Política, comédia e educação.

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Diante da contemporânea “tragédia” política brasileira, parece um perigoso exercício de alienação o mar de memes que faz troça do roubo do poder por uma corja de golpistas criminosos e do radical furto de direitos da população. Todavia, esse talento cômico do nosso povo face às vicissitudes da política não é invenção sua. Nascida na Atenas antiga, a comédia era a crítica e a expressão mais candente da crise daquela democracia. E isso porque, nas palavras do filósofo Werner Jaeger, na sua clássica “Paideia”, “A comédia visa as realidades do seu tempo mais do que qualquer outra arte”.

Disseram alguns que o homem é o único animal capaz de rir. Outros, mais mordazes, que ele é o único capaz de rir de sua própria desgraça. Se é assim, a comicidade é a forma humana de encarar a realidade quando ela é mais difícil de suportar. Estaria a sabedoria popular certa ao repetir que “É melhor rir do que chorar”? Ou, antes, certo está Platão ao dizer que a vida humana tem de ser encarada ao mesmo tempo como tragédia e como comédia? Bem, o povo brasileiro parece não escapar do dito do pai da filosofia… Resta saber como a popular memética cômica desses nossos dias golpistas pode nos ajudar na nossa tragédia política.

Jaeger conta que “A origem da comédia encontra-se no incoercível impulso das naturezas mais comuns … na tendência popular, realista, observadora e crítica”. Na Atenas antiga, ela tinha a tarefa da crítica pública, ou seja, da crítica feita pelo povo, ou, pelo menos, da perspectiva do povo. Todavia, adverte o filósofo, a comédia nunca constituiu algum grande plano político organizado. De uma parte, contribuía para desanuviar a atmosfera de opressão. De outra, comunicava publicamente a situação de opressão, apontando distintivamente os opressores. Para Jaeger, a comédia é a “elevada arte do ataque pessoal dirigida até mesmo às pessoas de mais alto posto na hierarquia do Estado”.

Sabemos que a democracia, isto é, a administração do Estado pelo povo, foi uma invenção dos atenienses. Antes disso, e em outros lugares, a lei que regia as sociedades vinha sempre de cima. Primeiro, dos deuses. Depois, dos heróis e dos reis. Em Atenas, contudo, a lei passou a ser produto dos próprios cidadãos, de suas livres deliberações democráticas. Entretanto, afirma Jaeger, a democracia ateniense tanto deu liberdade ao povo que, a certa altura, precisou limitá-la para evitar o caos social. Só que essa limitação, democraticamente falando, não poderia vir do próprio Estado democrático. Se assim tivesse sido, falaríamos de tirania, e não de democracia. Então o Estado democrático, prossegue o filósofo, fez com que tal limitação viesse das interferências do próprio povo, melhor dizendo, da opinião pública, que se expressava, verdadeira e contundentemente, na comédia.

Com efeito, para Jaeger, a comédia veio ao mundo grego como “o mais genuíno produto da liberdade democrática da palavra”. Claro que as autoridades oficiais procuravam, sempre que podiam, proteger as pessoas de prestígio dos cômicos ataques populares. Mas o filósofo conta-nos que tais proibições não duravam muito. Afinal, cada vez mais sabia-se que negar o que a comédia trazia a público significava negar algo de muito importante da realidade. Para Jaeger, a comédia encarnava o invisível numa forma sensível, fazendo ver as forças opostas da comunidade e do indivíduo; do povo e da elite; dos pobres e dos ricos; da liberdade e da opressão; do passado e do presente. Em suma, era através da comédia que a crísica sociedade grega conhecia seus recônditos ao ironizar a si mesma.

Na crise da democracia e da pólis grega, prossegue Jaeger, “Só a comédia era capaz de exprimir isso para todos”. Antes disso, a religião, com seus deuses, e a tragédia, com seus heróis, cumpriam o papel de comunicadoras e unificadoras universais daquela sociedade. Porém, com a progressiva laicização da vida que resultou politicamente na democracia, os atenienses não puderam mais contar com sobre-humanidades nenhumas, fosse para compreender, fosse para atacar seus problemas sociais e políticos. Diante desse novo, grandioso e absolutamente mundano desafio, Jaeger conta que somente a comédia, com sua linguagem e penetração social, foi capaz de colocar a sociedade diante do espelho.

Está certo que a comédia não salvou Atenas e a sua democracia. Ainda mais depois da dominação de Alexandre, o Grande, quando as cidades-estado gregas perderam a sua razão de ser, e a revolucionária democracia ateniense passou a jazer apenas em forma de saudosa lembrança. Trágico destino, obviamente, depõe contra qualquer tentativa de se enfrentar a vileza da realidade apenas fazendo rir. Entretanto, como dito antes, a comédia nunca foi um macro plano organizado de solução sociopolítica global, mas sim uma forma particular – se bem que a maior de seu tempo – de reconhecimento público de um presente crísico.

Relativamente ao presente brasileiro, só devemos condenar o nosso ímpeto espirituoso face às agruras sociopolíticas se nada além de troça fizermos. Nada contra o riso – humano, demasiado humano tomar conta da sociedade, qual histeria coletiva, em reação imediata a grandes dificuldades. Afinal, como diz aquela canção, “É melhor ser alegre que ser triste”. Agora, como bem sabe o ditado popular, “Rir de tudo [e o tempo todo] é desespero”. Um povo que realmente espera resolver seus problemas, e isso sem contar com deuses nem heróis, depois de comunicar cômica e publicamente o próprio infortúnio, deve cerrar os dentes e agir seriamente.

Que seriedade, não obstante, pode sobrevir, primeiro, à tragédia, e, por fim, à comédia, senão a consciência positiva e comunicável desse processo? Jaeger é categórico em dizer que, após o apogeu da vida política e social da Grécia, quando finalmente estavam arruinados todos os seus maiores bens, tais como o Estado, o poder, a liberdade e a vida cívica, algo de extremamente valioso permaneceu vivo e operante: a Paideia grega, isto é, o sistema de educação e formação ética daquele povo, cujo escopo era a formação do cidadão perfeito e completo, capaz de desempenhar um papel positivo na sociedade.

Foi justamente em meio às trevas irremediáveis da catástrofe política grega que se revelaram os maiores gênios da educação, tais como Sócrates, Platão e Aristóteles, que transmitiram aos outros povos da Antiguidade e à posteridade histórica, até nós, a mais alta expressão possível de humanidade. Não que a educação deva surgir somente após a tragédia e a comédia. Na verdade, ambas desde sempre já foram modos educacionais a conduzir toda uma sociedade ao seu melhor fim. A grandeza grega esteve, e ainda está, justamente no fato de a educação ser substantiva. Superada a educação trágica, que socializava a imersão humana no inescapável fluxo da vida, e a educação cômica, que permitia ao público falar a si mesmo de seu trágico destino, restou a educação per se, enquanto objetivação racional do conhecimento do mundo e de si próprio.

Talvez devamos mudar um pouco a frase de Platão apresentada no início. Em vez de a vida humana, seja a grega antiga, seja a tupiniquim contemporânea, dever ser encarada ao mesmo tempo como tragédia e como comédia, se tomarmos o exemplo da própria evolução histórica da sociedade grega, que primeiro foi trágica, depois cômica, para, por fim, ser puramente paidêutica, isto é, educacional, quem sabe a atual dinâmica do povo brasileiro de, primeiro, sofrer seus revezes, para, em seguida, fazer piada deles, seja o necessário calvário do nascimento de um verdadeiro processo de conhecimento e de aperfeiçoamento de sua, de nossa, própria condição social.

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