Entre tapas e beijos com Spinoza

O maior “tapa na cara” existencial que eu já levei foi de Spinoza, quando, no início de sua Ética, ele coloca que “se uma coisa pode ser concebida como inexistente, sua essência não envolve a existência”. Ora, como eu fui inexistente até a década de 1970, e, com sorte, também o serei depois da década de 2070, não resta dúvida de que a minha essência particular não envolve a existência, pelo menos, do modo como eu pensava até então. O que Spinoza disse era que eu, enquanto essa essência única que eu sou, apenas usufruo de uma existência que, entretanto, não pertence a mim nem sou eu quem a põe.

Obviamente, não é o caso de a minha existência ser devida à dos meus progenitores, pois, se assim fosse, as existências de cada um deles se reportaria à dos seus próprios progenitores, e, assim, eu chegaria a Adão e Eva, cujas existências, entretanto, não provieram de pais nenhuns, mas de Deus. Quer isso dizer, então, que a minha existência pertence a Ele? A essência laica que eu sou resiste em aceitar essa conversa. Porém, fazendo de Deus aquilo que Spinoza fez d’Ele: “Deus sive natura” – Deus, ou seja, a Natureza -, é mais fácil aceitar o fato de que toda e qualquer existência, inclusive a minha, é parte efêmera da existência eterna da Natureza, pois somente ela não pode ser concebida como inexistente, ainda que a teoria do Big Bang proponha um antes de tudo.

De qualquer forma, essa história de eu existir sem que eu mesmo seja a causa da minha existência foi, de imediato, avassaladora. Já não foi fácil aceitar, ao longo da minha existência, que eu não pudesse trazer à existência várias coisas que desejei. Agora, se Spinoza tem mesmo razão em dizer que a minha essência não envolve a existência, todas as coisas cujas existências eu atribuía à minha, na verdade, devem as suas existências à Natureza, e não a mim. Muito a contragosto, devo aceitar que, se somente a partir de determinado momento eu passei a existir, não só a minha existência, mas também aquelas que eu acreditava que de mim se seguiram, existem, com efeito, apenas por uma força, vontade ou potência da Natureza.

Ok, a existência não é algo que a minha essência envolva necessariamente, dado que eu bem poderia sequer ter existido. Entretanto, uma vez existindo, eu posso abandonar tal existência a qualquer momento, se assim eu decidir, o que significa que alguma ingerência sobre a minha própria existência cabe a mim. Ora, se, por um lado, somente a natureza pôde pôr a minha existência, por outro, não somente ela pode tirá-la de mim; eu também posso! Porém, se com isso eu acho que desfruto de algum assenhoramento existencial sobre a Natureza, igualo-me ao escravo que tenta se libertar de seu Senhor morrendo a chibatadas.

Esse subversivo poder de findar com a minha própria existência, portanto, em nada contribui com a minha essência. Pelo contrário, faz com que ela nada seja nem possa. Sinto-me existencialmente nocauteado pela segunda vez! Entretanto, o tapa de Spinoza vem acompanhado de um beijo. Se, por um lado, o filósofo diz que a essência daquilo que pode não existir não envolve a existência, por outro, afirma que aquilo que em ato existe tem, em sua essência, ao menos a potência para permanecer na sua existência particular. Sendo assim, embora não coubesse a mim decretar a minha própria existência, uma vez envolvido por ela, posso, o tempo todo, nela tentar persistir.

Entretanto, a minha potência particular para permanecer existindo não vai contra a essência da Natureza. Pelo contrário, essa minha potência para existir outra coisa não é senão a própria Natureza compartilhando comigo, contudo efemeramente, a sua exclusiva existência eternal. Essa potência particular para não desaparecer, que eu chamo de “eu”, começou, na verdade, pouco mais de nove meses antes de os meus progenitores darem a ela o meu nome. Afinal, é a Natureza que envolveu, com sua existência eterna, uma essência particular, que, por alguns anos, é tão livre e potente a ponto de chamar a si mesma de Rafael. O tapa de Spinoza revelou que a minha existência não pertencia a mim, mas à Natureza. O beijo do filósofo, entretanto, diz que a minha essência é só minha, e potente até onde eu existir.

A economia dos afetos de Spinoza

Cometendo-se um anacronismo que abstrai quase duzentos anos de História, poderia ser dito que Spinoza é o Marx dos afetos. Como sabemos, a economia política do alemão tratava sobretudo da busca material pela sobrevivência, aventura que começava nos ditames do estômago e findava na vitória da classe operária. Já o holandês produziu uma refinada economia afetiva, na qual a manutenção da existência se desenrolava a partir da relação dos muitos afetos que se sucedem num mesmo indivíduo, e, outrossim, entre as afetações que diferentes indivíduos causam uns nos outros, numa infinita rede de relações da qual todos participam necessariamente.

Marx que me perdoe, mas, para Spinoza, capital são os afetos. Ora, são eles que atravessam o corpo e a mente a cada instante, gerando todos os nossos estados e, mais importante, levando-nos de um estado a outro. Spinoza afirma que, em si, os afetos não são bons nem maus. Antes, parecem uma ou outra coisa quando comparados uns com os outros. Sendo assim, o medo, por exemplo, se confrontado à coragem, pode, inadvertidamente, parecer-nos ruim. Entretanto, se, porventura, o medo elimina a coragem de alguém para, digamos, enfrentar um leão, esse medo é um afeto bom, pois age no sentido de evitar uma tragédia.

Um afeto parece-nos bom, portanto, quando aumenta a nossa potência para persistir na existência, levando-nos a um estado de perfeição maior. Em troca, um afeto parece-nos mau quando reduz essa mesma potência e nos impõe um estado de perfeição menor. Não corremos o risco, todavia, de toda a nossa potência e perfeição serem furtadas por um afeto mau, pois, para Spinoza, não há ausência de perfeição, pelo menos enquanto existimos, mas tão somente diferentes graus de perfeição. Como o filósofo entende que perfeição e realidade são a mesma coisa, uma perfeição=zero pressuporia uma realidade=zero, e o que possuísse realidade nenhuma, tampouco envolveria qualquer grau de afeto.

Então, para Spinoza, enquanto existimos participamos da perfeição, em maior ou menor grau, cuja medida, entretanto, é dada pela nossa potência de existir, isto é, pelo nosso conatus. Este, por sua vez, é a resultante dos muitos afetos que experimentamos no nosso corpo e na nossa mente cruzados com os afetos que causamos nas mentes e nos corpos dos outros. Isso porque estamos absolutamente conectados na rede infinita de relações que Spinoza sabiamente chamou de Natureza. A nossa perfeição, portanto, outra coisa não é senão as infinitas afetações que recebemos e causamos uns nos outros.

Segundo Spinoza, a alegria é um afeto que põe o nosso corpo e a nossa mente em ação no sentido de uma maior perfeição. A tristeza, inversamente, diminui a ação do corpo e da mente, fazendo-nos escravos das nossas próprias paixões, reduzindo, com isso, a nossa perfeição. O movimento de um estado ao outro, por conseguinte, é o resultado de uma economia cujas moedas de troca são os nossos muitos e variegados afetos. Em vez da luta de classes proposta por Marx, na filosofia spinozana há tão somente a luta travada pela infinidade de afecções que compõem a perfeição, ou, o que é o mesmo, a realidade da Natureza.

Se, portanto, a alegria é uma ação que aumenta a nossa perfeição, e a tristeza, por seu turno, é uma paixão que diminui tal perfeição, como é que podemos escapar do império das paixões para agirmos livremente em direção à perfeição? Spinoza ensina que só podemos vencer um afeto com outro afeto, todavia contrário e mais forte do que aquele que queremos vencer. Logo, para derrotar um afeto triste basta um afeto alegre de maior intensidade. Porém, se estar triste é justamente carecer de alegria, de onde viria, então, este providencial e mais intenso afeto alegre capaz de dar cabo do afeto triste? Bem, como para Spinoza tudo o que há é a Natureza, já sabemos onde procurar.

É fácil, ademais muito tentador, desejar derrotar uma grande tristeza valendo-nos da maior força de uma grande alegria. Entretanto, estar triste é justamente carecer de uma grande alegria, pois, se nos entristecemos, é justamente porque ela nos falta. Ora, se estamos tristes, é porque não havia alegria alguma capaz de impedir essa tristeza. E se, de início, já não havia alguma alegria potente suficiente para barrar tal tristeza, tampouco haverá uma quando a tristeza estiver dominando o sistema. Obviamente, dispor de uma grande alegria que desse cabo de uma grande tristeza, já seria, por si, uma grande alegria. Mas, se assim fosse, por que então nos entristeceríamos?

Contudo – e felizmente -, não há somente afetos intensos, tais como grandes alegrias e grandes tristezas. Com efeito, somos uma miríade de afecções que se expressa em uma infinidade de graus. Moedas afetivas de menor valor, portanto, também circulam – e devem necessariamente circular – na economia dos afetos de Spinoza. E são desses trocados, aliás, que podemos mais facilmente nos valer nos momentos de crise. Aqui, Marx relembra-nos de que todo valor provém do trabalho. Sendo assim, contra a tristeza, contra a paixão paralisante: trabalho, mesmo que essa ação renda apenas trocados de menor valor.

Se todo valor que produzirmos em um trabalho contra uma grande tristeza for agregado ao pouco de alegria que ainda nos resta, é somente uma questão de trabalhar mais até que essa alegria valorizada suplante aquela tristeza indesejada. É muito difícil, quiçá impossível, produzir, de pronto, um afeto alegre maior do que uma grande tristeza. Podemos, todavia, através da ação constante e da compreensão paciente, produzir, enfim, um afeto alegre que seja grande o suficiente para vencer determinado afeto triste que porventura esteja nos aprisionando nalguma paixão.

O que não pode acontecer, entretanto, – e com isso Marx e Spinoza concordariam plenamente – é alguém roubar para si o valor do trabalho que outrem empreende arduamente contra suas próprias paixões com o intuito de dar cabo delas. A economia dos afetos, num sistema capitalista, outra mercadoria não produzirá senão tristeza em massa. Para os afetos, decerto, é melhor o comunismo. Se fizermos do lema comunista popularizado por Marx, “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, a regra de ouro do sistema econômico-afetivo de Spinoza, subsistirá a perfeição, portanto a realidade, tanto dos afetos, quanto dos indivíduos afetados e afetantes, e, inclusive, a da própria Natureza.

Dinheiro, abstração, então, Filosofia.

O que o dinheiro tem a ver com a filosofia? Como sabemos, filosofar não leva à riqueza financeira. Aliás, a realidade mostra que o produto do filósofo tem pouco ou nenhum valor no mercado capitalista que, por sua vez, funciona melhor com “mãos invisíveis” do que com filosofias aparentes. Portanto, economicamente, a Filosofia não é um bom negócio. Embora não seja a melhor forma de se ganhar dinheiro, este, entretanto, foi, historicamente, um meio da filosofia.

Na antiguidade, outrossim, a filosofia não enchia os bolsos dos seus praticantes. Sócrates que o diga, pois, terminou a sua vida como um mendigo. Porém, ainda que a relação amorosa daqueles gregos com a sabedoria não lhes trouxesse dinheiro (os que ganhavam com isso foram estigmatizados de sofistas), a Filosofia não teria acontecido sem ele. Com efeito, quando, há 2500 anos, os homens começaram a filosofar, esta atividade era exclusividade de indivíduos que podiam se dar ao luxo do ócio, sustentados, no entanto, pelo trabalho de seus escravos.

Então, com seus corpos dispensados do trabalho braçal, as mentes filosóficas puderam se preocupar com o desnecessário: de que é constituído o real, o que é o não-ser, o que é o cosmos, etc. Foi nesse recreio V.I.P. que Tales de Mileto pôde inaugurar a Filosofia, dizendo que toda a realidade não é aquilo tudo que dela se diz, mas que era tão somente água. Ainda que uma dúzia de aristocratas gregos ociosos pudessem concordar com o sábio de Mileto, para um escravo que quebrasse pedras durante sua vida toda isso pareceria divagações de “mauricinhos”.

Antes de Tales, contudo, os gregos não eram habituados à tais abstrações filosóficas, visto que a concretude objetiva era, e devia ser, a cara da realidade. Nietzsche apontou certeiramente para a dificuldade que os antigos gregos tinham em captar conceitos puros, desprovidos de conteúdo concreto. O alemão disse que, ao contrário de nós, [pós-]modernos, que facilmente sublimamos o particular, o pessoal, em abstrações, para os gregos o mais abstrato retornava sempre a uma coisa ou a uma pessoa concretas. Uma abstração mental que não encontrasse um correlato concreto, portanto, não se sustentava.

Todavia, a ventura econômica grega que passou a sustentar o ócio dos seus nobres filósofos trouxe o dinheiro – o Dracma, a moeda mais antiga do mundo – e a abstração que ele pré-condiciona, substituindo as trocas concretas do tipo coisa-coisa (trigo por sapatos) pela troca coisa-dinheiro-coisa. O dinheiro, portanto, estabeleceu um estágio de abstração no cerne das relações concretas entre as pessoas. E uma vez que determinadas coisas puderam ser economicamente abstraídas, o restante delas não escapou de igual destino.

Por conseguinte, foi possível abstrair também coisas que, até então, sem objetos concretos eram apenas quimeras, tais como o amor, a amizade, o tempo, a beleza, a justiça, etc. Em decorrência disso, a natureza inteira se tornou contingente demais para ter a dignidade de um pensamento filosófico. A Filosofia, portanto, não só cunhou uma nova forma ao pensamento como também fez de qualquer conteúdo que se aventurasse nessa forma algo a priori inadequado. Em outras palavras, fez da realidade concreta imediata precisamente aquilo que afasta e ofusca a verdadeira realidade que, filosoficamente, deve principiar abstrata, livre das refutações de quaisquer particularidades concretas.

A Filosofia, para tornar concretas as suas abstrações, teve, no entanto, de esperar primeiro a abstração da concretude inaugurada pelo dinheiro. Somente depois de alguma coisa poder ser trocada, não por outra, mas por um universal, ou seja, o dinheiro, é que os homens se aventuraram a abstrair e a universalizar aquilo de que, antes, tinham apenas experiências concretas e particulares. A abstração filosófica, por conseguinte, nasceu do ócio inaugurado pela fortuna, alimentado, entretanto, pela escravidão. Foi só quando alguns homens puderam se alienar de suas realidades físicas que eles puderam, então, ocuparem-se de realidades metafísicas.

Entretanto, tempo livre e dinheiro ainda são privilégios de poucos. Assim como na antiguidade grega, a produção intelectual, ao longo da história, sempre precisou de uma massa escravizada que a sustentasse, e tanto faz se essa escravidão for chamada de servidão ou de trabalho assalariado. O dinheiro, portanto, não só comprou o ócio necessário à filosofia como também inaugurou, e doravante sustentou, a abstração das concretudes reais sem a qual a Filosofia seria apenas História da humanidade.

Do ápeiron ao não-lugar

Na década de 1990, Marc Augé cunhou o conceito de “não-lugar” para tratar de lugares feitos pelo homem, porém, nos quais não há interação humana, onde ninguém desenvolve atividade alguma. Para entender o objeto do antropólogo francês, basta pensar, por exemplo, num trecho de uma autoestrada, ou no corredor do edifício em que moramos: nós os utilizamos por pouquíssimos segundos, somente o tempo de os cruzarmos, mas nunca fazendo deles cenários autênticos das nossas vidas. Também de não-lugares Augé chamou os saguões dos aeroportos, os corredores dos shopping centers, os estacionamentos, os elevadores, isto é, ambientes pelos quais passamos ou permanecemos efemeramente, porém, quanto mais rápido forem deixados, tanto melhor.

Em defesa dos não-lugares, entretanto, pode ser dito que são espaços de circulação, fundamentais à movimentação contemporânea, sem os quais a vida não teria como acontecer adequadamente. O problema é que os não-lugares estão em toda parte, da porta de nossas casas a praticamente todos os nossos destinos, roubando, por conseguinte, uma considerável parcela do espaço total. O que Augé pretendeu mostrar é que os não-lugares são locais construídos e mantidos pelos homens, todavia destinados à não-vida, ou seja, ao não-desenvolvimento de atividades que tenham significância na vida das pessoas que por eles circulam.

Porém, 25 anos depois de Augé ter conceituado os não-lugares, eles já passaram a ser palco de uma série de atividades novas: os “rolezinhos” fazem dos shopping centers a berlinda da vida de milhares de jovens; o lugar onde se estaciona o automóvel já é tão ou mais importante do que o lugar para onde se vai; e o Facebook faz dos elevadores e das salas de embarque lugares perfeitos para se estar em todos os demais lugares. Talvez Augé tivesse, hoje, de chamar os seus não-lugares de semi-lugares. E, quiçá futuramente, devido ao dinamismo da realidade, de lugares propriamente ditos.

O preço disso, contudo, é a transformação dos lugares onde exercemos nossas atividades genuínas, tais como as nossas casas, as nossas salas-de-estar, os nossos escritórios, etc., em lugares de passagem, em instâncias transitórias entre o shopping e o aeroporto – estes sim, os novos lugares-templos da vida pós-moderna. Ao passo que os não-lugares augéanos ganham estatuto, os lugares propriamente ditos perdem o seu, e todos eles são paulatinamente convertidos em semi-lugares. O tédio sentido por se permanecer muitas horas em casa ou no trabalho prova a crescente insuficiência destes lugares. Somente em trânsito, e em meio ao trânsito constante de muitas outras pessoas, sentimos autenticamente estarmos em atividade.

Há 2.500 anos, o filósofo grego Anaximandro já falava de não-lugar, entretanto, chamando-o de ápeiron, isto é, a indeterminação a partir da qual a realidade era criada, mas também destruída sistematicamente. De acordo com o filósofo, uma determinação qualquer surge e retorna à sua indeterminação inicial. Um lugar determinado, portanto, é o que existe a partir da determinação da necessidade humana por ambiência e que dura até o fim dessa necessidade. Em outras palavras, é como se, dando-se as costas para o lugar onde se está, ele desaparecesse e se reintegrasse imediatamente à indeterminação absoluta do ápeiron, que de modo algum pode ser determinada por lugares. Já os não-lugares são compatíveis com a indeterminação proposta por Anaximandro, existindo enquanto lugares apenas efemeramente, mas condenados a desaparecerem com a mesma efemeridade.

25 séculos depois de Anaximandro dizer que no ápeiron lugar algum tem lugar cativo, Marc Augé, 25 anos depois de edificar o seu não-lugar, deve chegar à mesma conclusão: que lugar algum resiste ao dinamismo da realidade, aos movimentos da existência, à fluidez da vida. Só há, portanto, não-lugares, e qualquer determinação espaço-temporal humana que os converta em, por exemplo, autoestradas, shopping centers ou saguões de aeroportos, está fadada à mudança, à indeterminação. Porém, mesmo na efeméride que são, os nossos lugares conseguem ser os palcos de tudo aquilo que determinamos por vida, muito embora todos eles em outro lugar não estão senão na indeterminação absoluta, no ápeiron, no não-lugar supremo.

Suicídio interditado 

A Cultura, a Lei, e Deus proíbem o suicídio. Mesmo vivendo em um mundo superpopulado, cujos sete bilhões de pessoas exaurem a Natureza a ponto ameaçarmos mortalmente uns aos outros, ainda assim tirar a própria vida é um tabu. David Hume, entretanto, afirmava que “o suicídio é um poder do homem, não mais ímpio que o de construir casas, e que deve ser utilizado em circunstâncias excepcionais”. Da colocação do empirista escocês decorrem duas questões: quais são essas “circunstâncias excepcionais”, e por que é imoral e ilegal elas serem decretadas particularmente pelo indivíduo.

O carma propriamente humano é saber da própria morte, porém, não quando ela acontecerá. Os demais animais, inversamente, vivem sem saber que vão morrer, no entanto, eles têm conhecimento de “quando” isso está para acontecer, visto que abandonam seus grupos, ou mesmo as suas jornadas solitárias, para esperarem, passiva e naturalmente, a morte. Diferente deles, nós, cativos da cultura, perdemos o direito de não cultuarmos a nós mesmos. O tabu do suicídio, portanto, interdita que saibamos ao mesmo tempo “que” e “quando” vamos morrer. A subversiva consciência dos dois, entretanto, ainda é o suicídio.

Deleuze colocou que “a sociedade não pode garantir direitos preexistentes: se o homem entra em sociedade, é justamente porque ele não tem mais direitos preexistentes”. Dentre eles, portanto, o direito de decidir quando morrerá. Seria então o suicídio um comunicado anárquico à sociedade? Como disse Hume, “Todo homem particular tem uma posição particular a respeito dos outros”. Todavia, caso essa posição particular seja de oposição absoluta (circunstâncias excepcionais), só o suicídio para dizer tudo o que em uma vida inteira seria impossível. O silêncio irremediável fala eternamente.

A vontade de morte não é extrínseca às nossas muitas paixões. Segundo Hume, as paixões são existências primitivas, modos primitivos de existência. Seria, então, a paixão pela inexistência, vitoriosa no suicídio, sobrenatural? De acordo com o empirista, obviamente não. Portanto, as paixões naturais não deveriam, logicamente, ser interditadas pela sociedade que lhes sucede cronologicamente. Caso sejam, a alternativa em que se encontram as paixões é satisfazerem-se obliquamente, aponta Deleuze. E qual a mais oblíqua das paixões senão a vontade de não ter mais paixões?

Para Deleuze, o problema do eu sem solução deve solucionar-se unicamente na cultura, e não fora dela. Ou seja, o suicida deve, antes, consumir a própria cultura, até a sua morte, cuja data, entretanto, ele não tem o direito de precisar. Para tanto, psicanálise, medicamentos, eletrodomésticos, turismo, e toda a sorte de recursos artificiais. Por isso deve ser vedado ao indivíduo, mesmo em circunstâncias excepcionais, suicidar-se, pois assim ele deixa de se alimentar do $i$tema, e, consequentemente, de retroalimentá-lo.  E o suicídio é o fim dessa cadeia.

Entrementes, uma vez sistematizados, socializados, “não somos apenas sujeito, somos outra coisa ainda, somos um Eu, sempre escravo de sua origem”, coloca Deleuze. Tornamo-nos escravos da nossa origem cultural assim que abandonamos a nossa origem primeira, natural, animal. Doravante, devemos suprir e cultuar a senhora cultura de acordo com suas regras e necessidades. E ela precisa de escravos vivos, não mortos.

Ter consciência da morte nos alienou, sintomaticamente, da ingerência sobre ela, pois sabê-la passou a significar evitá-la, e, colateralmente, idolatrar a vida, inclusive para além dela mesma. Crer na vida eterna é o que senão a maior e mais artificial idolatria? Contudo, provoca Hume, “o idólatra é o homem das “vidas artificiais”. E uma vida artificial vale a pena ser mantida? Ora, se a vida é a ordem da natureza à qual ninguém que vive teve a oportunidade de descumprir, o suicídio deveria ser uma opção; uma saída de emergência não estigmatizada para escaparmos tanto da naturalidade da vida quanto da artificialidade da cultura.

Borboletas necrófilas no meu estômago metafísico

É indigesto demais ouvir da própria filosofia que ela está morta e ainda assim seguir apaixonado por ela. Quanto mais não seja, porque o relacionamento que a filosofia estabelece com o seu objeto, isto é, a sabedoria (sophia), deve ser antecedido, como o próprio nome indica, pelo amor (philos). Desse modo, amar a filosofia, ou melhor, amar o amor à sabedoria, sabendo que se trata de um defunto, engendra uma dupla morbidez que, por sua vez, coloca tal envolvimento sob profunda suspeita. Porém, a resiliência desse cadáver filosófico também coloca sob suspeição o seu algoz, dado que a filosofia segue, a despeito da ciência, revivificando-se mediante o amor impertinente de seus suspeitos amantes.

Foi Kant, há exatos 234 anos, que, na sua Crítica da Razão Pura, assassinou a metafísica, provando que ela é incapaz de tocar na verdade acerca do real. No lugar dela, o filósofo alemão colocou a ciência inaugurada por Newton, dizendo que a verdade é exclusivamente científica, matemática, e de modo algum filosófica. Afinal, só a ciência pode dizer, por exemplo, que a terra se formou há 4,56 bilhões de anos. Depois de Kant, a verdade passou a ser exclusivamente física (physis), e não mais metafísica (além da physis), interrompendo, por conseguinte, a promenade filosófica iniciada na Grécia antiga.

Para Kant, a verdade só pode ser produzida pela ciência. Ela é uma produção! Ora, isso derruba o clássico conceito metafísico de verdade enquanto revelação, desvelamento. Antes da ciência newtoniana, a verdade objetiva residia nas coisas, cabendo à razão humana descobri-la. Entretanto, depois da crítica kantiana, a verdade não jaz mais nas coisas, tampouco na razão humana, mas tão somente na relação entre elas, devida e objetivamente traduzida pela matemática.

Agora, o fato de a verdade dever ser produzida pelo cientista, e não mais desvelada pelo filósofo, coloca outra questão: pode ser produzida mais de uma verdade, quiçá muitas delas? O avanço científico mostra que sim. Então, para a ciência, uma verdade é verdadeira somente enquanto não for refutada e substituída por outra. Para a filosofia, com efeito, isso é absurdo, pois uma vez descoberta a verdade oculta das coisas, esta é eterna e insubstituível.

Entretanto, a produção científica “de” verdades não escapa de elevar ao infinito o assassinado processo de desvelamento metafísico “da” verdade. Com efeito, pressupor que a verdade é passível de ser falsa diante de outra verdade que lhe contradiga outra coisa não é senão impor à verdade um horizonte insuperável de sucessivos desvelamentos. Sob este ponto de vista, a ciência é uma sequência infinita de filosofias, contudo parciais e substituíveis, cujos objetos são verdadeiros até suas derradeiras refutações.

Para um filósofo clássico, a ciência moderna pareceria uma filosofia histérica que busca substituir seu objeto de desejo tão logo este seja alcançado, fazendo não da coisa, mas da pulsão que leva a ela, o seu motor libidinal. Dessa patologia a filosofia está livre, pois uma vez desvelada a verdade metafísica, essa existe para ser eternamente fruída. Entretanto, o diagnóstico da filosofia não a livra de outra perversão: o fetichismo em relação às verdades que desvela. Com efeito, a metafísica acredita na eternidade da verdade, e inclusive a ama antes mesmo do seu desvelamento completo. O sintoma desse amor fetichista, todavia, é amar meias-verdades, e inclusive a falsidade, como se fossem verdades absolutas.

Fazendo uma analogia do que Kant fez com a metafísica, é como se eu, representando a ciência-física, em determinado momento dissesse a você, representando a filosofia-metafísica, que a verdade sou eu, que somente eu posso produzi-la, e que você, por não ser eu, não é, portanto, verdadeiro, nem pode tratar de verdade alguma. Porém, qual o direito da física exigir da metafísica que esta seja verdadeira fisicamente? E qual a passividade da metafísica em não ter imediatamente argumentado contra física que esta nunca foi verdadeira metafisicamente?

Ao zumbi metafísico, cuja semivida é mantida pelo mórbido amor à sabedoria sugado daqueles que, como eu, ainda insistem em alimentá-lo, resta ainda a possibilidade de revanche contra a ciência. Além do que, se a verdade fosse interrogada em um tribunal que não fosse nem científico nem filosófico, dificilmente se confessaria exclusivamente física, prescindindo da dimensão metafísica. Se assim o fizesse, a verdade estaria dizendo que só é verdadeira fisicamente. Em outras palavras, assumiria que é apenas meia-verdade.

A verdade, porventura, não receberia o veredito de que é absolutamente verdadeira somente se sua validade fosse, ao mesmo tempo, física e metafisica? Entretanto, se physis e metaphysis são dimensões diversas, e uma está para além da outra, como poderia uma mesma verdade valer para ambas? Essa ambivalência, talvez, só possa se dar como em O Feitiço de Áquila, no qual os amantes impossíveis se encontram efemeramente apenas no instante em que Isabeau deixa de ser mulher e se torna águia, e que o capitão Navarre, inversamente, deixa de ser lobo para virar homem, diariamente, ad aeternum. Sob o mesmo feitiço, a ciência e a filosofia poderiam existir, abençoadas pela maldição do bispo de Áquila: sempre juntas, mas eternamente separadas.

Oscultando o cadáver da filosofia, morto pela cavalar dose científica newtoniana aplicada criticamente por Kant, cá estou eu, tentando polemizar a injustiça que a metafísica sofreu da física. Porém, lá atrás, quando aqueles gregos antigos começaram a filosofar, a physis é que foi subjugada pela impertinente metaphysis, e a verdade, por mais de vinte séculos, até Kant, foi absolutamente filosófica. Sendo assim, o moderno crime da física contra a metafísica foi um acerto de contas em relação antigo crime da metaphysis contra a physis.

Porém, hoje, o zumbi é a filosofia, e a ciência, a vivaz tirana que faz da verdade aquilo que mais precisamente lhe convém. A intensa produção científica, cujas mercadorias são verdades sistematicamente auto-obsolescentes, finda tão abjeta quanto a produção de iphones, válidos até o lançamento do próximo modelo. E assim a Natureza (physis) padece. Já o fetichista desvelamento metafísico da verdade eterna, diagnosticado pela modernidade histérica de dogmático, pelo fato de acreditar na eternidade das verdades dispensa a produção em série delas. Aqui a Natureza (physis) “meta” agradece. Concluindo, pergunto: por que a ciência e as suas verdades, que só são verdadeiras enquanto outras não são produzidas, merecem primazia sobre a filosofia, cuja verdade, ainda que oculta, uma vez desvelada serve para toda a eternidade?

Laboratorium mortis

Vasculhando pelas causas de uma angustiante apatia profissional que me usucapia há um ano e meio, e que coloca sob suspeita a o artesão que até então eu fui, aproximei-me da ideia do falecimento da minha irmã, também há um ano e meio. Embora eu já tivesse perdido outros familiares, e, racionalmente, muita coisa soubesse sobre a morte, foi no velório da Graziela, contudo, que eu percebi que os meus sentimentos e a morte não estabeleciam diálogo. Desde lá, essa questão-ferida permaneceu aberta. Então, vi-me cativo dessa ideia que atrelava a descoberta da minha ignorância em relação à morte, revelada, infelizmente, pela perda da minha irmã, ao cinismo em respeito ao meu próprio trabalho.

Como nem sempre acreditamos ser verdadeiro tudo que pensamos, visto que nossas ideias podem ser adequadas ou inadequadas, questionei a pertinência da relação entre os dois males estares que há mais e um ano conviviam em mim. Entretanto, uma vez feita tal relação, eu não conseguia mais tirá-la da cabeça: seria a morte da minha irmã a causa do efeito apático que atravessa a minha vida profissional? Mesmo sem essa resposta, mas instigado pela sua necessidade, fui levado a pensar no direito à existência que as ideias, uma vez ideadas, angariam para si.

Depois de anos de psicanálise, aprendi que tudo o que é dito por nós conquista entidade e, a partir de então, passa a existir entre as demais coisas. Inclusive um inocente ato falho, isto é, um equívoco na fala ou na memória, é considerado uma ação precisa do inconsciente no sentido de expressar sentimentos que, sem a inicial aparência de erro, não teriam lugar na realidade. Portanto, tudo o que é falado ou pensado, ou melhor, tudo o que se se estrutura e se expressa através da linguagem, mesmo que, a princípio, pareça uma besteira, põe-se irremediavelmente no mundo, e, doravante, com essa existência temos de lidar.

Entretanto, as ideias ou discursos que pomos no mundo, embora sejam produções nossas, não podem ser tirados com a mesma facilidade com que são colocados. Uma vez pensado que, por exemplo, invejamos ou desejamos determinada pessoa ou coisa, esse ser, de alma sentimental e corpo linguístico, resiste às nossas investidas para “desaparecê-lo”, como se fosse um império autônomo. Sendo assim, de onde tais seres sentimentais-linguísticos angariam independência, a ponto de não poderem mais ser retirados por aqueles que os colocam?

O esquecimento, com efeito, é uma estratégia para lidar, contudo covardemente, com ideias cujos conteúdos são indesejados ou insuportáveis. Esquecer não é padecer passivamente de um logro à memória, mas uma atividade deliberada do inconsciente no sentido de ofuscar uma existência mental determinada. Ora, não é por não mais lembrarmos de alguma coisa que ela não existe! Aliás, o esquecimento depõe conta si mesmo: por um lado, apontando para o vazio deixado por aquilo que foi olvidado, e, por outro, colocando sob terminante suspeita o conteúdo fujão.

Entretanto, se a existência de algum pensamento não pode mais ser tirada por aquele que a pensou – pelo menos sem a covardia engendrada pelo esquecimento -, essa criatura mental ou já é um ser independente do seu criador, ou, ao contrário, é o novo modo de ser desse que a pensa. Na primeira hipótese, a autonomia do ideado nos deixa de mãos atadas. Na segunda, entretanto, o pensado continua sob a jurisdição do pensante, ainda que este não perceba essa intrínseca relação.

Então, não é pela independência, em relação a nós, de um pensamento que queremos ver desaparecido, que ele desaparecerá. Antes, esse é o seu mais subversivo modo de sobrevivência. Inversamente, é concebendo todos os nossos pensados enquanto o rol de argumentos de um único diálogo, íntimo, do pensamento consigo mesmo, que podemos contra argumentar uma ideia ruim, inadequada, e quiçá vencê-la através de ideias melhores, mais adequadas.

Em respeito à morte da minha irmã ser causa do efeito apático na minha vida profissional – ideia que eu não consigo mais fazer inexistir -, decorre uma outra, que tampouco pode ser excluída, e que por isso mesmo deve ser integrada ao diálogo aberto há um ano e meio pela a morte da Graziela, e que permanece inconcluso até aqui, na aparente morte do artesão que eu sou. Essa nova ideia é a seguinte: para entender a morte em si, e assim entender a morte da minha irmã, eu precisava experimentar a morte em mim – porém, obviamente, em vida. Só desse modo eu poderia dar a essa abstração que é a morte uma concretude que lhe fizesse jus.

Logo, para sentir verdadeiramente a morte da minha irmã, foi preciso sentir a morte de algo extremamente vivo e necessário em mim: a minha vida profissional. De fato, apenas a angústia proveniente dessa última morte se aproximou da angústia da primeira, sem, no entanto, abarcá-la totalmente. O falecimento da Graziela tornou tácito que eu nada sabia da morte, mas que precisava saber, pois, apesar da ausência da ideia da morte em si, com a qual eu convivera despreocupadamente por tanto tempo, a presença da ideia da morte da minha irmã não tinha mais como ser tirada, e em relação a esta eu era todo preocupação. Portanto, foi preciso ensaiar uma espécie de morte, em mim mesmo, entretanto, até onde a vida permitiu.

Todavia, a minha conclusão, a partir do laboratório mortífero que durou mais de um ano, é que a morte em vida é muito pior do que a morte em morte. Experimentar a morte em vida só é possível às custas do que vive. Já a morte, na morte, nada mais tem a ver com a vida. Epicuro tinha razão: a morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais. Laboratoriando a morte, eu fui apenas um canastrão, encenando um pós-vida que, no entanto, de forma alguma poderia ser tão sofrível, pois o sofrimento, bem como todos os outros sentimentos, só são na vida, e não na morte.

Dessubstancializações contemporâneas

Dessubstancializações contemporâneas

Žižek, ao falar da “dessubstancialização das substâncias essências das coisas”, concretamente realizada no café descafeinado, no leite sem gordura, na cerveja sem álcool, etc., toca na alienação sistemática do homem contemporâneo em relação ao que é essencial. Trata-se, segundo o filósofo, não de medir a quantidade da coisa consumida pela sua qualidade, mas de privilegiar a quantidade em detrimento da qualidade. A joia-da-coroa atual, aponta Žižek, é o chocolate diet com laxante: veneno e antídotos, juntos e disponíveis à pós-moderna vontade comer, porém, estrategicamente dissociados dos efeitos desse consumo, justamente por não se pautar pelas coisas em si, mas pela presença de suas ausências.

As relações de amizade como as conhecemos estão sendo esvaziadas, por exemplo, pelo massivo relacionamento em rede social virtual. Amigos, hoje em dia, também são coisas rasas, impessoais, distantes e inodoras, corroborados, não obstante, pela abjeta acessibilidade disponível em um simples clique. Os convites virtuais – para eventos que prometem ser reais – que pupulam nas timelines facebookianas são o ícone da dessubstancialização dos encontros entre pessoas. Agora, os “amigos” só precisam confirmar presença nos eventos para sentirem que confraternizam com os demais. Ir até eles, fisicamente, é apenas a cereja, absolutamente dispensável, quiçá indigesta, do imenso bolo diet dessa nova socialização esvaziada de sociabilidade.

Os eventos do Facebook, portanto, encontram suas mais expressivas substancialidades nos seus convites, e os seus mais abissais esvaziamentos, nos eventos em si. Afinal, na babilônia contemporânea, só comparecendo ao ato do convite é possível participar de todas as convocações! Apenas ali todos os “amigos” se encontram, pois todos, com efeito, comparecem efetivamente ao convidamento, mas não ao encontro propriamente dito. É como se a ágora contemporânea, cada vez mais virtual, num movimento diametralmente oposto à grega antiga, se constituísse pela ausência física das pessoas, ou, o que dá no mesmo, nas suas exclusivas presenças virtuais. Desse modo, o espaço oficial de convivência pode ser dessubstancializado de sua substância essencial, qual seja: a convivência.

Esse esvaziamento substancial a outro lugar não nos leva senão ao empanturramento com vazio; à saciedade, entretanto, alcançada através do nada das coisas. Entretanto, para lidarmos com essa realidade dessubstancializada, precisamos necessariamente de uma postura e de uma nova gramática. Ora, se chamamos de “X” aquilo em que não há mais “X” algum, além de falarmos de quimeras, queimarmos as nossas preciosas e precisas palavras com aquilo para o que elas não servem mais. Somente quando realizarmos que, por exemplo, o café sem cafeína não é café, mas uma “coisa” outra, que por sua vez precisa de um outro nome e de uma outra ideia, o café, ele mesmo, terá a sua essência preservada. Assim, nós, as palavras, bem como aquilo a que elas referem, seja café, seja amizade, estaremos todos protegidos da dessubstancialização, do esvaziamento, do nada.

Cativos do céu

Volta histórica e meia, aquilo que temos de mais valoroso é levado, por nós, a habitar na virtualidade celeste. O homem primitivo, ignorando as causas da realidade e de si mesmo, fez de Deus o receptáculo de toda a sabedoria que lhe faltava. Como a medida de Deus era proporcional à ignorância humana, foi preciso um lugar espaçoso o bastante para que Ele e o Seu infinito conhecimento pudessem existir em paz, ilesos de qualquer estupidez. Então, Deus foi locado num lugar infinito e inalcançável: nas nuvens.

Com o progresso da ciência, todavia, o divino revelou-se relesmente mundano. Assim, as pessoas puderam desfrutar da plena liberdade para conhecer e para dominar a natureza toda, independentemente de Deus. A epopeia enciclopédica do Século XIX foi o download pirata de toda sabedoria divina necessária à vida prática dos homens. Esse conhecimento fundamental, espalhado pelo chão do mundo pós-moderno, sistematizou-se “em rede”. Doravante, o paraíso esvaziado viveria simplesmente por conta de sua vacuidade.

Entretanto, e ironicamente, no cibertecnológico mundo contemporâneo a sabedoria essencial à humanidade volta a ser colocada sobre a cabeça de todos, na “nuvem”. O éter celeste, agora binário, é novamente o receptáculo daquilo que é mais valioso aos humanos: a informação acerca das coisas e deles mesmos. Intrigante é perceber que o céu, ou melhor, “a nuvem”, mais uma vez, convence os homens de que ela é o lugar mais seguro, sem dizer infinitamente possível, a tudo aquilo de que eles mais necessitam saber.

Quando inventou a sua própria ignorância, o homem colocou a sabedoria que lhe faltava bem acima de si, na inabarcável esfera divina. Contudo, uma vez tornado onisciente pela ciência, o homem esvaziou o céu de todo saber fundamental, carregando consigo o que outrora era propriedade de Deus. Porém, uma vez de posse de tamanha informação, repetimos a ancestral elevação do saber essencial às nuvens; ou porque reconhecemos que somos incapazes de carregá-lo todo conosco, ou porque nos sentimos culpados pelo moderno esvaziamento do céu, obra exclusiva da nossa sede de saber.

#JenesuispasZiraldo

É da essência do cartoon veicular, não sem espirituosidade e ironia, verdades – ou pelo menos algo delas. Aliás, é precisamente esse quê de veracidade que corrobora o desenho crítico. Entretanto, nem sempre o cartunista alcança tal objetivo, seja nos seus cartoons, seja nas suas próprias ideias. Ziraldo, um dos mais conhecidos chargistas brasileiros, em uma entrevista à Record, falou uma asneira absolutamente desnecessária sobre homossexualidade. Nem se ele tivesse desenhado belamente a sua opinião ela mereceria ser contemplada.

Pois bem, sobre a relação lésbica – de terceira idade – entre as personagens de Fernanda Montenegro e Nathália Timberg, da novela Babilônia, da Rede Globo, Ziraldo disse: “A Fernanda Montenegro não tem direito de fazer apologia do afeto homossexual com esse personagem em Babilônia. Mesmo que ela estivesse pensando em ajudar as famílias dos homossexuais, isso não daria resultado. Afinal, qual é a porcentagem de mães de homossexuais? Talvez gere ainda mais preconceito”. Eu não assisto a essa novela, mas em uma ou outra coisa que li – longe das redes evangélicas – a partir da polêmica que ela abriu à opinião pública, foi ressaltado a dignidade e a naturalidade com que as atrizes tratavam a homossexualidade de suas personagens.

Entretanto, em primeiro lugar, Ziraldo esqueceu que Fernanda Montenegro não é uma apologista, e sim uma atriz. Com o mesmo direito com que representou inúmeros tipos, desde nordestinas pobres até paulistanas ricas, a maior atriz brasileira tem todo o direito de representar também tipos com orientação sexual “hetero”, “homo” ou “bi”, sem que isso signifique que ela preste algum desserviço aos gêneros os quais interpreta, tampouco aos seus relativos. Ziraldo defendeu ferrenhamente o direito de Charlie Hebdo desenhar Maomé como bem entendesse, mas, à Fernandona, nega o direito de ela desenhar os tipos que representa. Coé a tua bro?

Em segundo lugar, mas não menos importante, escapou da “filosofia” de Ziraldo a existência de mães homossexuais. Assim como as heterossexuais, que em todas as novelas tem representantes suas nos núcleos principais, as mães homossexuais ganham igual reconhecimento ao se verem representadas na televisão, ainda mais pelas consagradas Fernanda Torres e Nathália Timberg. Entretanto, o que o cartunista quis dizer na sua infeliz colocação é que menos preconceito seria gerado se fosse mantido, na ficção, o arraigado protagonismo de personagens heterossexuais; que melhor à questão da homossexualidade é ela ser “desaparecida” da vista do grande público; que falar de homossexualidade não “ajuda”.

Em terceiro lugar, ainda que se tratasse de “ajuda”, como quer Ziraldo, o fato de o cartunista dizer que reconhecimento, respeito e representação devem surgir somente a partir de determinado contingente estatístico – “Afinal, qual é a porcentagem de mães de homossexuais?” – é ainda mais sério. Por essa lógica, todas as minorias só mereceriam ser “ajudadas” desde que se tornassem maioria, o que é ou um absurdo, ou pura desumanidade. Todavia, Ziraldo se esquece de que um folhetim, ainda mais um da Globo, muito antes de querer “ajudar” seus telespectadores, deseja, sobretudo, entretê-los. Ademais, a “ajuda” engendrada nas novelas é financeira, mediada pela publicidade, dos telespectadores à conta bancária da concessão televisiva.

Portanto, seria bom que Ziraldo tivesse ficado de boca fechada em relação à homossexualidade de mães senhoras folhetinescas – no mínimo, em consideração às mães senhoras homossexuais reais das quais ele, infelizmente, não tem estatística Deveria ter permanecido desenhado suas maluquices apenas no seu famoso Menino. No entanto, mesmo desenhada, uma barbaridade ainda é perigosa, e inclusive indesejável. Os doze mortos no atentado ao Charlie Hebdo, há exatos quatro meses, são prova disso.

Se no atentado parisiense Ziraldo retweetou  #JesuisCharlie, para com isso defender as liberdades de imprensa e de expressão, no atentado homofóbico que ele mesmo promoveu na evangélica Record a sua nova “hashtag” resulta assim: #Jenesuispasmãeslésbicas. Como eu não aderi ao #JesuisCharlie, por achar que nem tudo o que pode ser imaginado merece ser desenhado, outrossim, pelo fato de  acreditar que nem tudo o que é pensado deva ser dito, adiro aqui ao #JenesuisopasZiraldo. Reforço, com isso, a minha crença de que nenhuma expressão é digna conquanto pretenda furtar a livre expressão da diversidade, principalmente das minorias não contempladas pelas estatísticas oficiais.

Pecha sofística-filosófica

Os sofistas, mestres mambembes que viajavam o mundo antigo vendendo práticos saberes, discursos políticos e estratégias argumentativas, ganharam já de Sócrates e de Platão o famigerado estigma charlatanesco que dura até hoje. Tachada por estes filósofos como a arte da prestidigitação com as palavras, a sofística passou a ser mal vista porque entendia o conhecimento pelo seu viés pragmático e particular. Ora, essa postura afrontava os filósofos que buscavam sobretudo as verdades de validade universal. Porém, é absolutamente parcial, quiçá injusto, procurar pela pertinência da sofística apenas no seu produto final, isto é, nos seus efeitos, esquecendo-se das causas que a trouxeram à vida. Então, contornando o malicioso anacronismo filosófico que peitou os sofistas pela frente, vale acompanhar estes malogrados técnicos do discurso desde antes do encontro que tiveram com os amantes da sabedoria.

Voltemos, então, ao período compreendido entre o abandono da vida nômade e a instituição da polis grega, no qual o homem ainda carregava consigo, na agora civilizada, reminiscências de sua selvageria, tais como a escravidão e a subjugação das mulheres aos homens. Com efeito, para os virtuosos polités atenienses, os escravos, as mulheres, e obviamente os estrangeiros, não eram cidadãos, mas seres com os quais eles podiam – e inclusive deviam – lidar despoticamente. Entretanto, para permanecerem convencidos de suas pretensas civilidades, e, mais importante, alienarem-se da barbárie que ainda sustentavam em pleno seio político, aqueles déspotas precisavam se relacionar com a verdade de um modo que ela não se revelasse completamente. Ou, do contrário, eles seriam informados por ela, a contragosto, que eram ainda bárbaros, entretanto, envoltos em togas de fino linho e tagarelando na assembleia.

Se foi a capacidade de transpor em palavras aquilo que antes só se resolvia através da força física o carro chefe da polis grega, pois só se chega à civilização pensando e dialogando sobre a barbárie resistente, a arte de bem falar, em seu estado nascente, a outra coisa não atendia senão a bestialidade de homens que, sobretudo, desejavam garantir a posse de suas terras, de seus escravos, bem como de seus despotismos arraigados. Portanto, a retórica, de imediato, foi uma forma civilizada, aplicada, todavia, sobre a função bárbara que ainda errava pela cidade; embora, posteriormente, ela tenha se aliado à verdades mais nobres, virtuosas, inclusive científicas. Porém, antes disso tudo, a retórica teve de lidar com os objetos mais baixos de uma recente e instável civilidade em construção.

Tomemos a justiça, esse pilar da civilização, como exemplo: fazê-la com as próprias mãos – selvageria -, é uma coisa; outra bem diferente é cunhar para ela um conceito de validade universal – filosofia. Há um longo, porém nem sempre retraçado, caminho entre estes dois extremos. Um conceito universal de justiça, por mais belo e justo que pareça, é vazio, portanto desnecessário, se não for antecedido e preenchido por uma miríade de fatos particulares nos quais as muitas ideias de justiça se entrecruzem. Sob um posto de vista, todas as particularidade acerca da justiça são a substância priori do conceito universal, e a posteriori, de justiça. Tratando-se, então, de qualquer coisa, inclusive de justiça, podemos começar abordando ou suas particularidades, ou sua universalidade, porém, atentando para o fato de que esta só é possível a partir daquelas.

A busca pelos universais era a arte própria dos filósofos. Os sofistas, inversamente, não acreditavam em tal universalidade, pois, oriundos do estrangeiro e viajados pelo mundo antigo, percebiam claramente que não existia essa coisa chamada verdade universal; que aquilo que os homens acreditavam, cultuavam, e pelo que lutavam até a morte era apenas convenção; que a verdade para um povo era tão diversa da verdade para outro quanto estes povos eram diferentes entre si. Sequer uma ideia absoluta sobre os deuses havia. Portanto, não tendo encontrado objetos universais, os sofistas não tinham motivos para investigá-los nem se ocuparem deles. Antes, investiam naquilo de que nenhum homem conseguia se alhear, isto é, das suas experiências e necessidades particulares.

Cientes do pragmatismo de todos os saberes, os sofistas passaram a vender desde discursos políticos aos cidadãos que desejassem vencer na assembleia, até técnicas de argumentação aos que quisessem se sobressair nas discussões cotidianas. Entretanto, dos sofistas não pode ser dito que comercializavam mentiras conquanto não acreditavam que existisse verdades incondicionais, senão aquelas convencionadas para fins absolutamente práticos. Com efeito, a sofística foi uma pedra no meio do caminho filosófico aberto por Sócrates e Platão. O caráter utilitarista e particular das verdades sofísticas era incompatível com o universalismo contemplativo desejado pela filosofia grega. Porém, a verdade filosófica de certo modo já estava contemplada nas verdades sofísticas, pois, se esta diz que as verdades são criações humanas, para fins não menos humanos, a filosofia de Sócrates e Platão era somente mais uma delas.

Sócrates, dialogando com Hípias Maior, no diálogo platônico de mesmo nome, procurava pelo belo absoluto que, entretanto, nem ele conseguia encontrar. Recusava, por conseguinte, todos as coisas belas que seu interlocutor sofista lhe oferecia: uma mulher bela, uma panela bela, as belezas do ouro, da riqueza, da utilidade etc. Hípias, certo de que só existiam coisas belas, mas não o belo em si – afinal, assim como a verdade, o belo é apenas uma convenção arbitrária -, não teve como saciar a impossível fome filosófica de Sócrates, tendo sido tachado, por este, de charlatão. Outrossim, Platão, insistindo que as ideias de todas as coisas jazem em Deus, e não nas cabeças humanas, tampouco nas coisas do mundo, deu o golpe de misericórdia nos sofistas, impedindo-os definitivamente de falarem em nome da verdade mediante particularidades mundanas. Para o pai da filosofia, a verdade existia alhures, na ideal esfera celeste, e de forma alguma na realidade imediata vendida pelos sofistas.

Ora, Sócrates, procurando pelos universais, e Platão, pelos ideias, findavam sempre com as mãos vazias de algo concreto. O preço da filosofia platônica, portanto, foi a assunção colateral da mais pragmática verdade sofística: de fato, só há as verdades convencionadas pelos homens, nada mais. O resto era apenas elucubração de certos aristocratas ociosos, na manutenção de uma estratégica distância em relação à verdade, para assim se manterem alienados da barbárie que resistia sub-repticiamente nas suas civilidades até então despóticas. Para tanto, os sofistas deveriam ser banidos da República imaginada por Platão e dita por Sócrates, pois, assumindo-se que a verdade é uma convenção, ninguém seria obrigado a subjugar-se eternamente a ela. Ora, se fosse assumido que a verdade era de fato uma deliberação humana, a ancestral verdade acerca da aristocracia de certos homens cairia por terra. Aqui podemos ver a ameaça sofística à barbárie despótica disfarçada de cidadania democrática que regia a Magna Grécia na época do nascimento oficial da Filosofia.

O entrevero entre os diferentes conceitos de verdade para filosofia e para a sofística encontra-se nalgum lugar entre a barbárie e a civilização. A filosofia, desenvolvendo anacronicamente sua promenade, isto é, da civilização à barbárie, não pôde evitar de condenar a verdade pragmática, tácita e necessária a qualquer selvagem. A sofística, fazendo o caminho inverso, partindo da barbárie à ágora civilizada, trouxe consigo a verdade, não menos selvagem, que diz ser nenhuma verdade universal ou ideal. Entretanto, como a pecha entre filósofos e sofistas era também a de gregos aristocratas contra estrangeiros proletários – cujas mercadorias eram seus discursos -, o relativismo sofístico sucumbiu diante da intransigência universalista de Sócrates e do absolutismo idealista de Platão.

Desde então, os sofistas e a sua arte com as palavras são taxados de charlatanismo. Porém, ainda hoje, se eu tentar impor a qualquer contemporâneo meu um conceito universal, por exemplo, de amor, serei tão improdutivo quanto Sócrates. Meu interlocutor, por sua vez, reacenderá a velha chama sofística e me dirá, sem hesitar, que conceito universal algum é mais útil ou válido do que aquele, particular, que ele mesmo tem do amor.