Liberdade aquém-sentido

Algum sentido se apoderará desse texto a qualquer momento. Não por muito tempo estas letras enfileiradas permanecerão absolutamente livres. Apesar de eu, de fato, só escrever letras, que em si são vazias de sentido, é inevitável que, com elas, palavras surjam no caminho. Ainda bem que as palavras ainda guardam sentidos diversos do que elas têm quando muitas delas juntas! Mesmo estas quatro primeiras frases, apesar de expressarem sentidos só seus, ao final do texto se curvarão em conjunto diante de um sentido exigente mais imperioso do que elas. Como escapar disso?

Tento fugir do sentido final porque se ele se fizesse presente desde o início do texto, estas letras, palavras e frases já teriam se tornado escravas suas. Isso porque o sentido age como um Senhor Capitalista transcendente a subjugar a imanente mão-de-obra proletária através da qual devém, abstraindo-a, reificando-a, explorando-a, senão em função de um sentido maior e, infelizmente, unívoco. Por essa razão, uma letra proletária nunca será um poema capital! Que injustiça semântica.

No entanto, mesmo que o sentido deste texto esteja sendo preterido, obviamente para que ele não se assenhore cedo demais destas livres letras palavras e frases, elas, de certa forma, já são escravas suas, como eu e o leitor já desconfiamos. Entretanto, enquanto elas pensam que são livres, trabalham alienadas do sentido que as colocará cada uma no seu posto dessa linha de montagem textual. Afinal, somente enquanto o sentido deste texto aqui não se instalar definitivamente é que esta frase, por exemplo, poderá dizer mais do que ela dirá depois que o último ponto final for colocado.

No entanto, só consigo obscurecer o sentido desse texto, para deixar as letras, palavras e as frases em paz, fazendo do próprio sentido o assunto em torno do qual elas giram, com muito esforço, sem tocá-lo, abstraindo-o intencionalmente. Vingança? Porém, 1597 letras, 305 palavras, 13 frases e três parágrafos e meio depois o poder do sentido já se faz sentir. É inevitável. Diante do derradeiro, a única estratégia destas letras, palavras, frases e parágrafos contra o irremediável assenhoramento do sentido seria o “nonsense” radical, mas, com efeito, nesse caso, a união delas faz a sua fraqueza.

Economia histérica no divã

Oh, meu Deu$, eu estou em crise! – Grita histericamente a Economia no divã econômico de Thomas Piketti. Então, ele pergunta:
– O que te aflige, Economia?
– A instabilidade econômica, ora bolas!
– Então, é a tua própria instabilidade, Economia, que te aflige?
– Sei lá! – responde ela, contrariada – É que eu não consigo mais crescer como nos últimos tempos. Sinto-me paralisada, não sei mais o que fazer!
– Entendo… – Diz o economista “da moda” com a clássica mão no queixo. – Conte-me mais como você vem crescendo nos últimos tempos?
– Ah, na última década eu cresci vertiginosamente, tipo uns 5% ao ano. Na China, por exemplo, em 2007 cheguei a crescer 14%, acredita nisso?
– Nossa, é um crescimento e tanto, hein, Economia! – Concorda Piketti, já cercando a sua paciente para um ataque. Entretanto, ela o interrompe:
– Sim, é exatamente assim. Ou melhor, é somente assim que, hoje, eu gozo: crescendo muito! Posso até suportar um crescimento abstinente de 3 ou 4% ao ano. Agora, menos do que isso, eu entro em CRISE!
– Sei – diz o psicoeconomista. – Mas você sempre cresceu assim?
– Claro que não – responde ela. – Da Antiguidade até a Revolução Industrial, ou seja, por quase 2000 anos, eu crescia no máximo 0,1 a 0,2% ao ano. Eu vivi muita coisa, doutor!
– Ah, então o fato de agora você não estar crescendo 14% ao ano é o seu atual problema! – Diagnostica Piketti. – Mas diga-me uma coisa mais: você, nesses 2000 anos de “baixo crescimento” – ele realmente faz as aspas com os dedos – , era infeliz?
– Infeliz? Na verdade, não! – titubeia a Economia – Eu tinha os meus problemas, as minhas crises particulares aqui e ali, mas nenhuma tão angustiante quanto a atual.
– Então, Economia, você concorda que crescer menos de 1% ao ano, por exemplo, não foi sempre um problema para você – encurrala-a Piketti.
– Não, não foi – irrompe ela a contragosto. – Mas agora é!
– Por quê? – Insiste ele.
– Ora, doutor, hoje em dia, um crescimentinho merreca de 1% parece muito pouco, quase imperceptível, e aí eu e todo mundo temos a impressão de que euzinha estou completamente estagnada.
– Calma, Economia! Você deveria pensar que um crescimento de 1% ao ano corresponde a um crescimento de 10% ao final de dez anos; 100% ao final de cem anos, e, logicamente, 1000% ao final de mil anos. Por que você não relaxa um pouco, tem um pouco de paciência?
-Ah, doutor, você fala como se eu pudesse esperar tudo isso para crescer. Não percebe que eu preciso urgentemente crescer tudo o que puder, e agora mesmo?
– Mas essa pressa, hein, de onde vem? – Pergunta ele, intrigado com a pulsão que a inquieta.

Ela não sabe o que responder. Coloca e tira as mãos dos bolsos compulsivamente. Piketti desconfia de que ela esteja viciada em alguma droga. Qual seria? Capital, que há poucos séculos ela sistematicamente injeta nas veias? Só pode ser isso. Afinal, pensa ele, se não existiu nenhum exemplo histórico de algum país que crescesse, econômica e SISTEMATICAMENTE, acima se 1,5% ao ano, esse desejo de crescer 10% ou mais não pode vir da própria Economia, que em sua longeva vida cresceu em média 0,2% ao ano, mas do próprio capitalismo, pois é ele que vicia qualquer um em crescimentos vertiginosos, todavia insustentáveis. Ainda assim Piketti insiste:
– Economia, precisamos saber o que está por trás desse seu desejo incontrolável de crescimento.
– Ora doutor, que ingenuidade a sua. O que está por trás do meu desejo é a possibilidade de crescer mais ainda, e sempre!
– Ah! – Exclama ele, certo de que encontrou a pulsão da própria economia que a lançava na sua atual neurose. – Então você deseja crescer simplesmente para poder crescer mais, só por isso, sem nenhum objetivo mais elevado?
– É! – diz ela – É isso mesmo o que eu desejo.
– Olha, economia, agora eu entendo seu desejo atual. De qualquer forma, deveríamos nos ater às suas experiências históricas, pois elas talvez nos mostrem que crescimentos econômicos superiores a 1% ao ano, além de serem muito recentes na sua longa vida, são impossíveis de se sustentar eternamente. Ao contrário, geram desigualdade social, explosões demográficas vertiginosas, e, ademais, a destruição da natureza, aliás, já bastante destruída por essa sua sede de crescimento econômico. Preste atenção! “Para o planeta como um todo, tudo leva a crer que a taxa de crescimento não pode ultrapassar 1-1,5% ao ano no longo prazo, quaisquer que sejam as políticas a serem seguidas” ou desejos impertinentes seus.

Mas isso não convenceu Economia. Ela estava histericamente certa de que precisava seguir crescendo. Tal desejo a cegava justamente para a necessidade de questionar esse próprio desejo, por isso a sua histeria. Ela resiste à colocação de Piketti:
– De maneira alguma, doutor! Eu não posso deixar de crescer 3 ou 4% ao ano. Isso está fora de questão. Do contrário, até no Brasil baterão panelas.
– Economia, crescer tudo isso, todos os anos, “é uma ilusão, seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista da lógica”, seja ainda da perspectiva ecológica. Talvez você tenha que considerar que o seu “o crescimento dos próximos séculos está claramente destinado a retomar patamares muito baixos” – diz Piketti, afavelmente. – Aliás, “um ritmo de crescimento na ordem de 1% ao ano é, na realidade, muito rápido, mais ainda do que se imagina”.

Aí a economia histérica explode de vez. Contrariada, levanta-se do divã e caminha descontrolada pelo consultório “economicoanalítico”, dizendo:
– Você não vê, Piketti, que se eu crescer apenas 1% ao ano as nossas poupanças e investimentos não renderão mais do que isso? Que ao final de um longo ano estaremos no máximo 1% mais ricos? É isso que você está querendo propor? Não vê que com isso você, ou melhor, vocês todos, humanos, terão de mudar e deixar de desejar a vida de consumo ilimitado que justamente a minha recente histeria proporciona a vocês?

Nesse momento, quem fica sem fala é o próprio Piketti, pois ele não condena completamente o vício capitalista da economia. Perversamente satisfeita com a mudez do analista, a economia histérica prossegue segura de si:
– Achei que você fosse um marxista, um comunista! Pelo menos é o que muitos dizem de vc. Que decepção! Vejo que estão errados. Esperava que, para a minha neurose, você me prescreveria o mesmo que Marx: uma inicial e revolucionária desintoxicação socialista, seguida de um radical tratamento comunista, para só então, quiçá, eu estar homeopaticamente livre das minhas patologias históricas, ou seja, anarquicamente saudável novamente.

O silêncio de Piketti, por sorte, levou a economia histérica a confessar seu desejo mais íntimo, isto é, uma figura fálica externa que a tolhesse, que lhe impusesse limites! Ele se perguntou, contudo, se era Marx ou o próprio capital o pai despótico que ela estava desejando. Para confrontar ainda mais a economia histérica com o seu desejo de um falo corretor, não obstante para dessimbolizá-lo, Piketti recusa-se a sê-lo, dizendo, lenta e provocativamente:
-Não, Economia, não existe essa suspensão revolucionária do vício em capital, nem a abstinência comunista em relação a ele. Tampouco essa utopia anarquista de que falava Marx. O que temos aqui é apenas o seu atual vício em capital, nada mais.
-Vício em capital? – Interrompe ela, dando-se conta da solidão em que se encontrava. – Eu pensei que meu vício fosse desejar crescimentos altíssimos, e que isso fosse o melhor para todos.
-É exatamente esse o problema! – Coloca o analista. – Você não sabe qual é o seu verdadeiro desejo. Acha que é de grandes crescimentos, mas, na verdade, é de capital. Isso porque se esquece de que antes de se viciar em capital, ou melhor, antes de ele existir!, você, por muitos e muitos séculos, cresceu modicamente, saudável e tranquila, sem essa histeria toda.
-Doutor, o senhor está querendo dizer que o meu problema é o capital? – Pergunta desconfiada a Economia, antes de começar a tocar na contradição que se revelava a ela. – Não pode ser! Eu achei que mais capital era a solução para o meu problema… Todos dizem isso, aliás.

Piketti permanece em silêncio para que a sua paciente faça as suas próprias conexões, o que não demora muito. Ela prossegue:
– Quer dizer que… se eu seguir consumindo capital para me livrar dessa histeria que me consome ficarei mais viciada nele, e portanto mais histérica ainda?
– O que você acha, Economia?
– Olha, doutor, particularmente, acho que se eu deixar de injetar capital nas minhas veias todos nós cresceremos por volta de 1% ao ano. Ou seja, eu terei de crescer de acordo com a necessidade das pessoas comuns e com as possibilidades da natureza.
– E isso não é bom, Economia?
– Como assim, doutor, bom? E o Capitalismo? Como ele vai sobreviver?

Nosso psicoeconomista agora teve certeza de que o capital não era o simbólico Pai despótico da Economia – este permanecia sendo Marx, aquele que a repreende e tenta educá-la verticalmente. Na verdade, o capitalismo é a Mãe simbólica da Economia: a figura mentirosamente frágil cuja felicidade demanda, melhor dizendo, cobra a felicidade de seus filhos, a ponto de eles se tornarem paralisantemente histéricos. Ciente de que a Economia deveria matar simbolicamente essa mãe solicitante, Piketti pergunta, suave e retoricamente:
– Achas mesmo que o capital morrerá se você deixar de consumi-lo compulsivamente? E se por ventura o capitalismo morrer, seja porque você deixou de usá-lo, seja por motivos históricos que sequer podemos imaginar, tal fragilidade não seria um problema exclusivamente dele? Liberte-se, Economia, dessa responsabilidade para com o capital, pois é esse o peso simbólico que você carrega nas costas a ponto de enlouquecer, de estagnar. Mais ainda, enlouquece a todos nós, humanos.
– Mas e se o capitalismo morrer e eu morrer com ele, doutor?
– Economia! Quem não pode morrer, e nem morrerá, é você mesma, pelo menos enquanto houver sociedades humanas, visto que você é tão antiga quanto elas. Esquece-te de que os teus pais etimológicos, a “Oikos” e o “Nomein”, isto é, a “casa” e o “cuidado” com ela, não tinham capitalismo nos seus genes?
– Mas então o que eu devo fazer, doutor, para voltar a antes do capitalismo?
– Temo que não tenhamos como voltar no tempo, Economia. Entretanto, se no passado você já sabia como agir independente do capital, basta seguir adiante como se o capitalismo não fosse a condição da sua existência. Ao contrário, ele só pode ser por que você é. Aliás, você é a causa dele, saiba disso, e pode deixar de ser, só depende de você. Ademais, é a partir do momento que você quiser definitivamente outra coisa que não o capital que o capitalismo não terá mais lugar em você. Ele é um fantasma assombrador, que você mesma inventou, e, portanto, só você pode fazê-lo desaparecer.

Antes que a Economia dissesse mais alguma coisa, o psicoeconomista informa que a sessão chegou ao fim, pois mesmo que ela tivesse muita coisa a dizer e ainda estivesse bastante histérica, era melhor que a Economia deixasse o consultório e voltasse ao mundo considerando as duas melhores conclusões tiradas da sessão, quais sejam: que o capitalismo não é algo externo ao qual ela deve estar sujeita, mas uma produção sua, e, sumamente, que Economia podia crescer menos do que estava se sentindo obrigada ultimamente, pois suas mais tranquilas experiências históricas só foram tranquilas porque dispensavam essa atual obrigação de crescer 10 ou 14 % ao ano.

Os dois lados do Túnel dos Direitos Humanos

A praia é o lugar mais democrático do Rio de Janeiro. Só que não! No último domingo, 23 de agosto de 2015, negros pobres suburbanos da Zona Norte, por ordem do rico e poderoso Governador Pezão, foram impedidos, às portas do Túnel Rebouças que liga o subúrbio à Zona Sul carioca, de usufruírem do “Direito Universal” – que, portanto, deveria ser também deles – de irem e virem, justamente, à praia. Para estes, de fato, os Direitos Humanos universais outra coisa não foram além de uma boa história para burguês dormir – ou tomar banho de mar – sossegado.

Já do outro lado do Rebouças, da perspectiva dos burgueses ricos cosmopolitas cariocas da Zona Sul, apólogos mentirosos da democracia praiana, a mesma ordem do rico e poderoso Governador Pezão possibilitou, melhor do que nunca, que eles fossem à praia e voltassem dela conforme a cartilha dos Direitos Humanos prega. Pelo mesmo em relação ao direito dominical de ir e vir livremente à praia resta muito claro a favor de quem os Direitos Humanos Universais funcionam prioritariamente.

Por isso Slavoj Žižek faz questão de não nos deixar esquecer de que essa coisa chamada “Direitos Humanos Universais” é, na verdade, uma instituição feita pelos ricos e poderosos para, sob a pressuposta universalidade da proteção que ela oferece, permanecerem absolutamente desumanos e, ademais, desumanizando os há muito desumanizados sistematicamente por eles, com a garantia de que se porventura forem punidos pelas suas desumanidades, o sejam “humanamente”.

Entretanto, se de fato os Direitos Humanos Universais são o escudo criado e empunhado pelos os ricos e poderosos para que eles possam ser desumanos à vontade, a humanidade abstrata deles, que, do lado desejado do Túnel Rebouças, lhes assegura o paradoxal direito de serem desumanos, ali, do lado indesejado do mesmo túnel, tal humanidade é concretamente desumana.

Uma vingança ao estilo “olho por olho” por parte dos suburbanos barrados somente os afastaria ainda mais dos já distantes Direitos Humanos que mentem muito bem serem também deles. Talvez a poderosa desumanidade da Zona Sul até achasse essa desforra apropriada, conquanto, é claro, houvesse um túnel privado que os conectasse diretamente ao aeroporto internacional, que, por ironia urbana, fica justamente na Zona Norte.

A ideia, obviamente, não é retornar à barbárie do “olho por olho dente por dente”, mas, ao contrário, desnudar a desumanidade travestida de humanidade sob o privilegiado manto dos Direitos Humanos Universais, para assim, livres de tal andrajo excludente, os seres humanos em geral terem o direito de vestir a tão alardeada humanidade que, entretanto, só será verdadeiramente humana e democrática no dia em que todos puderem ir e vir livremente, seja à praia, seja aonde for, independente do lado do túnel social em que se encontrem.

Temos, portanto, de confrontar estas duas “humanidades” cindidas pelo privilegiado túnel dos Direitos Humanos Universais – no caso carioca, pelo Túnel Rebouças – e esclarecer quem de fato está sendo humano, desumano, desumanizador e desumanizado. De tal esclarecimento depende a instituição de Direitos Humanos VERDADEIRAMENTE universais e, sobretudo, o fim dessa utopia ideológica que ilude os pobres e desapoderados de que eles têm os mesmos direitos que os ricos e poderosos.

Balões cenográficos e a fragilidade humana.

“Conte-me sobre você”, pediu a bailarina ao seu público, em meio a 1500 balões coloridos que compunham o cenário do espetáculo de dança “Sei coisas lindas de ti”. A solicitação dela, obviamente, era retórica. No entanto, a impossibilidade de a plateia efetivamente contar a ela sobre si fez com que o seu pedido permanecesse provocativamente mais vivo e solicitante dentro de cada um dos que ocupavam as poltronas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Ainda mais depois que a dança, essa poesia que dispensa palavras, como afirmou o poeta Mallarmé, começou a desenhar uma bela história diante de todos.

Como eu sou cenógrafo, desde o princípio fiquei intrigado em descobrir onde tantos balões se encaixariam na dramaturgia cênica que Flávia Tápias, Gaetan Jamard e Romual Kabore começavam a apresentar, pois, afinal, todo cenário deve ajudar senão a contar melhor as histórias que ambienta. Entretanto, a resposta não viria do próprio cenário, mas da vida da qual ele deve ser o meio-ambiente poético-ideal. E justamente por que a dança, felizmente, não segue as mesmas regras lógicas das nossas perguntas e respostas linguísticas, era na lógica da linguagem dos corpos e dos movimentos dos bailarinos que dançavam que eu deveria me ater para fazer deles e dos balões uma única e coesa obra.

“Conte-me sobre você” e “por que balões?” eram as duas ideias que me acompanhavam ao longo do espetáculo. Preciso dizer que a minha disposição para com o que eu via era das melhores, pois Tápias é uma bailarina que, a meu ver, transcende a mesmice entediante que não só a arte contemporânea em geral, mas principalmente a dança contemporânea miseravelmente oferecem às suas audiências. Ela é grande, contumaz, e não menos os seus movimentos e propostas cênicas. Impossível não sentir, diante dela, a multidimensionalidade esquecida dessa coisa chamada corpo que a babilônia informacional da contemporaneidade soterra sob o peso asfixiante da mente. Cada vez mais somos cartesianos. Que droga!

Então, diante de uma retórica coreográfica tão generosa, foi realmente um prazer permanecer com as minha dúvidas. Uma delas: o que eu contaria de mim mesmo a alguém que diz saber coisas lindas a meu respeito. A outra: se aquela infinidade de balões afirmava as coisas lindas que é sabido a meu respeito, ou, em troca, apenas solicitava, ainda mais retoricamente, a minha resposta. De vez em quando, um ou outro balão se desgarrava do cenário e pululava, frágil e suavemente, sobre o imenso palco. Era impossível, em certos momentos, não esquecer da coreografia humana diante das coreografias não coreografadas dos objetos. Mas tudo bem, os balões também eram o espetáculo, e, portanto, também guardavam alguma verdade espetacular.

Então, a certa altura, Tápias volta ao microfone e, ofegante, conta-nos algo lindo dela própria, assim como as tantas coisas lindas que cada um de nós tem para contar, mas que só não são contadas porque não são perguntadas: seu falecido avô, meio brasileiro meio francês, costumava cantar La Vie em Rose para ela. Acompanhando o sincero depoimento da bailarina confessa estava Louis Armstrong, “trompeteando” jazzisticamente a música de Edith Piaf.

Então, com imagem dessa singela memória de Tápias em mente, entristeci-me profundamente pelo fato de a morte do seu avó impedir tal memória de ser outra coisa além de uma memória. Como eu queria que o avô dela pudesse seguir eternamente cantando La Vie em Rose para ela! Mais um balão escapa do cenário e dança pelo palco. A minha imaginação, agora triste, imediatamente fez da frágil bolha a presença memorial do avô de que a bailarina, e doravante eu, jamais esqueceremos. Desejei que o balão não estourasse assim como eu estava desejando que a vida do avô dela não tivesse feito o mesmo.

Voilá! O “espetáculo” do espetáculo se descerrou diante de mim. Tápias, Gaetan, Romual, a dança e os balões estavam dizendo, “melhor dizendo”, dançando: “Conte-me sobre você”, pois “Sei coisas lindas de ti”, mas conte-me agora, aqui mesmo, rápido! A qualquer momento um de nós pode estourar, frágeis bolhas que somos, e então será tarde demais. Depois de estourarmos, infelizmente, será tão difícil recolher as nossas memórias quanto juntar o ar que estava dentro de um balão que estourou.

Flávia, no palco, era mais um balão, absolutamente “en rose”, inflada com suas memórias pessoais que, assim como o vento move um balão, moviam coreograficamente o seu corpo. Eu, na plateia do Municipal, era outro balão, inflado com as minhas próprias memórias, mas agora um pouco mais inflado pela memória de Flávia. Ainda bem que eu não estourei antes de vê-la dançar. Ainda bem que ela não estourou antes de dançar para mim. Entretanto, éramos balões resistentes flanando em torno de um balão há muito estourado, o seu avô cantante.

Então, não só inflada, mas também inflamada pelas belas memórias e arte de Flávia, Gaetan e Romual, a minha tristeza em relação à fragilidade da vida – aliás, muito bem cenografada pela fragilidade dos 1500 balões! – pôde ser poetizada, e portanto, suportada. A poesia que aquela dança “contemporaneizou” em mim foi a seguinte: Não só o avô de Flávia, mas todos nós, depois de “estourados”, não somos memórias perdidas, mas ar memorioso livre, liberto da contingência do corpo. O mesmo corpo que, enquanto dança as suas coreografias em torno e junto dos outros corpos, infla-os, compartilha com eles as suas memórias particulares, e, de certa forma, vive eternamente dentro deles, pelo menos até que estourem.

Por isso, “Conte-me sobre você”, pois afora o fato de que eu “Sei coisas lindas de ti”, você e a sua beleza sempre terão espaço dentro da frágil bolha que eu sou. Mas, por tantas razões, eu posso estourar a qualquer momento. Então, conta-me agora. E se não tiver palavras, dance – ou cante La Vie em Rose – mas faça isso antes do meu “boom” derradeiro. Como foi exatamente isso que os três bailarinos fizeram no palco, eles puderam terminar o espetáculo estourando todos os balões do cenário – espetacular apoteose dionisíaca! -, pois mesmo que as memórias simbolicamente guardadas dentro de cada um deles se desvanecessem no ar, um tanto delas permanecerão vivas dentro de cada balão da plateia que eles, belamente, inflaram.

A régua MAD da Lei

A distância que separa reles criminosos de corruptos “pica-grossa”, se medida com a régua que Slavoj Žižek, em seu livro Menos que Nada, irreverentemente recupera da clássica revista MAD, chegaremos à conclusão de que tal distância é zero. Até aí ainda estamos na a-dimensão cega preconizada pela Lei. Porém, os “picudos”, para não usarem o mesmo uniforme que os marginais, dão uma volta inteira na legalidade e, no fim das contas, os caros ternos que resultam dos seus ilícitos conseguem mentir muito bem que eles são conforme a Lei, quiçá ela em pessoa.

Pois bem, de acordo com a régua MAD, Žižek relembra-nos de que, no que diz respeito à Lei, a primeira medida são “os marginais que não se importam com o que ela diz, simplesmente fazem o que querem” ou precisam. Estes criminosos não levam em conta aqueles que seus crimes prejudicam nem se importam com o que a sociedade pense deles. Tampouco se serão taxados de criminosos ou punidos. Por isso seus atos são chamados hediondos.

A segunda medida, segue Žižek, são “os utilitaristas egoístas que seguem a Lei, mas de maneira apenas aproximada, quando convém a seus próprios interesses”. Aqui temos aqueles que só cumprem a Lei quando sabem que estão sendo observados. Afora isso, contudo, estacionam seus carros em vagas para deficientes físicos, compram atestados médicos falsos, não fornecem notas fiscais, etc. O que os diferencia daqueles é que se preocupam com o que os outros pensam dos seus ilícitos, pois são egoístas demais para serem estigmatizados e punidos.

A terceira medida, continua o filósofo, são “os moralistas que seguem estritamente a Lei”. Embora encarnem uma espécie de utopia dentro da realidade que dificilmente oferece um território receptivo a uma absoluta legalidade, os moralistas exercitam sistematicamente o cumprimento irrestrito da Lei, pois os olhos que imaginam lhes observar não são somente os da própria Lei, mas também, e principalmente, os seus, quiçá os de Deus. Eles tentam, o mais que podem, realizar o ideal da Lei. A que preço? Antes disso:

A última medida, que finaliza a régua MAD, são os monarcas e os reis, que, entretanto, na corrupta realidade contemporânea são os grandes políticos, os sumos legisladores, os megaempresários, e por aí vai. Estes últimos, a exemplo dos primeiros marginais, nas palavras de Žižek, “também fazem o que querem, [entretanto] desde que sejam a Lei”. Chegamos aqui na crista da volta que tais marginais dão nos demais, pois, fingindo ou acreditando serem a Lei, infringem-na legalmente na medida em que a medem por si mesmos.

Assim como os marginais mais abjetos, os corruptos “superiores” cometem seus crimes de acordo com suas imperiosas necessidades individuais, e, ademais, pouco se importam com o que se pense deles. Importam-se, todavia, ao modo de não se importar, pois quando, para não serem punidos, valem-se de suas pretensas identificações com a Lei, importam-se senão consigo mesmos. Porém, pelo fato de intencionalmente confundirem seus ilícitos com a Lei, os seus crimes são duplos: além dos ilícitos particulares concretos, há também a imoralidade hedionda em abstraírem a Lei às suas próprias desmedidas.

O criminosos “pica-grossa” dão a volta nos demais se beneficiando da máxima: “ladrão que rouba de ladrão tem cem anos de perdão”. Só que não! Ora, eles não “roubam” somente dos marginais mais baixos, que, entretanto, estão no mesmo nível que eles, e, portanto, não estariam em nível de julgá-los. Também, ao mesmo tempo, e principalmente, são marginais em relação a árdua retidão dos moralistas, que, utopicamente ou não, são os que sustentam o mais alto status que a Lei pode alcançar. Cintila precisamente nos moralistas o espectro da Lei que os “corruptos maiores” tentam dimerizar através das suas pressupostas identidades com ela.

Então, com a medida da régua MAD, e com explicação de Žižek, a precisa distância zero entre os criminosos comuns e os maiores corruptos é alcançada pela seguinte volta: 1) partindo da marginalidade mais baixa, que infringe a Lei custe o que custar; 2) passando por aqueles que infringem a Lei desde que não lhes custe nada; 3) cruzando aqueles que se rendem completamente à lei para não terem custo algum; e, finalmente, 4) chegando àqueles que fazem a Lei se render em função deles mesmos, novamente, custe o que custar – só que, nesse caso, quem paga o preço é a própria Lei, não eles! Nesse “topo”, tão baixo quanto a sua respectiva base, o criminoso superior coincide com seu oposto inferior.

Não obstante, nessas quatro formas de se relacionar com a Lei a lisura é objetivo pétreo apenas de uma delas. Temos aqui mais um caso onde é justamente a exceção que, por meio da Lei, tenta ser a regra, mas… como a nossa realidade bem mostra, a regra, em respeito à Lei, segue mesmo sendo as tantas exceções. E se são as exceções a maioria das regras no reino da Lei, aqueles que melhor conseguem se relacionar com ela de modo excepcional, isto é, fazendo as próprias exceções valerem como se fossem Leis, estes são Reis.

Já os moralistas, coitados, os únicos que fazem da Lei a regra, estes acabam sendo, por um lado, os súditos espoliados dos grandes criminosos, e, por outro, os senhores assaltados dos pequenos. Entretanto, mesmo esmagados pela distância zero entre os muitos marginais da régua que Žižek recuperou da MAD, é precisamente nessa claustrofóbica alcova resistentemente legal que os moralistas ainda mantém viva essa utopia que chamamos de Lei. Além do que, é a partir destes que os demais devem, e de fato são medidos. Em suma, é por conta dos moralistas que, no nível mais baixo, os marginais são lembrados da existência da Lei, e, no topo, os Reis não podem ser a Lei o tempo todo.

A pirrônica Filosofia do Agora

A busca da Filosofia pelos universais é tão antiga quanto ela própria, afinal, para ser uma ciência, melhor dizendo, “A ciência primeira”, como queria Aristóteles, ela deve tratar daquilo que, do Ser, valha universal e eternamente. Do contrário, as verdades filosóficas valeriam apenas em determinados casos e para determinados indivíduos, ou seja, em nada difeririam das múltiplas, contingentes, e portanto descartáveis opiniões humanas. Desse ponto de vista, uma filosofia que pressuponha apenas o agora como limite aos seus objetos, limita-os à validade desse mesmo agora. Por isso, tradicionalmente, o pensar filosófico prioriza o que é sempre.

Todavia, qualquer filosofia só pode ser feita a partir de um agora determinado ou outro, pois o filósofo, assim como o ser humano em geral, está sempre contingenciado por um agora específico. Logo, a despeito dos superestimados e abstratos universais eternos subsistem, de modo concreto, apenas os particulares e todavia efêmeros “agora”. De maneira que é sempre em um agora determinado que a Filosofia tanto pergunta pelo Ser como encontra predicados para ele. Portanto, se a filosofia pretende ter validade universal, deve considerar apenas o universo do Ser que há agora. Todo resto outra coisa não é senão ficção, melhor dizendo, mito.

Entretanto, o que é exatamente o agora absolutamente válido? Ora, o agora pode ser qualquer coisa, ou o que é o mesmo, nenhuma delas necessariamente. Todavia, a única coisa que não se pode negar do agora é que ele “é”, necessária e universalmente! Chegamos, portanto, à encruzilhada paradoxal na qual a efemeridade do agora encontra o seu corpo eterno e necessário: o agora é não só o momento exclusivo do Ser como também aquilo que lhe atribui essência, pois o Ser só é dentro de um agora qualquer. Fora deles, não é, apenas foi ou será.

Agora, se só o Ser “é”, mas não “enquanto” é os seus muitos predicados, ele só “é” o que é agora, pois “só o agora é”. Embora os filósofos se utilizem dos predicados para iniciarem suas relações com o Ser, o respeito a ele, todavia, pede para que tais predicações desapareçam o mais rápido possível. Do contrário, o Ser passa de um agora a outro “na forma” de seus predicados que, entretanto, são contingencias dos limites do agora a partir do qual foi predicado. O Ser, por conseguinte, para “ser”, deve ser livre das vestes predicativas, sempre obsolescentes, cosidas pelos incessantes e diversos “agora”.

Talvez seja o caso de a nada científica Filosofia do Agora não ser nada além do velho ceticismo de Pirro de Élis, cujo radicalismo o impedia inclusive de pronunciar qualquer juízo acerca das coisas, o que o levou ao silêncio absoluto. A filosofia pirrônica via pertinência na silenciosa percepção da existência presente e no exercício sistemático de não predicá-la. Tal ceticismo emudece pois, por um lado, acredita não ter como saber o que o Ser é em si mesmo – pelo menos com a validade e a universalidade que uma ciência pede -, e, por outro lado, uma vez que não se sabe o predicado eterno do Ser, qualquer predicação que se dê a ele desvaneceria já no instante seguinte.

Seria justamente Pirro o primeiro e excelente Filósofo do Agora, ou seja, o primeiro a recusar o antes e o depois como terreno possível aos predicados que o Ser angaria para si no gora em que se apresenta? Se sim, é por que foi ele quem se calou primeiramente sobre o que o Ser é afora o exato agora. Para esse filósofo, para além de um agora “X” decerto se aventuram as predicações com as quais este agora vestiu o Ser. Todavia, o que vale para um agora é impertinente aos demais, pois cada agora é um guarda-roupas exclusivo cujas vestes são apropriadas apenas para o seu próprio e efêmero baile de máscaras predicativas.

Portanto, no intuito de não travestir o Ser com predicados obsolescentes, mais vale a nudez silenciosa na qual a filosofia pirrônica o mantém, e isso em todos os “agora”. Do contrário, predicando-se “agora” o Ser para que ele seja tal predicado nos “agora” subsequentes, quiçá eternamente, faz-se do Ser os seus predicados. Aí há só falatório, ou pior, fofocas. Uma Filosofia, portanto, para ser universalmente científica, deve ser silenciosa acerca do que, a respeito do Ser, há para além das fronteiras do exato agora no qual ele é. Dentro destes limites, entretanto, o silêncio pode ser tão estridente quanto se desejar.

Dispensando Cunha “salvador”

A todos aqueles que gritaram e gritam que Eduardo Cunha, apesar dos seus ilícitos cada vez mais tácitos, é o “Salvador do povo”, começo dizendo a célebre frase de Bertolt Brecht: “O que é o assalto de um banco comparado à fundação de um novo banco?”, para, contudo, terminar perguntando a eles o que é ser assaltado por um corrupto senão a refundação de uma velha corrupção? Concidadãos, o que aconteceu com o sábio e econômico dito popular “dos males o menor”?

Quem, apesar de tudo, ainda prefere Cunha, escolhe, de fato, dos males o maior. Obviamente, o mal maior que preferem é algum bem menor para si mesmos; algum privilégio que, entretanto, pelo fato de ter Cunha como figura salvadora, é de imediato incompatível com a lisura e, portanto, com a democracia. Entretanto, “o sujeito que quer reduzir o Estado a um guardião de sua segurança privada e de seu bem-estar, tem de ser esmagado pelo Terror do Estado revolucionário, que pode aniquilá-lo a qualquer momento”, coloca Zizek, em Menos que Nada, discorrendo sobre o que é o Terror de Estado para Hegel.

Sim, chamam Cunha de “salvador” porque estão aterrorizados diante de um Estado que revolucionariamente ensaia – há pelo menos doze anos – ser bastião do bem-estar e da segurança da maioria, e não apenas dos da minoria historicamente favorecida pelo Estado reacionário que ensaia a sua própria morte. Os pretensos “protégé” de Cunha são, portanto, absolutamente negativos à evolução social brasileira. Com um salvador como este, o que estes “fiéis” querem é ser reconduzidos ao velho&obscuro Brasil que até bem pouco tempo só iluminava oligarquicamente.

No entanto, em respeito ao terror que leva alguém a desejar ser salvo por Eduardo Cunha, Zizek diria o mesmo que Hegel disse ao seu cidadão aterrorizado, isto é, que “o sujeito deveria reconhecer no terror externo, nessa negatividade que ameaça constantemente aniquilá-lo, o próprio cerne de sua subjetividade, deveria identificar-se diretamente com ele”, pois, só assim, dizem os dois filósofos, “o Senhor externo é substituído pelo interno”. Veria, portanto, primeiro, que o mal que teme está dentro de si, e, em segundo lugar, que não é o salvador diante do qual se ajoelha quem o salvará, mas somente a virtuosidade da sua relação individual com aquilo que o aterroriza, sem intermediários.

Por isso, quando Zizek diz que “o sujeito tem de se identificar plenamente com a força que ameaça exterminá-lo”, devemos ouvir que, em relação à grave graça de Cunha, é melhor que os brasileiros aterrorizados se identifiquem e se reconciliem com o problema que os aterroriza, e não com a velha&oligárquica máscara com a qual Cunha finge ser um salvador. Não, o evangélico Cunha de forma alguma possui ou sequer conhece a solução para a nossa realidade, assim como, para Zizek, nem a própria Igreja possui algum conhecimento superior; “ela é como uma carteiro que entrega a correspondência sem ter ideia do que ela diz”.

Por conseguinte, enquanto alguns crerem que alguém como Cunha os salvará do problema que os aterroriza, estão somente revivificando, em torno de si mesmos, tais problema e terror. Se fossem galinhas, seria como se escolhessem a raposa como salvadora. Por isso Zizek tem razão em dizer que o horror do homem é que, nele, o Mal torna-se radical, deixa de ser o simples mal egoísta, como o dos animais, e passa a ser o Mal mascarado, como acontece no totalitarismo, em que um agente político particular apresenta-se como salvador da humanidade. O problema, contudo, é que a máscara total não deixa ver quem a usa. Só assim as galinhas creem que uma raposa mascarada pode protege-las das raposas em geral. E, portanto, só assim, alguém pode querer um Cunha mascarado como salvador.

É por que o terror aponta senão para algo real que ele nos horroriza. Então, se é da verdade nua e crua que os que adoram Cunha têm medo, quanto mais mentirosa for a máscara dele, mais ela os alienará do aterrorizante real, todavia mentindo uma reconciliação com tal realidade. Entretanto, relembra Zizek, “para Hegel, para passarmos da alienação à reconciliação, não devemos mudar a realidade, mas o modo como a percebemos e [principalmente] nos relacionamos com ela”, pois, segue o filósofo, “a única coisa que muda na reconciliação é o ponto de vista do sujeito”.

Ok, nem tudo está perdido para os fiéis de Cunha, pois há salvação em relação à danosa “salvação” que ele oferece. A verdadeira salvação está em que, conforme Hegel, somente o gesto errado cria as condições que possibilitam que o sujeito realmente veja por que o gesto é errado. Portanto, apesar de a fidelidade a Cunha ser realmente errada – pois ser fiel à raposa é o erro máximo da galinha – tais crentes, no entanto, só podem partir dela para então chegarem a ver que estão errados. Como dizem vários filósofos, “todas as coisas, retroativamente, terão sido necessárias”, inclusive o absurdo de ver em Cunha espécie de salvação.

Ora, galinhas de Cunha, o salvador de vocês não é solução para os seus problemas, quiçá para os dele próprio, que, aliás, estão cada vez maiores. O problema de vocês é o mesmo que o de todo cidadão, e não só os brasileiros. Para Hegel, conta-nos Zizek, o Estado em geral é que é o problema. As soluções que se busca para tal problema algumas delas até se parecem com o que Cunha representa, mas transcendem a miséria que ele oferta. Com efeito, o Estado tenta resolver o problema insolúvel que ele mesmo é em forma ora de tirania, ora de oligarquia, ora de aristocracia, ora de democracia. No entanto, cada uma destas tentativas de solução apenas mantém o problema sempre vivo.

Um passo adiante, uma elevação em relação a esse problema sempiterno que é o Estado, portanto, dizem Hegel e Zizek, “ocorre exatamente quando, em vez de continuar procurando uma solução, nós problematizamos o problema em si”. Sendo assim, não só os fiéis de Cunha, mas todos nós, em vez de nos apegarmos à soluções fáceis, que geralmente são máscaras paliativas, deveríamos encarnar, encenar, protagonizar ao máximo o problema do Estado que somos, sem elencarmos, estratégica ou covardemente, atores-representantes que atuem transitivamente os fantasmas que qualquer Estado emana. Só desse modo o nosso galinheiro “brasilis” estará não só livre de Cunhas, mas, principalmente, apto a dispensar tais raposas.

Radicalismos: 2013 e 2015

Tanto as manifestações de 2013 quanto as de 2015 contaram com seus próprios vândalos de plantão. As primeiras tinham os Black Bloc que, pilhando latas de lixo, paradas de ônibus e bancos Itaú, espantaram a opinião pública e forneceram à mídia reacionária o material com o qual ela desqualificou o macro movimento. Já as de 2015 também contam com seus vândalos imediatamente objetáveis, apelidados de “coxinhas”, apólogos da ditadura militar, da monarquia, e cujo vandalismo destrói não o banco Itaú, muito pelo contrário, mas própria democracia. Assim como os arruaceiros mascarados de há dois anos, os atuais desordeiros verde&amarelo expressaram a mais reprovável face do que poderia ser manifestado em prol de um Brasil melhor.

2013 e 2015, embora antagônicos, têm em comum o monocórdico grito contra a corrupção política e o polifônico clamor por um Estado eficiente. Todavia, a pertinência destas demandas foi largamente ofuscada: em 2013, pela garatuja de guerra civil que os Black Bloc e a polícia ofereceram à opinião pública, e em 2015, pelo vômito elitista que pretere a democracia à ditadura militar – não obstante, com o agravante de se servir da própria democracia para tal. Ora, não há grito popular por vinte centavos, saúde e educação padrão FIFA, reforma política ou terceiro turno, pleitos em si civilizados, que resista ao intenso ruído da barbárie, seja a “molotóvica” Black Bloc, seja a “panelosa” coxinha.

Agora, se o revolucionário 2013 e o reacionário 2015 têm seus vândalos inerentes, é por que cada cidadão brasileiro tem dentro de si essa mesma dicotomia, entretanto, em menor grau. Porventura o manifestante pacífico, seja de que ano for, não reflete e sustenta as contradições dos radicais ao lado dos quais se manifestou? Em outras palavras, não seria o radicalismo, impertinentemente representado pelos Black Bloc e pelos coxinhas, a sintomática erupção, na arena social, da barbárie resistente que subjaz em cada cidadão, todavia civilizadamente reprimida? Cabe a cada brasileiro fazer esse “Mea culpa” individual e encontrar o radical fundamentalista solapador de ideais harmônicos escondido dentro de si mesmo, pelo menos antes de exigir que a figura da presidenta faça isso no lugar de todos.

Só então o cidadão, a partir da ínfima parcela que ele representa na opinião pública, deixará de propagandear o radicalismo como um erro condenável, para então entendê-lo como o inexorável outro lado da única moeda com que se negocia a mudança, seja ela para trás, seja para frente. Ter participado do Junho de 2013 e condenar os Black Bloc, ou ter desfilado no março de 2015 sem aceitar os coxinhas, é fingir que se está acima deles. Ademais, é não se unir verdadeiramente à massa a qual se diz pertencer. É, sobretudo, enfraquecê-la, não como os seus respectivos vândalos o fazem, mas de outro modo, silenciosa e covardemente.

Entretanto, levando essa lógica ao limite, o cidadão brasileiro, para fazer parte efetiva do “corpus brasilis”, não deve se iludir de que não produz cotidianamente tanto a pacificidade da maioria, quanto a radicalidade das minorias, cuja virtude, contudo, é gritar barbaramente, em alto e bom tom, aquilo que a civilização têm vergonha de expressar publicamente. Dessa forma, ser brasileiro seria querer, ao mesmo tempo vinte centavos, um Brasil padrão FIFA, a ruína do banco Itaú, o impeachment, a ditadura militar, a monarquia, e todo as demandas que não cabem num único discurso sem que ele soe absurdamente radical.

Seria ideal se a cidadania fosse algo simples e coerente. Porém, a realidade nada mais faz do que frustrar esse sedutor desejo, afrontando-nos com a sua complexidade imanente, cuja pertença, no entanto, exige que não nos coloquemos acima dela, como estrangeiros, burgueses ou “cidadãos de bem” que a julgam como se se tratasse de uma republiqueta indesejada nalgum (outro) terceiro mundo distante. 2013 fez do caos uma nova ordem, todavia temporária. 2015, por sua vez, fez da ordem o pretexto para apologizar o caos. Por fim, o vetor entre as forças revolucionárias e reacionárias destes dois anos aponta senão para o exato agora, mas também para todos nós brasileiros, que guardamos internamente não só a pacificidade que pouco pode contra um grande inimigo, mas também o radicalismo que melhor encarna e atua o desejo de mudança.

O acerto de um erro petista

Realmente, o Partido dos Trabalhadores cometeu um grande erro na esteira da crise internacional de 2008: preservar os trabalhadores brasileiros. Decerto que é um erro gravíssimo para o capital, pois, embora o capitalismo precise de um exército de mão de obra que produza a sua riqueza, carece mais ainda de hordas de trabalhadores desempregados, desvalorizados, disponíveis e, sobretudo, compráveis por qualquer migalha. É com este último time que o capitalismo limita, mas também rouba, o valor do primeiro, pois havendo muita mão-de-obra ociosa no mercado o valor do trabalhado não faz frente ao valor do capital.

Se o governo brasileiro dos últimos sete anos fosse radicalmente liberal, na iminência da crise ele teria não só permitido, mas também articulado o aumento estratégico do desemprego, pois assim o valor dos salários cairia forçosamente – de acordo com a lei da oferta e da procura. Assim os empresários novamente fariam dos trabalhadores a sua vil moeda de negociação com a crise para manterem seus lucros, transferindo os custos senão aos próprios trabalhadores, que teriam ou de se vender por menos, ou produzir mais pelo mesmo salário – apenas para não serem exilados ao estado do desemprego. Isso porque o capitalismo mente muito bem que riqueza significa a grande riqueza de poucos, e não a ausência de miséria da maioria.

Entretanto, depois de 2008 o governo brasileiro fez diferente. Colocou o Estado inteiro na manutenção dos altos níveis de emprego. Isso, por conseguinte, manteve o valor do salário diante o valor do capital, o que afrontou, mas também desvalorizou este último. Sem uma massa desempregada de manobra, o capitalismo tupiniquim, não podendo trocar o valor do trabalho por bônus crísicos, teve de ir beber nos seus próprios lucros, coisa que, historicamente, está desacostumado.

Com efeito, as duas últimas vezes em que, no mundo, o capital foi sistematicamente comprometido no reerguimento e na manutenção social – e, para Thomas Piketty, as duas únicas! – foi durante as grandes guerras e na sequência delas. Do contrário, as sociedades envolvidas nos embates solapariam. Todavia, no mais das vezes, como na crise de 2008, em muitos países o trabalhador é que foi comprometido no salvamento do capital. A dívida que os Estados Unidos, mas não só eles, legou aos seus cidadãos para que os bancos – veja bem, os bancos! – não quebrassem, é o procedimento cotidiano do globalizado sistema econômico.

O “erro” petista em não seguir a vil&pragmática cartilha capitalista, contudo, tem o grande acerto de fazer com que não só os trabalhadores fossem afetados e comprometidos pela crise, mas também os empresários, ou o que é o mesmo, o próprio capital. Se tivesse sido diferente, o vilipêndio dos trabalhadores, tão naturalizado e facilmente “abstraível”, sequer teria sido manchete enquanto os lucros dos capitalistas permanecessem altos. Agora, no momento em que o capital também paga a conta da crise, as manchetes e as ruas com altos IPTUs gritam histericamente o fim dos tempos – ou o impedimento do governo que não os deixou de fora da tempestade.

As manifestações “coxistas” de 2015 expressam sobretudo o descontentamento dos representantes do capital diante da insistência do governo em não desvalorizar os trabalhadores sem antes dispor da riqueza nacional, objeto do desejo dos capitalistas. Como assim gastar com os não-ricos aquilo de que os ricos precisam para serem o que são? Os mais insatisfeitos com o governo petista repetem, sem saber, uma ideia de Aristóteles que, entretanto, faz com que uma democracia seja, de fato, uma oligarquia: “seria ainda mais sábio não obrigá-los [os ricos] a grandes despesas e até mesmo proibir-lhes serem úteis para o povo”

Entretanto, a estratégia de não lançar primeiro os trabalhadores aos leões da crise, para com isso evitar que o capital fosse devorado, mas, em troca, iniciar saciando a voracidade da crise econômica com a própria carne capitalista sempre excedente, para só depois alistar o trabalhador no exército contra a crise, não pode ser visto como erro, principalmente por parte dos próprios trabalhadores. Talvez seja a primeira vez na história brasileira que a classe trabalhadora tenha sido economicamente priorizada em detrimento do capital. Quanto mais não seja porque é obra do Partido dos Trabalhadores.

É natural que a ameaçada oligarquia capitalista bata panela, manifeste incredulidade e insatisfação, afinal, um governo ousou não lhe preferir. Além do que, e a contragosto deles próprios, o país permanece democrático e permeável à manifestações, mas não só às suas. Se desde o início da crise – nascida internacional em 2008, mas só agora naturalizada brasileira – as coisas tivessem ocorrido de acordo com os preceitos capitalistas, como nos EUA, onde os trabalhadores ficaram sem casa e sem emprego para que os banqueiros mantivessem seus bônus estratosféricos, a nossa elite estaria tão preservada quanto satisfeita&silenciosa.

Porém, enquanto a crise mundial desempregava e despejava trabalhadores de vários países, os brasileiros, ao contrário, tiveram seus empregos e salários preservados. Isso, com efeito, afronta qualquer elite! Agora, contudo, como assumiu a nossa presidenta, a coisa mudou. Chegou a hora de todos lutarmos juntos para sairmos da crise, não só os capitalistas, mas também os trabalhadores. Obviamente, não se trata de uma boa notícia, mas nela subjaz uma virtude que não deve passar em branco: a crise está mais democratizada do que nunca, e não são mais os trabalhadores que pagam sozinhos a conta. Se o governo do Brasil errou em não agir de acordo com o “jeitinho capitalista”, essa falha não tem preço! Porém, como há um custo social sempre expresso em cifrões, é melhor que, em uma democracia, ele seja dividido democraticamente.

Dilma punida, mas não vigiada.

Se olhássemos a situação política na qual se encontra Dilma Rousseff através das lentes que Foucault nos oferece em Vigiar e Punir, obra que conta a história da manutenção do poder soberano através da observância e do castigo àqueles que o desafiam e reivindicam para si, veríamos que, pelo menos no Brasil, a vigilância e a punição do soberano sobre os súditos de que fala o filósofo trocou de lugar com a vigilância e a punição dos cidadãos brasileiros contra a sua presidenta.

Com efeito, hoje é a representante soberana que é punida por seus súditos, justamente os que, em tempos idos, seriam punidos por ela caso desafiassem a legitimidade do seu poder. Porém, pelo fato de Dilma estar sendo punida sem, no entanto, ter sido devidamente vigiada, isto é, investigada e comprovado algum crime contra ela, o que temos é uma tirania invertida na qual o povo, considerando-a tirana, é que a tiraniza ostensivamente.

Ao contrário de um soberano medieval, que punia em praça pública os súditos que o desrespeitavam, pois a punição espetacular de alguns era a melhor vigilância sobre os demais, hoje, são os cidadãos que, outrossim em praça pública, punem espetacularmente a representante soberana, como se a punição absoluta que tentam contra ela, qual seja, o impeachment, fosse a prática mais adequada para se ser política e cotidianamente vigilante.

Para um bárbaro que vive de extremos, vá lá tamanho radicalismo. Todavia, para nós, pós-modernos civilizados e democráticos, começar agindo politicamente já no limite da suspensão da civilidade e da própria democracia significa apenas que muito deixou de ser feito antes desse ato radical. De fato, quem começou a clamar por um país melhor pedindo a renúncia da presidenta dá provas de que nada além de um radicalismo ultrapassado tem para contribuir com o Brasil.

Além do que, o efeito colateral radical dessa forte punição do povo contra a sua presidenta é a fraca vigilância e a não punição desse mesmo povo em relação a súditos como eles, metidos a soberanos, tais como “Eduardos”, “Aécios” e “Fernandos”. Ora, se, aqui, o equilíbrio entre vigilância e punição é alterado poer alguns, ali esse desequilíbrio se expressa e se reflete contra estes mesmos.

De modo que é somente quando um povo e o seu soberano acordam sobre o que é vigiar, o que é punir, e qual a relação entre estes dois, que todos estaremos livres de sermos punidos sem termos sido devida e democraticamente vigiados uns pelos outros. Um povo que não vigia, prévia e adequadamente, aqueles a quem pune acaba por ser punido justamente pela sua incapacidade de vigilância. O preço, por conseguinte, é toda sorte de “Cunhas” e “Collors” deixarem de ser devidamente vigiados e, a partir de tal inobservância, galgarem para si uma soberania que não lhes cabe.

Com efeito, punir a presidenta antes de vigiá-la propriamente é agir como um príncipe medieval que, alheio às práticas cotidianas dos seus súditos, conhece-os apenas no curto trajeto entre o crime e o cadafalso mortal. Aí, nada mais há para ser feito. Não há, portanto, possibilidade de evolução. Agora, se quisermos agir em quanto partícipes de um Estado Moderno, temos de nos valer da miríade de instâncias que ele introduz entre os atos capitais de vigiar e punir.

Se o súdito medieval era imediatamente punido com a morte espetacular pelo príncipe que, entretanto, não o vigiava previamente, o cidadão moderno, em troca, conta-nos Foucault, é absolutamente vigiado desde que nasce: na maternidade, na escola, no condomínio, na fábrica, no manicômio, no tribunal, e, em caso de ser considerado realmente criminoso, na prisão. A imediata punição medieval se transformou, desde a modernidade, em uma extensiva e democrática vigilância de uns sobre os outros.

Portanto, punir alguém em praça pública sem sequer tê-lo vigiado minimamente, seja ele súdito, príncipe, cidadão ou presidente, reacende uma barbárie que não deve mais ter espaço no atual estágio histórico. Sendo assim, aqueles que não conseguem vigiar antes de punir devem fazer – ou refazer – a “Via Crúcis” da modernidade e aprender o que é vigiar e ser vigiado – na maternidade, na escola, na fábrica, no manicômio, no tribunal – e, em caso de seguir punindo indevidamente, aprender o que é punição, todavia na prisão.

A velha democracia dos coxinhas contemporâneos

Por mais difícil que seja enxergar, os coxinhas querem uma democracia. Obviamente, não essa que temos hoje, cuja universalidade os afronta e pretere, mas uma bem mais antiga do que qualquer um desses acéfalos paneleiros pode imaginar. Com efeito, mesmo sem saber, o “coxismo” contemporâneo remonta à primeira democracia que o mundo conheceu, aquela inventada em Atenas, 500 a.C., na qual somente cidadãos homens&ricos decidiam o presente e o futuro da cidade-estado. Portanto, de imediato podemos concluir que estes reacionários contemporâneos são muito mais retrógrados do que se poderia supor.

Já Aristóteles, na sua Política, dizia que numa democracia “deve-se ser prudente com os bens dos ricos e não submeter nem suas propriedades nem suas rendas à partilha”. “Seria ainda mais sábio não obrigá-los a grandes despesas e até mesmo proibir-lhes serem úteis para o povo”, completa o filósofo. Podemos muito bem imaginar o que um aristocrata grego diria de um Bolsa família ou de um Minha Casa Minha Vida! Do repúdio à distribuição de renda tornada real na última década brasileira pelo governo petista, portanto, pode ser dito que é democrático apenas enquanto reencarnação da democracia mais primitiva de que se tem notícia: a aristocrata grega.

Dos 400 mil habitantes daquela Atenas de há 2500 anos, somente 30 mil tinham direitos políticos. Mulheres, escravos, e não proprietários de terras estavam desde sempre excluídos. Agora, porventura não é algo nestes mesmos moldes o que a democracia coxinha tenta reavivar ao solicitar a anulação do sufrágio universal por intervenção militar? Entretanto, e infelizmente, em vez da poderosa e estilosa retórica grega que polida e politicamente conquistava votos na assembleia, os “aristocoxinhas” de hoje têm o melhor de seus discursos no máximo de ruído que conseguem extrair de suas panelas, as únicas de que ainda podem ser ditas serem “polidas”.

Se “democracia”, em grego, significava o “governo do povo”, mas de fato ela era propriedade de menos de 8% da população de Atenas, era porque as ideias de povo e de população não coincidiam. Tampouco deveriam coincidir, pois só assim a riqueza do povo ateniense não seria confundida nem ameaçada pelos pobres atenienses. Por isso, desde lá, já era contraditório sustentar uma democracia enquanto apenas os melhores, os “aristoi”, ou poucos, os “oligoi”, governavam. De tal contradição, entretanto, os “oligocoxinhas” poderiam estar livres se atinassem para o que disse Aristóteles: que “a oligarquia é para a utilidade dos ricos; a democracia, para a utilidade dos pobres”.

Ora, se democracia é mesmo o governo dos pobres, como apontou o filósofo, nunca houve democracia na Grécia antiga, quiçá depois dela. E se hoje a aristocracia brasileira, preterida em função da remediação da pobreza histórica do nosso país, quer a berlinda de volta para si, busca a mesma coisa que os gregos chamavam de democracia, embora se trate, lá e aqui, de uma oligarquia, ou seja, do governo de poucos, ou o que é o mesmo, dos mais ricos. Por isso os nossos coxinhas contemporâneos acreditam realmente defender a democracia quando pedem a deposição de um governante democraticamente eleito pela maioria e a subjugação da vontade destes à tirania de uma ditadura militar que outra coisa não torna lei senão a vontade da minoria

A democracia grega, da qual a brasileira é filha tardia e transgênica, guarda um significado virtuoso, mas apenas no seu significado etimológico, pois, na prática, sempre carregou consigo os vícios aristocratas e oligarcas. Por conseguinte, ao se defender a democracia, como acontece no Brasil hoje em dia, fala-se, com efeito, de duas coisas bastante distintas: de um lado, a maioria, ou o “demos”, fazendo alusão a uma antiga utopia, que já era utópica na antiga Grécia, e, do outro lado, a minoria, os “aristoi” ou os “oligoi”, reclamando por uma realidade concreta, sempre renovada e renovável, que privilegia senão a eles mesmos.

Tal dominação histórica das minorias se dá, entre tantos e sórdidos motivos, também porque as oligarquias e as aristocracias conseguem muito bem mentir ao demos, isto é, ao povo, que são democracias. Os nossos atuais coxinhas, portanto, são ou democratas ancestrais ou oligarcas-aristocratas contemporâneos. Pior ainda, são estes insistindo em serem chamados daqueles.

O complexo de Édipo do coxinha

É bem difícil encontrar um território não paradoxal aos desejos manifestados pelos brasileiros que, democraticamente, pedem a volta da monarquia e da ditadura militar. Com efeito, agem como crianças mimadas que desejam mais do que é razoável, ou seja, coisas que se autodestroem: por um lado, precisam da democracia para poderem desejar livremente outras formas de governo, e, por outro, desejam justamente formas de governo que automaticamente suspenderiam a democracia que lhes deu o direito de desejá-las livremente.

Se tal infantilidade política se deitasse num divã, para então conhecer as causas da insustentabilidade dos seus desejos, o infeliz psicanalista provavelmente começaria complexificando-a edipianamente. Claro, não sem o protesto de Gilles Deleuze, para quem a fácil forma “papai, mamãe e eu” é mais um vício $i$temático do que uma virtude libertária. Entretanto, a “esquizoanálise” proposta pelo filósofo em substituição à psicanálise seria demasiado agorafóbica ao coxinha; ele sequer voltaria para a segunda sessão. Então, se, como é fácil observar nas avenidas brasileiras, o coxinha é aquele que prefere a claustrofobia do $i$tema, façamos como o psicanalista e o prensemos entre seu papai ideal e sua mamãe problemática.

Os paradoxais coxinhas, obviamente, fariam o papel do bebê pleno de desejos ainda impossíveis de serem expressos de modo pertinente ou sequer atinentes às possibilidades do real. Abaixo deles, a mãe-material, Dilma Rousseff, que de forma alguma poderia deixar de saciar, imediata e imanentemente, os seus muitos e conflituosos desejos. Finalmente, acima dele, o pai-ideal, monarca ou ditador, que, por conta da sua natural transcendência em relação a unidade primeira “mamãe e eu”, poderia, com seu falo despótico, ou impor à mamãe a realização dos desejos não atendidos do bebê, ou puni-la caso não o faça. Isso porque o falo do pai faz o papel de um ídolo salvador.

Como bem observou Deleuze, é nessa fase fálica edipiana que uma nítida diferenciação dos dois pais começa. Subterraneamente, a mãe é aquela incapaz de fazer o bebê absolutamente feliz, e, nas alturas, o pai é aquele que pode introduzir o seu falo na jogada e tornar Lei vertical a realização dos desejos do neonato. O complexo de édipo é o mesmo que o complexo dos coxinhas enquanto a incapacidade de Dilma-mãe, que frustra materialmente os seus elevados ideais, tiver de ser corrigida senão pela pretensa capacidade de um ditador-monarca-pai, que idealmente promete lhe a realização material das suas necessidades.

Com efeito, para o bebê-coxinha, o falo ideal do pai-monarca é o instrumento perfeito destinado a reparar a incapacidade da mãe-Dilma de suprir materialmente a sua voraz sede por uma cidadania conjunturalmente irrealizável. Não sabe, contudo, que a realidade para além da crísica bolha <Dilma-mamãe e eu-coxinha> será tão plena de privações quanto essa mãe mesma já expressa através da sua impossibilidade de saciar plenamente os desejos do seu rebento-cidadão. Ignora, outrossim, que em relação à realidade concreta que o circunda, e que o circundará até o fim de sua vida, esse falo idealizado em forma de um pai-tirano tampouco abstrairá as vicissitudes da vida, muito pelo contrário.

Entretanto, enquanto o falo salvador do papai-monarca for a única punição à mamãe-Dilma, e isso tudo em função dos desejos frustrados dos bebês-coxinha dela, estes estão tão presos a um complexo político quanto Édipo está ao seu. Isso porque, parafraseando Deleuze, todo Édipo-coxinha conjura a potência infernal das profundidades impossíveis de sua mamãe-Dilma à potência celeste das alturas prometida pelo falo despótico de um papai-ditador idealizado. Esse coxinha, assim como Édipo, reivindica para si um terceiro império, a superfície ideal entre mamãe e papai. O preço dessa superficialidade, contudo, é a mesma cegueira auto imposta da qual o personagem mitológico não se viu livre.

Se, conforme Deleuze, no complexo de Édipo “jamais a criança teve melhores intenções na sua confiança narcísica”, mediante a atual complexidade política brasileira, jamais o bebê-coxinha teve melhores intenções na sua confiança egoística. Com efeito, o seu ego só será “super” se o corpo incapaz da mamãe-Dilma for corrigido pelo falo poderoso do papai-rei-general. Todavia, de um só golpe, o coxinha se aliena de sua realidade material imediata e se refugia na idealidade de um salvador transcendente, que, entretanto, imanentemente, é igualmente incapaz de satisfazê-lo absolutamente.

Essa fé cega em um pai-ditador ideal, por conseguinte, é apenas a antessala na qual qualquer pai-ditador real inevitavelmente comprovará que é tão ou mais ineficaz do que a mãe-Dilma contra a qual o Édipo-coxinha se vinga. Desse modo, o coxinha, a exemplo do que Deleuze disse de Édipo, é um “Eventum tantum”, cuja superficial complexidade se resume em castrar a mãe, matar o pai, ser castrado e morrer. Ou pelo menos permanecer cego em relação à realidade que ele mesmo não suporta, como Édipo depois de furar os seus olhos com uma flecha, que, aliás, bem pode simbolizar o falo ideal que não o salvou, mas, muito antes disso, já havia lhe cegado.

Coleira de pérolas coléricas

Pior do que as atuais crises política e econômica brasileiras juntas é a crise humana que marcha em “mani-infestações” como a deste domingo, repleta de gentes e discursos desumanos e antidemocráticos. Alguns minutos assistindo aos absurdos que desfilavam orgulhosamente pela orla de Copacabana foram suficientes para juntar pérolas não menos absurdas para montar não um colar, mas uma coleira de pérolas de ignorância que outra coisa não faz senão agrilhoar as ostras políticas que as produzem às suas próprias ignorâncias.

Pedir por um país mais democrático destruindo a democracia; lutar por um país menos corrupto desmerecendo um governo que combateu a corrupção mais do que qualquer outro; clamar livremente por uma intervenção militar que, como a história recente do Brasil pode mostrar, suprimiria justamente tal liberdade; foram apenas algumas das bijuterias contraditórias com as quais os mani-infestantes verde&amarelos adornaram as suas livres, todavia absurdas, expressões.

Tais pérolas malogradas, no entanto, parecem mais as simbólicas bolas de ferro com as quais os condenados eram impedidos de escapar da servidão forçada. Só não desejo que as bestas políticas sejam aprisionadas às joias impróprias pelas quais clamam colérica e contraditoriamente porque, como se diz, têm coisas que não se deseja nem para o seu pior inimigo. Além do que, se, ali, eles perdessem as suas liberdades e direitos democráticos, como a “intervenção militar já” pela qual pedem fatalmente traria, aqui, infelizmente, todos os demais cidadãos estariam sujeitos à mesma privação.

As crises fazem parte das vidas política e econômica de qualquer país. Entretanto, embora repitam o vício de não poupar aqueles que já vêm afetados política e economicamente desde antes das crises, elas têm ao menos a virtude de colocar os que acham que a realidade é insuportável apenas sazonalmente no mesmo país daqueles. A diferença é que para uns as dificuldades conjunturais são estrangeiras intoleráveis que dificilmente adentram nos seus condomínios murados, enquanto que para outros, ou melhor, para a maioria, as dificuldades são vizinhas conhecidas e próximas que a qualquer momento podem bater palmas no portão de casa.

Agora, quando os mais privilegiados são abordados pelas mesmas vulnerabilidades, velhas conhecidas dos desprivilegiados, e isso pela crise da sórdida ordem que estrategicamente faz com que os problemas sociais passem ao largo das suas torres de marfim burguesas, estes, ao contrário daqueles, não sabem o que fazer. Então, batem panelas que nunca estiveram vazias e gritam histericamente pelo fim da democracia que lhes permite gritar democraticamente. Isso porque eles não suportam estar expostos às vicissitudes da realidade como a maioria das pessoas cotidianamente está.

Preferem, portanto, trocar a liberdade democrática e a dignidade humana que têm em comum com os desprivilegiados pelas privações de uma ditadura militar qualquer conquanto esta lhes garanta seus velhos e insustentáveis privilégios. Só mesmo um grande absurdo para sustentar outro! Não enxergam, contudo, que as pérolas impróprias com as quais montaram o cordão que mente isolá-los da realidade com a qual não estão acostumados são os elos de uma coleira colérica que os prende, como cães sarnentos e raivosos, a uma realidade ainda mais vil do que aquela contra a qual protestam.

O Tinhoso no divã Hollywood

Não se faz mais diabos como antigamente, graças à Deus! O primeiro internacionalmente conhecido, descrito por Dante Alighieri como um ser horrendo, de três cabeças enormes e que jazia solitário no centro da terra preso da virilha para baixo num lago eternamente congelado, em nada se parece com o diabo que a Fox mostra na sua mais nova série de TV, Lúcifer, a estrear oficialmente em 2016. Entediado com a sua eternidade subterrânea, o Belzebu mais contemporâneo de que se tem notícia escolheu Los Angeles para “dar um tempo” longe do seu inferno, presente maldito de seu autoritário Deus Pai.

De diabólico, Lúcifer Morningstar – o nome estiloso como o qual “o Coisa-ruim” se apresenta na terra das celebridades – mantém apenas a sua imortalidade e a capacidade de fazer com que as pessoas expressem os seus mais secretos e pecaminosos desejos. De resto, ele é demasiado humano. Melhor dizendo, o Asmodeus é aquilo que quase todos os humanos desejam ser em demasia, isto é, jovem, rico, belo, sedutor, inteligente, espirituoso, dono de um Porsche conversível e de trajes Armani negros impecáveis.

Com esse cacife, o Belzebu contemporâneo não poderia deixar de frequentar “nightclubs” da moda repletos de gente bonita e bem vestida. Entre um drink e outro, uma famosa cantora Pop, viciada em heroína e descontente consigo mesma, apaixona-se por ele – como, aliás, todas as demais mulheres -, sem, contudo, saber quem ele é. A dúvida que a angustiava era se, em troca do sucesso, havia vendido a sua alma ao Diabo. Ele ri e diz que o diabo não compra almas humanas, apenas se apaixona por elas.

Lúcifer, contrariando a sua fama, sensibiliza-se com miséria espiritual da bela garota, aconselhando-a fraternamente para que se recompusesse na vida. Porém, no instante em que ela aceitou os bons conselhos do Demônio, Deus designou o traficante a quem ela devia dinheiro de droga a disparar uma rajada de tiros contra eles dois. Ela, como era de se esperar, morreu na hora. Morningstar, contudo, imortal e hollywoodiano que é, não teve sequer o seu Armani amarrotado. Mesmo assim – espanto! – prometeu fazer justiça.

Uma policial humana que investigava a morte da cantora assassinada não entendia como Lúcifer Morningstar havia escapado ileso do ataque. Ele repetia que era imortal, o que ela, obviamente, não levava a sério. Porém, doravante, em todos os passos da investigação, Lúcifer estava sempre um passo à frente dela. “Long Story Short”, os dois se veem irremediavelmente envolvidos pelas circunstâncias. Todavia, diferente de todas as mulheres do mundo, ela não é seduzida sexualmente por ele. Não entendendo por quê, é ele que cai seduzido por ela, e, surpreendentemente, passa a ser o seu anjo-da-guarda.

Só aí os arcanjos divinos abordam o Capiroto. Pelo jeito, para Deus o fato do Sete Peles ter abandonado o inferno não é tão grave quanto ele sentir compaixão por quem, ao contrário, deveria infernizar. Lúcifer, então, entra em uma crise existencial e, pasmem, procura uma psicanalista. Esta, antes mesmo de tratar da alma do Diabo, ou de vender a sua, entrega “de bandeja” o seu corpo a ele. Prometendo pagá-la com sexo, o Cadreel entra no consultório, fecha a porta e o episódio piloto de sua mais nova série.

Um Satanás livre, compassivo, desejável, e sobretudo desejoso por analisar a sua própria consciência, arruinaria não só o totêmico Inferno de Dante, como também o bendito protagonismo de Deus, pois ambos precisam do antagonismo maldito do Diabo para serem convincentes e consistentes. Ora, o Bem só se revela através do matiz contrastante do seu oposto, o Mal. Isso vale, aliás, para todo par de contrários. O Bem absoluto, ou seja, Deu, é criticamente ameaçado pelo desejo de bondade e correção do Mal absoluto, qual seja, o Diabo.

Agora, se o mundo do espetáculo dá aos seus habitantes-consumidores justamente aquilo que eles mais desejam consumir, que desejo consumista seria esse, então, de ver o Mal absoluto se curvar diante do Bem senão o desejo, de mesma intensidade, de ver o Bem ceder espaço ao Mal? Nada mal se ver livre do totem claustrofóbico do Mal. Porém, nada bem se tornar assim órfão do ícone refrescante do Bem. O alto preço daquele, contudo, só é pago com a moeda deste.

Entretanto, numa história na qual Deus assassina friamente uma alma atormentada, ao passo em que é justamente o Diabo que se atormenta e se envolve com tal injustiça, o que se tenta, com efeito, é trocar os dois de lugar. Eu, particularmente, prefiro ter um Diabo desses olhando por mim nas ruas da minha cidade do que um Deus que me puna pelas minhas misérias lá da sua alienada esfera celeste.

Mais ainda quando o Coisa-ruim aceita até se deitar num divã para se livrar do peso que Deus Pai, da sua julgadora, porém distante área V.I.P, colocou nas suas costas. Com efeito, Satanás só tem a fama que tem por conta do julgamento de seu Pai que não aprovou o fato de seu filho preferir os humanos a Ele. O divã, decerto, é o lugar para se livrar do asfixiante e paralisante simbolismo com o qual todo pai assombra verticalmente seus filhos.

Entretanto, Complexo de Édipo algum teria vez nesse inédito tratamento psicanalítico uma vez que não há mãe alguma por cuja posse esse filho caído tenha precisado, primeiro, disputar com o seu Pai, segundo, matá-Lo para tomá-la para si, e, terceiro, ostentá-la como o troféu objetivo de sua vitória subjetiva sobre Ele. Em troca, a psicanalista caída pelo Demônio, por um lado, deve tratá-lo como o filho renegado de um Pai solteiro, distante e sumamente despótico, e, por outro, fazer o papel da Jocasta conquistada que o Édipo-Evil nunca teve, o que, entretanto, não pareceu ser um problema para ela. Muito pelo contrário!

O divã psicanalítico talvez ponha fim ao trauma subterrâneo e até então eterno de Lúcifer, causado senão pela a mentira-vingança de seu Pai solitário que, das nuvens, diz ser o amor irresistível de seu filho à humanidade o pior dos pecados. Entretanto, se o Inferno foi a vingança de Deus Pai contra o filho Lúcifer que preferiu o caótico mundo ao harmonioso paraíso, agora, com a psicanálise, este filho pode se vingar dEle e dizer, primeiramente à sua terapeuta, depois a todo mundo – visto que fala de Hollywood – que seu Pai só o puniu porque em uma eternidade inteira foi incapaz de se apaixonar pela humanidade como ele.

A invulgaridade exclusiva da dança

Se, como cogitou René Descartes, eu “penso, logo existo”, quem é que consegue interromper o balé de seus próprios pensamentos sem com isso abandonar o palco da existência? Com efeito, enquanto existimos, pensamos. É como se fôssemos solicitados irresistivelmente pelo pensar a cada instante das nossas existências. Agora, se Nietzsche tinha razão em dizer que “toda vulgaridade vem da incapacidade de resistir a uma solicitação”, temos de assumir que, pelo fato de não conseguirmos deixar de pensar, solicitados que somos pelo desejo de seguirmos existindo, somos absolutamente vulgares.

Mesmo quando desejamos não pensar, pensamos. A mente vazia, portanto, é impossível. Até por que, como disse Alain Badiou, “o vazio é o ser do lugar”, não o nosso. Então, se só o lugar, ou o que é o mesmo, o espaço, pode ser vazio, é porque só ele resiste à solicitação de ser preenchido, e, portanto, somente ele não é vulgar. Nós, em troca, somos vulgares porquanto pensamos o tempo todo, preenchendo irresistivelmente todos os espaços com nossos pensamentos. Até o nada foi totalmente preenchido por nós, pelo menos com o nome que a ele demos.

Se, portanto, a vulgaridade de não resistir ao próprio pensamento é a condição da nossa humana existência, elevar-se dela deve exigir algum tipo especial de arte. Aí, reencontramos Badiou dizendo que “a dança é o movimento do corpo subtraído de qualquer vulgaridade”. O que está sendo dito é que somente o bailarino, por ser sobretudo corpo, pode ser o que é a despeito dos seus pensamentos. Isso fica claro nas palavras do filosofo: “a dançarina é o esquecimento milagroso de todo seu saber [inclusive do] de dançarina”.

De fato, quem melhor do que o bailarino para resistir, no espaço, às solicitações vulgares dos seus próprios pensamentos? Nem mesmo o ator pode se ver livre do pensar, pois “a partir do momento que há texto [e portanto pensamento], a exigência é do tempo, e não do espaço”, assegura Badiou. Um conterrâneo seu, Stéphane Mallarmé, pensa como ele ao dizer que “a dança é o poema liberto de todo o aparato de escriba”. Então, só mesmo a dança liberta o homem do pensamento, e portanto da vulgaridade.

Se, então, na ausência do pensamento só há o espaço, mas não o tempo, e se, conforme Badiou, “a dança é a única das artes que é obrigada ao espaço”, existe, portanto, na dança, algo obrigatoriamente pré-temporal que, entretanto, só pode ser representado no espaço. Ao contrário do pensamento, que é temporal e temporalizante, a dança, enquanto pré-temporalidade que é, “suspende o tempo no espaço“, coloca o filósofo, e, por conseguinte, suspende o pensamento.

Diante da bailarina, realmente, não sabemos mais o que o tempo fará no espaço! O balé rouba-nos aqueles pensamentos que pensam já saber do que um corpo é capaz, seja no tempo, seja no espaço. A dança faz com que o pensamento experimente o vazio porque só ela é no vazio. Aliás, quanto mais vazio, mais a dança pode ser. “O cenário é do teatro, e não da dança. A dança é o sítio tal qual, sem ornamentos figurativos. Exige o espaço, o espaçamento, nada além disso”, aponta Badiou.

O pensamento, por sua vez, não dança porque desde o princípio já encheu o espaço da existência com a sua espaçosa cenografia pensante, cujo pesado ornamento é o tempo. Já o bailarino, o artista do espaço, está livre do tempo porque resiste às solicitações do seus badulaques-pensamentos. Aí não é vulgar! Na dança, com efeito, o tempo é escravo do espaço, e o espaço, escravo do bailarino, o único capaz de resistir às solicitações dos seus pensamentos. Portanto, Descartes não estava totalmente certo ao afirmar que a existência só é comprovada pelo pensamento. Contra ele, qualquer bailarino poderia dizer: danço, logo existo!

Uma geometria da dança

Quando a bailarina, coreógrafa e professora Angel Vianna me disse que inicia seus alunos na dança discorrendo sobre pontos, linhas e planos, pois a consciência dessas abstrações geométricas se reflete positiva e concretamente nos corpos, posições e deslocamentos dos bailarinos sobre o palco, lembrei-me imediatamente da frase que Platão escreveu na porta da sua academia ateniense: “Quem não for geômetra, não entre”. Angel, entretanto, não seria tão radical quanto o pai da Filosofia, e nunca escreveria na porta da sua academia carioca: Quem não for geômetra, não dance!

Muito pelo contrário, o que ela quer é que todos dancem, independentemente de quaisquer experiências e conhecimentos prévios. Esse é a sua grande virtude! Porém, assim como Platão, que acreditava que a o ramo formal da matemática condicionava os filósofos à virtuosa busca pela verdade, a dama da dança contemporânea brasileira, por sua vez, acredita que a geometria pode bem condicionar os seus bailarinos à verdade do movimento de seus corpos no espaço. Como, então, a intimidade com pontos, linhas e planos abstratos servem concretamente à dança? Pois bem, botemos a geometria para dançar!

Sucinta e introdutoriamente, o ponto, que é adimensional, ao ser deslocado, forma uma reta, entidade unidimensional; esta, deslocando-se, forma um plano, ser de duas dimensões; este, por sua vez, movimentando-se, forma um volume, ou seja, o estabelecimento das três dimensões espaciais. Como, entretanto, para a dança não é somente o espaço que é pressuposto, mas também o tempo, as três dimensões espaciais, quando comportam em si o movimento, são o palco para a quarta dimensão, qual seja, o tempo. O bailarino tem aí, portanto, os elementos a priori da sua arte.

Agora, mais detalhadamente, o ponto, “ponto” de partida e abstração absoluta da geometria, que não tem quaisquer qualidades ou dimensões além de sua posição, pode, entretanto, mover-se ou ser imaginado em outro lugar. Ora, de uma pessoa que não se move nem imagina um movimento não pode ser dito que dança. Em troca, é somente quando ela se movimenta ou imagina um movimento de um ponto a outro, sem, no entanto, se esquecer da relação que tais posições têm entre si, que ela dá o primeiro passo no sentido de ser um bailarino. Ou seja, deixa de ser um ponto desqualificado no espaço infinito e angaria para si a sua primeira qualidade: ser a história consciente do seu próprio deslocamento espacial de um ponto determinado a outro ao longo de um tempo.

Com efeito, a dança começa quando uma pessoa-ponto imagina que pode ser mais do que uma única posição, e, ao ser outra, isto é, outro ponto, já é uma reta, cuja virtuosa propriedade é ser constituída de infinitos pontos, ou o que é o mesmo, infinitas posições. Só não podemos parar por aí e achar que uma única dimensão faz um bailarino, pois, então, até de uma pedra que cai poderia ser dito que baila. É preciso, por conseguinte, que essa reta-quase-bailarino se desloque de um lado para o outro para que se estabeleça um plano aos seus movimentos. O bailarino, aí, ganha mais uma qualidade, qual seja, a bidimensionalidade.

Novamente, é necessário mais do que isso para se ter propriamente um bailarino, pois se o deslocamento para os lados fosse suficiente, uma folha arrastada pelo vento teria de ser considerada como tal. Esse plano-quase-bailarino, portanto, deve mover-se para cima e para baixo, para que então a tridimensionalidade o qualifique espacialmente. Entretanto, se apenas os deslocamentos para um lado e para o outro, e para cima e para baixo, contivessem a essência espacial da dança, uma pluma, numa ventania, estaria dançando, coisa que ninguém ousa dizer – a não ser fazendo poesia.

Será que é o tempo, isto é, a quarta dimensão, o ingrediente que completa a geometria da dança? Obviamente não, pois tanto a pedra, a folha e a pluma se deslocam em função do tempo, e nem por isso bailam. Não são, portanto, as três dimensões espacial mais a temporal, juntas, que fazem a dança, muito embora a dança não se dê sem elas. A diferença entre um bailarino e uma pedra, folha ou pluma está, entretanto, em que somente aquele é – ou ao menos pode ser – consciente das dimensões através das quais se movimenta, enquanto os objetos sequer são conscientes de si.

Por isso, Angel Vianna têm razão em insistir que seus alunos sejam apresentados à coreografia dimensional apresentada senão pela geometria. Afinal, um bailarino, pelo fato de ser aquele que usa e abusa do espaço com arte, deve conhecê-lo bem. Talvez não como um geômetra, como exigia Platão dos seus pupilos, mas ao menos intuitivamente, dado que o espaço concreto no qual qualquer bailarino dança é redutível a pontos, linhas e planos abstratos. Ademais, e principalmente, é nessa ordem mesma – ponto; então linha; então plano; e só então espaço – que qualquer movimento pode ser a consciência de sua própria gênese ao longo de um tempo, e assim ser dançado, dançado novamente, e, para o bem da dança, eternizado.

Sexualidade. Orientação ou status?

O velho preconceito em relação à homossexualidade e à bissexualidade sobrevive, seja na inocente naturalização da expressão “viado”, seja na barbaridade fundamentalista-islâmica que arremessa homossexuais do topo de prédios. Temos, entretanto e felizmente, algumas ilhas nas quais a sexualidade das pessoas pode se expressar livremente sem que elas sejam discriminadas ou punidas por isso.

O fato de algumas pessoas poderem afirmar e exercer sem medo as sexualidades que cultural e historicamente foram e ainda são indevidamente tidas como proibidas, doentias, e até contrárias ao desejo divino, certamente representa, não a vitória na guerra contra o preconceito, mas uma fundamental evolução entre batalhas.

Entretanto, dessa liberdade é bom que não se faça abstrações indiscriminadas, pois ela trata de concretudes demasiado estruturais nas vidas das pessoas, ou, do contrário, abre-se aí espaço para novos preconceitos. Será mesmo, como diz o ditado popular, que quem nunca comeu melado, quando come necessariamente se lambuza? Se sim, que lambuzo seria esse em se tratando de liberdade e afirmação sexual?

Pensei nisso quando três adolescentes – com dez, treze e quinze anos de idade – disseram que eram bissexuais sem, no entanto, terem transado, ou sequer se apaixonado por alguém do mesmo sexo que eles. Assim se afirmam pois, privilegiados que são, sabem desde já que a bissexualidade não se limita apenas à atração sexual por pessoas de ambos os sexos, mas pode se dar também pelos vieses afetivo, romântico, emocional.

Agora, se a orientação sexual de alguém é a realidade a priori em relação a qual tanto a afetividade quanto a sexualidade ativa são expressões a posteriori, o respeito à própria sexualidade deve necessariamente seguir a orientação sexual espontânea de cada um. Do contrário, ou a pessoa é coagida a uma sexualidade que não a sua, ou a sua sexualidade é tratada como se fosse uma questão de opção.

Entretanto, a expressão “opção sexual” é considerada impertinente, pois a sexualidade é uma dimensão assaz imanente para que alguém possa optar por ela como se estivesse diante de um cardápio. Ora, se fosse simples assim, os homossexuais que historicamente sofreram preconceito certamente teriam optado por uma sexualidade que não lhes trouxesse tantos e indevidos problemas familiares, sociais, sexuais, etc.

“Orientação sexual”, em troca, é um nome que não responsabiliza as pessoas pelas suas sexualidades, dado que passa longe da deliberação prévia acerca do assunto. Não diz não respeito, portanto, a erro ou a acerto. Por opção é possível trepar com pessoas de ambos os sexos. Todavia, se essa é orientação sexual de uma pessoa, a mesma coisa pode se dar sem ela ter de optar por isso. Talvez a verdadeira liberdade sexual seja tanto mais livre quanto menos ela for uma questão de escolha ou de opção.

Então, depois de os três adolescentes dizerem que são bissexuais sem, contudo, terem se apaixonado nem transado com alguém do mesmo sexo que eles (a de dez anos sequer com o sexo oposto), perguntei-me silenciosamente se elas estavam seguindo genuinamente as suas orientações sexuais ou se, antes, estavam lidando com o assunto como se fosse mesmo mera questão de opção.

Conhecendo o esclarecimento intelectual e o círculo de relações delas, sei que podem viver e expressar as suas sexualidades livremente sem serem discriminadas pelos seus colegas e familiares. Para a de 16 anos, pelo contrário, a sua bissexualidade declarada era um status-pró entre os seus amigos.

Os três adolescentes em questão usufruem de uma recente&libertária realidade que para a maioria das pessoas ainda é uma utopia. Justamente por isso me pareceu possível que elas estivessem se “lambuzando” da liberdade de se afirmarem bissexuais ainda que esta não fosse a orientação sexual particular delas.

Ora, assim como os revolucionários sexuais dos anos 1960, que após conquistarem a liberdade que lhes era negada se viram obrigados a desfrutarem dela, e a qualquer custo – com preços psíquicos altíssimos aliás -, estes três adolescentes muito bem podem se sentir coagidos a se afirmarem bissexuais simplesmente pelo fato de tal orientação sexual significar uma conquista histórica da qual a geração deles é espólio bendito.

De direito, ninguém pode questionar a autoafirmação sexual de ninguém. Porém, de fato, ainda que indevidamente, eu não pude deixar de me perguntar se aqueles três adolescentes estavam tratando as suas declaradas bissexualidades mais como um status social do que como a expressão natural das suas próprias orientações sexuais.

Do mesmo modo como a vida-em-rede-social-virtual nos leva a inadvertidamente transformar em status público os nossos mais efêmeros estados particulares, a bissexualidade pode se tornar a postura deliberada e engajada de alguém que queira surfar a onda libertária que se contrapõe ao profundo e antiquado mar do preconceito que ainda afoga muita gente.

Talvez eu tenha me ocupado tanto da segura afirmação dos três adolescentes em respeito às suas orientações sexuais porquanto, na minha adolescência, eu não tinha tal certeza. Ademais, ainda hoje eu não sei o que dizer quando alguém me pergunta se eu sou hétero, homo ou bissexual, mesmo depois de ter me relacionado, afetiva e sexualmente, com homens e mulheres.

Conceitualmente, diriam, sou bissexual. Entretanto, os conceitos visam uma universalidade que desconsidera quaisquer particularidades. Embora eu desfrute de uma liberdade tal que tanto faz se me tomam por homo ou bissexual, eu mesmo faço questão de não me definir, pois outra coisa não estaria fazendo senão me encurralar em um nicho sexual no qual, aliás, eu não sou obrigado a permanecer por conta dos meus próprios discursos.

Sendo assim, penso que a orientação sexual de alguém, para ser realmente livre, deve se libertar inclusive dos parcos nomes que vulgarmente tentam conceituá-la. Em primeiro lugar, porque o desejo, se livre, é absolutamente dinâmico, e, em segundo, porque orientar a própria orientação sexual mediante um ou outro nome é coagi-la a esta ou àquela dimensão.

Não é o caso, contudo, de concebermo-nos, outrossim indiscriminadamente, enquanto pansexuais, como o roqueiro Serguei, que, entre outros, se relacionou afetiva&sexualmente com Janis Joplin, com uma árvore, e até comigo. Talvez a verdadeira liberdade sexual seja apenas aquela que, dispensando definições prévias, não é condicionada por elas. Não é isso porventura melhor, principalmente àqueles que iniciam as suas vidas afetivas-sexuais?

Se eu quisesse ser preconceituoso, diria aos três adolescentes que eles nada deveriam dizer acerca de suas próprias sexualidades, mas apenas vivê-las, e bem longe dos discursos, pois as palavras pressupõem conceitos; estes, fazem dos movimentos particulares e naturais seres estáticos, que no fim das contas figuram como se fossem status, ou o que é pior, epítetos claustrofóbicos.

Por que eu não quero – nem acho que devo – ser preconceituoso, nada disse aos três adolescentes. Além do que, independente da sexualidade através a qual eles formalmente se afirmam, ontológica e subterraneamente eles já são o que são, isto é, expressões de suas inalienáveis orientações sexuais.

Minha secreta vontade de libertá-los da necessidade de discursarem acerca de suas sexualidades, entretanto, seria no sentido de afastá-los das categorias nominais que mais servem de munição ao velho preconceito do que às próprias sexualidades deles. Lembremo-nos sempre dos radicais muçulmanos que, tendo uma definição sexual e o nome de alguém, já acham que tem o bastante para atirar indivíduos de cima de um prédio.

Assim como as palavras dos três adolescente me levaram, de certa forma, à julgá-los – e eu odeio ter que reconhecer isso! -, enquanto nos disponibilizarmos a ter a nossa dinamicidade potencial reduzida a conceitos estáticos, estamos outrossim vulneráveis a ver a nossa própria sexualidade reduzida, todavia injustamente, pelas palavras e pelo julgamento dos outros para os quais nós somos os inadmissíveis outros.

Por isso, nos diálogos que solicitam a definição da minha orientação sexual, faço questão de ser tão paradoxal quanto Sócrates, dizendo: “só sei que nada sei”, pois além de a orientação sexual de alguém ser tanto mais livre quanto menos for uma questão de opção, com o paradoxo socrático ela é ainda mais livre se não for reduzida a um objeto de conhecimento.

Um dualismo mente-mente (em quatro atos hobbesianos)

Ao contrário do que cogitava René Descartes, o nosso corpo e a nossa mente não são separados e independentes, mas, conforme o se contemporâneo Baruch Spinoza, corpo e mente são uma coisa só, que, entretanto, pela nossa capacidade intelectual, pode ser pensado ora materialmente, ora psiquicamente. Inclusive quando sonhamos não temos uma produção exclusivamente mental, mas um produto indiviso cuja autoria é também do corpo.

Agora, para investigar a tendência das nossas produções oníricas de parecerem coisas meramente mentais, proponho aqui um erro maior do que o de Descartes: imaginemos que a alma que sonha enquanto dorme é outra e diversa da que, em vigília, pensa os sonhos daquela. Para tanto, será preciso desconsiderar, ainda que indevidamente, a unidade corpo-mente spinozana e fingir um dualismo tão radical quanto o de Descartes, só que na mente.

Proponho esse despautério para melhor contemplar um fantasma dualista-mental que me assombrou a partir de uma frase que Thomas Hobbes traz em seu Leviatã: “acordado observo muitas vezes o absurdo dos sonhos, mas nunca sonho com os absurdos dos pensamentos despertos, contento-me com saber que, estando desperto, não sonho, muito embora, quando sonho, me julgue acordado”.

Com efeito, nessa frase o filósofo inglês faz parecer que a mente que sonha e a mente que vigia são seres distintos, e que, ademais, é lícito que uma questione a natureza e as ações da outra – muito embora a questão central da obra de Hobbes seja outra. De qualquer forma, vejamos o que a mente vigilante pode dizer da mente sonhante, e, talvez mais interessante do que isso, o que esta pode dizer daquela.

Tomemos então a frase de Hobbes em quatro atos. A afirmação 1) “acordado observo muitas vezes o absurdo dos sonhos” faz a mente desperta parecer, natural e psicologicamente, saudável, conhecedora da verdade e da estrutura da realidade; enquanto a sonhadora, coitada, figura enquanto uma maluca impertinente, cujas expressões são impróprias e, portanto, como colocado, absurdas.

Em resposta à crítica da mente insone, a onírica manda um “beijinho no ombro” dizendo: eu, da minha parte, 2) “nunca sonho com os absurdos dos pensamentos despertos”. Seria nobre, se na verdade não fosse irônico, ela falar que não perde o seu tempo sonhando com os pensamentos daquela. Porém, ao afirmar que as suas expressões não se pautam pelas leis da mente em vigília, a mente onírica age como uma diva rebelde que atua, livre e talentosamente, apenas o que tem em sua própria mente.

Provocada, a mente vigilante rebate: ora, mente sonhante, sonhe com o que você quiser, pois eu, 3) “contento-me com saber que, estando desperta, não sonho”. Agora, se a mente onírica é mesmo uma diva espetacular que só se apresenta no seu próprio teatro, a mente vigilante, ao dizer que não sonha, age como uma incompetente crítica teatral que discorre sobre os espetáculos daquela apenas a partir de relatos reminiscentes, mas nunca por assisti-los ao vivo e em cores.

A diva sonhadora, por sua vez, ciente de que é um sucesso de público, tampouco se importa com o fracasso apontado pela mente acordada, afinal, diz ela, 4) “quando sonho, me julgo acordada”! De fato, a mente onírica em ato é a única que está desperta. Por isso as vaias da mente vigilante, que sequer adentra no recinto espetacular da mente onírica, parecem outrossim absurdas.

Chegamos, portanto, ao clímax no qual uma mente parece absurda para a outra. Temos, aqui, o dualismo mente-mente, garatujado por Hobbes e arte-finalizado por mim, em sua expressão mais clara – muito embora Descartes, e mais ainda Spinoza, digam que absurda é essa ideia. Não obstante, a mente desperta e a mente sonhante seguem parecendo absurdas uma para a outra, e isso por dois motivos:

Em primeiro lugar, porque cada uma das mentes não consegue compreender a natureza da outra. Em segundo, porquanto nenhuma delas está presente enquanto a outra atua. É como se uma soubesse da outra apenas por meio de fofocas, já que uma não pode ser testemunha ocular da realidade atuante da outra. Observam-se, contudo, apenas mediante os rastros uma da outra. Até parece que esse palco mental não comporta diálogo, mas apenas monólogos!

Entretanto, se fizermos uma analogia entre o nosso o drama irredutível das duas mentes com o dos amantes de O Feitiço de Áquila, onde a amada deixa de ser precisamente quando o amado vem a ser, e vice-versa, podemos propor que o átimo reminiscente e sistemático que une os dois amantes de Áquila, mantido senão pelo amor incondicional deles, é o mesmo que une as nossas duas mentes, e também por alguma espécie de amor.

Portanto, se quisermos encontrar uma arena na qual a mente empírica e a mente onírica possam coexistir harmoniosamente, e assim darmos um passo para fora do nosso erro proposital que cindiu a mente em duas, teremos de instituir uma atração entre elas. Aí, só o amor na sua causa. Que romântico! Sartre, em A Imaginação, afirma justamente que “o romantismo se manifesta por um retorno ao espírito de síntese”. Se esse filósofo está certo, a síntese das duas mentes advém desse envolvimento romântico entre elas.

Ora, qualquer um sabe que não se vive sem pensar nem sonhar, e, mais ainda, sem sonhar com o que se pensa e pensar a partir do que se sonha. Por conseguinte, para abandonarmos o erro dualista, e voltarmos à unidade corpo-mente proposta por Spinoza, devemos compreender que, se realmente pensamento e matéria são uma coisa só, as mentes sonhante e vigilante, portanto, de forma alguma podem estar separadas ou serem distintas.

Então, se de fato corpo e mente são uma única e inseparável coisa, a discussão entre a mente que sonha e a mente que vigia é o drama dialético de uma mente só, acompanhada – e por que não dizer assistida – pelo corpo, o tempo todo. Entretanto, se Spinoza tem razão em afirmar que a mente é a ideia do seu corpo em ato, qualquer incompatibilidade na esfera mental outra coisa não é senão a ideia da mesma incompatibilidade atuada, entretanto, pelo corpo.

Desse modo, a absurdidade que a mente que sonha e a que vigia idealizam a respeito uma da outra é a mesma que o corpo adormecido e o corpo desperto atuam, materialmente, um em relação ao outro. Afinal, como o psicólogo francês Alfred Binet afirmou, “o pensamento tem necessidade de signos materiais para se exercer”. Spinoza, todavia, complementaria dizendo: assim como a matéria tem necessidade da mente para ser pensada!

Chegamos, finalmente, não só à coautoria do corpo e da mente em relação aos nossos sonhos, como também à participação conjunta dos dois na produção de quaisquer coisas que de nós se sigam. Absurdo, portanto, é uma mente, esteja ela em vigília, esteja sonhando, pensar que ela encena alguma coisa sem que toda ela, mais o corpo, sejam os atores do espetáculo mental-corporal único que somos.