses ou “cidadãos de bem” que a julgam como se se tratasse de uma republiqueta indesejada nalgum (outro) terceiro mundo distante. 2013 fez do caos uma nova ordem, todavia temporária. 2015, por sua vez, fez da ordem o pretexto para apologizar o caos. Por fim, o vetor entre as forças revolucionárias e reacionárias destes dois anos aponta senão para o exato agora, mas também para todos nós brasileiros, que guardamos internamente não só a pacificidade que pouco pode contra um grande inimigo, mas também o radicalismo que melhor encarna e atua o desejo de mudança.

O acerto de um erro petista

Realmente, o Partido dos Trabalhadores cometeu um grande erro na esteira da crise internacional de 2008: preservar os trabalhadores brasileiros. Decerto que é um erro gravíssimo para o capital, pois, embora o capitalismo precise de um exército de mão de obra que produza a sua riqueza, carece mais ainda de hordas de trabalhadores desempregados, desvalorizados, disponíveis e, sobretudo, compráveis por qualquer migalha. É com este último time que o capitalismo limita, mas também rouba, o valor do primeiro, pois havendo muita mão-de-obra ociosa no mercado o valor do trabalhado não faz frente ao valor do capital.

Se o governo brasileiro dos últimos sete anos fosse radicalmente liberal, na iminência da crise ele teria não só permitido, mas também articulado o aumento estratégico do desemprego, pois assim o valor dos salários cairia forçosamente – de acordo com a lei da oferta e da procura. Assim os empresários novamente fariam dos trabalhadores a sua vil moeda de negociação com a crise para manterem seus lucros, transferindo os custos senão aos próprios trabalhadores, que teriam ou de se vender por menos, ou produzir mais pelo mesmo salário – apenas para não serem exilados ao estado do desemprego. Isso porque o capitalismo mente muito bem que riqueza significa a grande riqueza de poucos, e não a ausência de miséria da maioria.

Entretanto, depois de 2008 o governo brasileiro fez diferente. Colocou o Estado inteiro na manutenção dos altos níveis de emprego. Isso, por conseguinte, manteve o valor do salário diante o valor do capital, o que afrontou, mas também desvalorizou este último. Sem uma massa desempregada de manobra, o capitalismo tupiniquim, não podendo trocar o valor do trabalho por bônus crísicos, teve de ir beber nos seus próprios lucros, coisa que, historicamente, está desacostumado.

Com efeito, as duas últimas vezes em que, no mundo, o capital foi sistematicamente comprometido no reerguimento e na manutenção social – e, para Thomas Piketty, as duas únicas! – foi durante as grandes guerras e na sequência delas. Do contrário, as sociedades envolvidas nos embates solapariam. Todavia, no mais das vezes, como na crise de 2008, em muitos países o trabalhador é que foi comprometido no salvamento do capital. A dívida que os Estados Unidos, mas não só eles, legou aos seus cidadãos para que os bancos – veja bem, os bancos! – não quebrassem, é o procedimento cotidiano do globalizado sistema econômico.

O “erro” petista em não seguir a vil&pragmática cartilha capitalista, contudo, tem o grande acerto de fazer com que não só os trabalhadores fossem afetados e comprometidos pela crise, mas também os empresários, ou o que é o mesmo, o próprio capital. Se tivesse sido diferente, o vilipêndio dos trabalhadores, tão naturalizado e facilmente “abstraível”, sequer teria sido manchete enquanto os lucros dos capitalistas permanecessem altos. Agora, no momento em que o capital também paga a conta da crise, as manchetes e as ruas com altos IPTUs gritam histericamente o fim dos tempos – ou o impedimento do governo que não os deixou de fora da tempestade.

As manifestações “coxistas” de 2015 expressam sobretudo o descontentamento dos representantes do capital diante da insistência do governo em não desvalorizar os trabalhadores sem antes dispor da riqueza nacional, objeto do desejo dos capitalistas. Como assim gastar com os não-ricos aquilo de que os ricos precisam para serem o que são? Os mais insatisfeitos com o governo petista repetem, sem saber, uma ideia de Aristóteles que, entretanto, faz com que uma democracia seja, de fato, uma oligarquia: “seria ainda mais sábio não obrigá-los [os ricos] a grandes despesas e até mesmo proibir-lhes serem úteis para o povo”

Entretanto, a estratégia de não lançar primeiro os trabalhadores aos leões da crise, para com isso evitar que o capital fosse devorado, mas, em troca, iniciar saciando a voracidade da crise econômica com a própria carne capitalista sempre excedente, para só depois alistar o trabalhador no exército contra a crise, não pode ser visto como erro, principalmente por parte dos próprios trabalhadores. Talvez seja a primeira vez na história brasileira que a classe trabalhadora tenha sido economicamente priorizada em detrimento do capital. Quanto mais não seja porque é obra do Partido dos Trabalhadores.

É natural que a ameaçada oligarquia capitalista bata panela, manifeste incredulidade e insatisfação, afinal, um governo ousou não lhe preferir. Além do que, e a contragosto deles próprios, o país permanece democrático e permeável à manifestações, mas não só às suas. Se desde o início da crise – nascida internacional em 2008, mas só agora naturalizada brasileira – as coisas tivessem ocorrido de acordo com os preceitos capitalistas, como nos EUA, onde os trabalhadores ficaram sem casa e sem emprego para que os banqueiros mantivessem seus bônus estratosféricos, a nossa elite estaria tão preservada quanto satisfeita&silenciosa.

Porém, enquanto a crise mundial desempregava e despejava trabalhadores de vários países, os brasileiros, ao contrário, tiveram seus empregos e salários preservados. Isso, com efeito, afronta qualquer elite! Agora, contudo, como assumiu a nossa presidenta, a coisa mudou. Chegou a hora de todos lutarmos juntos para sairmos da crise, não só os capitalistas, mas também os trabalhadores. Obviamente, não se trata de uma boa notícia, mas nela subjaz uma virtude que não deve passar em branco: a crise está mais democratizada do que nunca, e não são mais os trabalhadores que pagam sozinhos a conta. Se o governo do Brasil errou em não agir de acordo com o “jeitinho capitalista”, essa falha não tem preço! Porém, como há um custo social sempre expresso em cifrões, é melhor que, em uma democracia, ele seja dividido democraticamente.

Dilma punida, mas não vigiada.

Se olhássemos a situação política na qual se encontra Dilma Rousseff através das lentes que Foucault nos oferece em Vigiar e Punir, obra que conta a história da manutenção do poder soberano através da observância e do castigo àqueles que o desafiam e reivindicam para si, veríamos que, pelo menos no Brasil, a vigilância e a punição do soberano sobre os súditos de que fala o filósofo trocou de lugar com a vigilância e a punição dos cidadãos brasileiros contra a sua presidenta.

Com efeito, hoje é a representante soberana que é punida por seus súditos, justamente os que, em tempos idos, seriam punidos por ela caso desafiassem a legitimidade do seu poder. Porém, pelo fato de Dilma estar sendo punida sem, no entanto, ter sido devidamente vigiada, isto é, investigada e comprovado algum crime contra ela, o que temos é uma tirania invertida na qual o povo, considerando-a tirana, é que a tiraniza ostensivamente.

Ao contrário de um soberano medieval, que punia em praça pública os súditos que o desrespeitavam, pois a punição espetacular de alguns era a melhor vigilância sobre os demais, hoje, são os cidadãos que, outrossim em praça pública, punem espetacularmente a representante soberana, como se a punição absoluta que tentam contra ela, qual seja, o impeachment, fosse a prática mais adequada para se ser política e cotidianamente vigilante.

Para um bárbaro que vive de extremos, vá lá tamanho radicalismo. Todavia, para nós, pós-modernos civilizados e democráticos, começar agindo politicamente já no limite da suspensão da civilidade e da própria democracia significa apenas que muito deixou de ser feito antes desse ato radical. De fato, quem começou a clamar por um país melhor pedindo a renúncia da presidenta dá provas de que nada além de um radicalismo ultrapassado tem para contribuir com o Brasil.

Além do que, o efeito colateral radical dessa forte punição do povo contra a sua presidenta é a fraca vigilância e a não punição desse mesmo povo em relação a súditos como eles, metidos a soberanos, tais como “Eduardos”, “Aécios” e “Fernandos”. Ora, se, aqui, o equilíbrio entre vigilância e punição é alterado poer alguns, ali esse desequilíbrio se expressa e se reflete contra estes mesmos.

De modo que é somente quando um povo e o seu soberano acordam sobre o que é vigiar, o que é punir, e qual a relação entre estes dois, que todos estaremos livres de sermos punidos sem termos sido devida e democraticamente vigiados uns pelos outros. Um povo que não vigia, prévia e adequadamente, aqueles a quem pune acaba por ser punido justamente pela sua incapacidade de vigilância. O preço, por conseguinte, é toda sorte de “Cunhas” e “Collors” deixarem de ser devidamente vigiados e, a partir de tal inobservância, galgarem para si uma soberania que não lhes cabe.

Com efeito, punir a presidenta antes de vigiá-la propriamente é agir como um príncipe medieval que, alheio às práticas cotidianas dos seus súditos, conhece-os apenas no curto trajeto entre o crime e o cadafalso mortal. Aí, nada mais há para ser feito. Não há, portanto, possibilidade de evolução. Agora, se quisermos agir em quanto partícipes de um Estado Moderno, temos de nos valer da miríade de instâncias que ele introduz entre os atos capitais de vigiar e punir.

Se o súdito medieval era imediatamente punido com a morte espetacular pelo príncipe que, entretanto, não o vigiava previamente, o cidadão moderno, em troca, conta-nos Foucault, é absolutamente vigiado desde que nasce: na maternidade, na escola, no condomínio, na fábrica, no manicômio, no tribunal, e, em caso de ser considerado realmente criminoso, na prisão. A imediata punição medieval se transformou, desde a modernidade, em uma extensiva e democrática vigilância de uns sobre os outros.

Portanto, punir alguém em praça pública sem sequer tê-lo vigiado minimamente, seja ele súdito, príncipe, cidadão ou presidente, reacende uma barbárie que não deve mais ter espaço no atual estágio histórico. Sendo assim, aqueles que não conseguem vigiar antes de punir devem fazer – ou refazer – a “Via Crúcis” da modernidade e aprender o que é vigiar e ser vigiado – na maternidade, na escola, na fábrica, no manicômio, no tribunal – e, em caso de seguir punindo indevidamente, aprender o que é punição, todavia na prisão.

A velha democracia dos coxinhas contemporâneos

Por mais difícil que seja enxergar, os coxinhas querem uma democracia. Obviamente, não essa que temos hoje, cuja universalidade os afronta e pretere, mas uma bem mais antiga do que qualquer um desses acéfalos paneleiros pode imaginar. Com efeito, mesmo sem saber, o “coxismo” contemporâneo remonta à primeira democracia que o mundo conheceu, aquela inventada em Atenas, 500 a.C., na qual somente cidadãos homens&ricos decidiam o presente e o futuro da cidade-estado. Portanto, de imediato podemos concluir que estes reacionários contemporâneos são muito mais retrógrados do que se poderia supor.

Já Aristóteles, na sua Política, dizia que numa democracia “deve-se ser prudente com os bens dos ricos e não submeter nem suas propriedades nem suas rendas à partilha”. “Seria ainda mais sábio não obrigá-los a grandes despesas e até mesmo proibir-lhes serem úteis para o povo”, completa o filósofo. Podemos muito bem imaginar o que um aristocrata grego diria de um Bolsa família ou de um Minha Casa Minha Vida! Do repúdio à distribuição de renda tornada real na última década brasileira pelo governo petista, portanto, pode ser dito que é democrático apenas enquanto reencarnação da democracia mais primitiva de que se tem notícia: a aristocrata grega.

Dos 400 mil habitantes daquela Atenas de há 2500 anos, somente 30 mil tinham direitos políticos. Mulheres, escravos, e não proprietários de terras estavam desde sempre excluídos. Agora, porventura não é algo nestes mesmos moldes o que a democracia coxinha tenta reavivar ao solicitar a anulação do sufrágio universal por intervenção militar? Entretanto, e infelizmente, em vez da poderosa e estilosa retórica grega que polida e politicamente conquistava votos na assembleia, os “aristocoxinhas” de hoje têm o melhor de seus discursos no máximo de ruído que conseguem extrair de suas panelas, as únicas de que ainda podem ser ditas serem “polidas”.

Se “democracia”, em grego, significava o “governo do povo”, mas de fato ela era propriedade de menos de 8% da população de Atenas, era porque as ideias de povo e de população não coincidiam. Tampouco deveriam coincidir, pois só assim a riqueza do povo ateniense não seria confundida nem ameaçada pelos pobres atenienses. Por isso, desde lá, já era contraditório sustentar uma democracia enquanto apenas os melhores, os “aristoi”, ou poucos, os “oligoi”, governavam. De tal contradição, entretanto, os “oligocoxinhas” poderiam estar livres se atinassem para o que disse Aristóteles: que “a oligarquia é para a utilidade dos ricos; a democracia, para a utilidade dos pobres”.

Ora, se democracia é mesmo o governo dos pobres, como apontou o filósofo, nunca houve democracia na Grécia antiga, quiçá depois dela. E se hoje a aristocracia brasileira, preterida em função da remediação da pobreza histórica do nosso país, quer a berlinda de volta para si, busca a mesma coisa que os gregos chamavam de democracia, embora se trate, lá e aqui, de uma oligarquia, ou seja, do governo de poucos, ou o que é o mesmo, dos mais ricos. Por isso os nossos coxinhas contemporâneos acreditam realmente defender a democracia quando pedem a deposição de um governante democraticamente eleito pela maioria e a subjugação da vontade destes à tirania de uma ditadura militar que outra coisa não torna lei senão a vontade da minoria

A democracia grega, da qual a brasileira é filha tardia e transgênica, guarda um significado virtuoso, mas apenas no seu significado etimológico, pois, na prática, sempre carregou consigo os vícios aristocratas e oligarcas. Por conseguinte, ao se defender a democracia, como acontece no Brasil hoje em dia, fala-se, com efeito, de duas coisas bastante distintas: de um lado, a maioria, ou o “demos”, fazendo alusão a uma antiga utopia, que já era utópica na antiga Grécia, e, do outro lado, a minoria, os “aristoi” ou os “oligoi”, reclamando por uma realidade concreta, sempre renovada e renovável, que privilegia senão a eles mesmos.

Tal dominação histórica das minorias se dá, entre tantos e sórdidos motivos, também porque as oligarquias e as aristocracias conseguem muito bem mentir ao demos, isto é, ao povo, que são democracias. Os nossos atuais coxinhas, portanto, são ou democratas ancestrais ou oligarcas-aristocratas contemporâneos. Pior ainda, são estes insistindo em serem chamados daqueles.

O complexo de Édipo do coxinha

É bem difícil encontrar um território não paradoxal aos desejos manifestados pelos brasileiros que, democraticamente, pedem a volta da monarquia e da ditadura militar. Com efeito, agem como crianças mimadas que desejam mais do que é razoável, ou seja, coisas que se autodestroem: por um lado, precisam da democracia para poderem desejar livremente outras formas de governo, e, por outro, desejam justamente formas de governo que automaticamente suspenderiam a democracia que lhes deu o direito de desejá-las livremente.

Se tal infantilidade política se deitasse num divã, para então conhecer as causas da insustentabilidade dos seus desejos, o infeliz psicanalista provavelmente começaria complexificando-a edipianamente. Claro, não sem o protesto de Gilles Deleuze, para quem a fácil forma “papai, mamãe e eu” é mais um vício $i$temático do que uma virtude libertária. Entretanto, a “esquizoanálise” proposta pelo filósofo em substituição à psicanálise seria demasiado agorafóbica ao coxinha; ele sequer voltaria para a segunda sessão. Então, se, como é fácil observar nas avenidas brasileiras, o coxinha é aquele que prefere a claustrofobia do $i$tema, façamos como o psicanalista e o prensemos entre seu papai ideal e sua mamãe problemática.

Os paradoxais coxinhas, obviamente, fariam o papel do bebê pleno de desejos ainda impossíveis de serem expressos de modo pertinente ou sequer atinentes às possibilidades do real. Abaixo deles, a mãe-material, Dilma Rousseff, que de forma alguma poderia deixar de saciar, imediata e imanentemente, os seus muitos e conflituosos desejos. Finalmente, acima dele, o pai-ideal, monarca ou ditador, que, por conta da sua natural transcendência em relação a unidade primeira “mamãe e eu”, poderia, com seu falo despótico, ou impor à mamãe a realização dos desejos não atendidos do bebê, ou puni-la caso não o faça. Isso porque o falo do pai faz o papel de um ídolo salvador.

Como bem observou Deleuze, é nessa fase fálica edipiana que uma nítida diferenciação dos dois pais começa. Subterraneamente, a mãe é aquela incapaz de fazer o bebê absolutamente feliz, e, nas alturas, o pai é aquele que pode introduzir o seu falo na jogada e tornar Lei vertical a realização dos desejos do neonato. O complexo de édipo é o mesmo que o complexo dos coxinhas enquanto a incapacidade de Dilma-mãe, que frustra materialmente os seus elevados ideais, tiver de ser corrigida senão pela pretensa capacidade de um ditador-monarca-pai, que idealmente promete lhe a realização material das suas necessidades.

Com efeito, para o bebê-coxinha, o falo ideal do pai-monarca é o instrumento perfeito destinado a reparar a incapacidade da mãe-Dilma de suprir materialmente a sua voraz sede por uma cidadania conjunturalmente irrealizável. Não sabe, contudo, que a realidade para além da crísica bolha <Dilma-mamãe e eu-coxinha> será tão plena de privações quanto essa mãe mesma já expressa através da sua impossibilidade de saciar plenamente os desejos do seu rebento-cidadão. Ignora, outrossim, que em relação à realidade concreta que o circunda, e que o circundará até o fim de sua vida, esse falo idealizado em forma de um pai-tirano tampouco abstrairá as vicissitudes da vida, muito pelo contrário.

Entretanto, enquanto o falo salvador do papai-monarca for a única punição à mamãe-Dilma, e isso tudo em função dos desejos frustrados dos bebês-coxinha dela, estes estão tão presos a um complexo político quanto Édipo está ao seu. Isso porque, parafraseando Deleuze, todo Édipo-coxinha conjura a potência infernal das profundidades impossíveis de sua mamãe-Dilma à potência celeste das alturas prometida pelo falo despótico de um papai-ditador idealizado. Esse coxinha, assim como Édipo, reivindica para si um terceiro império, a superfície ideal entre mamãe e papai. O preço dessa superficialidade, contudo, é a mesma cegueira auto imposta da qual o personagem mitológico não se viu livre.

Se, conforme Deleuze, no complexo de Édipo “jamais a criança teve melhores intenções na sua confiança narcísica”, mediante a atual complexidade política brasileira, jamais o bebê-coxinha teve melhores intenções na sua confiança egoística. Com efeito, o seu ego só será “super” se o corpo incapaz da mamãe-Dilma for corrigido pelo falo poderoso do papai-rei-general. Todavia, de um só golpe, o coxinha se aliena de sua realidade material imediata e se refugia na idealidade de um salvador transcendente, que, entretanto, imanentemente, é igualmente incapaz de satisfazê-lo absolutamente.

Essa fé cega em um pai-ditador ideal, por conseguinte, é apenas a antessala na qual qualquer pai-ditador real inevitavelmente comprovará que é tão ou mais ineficaz do que a mãe-Dilma contra a qual o Édipo-coxinha se vinga. Desse modo, o coxinha, a exemplo do que Deleuze disse de Édipo, é um “Eventum tantum”, cuja superficial complexidade se resume em castrar a mãe, matar o pai, ser castrado e morrer. Ou pelo menos permanecer cego em relação à realidade que ele mesmo não suporta, como Édipo depois de furar os seus olhos com uma flecha, que, aliás, bem pode simbolizar o falo ideal que não o salvou, mas, muito antes disso, já havia lhe cegado.

Coleira de pérolas coléricas

Pior do que as atuais crises política e econômica brasileiras juntas é a crise humana que marcha em “mani-infestações” como a deste domingo, repleta de gentes e discursos desumanos e antidemocráticos. Alguns minutos assistindo aos absurdos que desfilavam orgulhosamente pela orla de Copacabana foram suficientes para juntar pérolas não menos absurdas para montar não um colar, mas uma coleira de pérolas de ignorância que outra coisa não faz senão agrilhoar as ostras políticas que as produzem às suas próprias ignorâncias.

Pedir por um país mais democrático destruindo a democracia; lutar por um país menos corrupto desmerecendo um governo que combateu a corrupção mais do que qualquer outro; clamar livremente por uma intervenção militar que, como a história recente do Brasil pode mostrar, suprimiria justamente tal liberdade; foram apenas algumas das bijuterias contraditórias com as quais os mani-infestantes verde&amarelos adornaram as suas livres, todavia absurdas, expressões.

Tais pérolas malogradas, no entanto, parecem mais as simbólicas bolas de ferro com as quais os condenados eram impedidos de escapar da servidão forçada. Só não desejo que as bestas políticas sejam aprisionadas às joias impróprias pelas quais clamam colérica e contraditoriamente porque, como se diz, têm coisas que não se deseja nem para o seu pior inimigo. Além do que, se, ali, eles perdessem as suas liberdades e direitos democráticos, como a “intervenção militar já” pela qual pedem fatalmente traria, aqui, infelizmente, todos os demais cidadãos estariam sujeitos à mesma privação.

As crises fazem parte das vidas política e econômica de qualquer país. Entretanto, embora repitam o vício de não poupar aqueles que já vêm afetados política e economicamente desde antes das crises, elas têm ao menos a virtude de colocar os que acham que a realidade é insuportável apenas sazonalmente no mesmo país daqueles. A diferença é que para uns as dificuldades conjunturais são estrangeiras intoleráveis que dificilmente adentram nos seus condomínios murados, enquanto que para outros, ou melhor, para a maioria, as dificuldades são vizinhas conhecidas e próximas que a qualquer momento podem bater palmas no portão de casa.

Agora, quando os mais privilegiados são abordados pelas mesmas vulnerabilidades, velhas conhecidas dos desprivilegiados, e isso pela crise da sórdida ordem que estrategicamente faz com que os problemas sociais passem ao largo das suas torres de marfim burguesas, estes, ao contrário daqueles, não sabem o que fazer. Então, batem panelas que nunca estiveram vazias e gritam histericamente pelo fim da democracia que lhes permite gritar democraticamente. Isso porque eles não suportam estar expostos às vicissitudes da realidade como a maioria das pessoas cotidianamente está.

Preferem, portanto, trocar a liberdade democrática e a dignidade humana que têm em comum com os desprivilegiados pelas privações de uma ditadura militar qualquer conquanto esta lhes garanta seus velhos e insustentáveis privilégios. Só mesmo um grande absurdo para sustentar outro! Não enxergam, contudo, que as pérolas impróprias com as quais montaram o cordão que mente isolá-los da realidade com a qual não estão acostumados são os elos de uma coleira colérica que os prende, como cães sarnentos e raivosos, a uma realidade ainda mais vil do que aquela contra a qual protestam.

O Tinhoso no divã Hollywood

Não se faz mais diabos como antigamente, graças à Deus! O primeiro internacionalmente conhecido, descrito por Dante Alighieri como um ser horrendo, de três cabeças enormes e que jazia solitário no centro da terra preso da virilha para baixo num lago eternamente congelado, em nada se parece com o diabo que a Fox mostra na sua mais nova série de TV, Lúcifer, a estrear oficialmente em 2016. Entediado com a sua eternidade subterrânea, o Belzebu mais contemporâneo de que se tem notícia escolheu Los Angeles para “dar um tempo” longe do seu inferno, presente maldito de seu autoritário Deus Pai.

De diabólico, Lúcifer Morningstar – o nome estiloso como o qual “o Coisa-ruim” se apresenta na terra das celebridades – mantém apenas a sua imortalidade e a capacidade de fazer com que as pessoas expressem os seus mais secretos e pecaminosos desejos. De resto, ele é demasiado humano. Melhor dizendo, o Asmodeus é aquilo que quase todos os humanos desejam ser em demasia, isto é, jovem, rico, belo, sedutor, inteligente, espirituoso, dono de um Porsche conversível e de trajes Armani negros impecáveis.

Com esse cacife, o Belzebu contemporâneo não poderia deixar de frequentar “nightclubs” da moda repletos de gente bonita e bem vestida. Entre um drink e outro, uma famosa cantora Pop, viciada em heroína e descontente consigo mesma, apaixona-se por ele – como, aliás, todas as demais mulheres -, sem, contudo, saber quem ele é. A dúvida que a angustiava era se, em troca do sucesso, havia vendido a sua alma ao Diabo. Ele ri e diz que o diabo não compra almas humanas, apenas se apaixona por elas.

Lúcifer, contrariando a sua fama, sensibiliza-se com miséria espiritual da bela garota, aconselhando-a fraternamente para que se recompusesse na vida. Porém, no instante em que ela aceitou os bons conselhos do Demônio, Deus designou o traficante a quem ela devia dinheiro de droga a disparar uma rajada de tiros contra eles dois. Ela, como era de se esperar, morreu na hora. Morningstar, contudo, imortal e hollywoodiano que é, não teve sequer o seu Armani amarrotado. Mesmo assim – espanto! – prometeu fazer justiça.

Uma policial humana que investigava a morte da cantora assassinada não entendia como Lúcifer Morningstar havia escapado ileso do ataque. Ele repetia que era imortal, o que ela, obviamente, não levava a sério. Porém, doravante, em todos os passos da investigação, Lúcifer estava sempre um passo à frente dela. “Long Story Short”, os dois se veem irremediavelmente envolvidos pelas circunstâncias. Todavia, diferente de todas as mulheres do mundo, ela não é seduzida sexualmente por ele. Não entendendo por quê, é ele que cai seduzido por ela, e, surpreendentemente, passa a ser o seu anjo-da-guarda.

Só aí os arcanjos divinos abordam o Capiroto. Pelo jeito, para Deus o fato do Sete Peles ter abandonado o inferno não é tão grave quanto ele sentir compaixão por quem, ao contrário, deveria infernizar. Lúcifer, então, entra em uma crise existencial e, pasmem, procura uma psicanalista. Esta, antes mesmo de tratar da alma do Diabo, ou de vender a sua, entrega “de bandeja” o seu corpo a ele. Prometendo pagá-la com sexo, o Cadreel entra no consultório, fecha a porta e o episódio piloto de sua mais nova série.

Um Satanás livre, compassivo, desejável, e sobretudo desejoso por analisar a sua própria consciência, arruinaria não só o totêmico Inferno de Dante, como também o bendito protagonismo de Deus, pois ambos precisam do antagonismo maldito do Diabo para serem convincentes e consistentes. Ora, o Bem só se revela através do matiz contrastante do seu oposto, o Mal. Isso vale, aliás, para todo par de contrários. O Bem absoluto, ou seja, Deu, é criticamente ameaçado pelo desejo de bondade e correção do Mal absoluto, qual seja, o Diabo.

Agora, se o mundo do espetáculo dá aos seus habitantes-consumidores justamente aquilo que eles mais desejam consumir, que desejo consumista seria esse, então, de ver o Mal absoluto se curvar diante do Bem senão o desejo, de mesma intensidade, de ver o Bem ceder espaço ao Mal? Nada mal se ver livre do totem claustrofóbico do Mal. Porém, nada bem se tornar assim órfão do ícone refrescante do Bem. O alto preço daquele, contudo, só é pago com a moeda deste.

Entretanto, numa história na qual Deus assassina friamente uma alma atormentada, ao passo em que é justamente o Diabo que se atormenta e se envolve com tal injustiça, o que se tenta, com efeito, é trocar os dois de lugar. Eu, particularmente, prefiro ter um Diabo desses olhando por mim nas ruas da minha cidade do que um Deus que me puna pelas minhas misérias lá da sua alienada esfera celeste.

Mais ainda quando o Coisa-ruim aceita até se deitar num divã para se livrar do peso que Deus Pai, da sua julgadora, porém distante área V.I.P, colocou nas suas costas. Com efeito, Satanás só tem a fama que tem por conta do julgamento de seu Pai que não aprovou o fato de seu filho preferir os humanos a Ele. O divã, decerto, é o lugar para se livrar do asfixiante e paralisante simbolismo com o qual todo pai assombra verticalmente seus filhos.

Entretanto, Complexo de Édipo algum teria vez nesse inédito tratamento psicanalítico uma vez que não há mãe alguma por cuja posse esse filho caído tenha precisado, primeiro, disputar com o seu Pai, segundo, matá-Lo para tomá-la para si, e, terceiro, ostentá-la como o troféu objetivo de sua vitória subjetiva sobre Ele. Em troca, a psicanalista caída pelo Demônio, por um lado, deve tratá-lo como o filho renegado de um Pai solteiro, distante e sumamente despótico, e, por outro, fazer o papel da Jocasta conquistada que o Édipo-Evil nunca teve, o que, entretanto, não pareceu ser um problema para ela. Muito pelo contrário!

O divã psicanalítico talvez ponha fim ao trauma subterrâneo e até então eterno de Lúcifer, causado senão pela a mentira-vingança de seu Pai solitário que, das nuvens, diz ser o amor irresistível de seu filho à humanidade o pior dos pecados. Entretanto, se o Inferno foi a vingança de Deus Pai contra o filho Lúcifer que preferiu o caótico mundo ao harmonioso paraíso, agora, com a psicanálise, este filho pode se vingar dEle e dizer, primeiramente à sua terapeuta, depois a todo mundo – visto que fala de Hollywood – que seu Pai só o puniu porque em uma eternidade inteira foi incapaz de se apaixonar pela humanidade como ele.

A invulgaridade exclusiva da dança

Se, como cogitou René Descartes, eu “penso, logo existo”, quem é que consegue interromper o balé de seus próprios pensamentos sem com isso abandonar o palco da existência? Com efeito, enquanto existimos, pensamos. É como se fôssemos solicitados irresistivelmente pelo pensar a cada instante das nossas existências. Agora, se Nietzsche tinha razão em dizer que “toda vulgaridade vem da incapacidade de resistir a uma solicitação”, temos de assumir que, pelo fato de não conseguirmos deixar de pensar, solicitados que somos pelo desejo de seguirmos existindo, somos absolutamente vulgares.

Mesmo quando desejamos não pensar, pensamos. A mente vazia, portanto, é impossível. Até por que, como disse Alain Badiou, “o vazio é o ser do lugar”, não o nosso. Então, se só o lugar, ou o que é o mesmo, o espaço, pode ser vazio, é porque só ele resiste à solicitação de ser preenchido, e, portanto, somente ele não é vulgar. Nós, em troca, somos vulgares porquanto pensamos o tempo todo, preenchendo irresistivelmente todos os espaços com nossos pensamentos. Até o nada foi totalmente preenchido por nós, pelo menos com o nome que a ele demos.

Se, portanto, a vulgaridade de não resistir ao próprio pensamento é a condição da nossa humana existência, elevar-se dela deve exigir algum tipo especial de arte. Aí, reencontramos Badiou dizendo que “a dança é o movimento do corpo subtraído de qualquer vulgaridade”. O que está sendo dito é que somente o bailarino, por ser sobretudo corpo, pode ser o que é a despeito dos seus pensamentos. Isso fica claro nas palavras do filosofo: “a dançarina é o esquecimento milagroso de todo seu saber [inclusive do] de dançarina”.

De fato, quem melhor do que o bailarino para resistir, no espaço, às solicitações vulgares dos seus próprios pensamentos? Nem mesmo o ator pode se ver livre do pensar, pois “a partir do momento que há texto [e portanto pensamento], a exigência é do tempo, e não do espaço”, assegura Badiou. Um conterrâneo seu, Stéphane Mallarmé, pensa como ele ao dizer que “a dança é o poema liberto de todo o aparato de escriba”. Então, só mesmo a dança liberta o homem do pensamento, e portanto da vulgaridade.

Se, então, na ausência do pensamento só há o espaço, mas não o tempo, e se, conforme Badiou, “a dança é a única das artes que é obrigada ao espaço”, existe, portanto, na dança, algo obrigatoriamente pré-temporal que, entretanto, só pode ser representado no espaço. Ao contrário do pensamento, que é temporal e temporalizante, a dança, enquanto pré-temporalidade que é, “suspende o tempo no espaço“, coloca o filósofo, e, por conseguinte, suspende o pensamento.

Diante da bailarina, realmente, não sabemos mais o que o tempo fará no espaço! O balé rouba-nos aqueles pensamentos que pensam já saber do que um corpo é capaz, seja no tempo, seja no espaço. A dança faz com que o pensamento experimente o vazio porque só ela é no vazio. Aliás, quanto mais vazio, mais a dança pode ser. “O cenário é do teatro, e não da dança. A dança é o sítio tal qual, sem ornamentos figurativos. Exige o espaço, o espaçamento, nada além disso”, aponta Badiou.

O pensamento, por sua vez, não dança porque desde o princípio já encheu o espaço da existência com a sua espaçosa cenografia pensante, cujo pesado ornamento é o tempo. Já o bailarino, o artista do espaço, está livre do tempo porque resiste às solicitações do seus badulaques-pensamentos. Aí não é vulgar! Na dança, com efeito, o tempo é escravo do espaço, e o espaço, escravo do bailarino, o único capaz de resistir às solicitações dos seus pensamentos. Portanto, Descartes não estava totalmente certo ao afirmar que a existência só é comprovada pelo pensamento. Contra ele, qualquer bailarino poderia dizer: danço, logo existo!

Uma geometria da dança

Quando a bailarina, coreógrafa e professora Angel Vianna me disse que inicia seus alunos na dança discorrendo sobre pontos, linhas e planos, pois a consciência dessas abstrações geométricas se reflete positiva e concretamente nos corpos, posições e deslocamentos dos bailarinos sobre o palco, lembrei-me imediatamente da frase que Platão escreveu na porta da sua academia ateniense: “Quem não for geômetra, não entre”. Angel, entretanto, não seria tão radical quanto o pai da Filosofia, e nunca escreveria na porta da sua academia carioca: Quem não for geômetra, não dance!

Muito pelo contrário, o que ela quer é que todos dancem, independentemente de quaisquer experiências e conhecimentos prévios. Esse é a sua grande virtude! Porém, assim como Platão, que acreditava que a o ramo formal da matemática condicionava os filósofos à virtuosa busca pela verdade, a dama da dança contemporânea brasileira, por sua vez, acredita que a geometria pode bem condicionar os seus bailarinos à verdade do movimento de seus corpos no espaço. Como, então, a intimidade com pontos, linhas e planos abstratos servem concretamente à dança? Pois bem, botemos a geometria para dançar!

Sucinta e introdutoriamente, o ponto, que é adimensional, ao ser deslocado, forma uma reta, entidade unidimensional; esta, deslocando-se, forma um plano, ser de duas dimensões; este, por sua vez, movimentando-se, forma um volume, ou seja, o estabelecimento das três dimensões espaciais. Como, entretanto, para a dança não é somente o espaço que é pressuposto, mas também o tempo, as três dimensões espaciais, quando comportam em si o movimento, são o palco para a quarta dimensão, qual seja, o tempo. O bailarino tem aí, portanto, os elementos a priori da sua arte.

Agora, mais detalhadamente, o ponto, “ponto” de partida e abstração absoluta da geometria, que não tem quaisquer qualidades ou dimensões além de sua posição, pode, entretanto, mover-se ou ser imaginado em outro lugar. Ora, de uma pessoa que não se move nem imagina um movimento não pode ser dito que dança. Em troca, é somente quando ela se movimenta ou imagina um movimento de um ponto a outro, sem, no entanto, se esquecer da relação que tais posições têm entre si, que ela dá o primeiro passo no sentido de ser um bailarino. Ou seja, deixa de ser um ponto desqualificado no espaço infinito e angaria para si a sua primeira qualidade: ser a história consciente do seu próprio deslocamento espacial de um ponto determinado a outro ao longo de um tempo.

Com efeito, a dança começa quando uma pessoa-ponto imagina que pode ser mais do que uma única posição, e, ao ser outra, isto é, outro ponto, já é uma reta, cuja virtuosa propriedade é ser constituída de infinitos pontos, ou o que é o mesmo, infinitas posições. Só não podemos parar por aí e achar que uma única dimensão faz um bailarino, pois, então, até de uma pedra que cai poderia ser dito que baila. É preciso, por conseguinte, que essa reta-quase-bailarino se desloque de um lado para o outro para que se estabeleça um plano aos seus movimentos. O bailarino, aí, ganha mais uma qualidade, qual seja, a bidimensionalidade.

Novamente, é necessário mais do que isso para se ter propriamente um bailarino, pois se o deslocamento para os lados fosse suficiente, uma folha arrastada pelo vento teria de ser considerada como tal. Esse plano-quase-bailarino, portanto, deve mover-se para cima e para baixo, para que então a tridimensionalidade o qualifique espacialmente. Entretanto, se apenas os deslocamentos para um lado e para o outro, e para cima e para baixo, contivessem a essência espacial da dança, uma pluma, numa ventania, estaria dançando, coisa que ninguém ousa dizer – a não ser fazendo poesia.

Será que é o tempo, isto é, a quarta dimensão, o ingrediente que completa a geometria da dança? Obviamente não, pois tanto a pedra, a folha e a pluma se deslocam em função do tempo, e nem por isso bailam. Não são, portanto, as três dimensões espacial mais a temporal, juntas, que fazem a dança, muito embora a dança não se dê sem elas. A diferença entre um bailarino e uma pedra, folha ou pluma está, entretanto, em que somente aquele é – ou ao menos pode ser – consciente das dimensões através das quais se movimenta, enquanto os objetos sequer são conscientes de si.

Por isso, Angel Vianna têm razão em insistir que seus alunos sejam apresentados à coreografia dimensional apresentada senão pela geometria. Afinal, um bailarino, pelo fato de ser aquele que usa e abusa do espaço com arte, deve conhecê-lo bem. Talvez não como um geômetra, como exigia Platão dos seus pupilos, mas ao menos intuitivamente, dado que o espaço concreto no qual qualquer bailarino dança é redutível a pontos, linhas e planos abstratos. Ademais, e principalmente, é nessa ordem mesma – ponto; então linha; então plano; e só então espaço – que qualquer movimento pode ser a consciência de sua própria gênese ao longo de um tempo, e assim ser dançado, dançado novamente, e, para o bem da dança, eternizado.

Sexualidade. Orientação ou status?

O velho preconceito em relação à homossexualidade e à bissexualidade sobrevive, seja na inocente naturalização da expressão “viado”, seja na barbaridade fundamentalista-islâmica que arremessa homossexuais do topo de prédios. Temos, entretanto e felizmente, algumas ilhas nas quais a sexualidade das pessoas pode se expressar livremente sem que elas sejam discriminadas ou punidas por isso.

O fato de algumas pessoas poderem afirmar e exercer sem medo as sexualidades que cultural e historicamente foram e ainda são indevidamente tidas como proibidas, doentias, e até contrárias ao desejo divino, certamente representa, não a vitória na guerra contra o preconceito, mas uma fundamental evolução entre batalhas.

Entretanto, dessa liberdade é bom que não se faça abstrações indiscriminadas, pois ela trata de concretudes demasiado estruturais nas vidas das pessoas, ou, do contrário, abre-se aí espaço para novos preconceitos. Será mesmo, como diz o ditado popular, que quem nunca comeu melado, quando come necessariamente se lambuza? Se sim, que lambuzo seria esse em se tratando de liberdade e afirmação sexual?

Pensei nisso quando três adolescentes – com dez, treze e quinze anos de idade – disseram que eram bissexuais sem, no entanto, terem transado, ou sequer se apaixonado por alguém do mesmo sexo que eles. Assim se afirmam pois, privilegiados que são, sabem desde já que a bissexualidade não se limita apenas à atração sexual por pessoas de ambos os sexos, mas pode se dar também pelos vieses afetivo, romântico, emocional.

Agora, se a orientação sexual de alguém é a realidade a priori em relação a qual tanto a afetividade quanto a sexualidade ativa são expressões a posteriori, o respeito à própria sexualidade deve necessariamente seguir a orientação sexual espontânea de cada um. Do contrário, ou a pessoa é coagida a uma sexualidade que não a sua, ou a sua sexualidade é tratada como se fosse uma questão de opção.

Entretanto, a expressão “opção sexual” é considerada impertinente, pois a sexualidade é uma dimensão assaz imanente para que alguém possa optar por ela como se estivesse diante de um cardápio. Ora, se fosse simples assim, os homossexuais que historicamente sofreram preconceito certamente teriam optado por uma sexualidade que não lhes trouxesse tantos e indevidos problemas familiares, sociais, sexuais, etc.

“Orientação sexual”, em troca, é um nome que não responsabiliza as pessoas pelas suas sexualidades, dado que passa longe da deliberação prévia acerca do assunto. Não diz não respeito, portanto, a erro ou a acerto. Por opção é possível trepar com pessoas de ambos os sexos. Todavia, se essa é orientação sexual de uma pessoa, a mesma coisa pode se dar sem ela ter de optar por isso. Talvez a verdadeira liberdade sexual seja tanto mais livre quanto menos ela for uma questão de escolha ou de opção.

Então, depois de os três adolescentes dizerem que são bissexuais sem, contudo, terem se apaixonado nem transado com alguém do mesmo sexo que eles (a de dez anos sequer com o sexo oposto), perguntei-me silenciosamente se elas estavam seguindo genuinamente as suas orientações sexuais ou se, antes, estavam lidando com o assunto como se fosse mesmo mera questão de opção.

Conhecendo o esclarecimento intelectual e o círculo de relações delas, sei que podem viver e expressar as suas sexualidades livremente sem serem discriminadas pelos seus colegas e familiares. Para a de 16 anos, pelo contrário, a sua bissexualidade declarada era um status-pró entre os seus amigos.

Os três adolescentes em questão usufruem de uma recente&libertária realidade que para a maioria das pessoas ainda é uma utopia. Justamente por isso me pareceu possível que elas estivessem se “lambuzando” da liberdade de se afirmarem bissexuais ainda que esta não fosse a orientação sexual particular delas.

Ora, assim como os revolucionários sexuais dos anos 1960, que após conquistarem a liberdade que lhes era negada se viram obrigados a desfrutarem dela, e a qualquer custo – com preços psíquicos altíssimos aliás -, estes três adolescentes muito bem podem se sentir coagidos a se afirmarem bissexuais simplesmente pelo fato de tal orientação sexual significar uma conquista histórica da qual a geração deles é espólio bendito.

De direito, ninguém pode questionar a autoafirmação sexual de ninguém. Porém, de fato, ainda que indevidamente, eu não pude deixar de me perguntar se aqueles três adolescentes estavam tratando as suas declaradas bissexualidades mais como um status social do que como a expressão natural das suas próprias orientações sexuais.

Do mesmo modo como a vida-em-rede-social-virtual nos leva a inadvertidamente transformar em status público os nossos mais efêmeros estados particulares, a bissexualidade pode se tornar a postura deliberada e engajada de alguém que queira surfar a onda libertária que se contrapõe ao profundo e antiquado mar do preconceito que ainda afoga muita gente.

Talvez eu tenha me ocupado tanto da segura afirmação dos três adolescentes em respeito às suas orientações sexuais porquanto, na minha adolescência, eu não tinha tal certeza. Ademais, ainda hoje eu não sei o que dizer quando alguém me pergunta se eu sou hétero, homo ou bissexual, mesmo depois de ter me relacionado, afetiva e sexualmente, com homens e mulheres.

Conceitualmente, diriam, sou bissexual. Entretanto, os conceitos visam uma universalidade que desconsidera quaisquer particularidades. Embora eu desfrute de uma liberdade tal que tanto faz se me tomam por homo ou bissexual, eu mesmo faço questão de não me definir, pois outra coisa não estaria fazendo senão me encurralar em um nicho sexual no qual, aliás, eu não sou obrigado a permanecer por conta dos meus próprios discursos.

Sendo assim, penso que a orientação sexual de alguém, para ser realmente livre, deve se libertar inclusive dos parcos nomes que vulgarmente tentam conceituá-la. Em primeiro lugar, porque o desejo, se livre, é absolutamente dinâmico, e, em segundo, porque orientar a própria orientação sexual mediante um ou outro nome é coagi-la a esta ou àquela dimensão.

Não é o caso, contudo, de concebermo-nos, outrossim indiscriminadamente, enquanto pansexuais, como o roqueiro Serguei, que, entre outros, se relacionou afetiva&sexualmente com Janis Joplin, com uma árvore, e até comigo. Talvez a verdadeira liberdade sexual seja apenas aquela que, dispensando definições prévias, não é condicionada por elas. Não é isso porventura melhor, principalmente àqueles que iniciam as suas vidas afetivas-sexuais?

Se eu quisesse ser preconceituoso, diria aos três adolescentes que eles nada deveriam dizer acerca de suas próprias sexualidades, mas apenas vivê-las, e bem longe dos discursos, pois as palavras pressupõem conceitos; estes, fazem dos movimentos particulares e naturais seres estáticos, que no fim das contas figuram como se fossem status, ou o que é pior, epítetos claustrofóbicos.

Por que eu não quero – nem acho que devo – ser preconceituoso, nada disse aos três adolescentes. Além do que, independente da sexualidade através a qual eles formalmente se afirmam, ontológica e subterraneamente eles já são o que são, isto é, expressões de suas inalienáveis orientações sexuais.

Minha secreta vontade de libertá-los da necessidade de discursarem acerca de suas sexualidades, entretanto, seria no sentido de afastá-los das categorias nominais que mais servem de munição ao velho preconceito do que às próprias sexualidades deles. Lembremo-nos sempre dos radicais muçulmanos que, tendo uma definição sexual e o nome de alguém, já acham que tem o bastante para atirar indivíduos de cima de um prédio.

Assim como as palavras dos três adolescente me levaram, de certa forma, à julgá-los – e eu odeio ter que reconhecer isso! -, enquanto nos disponibilizarmos a ter a nossa dinamicidade potencial reduzida a conceitos estáticos, estamos outrossim vulneráveis a ver a nossa própria sexualidade reduzida, todavia injustamente, pelas palavras e pelo julgamento dos outros para os quais nós somos os inadmissíveis outros.

Por isso, nos diálogos que solicitam a definição da minha orientação sexual, faço questão de ser tão paradoxal quanto Sócrates, dizendo: “só sei que nada sei”, pois além de a orientação sexual de alguém ser tanto mais livre quanto menos for uma questão de opção, com o paradoxo socrático ela é ainda mais livre se não for reduzida a um objeto de conhecimento.

Um dualismo mente-mente (em quatro atos hobbesianos)

Ao contrário do que cogitava René Descartes, o nosso corpo e a nossa mente não são separados e independentes, mas, conforme o se contemporâneo Baruch Spinoza, corpo e mente são uma coisa só, que, entretanto, pela nossa capacidade intelectual, pode ser pensado ora materialmente, ora psiquicamente. Inclusive quando sonhamos não temos uma produção exclusivamente mental, mas um produto indiviso cuja autoria é também do corpo.

Agora, para investigar a tendência das nossas produções oníricas de parecerem coisas meramente mentais, proponho aqui um erro maior do que o de Descartes: imaginemos que a alma que sonha enquanto dorme é outra e diversa da que, em vigília, pensa os sonhos daquela. Para tanto, será preciso desconsiderar, ainda que indevidamente, a unidade corpo-mente spinozana e fingir um dualismo tão radical quanto o de Descartes, só que na mente.

Proponho esse despautério para melhor contemplar um fantasma dualista-mental que me assombrou a partir de uma frase que Thomas Hobbes traz em seu Leviatã: “acordado observo muitas vezes o absurdo dos sonhos, mas nunca sonho com os absurdos dos pensamentos despertos, contento-me com saber que, estando desperto, não sonho, muito embora, quando sonho, me julgue acordado”.

Com efeito, nessa frase o filósofo inglês faz parecer que a mente que sonha e a mente que vigia são seres distintos, e que, ademais, é lícito que uma questione a natureza e as ações da outra – muito embora a questão central da obra de Hobbes seja outra. De qualquer forma, vejamos o que a mente vigilante pode dizer da mente sonhante, e, talvez mais interessante do que isso, o que esta pode dizer daquela.

Tomemos então a frase de Hobbes em quatro atos. A afirmação 1) “acordado observo muitas vezes o absurdo dos sonhos” faz a mente desperta parecer, natural e psicologicamente, saudável, conhecedora da verdade e da estrutura da realidade; enquanto a sonhadora, coitada, figura enquanto uma maluca impertinente, cujas expressões são impróprias e, portanto, como colocado, absurdas.

Em resposta à crítica da mente insone, a onírica manda um “beijinho no ombro” dizendo: eu, da minha parte, 2) “nunca sonho com os absurdos dos pensamentos despertos”. Seria nobre, se na verdade não fosse irônico, ela falar que não perde o seu tempo sonhando com os pensamentos daquela. Porém, ao afirmar que as suas expressões não se pautam pelas leis da mente em vigília, a mente onírica age como uma diva rebelde que atua, livre e talentosamente, apenas o que tem em sua própria mente.

Provocada, a mente vigilante rebate: ora, mente sonhante, sonhe com o que você quiser, pois eu, 3) “contento-me com saber que, estando desperta, não sonho”. Agora, se a mente onírica é mesmo uma diva espetacular que só se apresenta no seu próprio teatro, a mente vigilante, ao dizer que não sonha, age como uma incompetente crítica teatral que discorre sobre os espetáculos daquela apenas a partir de relatos reminiscentes, mas nunca por assisti-los ao vivo e em cores.

A diva sonhadora, por sua vez, ciente de que é um sucesso de público, tampouco se importa com o fracasso apontado pela mente acordada, afinal, diz ela, 4) “quando sonho, me julgo acordada”! De fato, a mente onírica em ato é a única que está desperta. Por isso as vaias da mente vigilante, que sequer adentra no recinto espetacular da mente onírica, parecem outrossim absurdas.

Chegamos, portanto, ao clímax no qual uma mente parece absurda para a outra. Temos, aqui, o dualismo mente-mente, garatujado por Hobbes e arte-finalizado por mim, em sua expressão mais clara – muito embora Descartes, e mais ainda Spinoza, digam que absurda é essa ideia. Não obstante, a mente desperta e a mente sonhante seguem parecendo absurdas uma para a outra, e isso por dois motivos:

Em primeiro lugar, porque cada uma das mentes não consegue compreender a natureza da outra. Em segundo, porquanto nenhuma delas está presente enquanto a outra atua. É como se uma soubesse da outra apenas por meio de fofocas, já que uma não pode ser testemunha ocular da realidade atuante da outra. Observam-se, contudo, apenas mediante os rastros uma da outra. Até parece que esse palco mental não comporta diálogo, mas apenas monólogos!

Entretanto, se fizermos uma analogia entre o nosso o drama irredutível das duas mentes com o dos amantes de O Feitiço de Áquila, onde a amada deixa de ser precisamente quando o amado vem a ser, e vice-versa, podemos propor que o átimo reminiscente e sistemático que une os dois amantes de Áquila, mantido senão pelo amor incondicional deles, é o mesmo que une as nossas duas mentes, e também por alguma espécie de amor.

Portanto, se quisermos encontrar uma arena na qual a mente empírica e a mente onírica possam coexistir harmoniosamente, e assim darmos um passo para fora do nosso erro proposital que cindiu a mente em duas, teremos de instituir uma atração entre elas. Aí, só o amor na sua causa. Que romântico! Sartre, em A Imaginação, afirma justamente que “o romantismo se manifesta por um retorno ao espírito de síntese”. Se esse filósofo está certo, a síntese das duas mentes advém desse envolvimento romântico entre elas.

Ora, qualquer um sabe que não se vive sem pensar nem sonhar, e, mais ainda, sem sonhar com o que se pensa e pensar a partir do que se sonha. Por conseguinte, para abandonarmos o erro dualista, e voltarmos à unidade corpo-mente proposta por Spinoza, devemos compreender que, se realmente pensamento e matéria são uma coisa só, as mentes sonhante e vigilante, portanto, de forma alguma podem estar separadas ou serem distintas.

Então, se de fato corpo e mente são uma única e inseparável coisa, a discussão entre a mente que sonha e a mente que vigia é o drama dialético de uma mente só, acompanhada – e por que não dizer assistida – pelo corpo, o tempo todo. Entretanto, se Spinoza tem razão em afirmar que a mente é a ideia do seu corpo em ato, qualquer incompatibilidade na esfera mental outra coisa não é senão a ideia da mesma incompatibilidade atuada, entretanto, pelo corpo.

Desse modo, a absurdidade que a mente que sonha e a que vigia idealizam a respeito uma da outra é a mesma que o corpo adormecido e o corpo desperto atuam, materialmente, um em relação ao outro. Afinal, como o psicólogo francês Alfred Binet afirmou, “o pensamento tem necessidade de signos materiais para se exercer”. Spinoza, todavia, complementaria dizendo: assim como a matéria tem necessidade da mente para ser pensada!

Chegamos, finalmente, não só à coautoria do corpo e da mente em relação aos nossos sonhos, como também à participação conjunta dos dois na produção de quaisquer coisas que de nós se sigam. Absurdo, portanto, é uma mente, esteja ela em vigília, esteja sonhando, pensar que ela encena alguma coisa sem que toda ela, mais o corpo, sejam os atores do espetáculo mental-corporal único que somos.

A forca e a gravata

A forca e a gravata são feitas para serem usadas em torno do pescoço das pessoas, e, ademais, simbolizam poder. As semelhança entre elas, contudo, não vão muito longe. Todavia, ao contrário do que vulgarmente se pensa, a forca oferece uma espécie de liberdade que a gravata só faz furtar. Cabe explicar, então, de que modo a forca que dá fim a alguns sujeitos é preferível à gravata que potencializa outros.

Original e institucionalmente, a forca era um instrumento de execução usado em cerimônias públicas, nas quais os príncipes, enforcando àqueles que infringiam as suas Leis, mostravam ao restante dos seus súditos o alto preço da impertinência social. Já a gravata, que deriva do francês “cravate”, nome dado aos mercenários croatas que traziam o acessório do oriente aos burgueses parisienses, era usada – e ainda é – como objeto de distinção social.

A corda que enforcava devia ter determinada espessura e comprimento para que o condenado fosse executado de forma rápida e limpa. Se muito fina e comprida, o condenado, ao cair do cadafalso, era decapitado, e o seu sangue lambuzava o estratégico palco dos príncipes punidores. Em contrapartida, se grossa e curta demais, a morte seria lenta. Porém, nessa situação, conforme relatos, o enforcado liberaria fezes e urina devido à perda gradual do controle sobre os esfíncteres, configurando, desse modo, uma “morte suja”, escatologia que reduziria a semidivindade principesca.

A gravata, por sua vez, também deve ter determinada espessura e comprimento, pois só assim garante que o seu usuário comunique eficientemente a distinção social desejada, outrossim de forma rápida e limpa. Se curta ou comprida demais, o engravatado outra coisa não denotará senão mau gosto, inadequação e ignorância. Ou seja, o efeito contrário a que o acessório se propõe. Ora, assim como a forca errada maculava a pretensa superioridade dos príncipes, a gravata errada também macula a dos engravatados.

Do ponto de vista do pescoço, a forca aponta para cima, para o céu, enquanto a gravata, para baixo, e, dialeticamente, para o inferno. Temos aí uma diferença bastante instigante e subversiva, pois aqueles que morrem na forca são puxados em direção ao éden, ao passo que aqueles que vivem em gravatas tendem pendularmente para o sentido contrário, qual seja, para o hades.

Simbolicamente, a forca descola&desloca o enforcado da terra em direção ao paraíso, e, paradoxalmente, coloca-o mais próximo do céu do que o príncipe. A gravata, em troca, outra coisa não faz senão atar&enterrar os seus usuários no lodo infernal da desigualdade entre as pessoas. Outrossim paradoxalmente, o engravatado está enforcado pela distinção social que ele mesmo atou em torno do seu próprio pescoço.

Ora, o mesmo enforcamento que colocava um condenado numa extremidade da forca, na outra, simbolicamente, tinha a mão punitiva de um príncipe em plena manutenção de sua superioridade, cujo preço, contudo, era o de estar condenado a punir todos aqueles que desafiassem a hierarquia encimada por ninguém menos que ele. Já o engravatamento, que numa ponta da gravata mente que uma pessoa comum é uma espécie de príncipe, na outra, carrega o peso morto de todos aqueles que jazem desqualificados em função dessa mentira.

O enforcado, entretanto, no ato do seu enforcamento, liberta-se do mundo das hierarquias, enquanto o engravatado, no ato do seu engravatamento, aprisiona-se a este mundo hierárquico. Com efeito, conta-nos Foulcault em Vigiar e Punir, os condenados à morte encontravam, no mesmo cadafalso que os matava, o palco no qual desfrutavam de um liberdade negada inclusive aos príncipes, pois, no derradeiro, o condenado podia xingar não só o príncipe que o punia, mas inclusive a Deus, coisa que príncipe algum podia fazer.

O engravatado, em contrapartida, ao enrolar em torno do seu pescoço a corda que faz dele um ser pretensamente superior, compromete com isso a sua própria liberdade, pois, doravante, é preciso manter tal distinção, e a qualquer custo, dado que ela é antinatural, isto é, insustentável. Assim como os príncipes, o engravatado deve vigiar e punir todos aqueles que ousem se equiparar a ele. Do contrário, a igualdade entre as pessoas se manifestará verdadeiramente, e ele será, a contragosto, apenas igual aos demais.

Sendo assim, a forca é mais libertária do que a gravata. Tal liberdade, obviamente, é mundanamente efêmera, mas, como é o meu objetivo apontar, paradisiacamente eterna. Já a gravata, que mente uma espécie de liberdade ao mentir uma pretensa superioridade, é, verdadeiramente, uma prisão, e que, ademais, perdura pelo tempo em que o pretenso superior estiver enforcado por ela.

Se a nossa imaginação for capaz de fazer da gravata e da forca uma única e mesma coisa, teremos, em uma ponta, os enforcados, paradisiacamente livres, enforcando, na outra, os engravatados justamente com a pretensa superioridade que mundanamente os aprisionam. Portanto, a forca do engravatado é a sua superioridade mentirosa, cujo preço, entretanto, é a gravata do enforcado, a verdade eterna dessa mentira.

Dante, um reacionário.

Dante Alighieri, considerado o maior poeta italiano, por volta de 1300 inaugurou oficialmente o Dolce Stil nuovo (doce estilo novo), isto é, um novo movimento poético que se contrapunha ao tradicional estilo trovadoresco. Desse ponto de vista, o ilustre escritor foi um revolucionário. Porém, das leituras de A Divina Comédia e da Monarquia, a impressão que tive foi a de que Dante foi um reacionário a reintroduzir velhos valores ao seu novo tempo.

Em A Divina Comédia, sua obra mais conhecida, Dante inventou o inferno. Durante os mil anos de cristianismo que antecederam o autor, as almas que desejassem ir para o céu deveriam, obviamente, evitar cometer qualquer um dos sete pecados capitais. Entretanto, para quem pecasse, não havia uma ideia clara do que lhe aconteceria, ou para onde iria. Na ausência de um contraponto ao paraíso desejado permanecia aberta uma opção não infernal aos pecadores. Ora, o Império Cristão não podia aceitar tal liberdade!

Então, descrevendo detalhada&sadicamente o seu inferno, Dante ofereceu às pessoas uma ideia muito precisa, contudo insuportável, daquilo que aconteceria elas caso pecassem Doravante, o cristianismo pôde encurralar mais eficientemente as pessoas no seu plano absoluto. Nesse sentido, Dante foi reacionário por munir o milenar sistema de dominação – a Igreja Católica – com novas armas que ameaçavam eternamente aqueles que não seguissem a sua Lei.

Já na sua Monarquia, Dante, apresentou ao feudalismo tardio, que subterranea&secretamente gestava o capitalismo e o Estado burguês moderno, uma ode aos ancestrais valores do Império Romano. Ou seja, novamente, o autor propunha que as forças e as configurações do passado eram mais adequadas ao presente do que as do próprio presente. Ora, a uma Florença que rascunhava o futuro, a velha figura de um imperador absoluto era um convite ao retrocesso.

Principalmente aos imperadores de que Dante desejava ser súdito o seu Inferno deveria ser o totem insuportável a guiá-los pelo estreito caminho da virtude. Embora o autor tenha afastado Deus do comando do reino mundano, o que dava poder absoluto aos monarcas, o reino divino, cujo imperador eterno é Deus, estaria sempre no fim daquele para julgá-los. Diferente dos imperadores romanos anteriores à palavra divina, os novos, para Dante, estariam tão sujeitos às desgraças do inferno quanto qualquer pessoa caso não seguissem a palavra dEle.

Entretanto, a meu ver, o ícone do reacionarismo dantiano jaz na sua poesia amorosa, na qual o autor, valendo-se do seu estilo nuovo, coloca-se diante de sua amada, Beatrice Portinari, como um servo diante de sua senhora. Ora, em um mundo no qual o feudalismo apresentava as suas primeiras e irrecuperáveis rachaduras, o fato de o autor não só repopularizar a relação de suserania e vassalagem que a Sua Florença desconstruía florescentemente, mas também introduzí-la nas relações privadas e afetivas, é o quê senão uma barreira à evolução?

Em suma, Dante Alighieri é reacionário por trabalhar no sentido de as pessoas seguirem servas de Deus, dos monarcas, e, o que é mais absurdo, daqueles iguais a elas a quem amam. O fantasma que as obrigava a tal servidão era o seu epopeico inferno, composto de tantos círculos insuportáveis quantos fossem os tipos de pecados cometidos. Aos súditos, um círculo para cada pecado capital. Porém, no pior de todos, o último círculo do inferno, que é absolutamente gelado, o diabo, de três cabeças e aprisionado da cintura para baixo num lago congelado, mastigaria eternamente os imperadores hereges.

Como não tachar de reacionário alguém que coloca no portão do seu inferno a frase: deixe para trás toda esperança os que aqui entrarem? Roubar a esperança das almas que trilharam caminhos alternativos à palavra de Deus, todavia aqui no reino mundano, é a reação de Dante à revolução histórica assistida por ninguém menos que ele, na qual esse seu Deus imperador onisciente via o seu império ser subjugado pelo o império burguês, o incontestável&infernal vitorioso histórico.

Feminista machista

Conversando sobre feminismo com uma mulher feminista, ouvi dela que eu, pelo fato de ser homem, não poderia falar da condição da mulher e do feminismo. Então, perguntei se ela realmente achava que havia coisas das quais somente as mulheres sabiam, mas não os homens. Pois, se assim fosse, ela teria de admitir, junto com isso, que há coisas das quais somente os homens sabem e têm direito de tratar. Entretanto, não é justamente esse fantasma que mente que algumas coisas são assuntos exclusivos de homens, e que outras são assuntos apenas de mulher, o inimigo contra o qual ela, uma feminista, deveria estar lutando?

Em vez de considerar a contradição que estava me propondo, e então assumir que o feminismo não deveria ser um latifúndio monocultor exclusivo das mulheres, a feminista com que eu dialogava sustentou que, embora os homens discorram sobre o feminismo, as opiniões deles deveriam estar subordinadas às das mulheres. Lembrei-me imediatamente de um conhecido meu, assaz machista aliás, que certa vez disse: “mulher até pode discutir futebol comigo e com meus amigos, mas somos nós [os homens] que entendemos do assunto”. Perguntei se era algo do gênero o que ela estava querendo em relação ao feminismo.

Ela bradou! Ofendeu-me até, dizendo que eu não sabia o que estava falando, que deveria me calar. A infeliz postura dela estabeleceu entre nós uma verticalidade bastante machista, porém, desta vez, com ela no lugar do machão dono da verdade, e eu, do meu lado, representando a mulher que nada sabe direito e que, por isso, deveria calar. A única virtude da atuação viciosa dessa feminista radical foi relembrar-me da “torturabília” com que muitos homens, historicamente, trataram as mulheres. Apenas nesse ponto eu sou grato a ela. Entretanto, em todos os outros, ela repetia o erro sexista contra o qual dizia lutar.

A história do feminismo pode ser dividida em três “ondas”: a primeira, no final do século XIX ; a segunda, na década de 1960; e a terceira, inciada nos anos 1990 e que segue em crista no presente momento. O primeiro feminismo, infelizmente, figurou às suas contemporâneas mais como uma excentricidade da já excêntrica Belle Époque do que uma realidade concreta e cotidiana em substituição à histórica sujeição da mulher ao homem. O feminismo dos anos 1960, entretanto, foi mais surfado. As mulheres banhadas por esta onda, sem embargo, passaram a se separar dos seus maridos, a trabalhar fora, a estudar livremente e a reconectar os seus desejos às suas práticas ordinárias.

Já as feministas da presente onda, herdeiras das conquistas das suas antecessoras, e usuárias da maior igualdade em relação aos homens em, no mínimo, trinta séculos de História – sem com isso dizer que hoje há uma igualdade satisfatória entre homens e mulheres – estas feministas são mais belicosas no trato com os homens do que as do passado. Em vez de seguir na luta pela igualdade, a única universalmente válida, as presentes feministas, em especial aquela que rebaixou as minhas opiniões pelo fato de eu ser homem, parecem tentar inverter a imprópria hierarquia histórica entre homens e mulheres, como se agora fossem elas a fonte da verdade.

Contra estas feministas eu lanço a pergunta: aderir ao movimento feminista significa ser agraciado necessariamente pela verdade? Ou, ao contrário, as feministas e as suas convicções seriam tão passíveis de erros quanto os machistas e as suas? Se alguma feminista sustentar que as mulheres detêm alguma verdade negada aos homens, estará apenas sendo fundamentalista, isto é, pretendendo fazer dos seus dogmas particulares a verdade universal, coisa bem machista inclusive. É exatamente disso que não precisamos mais! Quanto mais não seja, porque essa é a triste hierarquia legada pelo passado, verticalidade que sempre subjugou, não só as mulheres, mas também os negros, os gays, e todos aqueles oprimidos pelos valores socioculturais dominantes.

A socióloga Vanessa Sander apontou que as mulheres negras, por exemplo, se sentem invisíveis dentro dos discursos feministas, pois as reivindicações pautadas pela categoria “mulher”, que se pretendem universais, na verdade, atendem apenas aos anseios das mulheres brancas. Sander relembra que as feministas brancas, quando batalhavam para a trabalhar fora, sequer consideraram as mulheres negras, que sempre trabalharam fora, desde o passado escravocrata. Em relação aos transexuais e travestis acontece o mesmo. As feministas mais radicais também são contrárias à participação, no movimento feminista, de quaisquer pessoas que não nasceram com vagina.

Burramente, como se fossem machos reacionários, estas feministas radicais pretendem manter a condição sexual natural dos indivíduo enquanto a chancela às suas interações sociais futuras. Se ter uma vagina é a condição para ser feminista, então abre-se aí um mundo inteiro de coisas e atividades que pessoas que têm essa genitália devem estar condicionadas, coisa que feminista alguma deve aceitar. Para não serem tão limitadas, estas fundamentalistas deveriam considerar, como colocou Sander, que o termo “mulher” denota experiências universais, e não apenas experiências de quem nasceu com uma buceta. Ou, porventura, a jornalista Rachel Sheherazade seria mais apropriada ao feminismo do que a cartunista e chargista Laerte Coutinho, que recentemente assumiu a sua identificação com sexo feminino?

Se as mulheres precisam do feminismo para lutar contra o machismo que historicamente as oprime, outrossim os homens precisam do feminismo para libertarem-se da opressão que o próprio machismo, sintomaticamente, também imputa a eles. Afinal, quando um homem nasce em uma conjuntura machista, também ele é obrigado a encarnar um papel universal predeterminado que dificilmente concorda com os seus desejos particulares e sempre dinâmicos. O machismo, portanto, é um inimigo contra o qual homens e mulheres devem lutar. Muito melhor se essa luta for conjunta, pois quanto mais forte e numeroso o exército, mais facilmente se vence a batalha.

Desse modo, quando aquela feminista com quem eu conversava disse que eu, por ser homem – por não ter nascido com uma vagina -, não poderia falar de feminismo e da condição da mulher, estava, com efeito, dispensando contingente à sua própria batalha, que, no caso, é a mesma que a minha, isto é, a busca pela liberdade definitiva do falocentrismo histórico. Entretanto, diferente dela, eu não acredito que devemos instituir um “vulvacentrismo” no seu lugar, pois seria trocar seis por meia-dúzia. A mim, parece muita tolice, ou talvez fruto uma histeria colateral, essa recusa das feministas radicais em sustentarem as suas identidades femininas precisamente em meio à diversidade absoluta em relação à qual, aliás, elas querem igualdade.

Inteligência, ao contrário, seria receber quaisquer pessoas e opiniões que encorpem a luta e a discussão das mulheres contra o machismo. Eu, mesmo não tendo uma buceta, acredito e apologizo que a posse de uma não deve significar subjugação social, cultural, econômica, política alguma. Não obstante, depois de ter a minha opinião masculina acerca do feminismo reduzida pela visão feminina e fundamentalista sobre o feminismo da minha interlocutora radical, a minha batalha pessoal contra o machismo se desdobrou em duas. De um lado, sigo lutando para que homens e mulheres estejam em pé de igualdade, mas, de outro, encampo a batalha na qual a minha vitória é ser bem-vindo, mesmo sem possuir uma vagina, no front feminista contra o machismo.

Restou claro que a feminista radical que tentou me calar com a sua verdade não quer que eu, ser despossuído de buceta, lute ao seu lado, ou sequer tenha direito à voz. Essa sua posição particular, entretanto, outra coisa não é senão um machismo às avessas, que eu, aliás, repudio, pois dizer que certas verdades só são acessíveis às mulheres apenas substitui o pênis do falocentrismo pela vagina. Sim, a vagina pode ser falocêntrica desde que Freud esclareceu a independência entre o falo e o pênis: falo é uma condição de poder, homens e mulheres podem usufruir dele, enquanto o pênis é apenas o órgão sexual dos homens.

Para a virtude do feminismo, portanto, aliados deveriam ser todos aqueles que têm capacidade para se colocarem, nem que seja reflexivamente, no lugar das mulheres. Desse modo, qualquer histeria fálica de mulheres dogmáticas&fundamentalistas, que recusam abraçar os “desvaginados” que solidariamente abraçam a causa das mulheres, deve ser tão condenada e combatida quanto o machismo. Afinal, é machista aquela feminista que, ao aderir ao seu “ismo”, acredita que aderiu automaticamente à verdade. Em contrapartida, é verdadeiramente feminista aquela mulher, homem, travesti, transexual, gay, seja lá quem for, que crê que a igualdade entre homens e mulheres não deve ser construída a partir da contraditória construção de diferenças entre eles.

Artesão e cliente

Como eu sou um artesão, está na essência do meu trabalho considerar diretamente as necessidades dos meus clientes, sejam eles diretores de teatro, coreógrafos de dança, colecionadores de Barbie, ou conhecidos que encomendam de mim coisas de que precisam. Todos dizem, a mim, pessoalmente, o que querem. Eu, do meu lado, ouço o que eles dizem, porém, mais do que captar o que as suas palavras-pedidos tentam explicar, devo encontrar nos seus olhos aquilo que eles querem, mas que suas palavras não conseguem dizer.

Obviamente, uma máquina de Coca-Cola não poder fazer isso, afinal, ela foi programada justamente para não reinterpretar nada além do preciso botão que o seu cliente apertou. Imagine uma máquina dessas decidindo se é Coca Zero o que o cliente precisa ou se sua massa corporal justifica uma Coca “normal”! O artesão, ao contrário, pode fazer isso, isto é, acrescentar algo de humano e de inédito à relação do seu cliente com aquilo de que ele consome.

Quando compramos nossas coisas em lojas, decerto isso nos satisfaz. Porém, as mesmas forças que aqui nos levam às compras, logo ali, obrigam-nos a descartar aquilo que acabamos de comprar. A satisfação desse tipo de consumo, portanto, é criticamente efêmera. Dessa relação, com efeito, somos escravos, todavia ideologicamente iludidos de que somos os senhores da relação. Ilusão oriunda do fato de os escravos nunca olharem nos olhos do verdadeiro senhor enquanto olham para as mercadorias da C&A ou da Coca-Cola.

Agora, quando uma pessoa encomenda de outra, por exemplo, uma roupa, eis uma relação produção-consumo na qual ninguém é escravo nem senhor. Isso suspende virtuosamente o vicioso ciclo capitalista que insiste em fazer do consumo o motor da necessidade. A relação com o artesão coloca em perspectiva não somente o claro e central ponto-de-fuga do consumidor, isto é, o prazer que ele espera do consumo, mas, principalmente, o ponto-de-vista desse consumidor, pleno de desejos – que, entretanto, extrapolam a capacidade de qualquer roupa ou coisa em saciá-los.

Um colega meu soube que eu costurava. Então, encomendou-me uma bolsa. Por um lado, porque precisava, e, por outro, segundo suas palavras, porque preferia dar o dinheiro que essa sua necessidade lhe dispôs a investir a uma pessoa do seu círculo, e não a uma marca internacional&impessoal qualquer. Talvez por ser de outra área de atuação que não a minha, ele, que é músico, não sabia falar de tecidos, de tipos de costura, de aviamentos, ou seja, das concretudes do que ele queria. Em vez disso, dava-me, com suas palavras e mãos, um desenho abstrato, assaz subjetivo, entretanto, daquilo que atenderia a sua necessidade objetiva.

Vi que não era o caso de “brifar” com ele as especificações técnicas da materialidade envolvida no seu pedido. Isso era tarefa da minha arte(sanato). Estava mais nos seus olhos do que em suas palavras aquilo que ele queria. Alguns dias depois, com a sua bolsa em mãos, também dos seus olhos vieram uma gratificação melhor do que o dinheiro que eu recebi por ela. Seu olhar, além de misturar gratidão e satisfação, também era a expressão de uma pequena, porém possível, alforria em relação ao sistema de consumo que, por insistir ser a única opção, nos escraviza.

Trabalhando dessa forma, isto é, diretamente para alguém, reencontro sistematicamente o meu lema preferido, qual seja, o comunista: “de cada qual segundo a própria capacidade, a cada qual conforme a sua própria necessidade”. Do lado do meu cliente, a sua necessidade particular concreta e a sua capacidade de explicá-la. Do meu lado, a necessidade de compreender a particularidade do seu desejo, de acordo, é claro, com a minha capacidade para atendê-lo, quiçá superá-lo. Uma vez que todos nós temos necessidades e capacidades particulares, é apenas com os olhos nos olhos que duas pessoas podem compartilhar as suas sem que uma esteja acima da outra.

Outra subversão impertinentemente mantida viva por alguns artesãos e os seus clientes é a redução do consumo. O destino fatal de qualquer coisa comprada em uma loja é ser substituída por outra de acordo com os ditames do mercado. Afinal, aquilo que compramos, mas que não foi feito especialmente para nós, por não suprir desejo particular algum, não encontra espaço de permanência nas nossas vidas.

Agora, quando temos, por exemplo, uma camisa feita especialmente para nós, nascida de algum desejo nosso e materializada de acordo com as nossas medidas – de corpo, de valor etc. -, substituí-la por algum novo lançamento da moda perde qualquer sentido. Uma bolsa, uma calça, um sapato ou um móvel, desde que feitos de acordo com as nossas necessidades particulares, com efeito nos acompanharão, senão por toda a vida, pelo menos por muitos anos, em saudável detrimento à obsolescência programada da moda consumista-escravizadora.

Infelizmente, o mundo será uma senzala do capital enquanto as máquinas de Coca-Cola e as lojas da C&A produzirem as muitas coisas de que necessitamos para viver. Entretanto, antes de propor que a relação artesão-cliente é solução para esse problema, é preciso ser dito que tal relação é anterior ao capitalismo. Aliás, foi contra esse tipo de organização econômica particular e pessoal que o capitalismo inventou a economia globalizada e impessoal. Sendo assim, a virtuose artesanal não deve ser vista como solução ao capitalismo, mas, ao contrário, este é que deve ser visto como o vício que impede a virtude daquela.

De qualquer forma, comprar pronto aquilo que desejamos, independente de quem o produza e de que necessidades tenham sido levadas em conta nessa produção, outra coisa não faz senão nos manter escravos do capital, o senhor do consumo sistemático. Entretanto, embora eu, no mais das vezes, seja um desses escravizados, quando produzo uma bolsa, uma calça, um móvel ou um cenário para alguém, sinto-me produtor não só de realidades materiais, mas de realidades ideais, nas quais, aliás, eu e o meu cliente somos os senhores, virtuosamente sem escravos.

Eu enquanto Blissett

Apesar de ter lançado vários livros, dentre eles Guerrilha Psíquica, e também assinado várias intervenções performáticas “worldwide”, Luther Blissett não é uma pessoa. É, generosamente, um espaço, vazio e universal, no qual qualquer um de nós pode atuar aquilo que, sob os nossos nomes batismais, não encontra espaço de atuação. Toda aparição de Blissett é a aparição de alguém qualquer. Porém, tudo o que alguém qualquer quer que apareça quando aparece em forma de Luther Blissett é aquilo que não aparece enquanto o si$tema funciona conforme o e$perado.

A primeira aparição de Blissett foi na Bolonha de 1994, assinando a notícia de que muitos animais haviam sido esquartejados e suas partes espalhadas pelos parques da cidade. A imediata repercussão da mídia deixou os italianos em polvorosa. Porém, um dia depois, esclarecido que nenhum animal havia sido morto, restou tácito que a mídia sabia muito mais ser sensacionalista do que verídica. Verdade alguma revelaria tal realidade; pessoa determinada nenhuma tornaria as ‘desnotícias’ da mídia em uma notícia tão palpável. Luther Blissett nessa causa!

Inspirado por essa tática de guerrilha psíquica, em 2002 a pessoa qualquer que eu sou foi Luther Blissett. Na época, eu era um estudante de arquitetura revoltado com os ditames do mercado imobiliário que, impertinente, constrangiam-me desde o início da minha formação. “Não, você não pode projetar um prédio dessa forma pois o mercado nunca o pagará”, diziam-me os meus professores, representando o si$tema em sala de aula. De nada adiantava eu contra argumentar dizendo, por exemplo, que era justamente a faculdade o lugar para se experimentar aquilo que no mercado de trabalho não encontraria parceiro$. Eu estava condenado a aprender aquilo que a mais vil das medidas, isto é, o capital, precisava que eu aprende$$e.

Então, secretamente, no meio de uma madrugada gélida do Sul, montei uma instalação no Departamento Acadêmico da Arquitetura da UFRGS. Em um monolito imitando um bloco de concreto, crucifiquei, numa cruz de sangue, uma galinha depenada devidamente identificada por um crachá que dizia: L. Blissett CREA n° 171 (CREA é o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura). Do ventre do animal dilacerado escorria sangue e caiam vísceras – simbolicamente, as mesmas que eu sentia arrancadas de mim, diariamente, nas aula que me tornavam um arquiteto devidamente si$tematizado. Deixei o local ainda na escuridão, sem que ninguém me visse, para retornar à paisana horas depois para às aulas.

Na minha ausência estratégica, quando os alunos abriram o D.A. e se depararam com a instalação, pelo fato de não saberem do que se tratava, nem como aquela coisa havia aparecido ali, não sabiam o que fazer nem como reagir. Restou-lhes polemizar acerca daquilo que não compreendiam. Quando, às 9hs da manhã, eu retornei à faculdade, aproximei-me do burburinho que se formou em volta da galinha arquiteta estripada, e um colega, muito indignado, disse, não só a mim, mas a quem estava perto dele: “eu acho um absurdo alguém querer se expressar e não assumir o que faz”. Outro disse: “eu não acredito em manifestação sem assinatura real”.

Como ninguém sabia que era eu o autor da obra, eu nada precisava dizer em minha defesa. Em troca, pude dar espaço para eles darem vazão às suas críticas ao até então não criticado nem imaginado por eles; expressões que sem um intervenção como aquela ficariam escondidas inclusive deles mesmos. Se a instalação tivesse sido anunciada previamente, lançada num verni$$age si$tematizado, e assinada por alguém que se responsabilizasse por ela, os meus colegas poderiam apenas gostar ou não do que viam, mas não se sentiriam comprometidos a esclarecer a eles mesmos o que viam e o que sentiam. Como a bola estava com ninguém mais além deles, as suas contribuições, de certa forma, eram as muitas assinaturas da obra.

Uma hora depois, decidiram tirar a galinha, pois alguns alunos estavam enjoando como cheiro. Deixaram, contudo, a estrutura ensanguentada e o crachá. Seria a carne morta a mais angustiante crítica? Pelo jeito sim. A minha instalação contra a arquitetura escravizada pelo mercado imobiliário, que tinha justamente na galinha crucificada no concreto a sua expressão mais pungente, findou sem a galinha, ou seja, sem o escravo da relação de escravidão. Em pé e à mostra, apenas o concreto e o crachá arquitetônicos, isto é, apenas os escravizadores.

O anonimato lutherblissettiano não só me permitiu atuar mais livremente, como também apreciar as opiniões dos meus colegas, sem filtro algum, em relação àquela atuação. Agora, se eu tivesse assinado a obra, conforme muitos deles queriam, jamais teria conhecido o que eles realmente pensaram dela, mas apenas aquilo de sistemático que todos tinham a oferecer, como ocorre com tudo aquilo que vemos a partir dos nossos olhos batizados com os nossos nomes.

Quais foram as minhas conclusões? Ora, primeiramente, que as pessoas não gostam de lidar com algo cuja autoria elas não podem atribuir a alguém. A ideia de Deus, aliás, é a prova máxima disso, pois não basta a natureza existir por si só, tem de ser obra de um criador determinado. Em segundo lugar, que ficar intrigado com alguma coisa que ao mesmo tempo causa repulsa – a carne morta e em putrefação – é angustiante para a maioria. Porém, tirando isso, o resto é suportável – o concreto ensanguentado e o crachá de nº 171.

Entretanto, em terceiro lugar, comprovei que a ação-putrefação e$tratégica do mercado imobiliário dentro da universidade que tanto me angustiava não era compartilhada pelos meus colegas. Em vez disso, eles faziam consigo mesmos aquilo que fizeram com a minha galinha dilacerada, isto é, suprimiam os seus próprios dilaceramentos acadêmicos para que o concreto e a carteirinha de arquitetos deles pudesse seguir expostos no hall nobre da arquitetura.

Obviamente, eu não mudei o mundo nem os meus colegas. Nesse sentido, Luther Blissett parece deixar a desejar. Todavia, por outro lado, somente através desse famoso anonimato eu pude expressar, da forma como me vinha, o modo como eu sentia a realidade ao meu redor. Nesse outro sentido, Blissett não só dá o que desejar, como também é a forma psiquicamente guerrilheira para fazer das nossas impressões balas impertinentes&inimagináveis contra os nosso inimigos, mesmo quando eles estão vencendo a batalha.

Há tempos eu não apareço como Luther Blissett, entretanto, nunca deixei de sê-lo, pois ser Luther Blissett é saber que algo inimaginável&incompreensível precisa ser feito sempre que houver um psiquismo sem livre espaço para se expressar. Contra o latifúndio do si$tema que só cria espaço para a sua própria expressão, guerrilha psíquica! Luther Blissett, eternamente.

Grécia descalça sobre espinhos europeus*

A Grécia a.C. levou democracia, arte, arquitetura, ciência e filosofia aos confins do mundo antigo numa empresa epopeica&histórica chamada de Helenismo, que quer dizer “viver como os gregos”, concretizando assim o ideal do seu grande invasor, Alexandre, o Grande. A difusão da cultura Grega, entretanto, não ficou restrita àquela época e região, mas fez carreira exitosa, mundo e futuro afora, merecendo o longevo título “o berço da civilização”. Dois mil anos depois, a Hélade agoniza, não naquele berço esplêndido, mas num leito crísico&econômico atualíssimo, por cujo pernoite, aliás, ela não pode pagar.

Em um mundo no qual a economia faz es vezes da democracia, da arte, da arquitetura, da ciência e da filosofia juntas, a Grécia é novamente invadida, só que agora o Alex da vez é o Capital, o Grande. Diferente de há 2300 anos, os atuais dominadores-credores que se assenhoram da Grécia não querem saber de peculiaridades suas algumas, para então disseminá-las “Worldwide”, mas sim de levarem o seu “World Very Wild” econômico-globalizado para lá, para então legarem os parcos Euros gregos à ‘liberabília’ mundial.

O mesmo mundo que, na antiguidade, ganhou dos gregos a civilização, na contemporaneidade, não se importa em assassinar essa mãe civilizadora para saciar a sua sede, contudo insaciável, de cifrões. O império do capital, portanto, outra coisa não representa senão a mais abjeta barbárie – cujos bandos partem dos bancos – marchando à passos econômicos na ágora globalizada do exato agora. Hoje em dia, basta fazer do dinheiro um Deus para que a barbárie reluza palidamente um verniz de civilidade. Todavia, como diz um velho provérbio grego, “As vestes não fazem o sacerdote.”

O bárbaro-mor da vez é o perverso Banco Central Europeu, para quem não é problema algum devassar uma nação inteira, precisamente porque ele é o primeiro banco central do mundo cuja sagaz centralidade dispensa um território e uma soberania nacional, ou seja, uma nação. Ora, por que um banco que não representa nenhum país determinado se privaria de arruinar um país historicamente determinado como a Grécia? Ademais, uma vez vitorioso no ‘economicídio’ da moeda mais antiga do mundo, o Dracma grego, o euro, essa vil moeda sem país, só precisa seguir ‘eurobarbarizando’.

Agora, se no passado a Grécia legou ao mundo a sua cultura, de valor inédito&inestimável, no presente, ao contrário, é o mundo que leva a ela a sua cultura, de valor liberal&globalizado, cuja arquitetura, arte, ciência e filosofia trata sobretudo do capital. Entretanto, o que pode a Grécia novamente legar ao mundo a partir desse angusto legado que a atualidade lhe impõe? Pobreza não é, pois com isso o mundo já convive há muito tempo. Calote tampouco, afinal, esse também já é um fantasma demasiado internacionalizado.

Ora, se lembrarmos que a polis grega antiga foi o berço da política, cujo lastro democrático acolhia os cidadãos e os seus problemas, para, mediante a palavra, resolvê-los diretamente, o que a metrópole grega contemporânea pode voltar a disseminar sobre o mundo é a arte, assaz ausente hoje aliás, de solucionar enigmas globais com o verbo local. O Eurobanco, obviamente, não quer cambiar capital por discurso nenhum. Porém, ao repetirem impertinentemente que não irão pagar conforme quer o Bárbaro Central Europeu, os gregos, retórica&civilizadamente, fazem da Europa inteira a sua nova assembleia política. Os gregos contemporâneos parecem não ter esquecido de um provérbio ancestral: “É preferível ser dono de uma moeda a ser escravo de duas”.

Na acrópole ateniense, mulheres-colunas-gregas chamadas de cariátides sustentam em suas cabeças, há 2500 anos, o peso do templo de Erecteion, consagrado a Palas Atena, deusa da civilização, da guerra, da sabedoria, da artes, da justiça e da estratégia. Para Atena, a recente pressão do BCE sobre a Grécia é apenas um vento invernal. Já as cariátides, d o topo mais nobre da Hélade eterna, simbolizam perenemente que os gregos e as gregas têm dentro de si um ‘daimon’, isto é, um espírito-guardião, capaz de suportar, não só o peso do tempo, mas também o peso dos templos, sejam eles às divindades, sejam os do capital, afinal, como diz outro provérbio grego, “São os cães maus que morrem dolorosamente”.

*do provérbio grego “Como você vai andar descalço sob os espinhos?”

Rainbow Blocs

A paleta de cores do já clássico&histórico junho de 2103 tupiniquim variava em cinquenta tons de black, cujo matiz mais radical era o bloc. Essa mono tonalidade massiva, contudo, não realçou uma vitória assaz colorida dada naquele mesmo ano, qual seja, o reconhecimento legal dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. Já o colorido 26º dia de junho de 2105, cuja paleta popularíssima é o arco-íris gay gratuitamente oferecido pelo Facebook, comemora aquela vitória, entretanto, na festa da aprovação do casamento igualitário nos EUA.

Se junho de 2013 levou multidões das redes sociais às ruas, junho de 2015, por sua vez, traz as pessoas das ruas – das encruzilhadas de um congresso retrógrado, das vias de mão única do evangelismo malafáico, dos becos sem saída do preconceito bolsonárico – ao Facebook. Porém, a peculiaridade da manifestação-comemoração atual é trocar os coquetéis molotov caseiros de 2013 por bombas arco-íris em forma de filtro instagrâmico. Os manifestantes atuais protestam em cores! O jornalista Vitor Angelo, no seu Blogay, sacou sagazmente que “os avatares coloridos são um repúdio ao estado das coisas no Brasil”.

Poucas horas depois de anunciada a nova lei americana, os murais do Facebook eram um ‘bloc’ massivo de seis cores arco-íricas, borealmente solidário à igualdade, por um lado, e cromoterapicamente crítico à desigualdade, por outro. Entretanto, nem tudo são cores! Muitas pessoas estão criticando opacamente a colorização facebookiana, dizendo que se trata de mais uma onda colonizadora&imperialista, porém, desta vez, surfada por ninguém menos que Mark Zuckerberg, dono do Facebook.

No entanto, assim como na Natureza é a luz que brilha, mas não as trevas, as cores – que são brilhantes expressões da luz! -, juntas, em número de seis, e adotadas por milhares de usuários do Facebook, filtraram, reluzentemente, os cinquenta tons de cinza dos seus críticos de plantão, cujos matizes extremos são, de um lado, a densa escuridão do preconceito arraigado, e, de outro, o pálido lusco-fusco da indiferença em relação àquele.

Se a maré alta das seis cores mais populares no Facebook desse final de junho de 2105 ainda não inundou&pintou as ideias de determinadas pessoas, paciência imediata, mas resistência eterna! Afinal, é justamente contra estas telas-avatares fundamentalistas&antiaderentes, que não recebem o vermelho-vida, o laranja-poder, o amarelo-luz, o verde-natureza, o azul-arte e o violeta-espírito, que os pincéis-manifestantes da onda colorida devem insistir. Ora, se não fosse o breu do preconceito historicamente construído contra o amor livre, as cores da igualdade não seriam apenas as do arco-íris, mas as dos diversos tons-de-pele humanos.

No entanto, a luz e os seus espectros coloridos há muito se digladiam com a escuridão. Na Alemanha do século XVI, durante a guerra dos camponeses contra a aristocracia, a bandeira arco-íris foi empunhada pelo sacerdote Thomas Muentzer como sinal de esperança de uma nova era. Nos anos 1960, a bandeira colorida era usada como símbolo pacifista pelos italianos. Porém, foi Gilbert Baker, na San Francisco de 1978, que, reduzindo as cores da antiga bandeira de oito para seis, deu ao mundo o ícone do movimento LGBT que, hoje, matiza irreverentemente as ‘timelines’ facebookianas numa cruzada virtual para libertar o amor-livre-camponês do preconceito-homofóbico-aristocrata e anunciar a esperança de uma nova era de paz.

Por que, então, resistir ao poder das cores? Como não aderir, sem preconceitos adoecidos e com uma salutar esperança epocal, à força revolucionária que historicamente resiste nas faixas do arco-íris? Desculpem-me, mas, resistir a elas, hoje, é ser um vândalo destruidor da construção de uma igualdade mui necessária. É fazer como o Black Bloc de 2013 que, investindo mormente contra paradas de ônibus e Bancos Itaús, teve, contudo, de pagar o amargo preço de um congresso ainda mais reacionário, que, por conseguinte, legou-nos uma indigesta escalada religiosa-homofóbica a qual ninguém esperava nem desejava. Porém, não foram só os Black Blocs que pagaram esse preço, mas toda a sociedade.

Sendo assim, para que esse junho de 2015 possa reduzir, quiçá encerrar a conta evangélica-homofóbica aberta na sequência daquele junho de 2013, adesão irrestrita às cores, venham elas do arco-íris da Natureza, do antiaristocratismo camponês-alemão do século XVI, do pacifismo ítalo-hippie dos 1960, do LGBTismo californiano dos 1980, ou ainda dos filtros digitais facebookianos de Zuckerberg. Quanto mais não seja, porque, por uma ironia do destino nada gay, o uniforme de guerra histórico contra o preconceito ainda é o mesmo que a roupa de festa da comemoração da igualdade entre os amantes, sejam eles os brasileiros desde 2013, sejam os americanos desde 2015. Que possamos ser, todos&irrestritamente, Rainbow Blocs!