Diante de um ano novo, inadvertidamente nos atemos mais àquilo que é velho, isto é, na repetição dessa coisa instituída chamada “ano”, do que no fenômeno necessariamente sem referência que é o “novo”. Por não antecipar nada de si, até que não mais o seja, o novo, antes de ser, ganha corpo apenas através de elementos outros, não-novos. Logo, o “novo” se-nos apresenta como um pot-pourri de velharias que, justamente por conta da inusitada combinação, camuflam a atividade impertinente do velho.
Agora, despido absolutamente de qualquer veste passada, como poderia o “novo” figurar no pensamento? Como seria, por conseguinte, pensar em algo que nunca foi, que nunca aconteceu, ou que jamais teve lugar no mundo? Ora, sempre que coisas como estas apresentam-se à intelecção, permanecemos imersos no velho, mas de forma alguma na efêmera superfície do novo. Então, novamente, como poderia o novo ser para nós se o simples fato de pensarmos nele pressupõe o já pensado, portanto o velho?
O “novo”, substancialmente, é uma fronteira demasiado seletiva que exclui precisamente tudo que já foi e, por conseguinte, tudo o que é – do contrário não mereceria esse nome. Entretanto, o novo é um lugar em cujos limites só conseguimos adentrar carregados de passado. A nossa experiência do novo, portanto, é condicionada por uma espécie de corrupção, pois, para já fruí-la, a desrespeitamos desenhando-a sobre a lousa rota do não-novo. Desse modo, o novo existe apenas como mais uma das velhas coisas sempre presentes, mas nunca enquanto o fenômeno que, alheio à nossa interação, o novo é em essência.
Então, o que seria a substância do novo? Por ventura aquilo de que sobremaneira não podemos falar? Possivelmente, dado que a linguagem, apesar do horizonte sempre ampliável que nos oferece, ainda assim é uma limitação; quanto a isso Wittgenstein teria muito a dizer. Suponhamos que o novo não seja para ser falado nem pensado, pois, como vimos, tais atitudes apenas prolongam o velho num terreno no qual ele não deveria estar. Ora, se há algo que pertence inegavelmente ao novo é a experiência, no sentido estrito dessa palavra, ou seja, aquilo que, a despeito do resultado, acontece justamente para que um resultado possa existir, para só então este poder ser conhecido, e doravante pensado.
Em respeito ao novo, embora estejamos sempre a desenhá-lo antecipadamente, antes mesmo de ele mostrar-se à nós, resta-nos apenas vivê-lo à margem de qualquer pensado. Isso, claro, se quisermos não corrompê-lo. Sendo assim, o conhecimento acerca do novo só pode se dar, concretamente, de forma retrospectiva. A partir dessa conclusão, contudo, sobrevem um paradoxo com o qual temos de lidar: o novo só pode ser realmente sabido depois de velho.
Sobre o Ano Novo que repetidamente esperamos e festejamos, nossa relação com o novo desse ano vindouro tampouco deixa de se dar, paradoxalmente, através de elementos velhos. Mesmo a esperança, característica desse período, trata-se da manutenção do mesmo, portanto do velho, futuro-adentro. Todavia, um “mesmo” pretensamente melhorado, por obra de desejos que, cientes de suas próprias irrealizações, acreditam que sob o rótulo de “novo”, finalmente realizar-se-ão. De certa forma, a esperança que antecede o ano novo, ao modo de já recebê-lo, é um elemento corrompedor de toda e qualquer novidade, pois é o próprio passado intrometendo-se no futuro; o velho roto insistindo presença no novo virgem.
Com os pés no derradeiro de um ano qualquer é que temos a impressão de que ele é velho. Entrementes, recorrendo à memória – esse museu de velharias -, a menos de um ano, ironicamente, chamávamos e festejávamos esse ano como um novinho-em-folha. Contudo, se um ano é novo, todo ele o é, e assim deve ser. Caso ontrário, nossas esperanças e comemorações referir-se-iam apenas a meses ou a dias novos, e não a anos. No entanto, envelhecemos de antemão a novidade de cada ano novo como que na manutenção da relação paradoxal através da qual usualmente ensejamos o novo.
A novidade que realmente nos espera nos anos que se iniciam – sob as expectativas e esperanças que nada mais fazem do que expandir o velho para além dos seus limites – é o desconhecido ele mesmo; aquilo de que não temos ideia, e, ao mesmo tempo, a morte absoluta do que até então é. Justamente pelo fato de o novo ter como essência a superação do que já é, o que implica um perda irreparável, primeiramente fazemos dele um totem-Frenkenstein, ou seja, um amontoado de velharias referenciais a apontar não para o novo, mas para o velho. Desse modo, nos utilizamos da relação paradoxal através da qual o novo se-nos aparece para termos a sensação de que controlamos a transição temporal de acordo com os nossos desejos.
Sim, são os nossos desejos que concretizam a abstração da passagem de ano; e, como era de se esperar, em função de objetivos egoístas. Chamamos de “velho” o ano que não tem mais como comportar a realização dos nossos desejos, e em oposição a este, de “novo” o que pode fazê-lo. Entretanto, a partir de que momento no ano passamos a chamá-lo de velho? Em setembro, por exemplo? Ou é em dezembro que tal senilidade se apresenta irremediavelmente? Na verdade, apesar de absolutamente subjetiva, a velhice de cada ano é instituída a partir da projeção do ano subsequente na tela cheia do presente.
No instante em cruzamos a linha que separa o ano velho do novo, quando estamos com os dois pés fincados irreversivelmente no ano novo, entramos em contato apenas com um outro ano qualquer, demasiado parecido com o antecessor, mas de forma alguma com aquela novidade pressuposta e salvadora. Também pudera, com tanta velharia trazida na mochila por conta de esperanças e expectativas, o ano novo acaba parecendo-se, sempre, muito mais com o anterior do que com um ano absolutamente novo.
Todavia, a despeito da mesmice que levamos de um ano ao outro, a novidade concreta, subsistente em cada ano que se inicia – que é a mesma existente em cada dia ou hora que sempre começam – acaba abstraída, e isso por conta da forma paradoxal com a qual lidamos antecipadamente com o novo no cerne do velho. Para vivermos um ano essencialmente novo precisamos, portanto, não esperá-lo. Antes, devemos levar esse “desespero” ao seu limite máximo, iniciando um juízo acerca do ano novo não antes dele acontecer, mas no seu próprio derradeiro.
O ano novo, por conseguinte, só pode ser pensado depois de vivido de cabo a rabo; como foi dito anteriormente: retrospectivamente. Dessa forma o paradoxo novo-velho – com o qual inadvertidamente tomamos um pelo outro – funciona em favor tanto do novo quanto a nosso. Sendo assim, o ano novo do qual, no momento, podemos falar concretamente é o que acaba em poucos dias, pois do que virá em seguida, este que sempre nos preparamos para comemorar, nada pode ser dito – a não ser que usemos as letras deste que finda. Então, o desejo de feliz ano novo deixa de ser abstrato dito da seguinte forma: feliz ano velho.