A arquitetura da humanidade

“Arché”, em grego, significa a fonte, a origem de todas as coisas. “Tektôn”, por sua vez, quer dizer construção. “Architekton”, ou seja, arquitetura seria então o que está na origem de toda construção. Porém, nessa origem arquitetônica começou a ser edificada, sobretudo, a história da humanidade.

A pedra fundamental da arquitetura foi a construção de refúgios, ao molde das cavernas habitadas por milênios pelos homens, símbolos absolutos de segurança e abrigo. Assim sendo, a tarefa primeira da arquitetura foi reproduzir tais cavernas. Todavia, aonde a humanidade precisasse que elas estivessem.

Donos da técnica que lhes deu a portabilidade da caverna, os homens passaram a construir casas para escaparem das vicissitudes da natureza. Ora, como proteção foi o escopo primeiro da arquitetura, foi ela, portanto, que blindou o homem contra o mundo natural.

No entanto, os revezes da natureza, embora do lado de fora das casas, batiam às portas destas. Como a arquitetura já tinha provado sua eficiência em proteger o homem dos perigos naturais, ela passou a ser usada também do lado de fora das soleiras das portas.

Aproximar muitas casas umas das outras foi, então, o modo de protegê-las. Mas o que é uma aglomeração de casas senão uma cidade? Por conseguinte, a cidade foi a forma subsequente de resguardo que a arquitetura legou à humanidade. Nesse âmbito nasce o urbanismo.

A despeito da inicial reprodução de cavernas, foi a cidade, ou melhor dizendo, a urbe a construção excelente da arquitetura. Afinal, somente a partir dela se pôde falar de civilidade. A civilização, portanto, é obra arquitetônica.

Todavia, no momento em que nascia a civilização se definia, por oposição, a barbárie. E se a arquitetura produziu o civilizado, outrossim, criou o bárbaro: um residindo no lado de dentro, e o outro no lado de fora dos sofisticados limites citadinos.

Então, se a história do ser humano é aquela que vai da barbárie à civilização, considerando que foi a arquitetura que produziu tanto uma quanto a outra, pode-se concluir que a história da humanidade é a sua própria arquitetura.

A lógica dos nossos 35 mil dólares individuais

De acordo com a Credit Suisse Wealth Report, a riqueza mundial atual (a soma do valor de todos os imóveis, bens e serviços existentes) é estimada em 240 trilhões de dólares. Essa é toda a riqueza produzida, direta e indiretamente, pelo homem. Portanto, esses 240 trilhões de dólares pertencem à humanidade.

Como hoje somos aproximadamente sete bilhões de pessoas no mundo, e a riqueza mundial é de 240 trilhões de dólares, então, matematicamente, a cada indivíduo cabe o justo montante de 35 mil dólares.

No entanto, a maioria das pessoas não dispõe dessa justa parcela da riqueza mundial. Ora, quando não se pode dispor do que é seu é porque se está sendo roubado. A maioria das pessoas, então, está sendo roubada da riqueza a que tem direito.

Se a cada ser humano cabem exatos 35 mil dólares – seja da maioria, seja da minoria -, porém, a maioria não possui esse valor, é a minoria, por conseguinte, que está roubando essa diferença para si.

Ora, o crime que a minoria está cometendo é roubar os 35 mil dólares da maioria das pessoas. Se justiça significa pagar pelos crimes que se comete, é justo que a minoria pague à maioria esses dólares roubados.

Para que no mundo haja justiça é necessário que a minoria gatuna pague pelos dólares que roubou. Agora, se ela não fizer isso, e ainda assim a maioria quiser um mundo justo, a maioria deve, portanto, eliminar essa minoria.

Desaparecendo-se com a minoria larápia restará apenas uma totalidade indivisa de pessoas diante dos seus 240 trilhões de dólares. Então, sem ter quem roube o que não lhe pertence, cada um terá de fato os seus justos 35 mil dólares de riqueza.

O vermelho na Grécia das ruínas apáticas

Um povo que sabe o que fazer com suas próprias ruínas é o grego. Não só as arquitetônicas monumentais, mas também a política cotidiana, ambos, escombros há muito contemporâneos deles. O solapamento daquela antiga e virtuosa sociedade se deu por conta do que podemos chamar de a globalização da época, que fez dos diferentes mundos que cercavam o Mar Mediterrâneo um só. Algum paralelo com a globalização atual que faz da Grécia um depredado terminal capitalista da União Europeia?

A História, matéria na qual a Grécia figura distintivamente, tem a revolucionária virtude de nunca se dar por encerrada. Os gregos, por conseguinte, seguem escrevendo a sua. Porém, a partir da vitória do partido de esquerda Syriza, não mais com a austera mão direita. Embora tal caligrafia canhota signifique um desalinho em relação às planilhas de Excel capitalistas e europeias, os gregos poderão lançar, sobre o seu roto papiro sócio-político, novos e íntimos diálogos, ao bom e velho estilo socrático, que lhes esclareçam o que é o bem e o justo para eles próprios – ainda que, para o resto do mundo, essa comunicação pareça insuportavelmente retórica.

Os gregos inventaram a melhor democracia que o mundo já testemunhou, cujo desmoronamento, entretanto, se deu mediante a capitulação que sofreram de Alexandre, o Grande, no século IV a.C. Então, furtados de seu característico e frutífero sistema de governo, e subjugados a um conquistador estrangeiro, os helenos inventaram formas de lidar com a alienação fortuita em respeito ao seu próprio destino. Uma delas foi o cinismo, isto é, a apatia em relação ao devir da sociedade. Os cínicos, por conseguinte, passaram a pregar a autarquia, ou seja, a autossuficiência diante das vicissitudes da vida.

Ora, a autarquia, a autonomia que o indivíduo institui entre ele e o resto, era o oposto da bela democracia grega, pois esta pressupunha o envolvimento total do cidadão na vida e na saúde da sociedade. Uma vez apático, o cidadão se converte num indivíduo isolado, voltado às suas próprias necessidades. Isso, contudo, em detrimento das necessidades globais. A democracia arruinada, doravante, fez controversa carreira no resto do mundo, mas não somente ela. A transversal apatia cínica também! Quantos de nós não se orgulha de ter votado em branco nas últimas eleições?

É irresistível a hipótese de que a busca da autossuficiência individual, efeito colateral da perda dos desígnios sócio-políticos que estruturavam a sociedade grega, tenha sido o germe – não reconhecido – do capitalismo. Afinal, não é capital galgar autarquia diante dos iguais, e em detrimento deles? Não é precisamente no momento em que o indivíduo passa a se ocupar apenas com suas próprias necessidades, agindo somente no sentido delas, que ele é irreversivelmente capitalizado? Ainda que a reificação do capital tenha se dado muitos séculos mais tarde, foi a partir da alienação daqueles cidadãos gregos em relação ao bem estar global de sua sociedade que a capitalização individual fincou pés no mundo.

Por conseguinte, a apatia que a antiga Hélade legou à posteridade depois do roubo de sua democracia por Alexandre, o Grande, da Macedônia, é novamente encenada diante de uma outra “invasão” que a Grécia vem sofrendo. Hoje, porém, o novo capitulador pode ser simbolizado pela austera Angela Merkel, a Grande, da União Europeia. A diferença, contudo, está em que o cinismo de agora se dirige aos conquistadores estrangeiros, não mais aos próprios gregos. E, principalmente, em função da reestruturação da sociedade grega partida pelos governos forasteiros.

Prova disso é a marola de solidariedade que cresce na península mediterrânea depois do tsunami liberal-europeu. Jon Henley, no artigo “Greece’s solidarity movement: ‘it’s a whole new model – and it’s working”, do jornal The Guardian de 23 de janeiro, revela que os cidadãos gregos vêm empreendendo ações populares e independentes para resolver questões fundamentais, como saúde e alimentação, preteridas pelo governo grego em função das exigências das potências credoras europeias. Pode parecer tímido, mas é um movimento que recoloca as escolhas e as ações necessárias à saúde da Grécia novamente nas mãos dos próprios gregos.

Estaríamos diante do renascimento da antiga e direta democracia grega? É cedo demais para afirmar isso. Afinal, o modo corrompido da democracia, ou seja, seu modelo representativo, ainda é a lei, e não só por lá. Infelizmente, a democracia direta experimentada pela Hélade antiga, hoje é taxada de vandalismo pelos representantes dos cidadãos. Entretanto, a atual escolha democrática grega por um governo de esquerda não deixa de ser um ato cínico diante das imposições estrangeiras.

A forma corrompida – representativa – da democracia primeira ganhou o mundo e o futuro. No entanto, mais parece a involução de sua virtuosidade pressuposta. Já cinismo, o modo grego de lidar com a ruína democrática, evidencia, hoje, uma evolução positiva ao arriscar uma nova autarquia. Todavia, essa autossuficiência não é mais aquela que isola o indivíduo da sociedade, mas a que pretende alienar os cidadãos gregos da tirania do mundo global.

Primeiro, os gregos ensinaram o ocidente a ser sociedade. Depois, o aprendiz capitalizado se voltou contra seus velhos mestres. Agora, a Grécia parece dizer cinicamente a seus pupilos desgarrados que eles entenderam mal seus ensinamentos. Reagrupam-se em assembleia, na ágora abalada pela globalização, para mais uma vez tentarem ser uma grande sociedade. Nós, o resto do ocidente que sempre tentou ser tão genial, autossuficiente e próspero quanto os antigos gregos, devemos ficar atentos a atual performance deles. A Grécia contemporânea, a exemplo da clássica, pode estar prestes a produzir novas lições fundamentais à humanidade, que, no entanto, devem ser aprendidas tanto pelos próprios gregos quanto pelo resto do ocidente cujas bases, entretanto, ainda são gregas.

Lugar, um ponto arquimediano.

O espaço é o meio físico universal de cujas três dimensões a vida se apropria para devir em experiências, bem como para gerar sentidos e valores inexistentes no universo. Pois bem, a vida, conquistando o espaço, compartimenta-o em lugares. Entretanto, que vandalismo é esse cometido contra a integralidade espacial, cujas ruínas são os lugares a partir dos quais existir passa a significar viver?

Da lei newtoniana, “dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço”, fica claro que lugar não é espaço, mas o que surge da ocupação deste por um corpo. Precisamos, todavia, transcender a ideia primeira de corpo material para comprometer definitivamente a vida com o lugar – no espaço – que ela inaugura, pressupondo também corpos de sentido, de experiência, de valor, etc. Afinal, concordando com Zygmunt Bauman, “é nos lugares que se forma a experiência … , que ela se acumula, e que seu sentido é elaborado, assimilado e negociado”.

Deve ser dito que um ser inanimado, por exemplo, uma pedra, não cria um lugar pelo fato de existir no espaço; simplesmente o ocupa. Somente matéria não é suficiente para gerar um lugar. É preciso corpos com vida, com desejos, com objetivos. Antes, “o lugar das coisas” já é uma invenção da vida: a cartografia do espaço de acordo com as necessidades dela.

Entretanto, a vida está subjugada a outra dimensão universal, qual seja: o tempo. Apesar de tudo o que vive compartimentar o espaço universal a seu bel-prazer – em lugares onde se dorme, bebe, nasce, etc. -, o tempo também é comprometido nesse processo. De modo que o lugar é não é apenas uma impertinência em respeito ao espaço, mas também uma aventura contra o tempo. Isso porque a vida já é uma irreverência em relação à existência.

Para entender a relação que se desenrola entre o espaço e o tempo infinitos e os nossos pontuais e efêmeros lugares, uma afirmação de Bauman: “é nos lugares, e graças aos lugares, que os desejos se desenvolvem, ganham forma, alimentados pela esperança de realizar-se”. Ora, se o desejo compartimenta o espaço em lugares em função de se satisfazer, e se, sobretudo, o desejo é feito para ser satisfeito – portanto suprimido -, então, é no tempo da satisfação do desejo que o lugar solapa e é reintegrado ao espaço indeterminado.

No entanto, porque a vida é uma sucessão ininterrupta de necessidades e desejos, nunca se permanece na abstração espacial. Novos lugares são abertos no espaço no toque de novos desejos. Afinal, somente na ausência de propósito vital há o espaço indiviso. Porém, não a vida. Ela, pois, é a conversão temporânea do espaço integral do universo em pontuais moedas-lugares com as quais negocia, através de suas experiências, sentidos e valores com a existência.

Há, porventura, algo mais concreto do que os lugares onde a vida acontece? Todo resto, com exceção dos desejos, não se colore de contingência diante da determinação espacial? Inclusive o tempo parece escoar em intensidades diferentes de acordo com a dinâmica de cada experiência vivida. Já o lugar, não. Vida, desejo e lugar, contrariando Newton, ocupam sim o mesmo lugar no espaço. Geralmente os homens chamam essa mistura de “Eu”.

Arquimedes, 250 anos antes de Cristo, disse: “Deem-me um ponto de apoio e moverei a Terra.” Pois bem, esse ponto arquimediano não só carece de um lugar, como também representa muito bem a função dos lugares à vida. Basta, portanto, um ponto de apoio, isto é, um lugar apontado, para que a existência possa ser movida de sua indeterminação até uma terra inteira de sentidos, de valores e de experiências determinadas.

O último figurino do poder

O poder, historicamente, manifestou-se de diferentes maneiras, e em cada encarnação sua, uma veste distinta. Ele carece, portanto, de uma representação material através da qual performar exitosamente. Sua maior eficácia, entretanto, se dá quando ele atua sem puir a sua fantasia diante dos desempoderados. Desse modo, os figurinos com que o poder protagoniza o drama social, através de um êxtase estético certeiro, são fundamentais à manutenção da passividade e da impotência da plateia espectadora.

Dos músculos do homem pré-histórico desnudo à seminudez divinamente ornamentada do guerreiro grego-romano; passando pela intransponível armadura do cavaleiro medieval e pela sofisticada “roupa do rei” moderno; o costume do poder é feito para causar. Porém, tais vestimentas deixaram de seguiu a tendência histórica de “pavoneamento” descrita acima. Hoje, intrigantemente, os poderosos dispensam distinção através de trajes; e o que vemos é uma uniformização generalizada que, sobretudo, dissimula o poder entre os que não o detêm. Estratégia? Sim, necessária!

O que quer o homem mais poderoso do mundo, qual seja, o presidente dos Estados Unidos, vestindo o mesmo terno azul-marinho usado por todos seus subordinados? Não podemos nos enganar, afinal, o que leva o poder absoluto a “figurinar-se” com os mesmos “fatos” de um ordinário gerente de uma empresa qualquer de modo algum significa anulação ou socialização desse poder. Embora mais pareça um disfarce, devemos, por conseguinte, entender a nova “moda” com que o poder desfila na passarela social enquanto a mais eficiente e planejada alfaiataria.

Outrossim, a moda arquitetônica atual também evidencia a dispensa do poder em se evidenciar. Dos majestosos templos antigos, erigidos para o poder divino, passando pelos labirínticos palácios dos reis absolutos, e findando nos tradicionais edifícios-cofres do capital, isto é, os bancos, todos eles, até bem pouco tempo, utilizavam-se da mais fina arte, técnica e tectonicidade para simbolizarem o abismo entre os que detêm o poder e os que não. Todavia, hoje os deuses se contentam com espeluncas evangélicas e os donos do poder, com casas padronizadas em maçantes Alphavilles suburbanos. Também o capital já não precisa mais das pesadas e estáveis fachadas em “mármore eterno” para expressar poder, contentando-se com os mesmos vidros e alumínios das fachadas dos supermercados e das concessionárias de automóvel.

O poder, portanto, tem desfilado no bulevar social com os fatos daqueles que não logram desse mesmo poder. Isso não significa, contudo, que sua força seja reduzida na adoção dessa moda. Antes, abstraindo-se da representação material, o poder experimenta uma nova e melhor forma de ação. Ora, em um mundo cada vez mais virtualizado é ingenuidade esperar que o poder aja de outra forma. Ou melhor, talvez isso tenha sido inicialmente um vislumbre do próprio poder: abstrair-se da simbolização material distintiva para mais livremente agir. Suas vestes e seus edifícios, portanto, apenas posteriormente expressaram esse novo – e não menos funcional – estilo.

A ordinária uniformização através da qual poder atua hoje em dia significa, por conseguinte, que ele não mais reside em nada nem em ninguém específico. Se o presidente dos Estados Unidos, por exemplo, for assassinado – em seu nada exclusivo uniforme Prada- , outro, usando o mesmo fato, imediatamente ocupará seu lugar, mostrando a todos que o poder não precisa sequer de uma pessoa determinada para representá-lo, quiçá de suas roupas.

Do lado dos que não gozam do poder, o esforço também tende à uniformidade estética – ao menos essa! Da mesma forma que os antigos parisienses, desejando a opulência do Palácio de Versailles para si, fizeram de cada quarteirão da capital francesa um palácio aos moldes do Real, não obstante fatiado em apartamentos minúsculos – símbolos da falta daquele poder -, hoje em dia os homens comuns alienam-se da impossibilidade de alcançarem o poder vestindo o mesmo terno Prada que Obama. Por um lado, a plebe ilude-se de que é poderosa nas vestes do rei; por outro, o rei é mais rei do que nunca nas vestes da plebe.

Contra os desempoderados resta que a dissimulação estética com a qual o poder faz sua contemporânea promenade social o blinda sobremaneira. Como foi dito antes, de nada adianta matar o homem mais poderoso do mundo. Tampouco contra o capital resolve vandalizar as fachadas envidraçadas dos seus bancos. O poder não está mais aqui – nem ali -, ao alcance dos que o reivindicam. Usando a mesma roupa do rei acabamos lutamos uns contra os outros, afinal, quem é ele mesmo? Ora, a roupa não é mais a veste do poder; antes, este figurino distintivo é “démodé”.

O pavão, que com a mesma exuberante plumagem com que atrai a fêmea chama atenção dos seus predadores, mostra que a imponência material é um calcanhar de Aquiles. No propósito de seguir como o rei absoluto da selva, o poder descobriu que é melhor ser um camaleão, presente mas invisível; seu esforço máximo consiste em adquirir a tonalidade do meio em que se encontra – que é o mesmo que domina. Hoje, no entanto, essas cores são ditadas pelas grandes grifes. Prada, por exemplo, é o arlequim que não se contentam em servir apenas a dois patrões, mas também aos funcionários de ambos. Disso resulta que podemos sim nos fantasiar com os trajes do poder conquanto permaneçamos despidos dele na realidade. Já o poder, despindo-se de suas fantasias históricas, encontra uma realidade nua e crua na qual seu falo desnudo fala mais alto.

Next Belle Époque Kapitalist

Para onde caminha a humanidade contemporânea que, a despeito do mais sincero humanismo produzido, se contenta em ser combustível e massa de manobra do capital? Há, porventura, força maior a designar os destinos e as volições individuais, as relações entre indivíduos e entre Estados – inclusive se guerra ou paz -, que o capitalismo? Pelo menos há oitocentos anos a resposta é um tácito não! A humanidade vem sendo, por conseguinte, matéria através da qual esse sistema econômico existe e se expande. Então, guiados sistematicamente pelo capital, caminhamos para onde ele precisa que estejamos. Novamente: para onde?

Thomas Piketty, na sua revolucionária obra “O capital no século XXI”, demonstra que marchamos, sem desvio, para o mesmo vigor que o capital tinha nos anos 1900, ou seja, na Belle Époque – uma bela época apenas para o capitalismo, diga-se de passagem. O economista prova que o desenvolvimento do capital se deu de modo gradual e sem abalos, desde a antiguidade – ou pelo menos desde os primeiros registros seguros de acúmulo de riqueza -, até o início do século passado. Esse pródigo destino teria mantido passo firme até hoje não fossem as duas grandes guerras mundiais.

Ao afrontarem a ascensão histórica do capital, Piketty demonstra que as grandes guerras geraram um duplo desentesouramento das riquezas até então acumuladas. Por um lado, inicialmente, no investimento belicoso que somente os capitalistas podiam fazer, mas não as massas de trabalhadores. Por outro, depois das guerras, novamente o capital foi responsável pela reestruturação das sociedades, sendo, portanto, usado em benefício de todos, e não apenas em função de si próprio. Ainda em detrimento do próprio capital, durante os conflitos, e principalmente depois deles, os salários e o poder de compra das massas, fundamentais para a manutenção e o reerguimento da sociedade, tiveram de ser assegurados por conta do capital.

Entretanto, depois das duas guerras mundiais, isto é, depois de 1945, o capital recomeçou a mesma procissão ascendente de antes dos conflitos, explorando tanto a paz quanto o crescimento econômico. Nos últimos setenta anos, os únicos contratempos significativos à re-acumulação de riqueza foram as guerras de tipo Estado-Estado – porém com menor intensidade, pois tais embates não foram globais -, e, surpreendentemente, assegura Piketty, nos períodos de baixo crescimento econômico nos quais, novamente, o capital teve de arcar com os custos da manutenção social, e não só com sua recapitalização pressuposta.

Com Piketty, portanto, caem por terra duas ideias fortemente estabelecidas. A primeira, que a guerra é o instrumento extremo, porém revigorante, do capitalismo. Antes, é o modo com que o capital é devassado, ou seja, usado, contrassenso seu, em prol do Estado e em benefício da sociedade como um todo. A segunda, e não menos importante, é aquela que insiste que o baixo crescimento econômico é ruim para a sociedade. Ora, a estagnação econômica é ruim para o próprio capital, porquanto é ele que não escapa de ser comprometido – e dilapidado – no necessário custeamento da economia. Já os trabalhadores, num contexto de estagnação, voltam a ser o capital principal sem o qual a sociedade não retomará o desejado crescimento, ou seja, valorizados.

Entretanto, apesar de desejado por todos, o crescimento econômico que, segundo Piketty, não privilegia os assalariados, mas sim a acumulação capitalista, é a meta global do planeta. Triste é ver os “proletários de todo o mundo” em uníssono com a estridente voz do capital que só fala em virtude própria. Todavia, esse é o coro da contemporaneidade globalizada. Então, mais uma vez, para onde caminha a humanidade, recitando a sórdida poesia do capital? De acordo com Piketty, a uma nova Belle Époque, tão desigual e subjugada ao capital quanto a dos 1900’, anterior aos grandes conflitos mundiais.

Então, para diminuir o fôlego do capital e para redistribuir as estratosféricas fortunas reacumuladas nos últimos setenta anos, o ideal seria uma mistura entre outra grande guerra e um baixo crescimento econômico? Difícil responder afirmativamente, pois isso vai contra a verdade que o capital há muito vende juntamente com suas demais mercadorias ideológicas. Entretanto, até então foram estes os dois principais instrumentos históricos capazes de deter o inexorável anseio capitalista de acúmulo – e consequente desigualdade.

Entrementes, se através do devir histórico Piketty descobriu que a guerra e a estagnação econômica são ruins para o capital, tais verdades não permaneceram ocultas para o próprio capitalismo. Por isso a fé e o compromisso de toda a sociedade com o crescimento econômico é metodicamente imputado a todos, indiscriminadamente. Também as guerras que o capitalismo empreende – mas que em verdade o estupram – transmutaram-se no sentido de não mais serem globais; sequer do tipo Estado-Estado. As novas e seguras guerras do capital são contra o terror, isto é, contra grupos terroristas, mas não contra um Estado. Ora, por ameaçadores que sejam, por exemplo, a Al-Quaeda, o Hamas ou o Talibã, uma guerra contra eles não ameaçam nem destroem a sociedade a ponto de o capital ser comprometido além da sua conta.

Desse modo, com a humanidade cegamente em função do crescimento econômico pregado pelo capital, e com a compra generalizada do novo produto capitalista, qual seja, a guerra contra o terrorismo, quem caminha a passos fortes, reinstituindo uma nova Belle Époque para si, é o capital. Entretanto, através do bulevar de uma humanidade sempre preterida em função da marcha dos cifrões. Do jeito que vai, a humanidade não evoluirá, mas permanecerá a via de acesso do capital futuro-adentro. Já este, cada vez mais belo e epocal, reconstrói para si um novo quintal, aos moldes daquele do início dos 1900’.

É melhor que você não seja Charlie!

A solidariedade, enquanto sentimento abstrato, é corriqueiramente experimentada por quase todas as pessoas – salvo os psicopatas -, dado que a própria família já se incumbiu de gerá-la, todavia na função egoísta de se preservar. Porém, na forma de ação concreta – o modo mais virtuoso da solidariedade -, poucos são aqueles que a vivem. A partir das recentes e massivas manifestações solidárias nas redes sociais, nas quais, por breves instantes e ao mesmo tempo, todos são Charlie “e” crianças nigerianas, cabe perguntar de que tipo é a solidariedade que nos coopta: se aquela que satisfaz e resolve apenas questões do indivíduo que a sente, ou a outra, preferível, que leva solução e satisfação objetivas àqueles com os quais nos solidarizamos.

Solidariedades do tipo “Eu sou Charlie” são fortemente patrocinadas pelo o mal histórico do individualismo. Pois, na verdade, o que é dito, além do tácito e inócuo “eu sou eu”, é que inclusive “Charlie é Eu”. Esse Eu contemporâneo precisa ser tudo para ser simplesmente ele mesmo. Precisa-se até mesmo “ser Charlie” para ser, por exemplo, um ordinário taxista nova-iorquino ou um prosaico porteiro carioca. Dialetizando de forma irredutível e problemática com o individualismo está a globalização, outro mal que leva os indivíduos a se colocarem, ilusória e indiscriminadamente, no lugar dos outros. Porém, pelo fato de o mundo globalizado solapar as antigas e seguras identidades locais e nacionais, restando assim uma perda de identidade generalizada. Então, para que o indivíduo identifique-se consigo mesmo nesse globo “desidentificado”, ele precisa ser todos os demais indivíduos, nem que seja pulando de sujeito-manchete em sujeito-manchete.

Por isso é tentador considerar realmente solidários apenas tipos como, digamos, os médicos sem fronteiras e os ativistas do Greenpeace, pois, ao se solidarizarem com o problema do Outro, eles se colocam em campo, ao lado e em prol dele. Já o tipo de solidariedade que abunda hoje em dia, aquele que tange o mundo através de monocórdicos “Je suis Charlie”, essa solidariedade defende e institui também – senão exclusivamente – a covarde liberdade para não fazer mais nada a respeito. A psicóloga gaúcha Neusa Guareschi reitera que “solidariedade se refere ao ato de juntar-se aos outros de maneira ‘sólida’. Quer dizer, lado ao lado, dividindo as mesmas responsabilidades e consequências”. Ora, nada menos solidário do que se colocar no lugar do Outro sem deixar o conforto do ar-condicionado de casa ou a tranquilidade da “touchscreen” do “smartphone”!

Guareschi sustenta ainda que solidariedade “é uma relação de ação, de compartilhamento”. Mas, veja bem, não o tipo de ação e de compartilhamento feitos nas “timelines” individuais! Trata-se, antes, de compartilhar “do” problema, isto é, da dor do Outro, para só então saber em respeito a que se está se solidarizando. Claro, não é preciso ofender Maomé “e” ser assassinado por isso para ser verdadeiramente solidário à liberdade de expressão roubada dos cartunistas franceses. Isso seria ultrapassar desnecessariamente o céu ideal. Todavia, fazer isso apenas retuitando um “slogan” abstrato é jazer passivamente no extremo oposto, isto é, nas catacumbas do real. E quem age assim deseja ser objeto de solidariedade mais do que sujeito solidário. É quase como dizer: “Je suis moi, solidarizem-se à minha causa”.

No entanto, a histérica humanidade contemporânea tem direito de errar. Todas as “humanidades” passadas abusaram desse direito. Ademais, exigir perfeição do bicho-homem é de um fundamentalismo tão atroz quanto utópico. Então, a princípio, é preciso ser solidário aos que fazem da solidariedade um objeto solipsista, ajudando-os entender o significado de solidariedade. O problema que todos enfrentamos, entretanto, reside no fato de o direito de ser humano implicar, paradoxalmente, o dever de ser humano; mas um humano outro, melhor – como que uma obrigatoriedade do real em tornar-se sistematicamente ideal. Mediante essa difícil dialética caminha a humanidade. Contudo, no momento em que o real solidariza-se com o ideal, colocando-se de fato no lugar dele, eis que, doravante, o ideal já é real. E assim prossegue a humanidade, sempre entre uma realidade e uma idealidade.

Aquela solidariedade em cujo indivíduo que a sente não produz ação concreta alguma no sentido de melhorar a problemática do Outro, e que, remetendo a Freud, é natural ao bicho egoísta que somos, portanto real, deve, por conseguinte, ser apenas o início de uma virtuosa jornada: o abandono do árido solo egoico em direção a uma solidariedade outra, elevada, verdadeiramente altruísta; a ponto de, no mínimo, incluir uma revolução àquele com quem se solidariza, e não apenas ao solidário.

Considerando isso, a solidariedade às crianças da Nigéria que se satisfaz com o singelo compartilhamento de uma imagem-texto que sequer se deu o trabalho de produzir, mas que diz “Eu estou com as crianças da Nigéria”; essa solidariedade que não se coloca “solidamente” no lugar delas, quiçá no lugar das mais de dezessete milhões de outras crianças também nigerianas e igualmente vulneráveis; essa solidariedade deve envergonhar-se de sua falta de evolução. Diante da dura realidade, o mínimo do real não basta. Nestes casos precisamos de um horizonte ideal. Mas devemos caminhar até ele, não apenas mandar e-mails ou tuítes. Outrossim, postar “Je suis Charlie” e esperar que a liberdade de expressão seja restaurada e definitivamente assegurada é uma ingenuidade inútil. Apenas o fato de ser superficialmente performática lhe assegura algum valor.

Não! Dizer “eu sou aquele com que me solidarizo” não muda nada! Muito pelo contrário, deixa a vítima sem salvador. Ora, no momento em que todos forem “as crianças da Nigéria” tal geração estará perdida. Elas precisam de Outros. O filósofo Terry Eagleton afirmou que “indivíduos perfeitamente auto-idênticos, que pudessem se nomear com toda a segurança, não sentiriam necessidade alguma de se revoltar”. “Volià”! É para se alienar da angusta experiência do Outro, ou seja, para não experimentar o seu real sofrimento, que o falso solidário diz o cínico “eu sou ele”. Foge do campo de batalha iludido de que participa da revolta. Entretanto, de forma alguma agente real da revolução. Entre dizer “eu sou aquele com quem me solidarizo” – e depois ir ao “shopping center” – e estar lá onde o objeto da minha solidariedade sofre, ao seu lado, ajudando-o concretamente, claro, há uma procissão virtuosa a ser percorrida. Para começar, no entanto, basta desconfiar da ilusão inerte que reside na primeira manifestação da solidariedade em nós.

Medo do terror: produto de Estado

O investimento midiático em eventos terroristas, como os que atualmente explodem nas grandes metrópoles mundiais, antes de apresentar soluções ao problema, causa sobretudo mais terror. Portanto, é bom averiguar se essa “indústria do medo” está aí para nos proteger do terror ou, ao contrário, apenas gerar necessidade de mais mercadorias suas, ou seja, segurança. Outrossim, é preciso recordar daquilo que perdemos na esteira da evolução social que nos protegia dos perigos dos Outros. Confrontando estas duas formas distintas de lidar com o perigo e com o medo, quais sejam, a contemporânea e a ancestral, é que podemos nos proteger, tanto dos medos que se originam em nós, quanto daqueles imputados de fora.

Em primeiro lugar, o sociólogo Robert Castel atribui o medo que assola os habitantes das grandes cidades ao individualismo moderno, à supervalorização do indivíduo. Isso fica claro quando lembramos que o bando foi a primeira instituição erigida – não só pelos humanos, vale ressaltar! – para proteger os frágeis indivíduos das ameaças dos Outros. Porém, no momento em que essa unidade protetora é historicamente desfeita – e a dissolução da família nuclear humana é um exemplo disso -, ficamos órfãos dos ancestrais laços que nos protegiam, inclusive do próprio medo. Ora, se o individualismo fosse uma boa ferramenta para uma sobrevivência segura, a natureza teria se valido dele desde o início. Mas, como podemos ver, o individualismo é um produto tardio e inócuo para tal fim.

A segurança que os bandos ofereciam aos seus indivíduos levou-nos à instituição urbana por excelência, ou seja, à cidade, lugar onde pagamos caro para ter proximidade com tudo aquilo que soluciona nossas necessidades, inclusive a de não sentirmos medo. Todavia, a cidade expressa a contradição entre o intuito de formar um imenso bando capaz de oferecer uma proteção de mesmo tamanho, e a justaposição asfixiante de muitos bandos distintos, cada um deles com necessidades igualmente distintas, o que, sobremaneira, reencena velhas ameaças, justamente aquelas que a cidade prometia resolver. A materialização dessa contradição, por conseguinte, são as nossas casas, que em vez de servirem para integrar-nos à cidade, hoje estão mais para casamatas invioláveis para nos proteger dela.

Nas megalópoles contemporâneas a contradição é maximizada. Nelas, o indivíduo não escapa da ameaçadora e solitária defrontação não apenas com o ancestral perigo do Outro, mas com o inominável terror do mega Outro, isto é, o resto da cidade inteira. A cidade engendra momentos de não-identificação, e neles o medo do Outro é majorado. O sociólogo Zigmunt Bauman começa dizendo que primeiramente “a gente da cidade não se identifica com a terra que a alimenta”; podemos seguir dizendo que tampouco se identifica com a natureza, visto que é sua negação; e terminar inferindo que a cidade é o instrumento através do qual o indivíduo experimenta a não-identificação absoluta, seja em relação a seus próprios pares, e pior ainda, seja consigo mesmo. A megalópole é uma máquina descontrolada que produz um medo até então inexistente na natureza: o medo de ser inadequado!
Como disse Bauman, “as cidades se transformaram em depósitos de problemas causados pela globalização”. E o capitalismo, motor lubrificado desse processo globalizante, fez das antigas e amistosas relações entre iguais uma plataforma de competição individual, na qual a sórdida busca de riqueza pessoal pressupõe antes de tudo que o indivíduo se coloque propositalmente enquanto um Outro ameaçador em relação a todos os demais. Os que enriquecem cumprem essa tarefa; mas, paradoxalmente, são os que mais sofrem do medo do Outro. Podemos ver que a luta que o capitalismo engendra não é só aquela, clássica, entre classes, mas também entre indivíduos de uma mesma classe, ou seja, a luta de todos contra todos. Portanto, no solitário ringue do capital, o medo de ser nocauteado é capitalizado, findando mais aterrorizante que o próprio golpe; e “o medo em si é o pior e mais penoso sofrimento”, completa Bauman.

Em função dos perigos decorrentes do Outro, da cidade e do capitalismo, historicamente foi instituído o Estado, a máquina maior que, entre suas controversas e duvidosas tarefas, tem, segundo Thomas Hobbes, o dever de atender ao anseio máximo dos indivíduos, qual seja: a proteção contra a morte violenta. O Estado é aquele que promete segurança do berço ao túmulo, mesmo todos sabendo que proteção absoluta é tão utópico quanto impossível. Então, para o Estado permanecer como herói possível, a culpa pela insegurança persistente deve ser atribuída a um Outro, isto é, a alguém de fora desse Estado. Quem primeiro recebe essa culpa é o estrangeiro. Para Bauman, a xenofobia serve para alienar os indivíduos da falta de solidariedade local. O Estado, por sua vez, precisa da xenofobia para justificar a sua incapacidade de cumprir a tarefa a que se propõe.

Daí a “indústria do medo”, produzindo e distribuindo massivamente medos-mercadorias objetivos, com os quais dissimula a incapacidade do Estado de suprimir a insegurança e o medo subjetivos. E no mundo capitalista globalizado não é de se espantar que tal mercadoria seja produzida no exterior, mas para o consumo interno. Hoje, o atual medo do terrorismo, que o Estado e o capital produzem para poderem seguir em pé diante de suas próprias e insustentáveis contradições, vem do mundo árabe, mais especificamente das fábricas clandestinas do islamismo radical. Basta ver a declaração do presidente François Hollande na esteira dos atentados que sacudiram recentemente a França: “Uma economia forte é o que precisamos para combater o terrorismo”.

Então, para separarmos o joio do trigo, e identificarmos quais medos provém dos indivíduos, e quais são produzidos e distribuídos pelo Estado capitalista, basta perceber o absurdo que se esconde na expressão-mercadoria “medo do terror”. Medo e terror são sinônimos; ambos apontam para a mesma coisa: a necessidade individual de proteção. Entretanto, a justaposição das duas palavras, em vez de reforçar o conceito, aumenta apenas o efeito. Ora, por que o indivíduo, diante do medo, iria duplicá-lo? Esse “sobre medo” é produzido pelo do Estado, sob o ditame capitalista, em uma época histórica em que a nova guerra contra o terror é mais lucrativa do que a velha guerra contra outro Estados. Isso porque, hoje, um Estado pode entrar em guerra apenas contra alguns indivíduos de outro, sem com isso interromper as fundamentais negociações comerciais entre eles.

O terrorismo que atualmente amedronta os indivíduos das grandes cidades é sintoma tanto de um individualismo supervalorizado, como dizia Castel, quanto da necessidade do capitalismo, encarnado em Estado, de se sustentar economicamente. Entretanto, para um Estado, a guerra contra o terrorismo é menor, mais facilmente administrável e mais barata do que a guerra contra outro Estado. Ao passo que para os indivíduos, essa sórdida estratégia significa uma dupla desvantagem, visto que, primeiro, são eles que objetivamente se defrontam como terror em ação, e não os abstratos corpos do Estado e do capital; e, segundo, mesmo antes de se defrontarem com o evento terrorista em si, os indivíduos já o amargam subjetivamente, conforme o Estado precisa.

Como, então, deixar Estado e capital a sós com os terrores que eles mesmos produzem, visto que ambos são apenas grandes abstrações, oriundas da interação real entre indivíduos concretos? Ora, forçar o terror generalizado apenas aos indivíduos que o geram! Quem são estes, contudo? Os proprietários das grandes fortunas mundiais, ora bolas! Pois são estes que, através do terror imputado aos outros, nada mais fazem do que assegurar suas próprias fortunas, ao lucro de não se aterrorizarem-se por isso. Por conseguinte, é só no descolamento em relação a esse macro terror funcional que os indivíduos podem escapar do “medo do terror”, para assim lidarem apenas com o medo, isto é, com seus medos. Desdramatizando propositalmente Hobbes, tais medos significam os ordinários medos de ser desrespeitado pelo vizinho, ludibriado pelo sócio de empreitada, ir mal de saúde, etc. Esses medos tem grão humano e, mais importante, foram os que primeiro instituíram os bandos, as cidades… e só então esse Estado aterrorizante.

A pele cortada da civilização

Em arquitetura, corte de pele é o desenho que evidencia a presença e a relação de todos os elementos do projeto que são ocultados pelas claras, vendáveis e adornadas plantas-baixas e fachadas. Podemos dizer que o corte de pele é a contemplação de toda a materialidade intrínseca da ideia arquitetônica. Outrossim, um projeto de civilização é formado por uma complexidade de elementos que se inter-relacionam, mas que permanecem ocultos sob a sua promissora ideia geral. Assim como o sujeito que compra uma casa em cujo corte de pele projetual estavam ausentes itens essenciais, digamos, a impermeabilização adequada entre o solo úmido e o piso da sala-de-estar, o indivíduo que “compra” uma civilização para si, alienado dos pormenores subterrâneos que a formam, somente descobrirá os defeitos desse projeto quando o belo e confortável tapete persa comprado num “Mall” em Miami estiver completamente encharcado.

Em respeito ao projeto civilizatório ocidental moderno, vendido através de plantas-baixas e fachadas ideais, graficadas pela mais sórdida especulação cristã-capitalista, não temos ideia de suas falhas estruturais até que se materializem problematicamente no devir dessa civilização. Um exemplo atual e polêmico é o defeito – recorrente e indesejado – proveniente da irredutível relação entre civilização e barbárie. É como se o corte de pele projetual da civilização à qual pertencemos tivesse subestimado a penetrante umidade selvagem, mas mesmo assim tivesse assentado o mais fino assoalho diretamente sobre um pântano movediço ancestral. Agora nossa cara mobília afunda na lama, e em vez de processar os projetistas da frágil casa, atônita e apressadamente demonizamos o lodo. Porém, é no corte de pele detalhado desse edifício que desde o início estava ausente o elemento essencial para conter ou lidar com a areia movediça da selva humana.

Uma vez habitando essa civilização defeituosa, sem que dela se possamos fugir, pois, rejeitando-a somos convertidos em selvagens rebeldes – Edward Snowden que o diga -, e devido ao desejo civilizado de resolver imediatamente tal conjuntura, resta-nos apenas analisar os elementos defeituosos dessa civilização, não no corte de pele do seu projeto, dado que há muito soterrado pelo reboco caído, mas na própria civilização partida. Pois bem, em relação às “goteiras” selvagens que insistem em pingar no meio do salão de espelhos da civilização pode ser dito o seguinte: a civilização, na receita de sua feitura, isto é, no seu corte de pele, não contemplou elementos que pudessem lidar com a intrusão e com a presença do selvagem, do radical, do extremista, sem, no entanto, na presença indesejada deles, agir como um.

Como aquilo que de antemão impediria a selvageria, o radicalismo e o extremismo de corroerem o nosso lar-doce-lar não se fez presente no projeto nem na construção da nossa civilização, talvez pelo fato dessa mesma civilização, desde lá, desconhecer soluções para a sua própria selvageria extrema, nós, civilizados, seguimos sem saber como lidar com ela, findando, por conseguinte, mais vulneráveis à selvageria do que ela a nós.

Hakim Bey, autor que nunca foi visto, sequer confirmado se é uma única pessoa ou um coletivo, colocou(caram) em seu livro, “TAZ – Zona autônoma temporária”, que “qualquer sociedade que você construir terá os seus limites. E para além dos limites de qualquer sociedade, … os selvagens – aqueles que não podem viver sem constantemente planejar novas e terríveis rebeliões.” Entretanto, há um desagradável agravante que sobremaneira nos compromete, pois a pretensa civilização deveria ser capaz de contemplar harmoniosamente o selvagem, coisa de que, logicamente, ele está dispensado.

A falha da má relação entre, por exemplo, o civilizado liberal e o selvagem fundamentalista, portanto, diz respeito mais àquele do que a este. Porém, para nos alienarmos disso, culpamos apenas a selvageria, seja pela sua irrupção impertinentes (fora dos programas da Natgeo ou longe das favelas), seja pela incapacidade da própria civilização em lidar com ela. Isso é evidente quando vemos o líder do “Partido pela Liberdade Holandês”, Geert Wilders, dizer que é preciso “limpar os marroquinos do país”; ou em movimentos nada diplomáticos, porém defendidos por forças de Estado, como o “Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente”.

Outra coisa que fez falta no projeto da nossa civilização foi algum elemento que soubesse tratar melhor dos os efeitos da globalização de que essa mesma civilização tanto promove. Os primeiros rascunhos do nosso mundo globalizado, feitos sobre a remota e desconexa superfície medieval composta por pontos isolados, separados entre si por milhares de quilômetros, subestimou o potencial problemático de uma interconexão generalizada e ostensiva como a que vivemos hoje. Na separação física e na desconexão estrutural do mundo feudal, os grandes contrastes sociais, embora tão reais quanto os nossos, decompunham-se em cinquenta ou mais tons de cinza até se alcançarem. Porém, na justaposição sufocante do mundo globalizado não há espaço para esmaecimento de opostos, tampouco para uma suave e sustentável transição entre eles.

O preto e o branco, o liberal e o fundamentalista, o civilizado e o selvagem, todos somos confrontados direta e constantemente. Observamos uns aos outros tão proximamente que mais parecemos afrontarmo-nos mutuamente. Em meio a esse intenso e inescapável atrito entre opostos, e órfãos de um projeto de sociedade que contivesse elementos que amortecessem tal atrito, a civilização responde à selvageria de forma igualmente selvagem. Conectamos pessoas e lugares; fizemos do mundo um único vernissage; no entanto, depois de suspender todas as fronteiras, físicas e virtuais, essa civilização globalizante é surpreendida pelo medo e pelo ódio ao estrangeiro invasor. Somos, hoje, vítimas da esquizofrenia que de um lado convida o indivíduo a circular pelo mundo, mas de outro, deseja mais do que nunca ter fechadas as suas fronteiras escancaradas.

O civilizado burguês acredita piamente que a resolução das contradições decorrentes da interação sobressaturada de sete bilhões de homens ao redor do mundo deve seguir os passos da diplomacia tediosa, despótica, e não menos burguesa, que se desenrola em torno da mesa de jantar das tradicionais famílias nucleares. Esquece-se, contudo, que tais núcleos sequer existem mais, solapados que foram pela individualidade pressuposta por essa mesma civilização. Esse lugar ideal, onde as maiores contradições são resolvidas de acordo com um roteiro prévio e acordado, e no espaço de poucas horas, existe apenas nos filmes de Hollywood – essa camelô capitalista de falsificação barata de vida real. Hoje em dia, para um ocidental típico, lidar com a selvageria e com o fundamentalismo significa, antes de tudo, compartilhar “slogans” pré-prontos nas redes sociais, prostrar-se diante da TV ou arrastar seu corpo coberto de mercadorias e desejos insatisfeitos pelos corredores lotados dos “shopping centers”, sem com isso perceber que apenas troca um fundamentalismo selvagem por outro, porém de grife e com nota fiscal.

Salta aos olhos, no corte de pele da civilização, um dispositivo usado sistematicamente, com o qual acreditamos nos livrar da selvageria ameaçadora do mundo, convencendo-nos de que estamos definitivamente protegidos, mesmo que o efeito resulte justamente o contrário do esperado: eleger para nossos governantes indivíduos ricos, que nos prometem proteção contra a selvageria perigosa, mas que na verdade apenas defendem a si mesmos e enriquecem ainda mais. O modo de assegurarmo-nos contra as intempéries indesejadas da extrema proximidade do Outro selvagem nos fez eleger e sustentar um modelo de Estado que, sob o pretexto de nos representar, representa sobretudo o perfeito estado do capital – essa besta selvagem -, utilizando-nos, sórdida e consensualmente, ora como alimento, ora como boi-de-piranha.

Com o Estado, de certa forma, voltamos à vida selvagem cuja proteção se dá através da eleição de um macho alfa, porém, nessa versão sofisticada, tal macho veste Prada e seu falo são cifrões. Nisso nos igualamos aos fundamentalistas religiosos que seguem um Deus onipotente e pleno de ditames que muitas vezes ceifa dos seus crédulos seguidores inclusive suas vidas. A diferença, no entanto é que o fundamentalista não elege novos Líderes a cada quatro anos, o que, paradoxalmente, parece mais lógico do que o hábito laico-democrático de substituir incessantemente um representante do capital por outro.

Mergulhando mais fundo no corte exposto da nossa sociedade, em relação à atual, entretanto recente, “fundamentalismofobia” – o novo “TOC” ocidental -, nem parece que até bem pouco tempo tínhamos um Deus tão onipotente como, digamos, Alá, perpassando todas as nossas instituições e volições. Liberalizamo-nos há pouco, a partir de um projeto europeu de morte de Deus desenhado por meia dúzia de cientistas que nada mais fizeram do que limpar o solo até então sagrado para as antiecológicas e gentrificantes doutrinações capitalistas. Talvez seja a catástrofe ecológica, talvez a social, ou ainda o fato de, na ausência do mandamento de Deus contra a ganância, ser permitido a pouquíssimos indivíduos o acúmulo inimaginável de riqueza – ou provavelmente isso tudo e muito mais -, vá lá: os defeitos do nosso projeto de civilização, antes de serem assumidos e sofridos por nós, devem ser repetidos e sofridos pelo lado do mundo que não matou os seus deuses ainda.

Por conseguinte, exigimos dos fundamentalistas que laicizem-se e se percam, como nós, na selva agnóstica que, entretanto, até hoje, não nos ensinou a lidar com a selvageria. Exigimos a laicização do fundamentalismo menos pela radicalidade de sua relação com o seu objeto fundamental representar uma ameaça a nós do que pela necessidade de vermos esse Outro repetir nosso erro, para assim, quem sabe, observando a sua performance, aprendermos o que não sabemos, isto é, lidar com o lado selvagem substantivo da vida.

Em respeito à liberdade, tão capitalizada nos bulevares ocidentais, há algo de errado na civilização cujo projeto a preconiza, mas que, no entanto, no edifício pronto, ela é sempre insuficiente. Cortemos essa civilização exatamente nesse nó nevrálgico e olhemo-la de face. Por ventura a liberdade invejável e inédita que a maioria dos ocidentais contemporâneos desfruta só se tornaria suficiente se vivida por todos? Ora, “dizer ‘só serei livre quando todos os seres humanos forem livres’ é simplesmente enfurnar-se numa espécie de estupor de nirvana, é abdicar da nossa própria humanidade, é definirmo-nos como fracassados”, responde Hakim Bey. O que podemos espremer dessa resposta? Primeiro, que a liberdade parece funcionar como o capital, ou seja, só tem valor enquanto alguns têm e outros não. Como sabemos, não basta imprimir dinheiro suficiente e distribuí-lo a todos para que impere a riqueza. Afinal, a riqueza só se materializa através de doses maciças de pobreza.

Da mesma forma, a liberdade precisa ser objeto exclusivo de alguns para que seja um valor universalmente reconhecido por quem a possui e por quem não. A falha que o presente corte revela é a seguinte: ao exigir que todos tenham a liberdade de que poucos desfrutam, estes afortunados nada mais fazem do que gerar, nos que carecem dela, esperança e necessidade de tê-la. Mas não para que a possuam de fato. Antes, os que já desfrutam de liberdade precisam que os não-livres, pelo simples fato de desejá-la, capitalizem-na, pois só assim os que já a possuem reconhecem o seu valor. Segundo, baseado numa ideia de Zizek, no momento em que todos os indivíduos tiverem garantia de liberdade, aqueles que já desfrutam dela não correm risco algum de ficar sem esse tesouro, pois, mesmo perdendo-o acidentalmente, ele seria reconquistado, pois garantido a todos.

Pois bem, na dificuldade cortar a pele, isto é, de fatiar o palácio da civilização de cabo a rabo para vascular em suas entranhas em busca de falhas estruturais – seriamos chamados de vândalos por isso -, ao menos podemos olhar para esse interior através das rachaduras provenientes dos seus ferimentos de guerra. De soslaio, uma ferida interna que nunca cicatrizou, porque nunca houve anticorpos que dessem conta dela, chama atenção: a selvageria que subsiste tanto nos cortesões salões da civilização quanto nos seus arrabaldes. E, de acordo com Hakim Bey, reconhecer a selvageria é um ato de desnudamento, o que não pega bem no baile de debutantes liberal, afinal, a nudez expõe o lado horrendo da obesidade burguesa. Sempre que um nobre habitante do condomínio californiano-versailleano revela o roto de suas vestes, ele é imediata e sigilosamente conduzido aos subsolos dos alcoólicos ou narcóticos anônimos, ou aos caros divãs psicanalíticos, mas de forma alguma é livre para ostentar o “botton” da civilização plena.

Todavia, o próprio processo de marginalizar faz com que a margem adquira uma aura mágica, libertária, pois somente nessa excentricidade há a possibilidade de ser aquilo que de fato somos, ou seja, ao mesmo tempo selvagens e civilizados. Ora, não é isso que buscamos nas “Raves” clandestinas? Claro, concorda Bey: “vamos admitir que temos frequentado festas onde, por uma breve noite, realizamos um império inteiro de desejos gratificantes. Não devemos confessar que a política daquelas noites têm mais realidade e força para nós do que, digamos, todo o governo dos Estados Unidos?”. Todavia, a dialética irredutível entre civilização e barbárie, encerrada em nós pelo projeto civilizatório mesmo, e que só aparece depois de um corte de pele ou de uma rachadura profunda, rouba-nos a liberdade de escolher livremente somente a “Rave” lisérgica.

Antes, somos obrigados a comparecer e a nos comportarmos civilizadamente no tedioso baile de máscaras do Rei para quiçá sermos homeopaticamente liberados à selvageria gratificante das festas clandestinas. Essa é a normalidade esquizofrênica do nosso meio-ambiente cultural civilizado. Entrementes, se o traslado entre civilização e selvageria dos Outros foge das regras do nosso, pronto, selvagens são eles e civilizados somos nós! Difícil é perceber que “no momento que a humanidade for obrigada, toda ela, a seguir uma regra geral, estabelece-se automaticamente uma escravidão igualmente generalizada”, assegura Hakim Bey. Se a contradição selvageria-civilização pudesse chegar a uma síntese, logicamente já teria feito. Se não fez até hoje é porque não pode. Então, vale a pena seguir exigindo dos Outros que erijam arquiteturas de vida livres dessa contradição se nós mesmos somos incapazes disso?

Crianças-bomba no mercado mundial.

Dez de janeiro de 2015, um mercado no norte da Nigéria, vinte mortos e quase o mesmo número de feridos. O mais chocante de tudo: uma criança-bomba. Esse último atentado do ano novo que começou ensanguentado do velho terror afronta a sociedade dos direitos humanos com uma imagem de difícil digestão: uma criança usada como arma de guerra. Na esteira do assassinato dos doze Charlies em Paris, o ocidente se prostra mais uma vez, atônito e indignado, como que novamente estuprado pelo despótico falo islamita. No entanto, a contragosto e contrassenso nosso, da parte dos extremistas radicais há razões para tal ato. Concordando ou condenando tais razões, é melhor ao menos considerá-las, afinal elas também povoam o nosso mundo – e num globalizado, cada vez mais proximamente.

Uma criança usada como bomba, que para nós representa uma barbárie duplamente inadmissível, para um radical fundamentalista, no entanto, significa uma dupla vitória. Para um muçulmano radical, dar a vida por uma causa santa é obter de Alá a garantia de um lugar cativo no mais elevado paraíso eterno. No caso das crianças é a mesma coisa. Pelo que se sabe, as crianças-bomba são preparadas por suas próprias famílias, em rituais nos quais seus parentes as vestem para o derradeiro, ao mesmo tempo em que rezam e agradecem a Deus a oportunidade de servirem a Ele, bem como a de, através do oferecimento da vida dessas crianças a Ele, livrá-las desse mundo de pecado em direção ao paraíso livre de qualquer mal.

O controverso sacrifício de crianças por causas espirituais, entretanto e infelizmente, não é exclusividade dos islamitas radicais, mas também de muitas rodas ocidentais, não menos radicais. No final de 2014, no livro “Tudo o que vi e vivi”, Roseane Malta, ex-Collor, contou que seu ex-marido, o nosso ex-presidente da república, praticava rituais macabros, em busca de força e proteção, envolvendo fetos comprados exclusivamente para esse fim. Embora não fossem ainda crianças, tais fetos seriam caso o político-marajá não os tivesse utilizado. Ademais, não nos esqueçamos de que o nosso pujante capitalismos contemporâneo, em épocas não muito distantes se utilizou – e em alguns lugares ainda se utiliza – de suas crianças, não como bombas, mas como combustível ao funcionamento de sua sórdida engrenagem.

Parafraseando Aristóteles, a morte se diz de muitas maneiras. Basta ver a diferença com que os ocidentais e os muçulmanos a encaram. O que para um é o fim, para outro é só o começo da vida que vale a pena ser vivida. Duelar com um radical fundamentalista, por conseguinte, traz uma desvantagem inglória: nós tentamos evitar a morte tanto quanto possível, nos aterrorizamos com ela, enquanto para muitos deles é o atalho para a mais digna e desejada evolução espiritual. Cada um dos dois lados se aferra às suas próprias verdades. Do nosso, adoraríamos que a radicalidade islâmica se dobrasse à diplomacia ocidental burguesa, aguerrida aos prazeres mundanos, iphones e gordura-trans. Para isso, entretanto, seria necessário suspender o Alcorão e reescrevê-lo, coisa que eles não parecem estar dispostos a fazer. O Islã, por sua vez, usa de todas as suas armas – inclusive suas crianças – para que os infiéis ocidentais abdiquem do seu “way of life” e reconheçam as fundamentais leis de Alá. Outrossim, precisaríamos reescrevermo-nos completamente.

Todavia, ao lado da realidade radical que veste crianças com coletes-bomba está a realidade ocidental que veste as suas com outros “coletes”, não menos radicais, perigosos e reprováveis. Muitas famílias burguesas não se importam em vestir os seus pequenos com “coletes” adidas feitos por mão-de-obra escrava infantil asiática, por exemplo. Porém, nesse caso, a bomba explode bem longe dos shoppings centers – os templos sagrados da sociedade ocidental – nos quais compram e desfilam tais “coletes”. Sem falar nos apertados “coletes” da anorexia e da bulimia; nos largos, da obesidade; ou ainda nas vestes obrigatórias do consumismo massivo e antiecológico que cada vez mais nossas crianças de olhos azuis são obrigadas, pelo radicalismo da publicidade capitalista, a digerirem. Uma diferença entre as bombas-relógios com as quais os ocidentais democráticos e os muçulmanos radicais vestem as suas crianças é que as daqueles explodem futuramente, enquanto as destes, imediatamente.

Paralelo ao ódio que a sociedade ocidental tem do terror está o seu inalienável deleite com imagens de morte, destruição e mutilação que povoam as suas produções hollywoodianas. Porém, quando elas se materializam pelas mãos dos seus inimigos, mesmo que vistas apenas pelo Youtube, essa mesma sociedade odeia e condena tais imagens. Impossível não citar a dupla complementar “Independence Day” x 11/9. Sobre a tão falada e ameaçada liberdade de expressão ocidental, símbolo do atentado aos doze Charlies, nossa sociedade capitalista só nos oferece tal liberdade, e prima por ela, porque tudo o que podemos dizer, de antemão já foi tornado insípido, inofensivo, laicizado. Ora, não nos iludamos, pois foi só depois de esvaziado e monitorado o perigo residente no ato de expressar-se livremente que nós ganhamos tal liberdade! Lembremos de Edward Snowden: um ocidental admirável que não pode usufruir da liberdade de expressão pressuposta no seu mundo livre, que teve de se refugiar dele devido ao terror que sofreu – e sofre – por conta do radicalismo ocidental – da CIA.

Alheios ao nosso contraditório “way of life”, porém contrapostos a ele, estão os muçulmanos, mais ainda os radicais, tão cegos e contraditórios em relação às suas próprias verdades quanto nós em respeito às nossas. De qualquer forma, eles repudiam e se horrorizam com as bombas de gordura-trans com as quais explodimos as nossas crianças, ou com as implosões de frustração que as ensinamos sofrer por não terem, por exemplo, o iphone ou o “App” da vez. Aterrorizam-se com o que fazemos das nossas crianças da mesma forma como nós nos aterrorizamos com o TNT e com a promessa de paraíso ideal com os quais explodem as suas. É muita parcialidade e inadvertência acreditar que o inimigo contra o qual o ocidente livre, expressivo e democrático já luta não existe nocivo dentro dele mesmo. No entanto, a psicanálise explica, é mais fácil colocar a culpa no Outro, pois assim flutua-se sobre uma superfície ilusória e funcional, cuja profundidade, necessária e caótica, no entanto, esconde a difícil verdade: “eles” e “nós” somos a um só tempo uma única coisa, seres humanos.

Do nosso lado, dissimulamos o caos do mundo através do insustentável “romantic consumerism”, da histérica magreza anoréxica-bulímica, de padres-banqueiros-cantores-pedófilos, do sucesso-riqueza a qualquer custo, já que o custo irá aglutinar-se bem longe, em favelas da América Latina, Ásia ou África. Do lado dos islamitas radicais – esses indesejados interlocutores justapostos a nós pelo mundo globalizado – o caos é melhor resolvido através de guerras santas – coisa que o ocidente cristão fez muito no passado -, da adesão aos mandamentos fundamentais do seu profeta, mas de forma alguma na alienação em relação a esse caos, como nós fazemos diante da TV ou no shopping. Como ficar espantado pelo fato de os radicais quererem resolver imediata e definitivamente as suas questões mais fundamentais? Isso só se explica porque o ocidente está burguesamente condicionados a empurrar esse caos com a sua gorda barriga para as gerações futuras, para a natureza ou para os países pobres. Nós tentamos mudar o mundo explodindo-nos, seja em postagens no Facebook, seja no McDonald’s seja . Eles, por sua vez, explodindo próprio mundo a ser mudado, ainda que eles mesmos ou as suas crianças sejam explodidos junto.

O ocidental pós-Deus acredita que o tempo profano terminou com o fim da Idade Média, e por isso permite que tudo seja profanado, inclusive ele mesmo, apático e desiludido que está. Mas para o outro lado da moeda-mundo a profanação vive e é um mal a ser evitado a qualquer custo, inclusive ao custo de vidas infantis, aprovemos ou não. Seria ideal se “eles” mudassem ao toque das nossas mudanças. Todavia, o mundo é real, não uma ideia-projeto ocidental de condomínio californiano, em cujas alamedas crianças gordas correm e se expressam livremente, correndo o risco máximo de serem molestadas por algum padre católico, ou de sofrerem um “bullyingzinho” dos seus colegas de escola. Esse terror é o nosso, e em relação a ele nos acostumamos, sustentando o Vaticano e mandando de volta as crianças à escola. Já o terror dos outros, ah, esse não aceitamos! Condenamo-lo veementemente. Que delícia uma Fera que nos faça parecer Bela! Que ilusão boa o Monstro reforçar o nosso ideal de Médico!

No entanto, a perversão que faz da monstruosidade do Outro um reflexo da nossa perfeição tem uma imagem real do lado de cá do espelho. Atenção! O Outro apenas espelha o nosso Ser; afinal, é só para nós mesmos que olhamos. Ao mesmo tempo, esse Outro é a testemunha indesejada do que realmente somos; por conseguinte, completa nosso Ser; ainda que parte desse ser que somos não nos caia muito bem e distorça a imagem que desejamos projetar no espelho do mundo. A criança-bomba islamita que explodiu na Nigéria tem seu correlato do nosso lado livre-democrático do mundo, tenhamos nós capacidade – ou estômago – para assumir isso ou não. Porém, ao fazermos daqueles que explodem as suas crianças em mercados públicos o mal absoluto, dissimulamos a explosão de obesidade, de consumo e de hiperatividade a que submetemos as nossas, pois são bombas que não explodirão agora, mas logo mais, em outros mercados. Nesse lapso insustentável que produzimos, vestimos o “colete” de qualidades ocidentais com os quais queremos explodir as diferenças do mundo, colonizá-lo e pasteurizá-lo ao nosso modo.

Seria ideal que mais nenhuma criança fosse explodida nos mercados no mundo, seja por TNT, seja por valores burgueses decadentes. Ora, não há nada de errado em buscar tal ideal, afinal, essa parece ser a sina do real. Entretanto, para mudar o real há que primeiro conhecê-lo, aceitá-lo, entendê-lo; assumi-lo em sua absurdidade, sem com isso isentar-se dessa absurdidade ou cindi-la maniqueistamente, escolhendo o melhor lado para si. Pouco importa como crianças são explodidas, se lenta e privadamente ou repentinamente e publicamente. Esse bicho que povoa a terra contemporânea só será realmente humano quando encontrar – ou reencontrar – um modo de vida que o dispense de explodir a si mesmo ou aos outros, principalmente os seus filhotes, os menos responsáveis pelo caos produzido, entretanto não suportado, pelos seus progenitores. Por maior que seja a sujeira que “eles” e “nós” atualmente vemos um no outro, e por mais apressados que estejamos para limpá-la, somente as ondas da história lavarão esse presente imundo. Quiçá restará uma memória plana e totêmica a aterrorizar o ser humano sempre que ele pensar explodir alguém ou alguma coisa pelo simples fato de suas diferenças em relação aos seus iguais.

A liberdade de expressão do inimigo

O ocidente é apaixonado por liberdade. “Liberté, égalité, fraternité”. “America is a free country”. Entretanto, no escopo desse objeto tão prezado jazem também liberdades funestas, como a liberdade para explorar outros seres humanos, para destruir a natureza, outras culturas e religiões. Depois do atentado ao Jornal Charlie Hebbo, em Paris, a liberdade de expressão está em voga devido à retaliação que os jornalistas-cartunistas sofreram por se expressarem livremente sobre o profeta muçulmano Maomé. Porém, o ocidente parece se esquecer de que toda expressão tem um efeito sobre quem ela atinge, iniciando assim uma dialética que escapa às cercanias inicialmente pensadas. Ao menos devemos tentar entender, quiçá aceitar, a liberdade de expressão daqueles que se confrontam com a nossa. Ainda mais se formos difamar a crença daqueles que têm por lei escrita a seguinte, presente no Alcorão: “Ai de todo o difamador, caluniador Sem dúvida que ele será precipitado naquilo que consome”.

Ao condenar imediata e livremente os jihadistas que atuaram em resposta à “livre expressão” jornalística do jornal francês, é negado que eles tenham direito a um modo próprio de expressão, pois em desacordo com os valores ocidentais, dado que a liberdade e a forma com que se expressaram são diametralmente distintas das aceitas por nós. Entrementes, em nome da liberdade de expressão ocidental, é prudente passar por cima do fato de que as leis que regem os combates políticos, culturais e espirituais muçulmanos são exatamente as mesmas da virtude e da ação militar, considerando que, quando a porca aperta o rabo, o ocidente não se roga em agir da mesma forma? No caso de Hebbo, expressar-se livre e jocosamente sobre Maomé, sabendo que este disse aos seus fiéis: “Uma vez em combate, ide até o fim. Morte ou vitória deverá ser o lema de todo o Soldado”; e ainda assim esperar que esses fiéis não agissem com igual liberdade, porém com a seriedade com que as suas leis sagradas exigem, não seria, no mínimo, uma ingenuidade do ocidente?

Maomé, no Alcorão, elogiava os seus fieis: “essa gente é viril, leal e contente, e pronta a sair a campo contra qualquer inimigo”. Outrossim, nós, ocidentais, também nos consideramos uma gente viril, leal e contente, pronta a sair a campo contra qualquer inimigo. Onde, então, está a diferença que faz com que nós possamos nos expressar livremente, a nosso bel-prazer, e eles não? No fato de “eles” matarem inocentes? Ora, por ventura o ocidente já não matou – e ainda mata – milhares de inocentes em suas ações militares por conta de petróleo e mercado; milhares de africanos em prol de empreendimentos farmacológicos; isso sem falar da natureza, morta sistematicamente em nome do bem-estar do “american way of life”? Ou seria pelo fato de “eles” apologizarem o terror? Sim, no livro sagrado dos muçulmanos está escrito: “infundiremos terror nos corações dos incrédulos […]. Sua morada será o fogo infernal”. Entretanto, apesar de o ocidente não colocar tais admoestações nos seus livros, isso não quer dizer que ele não aja assim, e sistematicamente, inclusive com os seus. Basta ver o terror que os EUA imputa ao seu próprio povo.

Depois da morte dos doze “Charlies”, nós, ocidentais fizemos deles ídolos imediatos de uma unilateral liberdade de expressão ameaçada, no intuito de garantir a permanência dessa mesma liberdade de expressão que, entretanto, gerou tais mortes. A instantânea idolatria solidária à Charlie Hebbo, simbolizando o apego a uma liberdade de expressão da qual o indivíduo ocidental não se imagina sem, em vez dessa idolatria amenizar a tensão, só a aumenta, pois, para os radicais que assassinaram os jornalistas, vale o que Maomé disse: “os piores inimigos dos fiéis, entre os humanos, são os idólatras. Enquanto os ocidentais idolatram as suas próprias vítimas, além de dar munição ao inimigo, criam assim ícones-ídolos, sempre novos, que se sucedem e se e esmaecem sob a sombra um do outro. Maomé, por sua vez, no projeto de reforçar o foco e o objetivo dos seus, disse: “Ó fiéis, quando vos enfrentardes com o inimigo, sede firmes e mencionai muito Deus, para que prospereis”. Caso os muçulmanos repetissem os nomes dos muitos guerreiros muçulmanos individuais que sucumbem nas muitas batalhas que historicamente desenrolam em vez do nome de Alá, esses guerreiros seriam tão taticamente disléxicos como nós, ocidentais, que ora dizemos o nome de um, ora o de outro.

Querendo perpetrar-se imperiosamente, o ocidente espera, ao modo de já agir nesse sentido, que seus inimigos, radicais ou não, tornem-se iguais a ele, de uma forma ou de outra. O ocidente, portanto, persegue os seus inimigos. Já a lei islâmica ditada pelo profeta prega algo diferente, mais radical, porém, sob determinado ponto de vista, bem mais eficaz: ”Matai-os onde quer se os encontreis […], porque a perseguição é mais grave do que o homicídio”. Diante da guerra, os líderes brancos-cristãos-ocidentais dizem aos seus o mesmo que Maomé aos dele: “Mobilizai tudo quando dispuserdes, em armas e cavalaria, para intimidar, com isso, o inimigo de Deus e vosso”. Entretanto, devido a sua afeição à vida mundana, o ocidental não frui de uma vantagem que Maomé garantiu aos seus fiéis em caso de adversidade máxima: “não desfaleçais na perseguição ao inimigo; porque, se sofrerdes, eles sofrerão tanto quanto vós; porém, vós podeis esperar de Deus o que eles não esperam”. Na morte de ambos, portanto, o muçulmano é sempre o vencedor.

Embora seja usual o ocidente escolher os seus inimigos – geralmente por motivos econômicos que só ulteriormente se desdobram em políticos, sociais, culturais, religiosos, etc. -, inimigos não se escolhe. Uma vez em “combate, muni-vos das melhores armas contra o vosso inimigo, a ponto de lhes imprimirdes inteiriço respeito, por vós e pela Causa por que lutais”, disse Maomé aos seus; o que, em outras palavras, é o mesmo dito dos ocidentais. O desdobramento mais recente na guerra entre ocidente e o islã, sob a tagarela ótica ocidental, é a ameaça à liberdade de expressão, simbolizada pela morte dos jocosos cartunistas do Charlie Hebbo. Por outro lado, do ponto de vista dos assassinos jihadistas, significa apenas a punição prevista em suas leis sagradas a quem desrespeita Alá ou Maomé. É fundamental abarcar a irredutibilidade dessa dialética, entendendo que, de um lado, o ocidental tem o seu direito em crer que a liberdade de expressão é um deus seu a ser defendido e preservado acima de tudo, enquanto o muçulmano radical, de outro, também tem o seu direito de lutar até à morte pelo seu Deus.

Podemos momentaneamente reduzir a última página da relação conflituosa entre ocidente e Islã, o caso Charlie Hebbo, como uma disputa de deuses: Alá, o deus muçulmano “versus” a liberdade de expressão, a atual deusa ocidental. Notemos que para “eles” o deus é sempre o mesmo, enquanto para “nós” poderia muito bem ser outro. Percebendo isso, então, qual dos dois objetos é mais valioso, perene, e por que não dizer, necessário? Embora não seja uma solução elevar as leis de Alá acima das contingentes e muitas vezes confusas necessidades ocidentais, “nós” temos de considerar um espaço de igualdade para elas. Do contrário, só a expressão ocidental será realmente livre, o que, absolutamente, não representa liberdade alguma, mas sim a falta de liberdade dos outros em se expressarem. Se for assim, me desculpe, o ocidente merece sofrer a ira do inimigo até aprender que não deve ser mais livre do que ninguém.

O quadro é o seguinte: ocidentais fizeram livremente uma charge com valores muçulmanos sagrados “e” muçulmanos – radicais – fizeram a sua, em retaliação, não menos livremente, contra um valor ocidental sagrado, a liberdade de expressão. No entanto, a eleição da charge legal e admissível deve ser somente a que atende às necessidades e aos valores ocidentais? Claro, temos que considerar que a feitura de uma não envolve mortes, enquanto a outra, sim. A síntese das duas, não obstante, gerou mortes. Não seria o caso, então, de rever como esses valores se relacionam entre si, e aonde um pode respeitar o limite do outro? Pois, se é retaliação o que os radicais jihadistas alegam em respeito à charge que jocosamente “profanou” Maomé, e se isso é irredutível para eles, seria o fim do mundo ocidental privar-se de fazer troça de valores que para outros são sagrados? Maomé disse que se os inimigos os Islã infringissem tal conceito, os muçulmanos ficariam livres para, igualmente, o infringirem. Aqui, a palavra “reciprocidade” expressa melhor essa conjuntura.

A liberdade de expressão que o ocidente quer manter, a despeito mesmo da resposta recebida através do atentado parisiense, precisa, para existir, cruzar os limites daqueles que não podem ter seus limites cruzados? Os muçulmanos, mais ainda os seus radicais, não foram condicionados, como os ocidentais, a esquecerem de suas questões mais fundamentais na frente da TV ou sob pilhas de mercadorias e gordura. Para um muçulmano que se preze, “uma vez a luta iniciada, participai dela como todo o vigor e desferi os vossos golpes nos pontos mais vitais. Não podeis manipular a guerra com luvas de pelica”, conclamou Maomé, em pleno desacordo com a diplomacia moderna; até porque, segundo o profeta muçulmano, “nestes passageiros ensejos terrenos, a providência e a justiça de Deus nem sempre se apresentam evidentes aos nossos olhos”, por isso, para ele, “alguma destruição se faz necessária para se pressionar o inimigo, e por isso é permitida”.

Por mais radicais que pareçam as leis do Alcorão, há também nesse livro sagrado lições de moderação, muitas delas bastante parecidas com as ocidentais, como por exemplo: “Nosso dever é sermos tolerantes, dentro dos limites da tolerância”. Esse limite, no entanto, parece ser igualmente problemático, tanto a um muçulmano radical quanto a um ocidental, inclusive ao mais democrático; todavia, para aquele, tal limite é bem mais claro. O radicalismo ocidental, por sua vez, esquece-se de coisas que os muçulmanos, por lei, são obrigados a cumprir, como por exemplo, a advertência maometana de que “nem tampouco a paz deve ser negada quando o inimigo a propõe”, afinal “é possível que Deus restabeleça a cordialidade entre vós e os vossos inimigos, porque Deus é Poderoso, e porque Deus é Indulgente, Misericordiosíssimo”. Mas, diante dos ditames ocidentais, quase nunca a voz do inimigo tem lugar, ainda que seja um clamor por paz.

Para encerrar, em contraposição à sagrada e ameaçada liberdade de expressão ocidental, essa que quer ter o direito de seguir atropelando livremente valores, sejam os seus próprios, sejam os alheios aos seus, vale a pena colocar uma singela referência à expressão humana contida no Alcorão, boa de um cartunista ter em mente no caso de desenhar profetas sagrados: “o rosto é a principal expressão da real essência do próprio homem; ele constitui, também, o índice da sua fama e estima”. Charlie Hebbo distorcia os rostos de quem caia em suas charges. Poderia, entretanto, ter evitado fazer o mesmo com o de Maomé, em respeito, ou até mesmo em precaução, afinal, há quase 1400 anos todos sabemos que tal ato obriga os seguidores do profeta a uma retaliação. De qualquer forma, considerando que a liberdade de expressão ocidental deva ser assegurada, qual o tamanho dessa liberdade? Deveria ser ilimitada, mesmo que dessa falta de limites decorra retaliações que roubem vidas ocidentais? Ou, antes, a liberdade mais importante a ser construída e compartilhada entre ocidentais e muçulmanos não seria, por ventura, aquela que os liberte finalmente da profanação daquilo que para cada um deles é mais sagrado, seja Maomé, seja a liberdade de expressão?

# s o m o s t o d o s j e s u i s c h a r l i e ?

Em poucos instantes as manifestações de solidariedade às vítimas do atentado contra o jornal Charlie Hebbo tornaram-se massivas. Assim também foi depois de o futebolista Daniel Alves ser simbolicamente chamado de macaco pelo arremesso de uma banana. Entretanto, manifestações de massa, ainda que objetivamente concatenadas em torno de objetivos únicos e legítimos, pela simples multiplicidade de seus agentes, guardam um universo de significados outros que, no calor e na imediatez das hashtags que as conduzem à constelação social, passam batidos.

A massiva replicação do “Je suis Charlie”, por sua vez, também oculta um desserviço, pois, de acordo com a dramática afirmação do psicólogo e sociólogo Gustave Le Bon, “pelo simples fato de pertencer a uma massa, o homem desce vários degraus na escala na civilização. Isolado, ele era talvez um indivíduo cultivado, na massa é um instintivo, e em consequência um bárbaro”. Se Le Bon está certo em dizer que há uma “diminuição da capacidade intelectual experimentada pelo indivíduo que se dissolve na massa” – ideia reiterada ulteriormente por Freud -, a primeira evidência provém justamente da frase-ícone que sucede as hashtags e que reúne essas massas solidárias.

Ora, ninguém que se solidarizou com o Alves era de fato macaco. Aliás, afirmar algo para negá-lo, embora irônico, é trabalho dobrado que não atinge diretamente o objetivo principal, se é que atinge. Tampouco os que hoje se dizem Charlie diminuem a gravidade da situação sofrida pelos doze funcionários do jornal com tal afirmação. Entretanto, através dessas afirmações impertinentes é que tais massas se formam, pois, “as massas nunca tiveram a sede da verdade. Requerem ilusões”, realizou Freud. Todavia, essas ilusões são verdadeiras, dado que cimento dessas mesmas massas.

A força dos “#somostodosmacacos” e dos “#jesuischarlie se utiliza de uma fraqueza nossa: “primeiro cedemos nas palavras, e depois, pouco a pouco, também na coisa”, afirma Freud. Depois de vermos e repetirmos que somos macacos ou Charlies, na medida em que vemos outros fazendo o mesmo, restam no mundo menos indivíduos indignados com o racismo e com o terrorismo e mais macacos e Charlies. “Tendo perdido a sua personalidade consciente, [o indivíduo massificado] obedece a todas as sugestões do operador que as fez perdê-la”, assegura Le Bon. Isso porque, completa o sociólogo, o indivíduo na massa adquire, pelo simples fato do número, uma ideia de poder revolucionário. Todavia, apenas uma ideia.

Sucumbindo à abstrata histeria coletiva que convence de que só em massa é possível revolucionar uma situação indesejada, aquilo de concreto que levou uma consciência individual às portas das hashtags meméticas, e que imediatamente a coopta e massifica, é diminuído. A partir de então, mais forte é a performance coletiva, na qual o indivíduo facilmente aliena-se daquele germe genuíno que o levou a pertencer à massa performática. Entrementes, é na concretude única da indignação individual, na sua distinção em relação à indignação dos outros indivíduos – porém, ao lado destas, sem no entanto confundir-se com elas -, que vive o germe concreto que, justaposto coletivamente, produzirá frutos não menos concretos.

A massificação enterra os milhares de propósitos individuais que, juntos, porém distintos, formariam um corpo heterogêneo e complexo, para colocar nos seus lugares, sobre a terra vazia, um único corpo, abstrato e homogêneo, passível de sucumbir à força de qualquer outra abstração igual ou maior que ele. O indivíduo, na massa, aponta Freud, “embora deseje as coisas apaixonadamente, nunca o faz por muito tempo, é incapaz de uma vontade persistente”. Isso porque a massa obriga “o indivíduo sacrificar facilmente o seu interesse pessoal ao interesse coletivo. Eis uma aptidão contrária à sua natureza”, completa Le Bon. É dessa forma que a coletividade tira a força efetiva e perene dos impulsos individuais. Além do que, em se tratando de soluções desejadas, porém ainda não encontradas, “o rebanho rejeita tudo o que é novo, inusitado”, alega Freud.

Os interesses coletivos estão a pretexto dos nossos interesses individuais, sempre menos genuínos que eles. Coletivamente, “performamos” mais no sentido de aprender com os outros novas maneiras de resolver questões individuais, para as quais não temos solução, do que solucionarmos questões globais com as nossas individualidades sempre limitadas. O problema da individualidade é que ela resume o universo – seus problemas e soluções – na órbita do indivíduo. Então, para aprendermos com os outros algo que nos escapa, devemos observá-los, conviver com eles até as suas diferenças nos parecerem habituais, nossas. Como disse Freud, “somente em massa os indivíduos suportam a especificidade dos outros”. Por conseguinte, é através das especificidades dos outros que encontramos soluções específicas para as nossas questões individuais.

Então, o que buscamos individualmente na adesão solidária e coletiva aos #somostodos e aos #jesuis, considerando que, segundo Freud, o egoísmo é a força que nos move? O psicanalista tem a resposta: a ideia da “mudança do egoísmo em altruísmo”, ou seja, a ilusão de que os outros importam tanto ou mais do que nós mesmos. A necessidade de esquecer, ainda que temporariamente, do nosso egoísmo estrutural é ancestral, dado que o homem primitivo “não amava ninguém exceto a si mesmo, ou amava os outros apenas enquanto satisfaziam as necessidades dele”, colocou Freud. Envergonhamo-nos dessa barbárie que insiste evolução-adentro, por isso o altruísmo nos faz sentir tão bem, mesmo que contrário aos nossos imperiosos interesses individual.

O filósofo Slavoj Zizek também sustenta que o altruísmo aponta para nada além de um egoísmo que não sabe se assumir, condenando inclusive os atos humanitários internacionais. Pois, apesar da “mise-en-scène” filantrópica, o que os ricos querem ao ajudar os pobres necessitados é, na verdade, a garantia, para si mesmos, de tal assistência em caso de, futuramente, sofrerem dos mesmos revezes. Eles, portanto, garantem, através da ajuda presente aos outros, ajuda futura a si próprios. Daí levam internet wi-fi a quem carece de água potável e bombas para onde a tensão social já é insuportável. Por conseguinte, de acordo com a ideia desse filósofo, a adesão humana e solidária à tragédia de um outro, por exemplo, às vítimas do jornal Charlie Hebbo, através do “hashtáguico” “je suis Charlie”, seria antes um clamor individual no sentido de garantir a quem o repete o seu próprio direito de expressão e de vida. Mas para enxergar isso é preciso aceitar que o egoísmo é a raiz dos nossos atos, ainda que, acima de sua superfície, ele tome reflexões altruístas.

No entanto, o corpo altruísta que devém desse egoísmo substancial pode gerar, e inclusive gera frutos positivos. Há um universo incontestavelmente bom na solidariedade, pois nela superamos esse egoísmo, ao modo de esquecê-lo. O problema é que, solidarizando-nos em massa, esquecemos demais do egoísmo individual, e nestes momentos nos iludimos de que o homem é um ser altruísta por natureza, o que não procede. Aliás, tal ilusão é o berço de novos e perigosos egoísmos. Como, então, aproveitar a positividade da massa sem que ela aliene o indivíduo de sua negatividade? O psicólogo William McDougall responde: “dotar a massa com os atributos do indivíduo”, isto é, “prover a massa daquelas mesmas qualidades que eram características do indivíduo e que nele foram extintas pela formação da massa”. Assim, o indivíduo, esse tijolo concreto, não desaparece na abstrata parede formada pela coletividade.

O indivíduo não deve, portanto, alienar-se de sua individualidade, pois nela, além de um egoísmo pernicioso a ser devidamente tratado, há uma indignação e um potencial únicos que, não obstante, é facilmente preterido e perdido em função da luta coletiva que se desenrola a partir dos #somotodosmacacos ou dos #eusoucharlie. A memória dos que morreram no atentado contra o jornal Charlie Hebbo ontem, em Paris, estaria mais solidarizada caso os milhares de indivíduos que se massificaram na sequência das hashtags, em vez de abstraírem-se nelas, ressaltassem as suas concretas individualidades e as colocassem, não menos concretamente, em solidariedade às vítimas de tal atentado. Por exemplo: eu, fulano, me solidarizo com beltrano, pelo mal imputado a ele por sicrano; ainda que, de acordo com Freud, o subtexto fosse: eu, fulano, me solidarizo comigo mesmo, no sentido de evitar que eu sofra de sicrano o mesmo que beltrano sofreu.

Para Freud, “a compaixão surge somente a partir da identificação”. Então, forçando a palavra “identificação” para além dos sentidos de reconhecimento e aceitação intencionados pelo psicanalista, e buscando o sentido de apontamento, de admissão que a palavra também possui, a compaixão, verdadeiramente, só viria após uma identificação inequívoca de quem a sente. Portanto, ao dizer “eu sou aquele com quem me solidarizo”, deixo de identificar quem verdadeiramente se solidariza, e o pretenso solidário se abstrai. Ora, há algo menos solidário que uma solidariedade abstrata, sem nome e sem rosto? Até parece que ela se esconde por saber do egoísmo que a move. Inversamente, mesmo que fossem em menor número, meia dúzia de fulanos, sicranos e beltranos individuais, devidamente identificados, portanto assumidos, seriam mais solidários. Aliás, por ventura há maior solidariedade do que a assunção da transposição do egoísmo imanente ao altruísmo transcendente?

O fenômeno da imagem

O que é uma imagem? Pensemos. Entretanto, como dar uma resposta precisa se a imagem vem antes do pensamento? Então, como saber disso se, de acordo com Gaston Bachelard, “em sua simplicidade, a imagem não tem necessidade de um saber”, não quer resumir conhecimentos. Isso porque a imaginação, quando se interessa por uma imagem, acrescenta-lhe valor, modifica-a, torna-a outra, embaralha qualquer saber prévio. As imagens resistem ao dimensionamento e à quantificação; isso é parte de sua natureza. A outra parte é que elas são feitas apenas para serem vividas, pois “a verificação faz as imagens morrerem. Imaginar será sempre maior que viver”, disse o filósofo.

Então, primeiro imaginamos, depois vivemos tais imagens, e isso é tudo acerca do fenômeno da imagem. Até as maiores obras de arte são simplesmente subprodutos tardios e parciais de um ser imaginante. É inútil insistir numa imagem, fixá-la, pois ela não substitui um objeto; não é cópia de um fato. É suficiente que a imagem exista; supérfluo que seja verdadeira: ela é! O importante, segundo Bachelard, é estar “presente à imagem no minuto da imagem; no próprio êxtase da novidade da imagem”. Como, então, pergunta-nos o filósofo, “viver os abalos que o ser recebe das imagens novas, das imagens que são sempre fenômenos da juventude do ser?” Como dar a nós mesmos, diante de uma mesma imagem, a oportunidade de novos choques?

Ora, o melhor jeito para viver o fenômeno da imagem – por mais tautológico que pareça, é fenomenologicamente. Isso porque a fenomenologia, sobretudo, abandona o passado para viver exclusivamente a novidade do fenômeno, de forma alguma reencenando espetáculos que já pertencem ao passado. Bachelard nos adverte de que, “para um fenomenólogo, procurar os antecedentes de uma imagem, quando se está na própria existência da imagem, é sinal inveterado de psicologismo”. O fenomenólogo da imagem, portanto, deve buscar a efemeridade de tudo o que passa pela sua imaginação, orientar-se pela brevidade das imagens que brotam incessantemente.

Se um átimo da imagem já é toda ela, isto é, tudo o que importa, o fenomenólogo da imagem, por conseguinte, não precisa se colocar em tocaia até que a imagem adentre totalmente na clareira do pensamento. Basta apenas que viva o ponto exato em que se encontra no fluxo de produção desta imagem, dado que “a imagem é a superação de todos os dados da sensibilidade”, aponta Bachelard. Especular demais sobre uma imagem é roubar-lhe o ser. Aí reside a diferença entre o fenomenólogo e o filósofo, pois este, com o seu afã lógico-dedutivo, perde da efemeridade essencial do ser imaginado.

A imagem é uma relação entre o real e o irreal, entre o ser e o não ser – não obstante já sendo. Cada imagem é ela mesma e outra coisa que não ela mesma. Bachelard diz que a “imagem tem um fundo onírico insondável. É preciso perder o paraíso terrestre para vivê-la verdadeiramente”; é aí que o fenomenólogo sabe lidar melhor com a imagem do que o filósofo, até mesmo do que o artista. “Imagens muito claras tornam-se ideias gerais. Bloqueiam a imaginação. Vimos, compreendemos, dissemos. Tudo está terminado”, completa Bachelard. A partir de então, só o fenomenólogo para perceber e trazer à luz uma particularidade nova e verdadeira da mesma imagem, para revivificá-la em sua a efemeridade necessária, cuja suspensão foi imposta pela racionalidade filosófica ou pela criatividade artística.

O metafísico está preocupado demais com o ser para lidar com o necessário e efêmero devir da imagem. Para ele, a imagem ainda é um nada, um vazio a ser ulteriormente preenchido. “O vazio, essa matéria da possibilidade de ser!” (Bachelard), nas mãos do filósofo, já deve ser; do contrário, não sendo plenamente, nada há que possa ser precisado a seu respeito. Quando Bachelard diz que a imagem não precisa ser confrontada com a realidade objetiva, é fácil entender por que a essência da imaginação escorre entre os dedos do pensamento filosófico. Entretanto, por ser um entremeio entre o ser e o não-ser – todavia já sendo -, “a imagem torna-se um novo ser da nossa linguagem. […] É um devir do nosso ser”, completa Bachelard. E é esse ser que deveio, isto é, o corpo de linguagem que doravante expressará o que primeiro foi imaginado, o objeto sobre o qual trabalhará o filósofo. Como “no reino das imagens, não pode haver contradição”, como assegurou Bachelard, os seres provenientes desse reino, por conseguinte, não serão alienígenas à lógica filosófica.

Já o artista, em oposição ao filósofo, trata as imagens com demasiada realidade, como se já fossem objetos – ou pior, substitutos de objetos – conduzindo-as ao mundo, materializando-as apressadamente. No entanto, como disse Bachelard, até “a imagem mais simples se duplica”; portanto, a realização – artística – de uma imagem é apenas parte do fenômeno, não todo ele. Disso o fenomenólogo não se esquece. O artista é seduzido por suas imagens! Mas, apesar de elas o seduzirem tardiamente, “não são fenômenos de uma sedução”, garante Bachelard. Seduzida, a criatividade artística enxerga na imagem mais do que ela mesma, modifica-a; pois, além de uma pitada de valor mudar tudo, uma imagem modificada perde suas virtudes iniciais.

O fenomenólogo, por sua vez, exagera não as imagens com as quais lida – objetos incólumes que devem ser as imagens -, mas o exagero que ele mesmo coloca sobre elas, a fim de não alterá-las, pois só assim perceberá o fenômeno que são. Para Bachelard, “a fenomenologia da imaginação não pode transformar as imagens em meios subalternos de expressão”, como faz o artista. Tampouco o fenômeno da imagem é uma ferramenta à verdade, como querem os filósofos, dado que a imagem dispensa tal qualidade – ela “é” inclusive quando falsa! O fenomenólogo da imagem, antes, deve viver as suas imagens diretamente, como um acontecimento súbito da vida. E mais: notar o que une e o que separa o imaginador do mundo já imaginado.

Aqui é fundamental perceber a diferença entre imaginar e rememorar imagens passadas, pois a imaginação, para Bachelard, “desprende-nos ao mesmo tempo do passado e da realidade”, enquanto a rememoração, como bem sabemos, nos ata diretamente a ambos. Relembrar é, sobretudo, reapresentar algo anterior; é representar! Porém, se a imaginação é necessariamente a súbita presença de uma evanescência, como quer Bachelard, uma representação é tudo menos o fenômeno da imaginação. Antes, “a representação é dominada pela imaginação, […] não é mais que um corpo de expressões para comunicar aos outros nossas próprias imagens”, reforça o filósofo. De forma alguma o fenômeno da imagem em sua súbita vida. A representação veio para ficar.

Schopenhauer, todavia, disse: “o mundo é a minha imaginação”. Ora, isso só pode ser uma verdade para a fenomenologia da imagem bachelardiana, enquanto esse mundo imaginado pelo filósofo alemão for absolutamente contemporâneo à imaginação que o imagina. No instante seguinte, ou seja, na próxima imagem, o mundo de Schopenhauer deve ser necessariamente outro, seguindo a efemeridade do fluxo imaginativo. De outro modo, ele estaria relembrando um mundo passado, fruto de uma imagem igualmente passada. Entretanto, este filósofo parecia saber disso, pois no título de sua obra mais importante, “O mundo como vontade e representação”, ele não sustentou a imaginação a constituinte do mundo, mas sim a representação.

Por outro lado, ainda que uma imagem não possa construir nem carregar consigo o mundo todo, pois sempre mais jovem e fugidia que ele, “uma imagem por vezes singular pode revelar-se como uma concentração de todo um psiquismo”, isto é, de todo um mundo interior; lembrando que, para Bachelard, “no reino das imagens, o jogo entre o exterior e a intimidade não é um jogo equilibrado”. Os maiores fantasmas e angústias, portanto, também podem ganhar vida através das nossas imagens. No entanto, tranquiliza-nos o filósofo, “todas as imagens são boas desde que saibamos nos servir delas”.

Qual é, por conseguinte, o melhor jeito de nos servirmos dos fenômenos que são as imagens? Imaginando-as, ora bolas, e vivendo-as imediatamente enquanto efemeridade que são; até o limite de se tornarem memória. A partir dessa fronteira, encerra-se o fluxo da imaginação, e a insistência de uma especulação, ou a permanência de uma opinião, já significam impertinências diante da imaginação; funcionam mais como estrangeiras colonizadoras, oprimindo o frescor da imagem à representação de algo outro que não a sua subitez essencial. A imagem não é meio para nada além dela mesma! Qualquer coisa posterior à imaginação, para ela, já é artificialidade, isso porque, para Bachelard, “a imaginação é a faculdade mais natural que existe”.

Então, para sermos exímios fenomenólogos da imaginação, quando diante do fenômeno residente em cada imagem, devemos lembrar de que o trabalho é sempre mais leve e mais curto do que parece. Tudo o que foi dito aqui acerca da imagem e da imaginação, na verdade, deve figurar mais como um totem, indicando que qualquer ideia, conceito, utilidade ou verdade já significa redução do fenômeno em questão. Afinal, inclusive estas recentes palavras já são passado, já foram imaginadas! Aliás, para bem fruir a essência de uma imagem, é indicado deixar o mundo todo para trás. A imagem que imaginamos agora é uma; agora já é outra; e outra; e outra. Por que perder tempo atrasando esse fluxo natural com cristalizações? A imagem é!, todo resto é outra coisa, outras imagens. Não as misturemos, não as confundamos. Assim, a um só tempo, ao passo que sabemos o que é a imagem, sabemos o que é o fenômeno.

A luta da classe

Da afirmação de que “capital não é o capitalismo, mas a liberdade”, veio a pergunta: “seria a luta de classes o ‘meio’ para alcançar tal liberdade?” Pois bem, dando corpo à utopia de Marx e Engels, certamente sim. Para estes dois, o capitalismo cria duas classes essenciais, quais sejam, a dos capitalistas e a dos trabalhadores, aonde a primeira explora necessariamente a segunda. Entretanto, como os dois já sabiam, “a exploração de uma parte da sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos anteriores”. Sendo assim, a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas é apenas mais do mesmo, visto que o antagonismo entre classes não foi abolido nas relações capitalistas.

Porém, de acordo com os autores do Manifesto Comunista, uma diferença essencial é introduzida pelo capitalismo: a simplificação desse antagonismo em dois campos opostos, o que dramatizou sobremaneira a histórica relação de exploração de uns sobre outros. Segundo Marx e Engels, a classe da “burguesia colocou uma exploração aberta, direta, despudorada e brutal”, diretamente sobre o proletariado. Isso revela que o antagonismo entre ricos e pobres não aconteceu por acidente, não sendo, assim, facilmente revolucionável. Antes, é uma estrutura historicamente construída para figurar dessa forma, ou seja, desigual, a cujos explorados a revolução é sistematicamente bloqueada.

Se para Marx a luta de classes daria conta de libertar os trabalhadores da exploração, era porque ele entendia, de acordo com suas palavras, que “só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária”. Todavia, por que essa verdade locada pelo filósofo na classe explorada não foi capaz de realizar a revolução? A resposta talvez esteja em uma outra afirmação dele que, no entanto contradiz a primeira: “a burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente [as] relações sociais”. Ora, como pode “só” o proletariado ser revolucionário se a burguesia também o é, e “incessantemente”? Seria a classe proletária a possuidora do direito à revolução, mas somente a capitalista a que a efetua como modus oprerandi?

Se ambas as classe são de fato revolucionárias como as frases do filósofo apontam, diante do devir do capitalismo até aqui, resta dizer, portanto, que o potencial revolucionário dos trabalhadores, apesar de existente, é inócuo; ao passo que o dos capitalistas, vitorioso. Então, a promissora luta de classes preconizada por Marx parece ser o meio dos explorados submeterem-se ainda mais à exploração, e não o meio de libertarem-se dela. A luta contra o capitalismo parece acabar sempre em favor do próprio capitalismo! Marx não estaria falando também da classe proletária ao dizer que “a aristocracia feudal não é a única classe arruinada pela burguesia”?

Entretanto, qual foi, e qual é, até hoje, a luta real entre as classes dos trabalhadores e a dos capitalistas que, não obstante, só fez aumentar o poder destes sobre aqueles? Essa luta, materialmente, vem sendo nada além da relação comercial na qual o trabalhador vende a sua força de trabalho para esta ser explorada pelo capitalista, porém, unicamente de acordo com as necessidades deste. Essa relação, todavia, começa e finda com o trabalhador perdendo e o capitalista ganhando. Primeiro, o trabalhador produz para o capitalista por, digamos, um mês, para só então receber o seu salário. Nesse processo, o capitalista usa de graça o trabalho que produzirá não só o dinheiro que irá pagar tal trabalho, como também o seu lucro pessoal. Segundo, e mais importante, o salário recebido pelo trabalhador pela exploração é todo gasto na compra de mercadorias vendidas pelos capitalistas, devolvendo-lhes, assim, a miséria que receberam pela exploração mensal. Ou seja, é o trabalhador que de um lado paga a si mesmo com o seu trabalho, e por outro, enriquece o capitalista comprando as suas mercadorias; fazendo assim com que tudo o que o capitalista investe retorne “engordado” para ele.

Então, Marx pergunta: “O trabalho do proletário […] cria propriedade para o proletário? De modo algum. Cria o capital, isto é, a propriedade que explora o trabalho assalariado”. Está aí o tendão de Aquiles da luta-relação real entre a classe dos capitalistas e a dos trabalhadores. Disso Trotsky já sabia ao afirmar que “o proletariado não pode conquistar o poder dentro do sistema legal estabelecido pela burguesia”. O “capitalismo têm minado em todos os aspectos a construção de uma consciência revolucionária”, reitera o sociólogo James Petras.

A expressão “luta de classes” significa coisas diversas, e inclusive contraditórias. Para os trabalhadores, tal luta, enquanto relação material significa a venda constante da sua força de trabalho a ser explorada, ou seja, a subjugação diante do capitalista; mas, enquanto utopia significa uma inversão disso, em cuja vitória sua seria a classe capitalista a subjugada – o que, no entanto, não aconteceu até hoje. Do lado dos capitalistas, por sua vez, a luta enquanto relação material é a compra da força de trabalho por menos do que ela vale, já com o intuito da obtenção da mais-valia que desemboca na riqueza; porém, para estes, enquanto utopia revolucionária, na qual essa mais-valia permaneceria nas mãos dos trabalhadores que a produziram, essa luta não lhes oferece risco real algum.

O que os capitalistas querem mesmo – ao modo de já desenvolvê-la – é apenas uma relação material e ordinária com os trabalhadores, na qual estes permaneçam oferecendo-se à exploração, sem as lutas de classe realmente revolucionárias como as utopias sustentam. Basta, por conseguinte, não entrar em luta contra os trabalhadores. A classe detentora dos meios de produção usa o seu poder para salvaguardar tal poder mais do que tudo; produzindo, junto com as demais mercadorias, uma fundamental à sua sobrevivência: a repressão à ideias e valores que a ameacem. As lutas que o capitalismo empreendeu, na verdade, foram apenas duas: uma contra a aristocracia feudal, da qual saiu o vitorioso histórico; e outra, que constantemente desenrola, contra ela própria, isto é, a disputa interna entre os capitalistas por mais mercados.

Por conseguinte, a luta de classes que usualmente temos em mente entre capitalistas e trabalhadores, do lado dos capitalistas resume-se em uma relação cotidiana, isto é, na própria ordem do capital, que, sobretudo, deve permanecer ad aeternum. Já para os trabalhadores, essa luta que de um lado é uma relação real, na qual ele jaz subjugado, de outro, enquanto utopia revolucionária, na qual o subjugado é o capital, tal luta é o horizonte do qual o trabalhador, por conta da exploração que sofre, não consegue – e talvez não deva mesmo – desviar os olhos. Por conseguinte, a luta de classes, enquanto embate, é só dos trabalhadores, e não dos capitalistas. Estes, antes, querem a sua ausência. Se uma classe está bem, por que desejar inimigos? Desse modo, a luta que promete libertar os trabalhadores da exploração é apenas a luta de uma classe, a dos próprios trabalhadores.

A luta que envolve as duas classes, a dos capitalistas e a dos trabalhadores, já é o próprio capitalismo em sua saúde plena, de forma alguma aquilo que causaria o seu fim. O capital, em luta, é sempre vitorioso, pois o campo de batalha, as armas e o exército, simbolizados pela fábrica, pelas máquinas e pelos trabalhadores, respectivamente, desde o início do embate já são dos capitalistas. O trabalhador, nessa guerra, só entra para morrer. A luta de classes, portanto, é a expressão de um otimismo que favorece duplamente o capitalista, pois mantém os trabalhadores imersos em uma utopia até aqui inefetiva que, por conseguinte, os submerge cada vez mais fundo dentro do oceano capitalista que, como podemos perceber historicamente, não tem fundo.

O capital prossegue fortalecendo-se, seja na luta que os trabalhadores intentam contra ele, seja na sua relação “tradicional” para com eles. Inversamente, na única relação que o capital lhes oferece, os trabalhadores, infelizmente, são paulatinamente furtados tanto de sua força trabalho quanto da possibilidade de venderem essa força. A instituição materializada disso são as megafavelas que crescem ao redor do mundo, nas quais o proletário explorado entra para, em pouco tempo, tornar-se o “lumpemproletário” sem condições sequer de dispor ou de vender a sua força de trabalho. De acordo com a obra de Mike Davis, “Planeta favela”, na China, 40% da população é favelada; na Índia, 56%; na Nigéria, 80%; em Bangladesh, inacreditáveis 85% da população é favelada, estando abaixo da linha que lhes permitiria participar ativamente da sórdida roda exploratória do capitalismo. Um dos produtos do capital, talvez o mais cruel e desumano, é uma classe trabalhadora cada vez mais incapaz de enfrentá-lo.

A crença revolucionária de Marx de que “a burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros” cada vez mais revela seu teor utópico, pois “hoje os capitalistas não “arregimentam os homens que manejarão as armas” que desferirão o golpe mortal no capitalismo [como pensavam Marx e Engels]. Eles criam milhões de trabalhadores temporários, instáveis, amedrontados, amarrados ao nexo monetário”, aponta Petras. Desse modo, Marx estava errado ao dizer que “o proletariado, como resultado da sociedade moderna, traz em si a missão de suceder a burguesia”. Antes, a missão histórica do proletariado parece ser a vivificação cada vez mais intensa da burguesia; e o ideal da luta de classes, a sucessão dessa vida.

A classe capitalista, atualmente, se reproduz e se fortalece cada vez mais por intermédio de movimentos – investimentos – virtuais que paulatinamente a dispensam tanto da relação com o proletariado quanto da luta deste contra ela. Aliás, como bem ressaltou Petras, “a concentração e centralização de capital em escala global e o desenvolvimento de novas tecnologias são acompanhadas pelo ressurgimento de modos de produção pré-capitalistas baseados na exploração intensiva do trabalho”. A classe do capital, portanto, em vez de enfraquecer-se mediante a luta dos trabalhadores contra ela, nada mais faz que renovar incessantemente o germe de seu reaparecimento. Os enfrentamentos que recebe só a fortalecem.

Trotsky já havia percebido a ingenuidade de Marx e Engels em acreditarem que o capitalismo estaria liquidado antes de passar à sua fase de absoluto reacionarismo. Na verdade, segundo Petras, “hoje, a burguesia conta com o véu de uma retórica “pós-capitalista” para se referir a formas primitivas de exploração”, como que voltando à sua juventude, à incontrolável potência que reside em todo germe. Por outro lado, a globalização do capital fez do trabalhador um corpo global e amorfo, que somente agindo coordenada e também globalmente poderia revolucionar a realidade que o explora. Porém, a dificuldade de concatenar um exército mundial de trabalhadores à revolução é mais um produto do capitalismo que garante a sua perpetuação.

Consoante a isso, a luta de classes revolucionária – que a esta altura deve ser vista como a luta solitária da classe oprimida – é enfraquecida ainda mais devido ao fato de que o trabalhador atual não quer dar cabo do o burguês capitalista. O consumismo, produto essencial do capital, na verdade, faz do rico capitalista o sonho individual e a meta da maioria dos trabalhadores. A luta dos trabalhadores se dá mais no sentido de abandonar a classe a que pertencem, para então emergirem à classe dos seus algozes, do que no intuito de todos, capitalistas e trabalhadores, migrarem para uma classe única, intermediária, e sem desigualdade, como prega a utopia comunista. No capitalismo, ora bolas, todos querem ser capitalistas! O capital só é porque capitalizado por todos!

Infelizmente, a consciência de classe que guiaria os trabalhadores a uma luta realmente eficaz à revolução é sistematicamente solapada pela consciência maestra da classe capitalista. Esta sabe como, além de possuir os meios para capitalizar a sua própria realidade, transformá-la em mercadorias – no mais das vezes ideológicas – que, levadas ao mercado, retiram dos trabalhadores não só a miséria com a qual estes foram pagos para produzirem tais produtos, mas também a força de suas utopias e da realidade de suas necessidades, colocando, por conseguinte, as suas no lugar. A luta dos trabalhadores, até aqui, não é a de classes, mas sim a de uma única classe, a sua própria. Também não é contra os capitalistas, mas contra si mesmos. Em respeito a isso, Marx disse a eles: “Vós tereis de passar por quinze, vinte, talvez cinquenta anos de guerras civis e internacionais, não somente para mudar as condições sociais, mas [principalmente] para mudar a vós mesmos, e tornar-vos aptos a assumir o poder”.

Capital não é o capitalismo, mas a liberdade.

Muita coisa pode ser dita a respeito do “capital”, pois o seu “ser”, bem como todos os demais, conforme a metafísica aristotélica, “se diz de muitas maneiras”. Ora, se o ser do capital tem múltiplos sentidos (históricos, filosóficos, econômicos, etc.), um, dentre esta multiplicidade, merece destaque especial, qual seja, o seu ser primeiro. Então, subsistente ás muitas vozes que expressaram o capital – todas dignas de nota, porquanto expressões através das quais ele vem se revelando a nós – é na sua expressão primeira que reside algo de necessário, a partir do que as demais contingências a seu respeito ganharam vida.

Uma das primeiras investigações acerca do capital vem dos fisiocratas (fisiocracia = o governo da natureza). Ícone deste movimento teórico, François Quesnay, já no início dos 1700, afirmava que a riqueza máxima era a terra, mais especificamente as terras agrícolas, pois era a partir delas que a subsistência humana era produzida. Para a fisiocracia, portanto, capital era possuir e administrar a terra de forma produtiva, visando lucro. Na esteira aberta pelos fisiocratas, se colocaram David Ricardo e Adam Smith, descobrindo que o capital era mais do que simplesmente aquilo (a terra) a partir do que o valor – por conseguinte o lucro – se dava. Suas ideias revelaram um valor até então marginal ao capital: o trabalho e o interesse humanos.

Ricardo modificou o corpo do capital, fazendo dele também a força de trabalho do homem, bem como a produção dela proveniente. Porém, sua grande contribuição foi descobrir o valor que era gerado na circulação dessa produção, teoria ulteriormente desenvolvida por Marx. Smith, por sua vez, dizia que era o auto-interesse, isto é, o egoísmo dos indivíduos o capital que movia a sociedade toda. Para este pensador, seria uma “mão invisível” o que, por um lado, levava os indivíduos a buscarem o que antes não era do interesse deles (lucro, fortuna); e por outro, esta mesma “mão invisível” regularia os auto-interesses globais, baixando o preço dos produtos e aumentando o salário dos que os produziam.

Marx, um dos mais notáveis pensadores da história, iniciou sua teoria criticando Smith devido à sua ingenuidade em crer que era invisível e individual a força do capital; e também a Ricardo, pois este, apesar de considerar a produção humana e a sua circulação o capital da sociedade, pregava que o valor monetário do dinheiro gerado e acumulado dessa circulação não representava o capital. O pensador alemão foi o primeiro a enxergar que capital era a relação do homem com a produção da sua sobrevivência material. Entretanto, de Ricardo, Marx carregou consigo os valores do trabalho e da circulação dos produtos dele provenientes. Em respeito a Smith, sua “mão invisível” transformou-se, nas mãos de Marx, no colapso inevitável do capitalismo, gerado por ele mesmo no seu devir, independente das ações individuais.

Hoje, na teoria econômica da moda, produzida por Thomas Piketty, o capital volta a ser dito enquanto riqueza ela mesma, seja ela em forma de patrimônio imobiliário, ações financeiras, renda ou herança. Interessante é perceber que Piketty não considera a força de trabalho como capital, pois, para ele, capital é o que pode ser “comprado” definitivamente, como as riquezas supracitadas. A força de trabalho, portanto, fica de fora do capital porque, de acordo com os preceitos clássicos do capitalismo reiterados por Piketty, ela pertence inalienavelmente ao trabalhador, podendo ser “comprada” apenas por horas, dias ou meses, retornando sempre à posse do trabalhador no fim do negócio. Caso contrário, tratar-se-ia de escravidão, aonde o comprador, ao adquirir o indivíduo, leva junto, até a morte deste, a sua força de trabalho.

Entretanto, ao excluir a força de trabalho da essência do capital, elegendo a riqueza comprável e armazenável como tal, Piketty diminui, a um só tempo, o valor da força de trabalho ricardiana e a relação marxiana desta com o capital social. Resta o quê? A invisível mão smithiana, porém pikettyanamente pervertida, aumentando o preço dos produtos e reduzindo o valor dos salários. Por isso Piketty visualiza centralmente a acumulação de riqueza como “O capital do século XXI”. Ora, se somente aquilo que pode ser comprável e armazenável é capital – ainda que virtual (ações, investimentos e especulações financeiras) -, a força de trabalho dos homens, apenas “alugável”, deixa de ser o valor principal e, por conseguinte, essa força preterida jaz incapaz de revolucionar a realidade econômica que a pretere.

Tendo percorrido, ainda que superficialmente, algumas das mais conhecidas teorias econômicas que tentaram dar conta do capital, contemplando de certa forma as suas congruências e inevitáveis divergências, o que é, enfim, capital? O passado nos legou muitas ideias sobre isso. Outrossim, o futuro trará muitas outras. Todavia, se muitas coisas podem ser ditas acerca do capital, essa plurivocidade, por sua vez, significa contingência ou necessariedade? Aristóteles responderia que significa esta última, por certo. Assumindo então a visão do antigo grego, de todas as formas que o ser do capital já se disse, das que atualmente se diz, bem como das que ainda se dirá, qual é a mais essencial?

O capital – e a sua majestosa sistematização histórica, o capitalismo – não teria, antes, a sua forma essencial justamente na sua origem, porquanto descontaminado das contingentes especulações científicas que tentaram – e ainda tentam – reificá-lo, sem, no entanto, dar cabo dessa tarefa? Em caso afirmativo, a visão fisiocrata está mais próxima da essência do capital que a pikettyana. A fisiocracia, por contemplar centralmente os valores agrícolas e fundiários característicos do feudalismo, manteve no conceito do capital àquilo contra o que ele veio a ser, isto é, a sua causa. Não podemos deixar de fora do ser as suas causas! Do contrário trataremos apenas de efeitos, e, no final das contas, de contingências. Se o ser do capital é, aristotelicamente falando, tudo o que pode ser dito a seu respeito, aquilo que ele primeiramente foi, mas que ainda pode ser dito, é, portanto, a sua substância máxima.

O modelo econômico feudal foi o solo concreto a partir do qual o capitalismo germinou de forma irreversível. Portanto, algo de essencial ao capital há no feudal. Os desdobramentos históricos pelos quais o capitalismo passa e, sobremaneira, através dos quais ele se diz – ao modo de gerá-los nesse devir discursivo mesmo -, embora guardem verdades acerca do capital, são afastamentos da verdade primeira, mais substancial, do capital. A maior verdade sobre o capitalismo, portanto, contempla o feudalismo, pois foi este que, em sua saturação absoluta, o gerou. Todo resto é ou desdobramento ou interpretação de uma forma inicial essencial.

Logo, o capital foi a forma de valor que o homem inventou-produziu para comprar-pagar um futuro novo para si, livre das estagnadas relações de servidão do feudalismo. Não é que a força de trabalho tenha sido descoberta no ocaso do feudalismo e na aurora do capitalismo. Os escravos antigos e os servos medievais já eram essa força; e os senhores já a exploravam! O que houve foi a invenção da posse e da portabilidade, nas mãos dos indivíduos, de tal força; doravante, negociada e comercializada por eles com a nova classe dos capitalistas. Por conseguinte, capital, essencialmente, foi a necessidade dos homens, todos eles, de se libertarem da intransponibilidade social necessária ao feudalismo, para então experimentarem um destino outro, ainda que ninguém soubesse no que daria.

Porém, antes de afirmarmos no que isso deu, é no vazio dessa resposta que se encaixam todas as interpretações filosófico-econômicas sobre o capital feitas até aqui. Todavia, essencial mesmo foi o passo inicial, ou o empurrão, que deu início à caminhada! Do contrário, nada poderia ter sido dito. Sendo assim, foi quando o homem experimentou uma liberdade até então inexistente, isto é, a liberdade de possuir em si a força que gera a riqueza e que move a sociedade toda, que ele, assenhorando-se diante do seu senhor, pode usar tal força como moeda de troca para usufruir dessa liberdade. Esse homem, portanto, foi a primeira encarnação do capital. Disso decorre que capital é a liberdade ela mesma, independente da forma econômica através da qual se apresente.

Por mais que o sistema feudal possa ser visto como a prisão de cujas muralhas o capitalismo libertou os homens, o feudalismo em si não significava apenas isso. Antes, o regime feudal, por sua vez, também representou uma liberdade inédita, pois ofereceu aos homens um modo de sobrevivência que não a escravidão da antiguidade. Sendo assim, o capital transcende as formas econômicas, inclusive o capitalismo, pois capitais foram todos os movimentos no sentido de o homem conquistar maior liberdade na produção de sua sobrevivência; seja a liberdade em relação às vicissitudes da natureza que a escravidão legou aos nômades; seja a liberdade que a servidão ofereceu aos escravos; e ainda, seja em respeito à liberdade que o capitalismo proporcionou aos servos medievais.

Entretanto, a ideia de Marx de que o capitalismo geraria, com as suas próprias contradições, a sua estagnação, solicitando assim um sucessor histórico-econômico necessário, tal ideia subjaz genérica em todas as formas econômicas experimentadas pela humanidade, dado que todas elas nasceram de um germe essencial e necessário, floresceram, estagnaram e solaparam sob o seu próprio peso. Com o capitalismo não há de ser diferente, ainda que sua força-juventude atual desminta tal destino. O que acontece é que, ao nos afastarmos da essência primordial do capitalismo, afastamo-nos também da liberdade que ele outrora representou. Com isso, nos aproximamos cada vez mais dos efeitos de sua saturação e experimentamos o sabor intenso de suas contradições, o que, historicamente, acaba por figurar como novos grilhões a serem rompidos.

Ora, se capital é a liberdade do homem em respeito à sua sobrevivência, o inicialmente libertário capitalismo, ao aproximar-se de sua saturação histórica, assemelha-se a todos os sistemas econômicos anteriores quando em suas próprias saturações. Portanto, será – se é que já não o é – capital libertarmo-nos do próprio capitalismo! Isso porque o que é capital ao homem, ou seja, a sua liberdade, transcende as páginas históricas pelas quais ele passa. De um ponto de vista diametralmente oposto, a própria história em si é a imanência da liberdade humana, capitalizada. Novamente, em algum momento será capital libertarmo-nos do próprio capitalismo. Capital será, um dia, o pós-capitalismo, ainda que não saibamos, agora, a forma que esse capital tomará no futuro, não obstante, significando essencialmente liberdade. Mantendo proximidade com a essência primeva do capital, liberdade para sobreviver fisiocraticamente, ou seja, apenas sob o governo eterno da natureza.

Resistência à educação da pátria

Resistência à educação da pátria

Menos de vinte e quatro horas depois de a presidenta reempossada dizer ao país o lema do seu novo governo, “Brasil, pátria educadora”, muitas recepções negativas e precipitadas já demagogizam histericamente na superfície da ideia tornada meta nacional, mas que, tomada comprometida e positivamente, pressupõe uma profundidade rica e democrática capaz de absorver a todos os brasileiros.

Pois bem, alguns, como o admirável Jean Wyllys, estão dizendo que o lema deveria ser algo do tipo “uma nação quer educação”, mais atentos que estão ao fato da falta de educação ainda existente no país. Entretanto, um lema que se preze não deve ser a expressão da análise que levou até ele, mas, antes, a assunção de um ideal que, quando realizado, torna desnecessária a afirmação daquilo que levou à sua aplicação. O futuro do lema perfeito é a afirmação do objetivo realizado.

Sendo assim, em respeito a sugestão de Wyllys, fazer da realidade deficitária o próprio lema é, sobremaneira, contraproducente no que tange revolucionar essa mesma realidade. O lema, por conseguinte, deve ser algo de certa forma alienígena a essa realidade, não obstante contemplando-a, como que contrapondo-a. A virtude de um lema é ser capaz de modificar e de revolucionar a realidade, não epitetá-la. Ora, Jean, fazer do lema aquilo que ele deveria superar é não sair do lugar.

Como acredito que o jovem político tem boas intenções para com o Brasil, sua precipitação em criticar o novo lema presidencial revela muito mais um enovelamento demagógico em suas ideias, na esteira do é melhor criticar do que se comprometer com a experiência proposta e, portanto, se tornar passível da crítica que ele mesmo desfere.

É óbvio que somos uma nação que quer educação, Jean Wyllys! O problema, na verdade, é que os nossos políticos sempre fingiram escutar tal clamor, governando, contudo, para outros lados, no mais das vezes os seus. A despeito do povo que há muito exige e merece educação para si, ela sempre existiu, boa, forte e disponível, no entanto, apenas às minoria privilegiadas e empoderadas. Nesse sentido, o Brasil, para uma fatia muito seleta, sempre foi uma pátria educadora.

Entretanto, ao propor uma pátria educadora “e” um contexto de maior igualdade e democracia, o que o governo de Dilma introduz no cenário futuro, a contragosto de muitos, é que o Brasil seja uma pátria que eduque a todos os brasileiros, e não somente os que historicamente monopolizaram tal benefício.

Sendo assim, os que de imediato se colocaram contra essa “pátria educadora”, desenhada e projetada através do lema de Dilma, não entendem que, como colocou Gaston Bachelard, “o desenho é mais ativo com relação ao que ele encerra do que a respeito do que ele desprende”. Dando destaque especial para um dos sentidos da palavra encerrar, o de dar dar cabo de algo, o que precisa findar é a pátria que apenas educa as minorias privilegiadas.

Por outro lado, o que se “desprende” do lema oficial do novo governo, preterido aqui com a ajuda do filósofo, são interpretações mais fracas e inócuas, não obstante compradas pelos que não visualizam a positividade revolucionária de tal meta. A educação está, finalmente, colocada como escopo primeiro do governo brasileiro, num ato de comprometimento público declarado. Agora, mais do que nunca, podemos cobrá-lo, porquanto um expressão compromete fortemente quem a expressa com aqueles a quem ela é expressada.

Devemos atentar para o fato de que não é a frase-veículo do lema o meio, nem o instrumento fundamental da revolução. Antes, um lema é apenas um tótem, uma metáfora de algo muito maior e muito mais complexo, impossível de ser expresso de forma tão econômica e icônica. Como salientou Bachelard, “a metáfora é relativa a um ser diferente dela”. Levá-la ao pé da letra, portanto, é alienar-se do sentido forte que toda metáfora, no significado original da palavra, em grego, “transporta”.

Um projeto de solução é tornado um edifício problemático já arruinado porque, diante de um objeto novo – no caso o lema objetivo anunciado por Dilma – alguns não visualizam, ou não querem visualizar, uma distância possível e transponível entre os fatos passados e presentes, carentes de revolução, e um futuro revolucionado; dificultando, assim, ativa e/ou propositadamente, a mudança.

Todavia, se é a alegação dos fatos o que invalida o valor do lema da nossa presidência para alguns, seria bom estes terem em mente a afirmação de Bachelard: “os fatos não explicam os valores”. Ao contrário, são os valores que explicam, e por que não dizer, constroem os fatos. Resta, então, avaliar os valores de quem resiste ao fato de o Brasil propor-se ser, oficial e universalmente, uma pátria educadora.

Não há nada de errado em questionar os valores do novo governo, bem como o seu novo lema. Isso é inclusive salutar e político! No entanto, precipitar-se em ajuizar tal lema, antes mesmo de verificar seu devir, fala mais dos valores de quem ajuíza do que do objeto ajuizado.

Bachelard disse que “uma pitada de valor muda tudo”. Disso podemos ver, de um lado, o que os valores dos inimigos do recente lema presidencial fazem dele; e de outro, os valores do governo que o anuncia, na assunção pública de que a educação ainda falta ser democratizada, apesar de existente e historicamente reservada às minorias; valores tornados públicos na forma de lema.

Se Bachelard está certo em dizer que uma pitada de valor muda tudo, podemos, portanto, temperar essa pátria educadora insistida por Dilma com valores que mudem – positiva, e não negativamente – o que está mal e o que deve ser mudado, e não justamente o “transporte” que se propõe a nos afastar do problema em questão.

Que os brasileiros consigam construir, conjunta e paulatinamente, um futuro liberto das vicissitudes do passado. Para tanto, a educação tornada lema da pátria é veículo essencial. Em função disso, a crítica intempestiva, que nas redes sociais e nos veículos de comunicação em massa faz do crítico algo maior que o objeto criticado, tal crítica deve deixar de ser a senhora de suas próprias verdades, mas sim educar-se patrioticamente, e doravante colocar-se como operária-meio-veículo-metáfora da mudança cuja direção está iconicamente apontada pelo novo lema: “Brasil, pátria educadora”.