Brexit: covardia transparente

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A Primeira Guerra Mundial, antes de acontecer, disse o filósofo Henri Bergson, era “ao mesmo tempo provável e impossível”. Depois de eclodida, entretanto, ela se mostrou absolutamente possível; e a sua probabilidade, apenas a limitação das análise conjunturais prévias. Conforme outro filósofo, Slavoj Žižek, “do ponto de vista retroativo o mesmo processo parece inteiramente determinado e necessário, sem abertura para alternativas”.

Com o Brexit é a mesma coisa, muito embora a saída do Reino Unido da União Europeia tenha sido fruto de uma escolha popular, portanto contingente, com a justíssima vitória de 51,9% dos votos. Porém, como disse Žižek, “essa aparência de escolha não deveria nos enganar, pois trata-se da aparência do seu verdadeiro oposto: da ausência de escolha real quanto à estrutura fundamental da sociedade.” Melhor seria se os britânicos tivessem se recusado à escolha, pois, “hoje, a ameaça não é a passividade, mas a pseudoatividade, a ânsia de ‘ser ativo’, de ‘participar’”, coloca o filósofo. E isso porque a elite que realmente decide a realidade precisa da participação popular. Assim, todos se sentem responsabilizados pelas decisões que ela, a elite, toma vertical e despoticamente em benefício exclusivo de si própria.

Na verdade, os súditos do United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland foram escolhidos para “escolher”, em um teatro espetacular é preciso dizer, o que as elites inglesas sorrateiramente já tinham escolhido para si mesmas diante da crise econômica internacional, dos refugiados, do terrorismo, só para citar alguns dos motivos inegáveis. Quanto mais não seja, nas palavras de Žižek, “é assim que cada vez mais funciona a democracia no primeiro mundo, ‘terceirizando’ seu avesso sórdido para outros países”. Nesse tipo de democracia, segue o filósofo, “uma escolha é sempre uma meta-escolha, uma escolha da modalidade da própria escolha”.

Entretanto, mesmo que os interesses das elites não sejam segredo de estado, o mundo estarrece diante do Brexit. Não só porque a União Europeia pode estar diante do início de sua ruína, durante tantos anos “ao mesmo tempo provável e impossível” para repetir Bergson, como também, e mais objetivamente, porque de um dia para o outro o valor da libra esterlina despencou ao seu menor nível desde 1985, levando consigo as bolsas internacionais. E, pergunta Žižek, “haveria prova melhor do caráter não substancial da realidade além da fortuna gigantesca que pode ruir e desaparecer em poucas horas?”

Sem dizer que o próprio Reino Unido também tem com o que se preocupar, afinal, inicia hoje uma experiência com a qual não tem intimidade há 43 anos: manter-se um Estado-nação forte capaz de sustentar o Estado de bem-estar social dos britânicos sem a ajuda da tecnocracia financeira que, em verdade, a União Europeia sempre foi. Para começar, o Banco da Inglaterra se prepara injetar 250 bilhões de libras na economia para dar conta da decisão do plebiscito de 23 de junho de 2016. As elites locais, que administrarão esse montante, não deram tiro no pé…

O que significa concretamente o Brexit para os britânicos, para a Europa, e inclusive para o mundo? Resposta difícil, uma vez que, conforme o matemático e filósofo inglês Brian Rotman, “o significado é algo sempre emprestado do futuro, que confia num pagamento futuro sempre adiado”. E ainda que arriscássemos em vaticinar um significado ao Brexit, mais difícil ainda seria encontrar um sentido para ele, pois, nas palavras de Žižek, “o capitalismo é a primeira ordem socioeconômica que destotaliza o sentido”. A melhor coisa que temos a fazer, portanto, é esperar para ver no que essa mudança resultará.

Das crises mundiais que já têm significado e sentido conhecidos, reduzir fronteiras vem em solução imediata, todavia covarde e desumana, à incontrolável crise migratória internacional que tanto preocupa os países europeus. As palavras do político holandês Geert Wilders, abertamente anti-imigração, deixam isso claro: “Queremos ser donos de nosso próprio país, de nosso dinheiro, nossas fronteiras e nossa política imigratória.” Para dar mais uma volta no parafuso anti-imigração, uma manchete do El País: “Votação a favor do ‘Brexit’ anima os xenófobos europeus”.

Eis o velho e perigosíssimo populismo nacionalista de direita exibindo sua revigorada força. Aqui é preciso ressaltar que foram os mais velhos os que mais votaram pelo Brexit. Parafraseando Žižek, será que não conseguimos ver o germe de um “nazismo 2.0” somente porque ele ainda é transparente, porque vemos através dele sem vê-lo diante de nós? Aqui é bom atentar ao que disse filósofo alemão Thomas Metzinger, que “o grau de transparência fenomenal é inversamente proporcional ao grau introspectivo da disponibilidade de atenção dos estágios de processamento anteriores”.

Baseados nessa ideia, devemos perguntar se o possível ressurgimento de fascismos de Estado –ainda transparentes na cada vez mais naturalizada xenofobia- só é invisível ainda porque não estamos atentos ao seus “estágios de processamento” atuais. Se no antissemitismo, que teve seu apogeu no nazismo, o medo da crise econômica e da degradação moral foram trocados estrategicamente pelo medo do judeu, é de se questionar se no “antiuniãoeuropeísmo” encarnado no Brexit, cujos medos não são muito diferentes, não está a semente ainda oculta de uma “erva daninha genocida” contra os imigrantes e os pobres.

Lacan já disse que uma coisa é a sua melhor máscara. Com os radicais-nacionalismos não é diferente. É isso que devemos deduzir do twitt de Marine Le Pen, política francesa declaradamente contra os imigrantes, imediatamente ao resultado do plebiscito britânico: “A Liberdade venceu”. A coisa por trás da máscara nesse caso é a velha e paradoxal autonomia kantiana: o estabelecimento de um limite firme (o fechamento das fronteiras europeias), que realmente convence ser libertador, porém, no intuito de dar cabo da angústia que é a falta de limites (a abertura irrestrita aos imigrantes, aos pobres etc.).

Verdadeira liberdade é ter capacidade para ver que, como disse Žižek, “cada campo da ‘realidade’ (cada ‘mundo’) é sempre já emoldurado, visto através de uma moldura invisível”. Essas molduras transparentes são produtora de pseudoliberdades. E o Brexit é apenas mais uma dessas molduras, nem tão invisível é verdade, que no entanto consegue mentir a milhões de britânicos que eles estão mais livres. Só que dos estrangeiros, dos pobres, da austeridade fiscal. Em suma, da crísica realidade mundial que eles mesmos coproduzem cotidianamente.

O Brexit, portanto, é a covardia dos britânicos que querem escapar das crises globais que o seu Estado de bem-estar social particular ajuda a produzir. Coragem seria manter-se envolvido com as tragédias mundiais, não reduzir suas fronteiras até que elas fiquem do lado de fora. Žižek lembra que “a tragédia grega, a experiência trágica da vida, assinala a aceitação da lacuna, do fracasso, da derrota, do não fechamento como horizonte único da vida humana, ao passo que a comédia cristã se baseia na certeza de que Deus transcendente garante o final feliz, a superação da lacuna, a reversão do fracasso em triunfo final. Mas a transcendência sempre foi a estratégia cômica e covarde de quem não consegue lidar com a imanência.

Os invisíveis poderes que levaram os britânicos a votarem pela saída do Reino Unido da União Europeia quiseram, entre outras coisas, esconder do povo uma coisa que o filósofo francês Étienne Balibar deixou bem claro, que “o homem é feito pela cidadania, e não a cidadania pelo homem”. Os cidadãos e cidadãs do United Kingdom não serão homens e mulheres melhores nem mais felizes por não fazerem mais parte da European Union. Podem ser mais ricos? Claro que podem, afinal, essa é uma das metas centrais. Todavia, ao altíssimo preço de serem mais fechados, isolados, xenófobos, retrógrados e desumanos.

Žižek coloca que “o Estado-nação não é o verdadeiro instrumento para confrontar a crise dos refugiados, o aquecimento global e outras questões urgentes que se colocam”. O Brexit, portanto, que é a sede radical por um Estado-nação, outra coisa não é que a invisível decisão de se manter as crises das quais, opacamente, os britânicos disseram que querem se afastar. Mantê-las, sim, porém, imediatamente do lado de fora de suas fronteiras. Afinal, na realidade capitalista a crise é sempre muito lucrativa. Basta saber manter certa distância dela. Na dificuldade, recuar; reduzir fronteiras.

Não obstante, segue Žižek, “nossa única esperança é agir em nível transnacional – só assim teremos a chance de fazer frente ao capitalismo global”. A permanência do Reino Unido na União Europeia manteria essa esperança mais viva? Para o filósofo comunista Alain Badiou, não, pois para ele a esperança reside longe desses conglomerados burgueses. Mais especificamente, pasmem, nas favelas. Nas suas palavras, “as favelas são um dos poucos ‘lugares factuais’ autênticos da sociedade atual; os favelados são, literalmente, uma coleção dos que não fazem ‘parte de parte alguma’”.

Algum velho burguês&xenófobo britânico, apólogo do idealista e insustentável isolacionismo, poderia imaginar que as sementes do futuro estão justamente nas favelas das quais aliás ele quer distância absoluta, e não no seu, hoje, mais restrito e aburguesado condomínio/Estado-nação? Claro que não. Por quê? Ora, porque todo idealismo –e o Brexit é o mais espetacular da atualidade- serve apenas para alienar a realidade. Eis a realidade da qual o Reino Unido se alienou ao se afastar mais um pouco do mundo: que o maior problema é justamente a riqueza e a desumanidade que sobra dentro de suas fronteiras cada vez mais reduzidas.

Tecnobarbárie

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Assistir “Eye in the sky” (olho no céu), de 2015, filme inglês que trata de uma operação militar internacional de captura de terroristas no Quênia, é ter a rara oportunidade de ver os pretensos civilizados ocidentais dizerem a si mesmos que são mais bárbaros do que os bárbaros que costumam atacar em nome da “civilização”.

O filme começa com um general inglês em uma loja chique comprando uma boneca para a sua neta. A segunda cena é a de uma menina muçulmana pobre brincando com um bambolê que seu pai acabara de fazer. Brincadeira todavia secreta, autorizada somente dentro dos muros domésticos, pois para os muçulmanos brincar é pecado. No outro canto do quintal, sua mãe, diante de um forno à lenha, assa pães que em seguida serão vendidos pela menina nas vielas da cidade. Trabalhar publicamente pode, brincar não.

Enquanto isso, um drone inglês que sobrevoa a cidadela da África oriental tem sob mira uma outra casa onde estão cinco muçulmanos se preparando para um ataque terrorista em um shopping center de Nairóbi, capital do país. Do outro lado da câmera e dos mísseis “drônicos”, em escritórios confortáveis e seguros locados em Londres e nos Estados Unidos, estão generais, coronéis, tenentes, secretários de estado, e primeiro ministro, todos prontos para autorizar o bombardeio da residência em questão.

Porém, no momento em que o tenente que opera o drone recebe a ordem de iniciar o bombardeio, a menina da abertura do filme monta uma barraquinha para vender os pães feitos pela mãe justamente do outro lado do muro da casa a ser alvejada. O operador, ciente de que a menina será explodida junto com o alvo, recusa-se a lançar o míssil e pede por nova avaliação de risco, uma vez que, agora, nas baixas constará também uma criança que nada tem a ver com o ataque ao grupo terrorista.

Incrédulos, os seus superiores “worldwide” não entendem o drama de consciência do tenente. Alegam que se não bombardearem os terroristas naquele exato momento o ataque que em seguida praticarão matará cerca de oitenta pessoas no shopping center. Poupar a vida de uma criança, portanto, não justificaria a consequente perda de dezenas de outras vidas segundo a lógica civilizada dos ingleses. Os americanos, como era de se esperar, são mais insensíveis ainda, dizendo que se os ingleses declinassem da operação os Estados Unidos os retalhariam.

Entretanto, a lógica sensível do tenente operador do drone é comprada por uma política inglesa envolvida no caso. Porém, por outra razão. Temendo que a notícia da morte de uma criança inocente mobilize negativamente a opinião pública mundial, a política tenta convencer os grandões do poder internacional de que se eles bombardearem os terroristas e a menina morrer, os terroristas vencem. Para ela, seria mais vantajoso os terroristas explodirem o shopping center lotado, pois assim a sensibilização internacional seria contrária aos terroristas, e não aos ingleses e americanos.

Para resolver a situação, a coronel responsável pela avaliação de risco da operação secretamente forja um risco bem menor do que o real, reinformando a todos que a probabilidade de a garota morrer é de apenas 45%. De posse desse novo e falso dado, a casta político-militar chega à conclusão de que vale a pena seguir com o bombardeio. Então, reordenam ao tenente que controla o drone que prossiga. Com lágrimas nos olhos, e ciente de que a garota morrerá, ele aperta o botão. Nos quarenta segundos entre o disparo pelo drone e a explosão da casa terrorista, não só ele, mas todos os militares e políticos do filme fixam seus olhares exclusivamente na menina diante dos pães.

O alvo é explodido espetacularmente. A menina é arremessada para longe junto com escombros do muro que a separava da casa alvejada. A atenção de todos segue sobre a garota ensanguentada e estirada no meio da rua até que os pais dela chegam correndo, desesperados, e se debruçam sobre ela. Só que os militares “civilizados” percebem que um dos bárbaros terroristas ainda estava vivo. Sem pestanejar, e sem darem espaço de manobra ao operador do drone, ordenam que seja lançado mais um míssil, dessa vez sem avaliação de risco algum.

Nova explosão. A menina, que já estava ferida e inconsciente por conta da primeira explosão é atingida novamente, só que dessa vez seus pais também. Já a cúpula político-militar internacional, preocupa-se em confirmar visualmente apenas as mortes dos terroristas. Fora do quadro filmado pelo drone, os aliados locais dos terroristas mortos esvaziam um jipe cheio de armamento para levarem a garota seriamente ferida a um hospital. Não obstante, a garota morre assim que lá chega. Seus pais, outrossim feridos, só podem chorar sem entender o que aconteceu.

No lado civilizado do mundo, mesmo com a vitória técnica da “civilização” contra a “barbárie”, os europeus e americanos não conseguem olhar nos olhos uns dos outros. Resta silenciosamente no ar “civilizado” e refrigerando que os envolve a desconfortável certeza de que eles são mais bárbaros do que os bárbaros que atacaram. O general da abertura do filme deixa seu escritório com a boneca que comprou e segue cabisbaixo para presentear a neta. Encerrando o longa-metragem, a cena da garota brincando alegremente com o seu bambolê secreto horas antes de morrer. Morrer, pública e espetacularmente, pode. Brincar, não.

A “história para inglês ver”, que deliberadamente inverte a arraigada certeza sobre quem são os verdadeiros e mais cruéis bárbaros, mesmo que não tenha vindo às telas para mudar o mundo, tem ao menos a virtude de denunciar que sob os mantos científico, técnico e burocrático a barbárie ocidental ainda consegue mentir para si mesma, e para quase todo o mundo aliás, que é civilização. De acordo com essa lógica mentirosa, matar à distância segura e covarde de um drone é civilizado. Já na intimidade corajosíssima de um colete-bomba, barbaridade.

Morte cerebral mundial

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Imagem: divulgação CBS

Braindead (morte cerebral) é uma série produzida pela americana CBS que começou a ser exibida há duas semanas. Na ficção, um meteoro cai na Rússia, é recolhido do fundo de um lago e é enviado a um laboratório em Washington para análises. Em uma noite, quando nenhum cientista estava por perto, milhares de “formigas” alienígenas saem da rocha e sorrateiramente invadem a capital norte-americana. Os “insetos” entram nos lares, penetram nos ouvidos das pessoas e dominam seus cérebros, alterando e controlando seus atos. Não escapam dessa dominação os grandes políticos nem seus eleitores. Na verdade, as absurdidades que aqueles passam a realizar são passivamente chanceladas por estes. Caos na terra?

Bem, a humanidade nunca precisou nem de ficção nem de alienígenas para criar o caos. Basta olhar para os lados e perguntar se as absurdidades que nos cercam atualmente já não atenderam desde sempre pelo nome de mundo. Por acaso deveríamos nos alarmar com o as desumanidades que estamos assistindo “worldwide  ou apenas assumir que o “american dream”, internacionalmente “broadcasted”, apenas nos alienou dessa vil&alarmante realidade que nunca deixou de estar “out there”?

Aqui vale lembrar o episódio de outra série mundialmente famosa, House of Cards, no qual um terrorista muçulmano diz que eles explodem e explodirão sistematicamente os americanos porque a missão deles é lembra-los de que a vida não é, nunca foi e nunca será esse sonho dourado livre da dor e da miséria que os americanos experimentam alienadamente e a altos custos mundiais. O radicalismo terrorista pode ser condenado por muitos aspectos, obviamente. No entanto, uma virtude ele carrega: a assunção de que o real não pode e não será ser roteirizado indefinidamente conforme as aspirações burguesas ocidentais.

O ocidente poderia perfeitamente dispensar os terroristas islamitas para encarar seu “american nightmare” como obra sua. As vigorosas ascensões fascista e fundamentalista; a xenofobia explicitada pela crise migratória internacional; a devastação da natureza que o nosso consumismo estrutural produz diariamente; sem dizer, no Brasil, do golpe de estado dado pela corrupta oligarquia financeira e, no México, das atuais mortes e desaparecimentos de professores manifestantes; tudo isso é a nossa realidade/pesadelo, produzida e vivida por nós mesmos, sem máscara ficcional ou estrangeira alguma.

Basta atentar às metralhadoras giratórias intolerantes e reacionárias de Donald Trump, nos EUA, e de Jair Bolsonaro, no Brasil, por exemplo. Ambos os bárbaros-políticos desrespeitam fascistamente a alteridade, e o que é pior, arrecadam para si hordas de indivíduos que compram e levam adiante os seus discursos desumanos, demasiadamente desumanos. E contra tais absurdidades o que temos? Infelizmente, impotentes hashtags e lágrimas virtuais em forma de postagens no Facebook e no Twitter. Trumps e Bolsonaros, agindo barbaramente na vida real, devem adorar a oposição virtual que recebem.

Novamente: chegamos a um ponto crísico onde o “mal” pode ser proposto deslavadamente e assistido passivamente, ou o mundo desde sempre foi essa crise? Fomos atacados por espécie de insetos que nos tornaram mais reacionários e passivos, assim como os personagens de Braindead, ou será que, diferente do seriado, essas formigas caóticas somos nós mesmos? Na ficção americana, isto é, dentro do “american dream”, os humanos são apenas as vítimas do mal, que pode vir tanto em forma alienígena, como muçulmana ou comunista, tanto faz. Fora da ficção, todavia, não há ser externo algum a nos obrigar a produzir e a disseminar o mal que vemos por aí todo o dia. Esse mal, desde sempre, é a própria humanidade em seu caótico devir.

Todavia, para nos alienarmos dessa realidade periclitante, muita ficção. Ou o que é o mesmo, muita mentira para transformar alguns de nós em um “outro” culpado pelos problemas de todos. Aí está o muçulmano, o imigrante, o gay, a mulher, o índio, o negro, o pobre, a esquerda, etc. Todos politicamente roteirizados para representarem os alienígenas problemáticos que descem ao mundo para acordar a elite ocidental do seu delicioso, porém insustentável, “american dream”. Se essa elite acordasse, veria claramente que seu inimigo íntimo é ela própria; o inimigo real que produz seus tantos inimigos ficcionais.

Braindead e suas formigas alienígenas fascistas são apenas mais uma tentativa de, mediante ficção, o ocidente seguir se alienando da verdade cada vez mais tácita, qual seja, que seu maior e mais calamitoso problema é ele mesmo, e não seus outros espetaculares. Em resposta a esse mundo de sonhos, pesadelos reais: terrorismo, crise ambiental, imigrantes clandestinos, miséria, etc. Afinal, a barbárie não desaparece sob os alienantes roteiros hollywoodianos. Como o terrorista islamita de House of Cards disse aos americanos, nós, os seus outros malditos, estamos aqui para não deixá-los esquecer do real.

 

A desafiadora revolução socialista tupiniquim

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Mais uma vez, na história do Brasil, nunca estivemos tão longe da revolução socialista, isto é, do início do fim da exploração da maioria dos indivíduos pela minoria. O mote antissocial da vez, obviamente, é o golpe de estado dado pela oligarquia político-econômica tupiniquim. Antidemocraticamente, medidas reacionárias&austeras estão sendo verticalmente aplicadas contra a população para que a colossal riqueza produzida por ninguém menos que essa mesma população siga sustentando confortavelmente os velhos privilégios das minoritárias classes dominantes.

Será que o povo brasileiro não sabe fazer revolução? Ou será simplesmente porque, conforme diz o historiador, filósofo, sociólogo e economista baiano Edmundo Moniz, “Não há um manual da revolução. A revolução é uma tempestade histórica e as tempestades não se repetem igualmente”? Em uma palavra, o brazuka erra quando tenta revolucionar a sua vil realidade ou não sabe experimentar formas revolucionárias? Ou nem sequer tenta? O que há no “clima” brasileiro que mais facilmente repete os furações reacionários do que precipita a “tempestade” revolucionária de que tanto o povo desse país necessita?

Moniz, corroborando com Marx e Trotsky, entende por “revolução a mudança das estruturas sociais que termina com a exploração do homem pelo homem e cria condições históricas para a passagem da sociedade de classes para a sociedade sem classes”. A teoria marxista, entretanto, baseada na particular evolução histórica do velho continente, enxerga a revolução socialista como um interregno estratégico que procede da escravidão, do feudalismo e do capitalismo, necessariamente nessa ordem, e que precede o comunismo, ou seja, o fim da exploração da maioria pela minoria.

Bela teoria que, não obstante, só não tem como vingar no Brasil porque neste país, que nasceu colônia e que cresceu dependente, as formas econômicas não seguiram a ordem da evolução econômica e social europeia. Usando impertinentemente as palavras de Trotsky, o Brasil é “um amálgama de formas arcaicas e modernas”. Com efeito, temos escravidão, feudalismo e capitalismo convivendo, profunda e desarmoniosamente, na realidade econômica brasileira. Pior ainda, a realidade econômica do Brasil foi construída invertendo-se o processo histórico europeu.

Com efeito, foi o capitalismo, mais evidentemente seu credo econômico mercantilista, que trouxe os portugueses ao Brasil. E uma vez conquistada esta terra, o jovem e vigoroso capitalismo português, anacronicamente, implantou o velho e caduco feudalismo na divisão do território em capitanias e sesmarias, que eram “doadas” a administradores mediante relações pessoais com a realeza portuguesa. E mais anacronicamente ainda, para sustentar seu sistema de relações pessoais, os portugueses encravaram a escravidão no âmago do sistema feudal tropical, em uma tácita inversão do que havia acontecido no velho mundo.

Por isso a revolução socialista tupiniquim não tem como vingar conforme dita o ideário velho-mundista. Se quisermos proceder conforme Marx, são necessárias pelo menos duas revoluções efetivas antes do passo socialista, a feudal, que dá cabo da escravidão, e a capitalista, que por sua vez supera o feudalismo. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), durante muitos anos insistiu nessa lógica, sustentando que primeiro deveríamos superar o feudalismo, depois a democracia burguesa, para só então termos condições históricas para a revolução socialista.

No entanto, dada a particularidade da realidade histórica brasileira, não podemos nos dar ao luxo de priorizarmos uma besta econômica por vez. Lutar frontal e exclusivamente contra o velho e resistente feudalismo, ou contra o maduro e vigoroso capitalismo, separadamente, é dar as costas a um inimigo ou outro. Criticamente, é matar um sistema desigualitário e deixar o terreno livre para o outro. Sinuca de bico! Por isso, na Brasilândia, o fim da exploração das massas pelas elites significa lutar simultânea e frontalmente contra um inimigo múltiplo: a escravidão, o feudalismo e o capitalismo.

Para fazer a revolução socialista no Brasil em um único movimento, temos de esquecer a clássica racionalização estrangeira e inventar formas revolucionárias totalmente nossas, que tenham capacidade para superar de uma só vez os muitos passados e vícios que insistem no mui viciado presente brasileiro, e que impedem a virtuose de um futuro igualitário. Como, então, será possível a revolução socialista no Brasil?

Para, Moniz, isso é possível somente com a organização de um verdadeiro partido de massas, de uma vanguarda consciente que esteja disposta a preparar o povo para a República Democrática Socialista. Entretanto, porventura temos no Brasil um partido que represente plenamente os interesses da maioria explorada? Um partido que assuma a vanguarda das transformações sociais? Infelizmente não.

O PCB, embora dono do melhor ideário, está distante léguas de ter oportunidade de ser pragmático. O pragmatismo do Partido dos Trabalhadores (PT), aventurado nos últimos 13 anos, está longe de ser ideal, visto que engordou tanto as feras exploradoras como as presas exploradas.  Em uma palavra, tornou o lobo mais forte e as lebres mais suculentas. Não temos, no Brasil, portanto, partido ou vanguarda capaz de iniciar a revolução, pois não há força política organizada para efetivamente socializar a terra, os meios de produção, os bancos, a mídia; para romper o monopólio do comércio exterior e implantar a planificação da economia nacional.

Enquanto isso, carentes de um pensamento organizado e vanguardista o suficiente capaz de mobilizar as massas no sentido da prática revolucionária efetiva, e sob as vis égides do desenvolvimento e do crescimento econômico, as velhas estruturas exploratórias dominam o país. E o atual golpe de estado brasileiro é o que senão a dominação do passado sobre o presente? Com efeito, a oligarquia política brasileira ainda encontra terreno livre para, mediante o seu atual golpe, representar os interesses do capital internacional por meio do endividamento do povo local.

Por acaso a atual elite golpista não está repetindo o famigerado “milagre brasileiro” da década de 1970, quando, em nome do desenvolvimento, o Brasil tomou emprestado e enfiou goela-abaixo do povo mais de cem bilhões de dólares? Devíamos três bilhões de dólares em 1964, antes do golpe militar. Duas décadas depois, devíamos cem vezes mais, e em dólares inflacionários! Eis a força reacionária atuando livremente no espaço social que o pensamento e a ação revolucionários ainda não ocupam contundentemente. E como não há força organizada para acabar com a crise, a velha estrutura oligárquica segue administrando o Brasil, sua desigualdade estrutural,  e a crise econômica que, em essência, lhe favorece exclusivamente.

Entretanto, para Moniz, o Brasil tem condições econômicas e materiais para o socialismo. Só não tem ainda condições políticas para tal, pois falta-nos um partido verdadeiramente popular que possa assumir o papel de vanguarda, instituindo conscientemente a república democrática socialista. Esse é o grande impasse do Brasil. Enquanto isso, a oligarquia nacional não resolve as crises social política e econômica do país precisamente porque tais crises lhe engordam e fortalecem.

Uma vez que a prática é o cerne de qualquer revolução, não basta apenas uma ideia revolucionária, por mais perfeita que seja. Aí devemos dispensar, senão toda a teoria marxista, ao menos a parte que não coincide com a evolução histórica brasileira. Do velho mundo, contudo, devemos manter a ideia de que é preciso de uma vanguarda política revolucionária capaz de motivar o povo a finalmente impor seus interesses sobre os das classes dominantes. Aí teremos iniciado a verdadeira revolução socialista, e não só pensado nela. Para tanto, relembra-nos Moniz, é preciso que a teoria coincida com a prática e a prática confirme a teoria”.

Todavia, como dito antes, no Brasil formas econômicas e políticas arcaicas e modernas coexistem desde sua colonização até hoje. Numa metáfora de Trotsky, “os selvagens passaram da flecha ao fuzil de um golpe, sem percorrer o caminho que separa no passado estas duas armas”. Ou seja, os colonizadores portugueses na américa não começaram a história pelo princípio”. Coincidir prática e teoria em terras tupiniquins, portanto, é um desafio sui generis que não pode se pautar por ideários e experiências extrínsecos. Nossas teoria e prática revolucionárias devem ser outras que as do velho mundo, pois a nossa história é outra, muito embora historicamente explorada por aquelas.

Do contrário, em outra metáfora, estaríamos obrigando o índio, nu e oprimido, a usar ou um uniforme soviete, ou a cartola da velha e distante intelectualidade europeia. Ou seja, estaríamos representando uma revolução muito mais do que a praticando. E isso porque, segundo Moniz, “ a essencialidade da revolução encontra-se no conteúdo revolucionário de sua própria essencialidade”. A verdade e a efetividade da revolução socialista tupiniquim, por conseguinte, está na essência da realidade histórica brasileira: a coexistência anacrônica de escravidão, feudalismo e capitalismo em função dos interesses das classes dominantes.

No Brasil, todos esses inimigos históricos do povo devem ser superados de um só golpe. Passo bem maior e hercúleo do que o que Marx profetizou há quase um século e meio para a implantação do socialismo contra um único algoz, o capitalismo. Respeitando-se a essência do que se deu historicamente no Brasil é que encontraremos uma teoria, isto é, um pensamento que ponha as massas a praticar a defesa inarredável dos seus interesses, e em detrimento das velhas elites golpistas, que até hoje roubam a realidade para si. E quando essa teoria de vanguarda coincidir com a prática cotidiana do povo brasileiro, a angusta luta por igualdade será uma coloquial igualdade, não mais na luta, mas na existência.

Uma verdadeira ponte para o futuro

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Diante da atual divulgação de alguns dos muitos e velhos esquemas de corrupção entre o Estado e as grandes empreiteiras tupiniquins, que outra coisa não são senão a estrutura criminosa instituída para distribuir propinas astronômicas –leia-se o dinheiro do povo – a uma porção de políticos e empresários não menos corrompidos, fica cada vez mais difícil engolir a mentira de que o Estado está aí para servir o povo. Aliás, o que vemos hoje com o golpe de estado dado pelo PMDB e pelo PSDB é justamente a proteção e a manutenção espetacular dessa estrutura político-econômica corrompida.

E os golpistas ainda têm a desfaçatez de chamar o golpe que deram na democracia brasileira de “Ponte para o futuro”. Só mesmo muita alienação para não ver que essa “ponte”, na verdade, é um tobogã oligárquico, imposto de modo antidemocrático, para retrazer sistematicamente os vícios do passado ao presente, uma vez que o passado viciado é precisamente o espaço de mobilidade excelente das oligarquias.

Entretanto, nem tudo está perdido. O povo, esse corpo manipulado e vilipendiado pelo Estado e sua corja corrupta, deu um belo exemplo de como a realidade pode funcionar melhor sem a intervenção e a exploração estatais. No Rio de Janeiro, mais especificamente na cidade de Barra Mansa, a população não só idealizou, como também realizou o que devemos chamar de uma verdadeira Ponte para o futuro.

Os moradores barra-mensenses dos bairros de São Luiz e Nova Esperança, há duas décadas solicitando a construção de uma ponte que ligasse os dois bairros, sem no entanto serem atendidos, juntaram dinheiro eles mesmos para que sua ponte finalmente fosse erguida. A imagem que ilustra este texto é a da ponte em questão. Mas o que é realmente impressionante nesse ato popular é que a estrutura, que de acordo com o Estado custaria R$270 mil, nas mãos do povo saiu pela bagatela de R$5 mil.

Importantíssimo aqui é frisar que o custo da ponte orçada pelo Estado ficaria 5.400% mais cara do que a realizada pelos moradores de Barra Mansa. E esse astronômico superfaturamento estatal outra coisa não diz do custo, ao povo, que é a manutenção do velho esquema corrupto entre Estado e empreiteiras. No exemplo fluminense, se a ponte real custou 5 mil, temos que, dos 270 mil orçados pelo Estado, 265 mil servem apenas a interesses não populares. Não precisaríamos nem das atuais crises econômica e política para lançar a seguinte pergunta: não viveríamos melhor sem a descarada exploração do Estado?

Não podemos deixar de lembrar da ciclovia carioca que se projetava sobre o mar da praia de São Conrado e que recentemente desabou, pasmem, três meses depois de sua inauguração. A estrutura em forma de ponte, mesmo tendo custado ao povo R$44 milhões, não atendeu à população. Muito pelo contrário, dois dos cidadãos que pagaram por ela morreram na tragédia. E aplicando o superfaturamento estatal da ponte de Barra Mansa à ciclovia da capital, o custo real da estrutura estaria por volta de 800 mil. O que significaria que mais de 43 milhões seriam tirados do povo para engordar os bolsos oligárquicos de meia dúzia de políticos e empreiteiros.

Só que o caso da ciclovia carioca é mais cruel justamente porque não se trata apenas de superfaturamento, mas de um roubo de estado cuja cereja-podre-do-bolo foi um duplo assassinato. Os moradores barra-mansenses, nas mãos do Estado, ficaram vinte anos sem poder atravessar o córrego que separa os dois bairros. Já os cidadãos cariocas mortos no desabamento da ciclovia, esse nada mais tem a esperar nem receber do Estado. E não é demais dizer que o partido político que administra tanto a capital quanto o Estado do Rio de Janeiro é o mesmo do golpe de estado brasileiro: o PMDB

E é esse o tipo de ponte que os golpistas da “Ponte para o futuro” ou não dão à população -o caso de Barra Mansa -, ou, se dão, o fazem da pior maneira possível –o caso da ciclovia carioca -, isto é, embolsando criminosamente 98% do valor total, jogando no lixo os 2% reais usados na sua construção, e ainda por cima colocando as vidas dos que pagaram pelo montante superfaturado em risco. Novamente, para que precisamos de um Estado como esse?

Contra os crimes e a ineficiência do Estado na administração dos interesses do povo, temos, por exemplo, o Orçamento Participativo (OP), mecanismo governamental de democracia participativa que permite aos cidadãos influenciar ou decidir sobre os orçamentos públicos, retirando-se assim o poder de uma elite burocrática e repassando-o diretamente para a sociedade. Política virtuosa, o OP foi adotado por várias cidades brasileiras. Sua origem, porém, foi em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 1983, com o prefeito Bernardo de Souza, paradoxalmente também do PMDB -que eu tive o estranho prazer de conhecer pessoalmente apenas no seu enterro, em 2010.

Entretanto, a cada vez mais evidenciada corrupção da estrutura política brasileira talvez exija um passo popular mais drástico que o OP. Em vez de a população decidir a partir dos orçamentos estabelecidos pelo Estado, todos tacitamente superfaturados pela ganância oligárquica, melhor seria se cada indivíduo não mais deixasse a riqueza que produz sob administração a priori do Estado para só a posteriori decidir, junto com seus pares, o que fazer com essa riqueza. Algo como não esperar ser assaltado para só então solicitar justiça e ressarcimento, mas, de princípio, não dar o ouro ao ladrão.

Anarquia? Do ponto de vista do Estado, certamente. Mas não nos esqueçamos do que disse Marx, que o Estado moderno não é senão um comitê administrativo dos negócios da classe burguesa. Da perspectiva do povo, o fim do Estado, ou o que é o mesmo, o fim da ditadura das elites, seria a oportunidade de a população gerir-se a si mesma, sem precisar da estrutura política, corrompidíssima, que está em pé unicamente para defender os interesses de um minoria historicamente favorecida.

A ponte barra-mansense porventura não é um monumento anárquico? Em parte sim, mas não totalmente, afinal, aqueles cidadãos ainda seguem pagando os não menos superfaturados impostos cobrados pelo Estado para, entre outras explorações, deixá-los duas décadas sem a ponte de que tanto careciam. Se não mais alimentassem o Estado usurpador com a riqueza que produzem coletiva e cotidianamente, e usassem-na eles mesmos na resolução de suas necessidades imediatas, suas vidas seriam mais prontamente e menos superfaturadamente beneficiadas.

Anarquia virtuosa é o desabamento, não das pontes populares obviamente, como a barra-mansense, que se mostrou mais viável, sólida e barata dos que as produzidas pelo Estado, mas das velhas e oligárquicas “Pontes para o futuro” estatais, que não se levantam contra o povo somente durante os golpes de estado, como o atual  brasileiro, mas, muito mais perniciosamente, no dia-a-dia dessa besta burguesa e corrupta que é o Estado em si mesmo.

 

Servidão informacional e a cifra de sua revolução

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A informação na contemporaneidade tem seus céu e inferno na falta de limites. Em primeiro lugar, devido à tecnologia computacional e ao advento da internet que, juntos, permitem que se produza, divulgue e acesse montantes astronômicos de informação, à distância de um clique, bastando apenas uma conexão com a World Wide Web, isto é, a rede. O céu informacional contemporâneo é justamente a democratização da informação aberta pelo mundo da internet. O inferno, em contrapartida, é que tamanha abertura permite que ideologias totalizantes se valham dessa aventurosa horizontalidade democrática para alcançar, ao mesmo tempo e contundentemente, indivíduos do mundo inteiro. Uma boa metáfora para isso é o soldado que, no campo de batalha e de posse de uma metralhadora giratória potentíssima, tem poder para atingir todos a sua volta. Dessa metáfora devemos guardar que, dependendo da munição que é disparada pela potencialidade da comunicação na contemporaneidade internética, podemos conquistar a tão necessária liberdade tanto quanto sermos sujeitados verticalmente à servidão informacional.

Em A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade, Manuel Castells discorre sobre essa ambiguidade inerente às tecnologias da Era da Informação. De um lado, tratando do ideal de liberdade na democratização da informação. De outro, falando do atravessamento de tecnologias de controle -comerciais e governamentais- no sentido vigiar, investigar e identificar todos os terminais envolvidos nessa interconexão democrática. A Galáxia da Internet do sociólogo espanhol refere-se a A Galáxia de Gutenberg, obra em que Herbert Marshall McLuhan, um destacado educador, intelectual, filósofo e teórico da comunicação canadense, conhecido por vislumbrar a Internet quase trinta anos antes de ser inventada, responsável pela célebre máxima: “o meio é a mensagem”. McLuhan dizia que a prensa, na verdade a imprensa, revolucionou o mundo e a comunicação. Castells, por sua vez, e mediante sua referência ao pensamento do canadense, pretende apontar que a Internet é a nova prensa, a nova forma da revolução informacional na contemporaneidade.

Para tanto, Castells investe na análise das interações entre Internet, economia e sociedade que revolucionaram o velho conceito inerente às sociedades, qual seja, a vida em rede. Para o sociólogo, a Internet tem o poder de transformar o conceito de rede, essa antiga e essencial ferramenta de organização humana, seja em um modelo centralizado, vertical e de controle, seja em uma plataforma descentralizada, horizontal e flexível. A ambiguidade da internet e da informabilia que a constitui é tácita ao percebermos que, em rede, tanto se pode manipular as massas –e portanto e a priori cada indivíduo- com doses certeiras de informação a serviço do reacionarismo, quanto abrir um horizonte no qual os indivíduos/usuários podem revolucionar inclusive a proposta inicial em função da qual a própria internet foi criada.

Castells aponta que a livre troca de arquivos tipo MP3 e MP4, que aliena as grandes indústrias fonográfica e cinematográfica da produção, da distribuição e do consumo maciço de música e filmes; a panfletagem política e contracultural ilimitada; bem como a ágora de cultura e de entretenimento que se abre com a proliferação de revistas e jogos on-line, são provas de que os usuários podem fazer da rede -que não existe sem eles- algo que lhes convenha absolutamente. No entanto, é preciso apenas observar, quiçá vencer os poderes totalizantes que ao mesmo tempo e mediante a mesma rede tentam fazer dessa intercomunicação assaz democratizada e de todos os seus terminais/usuários massa de manobra subserviente aos seus interesses.

Em relação a esse inimigo a ser vencido, que com todos os bits tenta fazer da democratização da informação uma ferramenta tirânica sua, vale trazer à discussão a análise que o filósofo Gilles Deleuze fez da diferenciação foulcaultiana entre as sociedades disciplinares e as de controle, ambas tentativas de alcançar os indivíduos que compõe a sociedade. Conforme Deleuze em POST-SCRIPTUM – sobre as sociedades de controle, Foucault situa as sociedades disciplinares desde os séculos XVIII e XIX, cujo apogeu, entretanto, se deu no início do século XX. O que é importante saber dessas sociedades disciplinares é que nelas os indivíduos não cessam de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis inexpugnáveis: a família, escola, a caserna, a fábrica, o hospital, a prisão, e assim por diante. Disciplinados&Confinados, desde a maternidade até o cemitério seria o slogan perfeito para esse tipo de sociedade.

Porém, ressaltam os dois filósofos franceses, a partir do início do século XX, o mundo observa a crise generalizada de todos os meios de confinamento. Em outras palavras, a prisão, a fábrica, a escola, e até mesmo a família passaram a ser “espaços” cujo confinamento, no entanto, viabilizava não a disciplina, mas o seu contraexercício. Esses claustros disciplinares passaram a se comportar como bunkers de resistência que permitiam o exercício da indisciplinaridade. Aqui, basta imaginar um sujeito conectado ao mundo pelo seu smartphone  dentro de um desses espaços das sociedades disciplinares. Como seria controlado se, de fato, ele não está ali, ainda que virtualmente fora dali? A crise das instituições disciplinares tradicionais, portanto, deveria ser superada pela implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. E para Foucault as sociedades de controle foram instituídas para evitar que os indivíduos gozassem plenamente de liberdade. Com efeito, coloca Deleuze, as sociedades de controle substituíram as sociedades disciplinares. Para o filósofo, Foucault identifica o futuro à formas ultrarápidas de controle, não mais claustronômicas, mas agorísticas, capazes de se darem ao ar livre, e por que não dizer wireless, em substituição à antiga disciplinaridade que operava mediante sistemas materiais e fechados.

Com Deleuze podemos perceber que a cada uma destas duas sociedades –a disciplinar e a controladora- corresponde certos tipos de ferramental, instrumento, aparato, maquinário para cumprir seus fins. Não que as máquinas, os aparatos em si mesmos, sejam determinantes, aponta o francês, mas porque são as expressões genuínas das formas sociais capazes de lhes dar nascimento e utilizá-los. A disciplina e o controle são a priori ideológicos. Todavia, imediatamente maquínicos.

As antigas sociedades aplicavam suas soberanias mediante máquinas simples movidas a alavancas, roldanas, cordas. A forca e a espada, em suma, o cadafalso espetacular dos príncipes, bem evidenciado por Foucault em Vigiar e Punir, são exemplos dessa simplicidade instrumental, todavia eficientíssima, nas mãos do poder totalizante. Já as sociedades disciplinares que as sucederam exerciam soberania através de equipamentos menos espetaculares, outrossim suficientemente eficientes,  como a rígida organização dos espaços nos quais os indivíduos todos passavam as suas vidas. Aqui temos o panopticismo disfarçado de escola, de prisão, de igreja e até mesmo de família: equipamentos que tiraram os indivíduos da inobservância pré-punitiva da Era Cadafálsica Principesca para então alocá-los em um sistema de vigilância disciplinar indoor cujo Calcanhar de Aquiles, entretanto, era o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem.

Daí a crise das sociedades de vigilância disciplinar da qual falam os filósofos, e a qual gerou a necessidade que uma nova forma de dominação coletiva: a sociedade de controle. Com efeito, as sociedades de controle se valem de máquinas de uma terceira espécie: máquinas de informática; computadores; a rede em si; cujos calcanhares de fragilidade, todavia, são dois. Passivo: a interferência constante e o registro a priori de todas as atividades -virtuais e reais- dos indivíduos/usuários, o que os vulneralibiliza para qualquer observância e punição a posteriori. E ativo: a pirataria, a introdução de vírus e o hackeamento intempestivo.

Aqui é preciso colocar que a ação das sociedades de controle sobre os indivíduos que a compõem se dá de modo mais efetivo do que nas sociedades disciplinares, e mais ainda que nas punitivas-cadafálsicas, porque o maquinário, o aparato totalizante-controlador é mais obscuro aos terminais individuais. Paradoxalmente, mais obscuros e mais transparentes ao mesmo tempo. Cordas, roldanas, espadas, salas de aula, celas prisionais e torres de vigilância são estruturas de fácil visualização e compreensão. De inimigos físicos/corpóreos podemos fugir mais facilmente. Já de um algoz que virtualiza-se e age mediante trincheira informacionais apenas, fica bem mais difícil escapar, quiçá reconhecê-lo. Ainda mais em uma sociedade para a qual a informação é a um só tempo o chão físico e o éter metafísico que o encima. Eis a contemporaneidade.

Para dar corpo a essa invisibilidade estratégica dos aparatos totalizadores da sociedade de controle é de muita ajuda transcorrer as ideias que Vilén Flusser traz na sua obra Filosofia da caixa preta. Nesta obra temos a análise da informação em forma de imagem, exemplificada centralmente com a fotografia, cuja ideia chave, entretanto, é a da imagem técnica –em contraposição à imagem artística-artesanal-, e cujo aparato é a máquina fotográfica, instrumento que, mesmo desconhecida a sua maquinagem, gera o real que consumimos –imageticamente. Para Flusser, até mesmo o fotógrafo, que domina o aparelho –a máquina fotográfica- na verdade conhece apenas o input e o output dessa caixa preta. Resultado: tanto os produtores quanto os consumidores desse mundo imagem técnica desconhecem o que se passa no interior da caixa preta, do aparato, da máquina central da sociedade de controle contemporânea.

Embora Flusser ressalte que as imagens são mediações entre homem e o mundo, com o propósito de representar esse mundo, as imagens técnicas –produzidas pelas caixas pretas- são janelas e não imagens. O observador-usuário, em vez de enxergar nas imagens técnicas as janelas imagéticas que denotam o aparato misterioso que as produz, bem como as suas pretensões totalizantes, em vez disso trata o real enquanto aquilo que seus olhos veem apenas, como se o que é visto fosse a realidade última, e não o sistema social de controle agindo através dessas imagens. As imagens técnicas, a qualidade e democratização que elas envolvem, têm o poder de fazê-las passar pelo real ele mesmo, fazendo-nos esquecer de que são apenas aparelhos ideológicos fortíssimos. Por isso, salienta o filósofo, “o que vemos ao contemplar as imagens técnicas não é ‘o mundo’, mas determinados conceitos relativos ao mundo”, conceitos esses já ideologizados, instrumentalizados para manter todos os que o observam imageticamente sob controle total; caixapretificados.

Flusser é categórico ao afirmar que a tarefa primordial das imagens técnicas é estabelecer o código geral que reunifique a cultura, que arranque os objetos da natureza e os aproxime dos homens. No entanto, mediante imagens técnicas produzidas por caixas pretas, essa aproximação significa a modificação estratégica de tais objetos. A ponto de, diz o filósofo, a fotografia passar a ser a realidade ela mesma. A um só tempo a desobjetificação dos objetos e a estratégica objetificação de significações que servem ao sistema de controle social. Ademais, tal inversão do vetor da significação caracteriza o mundo pós-industrial, arremata o autor tcheco.

E se na contemporaneidade é a fotografia do real o real ele mesmo, temos que, fiéis a Flusser, a decadência do objeto é a emergência da informação acerca dele. Pragmaticamente: pensamos e vivemos como as imagens técnicas –produzidas sabe-se lá como e por quem. As imagens técnicas pensam por nós; vivem em nós; são o mundo no qual vivemos. Resultado: somos vítimas da caixapretice aparelhística produtora de símbolos de controle. Mas, o filósofo não nos deixa esquecer: “a aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas quanto o são todas as imagens”. Dessimbolizá-las, reificá-las, decifrá-las, portanto, é reconstituir o real que tais imagens significam verdadeiramente. Esse real a ser decifrado, porém, é muito menos os objetos em si que as imagens técnicas representam do que a ideologia de controle por trás dessas representações técnicas do real, justamente o que permanece caixapretificado.

Em um mundo no qual o próprio real outra coisa não é senão as imagens técnicas que o traduzem e reportam massivamente, o real a ser dessimbolizado é justamente a intencionalidade oculta na eleição dos objetos que vivem nas imagens técnicas –que, de um ponto de vista marxista, é o velho fetiche da mercadoria-; os enquadramentos desses objetos nessas imagens técnicas –os rígidos pontos-de-vista que esse fetichismo imagético do real impõe-; e sobretudo a reprodução ao infinito e a distribuição em rede desses produtos técnicos ideologizados e essencialmente caixapretificados. “Toda crítica da imagem técnica deve visar o branqueamento dessa caixa”, indica Flusser.

Para relacionar Flusser à Castells sem muita delonga, uma importante colocação do primeiro: “programaticamente, aparelhisticamente, imageticamente … estamos pensando do modo pelo qual ‘pensam’ os computadores”. E para não deixar Deleuze e Foucault de fora dessa relação, cabe dizer que pensamos e vivemos conforme a nova noção de rede porque a sociedade de controle precisa que assim seja. Aqui vale apontar o alinhamento entre o tcheco e os dois franceses. Se para aquele “a cultura da Internet é a cultura de seus criadores”, é porque, para estes, a internet é o corpo que controla as sociedades contemporâneas. A rede informacional contemporânea, portanto, seria a própria sociedade de controle em forma de realidade, em forma de mundo, de imagem técnica indecifrabilíssima. A caixa-preta-mor, diga-se de passagem. Ou, dizendo melhor com as palavras de Flusser, “complexo de aparelhos, de caixa preta composta de caixas pretas”.

Agora, se, como colocou o pensador tcheco, a tarefa da filosofia da fotografia é apontar o caminho da liberdade em relação às imagens técnicas e à caixapretice do real ideologicamente imageticizado, pois, para Flusser, essa filosofia é a única revolução ainda possível -e urgentíssima!-, podemos dizer, em uma paráfrase, que a tarefa da filosofia da informação é fazer o mesmo, isto é: apontar o caminho da liberdade em relação à caixapretificação da produção e da distribuição da informação, outrossim produto ideológico das sociedades de controle, pois, para essa filosofia da informação, esse é o único movimento verdadeiramente revolucionário, e não mesmos urgente. Como, então, baseados na teoria de Flusser e nos apontamentos de Castells, Deleuze e Foucault, tal filosofia revolucionária é possível, ademais a partir de dentro da sociedade de controle informacional?

A primeira coisa a atentar é que, seguindo a ideia de Flusser, é o homem, e somente ele que pode produzir informação, bem como transmiti-la e guardá-la. E se são os próprios homens que são vitimados pela informação mediada pela sociedade de controle, é porque eles mesmos oferecem munição ao seu algoz. Assim como disse Étienne de La Boétie, qual seja, que os mil olhos e mil braços do tirano não são instrumentos que de fato sejam dele, visto que ele é um homem como qualquer outro, com dois olhos e dois braços apenas, mas são os mil braços e mil olhos dos que são tiranizados por ele, sequer é necessário os tiranizados irem até o forte do tirano para matá-lo. Basta que não mais doem seus braços e olhos, afinal, a arma com a qual a sociedade de controle nos mantém cativos dos seus desígnios e aparelhos, isto é, a informação, é produzida por nós, homens. Somos nós que produzimos as condições para a nossa própria servidão informacional: a informação, os aparelhos e as imagens técnicas com os quais somos subjugados.

Castells, entretanto, nos diz que as novas formas de interação social na Era da Internet têm poder para substituir as comunidades estabelecidas estrategicamente pelas sociedades de controle por comunidades baseadas em afinidades alheias a desígnios ideológicos extrínsecos. Cabe aqui trazer o anarquismo impertinente de Hakim Bey que constitui o seu conceito de TAZ (zona autônoma temporária). Mesmo que a sociedade de controle informacional seja A Zona de Dominação Absoluta na contemporaneidade, dentro dela essas redes sociais baseadas em afinidades alheias a desígnios ideológicos extrínsecos podem funcionar como  TAZes, dentro do inimigo. Senão matando-o, ao menos reduzindo, ainda que efemeramente, sua onipotência.

Para tanto, aponta Castells, é fundamental que a arquitetura de interconexões seja ilimitada, descentralizada, distribuída e multidirecional em sua interatividade; que todos os protocolos de comunicação e suas implementações sejam abertos, distribuídos e suscetíveis de modificação. Claro, não devemos esperar que a própria sociedade de controle faça isso pelos controlados. São estes que, anárquica e coletivamente, devem abrir suas TAZes informacionais impertinentes no cerne da TAZ Totalitária. Afinal, onde há uma zona autônoma, ainda que temporária, na qual a sociedade de controle informacional não pode nem sacar nem incutir informações, tampouco verificar as que estão sendo trocadas lá, há o enfraquecimento do sistema de controle da sociedade contemporânea. Fundamental todavia, é que essa máquina, esse aparato, esse instrumento revolucionário que é a TAZ seja tão caixapretificada à sociedade de controle quanto essa mesma sociedade o é para os indivíduos que ela, por sua vez, controla opacamente. Usar a arma do inimigo contra ele mesmo! Esse é o passo mais econômico para a revolução.

Nesse sentido, o que podemos tirar de Castells é a proposta de redefinição do conceito de comunidade, baseada não mais nos ordenamentos ditados pelos sistemas de controle, mas no apoio aos próprios indivíduos tiranizados por tal ditadura e aos laços informacionais que eles podem travar entre si, a despeito da sociedade de controle que primeiramente os uniu/enclausurou inexoravelmente em torno da informação com o propósito exclusivo de controlá-los. Para o espanhol, o novo padrão de sociabilidade deve ser caracterizado pelo paradoxal individualismo em rede. Esta deve ser a nova forma dominante de sociabilidade contra a dominação das sociedades de controle informacionais. Para o autor, essa revolução pode se dar mediante a cooperação entre leis, tribunais, opinião pública, mídia, responsabilidade coorporativa, agências políticas, e, sobretudo, a partir da restauração da confiança recíproca entre os próprios indivíduos e, universalmente, entre os povos e seus governos. E para Castells isso é possível porque dependem exclusivamente da ação humana.

Deleuze reforça essa revolução dizendo que não devemos desistir porque estamos diante de uma sociedade –de controle- mais opaca que outras –a disciplinar, por exemplo. O francês coloca que em cada uma delas se pode enfrentar as sujeições e construir a liberdade. Portanto, nas palavras de Deleuze, “não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”.

Que armas, todavia, são essas? Ora, se as sociedades disciplinares se estruturavam na assinatura e na localização do indivíduo em uma massa, e nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura nem um número, mas uma cifra, isto é, uma senha, nossas armas contra o controle informacional é, retrazendo Bey à discussão, estabelecermos TAZes cifradas que possibilitem o acesso dos indivíduos anarquistas informacionais à informação que eles criam e que habitam suas TAZes. Contudo, mais importante de tudo, que rejeitem, que vetem, que cifrem o acesso do controle externo sempre que ele tentar adentrá-las. Se nas sociedades de controle das quais queremos nos ver livres os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, nas sociedades revolucionadas pós-controle as TAZes informacionais devem ser indivisíveis, porque caixapfetificadas estrategicamente àqueles que querem tirar delas apenas amostras para dadificá-las. Por quê? Por que dentro da TAZ, assim como dentro da sociedade, é a vida que habita, e é ela que importa e que não pode ser reduzida. Aqui é fundamental saber o que realmente importa e o que é primeiro no conceito “vida em rede”. Vida, obviamente.

Para concluir, a revolução das sociedades de controle começa pela percepção de que, nas palavras de Flusser, “o que vale não é determinado ponto de vista, mas um número máximo de pontos de vista”. Como então instituir essa plurivocidade de perspectivas no cerne das monológicas sociedades de controle? Fixando-nos na metáfora da fotografia que perpassa a Filosofia da caixa preta, contra essa sociedades de controle foucaultianas,  que outra coisa não querem senão fazer do real propriedade sua, a frase do pensador tcheco: “a distribuição da fotografia ilustra, pois, a decadência do conceito propriedade”. Afinal, ainda nas palavras do autor, “a práxis fotográfica é contrária a toda ideologia; ideologia é agarrar-se a um único ponto de vista, e o fotógrafo age pós ideologicamente”, ou seja, para além da ideologia que o quer controlar. Em suma, quanto mais houver indivíduos fotografando, tanto mais o sistema que quer dominá-lo será incapaz de decifrar o mundo de fotografias que eles produzem para si.

Se, como disse Flusser, “fotografias nos cercam”, porém, “toda fotografia individual é uma pedrinha de mosaico”, a Big Picture da realidade outra coisa não deve ser além do resultado mosaico das fotografias do real que cada indivíduo faz. Todavia, se essas imagens-informações que somente nós, homens, trazemos ao mundo, com as quais aliás as sociedades de controle nos dominam, não forem cifradas à essa mesma sociedade tirânica, ela fará, obviamente, com que o real seja ou o recorte, ou a rediagramação desse material que imanentemente produzimos.

Hipostasiando  o que disse La Boétie, que os mil braços e mil olhos do tirano são os braços e olhos dos seus mil súditos, com Flusser podemos dizer que as mil imagens técnicas do sistema de dominação são as mil imagens individuais de cada um dos dominados; com Castells, que os  mil nós da Galáxia da Internet Total são os mil usuários/terminais dessa mesma rede internética; e, por fim, com Deleuze e Foucault, que as mil informações com as quais as sociedades de controle subjugam seus mil controlados são as informações produzidas, mais ainda, encarnadas, imanentemente, por esse mil controlados. Basta, portanto, atendendo ao conselho de La Boétie: não darmos ao tirano nossos braços e olhos, melhor dizendo, nossos nós na rede da internet, nossas imagens individuais, nossas informações. Em uma palavra, devemos cifrar-nos contra os sistemas que tentam nos controlar. Já entre os “anarquistas” beyanos libertos do controle externo no interior seguro de suas TAZes impertinentes, código aberto e infinito, pois assim deve ser a vida.

Defendendo nossos próprios algozes

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A democracia brasileira foi golpeada. O Estado brasileiro foi furtado. E o que é pior, por um bando de oligarcas corruptos que só fazem desgovernar o país. Apesar do calamitoso desgoverno golpista, o povo, golpeado e furtado, segue trabalhando, pagando suas contas, dando aulas nas escolas e universidades, dirigindo ônibus e metrôs, ou seja, tocando o Brasil. Agora, imaginemos que se não houvesse esse deliberado desgoverno golpista, isto é, se essa corja corrupta que só visa seus interesses opressores e minoritários não estivesse no comando do país, quão melhor seria o Brasil nas mãos dos brasileiros? Indo mais longe, se desinvestíssemos completamente da própria democracia e do Estado, quão menos oprimidos estaríamos?

A população brasileira que reclama por “sua democracia” golpeada e por “seu Estado”  assaltado age mais por ignorância do que por conhecimento do que, em essência, são a democracia e o Estado modernos. Se entendesse que ambas as instituições são instrumentos excelentes e históricos da burguesia e para a burguesia, e intempestivamente deixasse de clamar pela restauração dessa democracia e desse Estado, certamente enfraqueceria os seus algozes no que eles têm de mais estratégico.

Como, por conseguinte, tornar tácito que o Estado, na sociedade capitalista, assegura apenas o lucro e a acumulação do capital nas mãos da burguesia? Como entender definitivamente que a democracia é a forma através da qual todos são convencidos a lutar pelos interesses de uma minoria empoderada? Por que ainda fazermos questão de nos alienar do fato de que a burguesia não é democrática altruisticamente; que somente investe na democracia enquanto lhe é conveniente? Porventura o golpe tupiniquim não deixa isso escancaradamente claro a todos?

Parece que ainda não, visto as defesas da democracia e do Estado cada vez mais presentes nas ruas do Brasil depois do golpe. Entretanto, se déssemos ouvido ao que disse Marx, por exemplo, que o Estado moderno não é senão um comitê administrativo dos negócios da classe burguesa, ou mesmo ao que sugeriu Lenin posteriormente, que, para a burguesia, a democracia é apenas a melhor máscara para a sua sempiterna tirania econômica, certamente não teríamos tantos clamores populares em favor desses opressores Estado e democracia burgueses.

Por que então ainda protestamos massivamente em favor de instituições que outra coisa não fazem senão institucionalizar a exploração da maioria em função dos interesses da minoria? Alienação é a melhor resposta. De que outra forma estaríamos tão eficazmente ignorantes do fato de que Estado significa ditadura; de que a democracia representativa que defendemos é a ditadura da burguesia; de que somos tão subjugados aos interesses burgueses quanto as sociedades feudal e escravocrata eram em relação aos interesses dos nobres e dos escravagistas, respectivamente?

A democracia representativa e o Estado moderno, obras primas da burguesia, servem apenas para administrar a crise permanente que é o capitalismo, sua essência. É necessário muita alienação para não ver que, democraticamente e instituído em Estado, o capitalismo primitivo da livre concorrência cresceu em forma de capitalismo monopolista; para então engordar e se tornar capitalismo monopolista de Estado; e, por fim, hoje em dia, viver em um corpo praticamente invencível chamado capitalismo monopolista de Estado transnacional? Ignorando as verdadeiras essências das instituições burguesas, clamando por democracia e defendendo o Estado, o povo só faz vitaminar o seus atuais opressores: a burguesia e o seu capitalismo.

Como agir diferente? Parece-nos radical demais fazer como os anarquistas, isto é, ser contra a existência do Estado, uma vez que, para eles, o Estado é o instrumento de opressão? E se entendêssemos que o Estado surgiu da divisão da sociedade em classes; que só com a extinção do Estado as pessoas não mais estarão cindidas da riqueza que elas mesmas produzem coletivamente; ser anarquista ainda assim pareceria tão impertinente? Um futuro livre da exploração do homem pelo homem, que deixe tanto os passados escravocrata e feudal quanto o presente capitalista para trás, exige que desinvestamos absolutamente das instituições exploratórias desse nosso presente, quais sejam, a democracia e do Estado. Só assim deixaremos de vez a nossa pré-história social.

Quais são, portanto, as nossas melhores armas contra a exploração do homem pelo o homem que até aqui fez a história da humanidade, e que hoje, nas vestes democráticas e no corpo do Estado, segue firme e forte? Pensar e agir, por certo. Todavia, há que se pensar e agir conjuntamente. Do contrário, sem perceber, não mais pensamos e apenas agimos de acordo com a cartilha dos nossos tiranos alienadores. Aqui é inevitável lembrar do que disse Marx nas suas Teses sobre Feuerbach, que “os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo de diversas formas, mas agora o que importa é transformá-lo”. Como pode o pensamento, melhor dizendo, a teoria, colaborar a prática revolucionária?

“A teoria é seca”, dizia Goethe no seu Fausto. O autor parece querer dizer que o pensamento não pode revolucionar a realidade, muito embora seu pensamento tenha sido inegavelmente revolucionário. Marx, entretanto, na sua Introdução à crítica da filosofia de Hegel, abre todos os caminhos revolucionários ao sustentar que “a teoria se converte em poder material logo que se apossa das massas”. Com efeito, para este filósofo, as massas tem poder de agir contra a exploração do homem pelo homem somente quando teoria e prática atuam em conjunto. Melhor dizendo, quando a teoria coincide com a prática e a prática confirma a teoria.

Por isso, diante do golpe brasileiro e do desgoverno que ele institui, pensar em outro regime que não o democrático e em outro corpo social que não o Estado, uma vez que são instrumentos essencialmente burgueses e opressores, é fundamental. São instituições outras –hoje ainda ideais, mas, oxalá, amanhã reais- que nos trarão a possibilidade de ação coletiva contra a exploração e o assalto que são o Estado e a democracia juntos. O povo brasileiro, que produz toda a riqueza do Brasil, mesmo golpeado e com um bando de ladrões incompetentes no governo, toca diariamente o país. De ação entendemos muito bem. Falta aliar essa ação impávida, colossal e cotidiana a um pensamento que lhe guie virtuosamente contra a opressão. E que pensamento é esse? Que democracia representativa e Estado não devem ser defendidos, mas superados.

Salve-nos quem puder ser culpado no nosso lugar

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A corrupção política brasileira cada vez mais se revela estrutural. Entretanto, em vez de assumirmos imanentemente nossa participação nessa vil realidade, a maioria dos cidadãos ainda prefere iludir-se -não sem a parcialíssima “ajuda” da mídia- de que são apenas determinados indivíduos, de um partido político ou outro, os responsáveis pela corrupção generalizada. Necessitamos desesperadamente de um ou uns culpados espetaculares, para que assim a culpa deles nos aliene do fato de que nós, os cidadãos indignados, somos participantes dessa corrupção estrutural que nos indigna. Em respeito ao grave problema, queremos transcendentalizá-lo a qualquer custo, e pouco importa se através das mentiras midiáticas que com sagacidade elegem de bois-de-piranha estratégicos.

Em contrapartida, quando se trata não do que corrompe a sociedade, mas do que a mantém em pé, isto é, o poder, o povo inteiro não se roga em responsabilizar-se por ele. Tanto que a Constituição brasileira é aberta com o seguinte artigo: “Todo poder emana do povo”. Aí é fácil participar imanentemente da estrutura da sociedade! Agora, se a Carta Magna explicitasse outra verdade, qual seja, que “toda corrupção estrutural também emana do povo”, ou seguiríamos ignorando-a, ou a riscaríamos de vez da Constituição.

Cabe aqui atentar ao que disse o filósofo francês Michel Foucault em Microfísica do Poder, qual seja, que o poder circula, que se exerce em rede, sendo que cada um de nós de certa forma e em certa medida é titular desse poder. Daí podemos concluir que o poder dos políticos corruptos, tanto os que seletivamente sacamos da estrutura corrompida para representante no lugar de todos a corrupção estrutural, quanto os que são “deixados em paz”, mesmo sendo tão ou mais corruptos que aqueles, esse poder é dado a eles por nós, o povo, isto é, a origem da qual todo poder emana. Mesmo que não queiramos assumir que a corrupção dos nossos representantes políticos jaz a priori no próprio povo, ao menos deveríamos aceitar o fato de que o poder com que eles corrompem a sociedade é dado a eles pelo povo mesmo, e no caso brasileiro, democraticamente.

Para entender melhor isso, vale lembrar outro francês, o humanista Étienne de La Boétie. Este filósofo dizia que o poder do tirano, seus mil braços e mil olhos, não são seus, visto que é um homem como qualquer outro, com seus dois braços e dois olhos apenas; mas que estes mil braços e mil olhos são deles somente na medida em que seus mil súditos cedem seus braços e olhos a ele. Moral da história: não precisamos ir até o castelo do tirano para matá-lo e para nos livrarmos dos seus mil braços e mil olhos tirânicos; basta que simplesmente não mais demos os nossos para ele. Afinal, segundo Foucault, não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele apartados”.

Da mesma forma, as mil e uma corrupções que espoliam e envergonham os brasileiros não são exclusividade dos seus representantes políticos corruptos. Eles apenas podem praticá-las descaradamente porque seus mil e um representados, nas suas mil e uma corrupções cotidianas -não solicitar ou não fornecer nota fiscal nas compras e vendas; baixar indevidamente músicas e filmes na internet; beber, dirigir e escapar da Lei Seca; estacionar automóvel em vaga para deficientes etc.- já criam os subterrâneos e a priori alicerces corrompidos sem os quais a evidente e a posteriori estrutura da corrupção não teria como sustentar-se. Aplicando aqui a fórmula boétiana, contra a corrupção estrutural bastaria que o povo não mais desse fundamento à corrupção, isto é, que não mais fosse corrupto na parte da estrutura que lhe cabe?

Alguns podem dizer que, mesmo que o povo seja probo, sempre haverá representantes impertinentes corruptos. Abstratamente isso pode até convencer. Porém, se a abstração a posteriori que é a sociedade só existe por conta dos seus indivíduos concretos e a priori, uma sociedade lisa somete existirá se os indivíduos que a compõem forem lisos em primeiro lugar. Do contrário, se os cidadãos já forem corrompidos, a sociedade só será íntegra mediante a argamassa da alienação, o reboco da mentira, o papel-de-parede da manipulação midiática. O “Brasil para todos” de Michel Temer é o exemplo concreto e atual dessa ruína social corrompidíssima disfarçada de nova “Ponte para o Futuro”: presidente, ministros, senadores, deputados, vereadores, e até mesmo o povo, todos profundamente estruturados na corrupção, no entanto, superficialmente tentando fazerem crer o contrário.

É preciso comprometer o Brasil consigo mesmo em função do fim da corrupção estrutural. Não só os políticos que escolhemos para representantes da corrupção que atravessa de cima a baixo e do passado ao presente a torre brasilis, mas também todos os demais. Tampouco devemos deixar-nos, o próprio povo, de fora desse comprometimento. Em primeiro lugar, mantendo o pedacinho do Brasil que ocupamos livre da erva-daninha da corrupção, pois só assim não nascerá nenhum jatobá corrompido insuportável. Em segundo, recusando-nos a separar o joio do trigo somente de quatro em quatro anos, nas urnas, mas participando direta, cotidiana e intempestivamente no governo do país. E em terceiro e mais importante lugar, nunca gritando: “salve-nos quem puder ser culpado no nosso lugar”; afinal, se algum corrupto é punido no lugar de outro, a corrupção segue tendo lugar cativo dentro sociedade.

O “não” suíço ao Renda Mínima

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Em 5 de junho de 2106, 78% dos suíços disseram não à proposta de renda social mínima e universal –aos suíços, obviamente- de cerca de R$ 9 mil por mês, independentemente de quem trabalha e da riqueza de cada um deles. Uma vez que o país europeu produz três vezes mais do que pode consumir, a distribuição dessa riqueza excedente em forma de renda mínima esteve para se tornar um direito. Pretensamente revolucionário, o porta-voz do movimento Renda Mínima, Che Wagner, perguntava: “Por que não tornar a riqueza acessível a todos?”. Agora, o caráter estritamente local dessa proposta já não esteve desde sempre prenhe de velhos vícios? Ao Che (Gue) Wagner suíço –perdoem-me o trocadilho- não caberia também fazer a seguinte pergunta: por que não tornar a excedente riqueza suíça acessível a todos mesmo, não só a eles, os privilegiados moradores do Estado-Alphaville que ocupa a cobertura da Europa, os Alpes?

A ideia que está por trás do projeto suíço Renda Mínima é a desvinculação entre trabalho e renda. A lógica é a seguinte: uma vez que a contemporânea substituição do trabalho humano por tecnologia automatizada já é uma realidade no país -robôs absorvem cada vez mais trabalho-, seria possível “libertar” as pessoas da obrigação de produzirem elas mesmas as condições materiais de suas subsistências. Em outras palavras, todavia críticas, a renda mínima não seria espécie de universalização de um privilégio que historicamente esteve nas mãos de poucos, isto é, viver de renda? Seguir vivendo, consumindo confortavelmente o que se precisa, sem se preocupar um instante sequer em colaborar com a produção dessa vida e desse consumo confortáveis, não é o que todo burguês deseja para si e para os seus? E gozando de parcos 4% de desemprego, sem carecer sequer de políticas públicas de combate à pobreza, a Suíça esteve em condições de aproivar essa controversa utopia.

Tão controversa que 78% da população foi contrária. Em um mundo vitimado pela crise migratória, a maioria dos já altissimamente privilegiados suíços teve medo de estar dando um tiro no pé. Esse medo já era do próprio governo suíço, que primeiramente já era contrário ao projeto, pois, diziam, o benefício seria pretexto para hordas de “imigrantes indesejados” desejarem viver no país da bonança excedente. Caso a renda mínima tivesse sido aprovada em plebiscito, a Suíça teria um insondado desafio no sentido de reformular seu sistema social, pois a universalização, ainda que local, da cisão entre trabalho e renda, concretamente problemática em um mundo já vitimado pelo abismo entre trabalhadores e rentistas,  traria consequências imprevisíveis ao país, muito embora o restante do mundo já soubesse das cruéis consequências dessa aventura.

Os apólogos da renda mínima afirmavam que com as altas riqueza e tecnologia suíças, essa sociedade poderia aventurar-se em “novos conceitos”. Agora, se olharmos para essa particular conjuntura com olhos histórico-materialistas, nada há de novo no aumento de privilégio aos já privilegiados. A promessa de que a renda mínima traria mais “paz de espírito” aos cidadãos suíços, mais tempo para a família, para os amigos, para serem “criativos”, para tentarem “coisas novas” e não se preocuparem com as suas sobrevivências materiais, tudo isso outra coisa não é que o velho e universal projeto burguês tentando ser socializado a um país inteiro, que, pelo jeito, está obesamente aburguesado.

Felizmente, a maioria dos suíços não comprou a utopia da dispensa do trabalho e de que máquinas trabalhando sozinhas seriam o melhor futuro para o país. Será que se lembraram de que os chips e engrenagens dos robôs que os sustentariam nessa impertinente liberdade em relação ao trabalho seguiriam sendo produzidos por mão-de-obra semiescrava chinesa, a partir de matéria-prima cucaracha extraída da natureza por proletários latino-americanos fortemente explorados, e transportados até eles sabe-se lá por quem em containers padrão que bem os alienariam de todo o vil processo produtivo que antecede essa sua automatização “libertadora”. Paz de espírito e tempo livre para quem, caras pálidas?

Obviamente o Renda Mínima não se tratava de um socialismo. Antes, toda uma população bem abastecida de dinheiro, mesmo sem produzir nada, seria a garantia de que o consumo seguiria firme e forte. E o capitalismo agradeceria sobejamente se essa iniciativa do povo aburguesado do país do queijo e do chocolate tivesse sido democraticamente aprovada. Todavia, se fosse espécie de socialismo, seria o famigerado socialismo de uma só nação de Stalin, e não o socialismo universal de Lênin e Trotsky. E a história está aí para lembrar a todos que o socialismo stalinista teve um preço altíssimo e impagável: custou não só uma miríade de bárbaros fuzilamentos coletivos e a morte da democracia como também e principalmente a inviabilidade da verdadeira libertação da classe operária preconizada pelo socialismo leniniano-trotskyniano.

Resta saber se os ricos&tecnologicizados suíços, ao dizerem não ao renda mínima, recusaram-se a serem burgueses preguiçosos que interrompem as suas “nobres” preocupações sociais, a sua “revolução”, no muro que separa o Alphaville suíço do resto do mundo, ou se isso é somente a sempiterna expressão do velho egoísmo burguês. Seria só o medo do “indesejáveis imigrantes” o coletivo não ao Renda Mínima? Se sim, o que é bem provável em se tratando de humanidade e de capitalismo juntos, a grande riqueza deles, que excede três vezes o que precisam, não se reflete em mais humanidade. Mas isso não deveria nos espantar.

Não deve restar dúvida de que o “não” plebiscitário suíço à renda mínima que, segundo muitos, já possibilitaria aos cidadãos desse país viverem bem sem terem de trabalhar, não foi dito para que os excedentes privilégios alpinos fossem compartilhados com a parte do mundo que tem muito menos do que precisa. E que tem muito menos justamente por conta de um sistema global que explora aqui (na América Latina, na Ásia, na África) para fazer sobrar ali (na Suíça –mas não só nesse país). Embora “paz de espírito”, “liberdade” e “tempo disponível para ser criativo” sejam ideais que o mundo precisa um dia ter universalizados, vaticinados por ninguém menos que Marx, o não suíço à sua aplicação local foi mais forte. Os trabalhadores do resto do mundo agradecem.

Obviamente, a utopia da liberdade absoluta em relação à subsistência material é desejabilíssima. Não obstante, não quer dizer que não tenha sido teorizada e tentada ao longo da história. Porém, só seria válida desde que essa ilha libertária fosse possível a todos, e não só aos moradores de um condomínio burguês que se confunde com um país. Caso contrário, estamos falando apenas da velha distopia capitalista na sua melhor e mais cruel forma. O lema comunista popularizado por Marx, qual seja, “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, talvez tenha encontrado a sua maior perversão capitalista na propaganda do projeto Renda Mínima suíço, cujo objetivo anunciado era dar a todos (que todos, cara pálida?) uma “vida digna”, baseada na “liberdade de fazer as próprias escolhas”, para que só então “a vida fizesse sentido”. Até parece que a bonança econômica permitiu à sociedade suíça descobrir o metafísico e enigmático “sentido da vida”.

Teria sido muito digno da parte dos suíços apólogos do renda mínima que tivessem esclarecido aos seus concidadãos, bem como ao restante do mundo, o que entendem por “vida digna”, “liberdade”, e “sentido da vida”, por exemplo. Mais ainda, se estes seus belos e utópicos conceitos são possíveis apenas dentro de suas já ricas fronteiras; e, sobretudo, se só são viáveis mediante a manutenção, ou o que é pior, a radicalização da indignidade e da exploração sociais do lado externo e pobre de seu Estado-Alphaville. Os suíços não decidiram contra o Renda Mínima por conta da favela terceiro-mundista que sua fortuna-primeiro-mundo gera antagonicamente. No entanto, esse não coletivo, ainda que egoisticamente entoado, não dará aos já burgueses suíços o excedente direito de serem Burgueses de Estado, com um gordo e indiscriminado depósito estatal de R$ 9mil no final de cada mês, independentemente de suas necessidades. Essa proposta baseada na cisão entre trabalho e renda deveria ser negada mesmo. Mais ainda, que a própria possibilidade de se viver de renda seja negada veementemente, pelo mundo inteiro, e daqui para frente.

 

Cosmonoopolitismo

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Noopolítica é um conceito cunhado pelos cientistas informacionais estadunidenses John Arquilla e David Ronfeldt que junta a palavra grega “nous”, que pode significar tanto inteligência quanto pensamento, mas que para Platão era a faculdade humana capaz de captar verdades fundamentais por uma via intuitiva, à palavra política, que embora bem conhecida de todos, é problematicamente pragmatizada pela maioria.

Noopolítica, portanto, seria uma política inteligente baseada no conhecimento direto, claro e imediato dos indivíduos e de suas questões coletivas. Para ser mais preciso, no reconhecimento intuitivo do que, em verdade, é a sociedade à qual esses indivíduos pertencem. Filha hipercontemporânea e virtuosa da biopolítica foucaultiana, a noopolítica é caminho para se reencontrar a harmonia –alienada pela política tradicional- entre homem, sociedade, natureza e conhecimento. Em particularíssima instância, indivíduo e vida.

Para tanto, a noopolítica se funda na livre comunicação entre os indivíduos, na eleição do conhecimento que melhor serve à coletividade, e no repudio à violência e à arbitrariedade dos interesses supra individuais que negam este melhor conhecimento. Valoriza a expressão individual enquanto “grão de areia” essencial e a priori de uma “duna social” não opressora a ser alcançada. Utopia? Considerando-se que utopia é o que apenas não existe ainda, e não o que não tem como existir de forma alguma –atopia-, a noopolítica é o caminho da verdadeira revolução.

Com efeito, a noopolítica se contrapõe à realpolitik, isto é, à velha e reacionária política cujo objetivo é assegurar o interesse e a estabilidade nacionais, supra individuais, e que muitas vezes exige inclusive a violação dos direitos humanos. Enquanto a realpolítica se fundamenta em uma forma hierárquica de organização encimada pelos interesses imperiosos do Estado, em vertical oposição às instâncias imanentes dos indivíduos que o compõem, a noopolítica, em troca, pretende solapar esse desumano edifício mediante uma organização em rede, horizontal, na qual os indivíduos e suas relações sejam o paradigma social: “a verdade, o caminho e a luz” da sociedade.

E se a realpolítica, que atende prioritariamente aos interesses transcendentes do Estado, em um mundo assaz globalizado exige que seus atores sejam primeiramente cosmopolitas, isto é, cidadãos do mundo antes de serem cidadãos locais, a noopolítica, em contrapartida, por priorizar a vida e as questões que afloram na rede coletiva imediata, solicita de seus atores o cosmonoopolitismo, ou seja, uma cidadania imanente cuja única universalidade válida é aquilo que melhor atende aos interesses de seus próprios atores, a ser conhecido por meio da intuição.

O cosmopolita é impotente no enfrentamento dos desafios mais importantes porque politiza primeiramente com o mundo, com o outro mais distante. Assim, expatria, ainda que inadvertidamente, aqueles que, imediata e imanentemente, estão relacionados em rede com ele. Já o cosmonoopolita, porque se pauta no conhecimento, sobretudo no reconhecimento mútuo, tem por princípio não preterir os terminais individuais imediatos da rede a que pertence. Em primeiro lugar, porque não tem como negá-los, a não ser por força de grande abstração. Em segundo, porque uma relação política é tão melhor quanto mais concreta for. Desse modo, o cosmonoopolismo é a virtude de não se alienar do que mais proximamente importa: as relações concretas e evidentes entre os indivíduos, e a deles todos com a vida.

Se Platão definia o “nous”, ou seja, a inteligência, como a parte racional e imortal da alma, e a política enquanto a arte de saber conduzir os homens, podemos tirar do pai da filosofia que a noopolítica, mistura virtuosa dos dois conceitos, seria a parte racional e imortal do espírito coletivo -que aliás só vem ao mundo em rede-, qual seja, o conhecimento humano, na excelente condução dessa coletividade humana.

O cosmopolita, porque equivale os terminais da rede mais distantes aos mais próximos, não é um bom artesão político. Sem cerimônia ou por inadvertência confunde ecos distantes com vozes próximas, deixando estas sem a devida atenção. O cosmonoopolita, em troca, politiza primeiro com os que imediatamente se relacionam com ele. E ciente de que esse é o conhecimento mais importante, tanto para ele quanto para os demais, encarna a melhor cidadania de todas.

Democracia em desencanto

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Diante do atual golpe de estado, o Brasil clama pela sua democracia furtada. Aparentemente, essa pecha parece ser a mais digna de ser empreendida diante do assalto oligárquico à “cracia do demos”, isto é, ao “governo do povo”. Entretanto, seria a democracia inquestionavelmente a nossa melhor opção? Sem essa resposta, nosso presente clamor corre o risco de ser um tiro no pé. Pior ainda, se a democracia com efeito não for a melhor forma de governo, outra coisa não estamos sendo senão massa de manobra a quem realmente esta forma de governo interessa, senão ao povo, que é a maioria, paradoxalmente às minorias.

Antes de atravessarmos esse aparente paradoxo envolvido na nossa democracia, vale relembrar que Aristóteles, na sua Política, disse que a democracia é, ao mesmo tempo, a pior das formas boas de governo, mas a melhor entre as más. Nossa contemporânea luta por ela parece se fixar somente nessa segunda definição. Agora, se atentássemos à primeira, é tácito que é uma burrice lutar por ela. A Aristóteles, portanto, a melhor pergunta que poderíamos fazer é: quais são então as boas formas de governo em relação às quais a democracia é a pior? Dessa resposta depende uma busca mais inteligente.

Para o filósofo grego, as boas formas de governo são a monarquia (o governo de um só em favor de todos); a aristocracia (o governo dos mais virtuosos em prol de todos); e a “politeia”, a parente virtuosa da democracia (o governo de muitos em benefício de todos). Já as más formas de governo, que na verdade são as degradações destas três, correspondem, respectivamente, a tirania (o governo de um só em função de interesses privados), a oligarquia (o governo de uns poucos em prol de si próprios) e a democracia propriamente dita (o governo do povo em função de si mesmo).

Com efeito, a democracia comparada com as duas outras formas degradadas de governo sustenta um verniz de virtude. Seu vício oculto, entretanto, é esclarecido por Aristóteles: a democracia “surgiu quando, devido ao fato de que todos são iguais em certo sentido, acreditou-se que todos fossem absolutamente iguais entre si”. Aplicando esse vício à realidade tupiniquim, se todos são absolutamente iguais entre si, e portanto todos merecedores de terem seus interesses contemplados, como conciliar, democrática e satisfatoriamente, um povo tão plural quanto antagônico, que em última e trágica instância, diante do golpe de estado, se separa em duas forças inconciliáveis, quais sejam: a liberal-oligárquica-fundamentalista, e a social-democrata-laica?

Não podemos deixar de considerar, portanto, que, democraticamente, uma pode, legitimamente, se impor contra a outra. E porventura não foi exatamente isso que aconteceu no Brasil com a minoritária elite oligárquica-fundamentalista do “PMSDB” (o Frankenstein formado pelo PMDB e o PSDB), que afastou do poder os majoritários 54 milhões de votos legítimos do governo do petista, legados a esse partido por conta dos 12 anos de governo prévio à reeleição Dilma que revolucionaram o conceito de povo, fazendo participar dele não só os homens velhos brancos ricos, mas também as mulheres, os jovens, os negros, os pobres, os LGBT, em suma, os historicamente excluídos sociais em geral?

O atual caso brasileiro é a prova de que a democracia é o meio de uma minoria -novamente, os homens velhos brancos ricos- se impor sobre a maioria. Mas isso não é novidade, pois no seu berço grego a democracia já era exclusivista. Dela participavam apenas indivíduos livres (não-escravos) do sexo masculino. Dos 300.000 habitantes de Atenas, somente 30 mil desfrutavam da democracia. Algo como 10% da população.

Na sua versão moderna-representativa-burguesa, que ainda é a nossa contemporânea, a democracia outrossim é para pouquíssimos, embora minta muito bem que é para a maioria. Considerando que, infelizmente, é o capital que com efeito melhor garante direito de participação ativa no governo de uma sociedade, –vide os astronômicos e lucrativos investimentos empresariais nas campanhas políticas-, e sem deixar de fora o fato de que quem financeiramente comanda o mundo composto por sete bilhões de indivíduos são mais ou menos trinta milhões de pessoas consideradas ricas, algo menos que 0,005% da população mundial, temos que a modernidade transformou a já contraditória democracia da Grécia antiga em algo profundamente mais desigualitário.

É esse o sistema de governo que estamos defendemos com unhas e dentes no Brasil diante do golpe, a democracia, esse ambiente político onde qualquer barbaridade pode ser viabilizada, bastando que uma minoria com potencial financeiro ideologize a maioria em função de seus interesses? Não nos esqueçamos de que foi a democracia que colocou Adolf Hitler no poder! E porque, democraticamente, o genocida alemão ideologizou eficaz e estrategicamente sua nação inteira, o extermínio da raça judaica passou a ser um projeto racional. Pior ainda, “o” projeto perfeito para salvar a Alemanha. A democracia nas mãos da burguesia consegue ser catastroficamente pior do que nas mãos da antiga aristocracia grega.

Agora, se não é pela democracia que devemos lutar, uma vez que ela é a forma de governo que concretamente privilegia a minoria já privilegiada, em qual forma de governo devemos investir coletivamente? Ora, se o PMDB e o PSDB, ambos com a palavra democracia nos seus nomes – o questionável “D” que os antepenultimalizam-, tiraram do poder justamente o governo petista cujo mérito inegável foi ter aproximado mais do que qualquer outro a maioria da população brasileira não só do conceito de povo brasileiro, como também e principalmente do governo do Brasil, ser antidemocrático, nessa conjuntura, é lutar pelo interesse da maioria, do povo de verdade. Tarefa aparentemente paradoxal, contudo, uma vez que até mesmo o PT golpeado defende a democracia.

Entretanto, retomando Aristóteles, e concebendo a democracia enquanto a pior das melhores formas de governo, e isso comparativamente à monarquia e à aristocracia, seria investir em uma dessas duas a coisa mais racional a se fazer no Brasil? O problema é esses conceitos estão viciadíssimos. A monarquia jaz atrelada à moderna ideia de um rei absolutista que prefere construir palácios espetaculares para si mesmo em vez de pensar no bem de seus súditos. E isso porque a confundimos com a tirania. E a aristocracia, o governo dos melhores, soa como se esses “melhores” se referisse à qualidades naturais de certos indivíduos. Outrossim a confundimos com a oligarquia (o governo de poucos). Não sabemos mais diferenciar as formas de governo em suas expressões virtuosas e viciosas.

O governo petista, cujos vícios políticos e econômicos são evidentes, ao menos tem a notória virtude de ter feito o melhor governo desse país, afinal, nenhum outro tirou 36 milhões de pessoas da pobreza extrema, 42 milhões da pobreza dita “normal”, levou saúde a 50 milhões que não a tinham, 7 milhões às universidades, só para citar as mais objetivas inclusões sociais dos últimos 14 anos, se não é democrático, sem a menor sombra de dúvida é aristocrático no que esse conceito tem de mais probo. Não, obviamente, que os “indivíduos petistas” sejam melhores que os dos outros partidos. Inegavelmente melhores, entretanto, são os resultados sociais dos governos do PT. Aí é que entra a virtude do conceito de aristocracia: o governo de um grupo cuja excelência é alcançar o melhor, não para si mesmos, obviamente, mas, senão para todos, ao menos para a maioria absoluta.

No sentido de encontrarmos algo melhor que a democracia que vive na boca da elite golpista brazuka, resta, das boas formas de governo aristotélicas, a monarquia. Lula, por sua vez, não seria o bom governo encarnado em uma única pessoa, uma vez que fez mais e melhor por todos se o compararmos a todos os presidentes que oi precederam? Podemos dizer que sim na medida que tirano ele não foi, isto é, não governou para interesses privados. Afora os assaz classe média tríplex de Guarujá e sítio de Atibaia, que dizem ser as suas “conquistas” pessoais indevidas, mas que até aqui não há prova de que sejam de fato seus, Lula não governou para enriquecer-se, como a maioria dos representantes declaradamente democratas que deram o golpe no Brasil.

Tudo isso para dizer que, baseados, de um lado, nas formas mais virtuosas de governo identificadas por Aristóteles há mais de vinte séculos, e, de outro, na atual conjuntura brasileira, na qual partidos democratas roubaram o poder para si, há formas de governo melhores pelas quais lutar nesse momento crísico que não a democracia. Seja o governo de alguns melhores, uma aristocracia, seja o de um homem só, a monarquia, todavia em suas saúdes aristotélicas plenas, isto é, não corrompidas em tirania e oligarquia, respectivamente, se servirem de fato à maioria, quiçá a todos, são muito mais dignos de serem buscados por nós, o povo, do que a democracia, que, se literalmente significa “governo do povo”, pragmaticamente tem significado o contrário.

Seja na Grécia antiga, naquela democracia direta-oligárquica, seja hoje em dia, na nossa democracia representativa-burguesa, em ambos os casos temos que esta forma de governo é feita para poucos governarem a maioria em função de seus interesses privados. 10% antigamente, 0,005% atualmente, são as parcelas da população beneficiadas pela democracia ao longo do tempo. E se hoje compramos massivamente a pecha da “restauração da democracia brasileira”, outra coisa não estamos fazendo que lutar por uma forma de governo que, historicamente, vem reduzindo a centralidade dessa mesma massa, isto é, do povo, na governança que deveria ser para todos, mas que apenas mentirosamente sobrevive na palavra democracia.

Se, conforme Aristóteles, das melhores formas de governo a democracia é a pior, ainda que das piores seja a melhor, seguir batendo nessa tecla democrática -tecla com a qual aliás a minoria mais bate na maioria do que o contrário-, é ou burrice, ou masoquismo. Inteligência seria lutarmos pelas formas mais virtuosas definidas pelo maior gênio da história da humanidade: a aristocracia ou a monarquia; seja em forma de partidos políticos socialistas, seja em forma de um rei político e carismático ao bom estilo Lula, pois mediante tais governanças certamente o “todos” ao qual as virtuoses políticas aristotélicas necessariamente se referem não será alienado em função de poucos ou de um só.

Para tanto, precisamos desencantar a democracia, superá-la, e finalmente aceitarmos o que a filosofia política de Aristóteles diz há mais de vinte séculos. Senão para nos livrarmos da ambiência próxima da tirania e da oligarquia e nos aproximarmos de formas mais virtuosas tais como a aristocracia e a monarquia, o que já seria um avanço, ao menos, e com sorte, para introduzirmos no presente a velha, porém alienígena para nós, “politeia” grega, a melhor das melhores formas de todos serem governados