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Empresário-de-si-mesmo versus Proletário-mesmo

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A expressão “proletário-de-si-mesmo” seria algo redundante, uma vez que o proletário, de certa forma, já é um “si-mesmo”: aquele que, solitariamente, vende sua força de trabalho para sobreviver, e assim mesmo permanece, mais ainda, assim deve permanecer para o bem do capitalismo. Se aqui invisto nesse pleonasmo é para criticar o contemporâneo, e cada vez mais investido, conceito de “empresário-de-si-mesmo”: sujeito que, como o proletário, também vende a sua força de trabalho no mercado, mas que, antes disso, e sobretudo para isso, já “trabalha”, investe, árdua e não-remuneradamente, para estar a altura das necessidades daqueles que, com sorte, comprarão a sua força de trabalho para explorá-la.

Antes de prosseguir, é importante percorrer os significados históricos da palavra “proletário”. A expressão “proletari” surge na Roma antiga para designar os cidadãos da classe mais baixa que, despossuídos de quaisquer bens materiais, tinham por única função social gerar prole para ser usada pelos exércitos. Muitos séculos mais tarde, Karl Marx reutiliza o termo para, comezinhamente, diferenciar os trabalhadores dos burgueses capitalistas, porém, mais especificamente, para diferenciar os trabalhadores conscientes do seu papel social e histórico daqueles que não adquiriram tal consciência.

Marx, compreendendo, de um lado, que o motor da História é a luta de classes – como lemos no “Manifesto Comunista” -, e, de outro lado, que a riqueza social é medida com base no tempo de trabalho necessário para produzir mercadorias – ideia presente em “O Capital” -, enxergou nos trabalhadores, os indivíduos despossuídos de bens que no entanto produzem a riqueza, a classe que tem por destino vencer a substantiva luta das sociedades humanas. Mas isso, prega Marx, somente se o trabalhador se proletarizar. O eternizado lema dessa revolução jaz no Manifesto: “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”

Dessa perspectiva, é fácil entender porque, atualmente, a “identidade proletária” é sistematicamente desmantelada pelo sistema capitalista, afinal, este sabe, como Marx, que se seguir comprando a força de trabalho daqueles que, unidos, irão derrotá-lo, estará com isso dando um tiro no próprio pé. O ideal de “empresário-de-si-mesmo”, ao contrário, cinde os trabalhadores em unidades autônomas e competidoras entre si, destruindo assim qualquer possibilidade de uma consciência global entre aqueles que produzem a riqueza das suas sociedades.

O problema mais grave, contudo, é o fato de os próprios trabalhadores contemporâneos rejeitarem a sui generis identidade revolucionária que tão somente lhes cabe. Vestidos com o sofisticado uniforme de “empresários-de-si-mesmos”, são, na verdade, demasiadamente reacionários: reencarnam os seus antigos ancestrais romanos que, assim como eles, não são senhores da riqueza social, permanecendo como meros “produtores de população”, só que agora para a “guerra mundial” do capital. Rejeitar a identidade proletária tem um amargo preço: abrir mão da revolução.

Marx cunhou a expressão “lumpenproletariat” (lumpemproletariado) para designar os trabalhadores que, sem consciência de classe, ou o que é o mesmo, sem unirem-se a outros trabalhadores em um grande corpo proletário consciente, atendiam subservientemente aos interesses da burguesia. Se em alemão “lumpen” significa “trapo”, “farrapo”, a sua célebre significação marxiana é: “seção degradada e desprezível do proletariado”. A radical escolha do trabalhador, portanto, é, ou unir-se, conscientizar-se, proletarizar-se, ou, em vez disso, desunir-se, ser eternamente explorado, lumpemproletarizar -se.

Essa besta capitalista chamada “empresário-de-si-mesmo” tem o vício de fazer da virtude proletária um trapo, um farrapo. Hoje em dia, cada vez mais vence a ideia de que é degradante para um trabalhador identificar-se com a condição de trabalhador, e, pior ainda, com a de proletário. Só que, sendo absolutamente marxista, não é difícil concluir que essa “nova ideologia” esconde o fato de que o “empresário-de-si-mesmo”, essencialmente, é um lumpemproletário: aquele que mais subservientemente está a serviço da burguesia.

Sem embargo, aqueles que gastam, em média, trinta anos de suas vidas, sem dizer uma imensa quantidade de dinheiro, para estudarem, especializarem-se, falarem no mínimo três idiomas, vestirem-se adequadamente, responsabilizarem-se privadamente pelos seus planos de saúde e de aposentadoria, e tudo isso apenas para poderem vender as suas forças de trabalho à burguesia para, doravante, serem explorados por ela como qualquer trabalhador, são o que senão a “seção degradada e desprezível do proletariado” que, lumpenproletariamente, faz tudo o que seus opressores burgueses mais querem?

O “empresário-de-si-mesmo” é um monstro social do mesmo calibre que a “classe média”. A classe dominante, para mais-dominar, precisou nublar o fato de que as sociedades são constituídas por duas únicas classes: a dominante e a dominada. Então, inventou essa “classe” intermediária, que, na verdade, é constituída por indivíduos da classe dominada, que, entretanto, não mais se reconhecem como tais. São realmente dominados, porém, ideologizadamente dominantes. Não se unem mais aos interesses de seus pares, mas, burra e manipuladamente, aos de seus ímpares.

O pecado capital do “empresariado-de-si-mesmo” está em desistir do poder sui generis que Marx enxergou no proletariado, esse corpo de trabalhadores autoconsciente do seu papel histórico e essencialidade social que, somente enquanto proletariado, unido, é o agente da revolução que dará cabo da exploração que sofre. O “empresário-de-si-mesmo”, com efeito, está muito mais próximo do baixo cidadão romano, cativo da rígida e tradicional estratificação social antiga, que se já não tinha chance de mudar a sua condição, menos ainda podia revolucionar a sua sociedade.

Agora é a ocasião de desinvestirmos de vez a redundante expressão “proletário-de-si-mesmo”, usada inicialmente para criticar a besta social chamada “empresário-de-si-mesmo”. E isso para defender que enquanto “si-mesmo” um trabalhador é apenas um lumpemproletário. É precisamente por deixar de ser “si-mesmo” para formar um corpo unido e consciente com os demais “si-mesmos” como ele que o trabalhador deixa de ser um “lumpen”, um trapo velho e desprezível nas mãos daqueles que compram a sua força de trabalho, e veste a farda com a qual revolucionará a sociedade.

Já o “empresário-de-si-mesmo”, ao contrário, é um “si-mesmo” deliberada e demasiadamente ensimesmado; isolado dos seus iguais, e o que é pior, concorrente deles. Em outras palavras, é um lumpemproletário que se enxerga como burguês – assim como a classe média é a classe dominada que se vê como dominante. O único “si-mesmo” que pode existir com alguma dignidade social é o trabalhador. Não obstante o sistemático furto dessa dignidade pelos “detentores dos meios de produção”, isto é, os burgueses, os trabalhadores deve proletarizarem-se. Por isso, em vez de “proletários-de-si-mesmos”, e de modo algum “empresários-de-si-mesmos”, todos nós que trabalhamos devemos ser, em primeiro lugar, “proletários-mesmos”!

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As palavras, a política e as coisas.

PALAVRAS POLÍTICA

Na obra-prima “Política e tragédia: Hamlet, entre Hobbes e Maquiavel”, o filósofo argentino Eduardo Rinesi expõe um dos fundamentos do pensamento político do filósofo inglês Thomas Hobbes, “a questão das palavras”, que acaba ocultado pelo ilustre e imenso edifício teórico desse autor, simbolizado pelo Leviatã, que trata sistematicamente da forma do Estado absoluto e soberano. Atentar a esse soterrado “alicerce” hobbesiano, como veremos, é exercício urgente para quem quer tocar o núcleo quiçá mais imanente da política.

Rinesi ressalta que a preocupação primordial de Hobbes é com as palavras. Melhor dizendo, na relação que elas têm com as coisas que nomeiam. Segundo o filósofo argentino, a problemática que levou o inglês a conceber o seu Leviatã está no fato de as pessoas, embora usem as mesmas palavras, na maioria das vezes discordam das coisas que essas palavras designam no mundo. E, para ele, a política existe justamente por conta desses hiatos: para fazer com que as pessoas concordem com as coisas que as palavras nomeiam.

Tomemos como exemplo as palavras: “liberdade”, “justiça” e “democracia”. Por mais que sejam as mesmas nas bocas de todos, no mundo real elas significam coisas muito distintas. O que na boca do capitalista significa “liberdade para vender a força de trabalho”, no mundo real do proletariado representa uma quase escravidão. Trazendo a tona um exemplo contemporâneo, o significado de “justiça” para o juiz/celebridade Sérgio Moro significa o contrário para grande parte da população brasileira. E “democracia”, que para o povo significa, ingenuamente, “o governo do povo”, para a burguesia, no entanto, sempre significou o sistema político mediante o qual é ela quem governa o povo mais livremente.

Para Hobbes, ressalta Rinesi, se as pessoas concordassem com as coisas que palavras tais como “liberdade”, “justiça” e “democracia” designam, não haveria necessidade de política. O (con)trato de todos com todos – a ordem – estaria dado. Porém, é precisamente por conta da desordem entre as palavras e as coisas que elas deveriam significar que as pessoas entram em conflito. O caos semântico é o que a priori estabelece a célebre “guerra de todos contra todos” hobbesiana. Só que essa batalha, para não ser bárbara e sim política, precisa se dar no campo minado das próprias palavras.

Lembremos do surgimento dessa coisa chamada “política” na antiguidade grega. Somente após aqueles helenos abandonarem o conflito físico com o qual defendiam os seus interesses particulares para então disputarem na esfera da palavra foi que o despótes, isto é, o bárbaro, se converteu em polités, ou seja, em político, civilizado. A relação política que travaram entre si produziu não só a concordância em relação às coisas reais que as suas palavras significavam, como também a coisa que chamamos de “civilização”.

Hobbes, porém, sabia que tal concórdia em torno das palavras, sempre que existia, era frágil, instável demais. Não que para ele as próprias palavras fossem as culpadas, senão que eram as próprias pessoas, suas verbalizadoras, que naturalmente pervertiam o que elas significavam em função de interesses particularistas/egoístas. Não nos esqueçamos que, para o inglês, Homo homini lupus (O homem é o lobo do homem)!

E Rinesi parte desse equívoco semântico que sempre instabiliza as relações humanas para desmistificar a ideia de que a pré-política “guerra de todos contra todos”, ou o que é o mesmo, o famigerado “estado de natureza” hobbesiano, seja um estágio ancestral, anterior à civilização, do qual, uma vez súditos do onipotente Leviatã, estaríamos devidamente protegidos. Ao contrário, o “estado de natureza” no qual as pessoas se embatem – em função do que significam as palavras – é constantemente presente. E é em função dele aliás que devemos ser políticos com a mesma constância. O provérbio popular “matar um leão por dia”, parafraseado hobbesianamente, ficaria assim: domar um homo homini lupus por dia, mas com um chicote político cujo “sustenido” sejam palavras.

Empreitada do tamanho da civilização que Hobbes só conseguiu sistematizar erigindo o seu onipotente Leviatã, isto é, mostrando que, em suma instância, só conseguiremos concordar com o que significam “medo”, “morte” e “violência”, presentes no hobbesiano fundamento subjetivo do Estado, qual seja, “o medo da morte violenta”, se tivermos um soberano invencível que nos prive, objetivamente, do direito de mudarmos as coisas que concordamos em colocar sob as palavras que pronunciamos em conjunto.

Caos semântico contemporâneo, por exemplo, acontece com os significados de “mulher” e “homem”. O atual movimento envolvendo a “questão de gênero” altera o quiçá mais longevo trato humano: aquele que dizia que homem é quem nasce com falo, e mulher, quem nasce sem. Não que seja a priori condenável a modificação desses conceitos, afinal, o devir histórico impõe necessidades, senão que, a posteriori, devemos enxergar nisso como passamos a não mais concordar com as coisas que nós mesmos colocamos sob as nossas palavras.

A lente hobbesiana colocada sobre a presente questão de gênero magnifica o fato de que a transexualidade abriu brechas semânticas – angustiantes para uns, libertárias para outros – entre as velhas palavras “homem” e “mulher” e as coisas que elas até então representavam. Mais importante, contudo, é a sabedoria de Hobbes no sentido de apontar que a superação desses inevitáveis hiatos deve ser sempre política: é no campo das palavras, do diálogo, do (con)trato, e não no da violência física que devemos permanecer até, com sorte, voltarmos a concordar com o que, no caso, “homem” e “mulher” devam significar. A vitória transexual, portanto, equivalerá a todos concordarem que nem toda pessoa que nasce com um falo é homem, e nem toda que nasce sem, é mulher.

Sim, somos livres para mudarmos as coisas que até então estiveram significadas pelas nossas palavras, afinal, elas sempre foram tão somente nossas. Não obstante, devemos saber que isso tem um custo que somente pago com a moeda política evita que entremos numa sanguinária “guerra de todos contra todos”. Se formos políticos, civilizados a ponto de concordarmos, por exemplo, que “homem”, como dizia Platão, é “um bípede implume de unhas largas”, e ninguém discordar, a paz, pelo menos em torno dessa coisa/palavra, estará dada.

Universalizando essa lógica, a “paz total entre os homens”, a “civilização absoluta”, ou, dito ainda de outro modo, a domesticação completa do Homo homini lupus, será possível somente quando concordarmos, todos, que sob cada palavra há uma única e inequívoca coisa. Tarefa impossível, já sabia Hobbes. Por isso mesmo: mais política! Pragmaticamente falando, nosso trabalho político mais urgente seria concordarmos com o que significam: “natureza”; “igualdade”; “sustentabilidade”; “justiça”; “direitos”; só para citar algumas das nossas palavras que significam coisas perigosamente distintas para uns e outros.

Se não fizermos nós mesmos, natural e horizontalmente, essa politicagem, Hobbes nos diz que só resta criarmos um ser artificial, o Leviatã, que nos obrigue, verticalmente, a tal. Quando o Estado, do topo do seu monopólio da violência, lança bombas de gás lacrimogêneo contra, por exemplo, trabalhadores que se manifestam por salário, esse mesmo Estado está fazendo o seu trabalho – sujo, baixo, é preciso dizer – de obrigar todos a entenderem que, sob a palavra “manifestante”, em vez da “coisa trabalhador”, está a “coisa desordem”, ou a “coisa ameaça”.

Por isso devemos empreender nós mesmos, antes de nossos monstros artificiais, esse árduo trabalho político, polido, civilizado, de concordarmos com as coisas apontadas pelas nossas palavras. Do contrário, essa necessidade intratada acaba por produzir: ou a imanente “guerra de todos contra todos”; ou o transcendente Leviatã, que todavia tratará dela à sua maneira sobrehumana, demasiadamente próxima da desumanidade. Se, conforme Hobbes e Rinesi, quando discordamos do que significam as coisas nomeadas pelas nossas palavras é que precisamos ser políticos, tanto melhor que nós mesmos possamos produzir o consenso ausente, pois tanto pior é a sobre presença tirânica do Leviatã fazendo isso por nós.

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O animal político Lula

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Lula, livre, ganha. Simples assim. Em popularidade, em fama, em importância histórica, e, o que mais preocupa as atuais forças reacionárias brasileiras, nas urnas. E é em função dessa imbatível dianteira política que o ex-metalúrgico está sendo, nas palavras dele, “massacrado publicamente” pelas elites. Só que as – apressadas – pesquisas eleitorais estão mostrando que Lula, como se diz, “quanto mais apanha, mais cresce”. Sem dizer que o tal “massacre” mais que tudo denuncia os interesse espúrios de seus “carrascos”. Lula estaria, estrategicamente, “dando a cara a tapa”, tanto para se agigantar quanto para apequenar seus inimigos?

O que assistimos entre Lula e seus oponentes é um círculo – virtuoso para aquele; vicioso para estes – no qual quanto mais Lula é atacado como objetivo claro de ser excluído do próximo pleito presidencial, mais ele repete que não só concorrerá à presidência da república, como principalmente a vencerá. “Que eles rezem para eu não concorrer à presidência em 2018, porque se eu concorrer, eu vou ganhar!”, diz o ex-presidente, seguro de si. Em resposta, seus inimigos recrudescem ainda mais, lançando contra ele novas e maiores ofensivas e difamações, e assim por diante. De “ladrão de pedalinho” à “chefe da maior organização criminosa da história do país” Lula foi e é chamado pelos que o querem definitivamente fora da política.

Agora, por que Lula não se cala, momentânea e estrategicamente, deixando de repetir, reativamente, que concorrerá à próxima eleição presidencial e a vencerá, se, com isso, atiçaria menos os pavores e as investidas de seus inimigos elitistas? Por que Lula coloca, ativamente, mais lenha na fogueira, justamente no seu momento mais ardente? Por que anuncia com tanta antecedência uma provável candidatura se isso faz apenas com que seja mais e mais “massacrado”?

Seguindo a lógica do “quanto mais apanha, mais cresce”, “dar a cara a tapa”, em se tratando de determinados “agressores”, no caso atual, uma elite desavergonhadamente corrupta e antidemocrática, é, para um animal político do calibre de Lula, “dar a cara ao povo”, “dar a cara à lei”, e, consequentemente, “dar a cara ao voto”. A “reação” pública de Lula ao “massacre” outrossim público que sofre é estrategicamente proativa: é uma ação antecipada que evita ou resolve problemas futuros. Expor-se e elevar-se intrepidamente é o passo que até aqui mantém Lula na dianteira. “Quem não deve não teme” é o lema que ele parece levar a cabo.

Não obstante, qual seria “o problema futuro” que Lula estaria tentando evitar com sua proatividade política? A resposta quiçá mais política de todas, dita pelo próprio Lula, é a seguinte: “Mais do que nunca, sou um homem de uma causa só. E esta causa se chama Brasil”. Contra os críticos do “populismo de esquerda” do ex-líder sindical, temos que, depois de se eternizar como “o maior presidente da história do Brasil” e como “o maior líder mundial do início do século XXI”, Lula pode sim, mais do que nunca, esquecer de si e colocar o Brasil na frente; coisa que oligarca algum jamais conseguirá fazer.

Experiência empírica do que é ser povo não tem preço. Passar fome e sede na infância; ser impedido, social e economicamente, de estudar; ser um autêntico – e explorado! – proletário já na adolescência; ser marginalizado, e até mesmo preso por se dedicar à construção de uma força sindical potente no Brasil; e, como se não bastasse, no meio do seu árduo caminho à presidência, ser “golpeado eleitoralmente” para que o “Marajá caçador de marajás” Fernando Collor de Melo vencesse o pleito presidencial de 1989; tudo isso só contribui para que Lula soubesse como nenhum outro presidente o que é o Brasil de verdade, e, sobretudo, que Brasil precisa ser construído para que o povo – isto é, para que gente como o próprio Lula – não permaneça sistematicamente excluído.

Último capítulo da exibição pública do que me atrevo a chamar de “a ciência empírica de Lula” em respeito à realidade brasileira se deu nesse domingo, 19 de março de 2017, na “Inauguração Popular” da Transposição do Rio São Francisco. Obra prometida ao povo nordestino desde a época do Império que, entretanto, somente Lula, que sofreu concretamente com a carência hídrica daquela região, foi capaz de tirá-la do mundo das ideias; mais ainda: do mundo das mentirosas promessas eleitoreiras. Só ele não é demagógico ao dizer que “nenhum doutor” – referindo-se aos governantes sempre bem-hidratados vindos das elites – “jamais teve consciência da real necessidade de se levar água ao nordeste”.

E, quando, setenta anos depois de passar sede no nordeste, o ex-presidente, com os pés dentro do “novo rio” que ele construiu a partir do “Velho Chico” (o Rio São Francisco), encheu seu chapéu com a água que fez o “Sertão virar mar” e a jogou para cima, qual chuva republicana, Lula fez, mais uma vez, a façanha de juntar inextricavelmente o real e o simbólico em um único ato. E é essa a singular visceralidade do um autêntico animal político que deve ser “abatida” selvagemente por aqueles – as elites – que tanto mais se beneficiam quanto mais distantes estiverem a realidade do Brasil e a ideia de Brasil.

O fato de Lula estar se “presidencializando” novamente diante da atual ofensiva das elites é a sua virtuosa estratégia para mostrar que quem menos merece decidir o futuro do país são justamente os seus algozes. Pode ser que o velho Lula, devido ou à idade ou aos escusos estratagemas de seus oponentes, morra antes das próximas eleições. Mas ser presidente não parece, melhor dizendo, não precisa mais ser o grande e final objetivo dele. O fundamental de sua atual pecha pública talvez seja mostrar ao povo, a todos, a violência, o despotismo, a injustiça com que as elites o tratam, que, com efeito, é a mesma com que tratam o povo, e historicamente.

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O bom Mal

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Mesmo que, conforme diz o provérbio popular, haja males que vêm para o bem, um Mal, em si mesmo, nunca é bom. Talvez a única coisa boa de uma Mal é quando ele é mau inequivocamente, pois, desse modo, estamos todos conscientes dele. No entanto, quando o Mal não é totalmente mau, isto é, quando algumas pessoas não o consideram dessa forma, ou, o que é pior, acham-no bom, proveitoso, de alguma forma e para algum propósito particular, aí temos um Mal incompetente, que não revela universalmente a sua vil face. Ou seja, um mau Mal.

Racismo, sexismo, xenofobia, homofobia, pedofilia, egoísmo, insustentabilidade ecológica, por exemplo, são grandes, quiçá os maiores candidatos a males absolutos, e não só da nossa época. Entretanto, como a realidade cruelmente mostra, ainda angariam para si apólogos/eleitores em todos os cantos do mundo. Como pode alguém, em sua sã civilidade, não considerá-los males? O que falta a eles, ou em nós, para que sejam final e absolutamente maus?

O polêmico Slavoj Žižek disse em algum lugar que “Hitler não foi mau o suficiente”. O que o filósofo quis dizer com isso é que, apesar de a Shoa, isto é, o genocídio judeu ser oficialmente considerado o maior crime contra a humanidade da História, essa opinião, contudo, nunca foi compartilhada por todos. A atual reascenção, tão vigorosa quanto impertinente, de grupos neonazistas ao redor do mundo não deixa dúvida. Por isso é que, segundo Žižek, Hitler não teria sido mau o suficiente, pois o seu Holocausto não convenceu a todos de que era um Mal absoluto.

Mas o que seria o Mal total? Assim como o seu oposto, o Bem, o Mal é um conceito abstrato que a linguagem faz parecer que existe concretamente na realidade. Mas, como certa vez disse o filósofo Baruch Spinoza, Bem e Mal, outrossim certo e errado, belo e feio etc., não existem fora da esfera da opinião humana. Não há nada no universo que, em si mesmo, seja necessariamente mau, errado ou feio, nem tampouco bom, certo e belo. As coisas são o que são; apenas as predicamos contingentemente conforme elas nos afetam. Aqui podemos ver a razão de o Mal não conseguir ser absolutizado: porque as opiniões humanas diferem umas das outras tanto quando os humanos entre si.

Eis então os dois maiores desafios da humanidade em relação ao Mal: em primeiro lugar, defini-lo universalmente; e, em segundo lugar, com a mesma universalidade, concordar em evitá-lo incondicionalmente. Se nem mesmo nas sociedades mais antigas, nas quais havia um Deus absoluto, onisciente e onipotente, que dizia verticalmente o que era o Bem, o certo, o justo, a humanidade conseguiu deixar de ser valer do Mal como se de Bem se tratasse, imagine como o Mal pode ser relativo nas nossas sociedades pós-modernas, ou, em outras palavras, pós-morte-de-Deus…

Por mais que o racismo, hoje em dia, seja um Mal inaceitável para cada vez mais gente, muitos brancos cariocas, por exemplo, ainda acham bom que jovens negros da periferia sejam barrados às portas da balneária Zona Sul da Cidade Maravilhosa.

Embora o machismo seja um barbarismo condenável, o eurodeputado polonês de extrema-direita Janusz Korwin-Mikke não acha errado as mulheres ganharem salários menores, afinal, diz ele, como se quisesse relembrar alguma verdade ao mundo: “as mulheres são mais fracas, menores e menos inteligentes que os homens”. E sujeitos deploráveis como este crescem em popularidade atualmente.

Apesar de a xenofobia ser diametralmente oposta à civilização, uma vez que civilizado é aquele que aceita, que consegue conviver com a alteridade, países os mais civilizados do mundo estão se fechando aos estrangeiros, aos imigrantes, em suma, ao outro. E o famigerado muro de Trump o exemplo mais emblemático desse triste movimento.

Da mesma forma, a homofobia, seja no Brasil, país que mais mata pessoas trans no mundo, seja no mundo árabe, onde gays são arremessados do topo de prédios, pelo jeito não é um Mal com o qual todos concordem.

A despeito do Mal hediondo no qual a imensa maioria de nós quer enquadrar a pedofilia, temos que no Afeganistão ainda é legal, mais ainda, distintivo socialmente, abusar sexualmente de crianças. Há inclusive um nome instituído para as vítimas dessa violência: os Bacha Bazi, isto é, “os meninos para brincadeiras”. Nem precisamos ir muito longe. Em muitos lares isso é triste realidade.

Sem dizer do egoísmo, do hedonismo, que, se um dia, aos olhos de Deus, foram pecados, hoje, em troca, para a cegueira capitalista são virtudes capitais.

E a destruição da natureza pelo homem, que para mim é o Mal absoluto par excellence, pois ameaça a todos indiscriminadamente, infelizmente ainda deixa um gosto bom nas nossas bocas sempre que comprarmos nossos iPhones, automóveis, viagens de avião e alimentos embalados em camadas e mais camadas de plástico.

Como estes exemplos mostram, não há nada que possa ser chamada de mau sem que muitos discordem disso. Racistas, machistas, xenófobos, homofóbicos, pedófilos, capitalistas e, mais disseminados que todos estes, consumidores destruidores da natureza, todos consideram suas práticas boas, senão em si mesmas, ao menos para si mesmos. “Há males que vêm para o meu bem” seria o provérbio adequado para estes. Novamente: o desafio é conseguirmos universalizar tais males sem relativismo algum, sendo que, repetindo Spinoza, nada há no universo que seja mau ou errado em si mesmo.

A ideia de Žižek, segundo a qual um Mal deve ser suficientemente mau para que doravante assim seja considerado por todos e não seja repetido, pode ser pertinente no caso do nazismo. Porém, em respeito à destruição da natureza, essa lógica žižekiana seria inócua, pois então a natureza só não seria destruída porque não mais existiria

Já de Spinoza podemos tirar maior proveito. Ora, uma vez que o Mal só é uma predicação dada pelas pessoas a coisas ou ações que, em si mesmas não são boas nem más, só são, o Mal universalmente considerado como tal só seria possível mediante o consenso democrático entre todas as pessoas.

Eis a dificuldade ulterior: criar um consenso na humanidade. Não precisamos de um Deus ao estilo cristão que nos dite o que é o Mal e como evitá-lo. A experiência histórica mais que comprova que estratégias como essa geram tantos males quanto os que promete evitar. Talvez devamos ser esse Deus nós mesmos. Não na forma de um panteão conflitivo de deuses, cada um com a sua opinião acerca do que é bom ou mau. Esse, aliás, é o limbo no qual já nos encontramos.

Se dentre os muitos significados da palavra Deus temos os de “Ser Absoluto”, “Ser Supremo”, sermos Deus nós mesmos para estabelecermos o que é e será o Mal, outra coisa não é que concordarmos, todos, que certas práticas são inquestionavelmente más e que isso jamais deve ser relativizado. Esse seria o bom Mal: o Mal que uniria a humanidade, mas em universal oposição a ele. E nesse exercício de sermos Deus nós mesmos, de constituirmos “Um Ser Supremo”, embora humano, quiçá encontremos a concretude da humanidade.

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Fora “Fora Temer”

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E se deixássemos de gritar, hashtaguiar e, agora, carnavalizar o famigerado “Fora Temer”; se desinvestíssemos da ideia de um inimigo externo que nos subjuga fortuitamente? Se, enfim, assumíssemos plena responsabilidade pelo mal que aflige a nós e às nossas democracia e república, o que restaria como nosso lema de protesto? Um desiludido “Fora nós”! A radicalidade dessa mudança seria dupla. Em primeiro lugar, de sujeito: de Temer, o grande vilão, para nós, os cidadãos brasileiros; e, em segundo lugar, da nossa própria condição enquanto sujeitos políticos: de cidadãos traídos, golpeados para cidadãos traidores, golpistas de nós mesmos. Se tivéssemos coragem para encarar a realidade dessa forma, o mal do qual, agora, dizemos ser vítimas, e do qual, imediatamente, queremos nos ver livres, estaria definitivamente dentro da nossa esfera de ação, e, portanto, seria mais fácil de ser combatido.

“Fora Temer” é uma interjeição que soa patética quando consideramos seriamente a teoria política do filósofo inglês Thomas Hobbes, autor que, a meu ver, propõe o mais desafiador convite à responsabilidade cidadã. Hobbes diz categoricamente que “tudo quanto o representante” – isto é, o governante, o Leviatã – “faz, como ator, cada um dos súditos faz também, como autor”. Em outras palavras, também do filósofo: “cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer; por consequência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio”.

Dessa perspectiva hobbesiana, gritar “Fora Temer” outra coisa não é que vaiar o ator em cima do palco por desempenhar mal o espetáculo político que nós mesmos escrevemos conjuntamente. A amarga ideia com que Hobbes nos confronta é que, na relação entre súditos/cidadãos e Leviatã/representante, não há vítimas. Mais ainda, se há culpados, este são os primeiros. Já o Leviatã não é vítima nem culpado, pois é feito apenas de cidadãos, pelos cidadãos, para os cidadãos. O representante político é o resultado de cálculos, de acordos, de disputas entre cidadãos. Em suma: é feito apenas de relações sociais. E como a matemática comprova, se o resultado de uma equação está errada, o erro está aquém dele.

Temer, gostemos ou não, é o nosso atual Leviatã: o resultado da disputa concreta entre os cidadãos brasileiros. Portanto, repetir “Fora Temer” apenas nos aliena do fato de que, quando Temer atua, somos nós, os cidadãos brasileiros, que atuamos através dele. Amargo preço da representatividade política que dispensa os cidadãos de atuarem, direta e constantemente, em função de suas necessidades. Para os antigos gregos, inventores da democracia direta, seria uma barbaridade legar interesses pessoais a outrem. Nós, porém, fizemos disso regra. Só que, covardemente, não queremos pagar o preço dessa mudança.

Ora, se, como coloca Bruno Latour, o Leviatã apenas traduz os cidadãos, e se, como denunciam os maiores críticos literários, qualquer tradução é sempre uma traição, está no horizonte do representante máximo trair os seus representados. Só que quando isso acontece, reclamamos, gritamos “Fora Temer”, como se estivéssemos em uma democracia direta, esquecendo-nos, no entanto, de que, desde o princípio, sustentamos uma democracia indireta, burguesa, que, se por um lado trai-nos sistematicamente, por outro dispensa-nos do árduo e constante trabalho cidadão. Afora o compromisso bienal nas urnas, desperdiçamos nosso impagável tempo cívico nos shopping centers comprado smartphones.

Nos anos Lula, quando todos, ricos e pobres, éramos mínima e decentemente representados, a alienação que a representatividade política sempre promove não era um problema. Um bom Leviatã todos amamos. Agora, bastou um oligarcas que representa única e escancaradamente os interesses dos seus encarnar o Leviatã e essa mesma representatividade política burguesa mostrou o seu lado insuportável. Mas, não nos esqueçamos, esta é a forma com que decidimos, consensualmente, ou, em termos hobbesianos, contratualmente, viver. Hobbes, comprometedoramente, não nos deixa esquecer de que o soberano é apenas um ator designado pelo contrato social travado pelos cidadãos.

Dar um Fora no “Fora Temer”, para então focarmos em nós mesmos enquanto sujeitos de um lema de ordem que de fato possa melhorar a nossa condição de cidadãos, é assumirmos que somos nós, e ninguém mais, que delegamos, e democraticamente!, nosso poder a um representante, a um Leviatã, que, em verdade, é apenas o resultado dos nossos cálculos, em função dos nossos anseios. Para Hobbes, são os cálculos dos cidadãos, todos equacionados em um contrato, que constituem o Leviatã. Se, a posteriori, o “resultado Temer” parece-nos um desastre, a responsabilidade cidadã está na assunção de que, a priori, nós não soubemos equacionar nossos valores individuais de modo menos desastroso.

O “erro Temer” é um resultado verdadeiro: a verdade do erro das operações que nós, brasileiros, viemos realizando nos últimos anos. Insistir no “Fora Temer”, portanto, é como continuar somando 2+2 e querer, estupidamente, que o resultado dessa soma seja 5. Da visada hobbesiana, um “Fora Nós”, em vez de um “Fora Leviatã”, ou, no nosso caso específico, do “Fora Temer”, não só seria mais responsável, como principalmente ensejaria revermos tanto os nossos parciais cálculos individuais, quanto os subtotais cálculos coletivos, cujo total, no final das contas, é o Leviatã – ou Temer.

Minha hipótese é que a revisão “matemática” da problemática representatividade política, hoje protagonizada tristemente por Temer, passa por esclarecermos, primeiramente, o ardil da democracia representativa burguesa, que não foi feita para atender os interesses dos cidadãos, apenas para dar tal impressão. Devemos criticar a nós mesmos pela “democracia” burguesa, indireta, representativa, mediante a qual somos cidadãos estruturalmente ausentados da nossa luta.

Se, por um lado, o presente impede de voltarmos ao passado idílico de uma democracia direta, na qual ninguém além de cada cidadão pode frustrar ou trair a si próprio, nada, por outro lado, nos priva de construir uma democracia diferente dessa na qual oligarcas criminosos usam o Estado como bureau de seus vis interesses. Por isso: Fora “Fora Temer”. E em seu lugar, um ensurdecedor e consensual “Fora nossos erráticos cálculos cidadãos”; tanto os individuais quanto os coletivos; pois é essa incompetência que resulta em erros crassos, totais, tais como Michel Temer Leviatã tupiniquim.