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Financeirização da economia e a dominação ilimitada

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Como impedir a classe dominante de dominar? Marx bem tentou responder essa pergunta no seu Manifesto Comunista, que começa afirmando que “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Só que essa tarefa se mostrou bem mais difícil do que o grande filósofo materialista imaginou. Mais ainda depois que o capitalismo se libertou de qualquer limitação material, ou seja, após o presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971, abolir o lastro material do Dólar. Com esse ato, foi dispensado o fundamento material daquela moeda, e por efeito cascata, o de todas as demais. Doravante o dinheiro, e a dominação que ele proporciona, passaram a ser inventados. Claro, quem detém o poder (político e militar) para tal “alquimia” é a classe dominante, que, quanto mais inventa riqueza, mais a inventa para si mesma, e, portanto, mais-domina.

Para inventar sua dominação de modo legal, e além do mais democrático, basta, por exemplo, que as doze famílias mais ricas dos EUA, donas dos doze maiores bancos que formam o Federal Reserv Bank (o banco que cria os dólares para os EUA), enfim, basta que a classe arquitete uma devastadora crise econômica, para a qual apenas alguns trilhões de dólares – que ela mesma pode inventar imediatamente – sejam a solução mais objetiva. O governo então aceita esse dinheiro abstrato e, no mesmo instante, o povo e o futuro desse Estado passam a dever a exata quantia à classe, só que agora, obviamente, em forma de riqueza concreta. Se o lastro para o dinheiro que  a classe inventa findará em barras de ouro ou em mega favelas na África, Ásia e América do Sul tanto faz. A classe cobra concreta e materialmente por centavo que abstratamente inventa.

Só que, dado o montante de dinheiro inventado na nossa economia financeirizada, é impossível lastreá-lo materialmente. Há vários limites. Um deles, o ecológico, é quiçá o que melhor demonstra essa impossibilidade. Há quem diga que seria preciso de seis a dezesseis planetas Terra (em quantidade de ar, água, terra, minérios, etc.) para arrancar, da natureza ao mundo humano, a riqueza material necessária para lastrear a riqueza inventada pela classe. Todavia, embora essa dívida seja de fato material, econômica, social, política e ecologicamente impagável, ela só continua sendo criada porque é logicamente possível fazê-lo. Afinal, nada há de errado em cobrar do futuro, que além do mais é ilimitado, quando se abstrai o fato concreto de que não haverá planeta Terra para tanto.

Para manter essa lógica insustentável funcionando, todos os dominados/endividados que ousam afrontá-la devem ser restringidos legalmente e reprimidos militarmente pela classe. É tão impossível para a humanidade materializar toda a riqueza abstratamente inventada pela classe quanto deter a classe na sua desenfreada financeirização da econômica. Na época de Marx, o capitalismo ainda era refém do mundo material. A mercadoria, misto de matéria-prima e meios de produção capitalistas e de mão de obra proletária, era fundamental no processo de produção de mais-valor que permitia à classe mais-dominar. Na financeirização da economia, entretanto, nada de material precisa ser produzido para que venha ao mundo tanto dinheiro quanto deseja a classe. A produção material, obviamente, não desapareceu. Apenas sobrevive em modo zumbi, mentido caducamente que será através dela que se pagará a dívida à classe.

Agora, por mais perverso que seja, esse sistema no qual a classe minoritária dominante pode inventar, em nome da classe majoritária dominada, uma dívida maior do que o futuro da humanidade, obrigando esta última, legal e militarmente, a pagá-la, materializá-la, lastreá-la com o suor de seus corpos, é de uma estratégia admirável. Nunca foi tão fácil dominar! Žižek bem disse que, desaparecendo a necessidade de fundamento material para a dominação de classe, e bastando a classe inventar quantas vezes quer ser mais rica e dominante, o que resta é a dominação direta e injustificável de uns indivíduos sobre outros, como se se tratasse de uma determinação divina, extra-humana. Inventar dinheiro, no mundo capitalista, é inventar poder. Poder criar uma dívida em nome de outros, portanto, é criar poder sobre eles.

Desfinanceirizar a economia é, portanto, um urgente passo para libertar os povos dessa insustentável liberdade da classe de inventar, desimpedida de qualquer restrição material, a sua dominação. Talvez devamos reconsiderar a velha ideia marxiana segundo a qual o sumo valor é tão somente fruto de trabalho humano, pois ela reata os pés de Ajax da classe no chão material do mundo, impedindo-a de inventar abstratamente sua dominação concreta. O grande problema, contudo, é impedir a classe de se valer compulsivamente de sua maior sofisticação (inventar sua superioridade) uma vez que ela está de posse dos Estados e de seus exércitos.

Uma autêntica revolução seria a solução, pois desfinanceirizaria a economia capitalista ao destruir próprio o cosmo capitalista. Ora, se é para desafiar o Estado burguês e sua opressiva força militar, que seja para a maior das mudanças, pois só ela puxará naturalmente todas as demais necessárias. Entretanto, a revolução parece estar mais desacreditada do que nunca. Todavia, não porque os preceitos socialistas revolucionários tenham perdido sua pertinência, mas porque a classe, estrategicamente, assim como vem inventando a sua dominação, inventa também as pseudo verdades que lhes serve, tal como a ideia de que é melhor o capitalismo do que qualquer outra forma econômica para a humanidade subsistir materialmente.

Se não é possível fazer a revolução agora, pois, novamente, temos os Estados nacionais e os seus exércitos contra ela, ao menos alimentemos a ideia de revolução tal qual se encontra excelentemente em Marx. Que não seja possível mudar o mundo por esta ou aquela contingência não deve significar que a razão da mudança seja inválida. Muito pelo contrário. Talvez seja justamente nessa era de economia financeirizada, na qual a invenção de dominação concreta a partir de uma mera abstração é a regra, que uma simples ideia revolucionária possa, subversivamente, aproveitar a onda e materializar-se. Se não há como vencer uma guerra sem ter ao menos as mesmas armas do inimigo, afrontemos então a classe usando a sua mais sofisticada artilharia: inventemos um mundo sem dominação e exijamos, a qualquer custo, que o mundo material e concreto corresponda a essa justa, e até aqui, abstração.

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Neoliberalismo Político-Cultural na Cidade Sorriso

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Nelson Marchezan (esq.), prefeito de Porto Alegre, e, Luciano Alabarse, secretário de cultura.

O secretário de Cultura da capital portalegrense pelo governo do PSDB, Luciano Alabarse, participou do encontro promovido pelo Goethe-Institut chamado “Conversas Cidadãs” para debater “Política Cultural” com a comunidade. Entretanto, o mais próximo que se chegou do grande tema foi a apresentação, em números concretos, por parte do secretário, das políticas culturais da presente administração; e, da parte da plateia, contraposições atinentes à má assistência e até mesmo ilegalidades da atual política cultural estatal, outrossim referentes a fatos concretos. Um espaço franco como o que o Instituto Goethe promoveu entre a comunidade e o Estado, contudo, deveria ser também ocasião para a sociedade alçar-se a assuntos mais globais, pois estes são tão reais quanto determinantes nos casos particulares concretos. Infelizmente, não houve oportunidade para serem abordadas, abstratamente, isto é, independentemente da situação particular da Cultura em Porto Alegre, questões tais como: de onde partem as tais “Políticas Culturais”; a quem elas servem em primeiro lugar; e, o mais importante, que espécie de política resta e é combativa quando a “política cultural oficial” é problemática?

Nesse sentido, vale lembrar a distinção feita pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu entre “Política Cultural” e “política da Cultura”. A primeira, referindo-se à política culturalizante produzida e aplicada verticalmente por quem ocupa o poder político, e, sem ingenuidade, para benefício próprio. Como exemplos trágicos de “políticas culturais” temos as dos Estados de Mussolini, Hitler e Stalin. Contrapondo-se à “política cultural”, a “política da Cultura” é a organização e a mobilização política da categoria cultural para ter força diante da “Política Cultural estatal”. (Digo “categoria” e não “classe” porque é munição política ter bem claro que classes são apenas duas: a dominante e a dominada). Analogamente à distinção entre Estado e sociedade civil distinguem-se “Política Cultural” e “política da cultura”. A ausência dessa profundidade bourdieuana no “Conversas Cidadãs” acabou por impedir a plateia de poder criticar a própria ideia de “Política Cultural” e, consequentemente, de pensar uma outra política efetivamente em função da Cultura e de sua categoria.

Claro, para saber que a Política Cultural do Estado serve imediatamente a quem governa esse Estado é necessário saber também que os nossos Estados Nacionais são uma produção da classe dominante burguesa que afasta o povo do autogoverno via “a nossa democracia” representativa. Nisso, Marx sempre esteve certo: o Estado é um instrumento de dominação de classe. No ínterim estatal burguês, o povo ganha permissão para “participar do poder” apenas no cada vez mais inócuo expediente das urnas, sendo que em qualquer outra aventura popular em função de mais poder além desta será – como de fato é – constrangida legalmente e reprimida militarmente. Abstrair da ideia de “Política Cultural” as políticas culturais de um governo determinado permite ver inclusive que faz pouca diferença o Estado estar nas mãos de um partido de direita ou de um de esquerda: o Estado enquanto tal servirá à parcialidade às custas da totalidade. Sequer precisaríamos do exemplo peessedebista para vermos como e até onde políticas públicas são feitas para benefício de banqueiros e empresários.

Na ignorância desse fato, muitos participantes do Conversas Cidadãs, na defesa da Cultura e de sua categoria profissional, chegaram ao absurdo de, ingenuamente, defenderem que a categoria cultural deveria “sentar junto” com o secretário (do PSDB!) para “construírem conjuntamente” a solução para os graves problemas da cultura portalegrense. Alabarse, como legítimo representante do Estado neoliberal naquele auditório, elogiou diversas vezes a ideia. Entretanto, não por ser a solução para os reais problemas da Cultura e da categoria que dela sobrevive e nela se realiza, mas porque obscurece ainda mais a distância entre a “Política Cultural estatal” e a “política da Cultura”. Assim como o neoliberalismo mente uma igualdade onde não existe ao defender que é melhor deixar patrões e funcionários a sós para resolverem suas questões, assim também é mentiroso que seja melhor à categoria cultural sentar amigavelmente com o braço cultural do Estado como se houvesse paralelismo de metas entre eles.

Impossível não lembrar de Nicolau Maquiavel, filósofo italiano que deixou bem claro, lá na aurora da modernidade, que a ventura de uma sociedade não se dá na paz e na concórdia interna, mas na irresolubilidade do conflito político. Dessa perspectiva, obviamente, não é “sentando em paz” com o secretário do PSDB que a categoria cultural se beneficiará (assim como patrão e funcionários deixados sozinhos é bom só para o patrão). Maquiavelianamente falando, alguma autonomia à categoria cultural só será possível quando esta categoria se colocar, política e organizadamente, contra a verticalidade inerente a qualquer “Política Cultural estatal”, e, particularmente, contra a política cultural específica do PSDB. Por isso é importante manter a distinção de Bourdieu entre “Política Cultural” e “política da Cultura”: para não nos esquecermos de que no plano da “Política Cultural estatal”, ainda mais na de um Estado gestado neoliberalmente, não está a realização da Cultura nem tampouco a de sua categoria, mas somente no antagonismo a tal “Política”.

E o engodo neoliberal segundo o qual “a solução” é o secretário de cultura e a sociedade “sentarem juntos” para construírem o bem da Cultura portalegrense, estratégia que oblitera a dissimetria entre essas duas partes, serviu de trampolim para Alabarse dizer pública, vertical e neoliberalmente que “fora da parceria público-privado não há solução para os problemas da cultura local”. Resumindo: aceitar “sentar juntos” com esse representante do Estado é ter de engolir, de pronto, o propósito mor de seu partido: o privado – e às custas do público. Se isso fosse claro, a plateia não cogitaria pax alguma com o secretário, mas apenas uma incansável luta política, pois, com efeito, não se trata de a categoria cultural desejar que a política de seus governantes lhes sirva a partir de cima, acidental ou dadivosamente, mas, decisivamente, de fazer os governantes entenderem que é a “política da Cultura”, gestada e defendida pela categoria cultural, que deve ser tornada “a” política cultural do Estado. Pois assim o Estado não será obstáculo, mas, em vez disso, um meio de a Cultura e todos as pessoas que dela vivem realizarem-se cultural e materialmente. Se bem que, aí, nem poderíamos mais chamar essa coisa de Estado…

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Viver sem trabalhar?

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De onde vem a utopia de um mundo no qual as máquinas produzem tudo sozinhas e as pessoas são livres e desocupadas para fazerem o que bem entender senão de um idealismo pequeno burguês alienado da materialidade do capitalismo? Ora, as máquinas não são dádivas da natureza, nem tampouco de algum deus para que os seres humanos sejam perdoados da maldição adâmica de viverem do próprio suor. Com efeito, são armas quiçá as mais objetivas do capital no sentido de possibilitar a obtenção de mais-valor, o objeto capitalista par excellence. As máquinas só passaram a existir, e cada vez mais são aperfeiçoadas e disseminadas worldwide para esse fim. Se não for assim, elas perdem o seu porquê. Como poderiam então prometer liberdade às pessoas?

Como Marx bem mostrou nO Capital, as máquinas existem para reduzir o investimento dos capitalistas em salários. Em suma, para desvalorizar o trabalho. O filósofo mostra que, na aurora do capitalismo, os patrões investiam metade do seu capital em meios de produção (matéria-prima, ferramentas, energia, instalações etc.) e metade em força de trabalho (salários). Com o advento da maquinaria, poucos séculos depois, o investimento em meios de produção era cerca de dez vezes maior do que em salários. As máquinas de fato desvalorizam o trabalho humano. Porém, como a história da miséria moderno-contemporânea comprova, não para valorizar o “livre viver” das pessoas, e sim para fazê-las aceitar salários cada vez menores e exploração cada vez mais maior.

De um lado, o capitalismo desvaloriza sistematicamente o trabalho humano através de crescentes investimentos em tecnologia em função de seu mais-valor. Todavia, de outro lado, o mais-valor é conseguido somente através da exploração do trabalho humano. Ao contrário do que vulgarmente se pensa, máquinas não têm como produzir mais-valor porque não têm como serem exploradas. Elas cobram pelo que produzem exatamente o que custam ao capitalista. Se uma máquina, por exemplo, custa $1 milhão, e ao longo de sua vida útil é capaz de produzir um milhão de sapatos, cada mercadoria individual cobrará exato $1 pelo investimento no meio de produção que é essa máquina. E assim com os demais meios de produção. A única possibilidade de o capitalista lucrar jaz na exploração do trabalho humano, pois só ele pode produzir, em mercadorias, muito mais valor do que custa ao capitalista.

O que a princípio parece ser uma contradição – a busca de mais-valor do capitalista mediante tecnologia que, por sua vez, dispensa a fonte de mais-valor, qual seja, o trabalho humano -, na verdade, é a sui generis estratégia capitalista de, mediante a desvalorização do trabalho, aumentar a exploração sobre esse trabalho desvalorizado. E a crescente massa de desempregados que esse processo gera, chamado de exército industrial de reserva, longe de ser produzido para que esse contingente desocupado se ocupe com o que lhe dá prazer, serve, ao contrário, para comprometê-lo ainda mais com as necessidades do capital. De modo que, em um mundo no qual as máquinas façam tudo, não haverá uma humanidade finalmente livre, mas uma absolutamente desempregada e inescapavelmente subjugada pelos donos das máquinas. Por essa razão, é burrice os trabalhadores utopizarem a substituição do trabalho humano pelas máquinas. Sem dizer que, de sua parte, o capitalismo, para quem o sumo objeto é o mais-valor obtido pelo trabalho humano, tampouco criará tal realidade.

Somente quando a força de trabalho é valorizada há motivo para os capitalistas investirem em tecnologia. Quando, ao contrário, o valor do trabalho cai, a tecnologia se torna cara demais para valer a pena. O geógrafo marxista David Harvey explica isso dizendo que, nos EUA, por exemplo, onde o valor da força de trabalho é alto, é feito de tudo para que o trabalhador seja substituído pela tecnologia com o objetivo de baixar o valor dos salários. Já na China, prossegue Harvey, onde o valor do trabalho é baixíssimo, é mais vantajoso utilizar milhares de trabalhadores produzindo mercadorias com ferramentas manuais do que investir em maquinário tecnológico.

Temos, portanto, uma gangorra na qual, em uma extremidade, está o trabalho humano, e, na outra, a tecnologia, sendo que a subida de uma às custas da descida de outra se dá em função de um centro fixo: o mais-valor. Quando o valor da força de trabalho está em alta, o mais-valor força a sua baixa, elevando a tecnologia. Quando, porém, a tecnologia está em alta e o trabalho em baixa, o mais-valor central percebe que vale mais a pena voltar a usar a força de trabalho desvalorizada e não a tecnologia supervalorizada. Então a gangorra se inverte. E assim sucessivamente, numa dialética infindável que, entretanto, em todos os casos, atende aos interesses do capital tanto quanto é estabelecida por ele. A utopia da libertação definitiva da humanidade mediante a substituição total do trabalho humano pelo das máquinas, da perspectiva do capital, na verdade, é absolutamente distópica.

Do ponto de vista dos trabalhadores, a utopia de viver sem precisar trabalhar deve ser encarada pelo o que é: um ingênuo sintoma causado pelo insuportável e exploratório modo de trabalho imposto pelo capital, e de modo algum como a percepção iluminada de que o trabalho enquanto tal não tem valor e que, portanto, deve ser substituído pela máquina. Aliás, os trabalhadores não percebem a armadilha capitalista na qual caem ao desvalorizarem, eles mesmos, o trabalho, a única fonte material de valor que existe e que jaz em suas mãos. Sonhar com o fim do trabalho humano, com efeito, é realidade sempiterna do capitalismo. Portanto, todo aquele que quiser contribuir com a superação desse vil sistema econômico deve, ao contrário, valorizar cada vez mais o trabalho humano; colocá-lo no centro nevrálgico da vida social; e não colocar a máquina, que é invenção e propriedade dos capitalistas, nesse lugar. A utopia da vida sem trabalho, mais do que ao capital, é distópica sobretudo às pessoas.

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O Conto da Karoshinha Capitalista

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Karoshi, na contemporânea cultura nipônica, significa morrer por excesso de trabalho. Desde 1960 há uma epidemia de japoneses que adoecem terminantemente ou simplesmente se suicidam encurralados pelas demandas de um capitalismo absolutamente desumanizado aliado a uma cultura de disciplina férrea cuja tradição prega que um trabalhador que chega no serviço depois do chefe ou dos colegas, ou sai antes deles, é mal visto e deve ser descartado para dar lugar a alguém que “realmente” honre a empresa. Um lema para o karoshi seria algo como: “Empresa ou morte!”

No Brasil as pessoas não se matam por excesso de trabalho. Bem mais comum, aliás, é o brazuka morrer ou se matar por falta de trabalho. Todavia, as bases para um karoshi tupiniquim foram lançadas pelo primeiro lema do atual governo golpista: “Não pense em crise, trabalhe”. Com o agravamento da crise, contudo, já estamos na fase do: “Não pense em mais nada, apenas trabalhe muito”. E só mesmo muito otimismo ou alienação para não crer que, em breve, seremos cativos da mínima tautológica: “Trabalhe, trabalhe”.

“O trabalho dignifica o homem” é a sui generis mensagem do cristianismo. Todavia, na era pré-capitalista na qual nasceu tal ideia, “capital” era Deus. “O Homem” a ser dignificado pelo trabalho, portanto, era tão somente Ele. Entretanto, a dignificação de Deus mediante o trabalho humano resultava em dignidade humana, pois trabalhar em prol da obra de Deus, o mundo, aumentava a graça divina e, consequentemente, os homens eram agraciados, dignificados através da dignificação dO Homem.

Já na nossa era capitalista, demasiada capitalista, “capital” é só mesmo o capital. Ele é “O Ser Supremo” a ser dignificado pelo trabalho dos homens, mesmo ao custo de toda a dignidade mundana. Ao contrário de Deus, que dignificado pelo trabalho humano agraciava os homens, o capital só faz acumular para si a mais-graça que recebe dos seusb trabalhadores. E não há limite para essa vil liturgia capitalista. Se há, arriscamos dizer que são dois: o Karoshi, a morte dos homens por excesso de trabalho, ou o que é pior, a destruição total do planeta Terra por excesso de capitalismo.

Marx nos fez ver de modo científico que apenas metade de uma jornada de trabalho serve às necessidades do trabalhador. A outra metade existe para gerar mais-valia ao capitalista. Aliás, tudo o que este mais quer daquele jaz nessa segunda metade de jornada explorada! O fato de hoje nós, brasileiros, trabalharmos de janeiro a junho para pagar impostos, e só de julho a dezembro para nós mesmos só reforça a tese de que metade do nosso trabalho é para a benesse de outrem.

Claro, a sagaz ideologia capitalista oblitera sistemática e exitosamente o furto do nosso trabalho e da nossa dignidade, e de modo tão sistemático e exitoso quanto acumula capital. De nossa parte laborante, esperamos que, trabalhando arduamente, obteremos conforto e segurança. Todavia, nesse mundo só há espaço para tal labuta esperançosa porque assim é melhor para o capital, e tão somente para ele. Afinal, metade do nosso trabalho é imediatamente furtado pelo capital enquanto trabalhamos para ele, e a outra metade, aquela que trabalhamos para nós mesmos, é mediatamente furtada ao compramos nossos confortos e segurança dele.

Somos sistematicamente enganados pelo “Conto da Carochinha” capitalista. Roubados em metade do nosso trabalho pelo capital, e devolvendo a ele, aos preços que ele estabelece, a outra metade que ele justamente nos paga, para nós o jogo é um eterno perde-perde. Já para o capital, o jogo é apenas ganha-ganha. E isso é tão verdade que, como os japoneses comprovam de maneira sintomática e epidêmica, os trabalhadores cada vez mais perdem-perdem inclusive as suas vidas para o ganha-ganha do capital.

Sequer pensar na Revolução, mas, antes de tudo, matar a si mesmo em desistência plena diante da ameaça inimiga faz do karoshi nipônico a derradeira e mais vil “mercadoria” produzida pela mentira, pela ideologia, pelo “Conto da Carochinha” do capital. Trabalhar até morrer; morrer por causa do trabalho; não ser humanamente digno da “empresa”; tudo isso é o “Conto da Karoshinha” capitalista insistido worldwide para enterrar uma verdade tão real quanto simbólica, qual seja, a de que o trabalho foi feito para o homem, mas não o homem para o trabalho.

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Crítica da política

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Por que a política ainda promete ser o meio de luta contra os interesses espúrios do capital se é ele, o próprio capital, que sempre vence na arena política todas as batalhas que enfrenta? Está certo que a política é bem mais antiga que o capitalismo, entretanto, desde que este sistema econômico colonizou o mundo, também a política passou a servi-lo subservientemente. Não seria o caso então de realizarmos que a promessa de libertação social via política é apenas mais uma, quiçá a mais sagaz mentira do capital no sentido de mais-dominar?

Karl Marx foi contundente em criticar a política enquanto instrumento revolucionário, apontando que, na verdade, ela é o meio sempre presente de o passado, isto é, a dominação da maioria pela minoria – da totalidade pela parcialidade – prosseguir futuro adentro. A revolução em Marx não se dá apenas com a superação do Estado, mas também com a da política enquanto tal. Para o filósofo alemão, agir no interior de formas políticas pertence à velha sociedade, à sociedade na qual a dominação de uns poucos sobre a maioria é regra.

É imperativo sair da perspectiva meramente política para poder ser verdadeiramente crítico em relação à dominação do capital sobre a sociedade segundo Marx. E isso porque ele anteviu de modo muito profundo que a dominação do capital se dá, imediatamente, por via econômica, e não política. A política, em troca, é o meio, o modo mediato de o capital dar continuidade à sua dominação econômica. Ser fiel à Marx, portanto, significa crer, como ele, que a dominação do capital não tem como ser totalmente destruída no nível político. A política, na verdade, é o bunker social do capital.

Embora a política sirva imediatamente o inimigo capital da sociedade, ela ainda é, contudo, o ringue onde interesses sociais e interesses econômicos se digladiam; uma arena relacional na qual sociedade e capital mantém ao menos uma linguagem em comum, ainda que de modo assimétrico, pois, politicamente falando, trata-se de um diálogo no qual a sociedade, de seu lado, externa sinceramente suas demandas diante do vilipêndio capitalista, ao passo que o capital, ao contrário, é sistematicamente parlapatão em fingir que ouve a sociedade e que moderará o seu ímpeto acumulador em função de algum bem-estar social.

Entretanto, por ainda ser o nível no qual sociedade e capital se comunicam – mesmo que este sempre vença as discussões -, Marx apontava uma dimensão subversiva da política contra o capital: a sua potencialidade negativa. Para o filósofo, a política é adequada para realizar as funções destrutivas da transformação social. Marx não tinha dúvida de que, nas mãos da sociedade, a política pode ser instrumento de crítica no sentido de minar a dominante ideologia capitalista. Também sabia, contudo, que enquanto a sociedade permanecer apenas no âmbito político o seu inimigo capitalista permanece livre e dominante na sua esfera excelente: a economia.

Como o domínio da parcialidade sobre a totalidade é produzido economicamente e mantido politicamente, enquanto age somente politicamente a sociedade permanece no campo de conforto do inimigo. A vitória da totalidade sobre a parcialidade, embora deva começar politica e destrutivamente, só se finalizará, contudo, se depois da destruição for abandonada a esfera política e iniciada uma construção econômica alternativa. A revolução se dará apenas quando os indivíduos sociais operarem econômica e diretamente uns com os outros distantes da liturgia com que o capital segue intermediando vitoriosamente todas as relações humanas.

A verdadeira revolução nunca será simplesmente uma revolução política. Antes de tudo, deve ser uma revolução social que ultrapasse os limites do sistema político que perpetua a exploração econômica capitalista. E isso porque a virtude das revoluções sociais está em minar a contradição entre a parcialidade e a totalidade. Já as revoluções meramente políticas apenas reproduzem a velha hierarquia da parcialidade sobre a totalidade, pois a política, desde que foi usucapida pelo capital, outra coisa não é senão a subjugação das necessidades da totalidade aos arbítrios da parcialidade.

Se para Marx uma revolução social restrita à política é um absurdo, um primeiro passo político, desde que negativo, na medida em que há a necessidade da destruição das formas vigentes, é fundamental. No entanto, tão logo o TNT político da totalidade cause as primeiras rachaduras no bunker da parcialidade, a totalidade deve desinvestir do expediente político e investir no econômico, preenchendo essas rachaduras com novas relações socioeconômicas até que o edifício minado rua por completo.

Essa revolução socioeconômica será a maior transformação positiva da história, na qual a política, contudo, tem a contribuir apenas com sua negatividade imediata e destrutiva. O que Marx ainda tem a nos ensinar é que negligenciar a dimensão socioeconômica e priorizar a dimensão política impossibilita a revolução que fará a parcialidade ser derrotada e absorvida pela totalidade porque tira da política o seu mais revolucionário fim, qual seja: ser apenas o meio de se iniciar a destruição do capital, do Estado e inclusive de si própria.

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Estado de mal-estar capital

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Efêmero e tenso ponto de equilíbrio entre as necessidades básicas das pessoas e os imperiosos interesses do capital encontrado no século XX, o Estado de bem-estar social foi a garantia de serviços públicos e proteção à população mediante a organização da economia; algo como uma visível luva social que vestiu a invisível, porém sempre larápia, mão capitalista. Todavia, nesse início de século XXI, já sentimos na carne que o bem-estar deixou de ser prioridade do Estado, que voltou a ser apenas aquilo que Marx bem disse no Manifesto Comunista: “o comitê executivo da burguesia”.

Por degradar sistematicamente as condições de vida daqueles que lhes vendem força de trabalho, o capitalismo da Belle Époque viu a classe trabalhadora se organizar ameaçadoramente. Porém, pelo fato de não viver sem os trabalhadores – pois é deles que extrai a sua mais-valia – o ímpeto capitalista teve de se refrear. Sem dizer da então presente experiência socialista soviética do início do século XX que obrigou o capitalismo a ao menos fingir que sobre a face da terra havia também as necessidades das pessoas. Do contrário, todas elas poderiam, digamos assim, optar pelo outro sistema econômico que, segundo Marx, superaria(rá) o capitalismo.

Portanto, durante um estratégico período o capital aceitou comprometer parte de seus ganhos com a sociedade que, não obstante, nunca deixou de explorar. O Estado de bem-estar, social cujo apogeu se deu nas décadas de 1960 e 1970 na Europa, com efeito, foi patrocinado pelo capital para que os trabalhadores tivessem o mínimo suficiente para não se revoltarem nem pensarem em Revolução. Com o oferecimento de saúde, educação e segurança públicas mais um punhado de seguridades sociais o capital anestesiou as massas exploradas da dor que provoca nelas.

Como, contudo, a lógica capitalista não pode se privar de aumentar incessantemente a exploração sobre a vida, o Estado de bem-estar social não tinha como durar. Os grandes e decisivos ataques contra o bem-estar social foram cometidos na década de 1980 por Margaret Thatcher e Ronald Reagan. A destruição violenta das organizações e dos direitos trabalhistas, árdua e historicamente conquistados, permitiu que a vida voltasse a ser escravizada pelo capital. O velho liberalismo, de roupa nova, agora neoliberalismo, reconduziu o Estado à sua prévia condição de bureau da burguesia.

O que vemos no Brasil desde o golpe de Estado de 2016 outra coisa não é que o carnaval macabro do neoliberalismo, que para não tolher em nada a sede de lucro do capital destrói, rápida e certeiramente, o público em benefício do privado. As atuais reformas trabalhista e da Previdência, desenhadas golpisticamente para os empresários comprometerem cada vez menos as suas mais-valias com aqueles que as produzem; a drástica redução de investimento público em segurança, saúde e educação, expressa no aumento da criminalidade, das filas do SUS e do sucateamento do sistema de ensino público; tudo isso e muito mais é o fim do Estado de bem-estar social tupiniquim que mal e porcamente foi rabiscado na terra brasilis.

Depois do curto recreio chamado Estrado de bem-estar social que tivemos no curso histórico do capitalismo, estamos de volta à rígida e degradante disciplina de um mundo no qual a economia, para usar a ideia do filósofo alemão Robert Kurz, vence a vida. A destruição neoliberal de quaisquer organizações capazes de fazer frente aos interesses espúrios do capital; a vitoriosa ideologia da classe média, que faz a classe dominada se esquecer de sua real condição e perder sua força revolucionária; enfim, o Estado violentamente usucapido pela classe dominante finalmente reifica o vertical projeto capitalista de um “Estado de mal-estar capital” – sendo que esse mal-estar, obviamente, recai sobre todos aqueles que, com suas próprias vidas, produzem o bem-estar e o mais-valor do capital.

Por mais que o social esteja derrotado pelo capital, não podemos esquecer que no passado a consciência da classe trabalhadora, as grandes greves e o fantasma socialista foram as forças reais que obrigaram o capital a se conter e a devolver à sociedade pelo menos algo daquilo que dela furtava. Contra o Estado de mal-estar capital que se erige, a classe dominada podem muito bem repetir aqueles passos: reconhecendo-se como tal, e não como classe média; lembrando a classe dominante, através de grandes greves, que ela não é nada sem aqueles de quem compra a força de trabalho; e, por fim, mantendo o socialismo no horizonte, se não como realidade, ao menos como ideia ameaçadora.

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Falácia libertária pós-moderna

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Não sem muita controvérsia, cada vez mais o pensamento pós-moderno libertário de esquerda, produzido sobretudo por intelectuais após maio de 68, como por exemplo o de Deleuze e Guattari, é acusado pela redução da liberdade e pelo enfraquecimento das esquerdas pelo mundo. Se essa causalidade ainda é suspeita, certamente não o são as notórias crises das esquerdas e da própria liberdade. Esse ensaio caminhará no sentido de criticar o ideário de liberdade pós-moderno concebido a partir da segunda metade do século passado, acusado de minar o pensamento verdadeiramente libertário – marxista – que o precedeu, e, considerando isso, qual virtude ainda resta ao pensamento pós-moderno.

Comecemos dizendo que a ausência de liberdade, socialmente expressa na desigualdade e na dominação socioeconômica de umas pessoas sobre outras, teve, a seu favor, as mais variadas explicações ao longo da história. Os antigos atenienses criadores da democracia, por exemplo, acreditavam que a natureza havia feito uns homens melhores que outros, e que estes “melhores homens”, em grego, os aristoi – aristocratas -, deveriam governar e decidir por todos. Mulheres, escravos e estrangeiros não tinhas direitos alguns. Posteriormente, chegou-se a justificar a desigualdade nalguma decisão divina. Em ambos esses casos, tentar eliminar a desigualdade social significava ou atentar contra a natureza, ou contra o eterno plano de Deus. E assim a desigualdade fez carreira no mundo.

No século XIX, contudo, Karl Marx criticou contundentemente essas visões, apontando que a desigualdade entre os homens era produto tão somente deles próprios. Afirmando, no Manifesto Comunista, que “a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”, Marx fez-nos ver que era o privilégio material de uns que gerava a dominação dos desprivilegiados materialmente. Na antiguidade, isso se deu com homens livres dominando escravos e patrícios, dominando plebeus; no medievo, senhores dominando servos; e na modernidade da qual Marx falava, o mesmo acontecia com os burgueses dominando os proletários.

Com essa nova visão, a ideia de Revolução deixou de ser não só antinatural ou pecaminosa, mas também utópica. Compreendendo a real dinâmica socioeconômica de modo científico, Marx previu a vitória da classe dominada sobre a dominante. Para tal, os dominados, isto é, os proletários, desde que unidos, deveriam tomar a revolucionária consciência – de classe – de que eles eram os agentes da mudança. Em outras palavras, que a realização de sua liberdade estava tão somente nas suas mãos. Mudança que, obviamente, ameaçava o longevo império da classe dominante, ainda mais depois da Revolução aventurada na Rússia em 1917, onde a ideia socialista se fez realidade. E como a classe dominante nunca esteve disposta a perder o seu histórico privilégio, a contraofensiva diante dessa abertura histórica à Revolução não tardou e não deixou por menos.

Em resposta à ameaça socialista, a classe dominante, primeiramente, chamou a Revolução – a liberdade enquanto coisa para todos – de “caos social”. Com efeito, o fato de os dominados se libertarem dos grilhões com que os dominantes os oprimiram desde sempre era o desmoronamento do cosmos aristocrático. Então, os aristoi dominantes do início do século XX iniciaram uma potente engenharia social para, com ela, desarticular qualquer consciência revolucionária dos oprimidos, e, assim, impedirem o que, para os dominantes, seria o “caos”. E o produto mais efetivo dessa neoarquitetura da dominação foi a invenção da famigerada classe média: uma classe intermediária, composta por parte da classe dominada, que, no entanto, não mais se reconhecia como tal.

Com o expediente da classe média, os oprimidos enganados foram convencidos de que ascenderam socialmente e se esqueceram da Revolução para então sustentarem, em beneficio da classe que seguiu os dominando, a manutenção da situação de desigualdade e opressão social, desde que, é claro, essa pseudoclasse fosse ao menos aparentemente preservada da sempiterna degradação social promovida pela classe dominante. Com efeito, a estratégia da classe dominante para não perder o seu domínio foi enfraquecer a classe dominada, dividindo-a em classe baixa e classe média, a despeito da verdade marxista segundo a qual há apenas duas classes: a dominante e a dominada. E, cereja do bolo, colocar essa pseudoclasse contra a classe dominada à qual ela, de fato, nunca deixou de pertencer.

Nessa conjuntura, pensamentos que apontassem a real e cruel dominação e, ainda por cima, rotas de fuga efetivas precisaram ser alienados desse mundus classe média. E o esquecimento fortuito do pensamento verdadeiramente libertário – como o de Marx – deu-se, também, com a ascensão do pensamento pós-moderno, declaradamente libertário, mas que, por sob suas mais sinceras intenções, prosseguiu obliterando o cruel fato de que, no fundo, só há classe dominante e dominada. Resultado: atomizações sociais, tão benéficas à classe dominante – afinal, átomos isolados não constituem consciência de classe nem tampouco fazem Revolução -, cresceram qual erva daninha regado pelo ingenuamente sincero pensamento libertário pós-moderno.

Ideias de micropolítica, de sujeito molecular, de desterritorialização, e, mais recentemente, de empoderamento e de lugar-de-fala, em suma, toda a conceituália pós-moderna esterilizou sobremaneira o único solo sobre o qual poderia florescer a Revolução: o continente perdido da classe dominada, e isso mediante o plantio de guetos cada vez menores e mais atomizados, e, consequentemente, mais fracos diante da peste dominante. Em oposição ao pensamento marxista, que explicava as partes em função do todo, a pós-modernidade ainda é a aventura de explicar o todo a partir das partes. Todavia, assim como o todo não é a soma das partes, e assim como falta ao finito condições ontológicas para explicar infinito, assim também a particularidade de onde arranca o pensamento pós-moderno de modo algum consegue explicar o todo sócio-econômico-polítioco-cultural.

Diante dessa incapacidade pós-moderna, restou a ela permanecer no micropensamento que se ocupa de desejos e de experiências individuais e de demandas particulares. De modo que, quando finalmente há alguma coletividade organizada em função da liberdade, ela é tão justa que comporta apenas um sexo, uma sexualidade, uma raça, em suma, uma demanda particular, por uma liberdade outrossim particular. No entanto, a busca de liberdade enquanto privilégio particular, não nos esqueçamos, é o objetivo per se da classe dominante. Aliás, jaz aí a diferença entre classe dominante e dominada borrada pelo pensamento libertário pós-moderno: a classe dominante quer liberdade e segurança contra o caos apenas para si, enquanto a classe dominada deveria querer estas coisas para todos, indistintamente.

No entanto, com o patrocínio do atomizante pensamento pós-moderno libertário, temos mulheres, negros, homossexuais, transexuais, etc., em lutas atomizadas, cada qual buscando uma liberdade parcial. Com isso, o objetivo maior da esquerda, qual seja, a socialização irrestrita da liberdade, é impossibilitado. As partes, isoladas, porém paradoxalmente crentes na centralidade de suas próprias excentricidades, perdem assim a possibilidade de constituírem a consciência realmente coletiva – de classe! – que mostre que todas elas são classe dominada. E mais, que o inimigo das mulheres, o dos negros, o dos homossexuais e transexuais, é o mesmo: a classe dominante. Por mais importante que seja às partes, às minorias, as suas lutas particulares, o marxismo ainda está aí para nos lembrar de que há uma luta muito mais urgente, primeira e universal que, no entanto, deixa de ser lutada ao ser dividida em uma miríade de lutas parciais.

Em relação ao viral discurso sobre o tal do “lugar-de-fala”, o filósofo brasileiro Vladimir Safatle diz que jamais a esquerda deveria ter sucumbido a ele. Não obstante, porque o fez, levou a rasteira épica que assistimos worldwide. Outro filósofo, Slavoj Žižek, é mais acusativo: que o discurso pós-moderno do “lugar-de-fala” é o discurso autoritário por excelência. Ora, dizer que um homem não pode se colocar no lugar de uma mulher; um branco, no de um negro; um heterossexual, no de um gay, e por aí vai; em nada difere do discurso dominante/patrimonialista segundo o qual ninguém pode ocupar a minha propriedade. Todavia, a ladainha libertária pós-moderna nos convence de que impedir o outro de se colocar no meu lugar é algo diverso das cercas eletrificadas e da militarização com que a classe dominante se resguarda. O que falta ser pensado seriamente é que, assim como o revolucionário marxista luta para que os privilégios socioeconômicos todas caiam em benefício da totalidade, assim também o libertário que pós-moderno deveria preferir a liberdade da classe dominada como um todo muito antes de querê-la para um (o seu) gueto particular.

Com tudo isso devemos concluir que o pensamento libertário pós-moderno deve ser jogado no lixo? Obviamente que não. Não só porque há pensadores pós-modernos, como os supra citados, que com efeito contribuem para a consciência de classe necessária ao vigor das esquerdas e à liberdade, mas isso ao criticarem o próprio pensamento pós-moderno – uma filosofia pós-moderna rigidamente crítica! -, mas sobretudo porque sem percorrermos os descaminhos do próprio pensamento libertário pós-moderno não entenderemos a dramática redução da liberdade nem a bancarrota das esquerdas pelo mundo. Marx sempre é de grande ajuda, mas não explicará essa desgraceira sozinho, visto que a maior virtude de seu pensamento é ser a ciência do caminho contrário: o da realização da liberdade universal.

Por mais que devamos criticar o pensamento libertário pós-moderno, não podemos jogar a água suja com o bebê junto – entendendo aqui a água suja enquanto a atomização social que esse pensamento produziu; e o bebê, a causalidade pela qual esse pensamento ganhou o mundo, mas que, no entanto, entregou o contrário do que prometeu. Algo como conhecermos bem a história do erro para não mais o repetirmos. Portanto, consumir o pensamento pós-moderno, sim. Porém, de modo radicalmente crítico – sendo que as melhores raízes dessa crítica devem estar fincadas no solo marxista. Não só o perigoso vigor da classe dominante exige isso, mas inclusive as justas suspeitas dos próprios pensadores pós-modernos de esquerda que ainda trabalham pela libertação universal. E isso porque somente quando a classe dominante não mais dominar – econômica, política, social, cultural e intelectual e ideologicamente – é que poderá haver um pensamento e uma vida verdadeiramente livres.

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O “povo” nas ruas e o povo “na rua”

povo nas ruas

“Não são só 20 centavos”, “Saúde e educação padrão FIFA”, “Fora Dilma”, “Não vai ter golpe”, “Fora Temer” e, agora -novamente -, “Diretas Já” são os (emb)lemas das grandes manifestações populares brasileiras que levaram “o povo às ruas” de 2013 a 2017. Jovens e velhos, ricos e pobres, coxinhas e petralhas, monarquistas e anarquistas usaram as ruas e fizeram nelas grandes eventos de expressão pública/política. Esses eventos, no entanto, envolveram invariavelmente a ideia de festividade. Muito embora todas contassem com pautas políticas – umas notoriamente sociais, outras inacreditavelmente elitistas -, a necessidade da política foi usada também como pretexto para espécie de carnavais cívicos.

Nas muitas manifestações de que fui partícipe, depois de os manifestantes respirarem muito gás lacrimogênio e torcerem para não serem agredidos pela Polícia Militar, invariavelmente se reuniam em torno de cervejas geladas na construção de um pseudo-heroísmo-hedonista-patriótico-revolucionário. Nas poucas que eu participei, não por concordar com suas pautas, mas, digamos assim, por interesse sociológico, via que após os manifestantes proferirem coletivamente seus despautérios pró-ditatoriais ao som de ruídos de panelas e com a Polícia Militar servindo de cenário para selfies, outro pseudo-heroísmo-hedonista-patriótico, só que dessa vez reacionário, era coletivamente construído, todavia ao redor de taças de champanhe e em restaurantes devidamente gentrificados.

A última grande manifestação popular tupiniquim desse domingo 28 de maio na praia de Copacabana pedia por Diretas já. E a festividade, como não poderia deixar de ser, também esteve presente, embalada por deliciosos shows de reconhecidos artistas e celebridades nacionais. Mais uma vez é reforçado o fato de que o “momento festa” vem sendo condição sine qua non às atuais manifestações políticas. Essa neopolítica afetivo-hedonista, que muitas vezes se confunde com uma micareta, além de desidratar politicamente a efetividade das manifestações populares, nos obriga a colocar a seguinte pergunta: que povo é esse que está nas ruas?

Essa pergunta, que não se dará por satisfeita enquanto não tiver como resposta: “um povo para o qual a vitória política é menos importante que a construção de uma narrativa pessoal digna de Facebook”, tem o propósito de evidenciar um outro povo, que também está nas ruas desde 2013, mas que, apesar de ser bem mais numeroso, pelo simples fato de não fazer festa pelas esquinas, tampouco faz celebridade nas timelines. Estou falando dos 14 milhões de desempregados que estão, literalmente, na rua. Aliás, porventura não temos aqui o estranho caso de uma metáfora literal: o maior índice de desemprego da história do Brasil botou o povo “no olho da rua”?

Com efeito, também temos esse povo, que é de outra categoria, nas ruas; povo este que, diferente do político-festivo-redesocializado, não tem condições de pagar por cervejas – muito menos por taças de champanhe – depois de sua extenuante “manifestação” diária atrás de emprego. E o seu contingente, infelizmente, só aumenta. E como procurar por trabalho não paga as contas nem enche barriga de ninguém, esse massivo desemprego tem uma consequência socioeconômica mais aparente do que as longas e frustrantes filas de emprego. E – spoiler – também nas ruas. A neoexplosão da informalidade na forma com que esse povo desempregado busca sobreviver é empiricamente perceptível nas cidades brasileiras, principalmente nos grandes centros urbanos.

Minha percepção mais aguda disso se dá em Copacabana, bairro populoso no qual vivo e onde, consequentemente, recaem mais cotidianamente minhas observações. Faz um ano que vejo o número de camelôs aumentar drasticamente pelas calçadas da Princesinha do Mar. Essa “ilegalidade” há muito se faz presente, todavia, de modo comedido e somente após o término do horário comercial – na verdade, depois que o “rapa” para de trabalhar. Atualmente, contudo, as calçadas estão lotadas de ambulantes desde a manhã até a noite. A crise econômica que levou a isso muitas vezes me fez pensar que estamos nos reaproximando do modo medieval de troca de mercadorias feito exclusivamente em ágora pública.

Noite dessas, voltando para casa em um ônibus que circula pela Avenida Atlântida, via à beira-mar conhecida, de um lado, pelo calçadão de ondas de pedras portugueses pretas e brancas mais famoso do mundo, e de outro lado, pela prostituição ao grande estilo “Katia Flávia, Godiva do Irajá, escondida aqui em Copa”, fiquei surpreso ao ver que, assim como os camelôs nas avenidas internas do bairro, também sobre as calçadas de Burle Marx na orla as prostitutas se multiplicaram, e muito. O povo desempregado, para sobreviver, vende tanto coisas na rua, quanto a si mesmo nelas.

Interessante é ver que o prefeito da Cidade (que luta para seguir mentindo que é) Maravilhosa discute publicamente e busca solução apenas para a parte do povo desempregado que lota as ruas vendendo bugigangas. Também pudera, essa impertinente presença é um problema social na medida em que é um problema econômico: faz os lojistas legais arrecadarem menos e, consequentemente, pagarem menos impostas. Já o tsunami de prostitutas à beira-mar permanece longe dos “problemas oficiais” da cidade. Não só porque alimenta melhor o internacionalmente procurado mercado turístico-sexual carioca, mas também porque as prostitutas, assim como as mulheres em geral, têm constantemente suas necessidades preteridas pela nossa sociedade.

Para ilustrar com um último exemplo carioca a presença do povo desempregado nas ruas, cito aqui uma velha conhecida da Guanabara: a presença de ambulantes vendendo toda sorte de mercadorias nos trens metropolitanos, fato que mesmo na era lula de pleno emprego se fazia presente. Entretanto, na atual situação de “vácuo-emprego”, o comércio informal nos trens não só aumentou drasticamente, como sobretudo radicalizou os roubos de carga na cidade do Rio de Janeiro. Somente nesses primeiros meses de 2017 foram mais de 3 mil. O esquema de roubos de mercadorias e sua venda ilegal é tão eficiente que menos de duas horas depois de uma carga ser roubada na Avenida Brasil ela já está sendo vendida nos trens, e muitas vezes por 1/4 do que custam nos estabelecimentos legais. Afinal, esse povo desempregado não só precisa fazer dinheiro com o que estiver à mão, mesmo que ilegalmente, como também precisa pagar o mínimo possível seja lá pelo que for.

Tentei aqui apresentar duas ideias distintas de “povo nas ruas”. A primeira, referente às eventuais manifestações político-festivas, cujo “povo” (e a essa altura as aspas já devem fazer seu pleno sentido), depois de gases lacrimogênios e cervejas ou selfies e champanhes, esvazia as ruas para então ocupar orgulhosamente as redes sociais. A segunda, apontando uma realidade nada carnavalesca na qual o povo (sem aspas algumas, afinal, estamos falando de quem não é povo apenas eventualmente) manifesta desesperadamente sua necessidade de trabalho. Só que esse povo, que foi posto “no olho da rua”, isto é, que não tem trabalho, é quem verdadeira e diariamente está “nas ruas”, seja procurando emprego, seja fazendo delas o seu escritório informal/ilegal.

Minha crítica conclusiva, que se dirige a esse “povo” entre aspas, é no sentido de acusá-lo de que, se fosse povo mesmo, e não só um bando de personagens político-festeiros, ele sairia às ruas para lutar por um país no qual o povo – sem aspas – desempregado e desesperado não tivesse somente as ruas como opção de vida. E isso porque, na realidade, o que vemos é que, quanto mais aquele “povo” se manifesta carnavalescamente nas ruas, mais o povo está, literal e metaforicamente, “na rua”. O que o povo brasileiro precisa, e urgentemente, é de menos festa e mais política.

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“Diretas Já!”, bebê? Consciência de classe!

diretas já
Desenho: Laerte

O povo brasileiro, depois de 24 anos, clama novamente por “Diretas já!” diante do risco, aberto pela crise política tupiniquim, de uma eleição indireta para presidente da república capitaneada por um parlamento notoriamente corrupto e antipopular. Entretanto, esse clamor popular mais uma vez esconde uma terrível ingenuidade. Ora, “Diretas Já!” pressupõe que eleições diretas atenderiam os interesses do povo, e eleições indiretas, os dos políticos corruptos clientes do capital. Não obstante, entendendo esses dois “adversários” em termos marxistas, enquanto classe dominada versus classe dominante, o frágil castelinho de cartas democrático do povo desmorona, pois crer que eleições diretas mudarão o fato de que quem seguirá dominando será a classe dominante é tão tolo quanto esperar que dominante aceite outro significado.

Sequer podemos dizer que “Diretas Já!” é folclórico, pois, do inglês folklore (folk: povo + lore: conhecimento), folclore significa “conhecimento do povo”. Não obstante, a classe dominada entender que pela mera ocasião das urnas pode moderar, quiçá impedir a dominação da classe dominante outra coisa não é senão ignorância popular a respeito dos sistemas político e econômico vigentes. Dentro da engenharisticamente arquitetada democracia representativa/liberal/burguesa, o povo achar que o fato de ele votar ou votarem por ele fará alguma diferença é nada mais que estupidez; o seu folclore estúpido; sua folkstupidity.

E isso porque, em primeiro lugar, o competente trabalho de classe da classe dominante vem sendo obliterar a certeira leitura de Marx, eternizada no Manifesto Comunista, segundo a qual o Estado não é nada além do que “o comitê executivo da burguesia”. E a democracia, essa ideia de que é o povo, mediante o voto, que governa é a falácia da classe dominante para mentir que o Estado não é a sua exclusiva res privata. Ora, em uma democracia liberal/burguesa, o Estado democrático continua sendo o bunker do capital; a democracia, o bureau da oligarquia. Com efeito, a maior burrice do povo é seguir ignorando isso.

Sejamos realistas, povo brasileiro! Em ambos os casos, seja com eleições diretas, seja com indiretas, será eleito presidente um representante dos interesse da classe dominante. “A realidade é dura”: ou a classe dominante apresentará seus candidatos ao arbítrio popular, ou arbita ela mesma entre eles. Até mesmo Lula, tido como o herói “guerreiro do povo brasileiro”, embora tenha de fato distribuído renda, universidades e cisternas aos mais pobres como “nunca antes na história desse país”, ele só foi presidente da república porque atendeu, melhor dizendo, enriqueceu a classe dominante. Prova disso é que bastou o lulismo – todavia nas mãos menos competentes de Dilma – não mais realizar o sempiterno objetivo das elites e, voilà, rua!

O paralelo entre as “Diretas Já!” de 1983 e 2017 é inevitável. No recente século passado, a pecha “democrática” – e derrotada – foi tentar impedir que os militares escolhessem o presidente da república – que, como sempre, representaria as elites – para que o povo pudesse escolher, “democraticamente”, o presidente da república representante das elites. E o atual “Diretas Já!”, repetindo o erro do passado, pretende impedir que parlamentares corruptos – clientes cativos de empresários outrossim corruptos – elejam indiretamente um representante dos interesses desses empresários para que nós, o povo, escolhamos, dentre as opções que os políticos corruptos nos darão, o representante dos interesses dos empresários corruptos.

Eis a falácia da moderna “democracia”: fazer com que o povo, estupidificado, legitime a escolha dos representantes da classe dominante sem que esta precise fazê-lo despoticamente, via ditadura ou golpe, expedientes que, para quem quer lucrar sempre e muito, têm preço – econômico, político, ético – alto demais para serem usados constantemente. E “Diretas Já!”, novamente, é o grito do povo no sentido de seguir fazendo o que a classe dominante quer que ele faça: legitimar os representantes dela.

Fazendo uma analogia com a contemporânea e mui polemizada mazela social do crack, assim como os seus usuários, preteridos e esquecidos pelo sistema, valem-se desesperada e compulsivamente da “pedra” para suportarem tal condição – sem no entanto mudá-la com o vício -, assim também o povo, copiosamente, corre atrás da “pedra” da “democracia” para ao menos suportar, melhor dizendo, esquecer o fato de que o sistema seguirá dominado pela classe dominante. Nesse velho quadro, clamar coletivamente por “Diretas Já!”, infelizmente, é apenas desespero popular diante de uma crise de abstinência mais fortemente percebida. Metaforicamente, é a ignorância suicida do viciado fazendo-o escolher ele mesmo a sua destruição para não ver, crua e claramente, que, na verdade, não há escolha: o sistema no qual se encontra é que o destrói.

Ver essa realidade sem o Véu de Maya “democrático” tecido historicamente pela classe dominante para perpetrar mais expeditamente a sua dominação; no caso tupiniquim, aceitar o fato de que não importa quem escolherá o próximo presidente do Brasil, se o povo, diretamente, ou se os representantes da classe dominante, indiretamente, pois em ambos os casos a classe dominante seguira como tal; realizar isso, sem dúvida alguma, é traumático. Psicanaliticamente falando, contudo, todo trauma tem uma dupla virtude: primeiramente, não permitir que aquilo que o causa desapareça no esquecimento – o trauma é a fortuita presentificação de uma intervenção insuportável do real; e, em segundo lugar, é superável na medida em que o traumatizado é capaz de falar dele, de comunicá-lo àqueles que podem entendê-lo – sendo o analista o ouvinte/remédio ideal desse processo de cura.

Por isso aqui eu me dispenso, para evitar o pecado da ingenuidade, de propor alguma solução para o impasse traumático no qual nós, povo brasileiro, estamos metidos nessa inócua querela entre “Diretas Já!” e “Indiretas quando a classe dominante quiser”. Faço apenas questão de reforçar insuportavelmente esse trauma. Não só para que o meu encontro – enquanto povo – com o real se apresente em toda a sua radicalidade, sem véus/cracks anestesiantes, mas, sobretudo, para que, ao mesmo tempo, falando dele a quem me ler/ouvir, eu possa me “destraumatizar”. Se todos nós, dominados, fizéssemos isso certamente nos despatologizaríamos a ponto de lidarmos com o real de nossa opressão de modo mais objetivo, político e subversivo, exatamente como a classe dominante faz para nos oprimir.

É porque a classe dominante sabe nitidamente que, de um lado, a democracia liberal/burguesa é a melhor fantasia para a sua estável oligarquia, e que nem mesmo eleições diretas mudarão o fato de que os presidentes serão representantes exclusivos seus; e também, de outro lado, porque está certa de que, até aqui, conseguiu fazer com que a classe dominada permanecesse alienada dessas cruéis verdades; por isso tudo é que ela domina tão certeiramente. O que se depreende disso tudo é que falta ao povo um esclarecimento fundamental, precisamente aquilo que Marx prescrevia aos trabalhadores para que a Revolução fosse possível, qual seja: consciência de classe – consciência essa que sobra à classe dominante. E se o povo puder conscientizar-se de sua potencialidade revolucionária fazendo aquilo que a psicanálise prescreve ao traumatizado: assumir o trauma e comunicá-lo a quem melhor pode compreendê-lo, não a psicanalistas, obviamente, mas a si próprio?

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O pior pós-capitalismo

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A expressão “pós-capitalismo”, embora seja bastante usada para se referir ao sistema econômico que se seguirá ao capitalismo, ainda é negativa, no sentido de não haver certeza alguma acerca do próximo modus economicus que sistematizará, materialmente, as relações humanas. O pós-capitalismo ainda é apenas um imenso significante vazio, cuja única virtude pseudopositiva quiçá seja indicar que haverá um após em relação ao capitalismo, que, no entanto, não sabemos qual.

Em respeito aos sistemas econômicos, pelo menos os que precederam o capitalismo, sabemos que são históricos e finitos. São, com efeito, sistematizações determinadas dos modos de produção e de subsistência materiais de sociedades humanas outrossim determinadas. Mudando-se a conjuntura social, muda-se consequentemente a forma econômica mediante a qual a sociedade subsiste. E é essa (cons)ciência que nos permite pressupor que o capitalismo, assim como o escravismo e o feudalismo, antecessores seus, morrerá e dará espaço a um novo sistema econômico.

Marx foi o pensador que talvez mais fortemente tenha acreditado nisso, profetizando que o capitalismo ruiria inevitavelmente devido às suas próprias contradições para ser sucedido pelo socialismo, e então pelo comunismo, tanto quanto a sua ciência – autonomeada não-utópica – pôde prescrever. Entretanto, depois de duas experiências históricas marxistas dignas de nota: os comunismos soviético e cubano; aquele, já encerrado, e este, sendo desmontado diante dos nossos olhos; hoje em dia, infelizmente, o marxismo serve muito mais como um farol simbólico do que como o GPS que indica o rumo econômico preciso que nossas sociedades tomarão.

O conceito de pós-capitalismo, em sua abertura indeterminada, de certa forma é um antídoto à febre marxista de prever o futuro em seus mínimos detalhes. Agora, pelo simples fato de indicar um após em relação ao capitalismo, a ideia de pós-capitalismo guarda um quê de Marx pelo simples fato de contar com o fim do capitalismo. Mantendo essa – saudável – “esperança” marxiana, o conceito de pós-capitalismo, no entanto, não deveria nos permitir pressupor nada além de duas opções: ou um após melhor do que o capitalismo, ou um pior.

Todavia, uma terceira opção não pode ser descartada . E se o capitalismo for um sistema econômico sui generis, e, mesmo depois de morto, não dê lugar a nenhum outro? E se não houver nada melhor nem pior do que o próprio capitalismo depois dele, mas apenas a presença eterna de seu cadáver a assombrar morbidamente as nossas sociedades? Para ilustrar essa – terrível – ideia, nada melhor do que o conceito de zumbi. Com efeito, o zumbi é o ser que já morreu mas que, de certo modo, permanece meio-vivo enquanto suga a vida do que vive. Em modo zumbi, o capitalismo pode permanecer como o sistema econômico morto-vivo.

E se o pós-capitalismo, na mais realista das opções, no final das contas, for unicamente o capitalismo zumbi, ou seja, o capitalismo oficialmente morto, mas, sinistra e espectralmente, sugador inarredável e paradigmático da vida das sociedades? Se esse quadro parece demasiado sinistro, isso se deve menos a qualquer pessimismo do que a característica genética e sempiterna do próprio capitalismo de superar e destruir qualquer outra forma de organização econômica.

Outra possibilidade pós-capitalista no mesmo sentido da do zumbi é a fantasmática: o capitalismo enquanto alma penada; enquanto assombração insistente; mantendo-nos aprisionados a ele simplesmente pelo ruído fantasmagórico do arrastar de suas correntes, as mesmas com que até o presente momento nos agrilhoa. Seriam esses os piores pós-capitalismos, o capitalismo zumbi ou o fantasmagórico, que nunca desaparecem completamente, mas sobrevivem indefinidamente mediante seus restos putrefatos ou espectrais?

Pelo andar da carroça capitalista até aqui, não temos motivos para não esperar o pior do capitalismo; sendo esse pior, obviamente, a sua não desaparição das vidas das nossas sociedades. Entretanto, assim como nos filmes de ficção os sobreviventes de apocalipses zumbis se livram dos mortos-vivos destruindo o que resta de vivo nos seus cérebros, assim também devemos estar prontos para atacar o resto vivo do capitalismo assim que morto. E se a mais promissora arma que ainda temos para destruir o cérebro capitalista zumbi for mesmo as ideias do cérebro de Marx, que, até hoje, não só sustentam a morte total do capitalismo, como principalmente preveem um após melhor?

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Ainda é possível uma vitória da vida sobre a economia?

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Para entender a lógica do governo golpista e ilegítimo do Brasil em respeito a tudo o que ele está fazendo/cometendo contra o seu povo, e, ademais, a lógica neoliberal per se, nada melhor do que o título do texto do filósofo alemão Robert Kurz: “A vitória da economia sobre a vida”. Com efeito, é disso que se trata a vertical e imbatível priorização dos interesses econômicos a despeito de quaisquer outros: políticos, sociais, culturais, ecológicos, etc. Se a economia sempre foi determinante na vida das sociedades, e, consequentemente, na dos indivíduos que as compõem, depois de alguns poucos séculos, paramentada com a sua veste história capitalista, a economia reina tiranicamente sobre tudo e todos.

Kurz, em um outro texto seu chamado “A falta de autonomia do Estado e os limites da política”, apresenta de modo muito direto o empecilho indesejável que o Estado, mais especificamente o Estado de bem-estar social é para os propósitos do capital. Embora o capitalismo, em seu nascimento, tenha precisado dos Estados Nacionais – suas estradas, portos, forças militares, leis, etc. – para se alavancar, no seu desenvolvimento, melhor dizendo, na sua globalização, no entanto, os Estados Nacionais findaram como suas novas pedras no caminho. Não à toa, a neoliberália tem por lugar-comum o discurso do Estado mínimo; em termos neoliberais: o Estado que interfere minimamente – que, com sorte, não interfere – nos projetos do capital.

No que tange os cidadãos desses Estados Nacionais – indesejados pela economia capitalista global -, a saúde, a educação, a segurança e toda a sorte de direitos que receberam durante algum tempo do Estado de bem-estar social – e isso para que as massas fossem socialmente contidas, controladas, em suma, entretidas democraticamente para não interferirem decisivamente nos sórdidos movimentos do capital – a estes cidadãos resta engolir “A vitória da economia sobre a vida”, isto é, aceitar o fim do Estado enquanto amortizador/compensador da ignomínia capitalista.

O furto de direitos que nós, brasileiros, estamos sofrendo por parte do governo ilegítimo é a reificação da forma neoliberal que o Estado precisa assumir para não atrapalhar os movimentos do capital em sua forma global. “Esqueçam aquele Estado que se compromete com o socius” – diz-nos secamente o neoliberalismo. “Doravante, saúde, educação, segurança e tudo mais o que precisarem, tratem de vocês mesmos, reles cidadãos, de conseguirem, pois o capital não pode mais perder tempo, quer dizer, lucros sustentando vocês” – completa verticalmente.

Estamos, nós, cidadãos cativos dos nossos Estados Nacionais, definitivamente perdidos e irremediavelmente derrotados pela economia? Aparentemente sim, mas não absolutamente. Por mais que o capitalismo, atualmente, viceje melhor distante de seu velho bureau Estatal Nacional, a democracia ainda lhe é fundamental. Por isso, e talvez somente por isso os Estados Nacionais democráticos ainda não são desinvestidos completamente; são, aliás, mantidos e impostos, mundial e belicamente, como faz o mais capitalista dos Estados Nacionais, os EUA. E uma vez que o capitalismo, até aqui, não pôde prescindir da democracia (moderna/burguesa/representativa) pra se legitimar, e uma vez que a democracia envolve os cidadãos, eis aí a via com que estes ainda podem interferir nos planos daquele.

Um corpo de cidadãos, Estado Nacional e Capital formam o ser histórico moderno par excellence. Entretanto, por mais que o capital esteja vencendo os dois primeiros – melhor dizendo, sequestrando, minimizando o segundo contra os primeiros -, todas as três as instâncias ainda são constituintes essenciais da equação histórica que atende pelo nome de Sociedade Moderna. Outro alemão, o filósofo Jürgen Habermas, no texto “A nova obscuridade”, ressalta a potência revolucionária que os cidadãos ainda têm justamente dentro do Estado democrático imprescindível ao capitalismo. Superando a aparente ingenuidade da proposta de Habermas, ele aconselha o estabelecimento de laços solidários e comunicativos positivos entre os cidadãos, pois isso, e somente isso!, é capaz de fazer com que o Estado não seja tiranizado exclusivamente pelo capital.

O que Habermas propõe é que seja estabelecida pelos/entre os cidadãos, organizados concretamente em esferas subculturais, uma autogestão em resposta ao capital; uma nova organização dos poderes capaz de fazer as vezes do perdido Estado de bem-estar social. O filósofo chama essa nova organização de “sociedade da comunicação”. E como, conforme o provérbio popular, “quem não se comunica, se trumbica”, a sociedade fundamentada na comunicação pode reequacionar a hierarquia do capital sobre a vida, não somente tornando tácito a todos os cidadãos que é mais importante a eles, ou seja, à vida, com principalmente comunicando globalmente os crimes desumanos que comete o capital quando ele não é controlado, contido, como, por exemplo, o foi durante a valência do falecido Estado de bem-estar social.

Nesse sentido, a incontinente sordidez capitalista aclarada, por exemplo, na íntima e criminosa relação entre empresários e políticos no Brasil, apesar de ser um dos males que os cidadãos devem combater, deve, por isso mesmo, servir de carranca insuportável às formações e decisões políticas populares. Se as vilanias político-econômicas como as que estamos conhecendo nos seus mais abjetosdetalhes não servirem ao menos para reunir, política e solidariamente, os cidadãos contra elas, aí sim Kurz terá razão: a economia terá obtido vitória absoluta contra a vida.

Agora, como podem os cidadãos estabelecerem entre/para si uma autogestão democrático-comunicativa em função da vida como um todo e em detrimento da determinação meramente econômica da vida? Minha aposta inicial – em contribuição à proposta habermasiana – é a reconversão dos cidadãos, transformados pela economia em simples consumidores, naquilo que eles nunca deveriam ter deixado de ser, qual seja: indivíduos que constituem, eles mesmos, um Estado, para desse modo usufruírem de direitos civis e políticos. Com efeito, os cidadãos abandonarem o papel de reles consumidores – que o “estado capitalista” os obrigou a encenar para a sua própria bonança – outra coisa não significa, se não o mais certeiro ataque contra esse estado inimigo da vida, ao menos o mais à mão.

Em suma, para que a vida vença a economia dentro de um Estado Nacional, a condição de cidadão não deve mais servir, como vem sendo feito pelos próprios “cidadãos”, para que uns indivíduos se sobrelevem em relação a outros mediante ganhos particulares. Ao contrário, uma cidadania revolucionária em termos habermasianos, isto é, solidária e que se comunique em prol da vida – enfim, que comunique vida! – deve ser aquela que se encontra no pleno gozo de direitos comuns e públicos que permitam, sobretudo comprometam os cidadãos a participarem ativamente da vida política, a fim de que esta não seja mais fraca e derrotada diante do ímpeto da economia, este sim, conhecido de todos.

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Falácias humanitárias

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Há um ano, quando do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, paralelamente às manifestações populares propriamente políticas contra o democraticídio, houve um evento no Rio de Janeiro chamado “Ioga contra o golpe”. Nada contra as tradicionais disciplinas físicas e mentais indianas, que fazem bem tanto ao corpo quanto à mente dos seus praticantes. Agora, acreditar que cuidar do próprio umbigo físico e metafísico faria qualquer verão contra o inverno golpista que abriu a “era do gelo” ao Estado de bem-estar social brasileiro, convenhamos, é mais do que ingenuidade: é alienação ipsis litteris. E a direita golpista só tem a agradecer às ações “políticas” dos “yoggers contra o golpe”.

Está sendo divulgado um vídeo com o comediante Marcelo Adnet no qual ele convida os cariocas para um evento musical na Fundição Progresso chamado “Rock por Aleppo”, cujo objetivo é destinar 100% do valor arrecadado no festival às crianças afetadas pela guerra civil síria. Até aí nada de absurdo, pois, desde o “We are the world” do pedófilo Michael Jackson, “pela fome na África”, em 1985, assim caminha o humanitário. O que, entretanto, denuncia a imperdoável alienação do “Rock por Aleppo” é o restante do convite de Adnet, que, com seu sorriso falso à la Jim Carrey, diz o seguinte: “Venha se divertir e ao mesmo tempo ajudar as crianças da Síria!” Em outras palavras, “o máscara” tupiniquim convida-nos para assistirmos aos nossos músicos prediletos, bebermos nossas cervejas geladinhas, dançarmos alegremente junto de nossos amigos, e, ainda assim, acreditarmos que estamos fazendo alguma diferença contra o crime quiçá mais hediondo da atualidade: a “explosão” de crianças inocentes em função uma guerra feita por adultos culpados de poder.

O humanitarismo, decerto, chega até nós com muitas e distintas máscaras. Por trás de algumas delas, no entanto, não há nada de humanitário, apenas uma performance vazia, ou, o que pode ser pior, um egoísmo incapaz de se assumir, a não ser sob o espetaculoso disfarce do altruísmo. O filósofo Slavoj Žižek nunca teve papas na língua para denunciar que o real objetivo dos ricos países do primeiro mundo que dispendem vultuosas ajudas humanitárias aos pobres países do terceiro mundo é mitigar a culpa oriunda da consciência de que são precisamente as suas abundantes riquezas que causam, por mil vieses capitalistas, as aviltantes pobrezas em cada vez mais cantos do mundo. Basta estes afortunados países mandarem algumas migalhas aos miseráveis – que só são miseráveis relativamente às fortunas deles – e, voilà, os ricos podem fruir de suas bonanças mais tranquilamente.

Esse expediente dos países ricos de enviarem alguns trocados aos distantes necessitados pobres, com o objetivo de dirimir algo dos males do capitalismo, e que se apresenta sob o manto cada vez mais canastrão do humanitarismo, merece um neologismo só seu, que me arrisco aqui a chamar de “humanetarismo”: um humanitarismo meramente monetário, baseado no envio de algum dinheiro a quem precisa, desde que quem o envie nada mais precise fazer. Claro, o que deveria ser feito, o que realmente resolveria os problemas da miséria e da radical desigualdade socioeconômica mundial, seria o deliberado desinvestimento nesse sistema – capitalista – produtor de desigualdades radicais e de misérias extremas em nome de riquezas cada vez mais astronômicas concentradas em menos mãos.

Todavia, o exemplo do “Rock por Aleppo” mostra que é mais do que apenas enviar algum dinheiro aos desendinheirados o que esse “humanitarismo” está planejando. Ao mesmo tempo que pretende destinar alguns tostões às crianças vitimadas pela guerra síria – movimento no entanto absolutamente paliativo, pois não toca na causa do problema, apenas a remedia -, esse “humanitarismo” quer fazer isso mediante o prazer hedonista dos pretensos “humanitários”; via boa música, boa iluminação, bom ar-condicionado, boas bebidas, tudo isso rodeado de pessoas bonitas e bem vestidas dentro de um espaço devidamente gentrificado e, o que é mais importante, bem distante do real problema que imaginam resolver. Dessa visada, o “humanetarismo” diz pouco desse humanitarismo tacitamente hedonista. Mais apropriado seria outro neologismo, que sou tentado a chamar de “hedonitarismo”: o humanitarismo que se dá mediante o prazer hedonista de quem pretende agir humanitariamente.

O verdadeiramente hedonista e duvidosamente humanitário “Rock por Aleppo”, que nada faz para que adultos culpados deixem de explodir crianças inocentes, apenas pretende enviar “lotes de Band-aid” às feridas delas, pode ser colocado no mesmo saco de alienação do verdadeiramente egoísta e vergonhosamente político “Ioga contra o golpe”, que, através do alongamento muscular e do “equilíbrio do eu alienado”, acreditou que faria alguma diferença contra o democraticídio e o roubo dos direitos sociais que teve e está tendo lugar no Brasil. A Ioga não é uma religião, e sim uma “filosofia”. Entretanto, no caso do “Ioga contra o golpe”, cabe a ele a crítica de Marx segundo a qual “a religião é o ópio do povo”. Só que, nesse caso, em vez de rezar contra os males propriamente humanos do mundo, alonga-se o corpo e relaxa-se a mente; no caso do “Rock por Aleppo”, ouve-se boa música, sacode-se o corpo, bebe-se “bons drinques”, e, para muitos, volta-se desse “hedonitarismo” no ar refrigerado do Uber.

Insisto nessas aberrações que aqui chamo de “humanetarismo” e “hedonitarismo” sobretudo em respeito aos verdadeiros humanitaristas, por exemplo, os do Médicos sem fronteiras e os do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, notadamente aqueles indivíduos que, mais do que apenas dinheiro, levam os seus corpos e tempos a quem deles necessita urgentemente, não para obterem prazeres egoístas e consumistas, visto que estar presente em campos de guerra ou em áreas de catástrofes humanas e ou naturais é qualquer coisa menos ajudar o outro “curtindo a vida”. Os verdadeiros humanitários são aqueles que sabem que a miséria do outro só será realmente reduzida se o conforto deles for realmente comprometido: reduzido na medida do desconforto desse outro. Esse é o humanitarismo real. Envergonhem-se todos os que pensam fazer isso regados a boa música e cerveja ou alongando o próprio umbigo.

A vilania do capitalismo não é patente apenas por produzir sistematicamente miséria e guerras para melhor se manter e crescer. Seu mau também se expressa nessas “mercadorias” que aqui chamei de “humanetarismo” e de “hedonitarismo”, distribuídos worldwide com o rótulo falso do humanitarismo; mas que, como qualquer iPhone ou Uber, “ajuda” necessariamente apenas os próprios capitalistas, e, contingentemente, os indivíduos que os consomem alienadamente. Não, “yoggers contra o golpe” e “rockers por Aleppo”, a potência política e o senso humanitário de vocês, longe de serem a mais pálida solução a qualquer um dos graves problemas atuais, são, no mínimo, a manutenção deles. Mais grave ainda: o seu agravamento.

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Empresário-de-si-mesmo versus Proletário-mesmo

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A expressão “proletário-de-si-mesmo” seria algo redundante, uma vez que o proletário, de certa forma, já é um “si-mesmo”: aquele que, solitariamente, vende sua força de trabalho para sobreviver, e assim mesmo permanece, mais ainda, assim deve permanecer para o bem do capitalismo. Se aqui invisto nesse pleonasmo é para criticar o contemporâneo, e cada vez mais investido, conceito de “empresário-de-si-mesmo”: sujeito que, como o proletário, também vende a sua força de trabalho no mercado, mas que, antes disso, e sobretudo para isso, já “trabalha”, investe, árdua e não-remuneradamente, para estar a altura das necessidades daqueles que, com sorte, comprarão a sua força de trabalho para explorá-la.

Antes de prosseguir, é importante percorrer os significados históricos da palavra “proletário”. A expressão “proletari” surge na Roma antiga para designar os cidadãos da classe mais baixa que, despossuídos de quaisquer bens materiais, tinham por única função social gerar prole para ser usada pelos exércitos. Muitos séculos mais tarde, Karl Marx reutiliza o termo para, comezinhamente, diferenciar os trabalhadores dos burgueses capitalistas, porém, mais especificamente, para diferenciar os trabalhadores conscientes do seu papel social e histórico daqueles que não adquiriram tal consciência.

Marx, compreendendo, de um lado, que o motor da História é a luta de classes – como lemos no “Manifesto Comunista” -, e, de outro lado, que a riqueza social é medida com base no tempo de trabalho necessário para produzir mercadorias – ideia presente em “O Capital” -, enxergou nos trabalhadores, os indivíduos despossuídos de bens que no entanto produzem a riqueza, a classe que tem por destino vencer a substantiva luta das sociedades humanas. Mas isso, prega Marx, somente se o trabalhador se proletarizar. O eternizado lema dessa revolução jaz no Manifesto: “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”

Dessa perspectiva, é fácil entender porque, atualmente, a “identidade proletária” é sistematicamente desmantelada pelo sistema capitalista, afinal, este sabe, como Marx, que se seguir comprando a força de trabalho daqueles que, unidos, irão derrotá-lo, estará com isso dando um tiro no próprio pé. O ideal de “empresário-de-si-mesmo”, ao contrário, cinde os trabalhadores em unidades autônomas e competidoras entre si, destruindo assim qualquer possibilidade de uma consciência global entre aqueles que produzem a riqueza das suas sociedades.

O problema mais grave, contudo, é o fato de os próprios trabalhadores contemporâneos rejeitarem a sui generis identidade revolucionária que tão somente lhes cabe. Vestidos com o sofisticado uniforme de “empresários-de-si-mesmos”, são, na verdade, demasiadamente reacionários: reencarnam os seus antigos ancestrais romanos que, assim como eles, não são senhores da riqueza social, permanecendo como meros “produtores de população”, só que agora para a “guerra mundial” do capital. Rejeitar a identidade proletária tem um amargo preço: abrir mão da revolução.

Marx cunhou a expressão “lumpenproletariat” (lumpemproletariado) para designar os trabalhadores que, sem consciência de classe, ou o que é o mesmo, sem unirem-se a outros trabalhadores em um grande corpo proletário consciente, atendiam subservientemente aos interesses da burguesia. Se em alemão “lumpen” significa “trapo”, “farrapo”, a sua célebre significação marxiana é: “seção degradada e desprezível do proletariado”. A radical escolha do trabalhador, portanto, é, ou unir-se, conscientizar-se, proletarizar-se, ou, em vez disso, desunir-se, ser eternamente explorado, lumpemproletarizar -se.

Essa besta capitalista chamada “empresário-de-si-mesmo” tem o vício de fazer da virtude proletária um trapo, um farrapo. Hoje em dia, cada vez mais vence a ideia de que é degradante para um trabalhador identificar-se com a condição de trabalhador, e, pior ainda, com a de proletário. Só que, sendo absolutamente marxista, não é difícil concluir que essa “nova ideologia” esconde o fato de que o “empresário-de-si-mesmo”, essencialmente, é um lumpemproletário: aquele que mais subservientemente está a serviço da burguesia.

Sem embargo, aqueles que gastam, em média, trinta anos de suas vidas, sem dizer uma imensa quantidade de dinheiro, para estudarem, especializarem-se, falarem no mínimo três idiomas, vestirem-se adequadamente, responsabilizarem-se privadamente pelos seus planos de saúde e de aposentadoria, e tudo isso apenas para poderem vender as suas forças de trabalho à burguesia para, doravante, serem explorados por ela como qualquer trabalhador, são o que senão a “seção degradada e desprezível do proletariado” que, lumpenproletariamente, faz tudo o que seus opressores burgueses mais querem?

O “empresário-de-si-mesmo” é um monstro social do mesmo calibre que a “classe média”. A classe dominante, para mais-dominar, precisou nublar o fato de que as sociedades são constituídas por duas únicas classes: a dominante e a dominada. Então, inventou essa “classe” intermediária, que, na verdade, é constituída por indivíduos da classe dominada, que, entretanto, não mais se reconhecem como tais. São realmente dominados, porém, ideologizadamente dominantes. Não se unem mais aos interesses de seus pares, mas, burra e manipuladamente, aos de seus ímpares.

O pecado capital do “empresariado-de-si-mesmo” está em desistir do poder sui generis que Marx enxergou no proletariado, esse corpo de trabalhadores autoconsciente do seu papel histórico e essencialidade social que, somente enquanto proletariado, unido, é o agente da revolução que dará cabo da exploração que sofre. O “empresário-de-si-mesmo”, com efeito, está muito mais próximo do baixo cidadão romano, cativo da rígida e tradicional estratificação social antiga, que se já não tinha chance de mudar a sua condição, menos ainda podia revolucionar a sua sociedade.

Agora é a ocasião de desinvestirmos de vez a redundante expressão “proletário-de-si-mesmo”, usada inicialmente para criticar a besta social chamada “empresário-de-si-mesmo”. E isso para defender que enquanto “si-mesmo” um trabalhador é apenas um lumpemproletário. É precisamente por deixar de ser “si-mesmo” para formar um corpo unido e consciente com os demais “si-mesmos” como ele que o trabalhador deixa de ser um “lumpen”, um trapo velho e desprezível nas mãos daqueles que compram a sua força de trabalho, e veste a farda com a qual revolucionará a sociedade.

Já o “empresário-de-si-mesmo”, ao contrário, é um “si-mesmo” deliberada e demasiadamente ensimesmado; isolado dos seus iguais, e o que é pior, concorrente deles. Em outras palavras, é um lumpemproletário que se enxerga como burguês – assim como a classe média é a classe dominada que se vê como dominante. O único “si-mesmo” que pode existir com alguma dignidade social é o trabalhador. Não obstante o sistemático furto dessa dignidade pelos “detentores dos meios de produção”, isto é, os burgueses, os trabalhadores deve proletarizarem-se. Por isso, em vez de “proletários-de-si-mesmos”, e de modo algum “empresários-de-si-mesmos”, todos nós que trabalhamos devemos ser, em primeiro lugar, “proletários-mesmos”!

Brasil, meu impaís

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Se uma coisa não é mais possível, dizemos que é impossível. E se essa coisa é um país, por exemplo, o meu, o Brasil, nem mesmo a sua língua deve censurar a minha impertinência neologista de, no atual momento, mais do que em todos os outros dos meus 43 anos de brasilidade, chamá-lo de impaís. Nas linhas que se seguem, nas quais ocuparei o meu “lugar de fala” enquanto cidadão brasileiro, solicito a distinção entre “país”, enquanto o lugar no qual os interesses do povo são possíveis, e impaís, onde eles são impossíveis.

Nasci em 1973, último ano do famigerado “Milagre Brasileiro”. Convenhamos, milagre mesmo é uma época também conhecida como “Anos de Chumbo”, e o que é pior, cativa de uma ditadura militar, ser chamada de milagrosa. Mas a explicação é fácil: o tal milagre se referia ao extraordinário crescimento econômico, que, no entanto, beneficiava apenas a velha minoria dominante, justamente a classe que sentiam-se, mais uma vez, milagrosamente abençoada.

A partir de 1974, no entanto, o milagre começou a degringolar. Milagre pela metade: o crescimento nacional, que chegou a ser de 13% ao ano, dez anos depois mundanizou-se em parcos 6,5%. Em 1983 a inflação anual era de 200%. Dívida externa galopante, estagnação econômica, radicalização das desigualdades sociais, desemprego: eis a graça de um milagre produzido por anjos militares caídos. Em suma, embora eu tenha nascido em um ano ainda apelidado de “milagroso”, o chão de toda a minha infância foi a crise, cuja aridez só não me afetou porque eu ainda estava no colo de mamãe. Já os pés dela…

Quando eu então estava deixando a infância e começando a entender minimamente a realidade ao meu redor, o pouco que eu percebia seria posteriormente chamado de “A década perdida”, alcunha ressentida à estagnação econômica que o Brasil, bem como a América Latina toda, sofreu ao longo da década de 1980. Se o impaís ainda não me impossibilitava por conta das possibilidades que mamãe mantinha abertas para mim, isso não quer dizer que a realidade não estivesse sendo madrasta, fosse para ela, fosse para a maioria dos brasileiros.

Minha entrada na adolescência foi contemporânea do colapso do Regime militar. A “Redemocratização”, mudança de paradigma nacional, de militar para democrático, foi o ingresso definitivo em mim de uma germinal consciência política a respeito daquilo que eu ainda chamava de meu país. Consciência todavia torpe e ingenuamente maniqueísta: o “Último Ditador”, João Baptista Figueiredo, era o mal; o “democrata” oportunista da vez, José Sarney, o bem. Os anos que se seguiram, entretanto, não deixaram dúvidas de que aquele bem era igualmente mal, ou pior. Mas, como disse Hegel, sempre começamos errando.

A euforia das “Diretas Já” de 1984 é um belo exemplo disso. Começamos com um presidente da república eleito indiretamente, Tancredo Neves, e, como se não bastasse, com a sua morte misteriosa antes mesmo da posse. De “Já”, o melhor que as “Diretas” puderam nos oferecer foi um presidente interino eleito indiretamente, José Sarney, que, se por um lado promulgou a “Constituição Cidadã” de 1988, por outro, manteve prioritários os seus interesses oligarcas, tão distantes dos interesses dos cidadãos brasileiros quanto os da ditadura militar. Só mesmo em 1989 os brasileiros tiveram oportunidade de votar diretamente para presidente.

Mas, repetindo Hegel, os começos são sempre erráticos – o acerto, se é que existe, é apenas a longa história de muitos erros. E para provar que o Brasil errou feio nesse (re)começo democrático, o povo elegeu ninguém menos que Fernando Collor, o marajá que se elegeu autodenominando-se “O caçador de marajás”, uma de suas muitas mentiras que, em parcos dois anos, tornou-se insustentável a ponto de ele ser deposto escandalosamente. Embora eu não votasse à época, foi inevitável concluir que o primeiro voto do povo depois de 25 anos de ditadura é que mereceu o impeachment.

Os “Cara pintada”, que acreditaram serem os responsáveis pela deposição de Collor – dentre os quais eu me incluía ingenuamente-, garatujavam em suas ideias um novo país, ou simplesmente um país, não obstante, sobre a tela rota do impaís que seguiu vivo pelas mãos do vice de Collor, Itamar Franco, que no seu último ano de governo, 1994, levou o país a uma inflação de 916,4%. Os “Cara pintada” desapareceram não porque seus anseios naif haviam desaparecido, mas porque as tintas verde e amarelo estavam custando os olhos da cara. A inflação incontrolável só parecia minimamente domada mediante sistemáticos cortes de zeros e mudança de nome da moeda. De 1989 a 1994 foram nove zeros e cinco nomes.

Então, na primeira eleição presidencial de que participei, na qual votei no metalúrgico sindicalista de um partido de esquerda, o Lula, o Brasil, no entanto, elegeu diretamente um doutor em sociologia de um partido de direita, Fernando Henrique Cardoso. Eleger diretamente um presidente da república, entretanto, ainda não significou que a res publica fosse diretamente do público, mas penas de parte dele – a parte que sempre foi privilegiada, diga-se de passagem. Mas o fato de durante o governo de FHC a inflação ter sido de 100% parecia um novo milagre depois dos mais de 900% do seu antecessor.

Tanto que o povo não só reelegeu FHC, como também, antes disso, aceitou passivamente que ele alterasse escusamente a Constituição para poder ser reeleito. Lula e eu mais uma vez perdemos as eleições de 1998. Nos anos que se seguiram vimos a dívida externa brasileira dobrar, e, como se tornaria vergonhoso doze anos mais tarde, nenhuma universidade federal foi aberta durante os oito anos de governo do doutor sociólogo. E isso porque o Brasil ainda era governado para que fosse nada além de um impaís.

Então, em 2002 Lula foi eleito presidente da república. Pela primeira vez, desde que me reconhecia como um cidadão brasileiro, senti-me representado. Minha passagem para a vida adulta foi contemporânea da possibilidade de o meu impaís finalmente se tornar um país. Mas como saber de antemão se ainda estávamos na hegeliana fase errática inerente aos começos? No entanto, ao longo dos dois governos do ex-metalúrgico, a inclusão social e a divisão de riqueza que teve início no país; a queda da inflação para metade do que era no governo FHC; sem dizer do pagamento da dívida externa – que antes de Lula era dita impagável; tudo isso e muito mais fazia parecer que estávamos nos aproximando da fase do acerto; que o impaís finalmente estava se tornando um país.

Só que a ventura lulista tinha duas faces: uma, populistamente publicizada, outra, sorrateiramente ocultada. Se, por um lado, começávamos a acertar, com o povo desfrutando, como nunca antes, da riqueza que ele mesmo produzia, por outro, no entanto, seguíamos errando, pois a manutenção da desigualdade persistia nos bastidores, com a velha classe dominante enriquecendo mais com Lula do que com seu antecessor de direita, FHC. Ao contrário do que eu pensei por muito tempo, o Brasil de Lula não deixou de ser um impaís para tornar-se um país: era os dois ao mesmo tempo.

Sem dizer que a ventura econômica que o país/impaís experimentou durante o governo Lula cobrou um preço altíssimo: se, aqui, enchia os brasileiros de eletrodomésticos, viagens ao exterior e “carrinhos do ano” – como repetia o ex-metalúrgico -, ali, fazia esquecer completamente a necessidade de o povo educar-se politicamente. O brasileiro se alienou mais ainda de sua historicamente precária politização porque confiou cegamente que o Pai Lula faria todo o trabalho. Hegel sussurra no meu ouvido que essa é a pior fase: aquela na qual erramos dramaticamente, todavia, iludidos de que estamos acertando.

Em 2010, Dilma Rousseff não foi eleita pelo povo e pelas elites senão para manter o desigual enriquecimento geral da nação – os pobres, desejando subir mais um degrau na escala social; e os ricos, planejando ascender mais ainda, e de elevador panorâmico. Só que, enquanto isso, a crise internacional crescia e imigrava clandestinamente para o Brasil. Quando, porém, a queda do valor dos commodities finalmente golpeou o Brasil em cheio, e o enriquecimento dos ricos foi afetado primeiramente – e isso para que o mínimo de autonomia econômica que o povo havia conquistado fosse preservado -, as até então silenciosas elites gritaram e golpearam o misto de país e impaís que vínhamos sendo, entretanto, para restabelecerem o impaís que beneficia somente a elas.

Hoje, em 2017, o povo é vítima de um governo golpista, corrupto não só por ter forjado um “crime de responsabilidade” inexistente com o qual depuseram Dilma – antes fosse! -, mas corrupto estrutural e descaradamente. O impaís que agora tempos abusa de sua impopularidade para reverter rapidamente a divisão de renda e a inclusão social que os governos do PT conseguiram realizar. Em poucos meses, o golpe já comprometeu profundamente os 20 próximos anos de educação e de saúde do povo; o mesmo estando para acontecer com a Previdência Social; sem dizer das imediatas privatizações que espoliam criminosamente a res publica.

Nasci e cresci em um impaís, ao qual, infelizmente, estou de volta na maturidade, depois de uma breve experiência na qual o meu impaís metamoforseava-se em país. Todavia, muito antes da metamorfose se completar, os ratos golpistas da velha elite devoraram a borboleta em cadeia nacional.

Para concluir prestando contas a Hegel, sou obrigado a reconhecer que, em matéria de país, estamos demasiadamente no começo. Basta olhar a quantidade de erros; seja os do povo, elegendo péssimos representantes, como no emblemático caso de Collor; seja principalmente os da elite, deselegendo anticonstitucionalmente os representantes do povo assim que estes não privilegiam os seus interesses. Não obstante, se essa nacional história de erros servir ao menos para construir um acerto logo mais adiante – como Hegel defende – o meu impaís quiçá possa ser chamado de país. Oxalá essa história errática seja mais breve do que eu.

Bestas sacrificiais

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“Não pense em crise. Trabalhe!”, diz a classe dominante golpista aos brasileiros. O que querem que engulamos a seco, contudo, é uma dura verdade: o sacrifício que estão (re)impondo ao povo não tem nada a ver com crise mesmo, como se se tratasse de uma dificuldade presente a ser superada. Querem apenas a radicalização da velha realidade sacrificial na qual a classe dominada trabalha única e exclusivamente para enriquecer e privilegiar ainda mais os já muito ricos e privilegiados. A novidade está em que, hoje, isso se dá sobre as cinzas da utopia de “igualdade social” que certas ideologias de esquerda tentaram tornar reais.

Entretanto, para quem ainda se recusa a aceitar essa desigual realidade, na qual umas pessoas são sacrificadas em função de outras (os pobres, em prol dos ricos; os proletários, em benefício dos burgueses etc.); para quem acha que, se as coisas infelizmente ainda são assim, essa história deve ser mudada, isto é, que devemos evoluir socialmente; proponho atravessar uma ideia do liberalíssimo filósofo alemão Immanuel Kant, presente no seu texto “Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita”, que diz o seguinte: a evolução é algo que concerne somente à espécie, e não aos seus indivíduos.

A hipótese do filósofo, obviamente, engloba todos os indivíduos de uma espécie. No caso da humana, indiscriminadamente ricos e pobres, proletários e burgueses, dominados e dominantes, etc. Para Kant, todos somos indivíduos de menor, insignignificante importância a construir, sacrificialmente, com nosso sangue, vida e histórias particulares, uma história muito maior, a da espécie humana, cuja finalidade, no entanto, desconhecemos, seja por nossa individual finitude temporal, seja principalmente por nossa ignorância em respeito ao plano da natureza que a tudo e a todos engloba.

Agora, se todos nós, humanos, somos nada mais que vítimas sacrificiais da “História Universal”, por que, além disso, a maioria de nós, a classe dominada, ainda é sacrificada pela minoria, a classe dominante? Por que o sobressacrifício? Será por que essa minoria até aqui dominante pensa que é a protagonista da grande História Universal, em função da qual todo resto – a classe dominada – deve ser sacrificada? Muito provavelmente sim. Todavia, mutatis mutandis, não foi exatamente isso que fez Marx ao eleger o proletariado enquanto o agente excelente e personagem principal da história humana, na qual era a burguesia a besta a ser sacrificada?

Mesmo que, como disse Kant, a grande história do universo não seja a nossa, mas a da natureza, ao menos podemos ler nesse subcapítulo confuso que somos que todos nós, ricos e pobres, dominantes e dominados etc., queremos uma única coisa: ser o centro em torno do qual a verdadeira história se dá. O problema é que, para tal, uns tenham de ser sacrificados; talvez para que o restante possa se alienar da verdade mais cruel, qual seja, que todos seremos sacrificados em função da história universal. Sacrificar alguns promete – todavia mentirosamente – espécie de coprotagonismo na grande história do universo.

Dentro dessa lógica, se, além do inalienável sacrifício ao qual todos estamos sujeitos dentro da História Universal, nossa pequena e impertinente glória subcapitular é sacrificarmos uns aos outros, cabe a pergunta: é melhor que a minoria (os ricos, a burguesia, etc.) seja sacrificada em função da maioria (os pobres, o proletariado, etc.), ou o contrário? Porventura não está nessa resposta a diferença entre esquerda e direita? Se sim, não seria a direita o agente anti-histórico por natureza, uma vez que seu intuito é manter as coisas como sempre foram, isto é, a minoria dominando a maioria? E a esquerda, por sua vez, cujo objetivo é mudar esse fato, não é, como diria Marx, o único agente histórico dentro da pequena história humana?

Ora, o objetivo de uma verdadeira esquerda deve ser o fim da sociedade de classes, isto é, o fim da dominação de uns por outros. Só assim será possível evoluirmos a uma realidade social onde nenhumas pessoas sacrifiquem outras, uma sociedade na qual nem mesmo o proletariado domine a burguesia, mas haja somente povo. E uma realidade na qual todos se “sacrifiquem”, melhor dizendo, sejam “sacrificados” igualmente já não é razão suficiente para que a “história” da direita seja sacrificada em função “história” da esquerda.

Se, como dito antes, a direita não quer fazer história, mas apenas manter as coisas como sempre foram, isto é, manter a dominação da minoria sobre a maioria, o desejo da esquerda de acabar com a sociedade de classes, de pôr fim à dominação de uns por outros, para que doravante haja somente uma sociedade igualitária, quer por sua vez também espécie de fim da história. A diferença entre elas, entretanto, está precisamente em um único e decisivo passo, qual seja, o fim da dominação de classe: a direita, evitando com unhas e dentes essa evolução; e a esquerda, fazendo o que pode para realizá-la.

Kant foi trazido aqui para lembrar-nos de que uma existência humana completamente livre de sacrifícios é impossível, uma vez que a história principal na qual estamos temporariamente imersos não é a nossa, mas a da natureza; em função da qual todos os indivíduos são inescapavelmente sacrificados. A presença de Marx, em troca, é fundamental porque nos informa que esse sacrifício pode e deve ser mitigado, mas isso somente se for igualitariamente democratizado, a ponto de as pessoas não sacrificarem-se umas às outras dentro do grande espetáculo sacrificial que é a História Universal.

Marx propõe a melhor “política de redução de danos” ao capítulo humano dentro da História Universal kantiana. Para os que acham que a dominação de uns sobre outros é capítulo que deve ser superado, essa é a política. Já àqueles que, em troca, impõem à maioria das pessoas que apenas trabalhe para privilegiá-los mais ainda, e, ademais, sem pensar que isso se trata da mais candente crise humana, a solução marxista é uma ameaça absoluta. E isso porque faz com que o inevitável sacrifício humano dentro da História Universal kantiana seja de fato comum a todos, e não recrudescido à maioria para que à minoria ele seja amenizado. Só assim o fatal sacrifício humano dentro da História Universal será menos sacrificial. Sacrificados, sim, mas pelo universo; não bestas sacrificiais de nós mesmos.

A Revolução na era dos “pós”, ou… acho que vi um proletariozinho!

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Hoje em dia, as esquerdas estão miseravelmente enfraquecidas. A revolução socialista que elas deveriam empreender, parece mais utópica que nunca. Culpar a vigorosa rea(scen)ção das direitas, no entanto, só aumenta a miséria das esquerdas, por mais que a fraqueza destas interesse àquelas. O atual tsunami reacionário, ao contrário, deveria estimular mais os seus antagonistas de esquerda. Contudo, a presença deles na pecha política mais parece ausência.

Mas as esquerdas não estão exatamente ausentes… Elas andam por aí, perambulando pelos parlatórios do mundo, todavia em modo zumbi. Zumbis que sobrevivem de hashtags. Que vida real, entretanto, está faltando às esquerdas para que, em vez de apenas reagirem pateticamente feito mortas-vivas, ajam virtuosamente contra a direita? Quem ou o que é a vida das esquerdas?

Marxianamente falando, a nossa sociedade capitalista é composta pela luta antagônica entre burguesia e proletariado. Estes, organizados politicamente, são a direita e esquerda, respectivamente. Assim como a vida da direita pulsa no peito da burguesia, assim também a vida da esquerda pulsa no peito do proletário – ou pelo menos deveria. Se hoje as esquerdas estão, como dito acima, zumbis, isso se deve a alguma “parada cardíaca” do próprio proletariado. Antes de desfibrilá-lo, talvez devamos recordar quem  ele é.

Dito de modo comezinho, o proletário é um trabalhador. Uma definição mais sofisticada, todavia, dirá que o proletário é o trabalhador que sabe que é ele o agente da sua revolução social. Melhor ainda é a distinção que Marx faz entre a classe trabalhadora, uma categoria social objetiva oposta à burguesia, e o proletariado, o portador de uma posição subjetiva que corporifica a singularidade da estrutura social como classe universal.

Agora, se, por um lado, o agente da revolução socialista é o trabalhador conscientizado de sua singularidade, e, por outro, há trabalhadores pelo mundo todo, a ausência pela qual estávamos procurando só pode ser a da consciência proletária nos trabalhadores. Existem trabalhadores; sobram razões para a revolução; o que falta é a conscientização política deles; sua proletarização. O que está impedindo esse processo?

Dando um passo atrás, há espécie de desidentificação, de preconceito dos sujeitos “pós-modernos” com a condição de trabalhadores. A jocosidade do filósofo Slavoj Žižek coloca isso em uma frase provocativa: “Na perspectiva ideológica de hoje, o próprio trabalho, não o sexo, aparece como o locus de indecência obscena a ser escondido do olhar do público”. E se o próprio trabalho é algo vergonhoso, imagine-se a proletarização.

As novas formas do trabalho na era chamada pós-industrial dão oportunidade para os trabalhadores não mais se reconhecerem como tais. Designers e programadores computacionais, personal trainers e hair stylists, doutores acadêmicos e curadores de arte, entre tantas outras novas modalidades de trabalho, resistem em se subjetivarem como trabalhadores, mesmo que a maioria deles tenha jornadas de trabalho extenuantes e seja explora como operários de fábrica.

E qual o preço que pagam por isso? Em primeiro lugar, o de sua despolitização dentro do verdadeiro antagonismo social, pois sem a inicial identificação de quem trabalha com a sua condição de trabalhador; em seguida com a de proletário; e finalmente com a de uma força de esquerda que represente seus interesses, não há potência política que faça frente a direita. Esta, ao contrário, é politizada até os dentes, e isso porque o burguês se identifica, mais ainda, orgulha-se de sua condição social.

Ao contrário do que os “pós-trabalhadores” de hoje creem, o desinvestimento no papel de trabalhador, mais ainda no de proletário, não lhes oferece mais ou nova liberdade. Em troca, esconde deles a velha sujeição de que nunca se libertaram. Nas palavras dramáticas de Žižek, “a tradição na qual o trabalho é subterrâneo, sendo realizado em cavernas escuras, culmina em nossos dias na ‘invisibilidade’ dos milhões de trabalhadores anônimos que suam em fábricas do Terceiro Mundo”.

Com efeito, a pós-modernidade pós-verdadeira tagarela histericamente que, “a classe trabalhadora está desaparecendo”, mesmo que, adverte Žižek, essa classe seja facilmente identificável no mundo de mercadorias que consumimos. Na letra do autor, “tudo o que temos de fazer é olhar a etiquetazinha que diz: ‘Made in… (China, Indonésia, Bangladesh, Guatemala)’A China merece inteiramente a alcunha de ‘Estado de trabalhadores’: é o estado da classe trabalhadora para o capital norte-americano”, por exemplo.

O trabalho imaterial virtual dos nossos dias mente muito bem que não é trabalho. No entanto, por trás de toda mentira há uma verdade foracluída. E o que se esconde por trás dessa pós-verdade pós-moderna pós-industrial? Que os “pós-trabalhadores virtuais” do Primeiro Mundo, no final das contas, pertencem à mesma classe que a dos milhões de trabalhadores “reais” das fábricas do Terceiro Mundo. A diferença é que aqueles são alienados disso, enquanto estes, não. Os “pós-trabalhadores”, da perspectiva política, estão muito aquém dos proletários. Doce paradoxo: o “pós” que na verdade é “pré”.

Se muitos trabalhadores não se reconhecem como tal, temos aí uma “divisão de classe” dentro da mesma classe, ao molde da velha divisão burguesa entre classes média e baixa, cuja estratégia obscena é borrar a substantiva e cruel divisão social entre classes dominante e dominada. Assim como a classe média, os “pós-trabalhadores” apenas se alienam do fato concreto de que são classe dominada.

E quando a classe singular que é a razão de ser da esquerda separa-se de si mesma, cinde-se em duas, criando um novo e impertinente antagonismo dentro do velho, ambas as partes cindidas perdem potência política diante do real oponente social, a classe dominante, que com o oponente dispersado apenas se fortalece. A esquerda, nessa guerra interna entre suas próprias células, algo como um câncer político, enquanto não morre, sobrevive feito zumbi.

Nesse pseudoantagonismo entre “pós-trabalhadores” e trabalhadores “reais”, a desvalorização do trabalho humano real resulta em um real trabalho de desvalorização da própria humanidade. Visto que o objetivo da revolução socialista é eliminar a sociedade de classes, não restando nem mesmo a classe trabalhadora no final, mas apenas povo, a resistência à proletarização, e em suma à revolução é, a priori, espécie de ojeriza à horizontalidade entre as pessoas. Que a classe dominante pense assim, vá lá. Agora, a dominada, o que ganha com isso?

O trabalhador que não se reconhece como tal, é esvaziado de sua substância social, algo como o a cerveja sem álcool, o chocolate sem açúcar, o leite sem gordura – para usar a recorrente provocação de Žižek. Mais grave ainda, o trabalhador que não se reconhecer como proletário é como o sujeito que faz um pacto com o diabo e em seguida se esquece de que o preço a ser pago é maior do que o benefício; que será cobrado impreterivelmente – e em se tratando de um diabo capitalista, com juros impagáveis!

Žižek critica a sociedade “pós-moderna” como aquela na qual “compro meu preparo físico indo a academias de ginástica; compro minha iluminação espiritual ao me matricular em cursos de meditação transcendental”, etc.. Podemos na sequência criticar a sociedade “pós-industrial” e a ideologia do “pós-trabalho” como aquelas nas quais “compra-se” a experiência “pós-proletária” ao se alienar deliberadamente da potência política singular que a condição de trabalhador confere.

Novamente: o que o “pós-trabalhador” perde com isso? O filósofo Claude Lefort relembra que o resultado de 150 anos de luta dos trabalhadores incorporou na sociedade demandas que eram ridicularizadas pela direita há cem anos, tais como o sufrágio universal, a educação gratuita, o sistema de saúde público, a assistência aos idosos, as restrições ao trabalho infantil, entre tantas outras. A própria participação democrática popular de hoje, aponta Lefort, é resultado da luta da classe trabalhadora. Ou alguém acha que é dádiva da classe burguesa dominante?

Por isso é fundamental o trabalhador se reconhecer como tal. Só assim descobre a força política que tem, mas isso só ao se proletarizar verdadeiramente; ao engrossar com sua consciência social o sangue da esquerda. “A tarefa urgente”, insiste Žižek, “é, mais uma vez, repetir a ‘crítica da economia política’ de Marx, sem sucumbir à tentação das múltiplas ideologias que há nas sociedades pós-industriais”. Quem trabalha é trabalhador; e para não ser eternamente explorado, deve se proletarizar; só assim haverá força política para lutar, quiçá vencer os seus opressores.

Žižek repete Hegel dizendo que “todos os eventos históricos têm de acontecer duas vezes”. Talvez seja a hora de os trabalhadores se proletarizarem novamente, ou seja, repolitizarem-se. Do contrário, a luta política é esquecida, e no lugar dela vinga não o vazio, mas uma “pós-política” burra onde a economia domina, com o “pós-proletário” “votando” cotidianamente na classe que o domina ao comprar seus iPhones, TVs de plasma, conexões com a internet, passagens aéreas à Machu Picchu, etc.

A histeria dos “pós” mantém não só os trabalhadores, mas a esquerda toda numa “pós-vida”: zumbi. Mas a dimensão política do proletariado não está morta, apenas em coma. Para reanimá-la, insiste Žižek, “a primeira coisa a se fazer é aprender a decodificar o modo pelo qual o conflito básico continua a funcionar como ponto de referência secreto dos antagonismos aparentemente ‘apolíticos’”. É essa realidade apagada, travestida, que, se esclarecida, assumida, pode fazer com que o trabalhador se reconheça como tal, encarne o seu papel social singular de proletário, constitua uma esquerda virtuosa, e seja o agente de sua própria revolução.

Por isso, no lugar de os trabalhadores, cindidos em “pós-trabalhadores” e trabalhadores “reais”, desaparecerem com sua própria classe, e inclusive como coloca Žižek, “em vez de procurarmos a classe trabalhadora que desaparece, deveríamos, em vez disso, perguntar: hoje em dia, quem ocupa, quem consegue tornar subjetiva, a posição de proletário?” Essa potencialidade, sem dúvida, está em todos aqueles que, independentemente das pós-verdades que digam a si mesmos, não se enquadrem na classe dominante.

Como, entretanto, saber isso hoje em dia, tempos nos quais ser dono de um restaurante ou ator de novela, por exemplo, leva muitos a crerem que são classe dominante? Uma simples pergunta basta: eu e os meus iguais podemos mudar a realidade social conforme os nossos anseios? Se a resposta for não, violà, você é classe dominada; trabalha para a classe dominante. Todavia, será menos dominado à medida que se proletarizar.

Apesar de subterranizados ideologicamente, trabalhadores com potencial político cobrem o mundo. Só não se reconhecem como tal por conta da forte neblina amorfizante do “capitalismo pós-industrial”. No entanto, mesmo que ainda preso na gaiola da classe dominante, qualquer trabalhador pode procurar ao seu redor e, parafraseando o Piu-piu quando vê o Frajola, dizer a si mesmo: “Acho que vi um proletariozinho!”. Só que em vez de temê-lo, ou achar que se trata de um fantasma do passado, junte-se a ele. O proletário é a realidade que permaneceu real em meio a tantos “pós” de realidade duvidosa.

Ocupemos a nós mesmos!

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As muitas ocupações de escolas e universidades brasileiras seguem firmes e fortes contra a péssima representatividade política que o povo está recebendo. Porém, isso é só parte da luta. A jovem máxima “Ocupa Tudo”, para ser verdadeiramente revolucionária, não deve deixar de fora desse “tudo” a exploração econômica que sistemática e sorrateiramente constitui aquela má representatividade. Ocupemos a nós mesmos! E economicamente.

As ocupações restauram intempestivamente algo da antiga democracia direta grega, na qual é o “demos” que atua a sua “cracia”, sem intermediários. Prática que no entanto foi soterrada pela erva-daninha da democracia representativa, posta em prática pela burguesia e para a burguesia. E é contra esses beneficiários burgueses, os únicos que são devidamente representados por aqueles que na verdade deveriam representar o povo, que as ocupações devem também contemplar. Ora, pouco adianta resistir abertamente aos desígnios dos maus políticos aqui, se, ali, alienadamente, segue-se enchendo os bolsos dos burgueses, os grandes e verdadeiros responsáveis pela má representatividade política.

Se, como dizem, a política apenas faz o trabalho sujo da economia, a ocupação deve ser também e principalmente econômica-estrutural, e não somente política-espacial. Do contrário, a luta que deixa de ser lutada é justamente aquela na qual o inimigo mais oprime. Políticos, como sabemos, vão e vêm. O poder do capital, em contrapartida, permanece e cresce nos bastidores do teatro de horrores político que ele mesmo patrocina, tanto para o povo se alienar do verdadeiro inimigo, como principalmente para que este algoz siga aumentando o seu sórdido poder discretamente.

“Ocupar Tudo”, portanto, é o povo ocupar também o lugar econômico mui ocupado por esse inimigo burguês que, antes, durante e depois de quaisquer manifestações políticas, segue enriquecendo com o mundo de mercadorias que nos oferece em todos os lugares e ocasiões. Mundo  mercadológico que seguimos consumindo ingenuamente, como se isso não fosse precisamente o cerne do problema. Como, porém, ocupar a nós mesmos economicamente? As ocupações políticas podem dar o caminho das pedras.

“Encher um espaço de lugar e de tempo” é uma bela definição de “ocupar”. Todavia, assaz abstrata para o que está se querendo propor aqui. Outra definição, bem mais concreta e pontualmente eficiente no sentido de ocupar-nos economicamente uns aos outros, diz que “ocupar” é: “dar trabalho; empregar”. Voilà! Eis a ocupação com a qual também devemos nos ocupar para enfrentar o inimigo, não em sua aparência política, mas em sua essência econômica. Como, entretanto, ocuparmos economicamente os nossos iguais para com isso enfraquecermos, quiçá falirmos o inimigo burguês que até aqui nos ocupa para o seu próprio fortalecimento?

O primeiro passo, o mais acessível, é a já conhecida “economia colaborativa”, ou seja, a esfera de produção, distribuição e consumo de bens e serviços que dispensa as grandes corporações e prioriza aquilo que os próprios indivíduos têm a oferecer uns aos outros. Pragmaticamente, é preferir a quentinha que a vizinha tem para vender ao BigMac; a costureira da esquina à loja Zara; e por aí vai. Se é para dar os nossos míseros e explorados tostões a alguém, que seja a nós mesmos, e não àqueles que nos exploram, ora bolas!

Este primeiro passo, que  nos leva a comprar coisas uns dos outros, não obstante mantém vivo algo essencial ao inimigo: o dinheiro. Um segundo e mais virtuoso passo, que com certeza pode completar a ocupação, por parte do povo, do belvedere da elite econômica é o escambo, ou seja, a troca direta de bens e serviços entre os próprios indivíduos, sem o intermédio vicioso do dinheiro. Em outras palavras, e usando os exemplos anteriores, trata-se de a vizinha trocar as suas quentinhas pela calça produzida pela costureira da esquina, e assim por diante.

Isso é ocupar economicamente os nossos iguais: dar trabalho a eles, empregá-los. Não para explorá-los, obviamente, uma vez que o escambo aqui proposto visa justamente eliminar os exploradores burgueses das relações econômicas – com a “mais-valia” de golpear os maus políticos que os representam. Sem dizer que, propondo-nos à troca com nossos iguais, cada um de nós tem também de ocupar-se em produzir algo que seja útil a esses iguais, e tão somente a estes. Restaurar o escambo é quiçá a maior rasteira econômica que os indivíduos podem no verdadeiro inimigo, e, de quebra, obsoletar a íntima & vil relação entre o capital e os seus representantes políticos.

O desafio, obviamente, é imenso. Afinal, como trocar quentinhas ou alfaiatarias por aluguel na imobiliária? Como bens ou serviços produzidos diretamente pelas nossas próprias mãos pagarão a passagem do ônibus? Para destrinchar o inimigo econômico-burguês, façamos como Jack, o estripador, façamo-lo por partes. Comecemos por estabelecer algumas relações de escambo com aqueles que nos são próximos e dispostos a tal. Hoje em dia há muitos aplicativos que podem ajudar nessa experiência. Não devemos esquecer de que também é da natureza humana se comprazer com trocar. Durante milênios foi assim. Pelo menos até o capitalismo convencer a todos de que o seu capital deveria intermediar todas as trocas.

Se cada um de nós conseguir fazer com que pelo menos 10% de nossas compras sejam substituídas por escambo, o inimigo-mor será enfraquecido nessa mesma proporção. E, quanto mais não seja, é muito mais fácil aumentar qualquer experiência, de 10 para 20%, e assim sucessivamente, do que pretender começá-la já nos seus 100%. Por partes e com calma; e também com prazer, repete Jack.

Certamente demorará para que a Apple aceite uma torta de maçã ou uma poesia em troca de um iPhone. Contudo, com o tempo, ocupando-nos a nós mesmos em função de nossa sobrevivência e liberdade, e sobretudo desocupando subversivamente os nossos algozes econômicos-políticos da intermediação de tudo o que precisamos para viver, poderemos descobrir que os smartphones deles só valem mais do que as nossas tortas de maçã ou poemas porque assim eles nos fizeram acreditar. Essa ideia aliás é a mercadoria excelente deles; se a desocuparmos, definitiva e coletivamente, todas as outras perdem o valor.

O socialistas ortodoxos de plantão dirão que é ingenuidade acreditar que o caminho da revolução é tão simples. Mais ainda, que não podemos dispensar a velha, todavia respeitável profecia marxista. Nada contra as Bíblias dos revolucionários, muito pelo contrário. Que elas sigam angariando fiéis até completarem a sua mui aguardada revolução. Afinal, a liberdade que elas prometem é mais que necessária. Porém, a candente novidade e promissora efetividade das ocupações nos sugerem, não um atalho, mas um desvio em relação às velhas teorias.

O “Ocupa Tudo” deve: ocupar os espaços onde a representatividade política não se efetua; tomar nas mãos a representação das próprias demandas; perceber que enquanto a economia estiver alienada dos indivíduos ela só produzirá má representatividade política; experimentar-se e fortalecer-se em relações econômicas não alienadas, baseadas em trocas diretas, nas quais o valor não é mais um imperativo extrínseco, mas propriedade daqueles que trocam entre si; e, por fim, fazer essa experiência – que não é nova, apenas obsoletada estrategicamente pelo capitalismo – crescer até ocupar totalmente a vida das pessoas.

Muito embora seja fundamental começar ocupando os espaços que os nossos representantes políticos não estão ocupando conforme prometeram ao se elegerem par tal, é só quando os indivíduos ocuparem a si mesmos, não só política, mas sobretudo economicamente, sem deixar espaço livre para qualquer mediação oportunista. Só então a revolução, senão estará dada, ao menos terá sido devidamente iniciada.

Portanto, ocupemos a nós mesmos. Descubramos o que podemos fazer que sirva somente a nós, e de forma alguma ao sistema que só quer nos explorar e oprimir. Reocupemos o sentido grego, e há muito esquecido, de “oikonomia”: “administração de uma casa, lar”. Desocupemos a macroeconomia! Só assim a má representatividade política será desocupada da sua vil participação nas nossa vidas.

Trepalium, a série, exemplo de lumpenrealidade.

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Imagine uma realidade distópica na qual 80% da população é desempregada, miserável e sem utilidade social alguma, e que, por conta disso, deve jazer separada dos 20% afortunados por um grandioso e intransponível muro bem ao estilo Donald Trump. Se não conseguiu, basta assistir “Trepalium” (2016), série francesa criada por Antarès Bassis e Sophie Hiet que oferece um “belo” vislumbre do horror que está logo ali, na virada da esquina que separa o nosso problemático hoje do não menos nosso insustentável amanhã. A expressão alemã “lumpen”, que significa “trapo”, “farrapo”, usada por Marx para predicar a degradação do proletariado, deve ser também predicada à realidade ficcional de Trepalium, bem como à “realidade real” aludida pelo seriado, que por acaso é a nossa: lumpenrealidade.

Na ficção francesa, a minoria altamente aburguesada, chamada de “ativos”, de modo algum quer contato com a maioria lumpemproletarizada em situação de miséria e desesperança extremas, os  “inativos”.  Para tal, além do muro, no lado pobre também é mantida uma publicidade ostensiva que vende aos miseráveis, não a possibilidade de cruzarem para o lado rico, mas um “Sul” utópico e distante que sequer precisa existir para cumprir certeiramente o seu papel alienante. Interessante é ver que esse “Sul” dos sonhos é ilustrado com imagens de Brasília, capital do Brasil, com destaque às famosas e curvilíneas colunas que o arquiteto Oscar Niemeyer colocou no Palácio Alvorada, a residência presidencial oficial.

O que querem os ricos da série francesa dizer com isso? Que o melhor destino dos seus “desgraçados” é o Brasil, mais especificamente o “bureau” político tupiniquim? Como podemos ver, o muro de Trepalium é mais intransponível do que se pode imaginar. Em vez de transpô-lo, os miseráveis são levados a desejar se afastar mais ainda dele; a migrarem (clandestinamente?) para bem longe, para esse “Sul” distante, afinal, nem mesmo em sonho o privilégio da burguesia trepaliana pode estar no horizonte dos pobres. Um alienante e profundo fosso ideológico compondo a estrutura de uma barreira material injusta e excludente. E isso porque, conforme o provérbio árabe, “muro baixo, povo pula”

Como não poderia deixar de ser, do lado pobre há crescentes insatisfações e agitações populares. Porém, em vez de serem tradadas com programas sociais, distribuição de renda e principalmente empregos, apenas são encobertas pelos governantes –que, obviamente, vivem no outro lado- com mais imagens alienantes do tal “Sul”. Do lado rico, todavia, há também insatisfações e inquietações, não econômicas nem sociais, mas as do velho existencialismo burguês: espécie de tédio hedonista cuja miséria subjetiva serve apenas para reforçar a riqueza objetiva. Trepalium corrobora com provérbio popular que diz: “dinheiro não traz felicidade”, pois, como o seriado mostra muito bem, traz apenas mais divisão social.

Sem mais nada a perder, os pobres inúteis aproveitam que o Ministro do Trabalho vai até eles demagogizar mais uma vez sobre o “Sul” utópico e sequestram-no para exigir melhorias para as suas vidas. O governo então promete distribuir 10.000 empregos aos lumpemproletários “inativos” em troca do Ministro sequestrado, desagradando assim o 1/5 da população rica e “ativa”; não só porque esta não querer dividir o seu nobre espaço com os miseráveis, mas porque de fato não tem necessidade alguma do trabalho dos pobres, afinal, suas máquinas já fazem todo o serviço necessário. “Pobres inúteis” no lugar da tecnologia para quê? Não obstante a ordem do governo, os ricos não têm escapatória: devem aceitar a “colaboração” dos pobres.

A inutilidade dos “inativos” aos “ativos” é bem desenhada na cena na qual uma mulher pobre, contemplada com um emprego na casa de uma família rica, é recebida a contra-gosto pelo casal de patrões que de antemão não quer que ela cuide da casa, nem faça compras, muito menos tome conta da filha deles. Dizem que ela deve ficar sentada, sem fazer nada, o dia todo. Antes de sair de casa para os seus privilegiados trabalhos, os patrões dizem ainda que se a empregada fizer alguma coisa, pasmem, as câmeras de segurança mostrarão e ela será expulsa de volta à zona pobre.

Outro “inativo” introduzido no lado “ativo” da sociedade, sem ter o que fazer, é no entanto escolhido pelo governo para ser o garoto propaganda do “Programa de Reinserção Social”, cujo objetivo, na verdade, é apenas facilitar um empréstimo junto ao Banco Internacional. A ingênua felicidade do “inativo” em ter sido “reinserido” socialmente é apenas a aparência de uma essência que os ricos queriam que não existisse ou que não saísse do outro lado do muro que erigiram. De fato, a sociedade excludente não sabe nem tem o que fazer com seus excluídos além de excluí-los ainda mais.

A Teoria do Valor, que Marx popularizou como ninguém, e que diz que o trabalho é a fonte de toda riqueza, parece ter lugar excelente na sociedade trepaliana. Todavia de modo a manter a sua intransponível desigualdade. Ora, se aos lumpemproletários é oferecido “trabalho” para que então se libertem da miséria e participem da ventura social, mas se o que de fato recebem é apenas um trabalho de fachada, um pseudotrabalho, isso serve apenas para que permaneçam alienados da riqueza da sociedade. Em suma, para que sugam profundamente excluídos, todavia, sob o verniz mentiroso da inclusão.

Um professor, “ex-ativo” -“inativado” forçosamente por conta de seus ideais socialistas-, ensina aos seus alunos do lado pobre a origem da palavra trabalho. Aí o nome da série é contemplado. Trepalium (“tripálio” em português), diz o professor, “é o nome de um instrumento de tortura, composto por três sarrafos, usado na antiguidade para arrancar lentamente os membros dos escravos. E foi daí que surgiu a expressão trabalho”. Os alunos protestam imediatamente, pois, para eles, filhos de desempregados miseráveis, é justamente a ausência de trabalho que é “a” verdadeira e maior tortura. Aqui é impossível não lembrar da frase do portão de Auschwitz: “O trabalho liberta”. Traz liberdade, sem dúvida. Contudo, como bem mostra a série, apenas a uma minoria, e ao preço da prisão da maioria.

O desemprego de 80% da população não só é excludente como principalmente serve para sobrevalorizar ideologicamente os parcos 20% de trabalho existente. Enquanto do lado rico os “úteis” se entediam com os seus privilégios, do lado pobre os “inúteis” endeusam o que aqueles não mais precisam valorizar. Idolatram todavia justamente aquilo que os excluí. O tripálio, antes usado para arrancar membros de escravos, na série francesa serve tanto para arrancar os pobres da sociedade, quanto para convencê-los de que o grande problema social é apenas a falta de trabalho deles, e não o monopólio das oportunidades por parte dos ricos excludentes.

Haverá uma revolução na sociedade trepaliana? É preciso esperar pelo fim da série. No entanto, as dificuldades que os revolucionários da ficção terão de enfrentar para tal já são as mesmas que a nossa sociedade real tem diante de si, só menos espetacularizadas talvez. O muro de Trump, que promete alienar ainda mais os cucarachas da bonança norte-americana, bem como as cercas eletrificadas europeias, que já negam a milhares de refugiados um futuro no lado dito civilizado do mundo, são exemplos reais, absolutamente cruéis, todavia ainda pálidos se comparados à barreira que foi erigida na ficção francesa.

Se Lacan está certo, e a realidade tem mesmo estrutura de ficção, a revolução ficcional que acabará tanto com o muro e, consequentemente, com a intransponível cisão social em Trepalium bem poderá servir, ao menos como estrutura simbólica, à revolução real de que o mundo outrossim real cada vez mais carece. Quanto mais não seja, porque o problema central do seriado francês é o mesmo que o das sociedades humanas em geral, qual seja, nas palavras de Isaac Newton: “construímos muros demais e pontes de menos”.

 

Morte cerebral mundial

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Imagem: divulgação CBS

Braindead (morte cerebral) é uma série produzida pela americana CBS que começou a ser exibida há duas semanas. Na ficção, um meteoro cai na Rússia, é recolhido do fundo de um lago e é enviado a um laboratório em Washington para análises. Em uma noite, quando nenhum cientista estava por perto, milhares de “formigas” alienígenas saem da rocha e sorrateiramente invadem a capital norte-americana. Os “insetos” entram nos lares, penetram nos ouvidos das pessoas e dominam seus cérebros, alterando e controlando seus atos. Não escapam dessa dominação os grandes políticos nem seus eleitores. Na verdade, as absurdidades que aqueles passam a realizar são passivamente chanceladas por estes. Caos na terra?

Bem, a humanidade nunca precisou nem de ficção nem de alienígenas para criar o caos. Basta olhar para os lados e perguntar se as absurdidades que nos cercam atualmente já não atenderam desde sempre pelo nome de mundo. Por acaso deveríamos nos alarmar com o as desumanidades que estamos assistindo “worldwide  ou apenas assumir que o “american dream”, internacionalmente “broadcasted”, apenas nos alienou dessa vil&alarmante realidade que nunca deixou de estar “out there”?

Aqui vale lembrar o episódio de outra série mundialmente famosa, House of Cards, no qual um terrorista muçulmano diz que eles explodem e explodirão sistematicamente os americanos porque a missão deles é lembra-los de que a vida não é, nunca foi e nunca será esse sonho dourado livre da dor e da miséria que os americanos experimentam alienadamente e a altos custos mundiais. O radicalismo terrorista pode ser condenado por muitos aspectos, obviamente. No entanto, uma virtude ele carrega: a assunção de que o real não pode e não será ser roteirizado indefinidamente conforme as aspirações burguesas ocidentais.

O ocidente poderia perfeitamente dispensar os terroristas islamitas para encarar seu “american nightmare” como obra sua. As vigorosas ascensões fascista e fundamentalista; a xenofobia explicitada pela crise migratória internacional; a devastação da natureza que o nosso consumismo estrutural produz diariamente; sem dizer, no Brasil, do golpe de estado dado pela corrupta oligarquia financeira e, no México, das atuais mortes e desaparecimentos de professores manifestantes; tudo isso é a nossa realidade/pesadelo, produzida e vivida por nós mesmos, sem máscara ficcional ou estrangeira alguma.

Basta atentar às metralhadoras giratórias intolerantes e reacionárias de Donald Trump, nos EUA, e de Jair Bolsonaro, no Brasil, por exemplo. Ambos os bárbaros-políticos desrespeitam fascistamente a alteridade, e o que é pior, arrecadam para si hordas de indivíduos que compram e levam adiante os seus discursos desumanos, demasiadamente desumanos. E contra tais absurdidades o que temos? Infelizmente, impotentes hashtags e lágrimas virtuais em forma de postagens no Facebook e no Twitter. Trumps e Bolsonaros, agindo barbaramente na vida real, devem adorar a oposição virtual que recebem.

Novamente: chegamos a um ponto crísico onde o “mal” pode ser proposto deslavadamente e assistido passivamente, ou o mundo desde sempre foi essa crise? Fomos atacados por espécie de insetos que nos tornaram mais reacionários e passivos, assim como os personagens de Braindead, ou será que, diferente do seriado, essas formigas caóticas somos nós mesmos? Na ficção americana, isto é, dentro do “american dream”, os humanos são apenas as vítimas do mal, que pode vir tanto em forma alienígena, como muçulmana ou comunista, tanto faz. Fora da ficção, todavia, não há ser externo algum a nos obrigar a produzir e a disseminar o mal que vemos por aí todo o dia. Esse mal, desde sempre, é a própria humanidade em seu caótico devir.

Todavia, para nos alienarmos dessa realidade periclitante, muita ficção. Ou o que é o mesmo, muita mentira para transformar alguns de nós em um “outro” culpado pelos problemas de todos. Aí está o muçulmano, o imigrante, o gay, a mulher, o índio, o negro, o pobre, a esquerda, etc. Todos politicamente roteirizados para representarem os alienígenas problemáticos que descem ao mundo para acordar a elite ocidental do seu delicioso, porém insustentável, “american dream”. Se essa elite acordasse, veria claramente que seu inimigo íntimo é ela própria; o inimigo real que produz seus tantos inimigos ficcionais.

Braindead e suas formigas alienígenas fascistas são apenas mais uma tentativa de, mediante ficção, o ocidente seguir se alienando da verdade cada vez mais tácita, qual seja, que seu maior e mais calamitoso problema é ele mesmo, e não seus outros espetaculares. Em resposta a esse mundo de sonhos, pesadelos reais: terrorismo, crise ambiental, imigrantes clandestinos, miséria, etc. Afinal, a barbárie não desaparece sob os alienantes roteiros hollywoodianos. Como o terrorista islamita de House of Cards disse aos americanos, nós, os seus outros malditos, estamos aqui para não deixá-los esquecer do real.

 

A desafiadora revolução socialista tupiniquim

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Mais uma vez, na história do Brasil, nunca estivemos tão longe da revolução socialista, isto é, do início do fim da exploração da maioria dos indivíduos pela minoria. O mote antissocial da vez, obviamente, é o golpe de estado dado pela oligarquia político-econômica tupiniquim. Antidemocraticamente, medidas reacionárias&austeras estão sendo verticalmente aplicadas contra a população para que a colossal riqueza produzida por ninguém menos que essa mesma população siga sustentando confortavelmente os velhos privilégios das minoritárias classes dominantes.

Será que o povo brasileiro não sabe fazer revolução? Ou será simplesmente porque, conforme diz o historiador, filósofo, sociólogo e economista baiano Edmundo Moniz, “Não há um manual da revolução. A revolução é uma tempestade histórica e as tempestades não se repetem igualmente”? Em uma palavra, o brazuka erra quando tenta revolucionar a sua vil realidade ou não sabe experimentar formas revolucionárias? Ou nem sequer tenta? O que há no “clima” brasileiro que mais facilmente repete os furações reacionários do que precipita a “tempestade” revolucionária de que tanto o povo desse país necessita?

Moniz, corroborando com Marx e Trotsky, entende por “revolução a mudança das estruturas sociais que termina com a exploração do homem pelo homem e cria condições históricas para a passagem da sociedade de classes para a sociedade sem classes”. A teoria marxista, entretanto, baseada na particular evolução histórica do velho continente, enxerga a revolução socialista como um interregno estratégico que procede da escravidão, do feudalismo e do capitalismo, necessariamente nessa ordem, e que precede o comunismo, ou seja, o fim da exploração da maioria pela minoria.

Bela teoria que, não obstante, só não tem como vingar no Brasil porque neste país, que nasceu colônia e que cresceu dependente, as formas econômicas não seguiram a ordem da evolução econômica e social europeia. Usando impertinentemente as palavras de Trotsky, o Brasil é “um amálgama de formas arcaicas e modernas”. Com efeito, temos escravidão, feudalismo e capitalismo convivendo, profunda e desarmoniosamente, na realidade econômica brasileira. Pior ainda, a realidade econômica do Brasil foi construída invertendo-se o processo histórico europeu.

Com efeito, foi o capitalismo, mais evidentemente seu credo econômico mercantilista, que trouxe os portugueses ao Brasil. E uma vez conquistada esta terra, o jovem e vigoroso capitalismo português, anacronicamente, implantou o velho e caduco feudalismo na divisão do território em capitanias e sesmarias, que eram “doadas” a administradores mediante relações pessoais com a realeza portuguesa. E mais anacronicamente ainda, para sustentar seu sistema de relações pessoais, os portugueses encravaram a escravidão no âmago do sistema feudal tropical, em uma tácita inversão do que havia acontecido no velho mundo.

Por isso a revolução socialista tupiniquim não tem como vingar conforme dita o ideário velho-mundista. Se quisermos proceder conforme Marx, são necessárias pelo menos duas revoluções efetivas antes do passo socialista, a feudal, que dá cabo da escravidão, e a capitalista, que por sua vez supera o feudalismo. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), durante muitos anos insistiu nessa lógica, sustentando que primeiro deveríamos superar o feudalismo, depois a democracia burguesa, para só então termos condições históricas para a revolução socialista.

No entanto, dada a particularidade da realidade histórica brasileira, não podemos nos dar ao luxo de priorizarmos uma besta econômica por vez. Lutar frontal e exclusivamente contra o velho e resistente feudalismo, ou contra o maduro e vigoroso capitalismo, separadamente, é dar as costas a um inimigo ou outro. Criticamente, é matar um sistema desigualitário e deixar o terreno livre para o outro. Sinuca de bico! Por isso, na Brasilândia, o fim da exploração das massas pelas elites significa lutar simultânea e frontalmente contra um inimigo múltiplo: a escravidão, o feudalismo e o capitalismo.

Para fazer a revolução socialista no Brasil em um único movimento, temos de esquecer a clássica racionalização estrangeira e inventar formas revolucionárias totalmente nossas, que tenham capacidade para superar de uma só vez os muitos passados e vícios que insistem no mui viciado presente brasileiro, e que impedem a virtuose de um futuro igualitário. Como, então, será possível a revolução socialista no Brasil?

Para, Moniz, isso é possível somente com a organização de um verdadeiro partido de massas, de uma vanguarda consciente que esteja disposta a preparar o povo para a República Democrática Socialista. Entretanto, porventura temos no Brasil um partido que represente plenamente os interesses da maioria explorada? Um partido que assuma a vanguarda das transformações sociais? Infelizmente não.

O PCB, embora dono do melhor ideário, está distante léguas de ter oportunidade de ser pragmático. O pragmatismo do Partido dos Trabalhadores (PT), aventurado nos últimos 13 anos, está longe de ser ideal, visto que engordou tanto as feras exploradoras como as presas exploradas.  Em uma palavra, tornou o lobo mais forte e as lebres mais suculentas. Não temos, no Brasil, portanto, partido ou vanguarda capaz de iniciar a revolução, pois não há força política organizada para efetivamente socializar a terra, os meios de produção, os bancos, a mídia; para romper o monopólio do comércio exterior e implantar a planificação da economia nacional.

Enquanto isso, carentes de um pensamento organizado e vanguardista o suficiente capaz de mobilizar as massas no sentido da prática revolucionária efetiva, e sob as vis égides do desenvolvimento e do crescimento econômico, as velhas estruturas exploratórias dominam o país. E o atual golpe de estado brasileiro é o que senão a dominação do passado sobre o presente? Com efeito, a oligarquia política brasileira ainda encontra terreno livre para, mediante o seu atual golpe, representar os interesses do capital internacional por meio do endividamento do povo local.

Por acaso a atual elite golpista não está repetindo o famigerado “milagre brasileiro” da década de 1970, quando, em nome do desenvolvimento, o Brasil tomou emprestado e enfiou goela-abaixo do povo mais de cem bilhões de dólares? Devíamos três bilhões de dólares em 1964, antes do golpe militar. Duas décadas depois, devíamos cem vezes mais, e em dólares inflacionários! Eis a força reacionária atuando livremente no espaço social que o pensamento e a ação revolucionários ainda não ocupam contundentemente. E como não há força organizada para acabar com a crise, a velha estrutura oligárquica segue administrando o Brasil, sua desigualdade estrutural,  e a crise econômica que, em essência, lhe favorece exclusivamente.

Entretanto, para Moniz, o Brasil tem condições econômicas e materiais para o socialismo. Só não tem ainda condições políticas para tal, pois falta-nos um partido verdadeiramente popular que possa assumir o papel de vanguarda, instituindo conscientemente a república democrática socialista. Esse é o grande impasse do Brasil. Enquanto isso, a oligarquia nacional não resolve as crises social política e econômica do país precisamente porque tais crises lhe engordam e fortalecem.

Uma vez que a prática é o cerne de qualquer revolução, não basta apenas uma ideia revolucionária, por mais perfeita que seja. Aí devemos dispensar, senão toda a teoria marxista, ao menos a parte que não coincide com a evolução histórica brasileira. Do velho mundo, contudo, devemos manter a ideia de que é preciso de uma vanguarda política revolucionária capaz de motivar o povo a finalmente impor seus interesses sobre os das classes dominantes. Aí teremos iniciado a verdadeira revolução socialista, e não só pensado nela. Para tanto, relembra-nos Moniz, é preciso que a teoria coincida com a prática e a prática confirme a teoria”.

Todavia, como dito antes, no Brasil formas econômicas e políticas arcaicas e modernas coexistem desde sua colonização até hoje. Numa metáfora de Trotsky, “os selvagens passaram da flecha ao fuzil de um golpe, sem percorrer o caminho que separa no passado estas duas armas”. Ou seja, os colonizadores portugueses na américa não começaram a história pelo princípio”. Coincidir prática e teoria em terras tupiniquins, portanto, é um desafio sui generis que não pode se pautar por ideários e experiências extrínsecos. Nossas teoria e prática revolucionárias devem ser outras que as do velho mundo, pois a nossa história é outra, muito embora historicamente explorada por aquelas.

Do contrário, em outra metáfora, estaríamos obrigando o índio, nu e oprimido, a usar ou um uniforme soviete, ou a cartola da velha e distante intelectualidade europeia. Ou seja, estaríamos representando uma revolução muito mais do que a praticando. E isso porque, segundo Moniz, “ a essencialidade da revolução encontra-se no conteúdo revolucionário de sua própria essencialidade”. A verdade e a efetividade da revolução socialista tupiniquim, por conseguinte, está na essência da realidade histórica brasileira: a coexistência anacrônica de escravidão, feudalismo e capitalismo em função dos interesses das classes dominantes.

No Brasil, todos esses inimigos históricos do povo devem ser superados de um só golpe. Passo bem maior e hercúleo do que o que Marx profetizou há quase um século e meio para a implantação do socialismo contra um único algoz, o capitalismo. Respeitando-se a essência do que se deu historicamente no Brasil é que encontraremos uma teoria, isto é, um pensamento que ponha as massas a praticar a defesa inarredável dos seus interesses, e em detrimento das velhas elites golpistas, que até hoje roubam a realidade para si. E quando essa teoria de vanguarda coincidir com a prática cotidiana do povo brasileiro, a angusta luta por igualdade será uma coloquial igualdade, não mais na luta, mas na existência.

Uma verdadeira ponte para o futuro

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Diante da atual divulgação de alguns dos muitos e velhos esquemas de corrupção entre o Estado e as grandes empreiteiras tupiniquins, que outra coisa não são senão a estrutura criminosa instituída para distribuir propinas astronômicas –leia-se o dinheiro do povo – a uma porção de políticos e empresários não menos corrompidos, fica cada vez mais difícil engolir a mentira de que o Estado está aí para servir o povo. Aliás, o que vemos hoje com o golpe de estado dado pelo PMDB e pelo PSDB é justamente a proteção e a manutenção espetacular dessa estrutura político-econômica corrompida.

E os golpistas ainda têm a desfaçatez de chamar o golpe que deram na democracia brasileira de “Ponte para o futuro”. Só mesmo muita alienação para não ver que essa “ponte”, na verdade, é um tobogã oligárquico, imposto de modo antidemocrático, para retrazer sistematicamente os vícios do passado ao presente, uma vez que o passado viciado é precisamente o espaço de mobilidade excelente das oligarquias.

Entretanto, nem tudo está perdido. O povo, esse corpo manipulado e vilipendiado pelo Estado e sua corja corrupta, deu um belo exemplo de como a realidade pode funcionar melhor sem a intervenção e a exploração estatais. No Rio de Janeiro, mais especificamente na cidade de Barra Mansa, a população não só idealizou, como também realizou o que devemos chamar de uma verdadeira Ponte para o futuro.

Os moradores barra-mensenses dos bairros de São Luiz e Nova Esperança, há duas décadas solicitando a construção de uma ponte que ligasse os dois bairros, sem no entanto serem atendidos, juntaram dinheiro eles mesmos para que sua ponte finalmente fosse erguida. A imagem que ilustra este texto é a da ponte em questão. Mas o que é realmente impressionante nesse ato popular é que a estrutura, que de acordo com o Estado custaria R$270 mil, nas mãos do povo saiu pela bagatela de R$5 mil.

Importantíssimo aqui é frisar que o custo da ponte orçada pelo Estado ficaria 5.400% mais cara do que a realizada pelos moradores de Barra Mansa. E esse astronômico superfaturamento estatal outra coisa não diz do custo, ao povo, que é a manutenção do velho esquema corrupto entre Estado e empreiteiras. No exemplo fluminense, se a ponte real custou 5 mil, temos que, dos 270 mil orçados pelo Estado, 265 mil servem apenas a interesses não populares. Não precisaríamos nem das atuais crises econômica e política para lançar a seguinte pergunta: não viveríamos melhor sem a descarada exploração do Estado?

Não podemos deixar de lembrar da ciclovia carioca que se projetava sobre o mar da praia de São Conrado e que recentemente desabou, pasmem, três meses depois de sua inauguração. A estrutura em forma de ponte, mesmo tendo custado ao povo R$44 milhões, não atendeu à população. Muito pelo contrário, dois dos cidadãos que pagaram por ela morreram na tragédia. E aplicando o superfaturamento estatal da ponte de Barra Mansa à ciclovia da capital, o custo real da estrutura estaria por volta de 800 mil. O que significaria que mais de 43 milhões seriam tirados do povo para engordar os bolsos oligárquicos de meia dúzia de políticos e empreiteiros.

Só que o caso da ciclovia carioca é mais cruel justamente porque não se trata apenas de superfaturamento, mas de um roubo de estado cuja cereja-podre-do-bolo foi um duplo assassinato. Os moradores barra-mansenses, nas mãos do Estado, ficaram vinte anos sem poder atravessar o córrego que separa os dois bairros. Já os cidadãos cariocas mortos no desabamento da ciclovia, esse nada mais tem a esperar nem receber do Estado. E não é demais dizer que o partido político que administra tanto a capital quanto o Estado do Rio de Janeiro é o mesmo do golpe de estado brasileiro: o PMDB

E é esse o tipo de ponte que os golpistas da “Ponte para o futuro” ou não dão à população -o caso de Barra Mansa -, ou, se dão, o fazem da pior maneira possível –o caso da ciclovia carioca -, isto é, embolsando criminosamente 98% do valor total, jogando no lixo os 2% reais usados na sua construção, e ainda por cima colocando as vidas dos que pagaram pelo montante superfaturado em risco. Novamente, para que precisamos de um Estado como esse?

Contra os crimes e a ineficiência do Estado na administração dos interesses do povo, temos, por exemplo, o Orçamento Participativo (OP), mecanismo governamental de democracia participativa que permite aos cidadãos influenciar ou decidir sobre os orçamentos públicos, retirando-se assim o poder de uma elite burocrática e repassando-o diretamente para a sociedade. Política virtuosa, o OP foi adotado por várias cidades brasileiras. Sua origem, porém, foi em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 1983, com o prefeito Bernardo de Souza, paradoxalmente também do PMDB -que eu tive o estranho prazer de conhecer pessoalmente apenas no seu enterro, em 2010.

Entretanto, a cada vez mais evidenciada corrupção da estrutura política brasileira talvez exija um passo popular mais drástico que o OP. Em vez de a população decidir a partir dos orçamentos estabelecidos pelo Estado, todos tacitamente superfaturados pela ganância oligárquica, melhor seria se cada indivíduo não mais deixasse a riqueza que produz sob administração a priori do Estado para só a posteriori decidir, junto com seus pares, o que fazer com essa riqueza. Algo como não esperar ser assaltado para só então solicitar justiça e ressarcimento, mas, de princípio, não dar o ouro ao ladrão.

Anarquia? Do ponto de vista do Estado, certamente. Mas não nos esqueçamos do que disse Marx, que o Estado moderno não é senão um comitê administrativo dos negócios da classe burguesa. Da perspectiva do povo, o fim do Estado, ou o que é o mesmo, o fim da ditadura das elites, seria a oportunidade de a população gerir-se a si mesma, sem precisar da estrutura política, corrompidíssima, que está em pé unicamente para defender os interesses de um minoria historicamente favorecida.

A ponte barra-mansense porventura não é um monumento anárquico? Em parte sim, mas não totalmente, afinal, aqueles cidadãos ainda seguem pagando os não menos superfaturados impostos cobrados pelo Estado para, entre outras explorações, deixá-los duas décadas sem a ponte de que tanto careciam. Se não mais alimentassem o Estado usurpador com a riqueza que produzem coletiva e cotidianamente, e usassem-na eles mesmos na resolução de suas necessidades imediatas, suas vidas seriam mais prontamente e menos superfaturadamente beneficiadas.

Anarquia virtuosa é o desabamento, não das pontes populares obviamente, como a barra-mansense, que se mostrou mais viável, sólida e barata dos que as produzidas pelo Estado, mas das velhas e oligárquicas “Pontes para o futuro” estatais, que não se levantam contra o povo somente durante os golpes de estado, como o atual  brasileiro, mas, muito mais perniciosamente, no dia-a-dia dessa besta burguesa e corrupta que é o Estado em si mesmo.

 

O “não” suíço ao Renda Mínima

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Em 5 de junho de 2106, 78% dos suíços disseram não à proposta de renda social mínima e universal –aos suíços, obviamente- de cerca de R$ 9 mil por mês, independentemente de quem trabalha e da riqueza de cada um deles. Uma vez que o país europeu produz três vezes mais do que pode consumir, a distribuição dessa riqueza excedente em forma de renda mínima esteve para se tornar um direito. Pretensamente revolucionário, o porta-voz do movimento Renda Mínima, Che Wagner, perguntava: “Por que não tornar a riqueza acessível a todos?”. Agora, o caráter estritamente local dessa proposta já não esteve desde sempre prenhe de velhos vícios? Ao Che (Gue) Wagner suíço –perdoem-me o trocadilho- não caberia também fazer a seguinte pergunta: por que não tornar a excedente riqueza suíça acessível a todos mesmo, não só a eles, os privilegiados moradores do Estado-Alphaville que ocupa a cobertura da Europa, os Alpes?

A ideia que está por trás do projeto suíço Renda Mínima é a desvinculação entre trabalho e renda. A lógica é a seguinte: uma vez que a contemporânea substituição do trabalho humano por tecnologia automatizada já é uma realidade no país -robôs absorvem cada vez mais trabalho-, seria possível “libertar” as pessoas da obrigação de produzirem elas mesmas as condições materiais de suas subsistências. Em outras palavras, todavia críticas, a renda mínima não seria espécie de universalização de um privilégio que historicamente esteve nas mãos de poucos, isto é, viver de renda? Seguir vivendo, consumindo confortavelmente o que se precisa, sem se preocupar um instante sequer em colaborar com a produção dessa vida e desse consumo confortáveis, não é o que todo burguês deseja para si e para os seus? E gozando de parcos 4% de desemprego, sem carecer sequer de políticas públicas de combate à pobreza, a Suíça esteve em condições de aproivar essa controversa utopia.

Tão controversa que 78% da população foi contrária. Em um mundo vitimado pela crise migratória, a maioria dos já altissimamente privilegiados suíços teve medo de estar dando um tiro no pé. Esse medo já era do próprio governo suíço, que primeiramente já era contrário ao projeto, pois, diziam, o benefício seria pretexto para hordas de “imigrantes indesejados” desejarem viver no país da bonança excedente. Caso a renda mínima tivesse sido aprovada em plebiscito, a Suíça teria um insondado desafio no sentido de reformular seu sistema social, pois a universalização, ainda que local, da cisão entre trabalho e renda, concretamente problemática em um mundo já vitimado pelo abismo entre trabalhadores e rentistas,  traria consequências imprevisíveis ao país, muito embora o restante do mundo já soubesse das cruéis consequências dessa aventura.

Os apólogos da renda mínima afirmavam que com as altas riqueza e tecnologia suíças, essa sociedade poderia aventurar-se em “novos conceitos”. Agora, se olharmos para essa particular conjuntura com olhos histórico-materialistas, nada há de novo no aumento de privilégio aos já privilegiados. A promessa de que a renda mínima traria mais “paz de espírito” aos cidadãos suíços, mais tempo para a família, para os amigos, para serem “criativos”, para tentarem “coisas novas” e não se preocuparem com as suas sobrevivências materiais, tudo isso outra coisa não é que o velho e universal projeto burguês tentando ser socializado a um país inteiro, que, pelo jeito, está obesamente aburguesado.

Felizmente, a maioria dos suíços não comprou a utopia da dispensa do trabalho e de que máquinas trabalhando sozinhas seriam o melhor futuro para o país. Será que se lembraram de que os chips e engrenagens dos robôs que os sustentariam nessa impertinente liberdade em relação ao trabalho seguiriam sendo produzidos por mão-de-obra semiescrava chinesa, a partir de matéria-prima cucaracha extraída da natureza por proletários latino-americanos fortemente explorados, e transportados até eles sabe-se lá por quem em containers padrão que bem os alienariam de todo o vil processo produtivo que antecede essa sua automatização “libertadora”. Paz de espírito e tempo livre para quem, caras pálidas?

Obviamente o Renda Mínima não se tratava de um socialismo. Antes, toda uma população bem abastecida de dinheiro, mesmo sem produzir nada, seria a garantia de que o consumo seguiria firme e forte. E o capitalismo agradeceria sobejamente se essa iniciativa do povo aburguesado do país do queijo e do chocolate tivesse sido democraticamente aprovada. Todavia, se fosse espécie de socialismo, seria o famigerado socialismo de uma só nação de Stalin, e não o socialismo universal de Lênin e Trotsky. E a história está aí para lembrar a todos que o socialismo stalinista teve um preço altíssimo e impagável: custou não só uma miríade de bárbaros fuzilamentos coletivos e a morte da democracia como também e principalmente a inviabilidade da verdadeira libertação da classe operária preconizada pelo socialismo leniniano-trotskyniano.

Resta saber se os ricos&tecnologicizados suíços, ao dizerem não ao renda mínima, recusaram-se a serem burgueses preguiçosos que interrompem as suas “nobres” preocupações sociais, a sua “revolução”, no muro que separa o Alphaville suíço do resto do mundo, ou se isso é somente a sempiterna expressão do velho egoísmo burguês. Seria só o medo do “indesejáveis imigrantes” o coletivo não ao Renda Mínima? Se sim, o que é bem provável em se tratando de humanidade e de capitalismo juntos, a grande riqueza deles, que excede três vezes o que precisam, não se reflete em mais humanidade. Mas isso não deveria nos espantar.

Não deve restar dúvida de que o “não” plebiscitário suíço à renda mínima que, segundo muitos, já possibilitaria aos cidadãos desse país viverem bem sem terem de trabalhar, não foi dito para que os excedentes privilégios alpinos fossem compartilhados com a parte do mundo que tem muito menos do que precisa. E que tem muito menos justamente por conta de um sistema global que explora aqui (na América Latina, na Ásia, na África) para fazer sobrar ali (na Suíça –mas não só nesse país). Embora “paz de espírito”, “liberdade” e “tempo disponível para ser criativo” sejam ideais que o mundo precisa um dia ter universalizados, vaticinados por ninguém menos que Marx, o não suíço à sua aplicação local foi mais forte. Os trabalhadores do resto do mundo agradecem.

Obviamente, a utopia da liberdade absoluta em relação à subsistência material é desejabilíssima. Não obstante, não quer dizer que não tenha sido teorizada e tentada ao longo da história. Porém, só seria válida desde que essa ilha libertária fosse possível a todos, e não só aos moradores de um condomínio burguês que se confunde com um país. Caso contrário, estamos falando apenas da velha distopia capitalista na sua melhor e mais cruel forma. O lema comunista popularizado por Marx, qual seja, “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, talvez tenha encontrado a sua maior perversão capitalista na propaganda do projeto Renda Mínima suíço, cujo objetivo anunciado era dar a todos (que todos, cara pálida?) uma “vida digna”, baseada na “liberdade de fazer as próprias escolhas”, para que só então “a vida fizesse sentido”. Até parece que a bonança econômica permitiu à sociedade suíça descobrir o metafísico e enigmático “sentido da vida”.

Teria sido muito digno da parte dos suíços apólogos do renda mínima que tivessem esclarecido aos seus concidadãos, bem como ao restante do mundo, o que entendem por “vida digna”, “liberdade”, e “sentido da vida”, por exemplo. Mais ainda, se estes seus belos e utópicos conceitos são possíveis apenas dentro de suas já ricas fronteiras; e, sobretudo, se só são viáveis mediante a manutenção, ou o que é pior, a radicalização da indignidade e da exploração sociais do lado externo e pobre de seu Estado-Alphaville. Os suíços não decidiram contra o Renda Mínima por conta da favela terceiro-mundista que sua fortuna-primeiro-mundo gera antagonicamente. No entanto, esse não coletivo, ainda que egoisticamente entoado, não dará aos já burgueses suíços o excedente direito de serem Burgueses de Estado, com um gordo e indiscriminado depósito estatal de R$ 9mil no final de cada mês, independentemente de suas necessidades. Essa proposta baseada na cisão entre trabalho e renda deveria ser negada mesmo. Mais ainda, que a própria possibilidade de se viver de renda seja negada veementemente, pelo mundo inteiro, e daqui para frente.

 

Tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser

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O ser humano é transição, e, exclusividade sua, consciência disso. Somos a espécie que não só conhece, mas, principalmente, promove a própria evolução. E essa ininterrupta promenade se expressa em todas as dimensões humanas. Economicamente, vemos isso nas transições históricas, por exemplo, do escravismo para o feudalismo; deste para o capitalismo; e deste último para algo que ainda não sabemos o que, mas que até bem pouco tempo se acreditou piamente ser o socialismo. Entretanto, hoje em dia a descrença nas profecias econômicas à lá Marx nos permite chamar o sucessor do capitalismo apenas de pós-capitalismo.

As transições econômicas que fizeram dos escravos servos e dos servos proletários são conhecidas, cognoscíveis, embora sempre abstratas para nós, contemporâneos. Já a transição de igual envergadura na qual estamos compreendidos, essa não nos poupa da angústia concreta em não saber para onde estamos indo. O fato de não conhecermos o que é esse até então tautológico pós-capitalismo, com efeito, é motivo para espécie de angústia histórica. Os conceitos-bengala pós-proletáriado e pós-capitalismo dão conta apenas parcialmente do ainda desconhecido horizonte diante de nós; pouco anestesiam a dúvida do que de fato virão a ser.

Embora não estivesse falando de economia, o filósofo alemão Martin Heidegger expressou o dilema do homem em meio à transição, todavia do realismo ao relativismo, através da seguinte frase: “Chegamos tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser“. O filósofo queria dizer que a sua idade histórica –que ainda é a nossa- perdeu a fé nas verdades absolutas, isto é, nos deuses, mas ainda não sabe lidar com o Ser, ou seja, com a multiplicidade infinita de interpretação do real. Nesse ínterim no qual nem os deuses nem a pluralidade de sentidos do real nos oferece um chão seguro, ou acreditamos que nada é verdadeiro, ou que a única verdade absoluta é o nada. Eis o efeito colateral do niilismo que deu cabo da modernidade e inaugurou a contemporaneidade humana.

Retomando a dúvida e a perplexidade acerca do que será chamado esse pós-capitalismo tautológico-acessório que com efeito capitulará o inconcluso capítulo econômico histórico  do qual somo os protagonistas, a frase do filósofo alemão pode ser de grande ajuda. A transição econômica pela qual passamos não poderia ser expressa assim: chegamos tarde demais para o capitalismo e cedo demais para o ____________? Um marxista, obviamente, completaria a máxima tascando, sem pestanejar, um socialismo. Isso, no entanto, não seria apenas fazer de um fundamento passado a regra para um presente e um futuro outros? Em outras palavras, a reeleição de um velho deus?

Dizer que chegamos tarde demais para o capitalismo significa que, embora ainda estejamos absolutamente imersos nele, não conseguimos mais crer que ele possa dar conta das necessidades econômicas de todos os indivíduos, mas só de uma minoria deles, cada vez mais minoritária aliás. Não há mais dúvida de que a liberdade revolucionária que o capitalismo significou para o servo medieval, hoje em dia, é liberdade apenas para as elites. Nem o jovem deus que prometeu libertar as pessoas das regulações, qual seja, o Neoliberalismo -termo cunhado em 1938 Ludwig von Mises e Friedrich Hayek- consegue mais manter-nos beatos seu.

Quanto mais não seja, porque segundo George Monbiot, no artigot Para compreender o neoliberalismo além dos clichês, a vangloriada liberdade neoliberal resultou na liberdade dos patrões para reduzir os salários e explorar os trabalhadores; a liberdade em relação à regulamentação significou destruição da natureza; e a liberdade para distribuir a riqueza findou como liberdade para não fazê-lo. De fato, conforme aponta Thomas Piketti no seu Capital no século XXI,  hoje em dia a concentração de renda nas mãos de cada vez menos gente é maior do que em qualquer outro período histórico. É de espantar seguir até o final o texto e os gráficos da obra do economista francês!

Muito tarde para o neoliberalismo e muito cedo para o pós-neoliberalismo? Por certo, mas outrossim demasiado tautológico. Muito cedo para que exatamente? Eis a pergunta que não quer calar. Se, entretanto, a difícil transição metafísica de que falava Heidegger era entre os deuses e o Ser, isto é, entra a univocidade e a plurivocidade absolutas do real, a que está sendo abordada aqui deve ser dita entre a univocidade de uma doutrina econômica, cujo vício entretanto é atender cada vez menos indivíduos, e a plurivocidade de um devir econômico no qual o interesse de todos seja contemplado.

Em se tratando de economia, o que seria então o Ser heideggeriano, isto é, a multiplicidade infinita de interpretação do real? Ora, se, como aponta Monbiot, o deus neoliberal elege “a competição como definidora das relações humanas, e os cidadãos como consumidores que decidem democraticamente o seu destino apenas ao comprar e vender“, a pluralidade de sentidos do real pós-neoliberal, por sua vez, deverá no mínimo significar que as relações humanas não sejam pautadas exclusivamente pela competição nem pelo consumo. Não que a plurivocidade do real econômico vindouro deixe de constar dessas práticas, afinal, menos plural o real seria, e, consequentemente, mais próximo dos deuses permaneceria.

Economicamente, pluralidade absoluta, ausência total de deuses e de verdades únicas, portanto, deve ser uma realidade na qual cada indivíduo possa realizar as suas necessidades materiais da forma que melhor lhe convir, sem, contudo, tal liberdade impedir quem quer que seja de realizar o mesmo, da forma que achar melhor. Os críticos da social democracia dirão que tal liberdade repetirá vícios históricos; que atenderá somente os interesses da burguesia; que o neoliberalismo se aproveitará dela para exercer-se imperiosamente sobre todos. E têm certa razão nisso inclusive.

Porém, tal crítica é pertinente até o ponto onde percebemos que o neoliberalismo, encimando imperiosamente a realidade econômica outra coisa não faz senão se colocar como um deus absoluto. O maior problema dessa doutrina econômica é até aqui não ter conseguido compatibilizar-se com a pluralidade absoluta em relação a qual, segundo Heidegger, chegamos cedo demais. Entretanto, como dito antes, a plurivocidade do real à qual chegaremos não será total se a famigerada liberdade neoliberal for excluída desse real. Tarefa difícil conciliar o real todo com suas expressões mais contraditórias! E é justamente essa dificuldade que aponta a nossa precocidade em relação ao Ser!

Nesse sentido, o passo que precisamos dar para, senão estar definitivamente no Ser, ao menos mais próximo dele e mais distantes dos deuses, deve ser fazer com que o neoliberalismo possa não ser absoluto e invencível; impedi-lo de ser um deus ele mesmo. Pensando assim, estar entre o deus capitalista e o Ser pós-capitalista significa que estamos no tempo de furtar do neoliberalismo a sua patológica tendência absolutizante. Os revolucionários radicais, por certo, dirão que se trata de reformismo. Entretanto, até onde podemos garantir que a revolução rápida e violenta do Manifesto Comunista de Marx e Engels, corroborada por Lenin no seu O Estado e a Revolução, seja a melhor saída depois de termos visto que as revoluções russa e cubana em menos de um século ruíram diante dos ditames neoliberais?

Para quem busca o Ser, isto é, a plurivocidade de interpretação do real, insistir na clássica, todavia monológica estratégia que prega que devemos começar com a revolução violenta em função da ditadura do proletariado não seria nos mantermos demasiado próximo dos deuses? A modernidade que levou Marx a escrever tal cartilha, com efeito, estava muito mais próxima das verdades absolutas, ou seja, dos deuses, do que nós, contemporâneos. Embora tenham sido os verdadeiros assassinos de Deus, os modernos ainda estavam com o punhal e com as mãos sujas do sangue divino; demasiado contemporâneos daquilo que nós, contemporâneos, já somos e devemos ser avant garde. Reviver velhas doutrinas apenas nos fará démodés.

Se ainda não conseguimos precisar em relação a que chegamos cedo demais para além das tautologias “pós-capitalismo”, “pós-liberalismo”, se ainda é um enigma que real plural fará com que a competição e o consumo não determinem exclusivamente as relações e a sobrevivência material humanas, é porque ainda não conseguimos nos desvencilhar totalmente dos deuses do passado, das verdades de pretensão absoluta que ainda nos convencem de que devem ser interpretadas univocamente. Aqui podemos parafrasear a máxima heideggeriana novamente para nos encontrarmos na transição histórica em que estamos: chegamos cedo demais para nos desvencilhar totalmente dos deuses e, portanto, muito mais cedo ainda para sermos capazes de encarar o Ser.

A tarefa histórica da nossa particular transição, por conseguinte, deverá ser seguir na cruzada contra as verdades absolutas, aberta todavia antes de nós, justamente porque ela não foi concluída. Isso fica claro quando percebemos que diante do real não vemos muitas alternativas além da permanência do neoliberalismo ou da revolução socialista. Que pobreza imaginativa! Quão pouco plurívocos ainda somos! Ora, duas possibilidades nos afastam quase que diametralmente da pluralidade de interpretações do real que o Ser que deverá se seguir exige. Dois deuses não fazem o Ser. Negam-no duplamente aliás.

Como colocado no início, estarmos livres dos deuses e sermos finalmente contemporâneos do Ser, ou seja, da plurivocidade infinita do real, de forma alguma deve significar sustentar que nada é verdadeiro nem que a única verdade absoluta é o nada. O niilismo é bem mais virtuoso do que isso! Inclusive os monológicos liberalismo e socialismo não devem ser negados, nadificados, mas compreendidos entre muitas outras formas de, economicamente, a humanidade existir no mundo. Só não podemos seguir insistindo somente nessas duas teclas. A história da nossa transição, que dará cabo dos deuses e conta do Ser, exige que usemos todas as teclas disponíveis e que, ademais, inventemos todas as outras que nos faltam. Só então teremos condições de gozar o real em suas infinitas possibilidades.

O socialismo negativo de Lula

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Foto: Rodrigo Stuckr / Instituto Lula

 

O socialismo, essencialmente, é a doutrina política e econômica que prega a coletivização dos meios de produção e de distribuição da riqueza através da supressão da propriedade privada e das classes sociais. Entretanto, muitos dos que tentaram implantá-lo cometeram o pecado de sobrelevar a teoria em detrimento da prática. Em outras palavras, preferiram o ideal ao real. Lula, o maior líder político da história do Brasil, em recente entrevista ao jornalista Glenn Greenwald, deixou bem claro que o seu projeto socialista para o Brasil tem ao menos a virtude de não incorrer nesse pecado.

A certa altura da entrevista, Greenwald afirma que o PT é parecido com os partidos da esquerda da Bolívia, Venezuela, Cuba, Equador, e que Lula e Dilma querem colocar o Brasil no mesmo caminho. Lula então protesta: “não seja injusto com o PT, pelo amor de Deus, porque o PT tem muita ligação com o SPD alemão; com o partido trabalhista inglês; com o partido socialista francês; com o partido socialista espanhol.”

O ex-presidente metalúrgico assim rejeitou a afirmação do jornalista americano para esclarecer que o percurso socialista que ele abriu no Brasil não se deu de modo autoritário como nas demais repúblicas latino-americanas. A diferença que Lula aponta entre o projeto socialista do PT para o Brasil e os dos demais países hermanos fica ainda mais clara quando ele assume que “o PT nem sequer definiu o tipo de socialismo que quer, porque o PT diz que o socialismo será a construção; será construído pelo povo; não será o PT que terá meia dúzia de intelectuais e dirá que tipo de socialismo NÓS queremos. O PT é um partido muito mais aberto do que outros partidos que existem na América Latina”.

Está precisamente aí a virtude esquerdista do partido do presidente proletário: não eleger teorias socialistas abstratas e de pretensão universal como regra para a realidade brasileira concreta e particular. Em outras palavras: não subjugar a construção ao construto; a prática à teoria; em suma, o real ao ideal. Quando diz que não será meia dúzia de intelectuais nem o PT que dirá que tipo de socialismo o Brasil terá, Lula coloca o futuro da sociedade brasileira acima dos interesses do seu partido e dos da intelectualidade em geral.

Proletário durante anos, Lula foi vítima concreta da histórica divisão social que desvaloriza do trabalho braçal diante do trabalho intelectual. E foi contra essa sobrevalorizada intelectualidade que não só no Brasil se confunde com a aristocracia que o metalúrgico teve de lutar para provar que um trabalhador comum não vale nem pode menos do que qualquer doutor? Não foi exatamente isso que ele provou contra seu antecessor de governo, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso?

Recusando-se implantar no Brasil teorias socialistas pré-fabricadas, ademais escritas em língua estrangeira, e ao mesmo tempo assumindo que o PT nem sequer definiu o tipo de socialismo que quer, sem, contudo, deixar o horizonte socialista de lado, o que Lula faz é defender um socialismo negativo. O que seria então esse socialismo negativo?

Ora, se em sua forma positiva o socialismo é a implantação, imediata ou gradual, da doutrina socialista em uma determinada sociedade em função da coletivização dos meios de produção e das riquezas sociais, sua versão negativa há de ser apenas a exclusão sistemática daquilo que em uma sociedade a impede de realizar tal coletivização. O socialismo negativo é mais o esvaziamento de entraves contrários à socialização da riqueza do que o preenchimento da sociedade com novas e impositivas ordens.

O socialismo negativo não é a negação do socialismo, mas a não positivação de teorias socialistas historicamente construídas, a maioria delas eurocêntricas, passadistas. Até mesmo a mais cultuada delas, o socialismo científico/profético de Marx e Engels deve receber a mesma crítica que o filósofo Baruch Spinoza, duzentos anos antes deles, fez às escritura das grandes religiões monoteístas, qual seja: que estes livros são verdadeiros e úteis somente enquanto registros históricos de épocas e povos determinados.

Por mais que a teoria marxista seja uma excelente chave para se pensar a dinâmica do capital em determinada conjuntura histórica, querer que ela valha para além do seu tempo é como querer que a Bíblia, a Torá ou o Alcorão sejam fundamentais ao tempo que lhes sucede. Em outras palavras, é ser fundamentalista. Não é à toa que o marxismo é chamado por muitos de religião.

É para evitar tal fundamentalismo, que também é anacronismo, que Lula não quer enfiar goela abaixo dos brasileiros teorias socialistas que em nada tem a ver com a particular realidade social brasileira nem com as atuais aspirações do povo desse país. Não, obviamente, que o conhecimento pregresso deva ser desconsiderado. Lula não faz apologia à ignorância. Antes, seu projeto socialista sustenta que é o próprio povo brasileiro que, no andar de sua carruagem, descobrirá de que modo quer que se dê a coletivização dos meios de produção e de distribuição da riqueza.

Para tanto, o que Lula fez no Brasil nos seus oito anos de governo foi investir profundamente na inclusão social, aliás, como nunca antes na história desse país, para que mais pessoas, quiçá toda a população tenha oportunidade de participar dessa construção que deve ser coletiva, democrática, e não autoritária, fundamentalista.

Se ao tomar o poder em 2003 Lula tivesse perguntado à sociedade brasileira de que modo ela gostaria de distribuir a sua riqueza, muito menos vozes ouviria, pois a sociedade na época era mais refém das elites do que agora. Hoje, 14 anos depois de iniciado o socialismo negativo de Lula, mesmo que a resposta da sociedade brasileira à mesma pergunta ainda não seja o socialismo, o coro no entanto é muito maior e múltiplo.

Depois do presidente metalúrgico as elites brasileiras já não são mais a única voz. Também os trabalhadores, os nordestinos, os gays, as mulheres, os negros e os pobres têm condição e força para participar coletivamente da construção do futuro do Brasil, pois com grande esforço foi retirado, melhor dizendo, foi negativado muito do que os impedia de ser, de fato e de direito, a sociedade brasileira.

Uma das maiores críticas à Lula se dá porquanto seu governo mais estimulou o consumo do que investiu na formação de uma consciência de classe trabalhadora que, para a teoria socialista clássica, é a chave para a revolução. Mas aqui não reencontramos a questão da impertinência prática do metalúrgico em relação às teorias estrangeiras?

Entretanto, até mesmo a teoria marxiana que diz que o socialismo sucederá o capitalismo no momento que este se tornar insustentável corrobora com o investimento de Lula no consumo. Afora o fato de que ainda há muito ranço feudal a ser erradicado por essas terras, o próprio capitalismo tupiniquim está longe sucumbir diante de suas próprias contradições. Investir todas as fichas numa revolução socialista imediata nessa conjuntura não seria de certa forma repetir os fracassos das revoluções russa e cubana que tentaram tornar economias, se não ainda feudais, ainda jovens capitalistas, em socialistas, isto é, sem, experienciarem o vil ciclo completo do capitalismo?

Por isso o investimento de lula no consumo não merece tamanha crítica, sequer dos marxistas, mas compreensão particular. O que o ex-presidente fez erradicando a pobreza do Brasil e dando condições para a maioria das pessoas consumir foi botar a sociedade brasileira inteira, e não só as classes mais abastadas, a girar a roda capitalista. Investir no consumo de massa como acelerador do esgotamento do sistema econômico que impede a coletivização dos meios de produção e a distribuição da riqueza não deixa de ser socialismo, só que em sua forma negativa.

O socialismo negativo de Lula tem a primeira virtude de não pré-estabelecer verticalmente um tipo de socialismo ao povo brasileiro. Em última instância, significa liberdade não só para esse povo decidir quais são suas atuais necessidades e desejos, como também para construir ele mesmo o futuro que quer para si. E o que é mais importante, a despeito de teorias que apenas nos livros são infalíveis e de teóricos que no passado convenceram muita gente intelectualizada.

Graças ao socialismo negativo de Lula o futuro do povo brasileiro e o modo como se dará a coletivização dos meios de produção e a distribuição da riqueza no Brasil não foram outorgados nem pelo PT nem, nas palavras do metalúrgico, “por meia dúzia de intelectuais”. O socialismo negativo, portanto, é a forma menos autoritária e fundamentalista de socialismo. E é por isso que o ex-presidente pode dizer que “não tem nenhum partido no mundo que seja democrático e aberto como o PT”.

Brasília, muito mais do que 50 anos.

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Foto: Ricardo Penna/Fotos Públicas

Brasília, a capital do Brasil completa hoje 56 outonos. Construída em cinco anos, cumprindo o aventureiro lema de Juscelino Kubitschek,  “Cinquenta anos em cinco”, foi entregue ao povo brasileiro a sua nova capital nacional, novíssima em folha, moderníssima; modernista aliás. Agora Brasília é cinquentona, justamente o tempo que foi comprimido nos cinco de sua feitura. Ela pagou a conta da aventura histórica que foi?

JK sabia que tempo é dinheiro, e que não se cria aquele sem este. Antes, os cinquenta anos que ele “fez ser” em apenas cinco haveriam de ser pagos no futuro, pelo futuro, e com capital. De acordo com a lógica do lema da construção de Brasília, os “Cinquenta anos em cinco” deveriam ser pagos em cinquenta anos. Muitos percalços históricos –na verdade a história ela mesma– fizeram com que ainda estejamos pagando o “sonho” kubitschekiano.

Por ser uma cidade planejada Brasília já merece muita atenção. Tal urbanidade perverte o modo como historicamente as cidades se fizeram, pelo menos até a Modernidade, momento a partir do qual o mundo não pôde mais esperar que as cidades surgissem espontaneamente e se consolidarem historicamente, pois, novamente, tempo é dinheiro. Para os Modernos, mais ainda para os modernistas, a urbe é mercadoria; deve ser produzida pelo preço que for, mesmo que custe, em capital, uma década/ano.

A urbanidade tradicional se deu com famílias que passaram a moram próximas umas das outras, gerando vilas, que, várias delas, muito próximas umas das outras, geraram centros, periferias, densidades, necessidades diversas porém conjuntas, ou seja, as cidades como as conhecemos. Porém, para ser uma capital nacional, como o Rio de Janeiro antes da inauguração de Brasília, era necessário mais: décadas ou até mesmo séculos de centralidade econômica e política para um mero agrupamento humano ter o privilégio de hospedar o Estado.

O preço a ser pago em cada etapa do desenvolvimento urbano, digamos assim, natural, contudo, foi alto. Os interesses da família foram atravessados pelos da vila assim como a liberdade da vila foi reduzida desde que passou a ser somente mais uma dentre as que compõem a cidade. Outrossim a cidade que é capital nacional é oprimida por compartilhar seu território com o tirânico Leviatã. Com efeito, é uma aventura “sobreurbana” uma cidade-capital-nacional administrar satisfatoriamente a si mesma e o Estado ao mesmo tempo. Só mesmo muito capital nessa causa. Não é à toa que a cidade que é capital de uma nação recebe -e consome- a verba de um estado.

Não por amor ao Rio de Janeiro, obviamente, mas por amor a si mesmo, o Leviatã-tupiniquim-kubitschekiano construiu, no solo seco e ermo do cerrado, um castelo urbano novinho em folha, no melhor estilo ficção científica dos anos cinquenta, com a justificativa de “interiorizar” o Brasil até então demasiado litorâneo. Só que o “Cinquenta anos em cinco” de Kubitschek foi tão poético quanto cruel. Playtime, a utopia cinematográfica dirigida e atuada por Jacques Tati em 1967 que tergiversa mudamente sobre as cidades modernas sequer chegou perto de representar o preço que é comprimir cinco décadas de um país em cinco anos.

E o Leviatã brasileiro JK, que construiu para si uma “cidade ideal”, no final das contas gerou um monstro urbano real que consome muito mais do que esses cinquenta anos usados nos cinco de sua feitura. Tal é a “capitalidade” de Brasília! Quando, afinal, essa capital começará a dar lucro? Brasília: “Muito mais do que cinquenta anos de capital em cinco para fazer uma capital”, esse sim teria sido um lema mais honesto. De qualquer forma, parabéns, capital do Brasil!

Taxistas cariocas contra o Uber

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Em 1º de abril, mais conhecido como o dia internacional da mentira, os taxistas do Rio de Janeiro fizeram um mega manifestação contra o Uber, sistema de transporte privado que se coloca como alternativa para deslocamentos urbanos. Oxalá fosse mentira o bloqueamento surpresa que os manifestantes fizeram nos acessos aos dois aeroportos cariocas e nas principais vias do centro e da zona sul da cidade que, na verdade, bloqueou milhares de cidadãos, uns de pegarem seus voos marcados, outros de circularem pela cidade, outros ainda de chegarem aos seus trabalhos.

No entanto, a verdade da manifestação foi nada menos que 125 quilômetros de congestionamento urbano, ademais, em uma cidade normalmente já muito engarrafada, dita, recentemente, a mais congestionada do mundo. Para alguns veículos da imprensa, o engarrafamento provocado pelos taxistas foi maior da história da capital fluminense.

A fação taxista da “máfia” dos transportes cariocas se insurgiu contra o Uber porque este serviço não está sujeito às mesmas exigências legais que os taxistas. Com efeito, a autonomia do Uber em relação a determinados impostos e vistorias de rotina, no final das contas, permite um serviço de melhor qualidade e mais barato. Obviamente isso afeta diretamente os lucros dos taxistas. Porém, esse revés não autoriza a categoria taxista a prejudicar a cidade como bem entender

Sem dizer que o Uber se afirma oficialmente enquanto uma “tecnologia disruptiva”, isto é, uma inovação, produto, ou serviço que pretende derrubar uma tecnologia existente e dominante no mercado. Diante de tal “ofensiva”, os taxistas não mediram esforços para resguardar o seu, digamos assim, lugar de conforto há muito conquistado pela força e estratégia de sua “máfia”.

Entretanto, são dois os problemas da manifestação dos taxistas cariocas nesse 1º de abril que valem ser apontados. Primeiro, o fato de essa categoria não querer aceitar concorrência no serviço que presta. Ora, em um mundo liberal, demasiadamente liberal, a concorrência é motor inalienável. Tem jeito não! Eu mesmo, e, aposto, você que me lê, não temos tal privilégio, tampouco a pretensão de tê-lo. O longevo modo “máfia” dos taxistas cariocas, porém, faz com que a concorrência pareça um absurdo para eles. Já não era sem tempo uma disrupção!

Outro problema da manifestação, e o mais grave, foi a não organização, dentro da Lei, do protesto da categoria. De qualquer grupo trabalhista que queria se manifestar –bem como de qualquer outro- é exigido que comunique seu pretenso ato à prefeitura, que negocie os termos da ação, e que receba autorização para tal. Caso contrário, bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral são despejados desmesuradamente até que a “ordem” se restabeleça.

A “mafiosidade” da categoria dos taxistas, no entanto, parece autodispensá-los de tal protocolo. Por isso, sem aviso nem medição de consequências alguma, eles simplesmente pararam a cidade quando, onde e como bem intenderam. E o que é pior, não sofreram violência do estado além de parcas 180 multas individuais. Por muito menos, a categoria dos professores, em suas manifestações devida e previamente autorizadas pela prefeitura, receberam muito mais violência e bombas morais.

O que os taxistas fizeram com a cidade e com milhares de cidadãos, portanto, foi um crime claramente contemplado pela lei. Não obstante, como se trata de uma máfia o tratamento que receberam foi diferenciado. A prefeitura, ainda fraca diante da “categoria”, estava mais preocupara com o restabelecimento da ordem do que com a punição dos desordeiros. Algo como varrer o lixo para debaixo do tapete. Tal privilégio não é somente dos taxistas, mas também das empresas de ônibus, metrô, trem e barcas da cidade.

Porém, de nada adianta a população que ficou horas imobilizada no meio da cidade reclamar enquanto o resistente poder da máfia dos transportes carioca não for submetido às leis que valem para todas as demais categorias trabalhistas e cidadãos. E não estou falando somente da inacreditável manifestação de 1º de abril, mas também do serviço destes taxistas que, cotidianamente, flerta despreocupadamente com a ilegalidade.

Não é de hoje que cariocas e turistas sabem muito bem que nas portas dos aeroportos cariocas, ou mesmo em dias de Natal, Ano Novo e carnaval, os taxistas se recusam a cobrar viagens conforme o taxímetro, ou seja, conforme a lei, obrigando as pessoas a pagarem valores previamente estabelecidos por eles mesmos, de acordo com sua velha régua mafiosa. Sem dizer dos muitos taxímetros que, quando usados, são “viciados” para cobrarem mais que o devido.

Afora o prejuízo social e econômico que os taxistas causaram na cidade do Rio de Janeiro nesse 1º de abril, o fato terem escolhido justamente o dia internacional da mentira para se manifestarem é simbólico. É como se a lei, a mais universal verdade para um sociedade, nesse dia pudesse ser tradada como contingência, mentira, algo que pode ser desconsiderado ao sabor de seus clandestinos anseios “categoriais”.

Já o Uber, o “vilão” segundo os taxistas cariocas, além de disruptivamente ameaçá-los com serviço e preços melhores, só tem a lucrar com a ilegalidade intempestiva desses taxistas. Não foi à toa que nas redes sociais o que mais se viu foi cariocas postando mensagens em apoio ao Uber e contra os taxistas baderneiros. Embora fosse 1º de abril, essas manifestações virtuais foram verdadeiras. Tanto pior para os taxistas.

A minha pulsão petista

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Diante dos fatos, por que eu ainda defendo o Partido dos Trabalhadores? A minha resposta imediata é que, desde Lula, o PT transformou o até então abstrato e eleitoreiro discurso político sobre igualdade social em realidade concreta para milhões de desfavorecidos históricos, objeto de extremo valor para  mim.

Entretanto, as ineficientes estratégias tentadas pelo partido diante das crises econômica e política, e, ademais, a corrupção interna que não se rogou de fazer lugar dentro do partido, e que faz dele o mesmo que tantos outros que eu desaprovo veementemente, tudo isso faz a minha defesa querer se calar. 

Agora, se, como disse Søren Kierkegaard, o pensamento objetivo traduz tudo em resultados, mas o  pensamento subjetivo coloca tudo em processo, omitindo o resultado, a minha reprovação em relação ao PT, objetivamente, é baseada nas más performances do atual governo, mas a minha insistente aprovação ao PT se dá por eu, subjetivamente desconsiderar tais resultados, omiti-los, e, em troca, valorizar apenas o processo, ou seja, o “modo” como ele governa.

Qual seria, entretanto, a justa equação entre a minha subjetiva concordância com o modo petista de governar e a minha objetiva discordância em relação aos fracassados resultados do partido?

Ora, quando a realidade vai contra as nossas mais profundas convicções, ou a reprovamos objetivamente, ou, em vez disso, subjetivamente a sublimamos, isto é, seguimos crendo que há uma verdade mais nobre e profunda escondida nos fatos aparentemente vis. Desse modo, eu só sigo defendo o PT porque, sublimando sua adversa realidade, acredito que ainda há nele uma virtude, ainda que oculta, ou o que é pior, golpisticamente ocultada.

A minha relação com o Partido dos Trabalhadores me remete à frase de Jacques Lacan: “amo-te, mas há algo em ti que amo mais do que tu”. Não obstante, o que é essa coisa que eu amo no PT mais do que ele mesmo? Ora, a igualdade social que o partido aventurou no Brasil e a tentativa de reduzir o poder das elites locais, feitos que, objetivamente, ninguém encampou no nosso país de modo mais efetivo.

Entretanto, como sustentar racionalmente esse estranho amor pelo PT diante dos seus atuais fracassos e vulnerabilidade à corrupção? Considerando o que disse Lacan, qual seja, que a pulsão transforma o fracasso em triunfo, meu insistente amor pelo PT é fruto de uma pulsão

E se, ainda conforme o psicanalista, a razão da pulsão não é atingir a sua meta, mas girar compulsivamente em torno dela sem, no entanto, alcançá-la, as minhas fantasias fundamentais, quais sejam, que as elites caiam do cavalo para sempre e que a igualdade social se estabeleça, se em forma de pulsão estão protegidas das vicissitudes da realidade.

Considerando o que disse o filósofo Slavoj Žižek, que “nosso senso de realidade se desintegra no momento que a realidade chega muito perto de nossa fantasia fundamental”, consigo entender que, para o meu sonho igualitário permanecer íntegro, algo da realidade petista deve ser desintegrado, pois, conforme o filósofo, quando sonho e realidade se encontram, um dos dois deve morrer.

Entretanto, Lacan está aí para não me deixar esquecer de que a pulsão é o modo subversivo dos sonhos permanecerem vivos e íntegros dentro da realidade, mais precisamente, em torno dela, girando sem parar, sem nunca tocá-la, pois só assim eles nunca serão desintegrados por ela. A minha permanência pulsional em torno do PT, portanto, é o modo subversivo mediante o qual preservo vivo o meu sonho de igualdade social no Brasil justamente num momento onde tal realização parece mais distante.

Se eu fosse uma máquina, ou seja, absolutamente objetivo, haveria um limite a partir do qual eu deixaria de defender o PT e o abandonaria. Da mesma forma, se eu fosse um animal puramente instintivo haveria outrossim um limite, pois, como disse Žižek, “quando se vê diante de um objeto que está fora de seu alcance, o macaco desiste de alcançá-lo depois de algumas tentativas frustradas e concentra-se em um objeto mais modesto; já o ser humano persiste no esforço e permanece fixado no objeto impossível”.

Então, é por que eu sou algo entre a máquina e a besta, melhor dizendo, porque sou humano demasiado humano que ainda insisto no PT, pois através das realizações concretas ao longo de sua curta história no poder eu permaneço na órbita desse impossível objeto de desejo chamado igualdade social. Ao PT, atualmente, pelo menos a minha pulsão!

Consumir o consumismo que nos consome

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iPhones, férias no Caribe, internet de alta velocidade, dúzias de cervejas, é quase impossível não sermos consumidos por tais mercadorias, concupiscentemente tornadas ícones materiais da idealizada realização pessoal. Porém, como nos disse Érico Veríssimo, “o objetivo do consumidor não é possuir coisas, mas consumir cada vez mais e mais a fim de, com isso, compensar o seu vácuo interior, a sua passividade, a sua solidão, o seu tédio e a sua ansiedade”. O tempo e o vento do consumismo nos conclamam convincentemente a tapar o “intapável” buraco humano que somos, mesmo que nessa empresa impossível sejamos consumidos pelo consumismo que consumimos.

E consumindo concupiscentemente, nos alienamos tanto do nosso vazio intrínseco, quanto do fato de que somos consumidos pelo que consumimos.  Acreditamos cegamente que, aqui, uma ou duas mercadoriazinhas à mais darão cabo do nosso tédio, e, ali, que somos somente nós que as consumimos. Realmente, essas são mentiras muito bem contadas, e, ademais, muito bem acreditadas. O capitalismo e Noam Chomsky sabem muito bem que “não se pode controlar o povo pela força, mas se pode distraí-lo com consumismo”. Quem nos distrai: o capitalismo. Qual seu método: o consumismo. E os distraídos, quem são? Ah, estes dispensam apresentação.

Para entender melhor o teatro capitalista que nos distrai do fato de que o consumismo que consumimos nos consome, vale lembrar que “consumir”, derivado do Latim “consumere”, quer dizer destruir, desgastar, desaparecer, sumir. Aqui podemos ver que, consumindo, outra coisa não construímos que um mundo de destruição. Isso fica ainda mais claro quando compreendemos que o sufixo “ismo”, que, indica sistematização, aderido à palavra consumo com uma força histórica tremenda, faz do nosso modus vivendi um sistema de destruição, de desgaste, de desaparecimento. Escaparíamos nós, consumidores, desse aniquilamento consumista?

O consumo, obviamente, não foi inventado pelo capitalismo. Na verdade, é intrínseco à vida, que, de acordo com Nietzsche, é um processo contínuo de destruição (consumo) e criação. A sistematização do consumo, porém, não encontrou melhor expressão do que no universo do capital, a ponto de hoje ser um absurdo negar que capitalismo e consumismo sejam absolutamente consubstanciais. Millôr Fernandes fala bem mais poeticamente da relação desses dois monstros: “quando começou a comprar almas, o diabo inventou a sociedade de consumo”. Não é demais ressaltar que a gestalt poética dessa máxima está precisamente no apelido mui próprio dado ao capitalismo.

O objetivo do casal mais insaciável e prolífico da história econômica mundial não é que as suas muitas filhas-mercadorias desapareçam definitivamente. As mercadorias que consumimos constantemente, embora feitas para serem sistematicamente sumidas por nós, renascem sempiternamente das cinzas, feito Fênix mítica. A destruição envolvida no conceito de consumo, portanto, não as visa centralmente. Tampouco o fim do capitalismo está em foco no desaparecimento das mercadorias, muito pelo contrário aliás. Quem são, então, os sujeitos destruídos nessa conjuntura que, de um lado, conta com a nossa concupiscência, e, de outro, com a ganância capitalista? Há muito a Torá nos diz que “a ganância insaciável é um dos tristes fenômenos que apressam a autodestruição do homem”.

Sim, somos nós, consumidores, que somos consumidos, melhor dizendo, destruídos pelo que consumimos. Não exatamente como queria Leon Tolstoi, que dizia que “para se viver com honra, é preciso consumir-se, perturbar-se, lutar, errar, recomeçar do início, novamente recomeçar e lutar e perder e ganhar eternamente”. A frase do escritor russo é fraca, quiçá utópica, diante de um capitalismo que, sistematicamente, recomeça a sua luta desonrosa para ganhar e ganhar e ganhar, ad aeternum. Quantas gerações não foram consumidas do mapa desde o surgimento do capitalismo senão para que hoje ele estivesse mais vivo e mais  vivo que nunca? E quantas ainda não serão desgastadas em função do ganhar-ou-ganhar capitalista?

Como, entretanto, evitar sermos destruídos pelo capitalismo, ou o que é o mesmo, consumidos pelo consumismo que consumimos? A fórmula de Abraham Lincoln, qual seja, “a melhor forma de destruir seu inimigo é converter-lhe em seu amigo”, poderia ser de alguma ajuda aqui? Para tal, precisaríamos pressupor, como os liberais mais ingênuos, que capitalismo e consumismo podem de fato ser amigos nossos. Agora, isso não seria confiar demais em alguma mão invisível, mais ainda, mágica? Permaneçamos por enquanto com os pés no chão no qual está escrito com o nosso próprio sangue que aquele que nos destrói para construir-se não é nem tem como ser propriamente nosso amigo.

Para ser amigável conosco, o capitalismo precisaria consumir outra coisa que não a nós, seus consumidores. Para tanto, teria de consumir a si mesmo, uma vez que o consumo é a sua essência inalienável. Não obstante, há alguma indicação de que essa ficção possa ser realizável, e ainda assim ser chamada de capitalista? Ou o ato subsequente da longeva ópera humana, no qual o protagonista econômico será mais amigável, já não tem um nome próprio: socialismo? Portanto, desculpe-me Lincoln, essa balela de amizade com o capitalismo está fora de questão.

Desse modo, as opções que nos restam são: ou sermos indiferentes em relação ao capitalismo, e, como em um lugar queria Marx, deixá-lo sucumbir diante de suas próprias contradições; ou, em troca, inimizá-lo radicalmente, e, como em outro lugar também queria Marx, derrotá-lo rápida e violentamente. Agora, se o objetivo principal é findar com o consumo de vidas pelo consumismo capitalista, temos todavia de considerar que lutar contra esse monstro em ambos os casos consumirão milhares de vidas. No primeiro, ao longo do tempo em que o capitalismo se contradirá até sucumbir, e, no segundo, na própria revolução rápida e violenta, haja visto que a besta capitalista é tão ou mais rápida e violenta, sem dizer belicosa até os dentes.

Resta ainda uma terceira via, trilhada por aqueles que acreditam que deixarem-se ser consumidos pelo capitalismo, conforme o próprio capitalismo quer, é uma forma subversiva de fazer com que ele chegue mais rapidamente à sua contradição derradeira. Estes são chamados de aceleracionistas. No entanto, do ponto de vista do capital, no que diferem os consumidores concupiscentes e os aceleracionistas? A fera econômica há de preferir estes últimos inclusive. Para entender o desserviço do aceleracionismo, façamos uma analogia: se o inimigo fosse, digamos, a destruição da natureza pelo homem, o aceleracionista seria aquele que se juntaria aos destruidores dela para, não havendo mais natureza a ser destruída, a destruição enfim cessasse. De que adiantaria tal luta?

O aceleracionista responderia contrariado que a virtude de sua ideologia em relação ao vício concupiscente está em que ser consumido para mais rapidamente destruir daquilo que o destrói é muito mais produtivo e honroso do que ser sumido enquanto se está distraído pelos encantos mentirosos do inimigo. Realmente, há aí uma vantagem, que, no entanto, só não é absoluta porque mais virtuoso é aquele que, sem se permitir ser corrompido, mesmo que subversivamente, rápida e violentamente tenta dar cabo do algoz-mor, ainda que seja o primeiro a ser destruído por ele.

A solução para o problema de sermos consumidos pelo consumismo que consumimos certamente não virá do consumista concupiscente, pois seu consumo não só o aliena de sua própria destruição, como também da destrutividade própria do consumismo. Provavelmente o consumista aceleracionista também não dará conta da questão, pois, embora engajando a sua própria e inevitável destruição na destruição futura do inimigo, enquanto age só fortalece este último. Só o revolucionário ainda mantém alguma possibilidade de vitória em seu horizonte. Duas, aliás. A primeira, na sua morte rápida e violenta em resposta à sua outrossim rápida e violenta ofensiva contra o capital, uma vez que, morto, não mais será consumido pelo consumismo que tenta consumi-lo. Aqui, morrer, é como matar um soldado do inimigo. Já a segunda, mais desejada e substancial vitória está no êxito da revolução que dará cabo do capitalismo.

A conclusão não poderia nem deveria ser outra. Para quebrar o círculo, que para nós é vicioso, mas para o capitalismo é absolutamente virtuoso, que a frase outrossim circular ser consumido pelo consumismo que consumimos expressa, a concupiscência é incompetente. Tampouco o aceleracionista mais empenhado no extermínio do capitalismo demonstra bom rendimento, uma vez que sua estratégia só fortalece o inimigo naquilo que ele quer ser fortalecido. Só mesmo o revolucionário tem a vitória em sua ação, pois só ele sabe, assim como o kamikaze, que a sua eventual morte não significa derrota se algo do inimigo morrer com ele. E também que ser consumido, destruído, derrotado, é sê-lo pelo inimigo, não por sua própria e deliberada ação. Por isso, ‘consumir o consumismo que nos destrói’, para o revolucionário, de outra forma não é lido senão: “destruir a destruição que nos destrói’.

Design e ecologia

Para a Bauhaus, escola de design, artes plásticas e arquitetura de vanguarda da Alemanha da década de 1920, o conceito de design diz que “a forma deve seguir a função”. Ou seja, que as coisas, sejam elas utensílios domésticos ou obras arquitetônicas, devem ser produzidas em vista de suas funcionalidades apenas, e não de suas aparências. Desse ponto de vista, tanto mais design um artefato tem quanto mais a sua função se realiza com o mínimo de forma. Não estaria nessa economia formal-funcional bauhausiana quase centenária a virtude ecológica de que o atual mundo humano parece ter se esquecido?
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Vulgarmente, pensamos que o design está mais nos excessos estéticos do que na racionalidade formal-funcional envolvida em alguma coisa. O design do Arco do Triunfo de Paris, por exemplo, ao contrário do que imediatamente se pensa, não está nos seus requintados adornos que tanto deliciam os olhares humanos. Tire toda a “decoração” do monumento parisiense e ele continuará um arco, plenamente funcional, talvez menos digno de simbolizar os triunfos de Napoleão Bonaparte, porém, nessa nudez estética reside justamente o triunfo do design – quiçá o da natureza.
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A decoração causa-nos sensações. O adorno é sensual por natureza. Todavia, para a racionalidade envolvida no conceito de design, qualquer ornamento apenas obscurece a verdade formal-funcional daquilo onde é colocado. “Enfeitar” a posteriori a forma puramente funcional de um artefato qualquer outra coisa faz que esconder o design intrínseco deste artefato, ademais, com detalhes que não fazem ele realizar melhor a sua função. Em vista de quê? Beleza? Ora, o design é de uma beleza ímpar. Porém, para fruí-la, é preciso atentar para a racionalidade que colocamos nas coisas que produzimos.
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A “beleza racional” das Colunas do Palácio da Alvorada, projetadas por Oscar Niemeyer, não está naquilo que primeiramente vemos nelas, nas suas curvas ou brancura modernistas, mas justamente naquilo que não se vê em coluna alguma: a sua função pura; que, entretanto, por motivos puramente formais, não se faz ver. O maior arquiteto brasileiro foi um excelente designer pois a forma de suas colunas palacianas está completamente em função dos esforços internos que elas suportam enquanto suportam o teto do palácio.
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Explicando melhor: uma coluna, essencialmente, é feita para suportar o peso daquilo que é colocado acima dela. Porém, ela mesma também pesa. De modo que a base de uma coluna suporta o peso do que ela sustenta mais o peso da própria coluna. A Coluna Brasília faz desse fato design. Racionaliza-o. A famosa estrutura vai se tornando cada vez mais delgada à medida que o seu próprio peso deixa de pesar sobre ela mesma, para, no seu topo, a forma mínima – a espessura – realizar a justa função – suportar apenas o /
peso do teto, e não gerar peso desnecessário à sua base.
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Na Coluna Brasília, o conceito de design da Bauhaus, “a forma deve seguir a função”, parece encontrar o conceito biológico de design natural ressaltado por Steven Pinker, qual seja: “o menor caminho entre forma e função”. Um design natural, um olho, digamos, que porventura tivesse estrutura para ver e digerir alimentos ao mesmo tempo, mas não digerisse nunca, somente olhasse, teria excesso no seu “design”. Antes, não seria design, pois haveria um caminho maior, portanto desnecessário, entre forma e função. Porém, a natureza é uma grande designer, quiçá a maior, justamente por não colocar em nada forma alguma que não sirva para uma função específica.
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O design bauhausiano, por excluir tudo o que é desnecessário de um artefato, é absolutamente econômico. Diria mais: ecológico; tanto quanto o design biológico. Com efeito, se a natureza agisse desnecessariamente – como um burguês hipersensualizado – e “decorasse” superfluamente todas as suas criaturas, colocando nelas coisas de elas que não carecem, não haveria matéria suficiente no universo para sustentar tal “luxo”. Aliás, não é exatamente isso que a atual crise ecológica está nos dizendo?
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Por isso, para uma natureza saudável, o design humano deve estar para a própria natureza assim como a forma, no conceito de design bauhausiano, está para a função, ou seja, em função dela. Em outras palavras, as coisas que o homem produz, sem as quais não pode viver adequadamente, devem ser formalmente tão mínimas a ponto de cumprirem apenas com suas funções essenciais, pois só assim não consumiremos desnecessariamente a natureza.
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As nossas roupas, por exemplo, se fossem feitas apenas para nos proteger das intempéries, ou ainda para dar conta da vergonha da nossa nudez, não precisariam ser tingidas nem estampadas. Isso porque os pigmentos e desenhos que nelas colocamos não aumentam nem melhoram essas suas duas funções imediatas, mas, em troca, atendem a outras funções, nada ecológicas, portanto irracionais, tais como o consumismo e a ostentação.
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A natureza, com efeito, agradeceria eternamente se as coisas que nós produzimos para o nosso próprio consumo envolvessem um design que primasse pelo “menor caminho entre forma e função”, e não pela longa promenade entre forma e função onde cabe um mundo de detalhes dispensáveis que, no entanto, só são colocados nas nossas coisas para que elas sejam mais do que precisam ser. Esse excesso, digamos, burguês, do ponto de vista do design bauhasiano, é irracionalidade pura, e, do ponto de vista da própria natureza, insustentabilidade máxima.

Fundamentalismo fraco

Quando criticamos o fundamentalismo religioso, por exemplo, o dos muçulmanos radicais, de onde exatamente proferimos nossa crítica? Obviamente, cremos nós, de um lugar descontaminado justamente daquilo que criticamos. Entretanto, o fundamentalismo não se restringe apenas às religiões. É-se fundamentalista inclusive quando se crê piamente, digamos, que o crescimento econômico é absolutamente bom e desejável, que devemos empreendê-lo sem nunca questioná-lo. Deus e o Capital, com efeito, não reinam sem doses elevadas de fundamentalismo. Entretanto, para além destes dois, seria o fundamentalismo intrínseco à nossa existência no mundo?
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Quase todos os países do Mundo Contemporâneo são laicos. Todavia, guiados inquestionavelmente pelo fundamento do Crescimento Econômico, em função do qual aliás até explodem-se uns aos outros. E pouco importa que o fundamentalista laico, aguerrido ao seu tão amado crescimento econômico, só explicite que segue um mau fundamento, quiçá o pior de todos, porque incompatível com as necessidades básicas dos indivíduos em geral e, mais ainda, insustentável de acordo com as possibilidades da natureza.
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Mesmo assim, o Mundo Contemporâneo Laico sustenta e leva adiante, com uma fé cega, o fundamento do crescimento econômico. E uma vez que, como canta Liza Minnelli em Cabaret, “money makes the world go round”, o que temos no cabaré mundano são sete bilhões de crentes no capital fazendo o mundo girar – ou o que é pior, chamando esse monstro piruetado histericamente por nós de mundo.
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O fanático religioso tem na Palavra do seu Deus o seu maior fundamento – mesmo que abaixo deste tenha outros, dentre eles o próprio capital. O fanático capitalista, por sua vez, tem no seu céu mais elevado ninguém menos que o onipotente Deus Capital – ainda que abaixo dele haja inclusive deuses religiosos eletrodomésticos. Ou seja, ambos têm os seus próprios fundamentos, uns supremos, outros de menor espectro, muitos deles em comum inclusive, dos quais não abrem mão e pelos quais são capazes de destruírem-se uns aos outros.
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Em novembro de 2015, o “laico” Estado Francês foi atacado por fundamentalistas do Estado Islâmico. Os franceses, obviamente, ficaram aterrorizados com as mortes no cabaré mais famoso do mundo, o Bataclan. Tal terror, no entanto, não levou em consideração que a própria França – mas não só ela – já estava, antes disso, aterrorizando as vidas de milhares de pessoas com bombardeios destinados ao EI. Porém, a França não foi taxada de fundamentalista nem quando, dois dias depois dos ataques em Paris, seguiu aguerrida ao velho fundamento “destruir os inimigos”, bombardeando novamente o EI.
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O predicado “laico”, do qual a maioria ocidentais se orgulha tanto, e com o qual se sentem inquestionavelmente superiores aos religiosos árabes-orientais, não isenta ninguém do fundamentalismo em si. Muitas vezes o fundamentalista laico é mais fundamentalista e destrutivo que o religioso. Todavia, enquanto ser laico ou ser religioso for uma verdade suprema, em função da qual vale explodir pessoas, seja a partir de drones orientados por GPS, seja com metralhadoras, dentro de cabarés famosos, desculpe-me, só falamos de fundamentalismo radical.
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Slavoj Žižek propõe uma reviravolta no modo de vermos e criticarmos o fundamentalismo ao perguntar-nos: o que é pior, o EI explodir os franceses por que Alá ordenou, ou os franceses explodirem os muçulmanos radicais simplesmente por acreditarem que é isso a coisa certa a ser feita? Não seria o francês laico muito mais cruel que os radicais religiosos muçulmanos ao explodi-los simplesmente por assim achar melhor? E o religioso, em troca, não seria, digamos, mais “absolvível” pelo fato de explodir os seus inimigos por não ter opção diante das ordens do seu Deus?
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Não obstante, a melhor coisa que temos a responder à Žižek é que ambos os fundamentalismos, tanto o laico quanto o religioso, são igualmente condenáveis. Do contrário, aventando a possibilidade de um fundamentalismo ser “menos pior” do que o outro, estaremos aderindo deliberadamente a este que sobrelevamos. Todavia, não se faz isso senão para atribuir colateralmente alguma dignidade ao fundamentalismo a partir do qual se critica os demais, o que é sempre questionável, para não dizer perigoso.
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Na verdade, é praticamente impossível se libertar completamente do fundamentalismo. Mesmo que se condene com a mesma veemência todas as formas fundamentalistas, essa postura mesma outra coisa não é além de mais um fundamentalismo. O pior de todos aliás, pois o fundamentalismo que se coloca sobre os demais, reprovando-os todos, é o mais fundamentalista. A não ser, é claro, que se seja absolutamente pirrônico, isto é, incondicionalmente cético e não se leve em consideração nem os próprios juízos sobre a realidade.
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Seguindo o exemplo de Gianni Vattimo, filósofo italiano defensor do “pensamento fraco”, ou seja, o pensamento que não precisa destruir nenhum outro pensamento para poder pensar, devemos aceitar o desafio de vivermos uma espécie de “fundamentalismo fraco”, para evitar sermos fundamentalistas radicais, afinal, o fundamentalismo também tem os seus “cinquenta tons de cinza”. Ora, não é difícil concordar com o fato de que o fundamentalista ecológico, por exemplo, é deveras necessário num mundo no qual o fundamentalismo capitalista poluí e destrói a natureza.
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Entretanto, o fundamentalismo fraco que podemos “comprar” e universalizar sem medo de errar, pois nos distancia, de um lado, do fundamentalismo radicalmente pernicioso, e, de outro, do nada cético que nos aliena do mundo, é precisamente este: estar no mundo. Obviamente, para que este fundamento não se transforme em um problema, devemos aceitar e defender que todos tenham direito a ele. O direito de “estar no mundo” do meu inimigo deve ser o limite para todas as minhas demais ideias fundamentais. Do contrário, em vez da virtude do “fundamento fundamental”, teremos somente o vício do fundamentalismo radical.

O” meu Facebook” X o “Facebook do Facebook”

“Rolando” o meu feed de notícias do Facebook, percebi que as postagens dos meus amigos haviam desaparecido. Tudo o que eu via eram atualizações de páginas de notícia, de arte, de política etc. Teriam os meus amigos todos me abandonado? Rapidamente verifiquei que não; ainda estávamos “marcados” para nos seguirmos. Mesmo assim, eu nada mais via deles. Senti até saudade dos selfies – que na verdade eu nem gostava de ver -, e das reclamações sobre quaisquer coisas – que, entretanto, sempre ficam melhor ou numa mesa de bar, ou num consultório psicanalítico.

Entretanto, mesmo assim eu não tinha como aceitar o fato de o algoritmo do Facebook estar escolhendo por mim o que eu estaria vendo, decidindo que as postagens dos amigos que eu curto são menos importantes do que as atualizações das páginas que eu sigo. Com efeito, Zuckerberg havia me convencido de que eu podia estar conectado à milhares de pessoas, páginas e grupos dos mais diversos assuntos e interesses, tudo ao mesmo tempo. Era só clicar em “Curtir” ou “Seguir” e pronto: doravante eu veria tudo, de todos.

Claro, se o Facebook não “algoritmizasse” o que eu vou ver nele, e enfileirasse todas as postagens, de todas as pessoas e páginas que eu curto, certamente o meu feed de notícias, digamos de um dia, teria alguns quilômetros de extensão. Eu “rolaria” as notícias por horas, simplesmente para ver tudo o que foi postado em apenas cinco minutos facebookianos. Ou seja, nunca veria tudo o que os amigos que curto e as páginas que sigo postam. O Algoritmo de Zuckerberg, de um certo ponto de vista, não torna as coisas piores. Apenas transforma uma impossibilidade em outra.

Entretanto, não poder ver todas as postagens dos meus amigos “porque” elas são muitas, é bem diferente não vê-las “porque” o Facebook, diante dessa impossibilidade, pré-seleciona o que eu vou ver, privando-me ainda mais das tantas postagens dos meus amigos; preferindo no lugar delas as atualizações impessoais de suas tantas páginas. Como reverter a situação? Como vencer o algoritmo de Zuckerberg, e a que preço?

Os clássicos passos para se manter próximo de alguém no Facebook são comentar, curtir e compartilhar as postagens desse alguém. Todavia, tais procedimentos são de pouca eficácia, pois, estrategicamente, o Facebook não converte diretamente o grau de “fidelidade facebookiana” a alguém em maior contato. Mais importante para Zuckerberg é que eu veja exclusivamente aquilo que ele quer que eu veja e saiba. Portanto, não basta apenas interagir com os meus amigos “do” Facebook para tê-los cotidianamente “no” Facebook.

É justamente porque, para Zuckerberg, as atualizações das muitas páginas são bem mais importantes e lucrativas do que as dos meus amigos, que cada atualização delas precisa “engolir” de quatro a cinco postagens destes. Agora, se eu não curtisse tantas dessas páginas, o algoritmo facebookiano teria menos o que colocar no lugar das postagens dos meus amigos. Então, o passo seguinte foi “descurtir”, deixar de seguir tudo aquilo que ocupava o lugar dos meus amigos no horizonte do meu Facebook.

Depois de fazer isso, voltei a ver mais do que os meus amigos postavam. Claro, não tudo, pois hoje em dia postamos mais do que qualquer um pode ver, ler, curtir, comentar ou compartilhar. Ainda que o algoritmo de Zuckerberg pré-selecione tudo o que eu verei, o fato de eu estar curtindo menos daquilo que ele gostaria que eu visse, e ao mesmo tempo privilegiando apenas aqueles que eu gostaria de ver, o meu Facebook, ao menos, voltou a parecer mais o “meu Facebook”, e menos o “Facebook do Facebook”.

Não curtir tantas páginas e não ser amigo de tantas pessoas, portanto, foi o modo que eu encontrei para dar a volta no algoritmo de Zuckerberg; reduzir aquilo que ele queria que eu visse; voltar a ver aquilo que meus amigos fazem nessa rede social. Óbvia&infelizmente, ainda assim há a “algoritmização” zuckerberguiana por trás de tudo o que acontece no “meu Facebook”. Porém, eu bem posso não muni-lo com tantas “curtidas” e “seguidas” à pessoas e páginas que, quando em grande número, apenas se colocam no lugar umas das outras.

“Dando arma ao bandido”, acabava senão vendo somente aquilo que o Facebook queria que eu visse, sem sequer me dar conta de que os meus amigos, precisamente aqueles que me levaram ao Facebook, desapareciam do meu feed de notícias a uma taxa de quatro a cinco atualizações deles para cada atualização de uma página qualquer. Se o Facebook, capitalizando-se mediante o seu alienante algoritmo, tem a sua própria&vil economia, eu, por minha vez, posso ter a minha, ainda que dentro da dele: economizar “curtidas” e “seguidas”, não dar tanta oportunidade para ele manipular o que eu vejo, me alienar do que eu realmente curto e do que eu mais gostaria de estar vendo cotidianamente nessa plataforma virtual.

Alfaiataria X indústria do vestuário

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A arte de medir um corpo, cortar e costurar tecidos para vesti-lo, isto é, a alfaiataria, está morrendo. Seu algoz é a industria do vestuário, cuja característica mais contrária ao artesanato do alfaiate é a produção de roupas em tamanhos e formatos que não são os de ninguém em específico, mas os de um corpo humano abstrato, pretensiosamente o resumo de todos os corpos humanos concretos. A lógica do prêt-à-porter obriga, verticalmente, a sermos de determinado formato e medida para que então possamos nos encaixar nas suas roupas.

Falando em medidas humanas, não podemos deixar de lembrar da célebre frase do sofista Protágoras, cunhada há quase 2500 anos: “O homem é a medida de todas as coisas”. Ora, as nossas roupas exemplificam como poucas coisas a máxima do sofista grego, pois não tem cabimento algum imaginar uma roupa, feita para um humano, que não tenha as as medidas dele. Porém, assim como o idealismo de Platão foi contra o pragmatismo dos sofistas, a indústria do vestuário é contrária à alfaiataria uma vez que afirma massiva&industriosamente que é o homem que  deve ter a medida das coisas. Melhor dizendo: das coisas dela!

Essa mercado-lógica da indústria do vestuário, além de praticamente ter exterminado os artesãos alfaiates, estimula fortemente em nós a cada vez mais banal sensação de inadequação dos nossos próprios corpos, fazendo com que ousemos pensar, ademais contra a perfeição da natureza, que nossos corpos e medidas estão errados; que deveríamos ser mais gordos ou mais magros do que somos (geralmente mais magros, como a publicidade dessa indústria também prega); que nossas cinturas e coxas, por exemplo, precisem sofrer lipoaspirações anuais e/ou sessões de musculação diárias. E tudo isso porque há um mundo de roupas já prontas, cujas medidas&formatos são previamente determinadas&impostas verticalmente contra os nossos corpos particulares.

Por não terem sido feitas para ninguém em particular, as roupas produzidas pela indústria do vestuário pretendem-se universais. Tal universalismo, não obstante, escraviza as nossas inalienáveis particularidades. O indivíduo singular concreto, tendo que se formatar a esse formato universal abstrato imposto de cima pela indústria do vestuário, é obrigado a cumprir a tarefa mais inglória -e por que não dizer impossível– de ser um corpo genérico, ou o que é o mesmo, corpo nenhum.

Etimologicamente, alfaiate vem do árabe “alkhayyát”, e significa “O costureiro”. Ou seja, o artesão do vestir, que as pessoas procuravam para terem roupas para seus corpos. Porém, essa dinâmica se perde completamente diante da dinâmica da indústria do vestuário. Antes mesmo de as pessoas precisarem de roupas, tal industriosidade voraz já produz massivamente tudo o que elas deverão vestir, com tecidos, cores e formatos mercadologicamente estipulados, não importando quaisquer desejos, características e necessidades particulares.

Disso decorre a tentativa, todavia condenada ao fracasso, de se ter um corpo para as roupas, e não o contrário: roupas para um corpo. Para a alfaiataria e isso é um absurdo, pois ela parte de um corpo singular para produzir roupas outrossim singulares que respeitem esse corpo. A indústria do vestuário, ao contrário, alienando-nos sistematicamente dessa conformidade entre a alfaiataria e as nossas características particulares, pressupõe um corpo genérico, universal –portanto inexistente-, findando com mercadorias genéricas que, longe de respeitarem as singularidades dos indivíduos, respeitam apenas a sua própria busca por lucro$ ma$$ivo$.

Apóloga do mais abjeto consumismo, a indústria precisa sobremaneira exterminar a arte da alfaiataria. Quem tem o costume de vestir roupas feitas exclusivamente para si -ou já teve pelo menos um roupa alfaiatada- sabe muito bem que tais artefatos não foram feitos para serem descartados de acordo com a histérica obsolescência tão necessária à ventura industrial. Antes, uma roupa feita sob medida é tão adequada, tão a cara do corpo para o qual foi feita, que esse “corpo” tende a mantê-la até que que ela pua. Ora, é justamente isso que a indústria não pode aceitar, pois, para ela, o consumismo desenfreado é o élan que a nutre.

Se, como bem sabemos, o consumismo massivo, vital para a indústria em geral, é um dos maiores destruidores da natureza, o alfaiate, hoje em dia um zumbi nesse mundo apocalíptico, oferecendo uma opção paradigmática ao consumismo desemfreado, aop passo que respeita as particularidades dos corpos humanos, produzindo roupas que são a exata medida deles, respeita também o mundo no qual esses corpos existem. E qual a melhor “roupa” para a humanidade inteira senão um planeta preservado dos malefícios do consumismo institucionalizado pela indústria?

A alfaiataria, portanto, é a forma mais ecológica para a humanidade ser o que somente ela não consegue deixar de ser: essa espécie animal que não aceita a sua nudez natural. Afinal, roupas só existem porque precisamos esconder a nossa própria animalidade. Para essa necessidade imperiosa, e para que ela não destrua ainda mais a natureza, ninguém mais adequado que o alfaiate, o artesão que, cortando e costurando tecidos, recostura com arte o velho sofisma protagórico, qual seja, “o homem é a medida de todas as coisas”. Entre a indústria do vestuário e a alfaiataria, só esta sabe que o é homem, melhor dizendo, cada homem a medida imanente de suas roupas, e não estas uma medida transcendente para ele. Em suma, a medida do alfaiate é a justa medida para a desmedida indústria do vestuário.

Tato atento

Em geral, os showrooms são feitos para que as pessoas vejam mercadorias, para que consumam ou não aquilo que veem. Em tais lugares-eventos, portanto, olha-se muito. Todavia, vê-se pouco. Na verdade, compra-se mais do que se vê. De um ponto de vista estritamente comercial, isso de forma alguma é um problema. Aliás, se as pessoas passassem a ver muito bem, poderiam enxergar que sequer precisam da maioria das coisas que compram. O consumismo, estrategicamente, requer um tanto de cegueira!

Eu montei um showroom para lançar a minha grife de roupas voltadas para o mundo da dança contemporânea, em um badalado seminário dedicado a essa arte, para que as pessoas pudessem apreciar as minhas criações, quiçá comprá-las. Entrementes, como não podia deixar de ser e, a “dinâmica showroom” se repetiu. As pessoas em geral olhavam mais do que viam. Passavam rapidamente de um cabide a outro, apressadas, como se estivessem deslizando as contas de um ábaco, apenas olhando, sem se deterem por muito tempo em cada uma das peças, até que alguma das roupas lhes chamavam atenção. Só então elas diziam: eu gostei dessa, vou comprar!

Em relação a isso, a minha “empresa” nada tinha a reclamar, ainda que, particularmente, eu achasse que meus consumidores deveriam ver melhor o que olhavam. Mas não era o que acontecia. Elas pareciam propositalmente afoitas em relação àquilo que olhavam, como se, antes, quisessem ser vistas por tais coisas, encaradas por elas, para só então as verem, própria e generosamente. Quando esse curto-circuito visual se fechava, voilá!, elas compravam.

Entretanto, no final do dia, um pouco antes de eu fechar o showroom, uma interação diferente com as minhas mercadorias aconteceu. Uma garota cega se aproximou da arara de roupas perguntando o que havia ali. Eu lhe expliquei do que se tratava. Ela pediu , literalmente, para “ver as roupas”. Eu disse que as peças estavam a dois passos dela. Tateando o ar, ela encontrou as roupas penduradas nos cabides.

Então, ela passou a examinar, com seus dedos, cada uma das peças, seus formatos, os tecidos de que eram feitas, as costuras, os aviamentos, demorando-se em cada uma delas o tempo necessário para que todos os detalhes fossem, digamos, “vistos” – ainda que a visão fosse a única sensibilidade de que ela era privada. Quando alguma peça lhe chamava atenção, ela voltava às que já tinha examinado anteriormente, como se quisesse entender a relação que as diferentes roupas tinham entre si; se formavam um conjunto harmônico; se os tecidos – não as cores, obviamente, mas as texturas – conversavam, e como.

Para a minha surpresa e delícia, a garota cega foi a única pessoa que circulou pelo meu showroom que realmente pareceu ver as minhas roupas como eu desejava. Mais ainda, tive certeza de que ela fez mais do que ver, e decerto muito mais do que simplesmente olhar para as minhas criações. Ela, na verdade, fruiu o meu trabalho como eu sempre achei que ele merecia. Fiquei certo de que nenhum detalhe passou despercebido para ela, com larga vantagem inclusive.

Entretanto, o revolucionário para mim da fruição do meu trabalho pela garota em questão foi que eu, pela primeira vez, vi as minhas roupas serem apreciadas sem serem propriamente vistas. Não que as pessoas videntes também não fruam as roupas por meio do tato. Entretanto, para quem vê, todas as demais sensibilidades estão acompanhadas de, no mínimo, uma imagem visual subsidiária. Pior ainda, substitutiva. A garota cega, em troca, dispensava tal subsídio. Seu tato atento era o substituto excelente do seu olhar, porque liberto deste.

Observar a sua fina análise tátil dos pormenores do meu trabalho evidenciou, para mim, o universo sensível que existe nos muitos detalhes que eu, pelo fato de ver, acabo deixando de enxergar. A minha sensibilização foi tamanha que, enquanto ela estava no meu showroom, eu não conseguia dar atenção a mais ninguém. Com efeito, eu estava hipnotizado pelos dedos dela, por onde eles estavam, pelo que e como faziam. Na verdade, eu tentava sentir o que ela poderia estar sentindo. Não obstante, a realidade tátil que eu tentava experienciar não provinha dos meus próprios dedos, mas do tatear dela. Mesmo ali eu repetia o pecado de todo vidente, isto é: achar que as demais sensibilidades podem ser reduzidas à visão.

Entretanto, diferente das demais pessoas, que somente ao “serem vistas” pelas coisas para as quais olham é que as veem de verdade, para só então quererem comprá-las, a garota cega, ao contrário, iniciando o seu “olhar”, todavia tátil, já na forma de uma espécie de “visão” profunda, e ademais demorando-se sem pressa nessa observação, ao terminar de “ver”, nada comprou. Simplesmente balbuciou um elogio às roupas como que querendo saber onde eu estava. Eu, que não me afastei dela um minuto sequer, reapresentei-me sonoramente. Dessa vez o seu elogio foi claro e direto.

A pessoa que melhor realizou o objetivo do meu showroom, que mais “viu” o que estava sendo mostrado, foi justamente uma que que nada comprou. Entretanto, foi a que mais me fez lucrar, pois, depois dela, eu terminei enriquecido de tudo aquilo que, pelo dom da visão, eu havia deixado de ver naquilo que eu mesmo faço. Precisamente, tudo o que há para ser fruído nas coisas, mas que, subjugado pelo império da visão, passa a não ser mais visto.

O fato de as pessoas em geral olharem afoitamente para as coisas, para somente depois vê-las de fato, é o intervalo no qual o mais abjeto consumismo penetra subversivamente. E disso são feitos os showrooms. Agora, aqueles que como a garota cega já começam “vendo” profundamente as coisas, tem nessa “visão” mesma o objeto final do seu consumo. Diante dessa relação, digamos, mais autêntica com as coisas a serem vistas, o consumismo comercial tem menos lugar. Aquela garota me mostrou que quando vemos bem as coisas para as quais olhamos, com efeito, não precisamos comprá-las, pois essa visão mesma já é o consumo, decerto, mais que suficiente.

Um tête-à-tête entre a Economia e a Política

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-Economia? É você mesma? Que milagre te ver assim, em carne e osso! Quer dizer… hoje em dia, mais osso do que carne, não é mesmo?

-Sim, sou eu. Mas, por favor, Política, fale baixo meu nome. Não quero ser reconhecida em público.

-Ué, Economia, você está com vergonha? Já sei! É por que você está em crise…

-Não é isso, sua intrigueira. É que eu não posso ser reconhecida pelas pessoas.

-Como assim, Economia? Você está metida na vida de todo mundo, da ventura à ruína delas. As pessoas estão carecas de te conhecer.

-É verdade, Política, elas me conhecem muito bem, mas não euzinha toda. Somente aquela parte minha que as toca, como as suas economias pessoais concretas, entende? Agora, se encontram com o meu lado abstrato, universal, dá problema.

-Explica isso melhor para mim, Economia.

-Lembra que você disse que estava surpresa em me ver “em carne e osso”?

-Sim, Economia, mas eu estava brincando…

-Ahan, Política, sei… De qualquer forma, vou usar a sua “brincadeira” como metáfora para te explicar as minhas duas caras. Pois então, é como se a minha personalidade concreta, aquela que as pessoas conhecem muito bem, fosse minha carne, que está ora mais gorda, ora mais magra, como você mesma falou. Já a minha personalidade abstrata, aquela que não diz respeito a ninguém em particular, é como se fosse os meus ossos. Melhor dizendo, o meu esqueleto, a estrutura a partir da qual a minha carne pode faltar ou abundar, dependendo dos movimentos do mercado, das variáveis climáticas, etc.

-Ah, Economia, estou entendo. Tenho de confessar que sei muito bem o que é sofrer de síndrome de dupla personalidade!

-No seu caso, Política, devemos falar de síndrome de múltiplas personalidades, não?

-Ha ha ha! É isso mesmo, Economia! Eu tenho de ter tantas caras quantos são os cidadãos que represento. Nossa, isso dá um cansaço! No final do mandato estou acabada! Sem dizer que todo mundo fica achando que eu sou falsa, que só me preocupo comigo mesma. E para convencer meus eleitores novamente, preciso de muito dinheiro privado nas veias para, nas minhas campanhas eleitorais, convencê-los de que posso representá-los como eles precisam.

-A diferença entre nós duas, Política, é que todos eles me acham verdadeira demais. Cruelmente verdadeira.

-Ah, então é por isso que você não gosta ser reconhecida em público, Economia?

-Não exatamente, Política. Não tem problema algum as pessoas encontrarem com a minha carne concreta, nas suas vidas, nas suas dificuldades cotidianas, nem com o meu esqueleto abstrato, seja nos telejornais, seja nos relatórios dos meus especialistas, os economistas. Separadamente, eu convenço e envolvo as pessoas sem maiores problemas, sigo economizando todo mundo. Agora, aqueles que me encontram “em carne E osso”, ah!, esses piram!

-Por que isso, Economia?

-Ah, Política, por que, em geral, as pessoas acham que o meu esqueleto abstrato tem de ser o cabide das carnes delas, de suas economias pessoais, que na verdade são minhas carnes e minha economias particulares, mas que por ser a parte minha que elas podem tocar, isto é, economizar ou não, acham que é delas. Só que se enganam. Na verdade, devo confessar, eu as engano… Sabe, fico constrangida em dizer que o que realmente importa é o meu esqueleto abstrato, que ele é a minha verdadeira estrutura, e não as minhas pelancas, essas contingências que os cidadãos conseguem tocar.

-Nossa! E como você faz para que o povo não descubra a sua verdadeira essência, Economia?

-Você está se fazendo de burra, Política, ou é burra mesmo?

-Calma, Economia, não precisa ser grosseira. Eu só queria saber como você faz para o povo não perceber que você, “A Economia”, não está nem aí para eles…

-Ora, Política, sua dissimulada… Vai dizer que você não sabe que para ninguém desconfiar dos meus segredos e contradições eu ponho você a trabalhar para mim?

-Sem essa, Economia! Eu, trabalho para o povo, só para ele. Sou a representante legítima dele aliás.

-Sim, Política, você até trabalha para o povo quando não está envolvida com seus próprios interesses. Porém, para convencê-lo de que eu, a Economia, funciono em função deles. Mentira que eu, sozinha, confesso, jamais conseguiria contar de forma tão convincente. Entretanto, sem euzinha aqui, não haveria necessidade alguma de você, Política.

-Essa é boa! Desde quando, Economia?

-Acho que você é burra mesmo, Política… Desde a Grécia Antiga, sua tonta! Muito antes de você sequer existir eu já estruturava a vida das pessoas. Talvez você não tenha se dado conta porque naquela época eu me chamava “oikonomos”, isto é, administração doméstica, e então…

-Oico o quê?

-Oikonomos, sua estúpida. Então, Política, como eu ia dizendo, foi só por conta das minhas dificuldades domésticas que os gregos da época começaram a fazer política. Por minha causa inventaram a “pólis”, isto é, a cidade, e chamaram a si mesmo de “polités”, ou seja, políticos.

-Quer dizer, Economia, que eu surgi para resolver os teus problemas domésticos?

-Exatamente! E até hoje, 2500 anos depois, segue sujando as mãos por mim, Política parceira. E é assim porque você é muito boa com as palavras, cria discursos maravilhosos, engana todo mundo com eles. O problema, Politica, é que no fim das contas você acaba acreditando nas próprias mentiras e se esquecendo de que, na verdade, você só veio ao mundo para costurar as minhas carnes concretas ao meu esqueleto abstrato com a sua emaranhada linha retórica.

-Então, Economia, Lenin estava falando sério quando disse que, embora tudo seja decidido na luta política, o que me deixava muito feliz e segura de mim, toda luta política é determinada, por você, a Economia?

-Bravo, Política. Prometo que não te chamarei mais de burra. Você finalmente parece ter entendido a hierarquia que nos separa. Isso está bem claro para você ou quer que eu desenhe?

-Não, Economia, não precisa desenhar. Você é melhor fazendo gráficos e planilhas de excell…

-Tampouco você sabe desenhar, não é mesmo, Política? Seu talento é com as palavras. Aliás, foi justamente por causa delas que eu te botei a remendar as minhas partes antagônicas, para que eu pareça sempre absoluta, e assim poder lucrar melhor às custas das pessoas.

-Nós não valemos nada, Economia. Não existimos sem fazer os outros de idiotas. Isso me lembra de quando você…

-Agora chega de gastar teu verbo comigo, Política, pois, como você mesma disse, eu estou em crise. E quando eu tenho problemas é você que deve trabalhar. Então, vá discursar para o povo que assim eu saio mais rápido do buraco. E da próxima vez que você encontrar comigo toda, por favor, seja discreta. Melhor: troque de calçada, pois se o povo nos ver juntas demais vão desconfiar da nossa estreita relação, e aí já viu, né, é ruim para mim. Todavia, tanto pior para você, não é amiga?

Imigrantes Clandestinos na Imigração Capitalista

-Quem são vocês? – perguntou o Senhor Capitalismo a milhares de pessoas empoleiradas em uma casca de noz clandestina que boiava na parte mais profunda do Mar que separa os mundos humanos.

-Somos Imigrantes fugindo da guerra e da miséria – disseram eles, amedrontados.

-E para onde vocês pensam que vão? – indagou o Capitalismo.

-Para o Primeiro Mundo – disseram eles timidamente -, o lugar onde a vida é melhor!

-E quem disse que vocês podem zanzar pelo mundo, assim, na hora que lhes dá na telha? – insiste o Capitalismo.

-O próprio mundo, ora bolas. A gente nunca teve internet, sabe, mas mesmo assim ouvimos que o mundo agora é globalizado. Então, achamos que seria natural migrar. Poderíamos até dizer que as migrações sempre foram naturais à humanidade. Entretanto, como sequer estudamos, nunca aprendemos isso – responderam os Imigrantes.

-É, vejo que vocês estão por fora do que é globalização… Mas eu vou explicar. Na verdade, o que é globalizado, minha gente, sou eu. Somente eu posso atravessar todos os mares do mundo sem ser barrado. Sem mais, almoço um “paiseco” latino-americano subdesenvolvido, faço a digestão nos EUA, tomo a Inglaterra no chá das cinco, janto Paris, e, se me parecer mais lucrativo, madrugo nas terras de vocês raspando as migalhas que ainda lhes resta. Isso é globalização, nenéns! – desdenha o capitalismo.

-Ah! Disso nós já sabemos – disseram os pobres coitados. -Mas também sabemos que hoje em dia qualquer pessoa pode viajar pelo mundo. Tá certo que não nessa casca de noz aqui, mas de avião, transatlântico, carros esportivos…

-Hahahaha! – Riu o capitalismo. –Vocês acham que basta ser “pessoa” para poder viajar livremente pelo mundo? Digam-me: sem o quê, exatamente, elas não poderiam deixar os buracos de onde partem e para onde voltam, hein?

-Dinheiro? – perguntaram eles, inseguros.

-Exatamente! – Respondeu o Senhor, seguro de si. – É só por causa do dinheiro, melhor dizendo, do capital, que os viajantes são aceitos. Se gastarem bastante em passagens aéreas, hotéis, restaurantes, turismo sexual, por exemplo, é que podem viajar o quanto quiserem. Agora, sem lenço nem documento, como vocês, não, né!

-Mas Senhor Capitalismo, nós estamos indo para o primeiro mundo justamente para nos capitalizarmos, para podermos viajar na sua primeira classe, hospedarmo-nos nos seus hotéis, comermos decentemente nos seus restaurantes… e também aquilo que o Senhor disse por último também, afinal, também somos gente, né…

-Vejam bem, – o Capitalismo os adverte -, é somente a partir de determinada quantia de money que alguém pode ser considerado “gente”. Com um patrimônio um pouco maior esse alguém até pode comprar os Direitos Humanos Universais. Mas de bolsos completamente vazios, desculpem-me, sem essa de “também somos gente”.

-O Senhor não escutou o que dissemos? Estamos migrando justamente para trabalharmos e juntarmos essas quantias mínimas de dinheiro para assim comprarmos a nossa humanidade! – Disseram eles, começando a perder a paciência.

-Vocês são muito tolos mesmo – diz o Capitalismo, interrompendo os Imigrantes. –Onde vocês ouviram essa besteira de que é através do trabalho que se ganha dinheiro? Essa é boa! Olha, vou falar um vez só, viu, escutem bem: o trabalho é o modo através do qual EU ganho dinheiro. Vocês, reles mortais, e tanto faz se forem africanos subnutridos ou norte-americanos obesos, enquanto trabalham, só fazem me enriquecer. Portanto, esqueçam essa história de irem para o Primeiro Mundo para lá serem “gente”. Vocês, de um jeito ou de outro, terminarão mais miseráveis do que já são. Sem dizer que a miséria de vocês já é bastante lucrativa para mim com vocês no submundo onde nasceram.

-É justamente por isso que estamos indo embora de lá – gritou um dos Imigrantes -, porque quando o Senhor vai lá lucrar com a gente, o nosso muito pouco se transforma em absolutamente nada! Agora, se estivermos ganhando um salário de fome nível Primeiro Mundo, podemos ser melhor explorados pelo Senhor e, quem sabe, com um trocado ou outro que reste, comprarmos alguns Direitos Humanos. Não todos, obviamente, pois sabemos que a humanidade total é coisa de rico.

-Hum… – balbucia o Capitalismo, coçando o seu cavanhaque burguês ao analisar a proposta do lumpemproletário Imigrante. Aproveitando o inesperado silêncio do Capitalismo, os demais Imigrantes suplicam:

-Isso mesmo, seu Capitalismo, deixe a gente seguir viajem, por favor! Faremos qualquer coisa. Juramos que trabalharemos feito escravos seus; pagaremos os altos preços de suas capitais; nos esconderemos em favelas, bem longe dos seus centros gentrificados urbanos; não usaremos os seus hospitais e escolas. Deixa a gente tentar te enriquecer mais um pouquinho, vai…

-Isso começa a cheirar bem – diz o Capitalismo, baixando um pouco a guarda. -Agora vocês estão falando a minha língua! Mas, esperem! Não basta um subemprego e uma vida miserável. Se a gente não pensar muito bem aonde a miséria de vocês é mais lucrativa, vocês acabam me desequilibrando todo. Deixe-me pensar bem para onde eu mando vocês.

-Ué – diz outro Imigrante -, mas o Senhor não contou que está em todos os lugares, que é a globalização em pessoa? Que diferença faz então se a gente for para um lugar ou para outro? Deixe-nos pelo escolher para onde.

-Nã, nã, nã, nã, nã! – falou verticalmente o Capitalismo. Deixe de ser impertinente, menino. Se não, afundo essa casquinha de noz aí de vocês, hein?

-Não, Senhor Capitalismo! Não nos mate, por favor! – gritaram em coro os milhares de Imigrantes. –Tudo bem – disseram alguns deles -, a gente aceita que o Senhor nos leve para onde achar mais adequado. Mas, por misericórdia, não nos faça voltar para casa.

-Ah bom! Assim é melhor – disse o Capitalismo, já pensando qual seria o melhor destino para a cambada de imigrantes clandestinos. Prossegue:

-Não sei se vocês sabem, mas nos países mais ricos do mundo a tecnologia tirou todos os verdadeiros seres humanos das minhas mais desumanas tarefas. A Alemanha, por exemplo, é tão rica que as pessoas não precisam nem mais procriar. A população desse nobre país está encolhendo, o que é um problema sério para mim…

-É para lá que queremos ir então! – Interpelam os Imigrantes.

-Combinado – disse o Capitalismo. -Deixe-me contatar as forças humanitárias para que elas venham com os meus barcos superpotentes, devidamente uniformizadas, e resgatem vocês dessa casca de noz ridícula, antes que vocês se afoguem. Do contrário, vai parecer que sou cruel. Sabe que não precisa muito para os comunistas falarem mal de mim, né

-Isso, tire-nos rápido daqui, Senhor! Por favor.

-Calma, gentalha. Preciso repercutir o problema de vocês antes. Tenho uma voraz mídia sensacionalista que precisa divulgar a miséria de vocês, para lucrar bastante com ela antes de vocês caírem novamente no esquecimento do mundo, e antes que eu siga lucrando com vocês até as suas mortes – pede calmamente o Capitalismo.

-Não, Senhor Capitalismo, nós já estamos expostos demais, não faça troça internacional com a gente – suplicam os Imigrantes.

-Vem cá, vocês não entendem que sem o problema de vocês ser bem banalizado as pessoas do Primeiro Mundo não se sentirão superiores a vocês, privilegiadas a ponto de poderem consumir burguesamente a prática do humanitarismo? Se esquecem de que quando um rico ajuda um pobre, ajudar senão a si mesmo? É que esses burgueses são muito românticos… Veem alguém miserável e já ficam sofrendo só em imaginar o que seria a miséria. Ademais, ser humanitário de vez em quando faz com que os ricos se sintam ricos justamente naquilo em que são absolutamente pobres, isto é, em humanidade. Tá! Vai dizer que vocês acharam que algum rico ia ajudar vocês para que VOCÊS fossem felizes? Façam-me o favor…

-É que estamos com sede, com fome, com sono – explicam os Imigrantes. -Não podemos esperar o mundo ler jornais e rolar os seus feeds de notícias do Facebook até que se torne natural aceitar Imigrantes desesperados dispostos a serem explorados.

-Ui, Ui… Vocês já não estavam com fome, sede, e já suficientemente miseráveis antes? – Pergunta jocosamente o Capitalismo. -Que história é essa de achar isso estranho justamente agora? Eu Hein. Se fosse pela miséria “natural” de vocês eu e burguesada geral já teríamos ido no fim do mundo de onde vocês brotaram para buscá-los.

-E por que não fizeram isso até agora? – perguntam os esfomeados.

-É que… – titubeia o Capitalismo, procurando a melhor maneira de dizer o pior. Todavia, sem conseguir, diz do seu jeito mesmo: -Miséria pouca é bobagem!

-Ah! – exclamam em coro os Imigrantes. Pode crê! Miséria pouca é bobagem. Se a gente for mais miserável do que já somos obviamente as coisas podem ir mais rápido!

-Ignorantes espertos vocês, hein! – completa o Senhor impiedoso.

-Gente, gente! – Gritam os imigrantes uns aos outros. –Vamos pular, uns de nós, no mar e morrer. Assim as notícias correm mais rápido, e mais rápido quem restar chega ao Primeiro Mundo!

-Isso! – diz o Capitalismo. -Se a metade de vocês morrer a outra metade chega mais rápido ao meu destino! Mas, claro, a pressa é de vocês.

-Já sei! – Exclama um dos Imigrantes lá do fundo da casca de noz. –Falta-nos um símbolo universal com o qual o mundo não resista e não demore em nos ajudar.

-Mas nós já estamos morrendo, idiota – diz um Imigrante ao se lançar ao mar. -O que mais podemos fazer?

-É que a morte anda tão banalizada hoje em dia – responde o primeiro -, que precisamos de uma morte que fique bem na foto, abaixo da manchete internacional que somos.

-Estou gostando disso – disse-lhes o Capitalismo. –Posso dar uma sugestão? Afinal, sou um ótimo publicitário…

-Claro, Senhor, ajude-nos!

-Um bebê! – Diz o Capitalismo, como se imaginasse um comercial de TV. – Um bebê imigrante clandestino morto, levado pelas marés, chegando a uma praia europeia, em pleno verão… Voilá! Tenho certeza que com algo assim nós sensibilizamos a insensibilidade do mundo.

-Mas… – dizem os pobres Imigrantes, olhando-se uns nos olhos dos outros, aturdidos com a proposta absurda feita pelo Capitalismo -, ninguém merece isso, nem mesmo os burguesinhos…

-Não interessa! – impõe o Capitalismo.

-Não! Isso nós não aceitamos – dizem os Imigrantes. – Nossos bebês já são maltratados demais pelo Senhor. Poupe pelo menos os nossos bebês!

-Calem a boca vocês que restam vivos e me deem esse bebê aqui – ordena o Capitalismo.

-Não! Não! Não! Tenha piedade de nós! – Pedem os coitados

-Piedade? Vocês não estão trocando os deuses, hein? Piedade é coisa que se pede para o pai ausente daquele hippie crucificado. Como é mesmo o nome dele?

Enquanto os Imigrantes pensavam qual deus seria piedoso para com eles já era tarde demais. O bebê que o Capitalismo escolheu para ser o símbolo de mais recente crise humana já boiava, inanimado, seguindo em direção à uma praia turca.

E não é que o Capitalismo estava certo? Dias depois, a imagem da pobre criança estava na capa dos jornais de todo o mundo, sensibilizando até as almas burguesas mais egoístas, levando-as a terem vontade de consumir a nova mercadoria da moda, qual seja, o humanitarismo para com os Imigrantes Clandestinos. Humanidade paliativa!

Economia histérica no divã

Oh, meu Deu$, eu estou em crise! – Grita histericamente a Economia no divã econômico de Thomas Piketti. Então, ele pergunta:
– O que te aflige, Economia?
– A instabilidade econômica, ora bolas!
– Então, é a tua própria instabilidade, Economia, que te aflige?
– Sei lá! – responde ela, contrariada – É que eu não consigo mais crescer como nos últimos tempos. Sinto-me paralisada, não sei mais o que fazer!
– Entendo… – Diz o economista “da moda” com a clássica mão no queixo. – Conte-me mais como você vem crescendo nos últimos tempos?
– Ah, na última década eu cresci vertiginosamente, tipo uns 5% ao ano. Na China, por exemplo, em 2007 cheguei a crescer 14%, acredita nisso?
– Nossa, é um crescimento e tanto, hein, Economia! – Concorda Piketti, já cercando a sua paciente para um ataque. Entretanto, ela o interrompe:
– Sim, é exatamente assim. Ou melhor, é somente assim que, hoje, eu gozo: crescendo muito! Posso até suportar um crescimento abstinente de 3 ou 4% ao ano. Agora, menos do que isso, eu entro em CRISE!
– Sei – diz o psicoeconomista. – Mas você sempre cresceu assim?
– Claro que não – responde ela. – Da Antiguidade até a Revolução Industrial, ou seja, por quase 2000 anos, eu crescia no máximo 0,1 a 0,2% ao ano. Eu vivi muita coisa, doutor!
– Ah, então o fato de agora você não estar crescendo 14% ao ano é o seu atual problema! – Diagnostica Piketti. – Mas diga-me uma coisa mais: você, nesses 2000 anos de “baixo crescimento” – ele realmente faz as aspas com os dedos – , era infeliz?
– Infeliz? Na verdade, não! – titubeia a Economia – Eu tinha os meus problemas, as minhas crises particulares aqui e ali, mas nenhuma tão angustiante quanto a atual.
– Então, Economia, você concorda que crescer menos de 1% ao ano, por exemplo, não foi sempre um problema para você – encurrala-a Piketti.
– Não, não foi – irrompe ela a contragosto. – Mas agora é!
– Por quê? – Insiste ele.
– Ora, doutor, hoje em dia, um crescimentinho merreca de 1% parece muito pouco, quase imperceptível, e aí eu e todo mundo temos a impressão de que euzinha estou completamente estagnada.
– Calma, Economia! Você deveria pensar que um crescimento de 1% ao ano corresponde a um crescimento de 10% ao final de dez anos; 100% ao final de cem anos, e, logicamente, 1000% ao final de mil anos. Por que você não relaxa um pouco, tem um pouco de paciência?
-Ah, doutor, você fala como se eu pudesse esperar tudo isso para crescer. Não percebe que eu preciso urgentemente crescer tudo o que puder, e agora mesmo?
– Mas essa pressa, hein, de onde vem? – Pergunta ele, intrigado com a pulsão que a inquieta.

Ela não sabe o que responder. Coloca e tira as mãos dos bolsos compulsivamente. Piketti desconfia de que ela esteja viciada em alguma droga. Qual seria? Capital, que há poucos séculos ela sistematicamente injeta nas veias? Só pode ser isso. Afinal, pensa ele, se não existiu nenhum exemplo histórico de algum país que crescesse, econômica e SISTEMATICAMENTE, acima se 1,5% ao ano, esse desejo de crescer 10% ou mais não pode vir da própria Economia, que em sua longeva vida cresceu em média 0,2% ao ano, mas do próprio capitalismo, pois é ele que vicia qualquer um em crescimentos vertiginosos, todavia insustentáveis. Ainda assim Piketti insiste:
– Economia, precisamos saber o que está por trás desse seu desejo incontrolável de crescimento.
– Ora doutor, que ingenuidade a sua. O que está por trás do meu desejo é a possibilidade de crescer mais ainda, e sempre!
– Ah! – Exclama ele, certo de que encontrou a pulsão da própria economia que a lançava na sua atual neurose. – Então você deseja crescer simplesmente para poder crescer mais, só por isso, sem nenhum objetivo mais elevado?
– É! – diz ela – É isso mesmo o que eu desejo.
– Olha, economia, agora eu entendo seu desejo atual. De qualquer forma, deveríamos nos ater às suas experiências históricas, pois elas talvez nos mostrem que crescimentos econômicos superiores a 1% ao ano, além de serem muito recentes na sua longa vida, são impossíveis de se sustentar eternamente. Ao contrário, geram desigualdade social, explosões demográficas vertiginosas, e, ademais, a destruição da natureza, aliás, já bastante destruída por essa sua sede de crescimento econômico. Preste atenção! “Para o planeta como um todo, tudo leva a crer que a taxa de crescimento não pode ultrapassar 1-1,5% ao ano no longo prazo, quaisquer que sejam as políticas a serem seguidas” ou desejos impertinentes seus.

Mas isso não convenceu Economia. Ela estava histericamente certa de que precisava seguir crescendo. Tal desejo a cegava justamente para a necessidade de questionar esse próprio desejo, por isso a sua histeria. Ela resiste à colocação de Piketti:
– De maneira alguma, doutor! Eu não posso deixar de crescer 3 ou 4% ao ano. Isso está fora de questão. Do contrário, até no Brasil baterão panelas.
– Economia, crescer tudo isso, todos os anos, “é uma ilusão, seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista da lógica”, seja ainda da perspectiva ecológica. Talvez você tenha que considerar que o seu “o crescimento dos próximos séculos está claramente destinado a retomar patamares muito baixos” – diz Piketti, afavelmente. – Aliás, “um ritmo de crescimento na ordem de 1% ao ano é, na realidade, muito rápido, mais ainda do que se imagina”.

Aí a economia histérica explode de vez. Contrariada, levanta-se do divã e caminha descontrolada pelo consultório “economicoanalítico”, dizendo:
– Você não vê, Piketti, que se eu crescer apenas 1% ao ano as nossas poupanças e investimentos não renderão mais do que isso? Que ao final de um longo ano estaremos no máximo 1% mais ricos? É isso que você está querendo propor? Não vê que com isso você, ou melhor, vocês todos, humanos, terão de mudar e deixar de desejar a vida de consumo ilimitado que justamente a minha recente histeria proporciona a vocês?

Nesse momento, quem fica sem fala é o próprio Piketti, pois ele não condena completamente o vício capitalista da economia. Perversamente satisfeita com a mudez do analista, a economia histérica prossegue segura de si:
– Achei que você fosse um marxista, um comunista! Pelo menos é o que muitos dizem de vc. Que decepção! Vejo que estão errados. Esperava que, para a minha neurose, você me prescreveria o mesmo que Marx: uma inicial e revolucionária desintoxicação socialista, seguida de um radical tratamento comunista, para só então, quiçá, eu estar homeopaticamente livre das minhas patologias históricas, ou seja, anarquicamente saudável novamente.

O silêncio de Piketti, por sorte, levou a economia histérica a confessar seu desejo mais íntimo, isto é, uma figura fálica externa que a tolhesse, que lhe impusesse limites! Ele se perguntou, contudo, se era Marx ou o próprio capital o pai despótico que ela estava desejando. Para confrontar ainda mais a economia histérica com o seu desejo de um falo corretor, não obstante para dessimbolizá-lo, Piketti recusa-se a sê-lo, dizendo, lenta e provocativamente:
-Não, Economia, não existe essa suspensão revolucionária do vício em capital, nem a abstinência comunista em relação a ele. Tampouco essa utopia anarquista de que falava Marx. O que temos aqui é apenas o seu atual vício em capital, nada mais.
-Vício em capital? – Interrompe ela, dando-se conta da solidão em que se encontrava. – Eu pensei que meu vício fosse desejar crescimentos altíssimos, e que isso fosse o melhor para todos.
-É exatamente esse o problema! – Coloca o analista. – Você não sabe qual é o seu verdadeiro desejo. Acha que é de grandes crescimentos, mas, na verdade, é de capital. Isso porque se esquece de que antes de se viciar em capital, ou melhor, antes de ele existir!, você, por muitos e muitos séculos, cresceu modicamente, saudável e tranquila, sem essa histeria toda.
-Doutor, o senhor está querendo dizer que o meu problema é o capital? – Pergunta desconfiada a Economia, antes de começar a tocar na contradição que se revelava a ela. – Não pode ser! Eu achei que mais capital era a solução para o meu problema… Todos dizem isso, aliás.

Piketti permanece em silêncio para que a sua paciente faça as suas próprias conexões, o que não demora muito. Ela prossegue:
– Quer dizer que… se eu seguir consumindo capital para me livrar dessa histeria que me consome ficarei mais viciada nele, e portanto mais histérica ainda?
– O que você acha, Economia?
– Olha, doutor, particularmente, acho que se eu deixar de injetar capital nas minhas veias todos nós cresceremos por volta de 1% ao ano. Ou seja, eu terei de crescer de acordo com a necessidade das pessoas comuns e com as possibilidades da natureza.
– E isso não é bom, Economia?
– Como assim, doutor, bom? E o Capitalismo? Como ele vai sobreviver?

Nosso psicoeconomista agora teve certeza de que o capital não era o simbólico Pai despótico da Economia – este permanecia sendo Marx, aquele que a repreende e tenta educá-la verticalmente. Na verdade, o capitalismo é a Mãe simbólica da Economia: a figura mentirosamente frágil cuja felicidade demanda, melhor dizendo, cobra a felicidade de seus filhos, a ponto de eles se tornarem paralisantemente histéricos. Ciente de que a Economia deveria matar simbolicamente essa mãe solicitante, Piketti pergunta, suave e retoricamente:
– Achas mesmo que o capital morrerá se você deixar de consumi-lo compulsivamente? E se por ventura o capitalismo morrer, seja porque você deixou de usá-lo, seja por motivos históricos que sequer podemos imaginar, tal fragilidade não seria um problema exclusivamente dele? Liberte-se, Economia, dessa responsabilidade para com o capital, pois é esse o peso simbólico que você carrega nas costas a ponto de enlouquecer, de estagnar. Mais ainda, enlouquece a todos nós, humanos.
– Mas e se o capitalismo morrer e eu morrer com ele, doutor?
– Economia! Quem não pode morrer, e nem morrerá, é você mesma, pelo menos enquanto houver sociedades humanas, visto que você é tão antiga quanto elas. Esquece-te de que os teus pais etimológicos, a “Oikos” e o “Nomein”, isto é, a “casa” e o “cuidado” com ela, não tinham capitalismo nos seus genes?
– Mas então o que eu devo fazer, doutor, para voltar a antes do capitalismo?
– Temo que não tenhamos como voltar no tempo, Economia. Entretanto, se no passado você já sabia como agir independente do capital, basta seguir adiante como se o capitalismo não fosse a condição da sua existência. Ao contrário, ele só pode ser por que você é. Aliás, você é a causa dele, saiba disso, e pode deixar de ser, só depende de você. Ademais, é a partir do momento que você quiser definitivamente outra coisa que não o capital que o capitalismo não terá mais lugar em você. Ele é um fantasma assombrador, que você mesma inventou, e, portanto, só você pode fazê-lo desaparecer.

Antes que a Economia dissesse mais alguma coisa, o psicoeconomista informa que a sessão chegou ao fim, pois mesmo que ela tivesse muita coisa a dizer e ainda estivesse bastante histérica, era melhor que a Economia deixasse o consultório e voltasse ao mundo considerando as duas melhores conclusões tiradas da sessão, quais sejam: que o capitalismo não é algo externo ao qual ela deve estar sujeita, mas uma produção sua, e, sumamente, que Economia podia crescer menos do que estava se sentindo obrigada ultimamente, pois suas mais tranquilas experiências históricas só foram tranquilas porque dispensavam essa atual obrigação de crescer 10 ou 14 % ao ano.

O acerto de um erro petista

Realmente, o Partido dos Trabalhadores cometeu um grande erro na esteira da crise internacional de 2008: preservar os trabalhadores brasileiros. Decerto que é um erro gravíssimo para o capital, pois, embora o capitalismo precise de um exército de mão de obra que produza a sua riqueza, carece mais ainda de hordas de trabalhadores desempregados, desvalorizados, disponíveis e, sobretudo, compráveis por qualquer migalha. É com este último time que o capitalismo limita, mas também rouba, o valor do primeiro, pois havendo muita mão-de-obra ociosa no mercado o valor do trabalhado não faz frente ao valor do capital.

Se o governo brasileiro dos últimos sete anos fosse radicalmente liberal, na iminência da crise ele teria não só permitido, mas também articulado o aumento estratégico do desemprego, pois assim o valor dos salários cairia forçosamente – de acordo com a lei da oferta e da procura. Assim os empresários novamente fariam dos trabalhadores a sua vil moeda de negociação com a crise para manterem seus lucros, transferindo os custos senão aos próprios trabalhadores, que teriam ou de se vender por menos, ou produzir mais pelo mesmo salário – apenas para não serem exilados ao estado do desemprego. Isso porque o capitalismo mente muito bem que riqueza significa a grande riqueza de poucos, e não a ausência de miséria da maioria.

Entretanto, depois de 2008 o governo brasileiro fez diferente. Colocou o Estado inteiro na manutenção dos altos níveis de emprego. Isso, por conseguinte, manteve o valor do salário diante o valor do capital, o que afrontou, mas também desvalorizou este último. Sem uma massa desempregada de manobra, o capitalismo tupiniquim, não podendo trocar o valor do trabalho por bônus crísicos, teve de ir beber nos seus próprios lucros, coisa que, historicamente, está desacostumado.

Com efeito, as duas últimas vezes em que, no mundo, o capital foi sistematicamente comprometido no reerguimento e na manutenção social – e, para Thomas Piketty, as duas únicas! – foi durante as grandes guerras e na sequência delas. Do contrário, as sociedades envolvidas nos embates solapariam. Todavia, no mais das vezes, como na crise de 2008, em muitos países o trabalhador é que foi comprometido no salvamento do capital. A dívida que os Estados Unidos, mas não só eles, legou aos seus cidadãos para que os bancos – veja bem, os bancos! – não quebrassem, é o procedimento cotidiano do globalizado sistema econômico.

O “erro” petista em não seguir a vil&pragmática cartilha capitalista, contudo, tem o grande acerto de fazer com que não só os trabalhadores fossem afetados e comprometidos pela crise, mas também os empresários, ou o que é o mesmo, o próprio capital. Se tivesse sido diferente, o vilipêndio dos trabalhadores, tão naturalizado e facilmente “abstraível”, sequer teria sido manchete enquanto os lucros dos capitalistas permanecessem altos. Agora, no momento em que o capital também paga a conta da crise, as manchetes e as ruas com altos IPTUs gritam histericamente o fim dos tempos – ou o impedimento do governo que não os deixou de fora da tempestade.

As manifestações “coxistas” de 2015 expressam sobretudo o descontentamento dos representantes do capital diante da insistência do governo em não desvalorizar os trabalhadores sem antes dispor da riqueza nacional, objeto do desejo dos capitalistas. Como assim gastar com os não-ricos aquilo de que os ricos precisam para serem o que são? Os mais insatisfeitos com o governo petista repetem, sem saber, uma ideia de Aristóteles que, entretanto, faz com que uma democracia seja, de fato, uma oligarquia: “seria ainda mais sábio não obrigá-los [os ricos] a grandes despesas e até mesmo proibir-lhes serem úteis para o povo”

Entretanto, a estratégia de não lançar primeiro os trabalhadores aos leões da crise, para com isso evitar que o capital fosse devorado, mas, em troca, iniciar saciando a voracidade da crise econômica com a própria carne capitalista sempre excedente, para só depois alistar o trabalhador no exército contra a crise, não pode ser visto como erro, principalmente por parte dos próprios trabalhadores. Talvez seja a primeira vez na história brasileira que a classe trabalhadora tenha sido economicamente priorizada em detrimento do capital. Quanto mais não seja porque é obra do Partido dos Trabalhadores.

É natural que a ameaçada oligarquia capitalista bata panela, manifeste incredulidade e insatisfação, afinal, um governo ousou não lhe preferir. Além do que, e a contragosto deles próprios, o país permanece democrático e permeável à manifestações, mas não só às suas. Se desde o início da crise – nascida internacional em 2008, mas só agora naturalizada brasileira – as coisas tivessem ocorrido de acordo com os preceitos capitalistas, como nos EUA, onde os trabalhadores ficaram sem casa e sem emprego para que os banqueiros mantivessem seus bônus estratosféricos, a nossa elite estaria tão preservada quanto satisfeita&silenciosa.

Porém, enquanto a crise mundial desempregava e despejava trabalhadores de vários países, os brasileiros, ao contrário, tiveram seus empregos e salários preservados. Isso, com efeito, afronta qualquer elite! Agora, contudo, como assumiu a nossa presidenta, a coisa mudou. Chegou a hora de todos lutarmos juntos para sairmos da crise, não só os capitalistas, mas também os trabalhadores. Obviamente, não se trata de uma boa notícia, mas nela subjaz uma virtude que não deve passar em branco: a crise está mais democratizada do que nunca, e não são mais os trabalhadores que pagam sozinhos a conta. Se o governo do Brasil errou em não agir de acordo com o “jeitinho capitalista”, essa falha não tem preço! Porém, como há um custo social sempre expresso em cifrões, é melhor que, em uma democracia, ele seja dividido democraticamente.

Artesão e cliente

Como eu sou um artesão, está na essência do meu trabalho considerar diretamente as necessidades dos meus clientes, sejam eles diretores de teatro, coreógrafos de dança, colecionadores de Barbie, ou conhecidos que encomendam de mim coisas de que precisam. Todos dizem, a mim, pessoalmente, o que querem. Eu, do meu lado, ouço o que eles dizem, porém, mais do que captar o que as suas palavras-pedidos tentam explicar, devo encontrar nos seus olhos aquilo que eles querem, mas que suas palavras não conseguem dizer.

Obviamente, uma máquina de Coca-Cola não poder fazer isso, afinal, ela foi programada justamente para não reinterpretar nada além do preciso botão que o seu cliente apertou. Imagine uma máquina dessas decidindo se é Coca Zero o que o cliente precisa ou se sua massa corporal justifica uma Coca “normal”! O artesão, ao contrário, pode fazer isso, isto é, acrescentar algo de humano e de inédito à relação do seu cliente com aquilo de que ele consome.

Quando compramos nossas coisas em lojas, decerto isso nos satisfaz. Porém, as mesmas forças que aqui nos levam às compras, logo ali, obrigam-nos a descartar aquilo que acabamos de comprar. A satisfação desse tipo de consumo, portanto, é criticamente efêmera. Dessa relação, com efeito, somos escravos, todavia ideologicamente iludidos de que somos os senhores da relação. Ilusão oriunda do fato de os escravos nunca olharem nos olhos do verdadeiro senhor enquanto olham para as mercadorias da C&A ou da Coca-Cola.

Agora, quando uma pessoa encomenda de outra, por exemplo, uma roupa, eis uma relação produção-consumo na qual ninguém é escravo nem senhor. Isso suspende virtuosamente o vicioso ciclo capitalista que insiste em fazer do consumo o motor da necessidade. A relação com o artesão coloca em perspectiva não somente o claro e central ponto-de-fuga do consumidor, isto é, o prazer que ele espera do consumo, mas, principalmente, o ponto-de-vista desse consumidor, pleno de desejos – que, entretanto, extrapolam a capacidade de qualquer roupa ou coisa em saciá-los.

Um colega meu soube que eu costurava. Então, encomendou-me uma bolsa. Por um lado, porque precisava, e, por outro, segundo suas palavras, porque preferia dar o dinheiro que essa sua necessidade lhe dispôs a investir a uma pessoa do seu círculo, e não a uma marca internacional&impessoal qualquer. Talvez por ser de outra área de atuação que não a minha, ele, que é músico, não sabia falar de tecidos, de tipos de costura, de aviamentos, ou seja, das concretudes do que ele queria. Em vez disso, dava-me, com suas palavras e mãos, um desenho abstrato, assaz subjetivo, entretanto, daquilo que atenderia a sua necessidade objetiva.

Vi que não era o caso de “brifar” com ele as especificações técnicas da materialidade envolvida no seu pedido. Isso era tarefa da minha arte(sanato). Estava mais nos seus olhos do que em suas palavras aquilo que ele queria. Alguns dias depois, com a sua bolsa em mãos, também dos seus olhos vieram uma gratificação melhor do que o dinheiro que eu recebi por ela. Seu olhar, além de misturar gratidão e satisfação, também era a expressão de uma pequena, porém possível, alforria em relação ao sistema de consumo que, por insistir ser a única opção, nos escraviza.

Trabalhando dessa forma, isto é, diretamente para alguém, reencontro sistematicamente o meu lema preferido, qual seja, o comunista: “de cada qual segundo a própria capacidade, a cada qual conforme a sua própria necessidade”. Do lado do meu cliente, a sua necessidade particular concreta e a sua capacidade de explicá-la. Do meu lado, a necessidade de compreender a particularidade do seu desejo, de acordo, é claro, com a minha capacidade para atendê-lo, quiçá superá-lo. Uma vez que todos nós temos necessidades e capacidades particulares, é apenas com os olhos nos olhos que duas pessoas podem compartilhar as suas sem que uma esteja acima da outra.

Outra subversão impertinentemente mantida viva por alguns artesãos e os seus clientes é a redução do consumo. O destino fatal de qualquer coisa comprada em uma loja é ser substituída por outra de acordo com os ditames do mercado. Afinal, aquilo que compramos, mas que não foi feito especialmente para nós, por não suprir desejo particular algum, não encontra espaço de permanência nas nossas vidas.

Agora, quando temos, por exemplo, uma camisa feita especialmente para nós, nascida de algum desejo nosso e materializada de acordo com as nossas medidas – de corpo, de valor etc. -, substituí-la por algum novo lançamento da moda perde qualquer sentido. Uma bolsa, uma calça, um sapato ou um móvel, desde que feitos de acordo com as nossas necessidades particulares, com efeito nos acompanharão, senão por toda a vida, pelo menos por muitos anos, em saudável detrimento à obsolescência programada da moda consumista-escravizadora.

Infelizmente, o mundo será uma senzala do capital enquanto as máquinas de Coca-Cola e as lojas da C&A produzirem as muitas coisas de que necessitamos para viver. Entretanto, antes de propor que a relação artesão-cliente é solução para esse problema, é preciso ser dito que tal relação é anterior ao capitalismo. Aliás, foi contra esse tipo de organização econômica particular e pessoal que o capitalismo inventou a economia globalizada e impessoal. Sendo assim, a virtuose artesanal não deve ser vista como solução ao capitalismo, mas, ao contrário, este é que deve ser visto como o vício que impede a virtude daquela.

De qualquer forma, comprar pronto aquilo que desejamos, independente de quem o produza e de que necessidades tenham sido levadas em conta nessa produção, outra coisa não faz senão nos manter escravos do capital, o senhor do consumo sistemático. Entretanto, embora eu, no mais das vezes, seja um desses escravizados, quando produzo uma bolsa, uma calça, um móvel ou um cenário para alguém, sinto-me produtor não só de realidades materiais, mas de realidades ideais, nas quais, aliás, eu e o meu cliente somos os senhores, virtuosamente sem escravos.

Grécia descalça sobre espinhos europeus*

A Grécia a.C. levou democracia, arte, arquitetura, ciência e filosofia aos confins do mundo antigo numa empresa epopeica&histórica chamada de Helenismo, que quer dizer “viver como os gregos”, concretizando assim o ideal do seu grande invasor, Alexandre, o Grande. A difusão da cultura Grega, entretanto, não ficou restrita àquela época e região, mas fez carreira exitosa, mundo e futuro afora, merecendo o longevo título “o berço da civilização”. Dois mil anos depois, a Hélade agoniza, não naquele berço esplêndido, mas num leito crísico&econômico atualíssimo, por cujo pernoite, aliás, ela não pode pagar.

Em um mundo no qual a economia faz es vezes da democracia, da arte, da arquitetura, da ciência e da filosofia juntas, a Grécia é novamente invadida, só que agora o Alex da vez é o Capital, o Grande. Diferente de há 2300 anos, os atuais dominadores-credores que se assenhoram da Grécia não querem saber de peculiaridades suas algumas, para então disseminá-las “Worldwide”, mas sim de levarem o seu “World Very Wild” econômico-globalizado para lá, para então legarem os parcos Euros gregos à ‘liberabília’ mundial.

O mesmo mundo que, na antiguidade, ganhou dos gregos a civilização, na contemporaneidade, não se importa em assassinar essa mãe civilizadora para saciar a sua sede, contudo insaciável, de cifrões. O império do capital, portanto, outra coisa não representa senão a mais abjeta barbárie – cujos bandos partem dos bancos – marchando à passos econômicos na ágora globalizada do exato agora. Hoje em dia, basta fazer do dinheiro um Deus para que a barbárie reluza palidamente um verniz de civilidade. Todavia, como diz um velho provérbio grego, “As vestes não fazem o sacerdote.”

O bárbaro-mor da vez é o perverso Banco Central Europeu, para quem não é problema algum devassar uma nação inteira, precisamente porque ele é o primeiro banco central do mundo cuja sagaz centralidade dispensa um território e uma soberania nacional, ou seja, uma nação. Ora, por que um banco que não representa nenhum país determinado se privaria de arruinar um país historicamente determinado como a Grécia? Ademais, uma vez vitorioso no ‘economicídio’ da moeda mais antiga do mundo, o Dracma grego, o euro, essa vil moeda sem país, só precisa seguir ‘eurobarbarizando’.

Agora, se no passado a Grécia legou ao mundo a sua cultura, de valor inédito&inestimável, no presente, ao contrário, é o mundo que leva a ela a sua cultura, de valor liberal&globalizado, cuja arquitetura, arte, ciência e filosofia trata sobretudo do capital. Entretanto, o que pode a Grécia novamente legar ao mundo a partir desse angusto legado que a atualidade lhe impõe? Pobreza não é, pois com isso o mundo já convive há muito tempo. Calote tampouco, afinal, esse também já é um fantasma demasiado internacionalizado.

Ora, se lembrarmos que a polis grega antiga foi o berço da política, cujo lastro democrático acolhia os cidadãos e os seus problemas, para, mediante a palavra, resolvê-los diretamente, o que a metrópole grega contemporânea pode voltar a disseminar sobre o mundo é a arte, assaz ausente hoje aliás, de solucionar enigmas globais com o verbo local. O Eurobanco, obviamente, não quer cambiar capital por discurso nenhum. Porém, ao repetirem impertinentemente que não irão pagar conforme quer o Bárbaro Central Europeu, os gregos, retórica&civilizadamente, fazem da Europa inteira a sua nova assembleia política. Os gregos contemporâneos parecem não ter esquecido de um provérbio ancestral: “É preferível ser dono de uma moeda a ser escravo de duas”.

Na acrópole ateniense, mulheres-colunas-gregas chamadas de cariátides sustentam em suas cabeças, há 2500 anos, o peso do templo de Erecteion, consagrado a Palas Atena, deusa da civilização, da guerra, da sabedoria, da artes, da justiça e da estratégia. Para Atena, a recente pressão do BCE sobre a Grécia é apenas um vento invernal. Já as cariátides, d o topo mais nobre da Hélade eterna, simbolizam perenemente que os gregos e as gregas têm dentro de si um ‘daimon’, isto é, um espírito-guardião, capaz de suportar, não só o peso do tempo, mas também o peso dos templos, sejam eles às divindades, sejam os do capital, afinal, como diz outro provérbio grego, “São os cães maus que morrem dolorosamente”.

*do provérbio grego “Como você vai andar descalço sob os espinhos?”

Greve de estudantes contra as más lições

Eu participo, há alguns dias, de uma greve nacional de estudantes que luta sobretudo contra o sucateamento das universidades públicas em face dos atuais ajustes econômicos que tanto o governo brasileiro, quanto o desgoverno do capital, tentam impor ao sistema de educação. Dentre os objetivos deste movimento estudantil, dois deles me parecem os mais nevrálgicos: o primeiro, a não aceitação do corte orçamentário de 9.4 bilhões de reais à educação brasileira, e o segundo, a não instauração da terceirização na contratação de professores para as universidades federais, cujo efeito – ou defeito – imediato é o fim dos concursos para docentes, e a consequente perda, por parte das universidades, do controle sobre esse processo de seleção.

Um corte de verbas na educação já é inadmissível antes mesmo de ser pensado, pois, do analfabeto ao doutor, todos sabemos que a educação no Brasil carece, e historicamente, de investimento, não de mais limitação. Ainda mais num momento em que os bancos estão tendo lucratividades recordes, mesmo nesse momento de crise econômica. O banco Itaú, por exemplo, o alvo preferido de dez entre dez Black Blocs, só no primeiro trimestre de 2015 lucrou 5.3 bilhões de reais. O banco Santander também não tem do que reclamar! Ora, pelo visto, dinheiro há, e muito! Portanto, é inadmissível aceitar, sem protestar, essa redução da verba destinada às universidades enquanto banqueiros expandem seus paraí$o$.

Já a terceirização, que afeta diretamente o futuro daqueles que, como eu, pretendem ser professores-pesquisadores nalguma universidade pública, o problema é que, com o fim dos concursos para docentes, serão privilegiados aqueles que já está no mercado de trabalho, e não os recém pós-graduados que, pelas suas primeiras vezes, buscarão, futuramente, trabalho nas universidades. Além disso, como, e por quem serão selecionados os docentes com as universidades alienadas desse processo? Abre-se, no mínimo, uma via àquela velha forma de negociação, velha conhecida nossa, plena de “jeitinhos”, que, certamente, não se privará de valer-se da mais abjeta politicagem marrom.

Entretanto, quando oficialmente informamos aos nossos professores que os alunos estavam em greve, solicitando, com isso, a adesão deles à nossa causa, quão decepcionante não foi ouvir deles, em tácito desestímulo, que “aluno não faz greve”. Porém, como bem disse o amigo-colega-companheiro Filipe Fortuna, se as pessoas podem fazer greve de fome, de sexo, e até de silêncio, greve de estudante, portanto, tem de poder também! Além do que, os estudantes são a imensa maioria em uma universidade, cerca de 95%, além de serem o fim desta instituição. Sendo assim, os alunos são aqueles a quem deve ser garantido mais direitos, inclusive o de greve.

Disseram-nos ainda que as nossas demandas eram utópicas, que não as alcançaríamos com uma paralisação, e que, portanto, deveríamos desistir da greve. Tal ensinamento, vindo de professores universitários, sobretudo filósofos, descortina mais um grande fracasso da educação no Brasil. A infeliz lição que tais mestres tentaram nos passam é a de que seria melhor para todos, inclusive para o calendário acadêmico, que desistíssemos, enquanto estudantes, das nossas reivindicações. Querem, portanto, que voltemos às aulas, confortavelmente derrotados, antes mesmo de tentar a justa vitória. Será que estes professores, diferente de nós, alunos, acreditam que será o banco Itaú ou a Rede Globo que se mobilizarão e lutarão por nós todos? Os lucros destes mostram exatamente o oposto disso.

Ao contrário do que nos foi dito, nossas demandas não são utópicas. Seriam, caso estivéssemos exigindo a paz mundial, o comunismo já, ou a legalização das drogas. E olha que muita gente pé no chão investe em objetivos como estes de forma bastante concreta! Agora, pedir que a verba à educação não seja reduzida, que as contratações dos nossos professores não sejam terceirizadas, que as bolsas acadêmicas dos graduandos valham, no mínimo, um salário mínimo, só para citar algumas, são demandas absolutamente viáveis, mas que só parecem utópicas porque alienadas de nós pelos ímpetos de um capital e de uma política que preferem muito mais os bancos privados às carteiras escolares públicas. Desse modo, incluo entre as minhas demandas a total rejeição ao conceito de utopia dos meus professores filósofos.

Outro mestre, com o qual recentemente vínhamos lendo sobre o Maio de 1968 e suas greves estudantis, sem pestanejar deslegitimou a nossa paralisação. Abriu, com isso, um infrutífero abismo entre a teoria estimulante que ele mesmo nos apresenta e a possibilidade de nós a praticarmos, diária e concretamente, na nossa realidade. Por um lado, ensina-nos sobre revolução, mas, por outro, diz-nos que, se formos revolucionários, reprovaremos no seu curso. Esquizofrenia também se aprende na universidade! Outro mestre, ainda, ouvindo que a decisão pela greve havia sido tomada por uma assembleia soberana, feita pelos os alunos, disse-nos, não apenas jocosamente: fiquem com a “soberaniazinha” de vocês que eu fico com a minha. O que aprendemos com ele? Que, de um lado, ou muito acima, estão os deuses doutores-universitários, e de outro, ou muito abaixo, os anjos-estudantes caídos.

A decisão dos professores da Faculdade de Filosofia da Unirio de não apoiarem nem aderirem à greve estudantil, mas, pelo contrário, muitos deles ameaçarem com a reprovação aqueles que insistirem na paralisação, mostra, contudo, que aquilo que para muitos estudantes é insuportável, para eles, professores, pelo jeito, não está tão ruim assim. Ou, talvez, só estejam querendo nos ensinar algo que eles mesmos aprenderam, nas muitas greves pelas quais já passaram, e das quais, aliás, na grande maioria das vezes saíram derrotados: não adianta reclamar, não adianta se organizar e lutar; afinal, até os módicos aumentos de salários que eles sempre pediram, ou nunca chegaram, ou foram convertidos em migalhas antes mesmo de caírem nos seus bolsos. Se querem nos ensinar essa triste história, parabéns!, os meus professores estão fazendo um excelente trabalho.

Felizmente, a universidade, ainda que tão carente de investimento, e inclusive correndo o risco de ter seus doutores contratados como se fossem entregadores de pizza, tem mais a ensinar do que só aquilo que os professores tem a doutrinar. Se nós, alunos, permanecêssemos somente em aula aprenderíamos dos nossos mestres inclusive as suas derrotas, o que não nos interessa. Vale, então, descartar todos os ensinamentos derrotistas que eles porventura tenham a nos passar.

Uma greve estudantil, portanto, precisa nascer livre de quaisquer derrotas prévias. Não porque os estudantes não devam se deparar com elas, mas porque este não é o caminho para encontrarem as suas próprias derrotas, com as quais aprender, e não as dos seuss professores, derrotados catedráticos. Ainda que, finalmente, nos seja negado o que quer que seja que tenhamos a pedir, de modo algum os nossos mestres devem começar ensinando que não temos o direito de pedir o que nos falta e o que acreditamos nos ser de direito.

Sete bilhões de smartproblemas

Parabéns, humanidade, pelos sete bilhões de smartphones produzidos: um para cada pessoa do planeta! A despeito dos desafios mais críticos que temos de enfrentar, tais como a exaustão da Natureza, os fundamentalismos religioso e econômico, a gentrificação dos nossos espaços urbanos, só para citar alguns, necessidades diante das quais, aliás, parecemos tão impotentes quanto conformados, a despeito de tudo isso, pelo menos conseguimos uma marca histórica, contudo abjeta, com a qual afirmar a nossa suspeita potência: um smartphone por ser humano.

Seria no mínimo cômico e igualitário se não fosse maximamente trágico e desigual este dado que hoje é divulgado, pois, obviamente, estamos muito longe de termos, cada um de nós, um desses desejados e inclusivos gadgets que nos conecte com os demais seres humanos e com as oportunidades do mundo globalizado. Sem falar que tal recorde produtivo, por sua vez, significa mais exaustão da Natureza (extração de matéria-prima, geração de energia para a produção, consumo de mais combustível para o transporte das mercadorias, etc.), e também mais gentrificação, pois, pelo preço que os smartphones chegam às lojas, certamente não é para todos que eles forma feitos.

Ao menos a minoria da população mundial, quiçá metade dela, pode se conectar como nunca para não só visualizar, mas também curtir, comentar e compartilhar a destruição da Natureza e a desigualdade crescente que também sabemos produzir tão bem quanto smartphones. Ao passo em que água falta a cada vez mais pessoas no mundo, temos uma abundância de artificialidades, largamente “publicitarizadas”, que possibilitam àqueles a quem nada falta a oportunidade de se alienarem, no toque de um display digital, do que falta a muitos e também do que afeta a todos, como, novamente, a destruição da Natureza.

A famigerada notícia sobre o recorde histórico de sete bilhões de smartphones produzidos pode facilmente ser lido a partir de qualquer um dos dois, três, ou mais, gadgets inteligentes que você e eu, individualmente, já tivemos nos últimos anos. Isso basta para deixar tácito que dois, três, ou mais de nós não tiveram os seus como o anúncio da paridade humanos-smartphones tenta mentir. Cabe salientar, outrossim, que tampouco nos importamos em saber para onde os nossos “celulares espertos” velhos foram parar com a chegada dos nossos últimos modelos. Ora, para onde iriam senão para a Natureza; senão para poluí-la mais um pouco?

O recorde “smartphonado”, portanto, é bem mais grave do que somente produzir eletrônicos inteligentes em vez de produzir sustentabilidade e igualdade. Na verdade, essa quantidade absurda de smartphones espalhados pelo mundo só aumenta a crise ecológica e a gentrificação da acessibilidade à informação. Se esta marca histórica é uma vitória, o é apenas para o capitalismo e suas demandas nada sustentáveis e igualitárias. Porém, se é a derrota que eu não consigo deixar de ver, esta é da humanidade inteira, que produz sete bilhões de soluções portáteis e inteligentes que, em vez de resolver problemas gerais, cria, por sua vez, sete bilhões de novos problemas individuais.

A economia dos afetos de Spinoza

Cometendo-se um anacronismo que abstrai quase duzentos anos de História, poderia ser dito que Spinoza é o Marx dos afetos. Como sabemos, a economia política do alemão tratava sobretudo da busca material pela sobrevivência, aventura que começava nos ditames do estômago e findava na vitória da classe operária. Já o holandês produziu uma refinada economia afetiva, na qual a manutenção da existência se desenrolava a partir da relação dos muitos afetos que se sucedem num mesmo indivíduo, e, outrossim, entre as afetações que diferentes indivíduos causam uns nos outros, numa infinita rede de relações da qual todos participam necessariamente.

Marx que me perdoe, mas, para Spinoza, capital são os afetos. Ora, são eles que atravessam o corpo e a mente a cada instante, gerando todos os nossos estados e, mais importante, levando-nos de um estado a outro. Spinoza afirma que, em si, os afetos não são bons nem maus. Antes, parecem uma ou outra coisa quando comparados uns com os outros. Sendo assim, o medo, por exemplo, se confrontado à coragem, pode, inadvertidamente, parecer-nos ruim. Entretanto, se, porventura, o medo elimina a coragem de alguém para, digamos, enfrentar um leão, esse medo é um afeto bom, pois age no sentido de evitar uma tragédia.

Um afeto parece-nos bom, portanto, quando aumenta a nossa potência para persistir na existência, levando-nos a um estado de perfeição maior. Em troca, um afeto parece-nos mau quando reduz essa mesma potência e nos impõe um estado de perfeição menor. Não corremos o risco, todavia, de toda a nossa potência e perfeição serem furtadas por um afeto mau, pois, para Spinoza, não há ausência de perfeição, pelo menos enquanto existimos, mas tão somente diferentes graus de perfeição. Como o filósofo entende que perfeição e realidade são a mesma coisa, uma perfeição=zero pressuporia uma realidade=zero, e o que possuísse realidade nenhuma, tampouco envolveria qualquer grau de afeto.

Então, para Spinoza, enquanto existimos participamos da perfeição, em maior ou menor grau, cuja medida, entretanto, é dada pela nossa potência de existir, isto é, pelo nosso conatus. Este, por sua vez, é a resultante dos muitos afetos que experimentamos no nosso corpo e na nossa mente cruzados com os afetos que causamos nas mentes e nos corpos dos outros. Isso porque estamos absolutamente conectados na rede infinita de relações que Spinoza sabiamente chamou de Natureza. A nossa perfeição, portanto, outra coisa não é senão as infinitas afetações que recebemos e causamos uns nos outros.

Segundo Spinoza, a alegria é um afeto que põe o nosso corpo e a nossa mente em ação no sentido de uma maior perfeição. A tristeza, inversamente, diminui a ação do corpo e da mente, fazendo-nos escravos das nossas próprias paixões, reduzindo, com isso, a nossa perfeição. O movimento de um estado ao outro, por conseguinte, é o resultado de uma economia cujas moedas de troca são os nossos muitos e variegados afetos. Em vez da luta de classes proposta por Marx, na filosofia spinozana há tão somente a luta travada pela infinidade de afecções que compõem a perfeição, ou, o que é o mesmo, a realidade da Natureza.

Se, portanto, a alegria é uma ação que aumenta a nossa perfeição, e a tristeza, por seu turno, é uma paixão que diminui tal perfeição, como é que podemos escapar do império das paixões para agirmos livremente em direção à perfeição? Spinoza ensina que só podemos vencer um afeto com outro afeto, todavia contrário e mais forte do que aquele que queremos vencer. Logo, para derrotar um afeto triste basta um afeto alegre de maior intensidade. Porém, se estar triste é justamente carecer de alegria, de onde viria, então, este providencial e mais intenso afeto alegre capaz de dar cabo do afeto triste? Bem, como para Spinoza tudo o que há é a Natureza, já sabemos onde procurar.

É fácil, ademais muito tentador, desejar derrotar uma grande tristeza valendo-nos da maior força de uma grande alegria. Entretanto, estar triste é justamente carecer de uma grande alegria, pois, se nos entristecemos, é justamente porque ela nos falta. Ora, se estamos tristes, é porque não havia alegria alguma capaz de impedir essa tristeza. E se, de início, já não havia alguma alegria potente suficiente para barrar tal tristeza, tampouco haverá uma quando a tristeza estiver dominando o sistema. Obviamente, dispor de uma grande alegria que desse cabo de uma grande tristeza, já seria, por si, uma grande alegria. Mas, se assim fosse, por que então nos entristeceríamos?

Contudo – e felizmente -, não há somente afetos intensos, tais como grandes alegrias e grandes tristezas. Com efeito, somos uma miríade de afecções que se expressa em uma infinidade de graus. Moedas afetivas de menor valor, portanto, também circulam – e devem necessariamente circular – na economia dos afetos de Spinoza. E são desses trocados, aliás, que podemos mais facilmente nos valer nos momentos de crise. Aqui, Marx relembra-nos de que todo valor provém do trabalho. Sendo assim, contra a tristeza, contra a paixão paralisante: trabalho, mesmo que essa ação renda apenas trocados de menor valor.

Se todo valor que produzirmos em um trabalho contra uma grande tristeza for agregado ao pouco de alegria que ainda nos resta, é somente uma questão de trabalhar mais até que essa alegria valorizada suplante aquela tristeza indesejada. É muito difícil, quiçá impossível, produzir, de pronto, um afeto alegre maior do que uma grande tristeza. Podemos, todavia, através da ação constante e da compreensão paciente, produzir, enfim, um afeto alegre que seja grande o suficiente para vencer determinado afeto triste que porventura esteja nos aprisionando nalguma paixão.

O que não pode acontecer, entretanto, – e com isso Marx e Spinoza concordariam plenamente – é alguém roubar para si o valor do trabalho que outrem empreende arduamente contra suas próprias paixões com o intuito de dar cabo delas. A economia dos afetos, num sistema capitalista, outra mercadoria não produzirá senão tristeza em massa. Para os afetos, decerto, é melhor o comunismo. Se fizermos do lema comunista popularizado por Marx, “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, a regra de ouro do sistema econômico-afetivo de Spinoza, subsistirá a perfeição, portanto a realidade, tanto dos afetos, quanto dos indivíduos afetados e afetantes, e, inclusive, a da própria Natureza.

Dinheiro, abstração, então, Filosofia.

O que o dinheiro tem a ver com a filosofia? Como sabemos, filosofar não leva à riqueza financeira. Aliás, a realidade mostra que o produto do filósofo tem pouco ou nenhum valor no mercado capitalista que, por sua vez, funciona melhor com “mãos invisíveis” do que com filosofias aparentes. Portanto, economicamente, a Filosofia não é um bom negócio. Embora não seja a melhor forma de se ganhar dinheiro, este, entretanto, foi, historicamente, um meio da filosofia.

Na antiguidade, outrossim, a filosofia não enchia os bolsos dos seus praticantes. Sócrates que o diga, pois, terminou a sua vida como um mendigo. Porém, ainda que a relação amorosa daqueles gregos com a sabedoria não lhes trouxesse dinheiro (os que ganhavam com isso foram estigmatizados de sofistas), a Filosofia não teria acontecido sem ele. Com efeito, quando, há 2500 anos, os homens começaram a filosofar, esta atividade era exclusividade de indivíduos que podiam se dar ao luxo do ócio, sustentados, no entanto, pelo trabalho de seus escravos.

Então, com seus corpos dispensados do trabalho braçal, as mentes filosóficas puderam se preocupar com o desnecessário: de que é constituído o real, o que é o não-ser, o que é o cosmos, etc. Foi nesse recreio V.I.P. que Tales de Mileto pôde inaugurar a Filosofia, dizendo que toda a realidade não é aquilo tudo que dela se diz, mas que era tão somente água. Ainda que uma dúzia de aristocratas gregos ociosos pudessem concordar com o sábio de Mileto, para um escravo que quebrasse pedras durante sua vida toda isso pareceria divagações de “mauricinhos”.

Antes de Tales, contudo, os gregos não eram habituados à tais abstrações filosóficas, visto que a concretude objetiva era, e devia ser, a cara da realidade. Nietzsche apontou certeiramente para a dificuldade que os antigos gregos tinham em captar conceitos puros, desprovidos de conteúdo concreto. O alemão disse que, ao contrário de nós, [pós-]modernos, que facilmente sublimamos o particular, o pessoal, em abstrações, para os gregos o mais abstrato retornava sempre a uma coisa ou a uma pessoa concretas. Uma abstração mental que não encontrasse um correlato concreto, portanto, não se sustentava.

Todavia, a ventura econômica grega que passou a sustentar o ócio dos seus nobres filósofos trouxe o dinheiro – o Dracma, a moeda mais antiga do mundo – e a abstração que ele pré-condiciona, substituindo as trocas concretas do tipo coisa-coisa (trigo por sapatos) pela troca coisa-dinheiro-coisa. O dinheiro, portanto, estabeleceu um estágio de abstração no cerne das relações concretas entre as pessoas. E uma vez que determinadas coisas puderam ser economicamente abstraídas, o restante delas não escapou de igual destino.

Por conseguinte, foi possível abstrair também coisas que, até então, sem objetos concretos eram apenas quimeras, tais como o amor, a amizade, o tempo, a beleza, a justiça, etc. Em decorrência disso, a natureza inteira se tornou contingente demais para ter a dignidade de um pensamento filosófico. A Filosofia, portanto, não só cunhou uma nova forma ao pensamento como também fez de qualquer conteúdo que se aventurasse nessa forma algo a priori inadequado. Em outras palavras, fez da realidade concreta imediata precisamente aquilo que afasta e ofusca a verdadeira realidade que, filosoficamente, deve principiar abstrata, livre das refutações de quaisquer particularidades concretas.

A Filosofia, para tornar concretas as suas abstrações, teve, no entanto, de esperar primeiro a abstração da concretude inaugurada pelo dinheiro. Somente depois de alguma coisa poder ser trocada, não por outra, mas por um universal, ou seja, o dinheiro, é que os homens se aventuraram a abstrair e a universalizar aquilo de que, antes, tinham apenas experiências concretas e particulares. A abstração filosófica, por conseguinte, nasceu do ócio inaugurado pela fortuna, alimentado, entretanto, pela escravidão. Foi só quando alguns homens puderam se alienar de suas realidades físicas que eles puderam, então, ocuparem-se de realidades metafísicas.

Entretanto, tempo livre e dinheiro ainda são privilégios de poucos. Assim como na antiguidade grega, a produção intelectual, ao longo da história, sempre precisou de uma massa escravizada que a sustentasse, e tanto faz se essa escravidão for chamada de servidão ou de trabalho assalariado. O dinheiro, portanto, não só comprou o ócio necessário à filosofia como também inaugurou, e doravante sustentou, a abstração das concretudes reais sem a qual a Filosofia seria apenas História da humanidade.

Silêncio, verbo, cidade

“No princípio era o verbo”, diz João na abertura do seu evangelho, falando da criação do mundo. Porém, para que Deus não parecesse um idiota, usar o verbo só faria sentido conquanto houvesse ao menos um homem para ouvi-lo. João, portanto, conta a história do homem rompendo a ausência de diálogo no universo. Da verborragia humana subsequente nasceu o nosso mundo, bem como suas instituições, tais como a família e a cidade. Porém, ao se apropriar do verbo inaugurado por Deus, e ao exclui-Lo do bate-papo mundano, com quem fala a humanidade, e de que criação é capaz tagarelando sozinha?

Antes de pronunciar qualquer palavra, enquanto elas sequer existiam, aqueles pré-falantes ancestrais deram ouvidos a algum verbo interior desejoso de expressar uma paixão inquieta do primitivo recôndito humano. Como homem, cultura e linguagem findaram uma coisa só, se atentarmos para o ato inaugural da cultura, qual seja, o sepultamento dos mortos, logo, esse inaudível, porém sensível verbo primeiro outra coisa não deve ter ordenado que um imperativo: sepulta!

Ora, a vida nômade não pronunciava esse verbo, pois enquanto os homens erravam pelo mundo seus mortos eram apenas aqueles que misteriosamente ficavam para trás. Porém, desde que o homem atendeu àquele verbo interior que o mandava sepultar, entendeu também que deveria permanecer em torno de tais sepulturas, inaugurando, assim, o sedentarismo. Corroborando com São João, primeiro foi o verbo, no entanto mudo, que mandou enterrar os mortos, e, em seguida, um eco semântico que ordenou aos homens permanecerem juntos dos seus idos.

Então, em torno dos mortos enterrados e devidamente cultuados os vivos dispuseram suas casas, plantações e, principalmente, suas novas relações, não só entre vivos e mortos, mas também entre os próprios vivos. Porém, no centro da vida estava, sobretudo, o culto aos mortos que, visando a bem-aventurança dos idos, prometia a bem-aventuranças dos vivos. Acreditava-se, contudo, que se os mortos não recebessem atenção e culto constantes, puniriam os vivos pela negligência. As secas, as pragas e as demais adversidades naturais eram tidas como maldições ditadas pelas deidades sepultadas nos quintais sempre que contrariadas.

Segundo o historiador Fustel de Coulange, o culto que os “gens”, isto é, as famílias, prestavam aos seus mortos exigia privacidade absoluta, sendo uma desventura suprema outras gentes saberem das divindades familiares cultuadas. Caso alguém de outra “gen” visse ou participasse das oferendas que uma família rendia aos seus próprios mortos a bem-aventurança oferecida por tais deidades seria dividida com o intruso. Portanto, parte do isolamento no qual viviam os ancestrais núcleos familiares atendia essencialmente ao resguardo dessa relação entre os vivos e os seus mortos, bem como das benesses que dessa privacidade resultavam.

Porém, por conta da necessidade, não tardou até que as famílias superassem esse estratégico distanciamento e se aproximassem umas das outras, primeiro na polis, depois na urbe. Coulange conta que isso só foi possível porque, de um lado, as “gens” urbanas aprenderam a resguardar suas divindades das demais mesmo na proximidade, e, por outro, as diversas “gens” que se adensavam na cidade elegeram, consensualmente, divindades outras que não as suas privadas, às quais todos prestavam cultos, claro, em vista de proteção e de bem-aventurança ao corpo urbano.

Assim como as divindades familiares, as públicas eram pessoas reais, porém finadas, como antigos profetas, pioneiros colonizadores ou heróis que haviam se sacrificado pela cidade. Portanto, a urbe, seguindo o exemplo das “gens”, só foi viável a partir do culto às deidades produzidas pela divinização de seres mundanos, ou seja, de pessoas, contudo mortas, das quais todos desejavam proteção, oferecendo a elas, em contrapartida, culto e sacrifícios.

Agora, se o mundo que chegou até nós decorreu daquele verbo primordial que ordenou aos errantes sepultar os seus idos, cultuá-los e permanecer juntos deles, o que, porventura, se passará com o sedentarismo lá instituído a partir do atual costume de não mais se viver em função dos mortos, quiçá enterrá-los, haja visto que hoje em dia os cremamos? Deixando de ouvir o verbo primeiro corremos o risco de retornar ao ancestral desenraizamento geográfico e à inexistência da cultura. Basta lembrar de Roma, o panteão babilônico das mil e uma deidades, que, por não conseguir mais cultuar todos os seus mortos, ruiu diante da barbárie mesmo dando voz ao Deus cristão, cujo verbo, entretanto, não evitou as trevas da Idade Média.

Ora, a capacidade de divinizar o mundano, empreitada inicial que nos legou a cidade, é diametralmente contrária à laicização generalizada – sobretudo das divindades – verbalizada histericamente pela contemporaneidade. Logo, ao contrariar o princípio da cultura – enterrar e cultuar os mortos enquanto divindades – nos redirecionamos àquele nomadismo surdo-mudo que antecedeu o verbo primordial, que, no entanto, naquela vez nós obedecemos subservientemente. A frase de João, portanto, poderá dizer que não só no princípio, mas também no final – do mundo dos homens – era só o verbo.

Um acertado erro petista

Um acertado erro petista

O Partido dos Trabalhadores cometeu um grande erro na esteira da crise internacional de 2008: manter e aumentar os níveis de emprego no Brasil. Mas essa falha, longe de ser contra o povo – aliás, o priorizou -, foi contra o próprio sistema econômico. Ora, o capital precisa de um exército de mão de obra para produzir o seu valor. Entretanto, carece também, senão mais, de hordas de trabalhadores desempregados, disponíveis e, sobretudo, desesperados por trabalho. É com este último time que o capitalismo limita, mas também rouba, o valor do primeiro, pois havendo muita mão-de-obra ociosa no mercado o valor do trabalho não faz frente ao valor do capital.

Se o governo brasileiro dos últimos sete anos fosse radicalmente liberal, na iminência da crise ele teria não só permitido, mas também articulado, o aumento estratégico do desemprego, pois assim o valor dos salários cairia forçosamente – de acordo com a lei da oferta e da procura. Assim os empresários novamente fariam dos trabalhadores a sua vil moeda de negociação com a crise para manterem seus lucros, transferindo os custos aos próprios trabalhadores, que teriam ou de se vender por menos, ou produzir mais pelo mesmo salário – apenas para não serem exilados ao estado do desemprego. Isso porque o capitalismo mente muito bem que riqueza significa a grande riqueza de poucos, e não a ausência de miséria da maioria.

Entretanto, depois de 2008 o governo brasileiro fez diferente. Colocou o Estado inteiro na manutenção dos altos níveis de emprego. Isso, por conseguinte, manteve o valor do salário diante o valor do capital, o que sobremaneira afrontou, mas também desvalorizou este último. Sem uma massa desempregada de manobra, o capitalismo tupiniquim, não podendo trocar o valor do trabalho por bônus crísicos, teve de ir beber nos seus próprios lucros, coisa que, historicamente, está desacostumado. Aí a velha vaca tossiu.

Com efeito, as duas últimas vezes em que o capital foi comprometido, sem escapatória, no reerguimento e na manutenção social – e, para Thomas Piketty, as duas únicas – foram nas grandes guerras. Do contrário aquelas sociedades solapariam. Todavia, no mais das vezes, como na crise de 2008, em muitos países o trabalhador é que foi comprometido no salvamento do capital. A dívida que os Estados Unidos, mas não só eles, legou aos seus cidadãos para que os bancos – veja bem, os bancos! – não quebrassem, é o procedimento cotidiano do atual sistema econômico.

A falha petista em não seguir a pragmática cartilha capitalista, contudo, tem o grande acerto de fazer com que não só os trabalhadores fossem os afetados e comprometidos pela crise, mas também os empresários, ou seja, o próprio capital. Claro, o vilipêndio do proletariado é tão naturalizado que sequer seria manchete caso estivesse mais uma vez sozinho, afinal, conquanto os lucros permaneçam altos apenas à minoria histórica nada há com que se preocupar. Agora, no momento em que o capital também é cobrado pela crise as manchetes gritam histericamente o fim dos tempos – ou o impedimento do governo que não o deixou de fora da tempestade.

As manifestações “coxistas” de 2015 expressam o descontentamento dos representantes do capital diante da insistência do governo em não desvalorizar os trabalhadores sem antes dispor da riqueza nacional, objeto do desejo dos capitalistas. Como assim gastar com os não ricos aquilo de que os ricos precisam para serem o que são? O instituto de pesquisa Index apontou que 70% dos descontentes com o atual governo têm ensino superior, 40% deles ganham mais de dez salários mínimos, e 80% são brancos. Faltou verificar a porcentagem de cristãos coxinhas, mas podemos afirmar de imediato que se trata da classe que historicamente detém o capital.

Entretanto, a estratégia de não lançar primeiro os trabalhadores aos leões do desemprego, para com isso evitar que o capital fosse devorado, mas iniciar saciando a voracidade da crise econômica com a própria carne capitalista “excedente”, e só por último alistar o trabalhador no exército contra a crise, não pode ser visto como erro por parte dos próprios trabalhadores; muito pelo contrário. Talvez seja a primeira vez na história brasileira que a classe trabalhadora tenha sido economicamente priorizada em detrimento do capital. Quanto mais não seja porque é obra do Partido dos Trabalhadores.

É natural que a ameaçada aristocracia capitalista bata panela, manifeste incredulidade e insatisfação, afinal, um governo ousou não lhe preferir. Além do que, e a contragosto deles próprios, o país permanece democrático e permeável à manifestações, mas não só às suas. Se desde o início da crise – que nasceu internacional, mas que não demorou a se naturalizar brasileira – as coisas tivessem ocorrido de acordo com os preceitos capitalistas, como nos EUA, onde os trabalhadores ficaram sem casa e sem emprego para que os banqueiros mantivessem seus bônus estratosféricos, a nossa elite estaria tão preservada quanto satisfeita.

Porém, os trabalhadores brasileiros – ao contrário dos americanos, e a despeito da crise econômica e da assassina bolha imobiliária mundiais – não viram seus empregos minguarem; tiveram investidas “suas casas suas vidas”; e experimentaram um inédito poder de compra – o que afrontou a elite acostumada com a exclusividade de tal poder. Agora, contudo, como assumiu a nossa presidenta, é a inevitável hora de todos lutarmos juntos para sair do buraco. Obviamente, não se trata de uma boa notícia, mas nela subjaz uma virtude que não deve passar em branco: a crise está mais democratizada do que nunca, e não são mais os trabalhadores que pagam sozinhos o pato. Se o governo do Brasil não agiu de acordo com o “jeitinho capitalista”, essa falha não tem preço. Porém, como há um custo expresso em cifrões, é melhor que ele seja dividido democraticamente.

Capital da garoa e congestionamento

A Mobilize – Mobilidade Urbana sustentável, apurou que o custo dos congestionamentos na cidade de São Paulo é de R$ 50 milhões ao dia; isso sem considerar os conhecidos e não menos elevados custos ambientais, sociais e psicológicos que só engordam essa conta. O exorbitante valor apontado nada mais é que a quantia de riqueza que deixa de ser produzida pelos cidadãos da terra da garoa, diariamente, enquanto ficam presos nas ruas, impedidos de produzir esse mesmo montante. Com um perda desse porte é de se perguntar por que motivo o próprio capital ainda não comprou para si a tarefa, até então estatal, de garantir a plena permeabilidade das vias urbanas. Afinal, uma circulação eficiente circularia com ela mais capital, além de evitar tamanho prejuízo.

Em todos os lugares, mas sobretudo nas grandes capitais, o capital vacila entre sua tendência para entesourar-se, expressa urbanamente no seguro patrimônio imobiliário – uma perversão capitalista cuja mercadoria de valor passa a ser o próprio cofre, e não mais o que ele guarda -, e, em contrapartida, a necessidade intrínseca desse mesmo capital de circular para mais-valer. O imperativo dinâmico do capital é uma das forças, senão a maior, a rasgar na massa urbana as vias através das quais mercadorias e consumidores devem ir ao encontro um do outro. Essa realidade, contudo, congestiona a ideologia da promenade urbana, invetada pelos gregos antigos na livre procissão arquitetônica que seus edifícios propunham, e majorada na Belle Époque parisiense com a construção dos generosos bulevares.

Com efeito, para que o capital circule dentro de uma capital o indivíduo cosmopolitano deve perambular por ela, peripateticamente, como mula desses cifrões. Afinal, é nas avenidas através das quais os cidadãos se deslocam que o capital, através deles, circula. Entretanto, quando uma territorialidade capitalista se torna uma urbe babilônica que precisa de 24 milhões de deslocamentos diários, como São Paulo, algo acontece: essa necessária circulação congestiona. Mesmo sendo causado pelos desígnios dinâmicos do capital o engarrafamento urbano acaba sempre na conta do Estado; embora sejam os cidadãos engarrafados os que pagam por isso. Ora, já estamos bem habituados com o fato de o tempo significar dinheiro, porém, é mais recente a ideia de que o espaço, melhor dizendo, a possibilidade de deslocamento nele, também signifique isso.

O capitalismo paulistano, na consideração de tamanho prejuízo, e também diante do risco de se estagnar – a exemplo de suas avenidas -, deveria ser o maior interessado na eficácia da mobilidade urbana. Claro, já se tem capital explorando tal mobilidade, como o das máfias dos transportes, e não menos o das empreiteiras, mas quase nenhum pagando por sua racionalidade e qualidade. Em vez de liberar ele mesmo as vias para si, esse capital ainda prefere ser tesouro imobiliário estático, como um arranha céu, um shopping center ou um grande condomínio, do que o valor em forma de espaço livre no qual circular sem demora. Todavia, enquanto o próprio capital se esquivar de comprar para si a pecha da eficiência da mobilidade urbana, o que só lhe beneficiaria, somente os cidadãos-mulas-de-capital permanecerão batalhando por isso, engarrafados, mas contra um Estado que, não obstante, só responde paliativamente.

Portanto, a estratégica inércia do capital da terra da garoa, pagando a bagatela de 50 milhões/dia, coloca a “paulistanada” inteira exigindo do Estado soluções para o caos do trânsito cuja causa, no entanto, é a própria necessidade de circulação desse capital. Pode-se concluir que o valor que não é convertido em riqueza conquanto os cidadãos que fazem tal conversão estão presos nas ruas deveria ser muito maior para que o capital urbano imobil-iário se mobil-izasse a ponto de pagar pela eficiência da mobilidade. Apesar da amarga conta, ainda vale mais para o capital materializar-se imobiliariamente do que fluir no sentido contrário. O dinamismo da economia virtual globalizada mente uma movimentação ideal ao capital, mas sua circulação física, a despeito de sua disposição para entesourar-se, permanece a finalidade concreta do passeio capitalista. Por isso a congestão urbana nas grandes capitais, essas catedrais concretas do capital.

A face dinâmica do capitalismo, que diz ser a circulação o maior tesouro, cobra seu preço na mesma moeda. Então, as pessoas precisam circular tanto quanto ele. Todavia, na saturação desse ir e vir, como na cidade de São Paulo, o desejo de movimento do capital é frustrado; mais ainda o dos paulistanos. Estes, por sua vez, permanecem nas ruas congestionadas solicitando o restauro de uma mobilidade perdida, iludidos de que clamam por fluidez a si mesmos, mas na verdade, quando conseguem alguma coisa nesse sentido, quem ganha qualquer mobilidade é sempre o próprio capital. Portanto, até o ponto em que o capital paulistano – mas não só ele – lucrar com a miséria de mobilidade que ele mesma gera, nada fará além de obstaculizar ainda mais os cidadãos e, sobretudo, colocá-los num embate que, entretanto, é seu, pois não é das pessoas o imperativo de mais circular para mais valer.

O desafio petista

O governo do PT enfrenta ao mesmo tempo uma incontrolável queimada econômica e, o que é pior, uma deflagrada corrupção sistemática no seu próprio subsolo. Diante disso, muitos cidadãos e forças políticas, alienados do fato de que todos os partidos políticos são vulneráveis à tais pragas – muitos deles completamente corroídos por elas –, convenientemente gritam “impeachment”. Até parece que é da natureza da política partidária brasileira a imunidade absoluta às adversidades tanto do exercício do poder quando do poder em exercício das demais forças políticas, sociais e econômicas. Ora, tal capacidade e lisura só são adquiridas em parcelas, na lida, sob os olhos democráticos da sociedade, e, como a História ensina, ao passo em que se fazem necessárias. Considerando que nenhuma outra sigla que tenha se assenhorado do “latifundium brasilis” esteve livre de carunchos é no mínimo injusto exigir do PT uma safra absoluta.

Talvez essa onipotência impossível solicitada ao atual governo seja o desejo histérico de uma sociedade que quer a continuidade daquele florescimento econômico experimentado na última década, no qual o Brasil saudava a histórica dívida externa, e a partir do qual os brasileiros tinham gordas colheitas de eletrodomésticos, automóveis, férias no exterior e diplomas universitários, só para citar alguns. Entretanto, durante essa bonança nunca deixou de ser dito que tal fazenda não era obra do PT, mas uma apropriação oportunista das semeaduras do governo FHC. Ainda que seja a mais pura verdade, isso não tira o mérito do partido vermelho, só prova que ele soube honrar, adubar e regar as sementes azuis com um rendimento que governo algum havia alcançado desde a tragédia militar, quiçá antes dela.

Porém, atualmente a lavoura econômica brasileira produz menos arrobas. Com efeito, prevenir o esgotamento do solo é responsabilidade do fazendeiro que o administra. O grito de “impeachment” tem a ingênua virtude de solicitar o revezamento de culturas, mas também o vício oligárquico de substituir uma monocultura por outra. convenhamos, precisa-se de uma boa dose de alienação para desconsiderar as intempéries da economia globalizada, como por exemplo o tsunami crísico de 2008 que solapou as maiores economias mundiais – mas que o segundo Lula soube marolar e a despeito do qual a primeira Dilma manteve o crescimento da nação.

Todavia, a meteorologia petista não foi competente suficiente para prever o refluxo da crise, ou seja, que na recuperação das grandes economias abaladas a tempestade se voltaria para os capachos históricos delas. Mas não só isso, o PT também não soube evitar a erva-daninha da corrupção interna, cuja inimizade declarada foi por muito tempo a sua honrosa pedra de toque. Hoje, portanto, o PT padece das mesmas dificuldades que os demais partidos enfrentaram antes dele: evitar que o país quebre e impedir que a corrupção interna o arruíne.

Dizer que o PT é como os outros partidos tem o primeiro significado, contudo pejorativo e inócuo, de que todos eles roubam igual. Porém, uma significação positiva que escapa disso tudo é que, finalmente, o PT se encontra no horizonte crísico comum a todos os grandes partidos, cujo enfrentamento é absolutamente necessário a uma maturação partidária. Uma vez evidenciada a contaminação do solo petista, que por sua vez o levou à aridez de um descrédito generalizado, esse partido está nu diante de suas próprias contradições. Todavia, essa lixiviação tem a vantagem de estar se dando sob a atenção de todos – claro, com a ajuda erosiva da mídia reacionária -; mas é melhor que seja assim, ou do contrário seria como o artificial canteiro peessedebista, viçoso conquanto as flores sejam de plástico.

Para a felicidade dos seus opositores, o PT não está livre de ruir inteiramente, seja mediante seus próprios antagonismos, seja perante à crise econômica atual. Esta, no entanto, apenas em parte é responsabilidade sua, mas não totalmente, dada a vulnerabilidade imanente à participação no latifúndio liberal globalizado. Todavia, só superando tudo isso é que o Partido dos Trabalhadores provará a que veio. O fato de hoje o PT estar devassado – coisa que os outros partidos evitam por via de mais corrupção – ou fará dele fruta podre, ou essa podridão mesma lhe servirá de adubo revolucionário. A direita brasileira, na histeria em que se encontra, só lhe propõe a primeira opção. A segunda, entretanto, é o mais legítimo e necessário desafio petista.

Bom gosto no Rio a partir de R$25.000,00 mensais

Nasci em uma capital, Porto Alegre, chamada por muitos, não sem razão, de provinciana. Entretanto, mesmo lá já era fácil perceber a capitalização de recursos que uma cidade com esse título angaria para si. Mais tarde, escolhi o Rio de Janeiro para viver, outra capital, cuja característica que salta aos olhos – em oposição à dos pampas – é o cosmopolitismo. Pois bem, como o conceito filosófico de cosmopolitismo é o “desprezo pelas fronteiras geográficas”, a capitalização da Capital fluminense tende a ser mais radical que a gaúcha.

Sob o pretexto de ser um centro a partir do qual as demais cidades se organizam, e do qual tiram proveito, uma capital, na era do capital, pelo contrário, é uma centralidade que organiza a si mesma consumindo recursos e se aproveitando de sua própria periferia. Afinal, se uma cosmópolis, em vez de visar as cercanias que materializam e justificam tal cosmopolitismo, adota, contudo, cosmo-políticas que ignoram e ultrapassam os interesses concretos dos seus imediatos, tal cidade é capital para quem?

Com certeza não era esse tipo de desprezo às fronteiras de que falavam os antigos gregos ao conceituarem o cosmopolitismo. Antes, a abstração das fronteiras, para eles, significava muito mais o compartilhamento dos recursos do que a capitalização geográfica destes. Entretanto, no sistema capitalista tal conceito, a exemplo dos demais, não escapou de ser pervertido. Hoje em dia, o desdém do capital global pelas fronteiras representa, sobretudo, o fim dos limites físicos que, anteriormente, continham ímpetos exploratórios forasteiros.

Ora, para onde, no sistema econômico atual, o capital fluiria senão às capitais? Apesar de tácita, essa resposta é muito irônica. Em contrapartida, de onde esse capital é arrancado? Seria tentador afirmar que do além-fronteiras olvidado pelo cosmopolitismo capitalista. Porém, a voracidade do capital age indiscriminadamente inclusive cis-fronteiras. Por isso não só os cidadãos das cidades periféricas são explorados por suas próprias capitais, mas também, e principalmente, os cidadãos capitais. Com efeito, a perversão capitalista acabou por exigir mais destes que daqueles.

O Rio de Janeiro é o meu exemplo concreto disso. Em vez de os cariocas, e os que moram junto deles, usufruírem das riquezas da capital maravilhosa – afinal, a cidade é para quem senão para os seus cidadãos -, consumir as maravilhas do Rio significa ser queimado como combustível da capitalização dessa cidade. Ora, o aluguel mais caro do mundo porventura beneficia àqueles que tem que pagar por ele? E o ineficiente transporte público, que sob o pretexto de circular os cidadãos conduz, na verdade, fortunas à uma máfia abjeta, faz o quê da vida dos habitantes da capital fluminense senão descapitalizá-la sistematicamente?

O vórtice capitalista, dentro dos limites das capitais, em vez de socializar com os habitantes desses epicentros a abundância de recursos que eles coadunam – doce utopia -, ao contrário, suga com mais força a partir desse centro. A capital, na era do capital, é um tornado que arrasa com mais ímpeto os que estão imediatamente à sua volta. Já os antagonistas, isto é, aqueles que vivem nas pequenas cidades e nos lugarejos distantes, estes assistem pela televisão a tempestade que assola os cosmopolitas.

Entretanto, no centro absoluto de todo furacão há uma coluna neutra, ou seja, um lugar em cujo interior nenhuma força violenta age. Nessa área V.I.P. reina não somente a paz como também o espírito das capitais. Contudo, o que seria esse último? A vida no Rio me recoloca essa pergunta constantemente, e as muitas respostas que venho colecionando acabam por aumentar a dúvida na mesma proporção. Porém, recentemente, lendo O capital do século XXI, de Thomas Piketty, encontrei uma medida que tornou concreto ao menos o limite capitalista das capitais.

Pois bem, o que Piketty afirma categoricamente é o seguinte: é de “profundo mau gosto”, sem dizer burrice, viver numa capital ganhando menos do que vinte e cinco vezes o valor da renda média do respectivo Estado. Vóilá! Um dado econômico que estabelece uma fronteira às capitais capitalistas – que desprezam estrategicamente as fronteiras – é de grande ajuda. Ora, se a renda média do fluminense, de acordo com o IBGE, é pouco menos que mil reais, então, para viver no Rio, e ser um cosmopolita de bom gosto e inteligente, há que se ganhar, por mês, R$ 25.000,00 ou mais; coisa que somente nos quarteirões do Leblon e de Ipanema é regra facilmente ultrapassada.

Como meu rendimento mensal na cidade maravilhosa não é esse, e concordando com a visão de Piketty, tenho três opções, quais sejam: 1) dar um jeito de ganhar vinte e cinco mil por mês; 2) permanecer um “cariúcho” burro e de mau gosto em Copacabana; ou, 3) abrir mão de viver numa capital. O problema de ser interiorano é que a renda diminui ao passo em que se afasta dos centros capitais, como o próprio IBGE aponta. Se com efeito é burrice viver na capital com menos de vinte e cinco vezes a renda média, qual seria, então, a fronteira econômica da inteligência e do bom gosto de uma província? Piketty, no entanto, não diz isso.

Todavia, o balanço que o economista francês estabelece entre renda pessoal e vida cosmopolita apontou a fronteira que separa as capitais das demais cidades no mundo capitalista. Não me pergunto mais sobre a vida na Guanabara, apenas reitero que não posso – e talvez não queira – pagar o capital cobrado nessa capital por uma vida inteligente e de bom gosto. Se em vez da capital carioca fosse a Roma antiga, a Capital Eterna, em seu limite “crísico”, eu, que não seria um patrício, tampouco um bárbaro, deveria fazer como o cidadão romano comum que, diante do preço babilônico da cosmópolis absoluta, escolheu os arrabaldes do mundo para viver sua Idade Média – com sua renda média. Para quem viveu até hoje em capitais, cada vez mais, para mim, capital é viver longe delas.

Guerras X capital

Há uma ideia bastante difundida de que a guerra é essencial ao capitalismo. Ao ver, por exemplo, os Estados Unidos se envolverem estrategicamente em tantas delas, sobretudo produzindo e vendendo mercadorias bélicas, é fácil dar crédito à crença de que o capital precisa guerrear para estar em paz consigo mesmo. Entretanto, Thomas Piketty, no seu “Capital do Século XXI”, demonstra justamente o contrário. Ele afirma categoricamente que nada reduziu a importância do capital e de suas rendas ao longo da história como as guerras.

O economista chegou a essa conclusão contrapondo o homogêneo comportamento do capital ao longo da história ao abalo inédito que ele sofreu entre a Primeira Guerra Mundial e o período que se seguiu logo após a segunda. Até 1910, nada indicava uma queda do capital. Muito pelo contrário, a Belle Époque enriquecia como nunca. Porém, em função do primeiro grande conflito a concentração de capital foi obrigada, nas palavras de Piketty, a suicidar-se. O primeiro golpe foi o investimento bélico inicial de cada país, patrocinado pelas grandes fortunas – claro, sob a especulação, imediatamente frustrada, de retornos fortemente capitalizados. Uma virtude pouco apreciada da guerra, portanto, é o uso do capital acumulado por poucos indivíduos em prol – em defesa – da sociedade toda.

Porém, o segundo e maior golpe contra o capital se deu no pós-guerra. Na sequência do conflito a atividade econômica caiu, a inflação aumentou e o poder de compra diminuiu. Só que nesse ínterim os salários mais baixos tiveram de ser valorizados e protegidos da inflação, muito mais do que os mais elevados. Para que a sociedade não colapsasse foi fundamental evitar a queda do poder de compra das massas. Para tanto, os ricos – que não estavam mais tão ricos assim, afinal, gastaram suas fortunas patrocinando a guerra – tiveram de esperar pelo restabelecimento da sociedade para só então recomeçarem recompor seus patrimônios dilapidados. Outra virtude decorrente da guerra, por conseguinte, é a sobrelevação dos interesses sociais em detrimento dos privados.

Com a Segunda Grande Guerra a receita foi a mesma. Depois dela, novamente o capital de cada país teve de arcar não só com os custos da reconstrução de sua nação, mas também com a manutenção dos salários e do poder de compra de sua respectiva população. Numa época em que o capital ainda não brincava de transferir-se virtualmente pelo mundo em busca de segurança máxima, a bancarrota de um país pressupunha o mesmo destino ao seu capital. Então, cativos da geografia, os capitalistas não escaparam de pagar as contas das grandes guerras, sendo obrigados a dividir o que restou de suas fortunas com a sociedade. Piketty prova que “imediatamente após à segunda guerra os Estados Unidos passaram pela fase mais igualitária de sua história”. Tratando-se da América, isso é revolucionário.

Entretanto, a partir de 1950, depois da segunda batalha global, a paz permitiu ao capital ocupar-se novamente de si próprio. Em cada “boom” econômico subsequente os altos salários e rendimentos do capital cresceram e se distanciaram do valor pago aos trabalhadores. Estes, por sua vez, deixaram de ser prioridade numa sociedade de capitalistas em paz consigo mesma. Por isso Piketty afirma que “as guerras mundiais desempenharam um papel central no processo de redução da desigualdade no século XX”, pois interromperam a desigualdade histórica que viveu pujante até a Belle Époque, sendo, entretanto, restituída paulatinamente depois dos conflitos. “No século XX, foram as guerras que fizeram do passado tábula rasa, e não a suave racionalidade democrática e econômica”, insiste o economista.

Por conta das guerras o capital se reduziu a quase nada em comparação com o passado. Diante disso o trabalho individual passou a significar uma possibilida de futuro tão promissora quanto possuir uma herança, por exemplo. Com as fortunas reduzidas a níveis até então nunca vistos a população pode acumular um mínimo de riqueza e, “pela primeira vez, possuir coletivamente uma parte considerável do capital nacional”, completa Piketty. Mas isso só foi possível pelo consumo do capital historicamente acumulado em poucas mãos, tanto em função da guerra quanto do saneamento dos seus efeitos. Foi a força dos choques globais que roubou, temporariamente, o protagonismo do capital dentro da sociedade.

Ora, até o início do século XX o capital teve um sentido muito claro: os interesses das sempre poucas, porém enormes fortunas. Embora o capitalismo tenha sido desvirtuado de seu sentido histórico entre 1910 e 1950 por conta das duas guerras mundiais, depois disso as coisas voltaram a ser como antes. O capitalismo do século XXI repete, portanto, o capitalismo do passado. Agora, uma coisa que o capital aprendeu foi dosar as guerras nas quais se envolve. Hoje em dia elas são cirúrgicas, pontuais; por um lado, mais econômicas que políticas, e por outro, em caso de ação militar propriamente dita, resumem-se em ataques desferidos por “drones” não tripulados à meia dúzia de prédios inimigos. Entretanto, veiculados televisivamente a todo o planeta. Investimento mínimo com retorno máximo. “Eita” Capitalismo!

Obviamente ninguém deseja uma Terceira Guerra Mundial para que a humanidade possa experimentar uma queda da desigualdade como a do entreguerras, evidenciada por Piketty. No entanto, diante da afirmação do economista de que até hoje só as guerras conseguiram quebrar o capital e convertê-lo em benefício da sociedade, como proceder? A teoria pikettiana aponta dois caminhos que devem ser trilhados paralelamente: estabelecer impostos progressivos sobre o rendimento e a acumulação de capital, para evitar assim a desigualdade absurda, como a da Belle Époque, e investir maciçamente em educação, ou seja, na formação da população, dos trabalhadores. Esta última, em termos econômicos, significa converter capital financeiro em capital humano – o melhor investimento de todos, sem dúvida!

Entretanto, não podemos esperar que essa deliberação parta das esferas do capital. É a população, capacitada democraticamente, que deve designar a mudança de paradigma, pois, antes de ser uma questão econômica, essa luta é essencialmente política. Entretanto, ao sustentar que a queda pacífica da desigualdade será um produto da democracia, Piketty nos deixa com um paradoxo a ser resolvido, pois ele prova também que foram as guerras, e não a participação política democrática, que trouxeram, pela primeira vez na história, um horizonte de igualdade à humanidade. Como então trazer ao mundo, pacificamente, a igualdade que somente a guerra pariu? Thomas Piketty, esperançoso diante dessa contradição, diz que a solução ideal ainda está para ser inventada.

Moedas apátridas

Até o início do século XX as moedas tinham lastro, isto é, um equivalente em ouro ou prata que garantiam o valor delas. A quantidade desses materiais condicionava, portanto, a quantidade de dinheiro disponível. Porém, depois da Primeira Guerra Mundial essa equivalência foi abolida. Doravante, a garantia do valor do dinheiro teria de ser encontrada no futuro.

Com a morte do lastro a possibilidade de se criar dinheiro tornou-se infinita. Todavia, ilimitadas também se mostraram as crises econômicas a partir dessa mudança. A de 1930, que deprimiu o mundo, foi o primeiro grande sintoma da alforria material da moeda.

Para conter essa nova, ilimitada, porém perigosa potencialidade de se criar dinheiro de modo indiscriminado cada país precisou de um banco forte e único – à prova de tentação – com a função de regular seu sistema financeiro e, principalmente, a eufórica alquimia bancária do entreguerras.

Um Estado, sobretudo no mundo democrático capitalista, é uma fronteira político-econômica determinada, cuja gerência cabe a um banco central. Os limites dos países liberais democratas, portanto, são desenhados e mantidos pelos seus respectivos bancos centrais.

Hoje, contudo, vemos bancos centrais que não pertencem a um único país, por exemplo, o neonato Banco dos BRICS, mas principalmente o adolescente – e já problemático – Banco Central Europeu, cuja política econômica cobre dezenove países e cuja moeda única é o Euro. Sob certo ponto de vista isso significa uma renuncia à tradicional soberania monetária.

Pela primeira vez na história vemos moedas sem Estado! Isso lembra o ancestral uso de ouro como moeda de troca: dinheiro sem nacionalidade, porém válido em todos os lugares. Primeiro o dinheiro se libertou do seu pressuposto lastro metálico; agora, das fronteiras nacionais.

Não é o caso, claro, de Estados sem moeda – isso é impossível no atual sistema econômico global -, mas de Estados cujas moedas já não são somente deles. Resultado: nações subjugadas a bancos centrais que não obstante desenham fronteiras político-econômicas muito diferentes das suas.

Isso lembra a dominação da Grécia por Alexandre, o Grande, no século IV a.C. Embora o macedônio tenha deixado os gregos brincarem de democracia e de sobrevivência na bela península mediterrânea, os interesses prioritários, no entanto, eram os dele. A ventura da Magna Grécia, por conseguinte, capitulou diante de um “Rei central”.

Atualmente a Grécia – mas não só ela – tem diante de si um novo Alexandre: o grande Banco Central Europeu. O Estado grego, todavia, na expectativa de crescimento econômico concordou com a substituição do seu Dracma – a mais antiga moeda em circulação do mundo – pelo frescor do Euro, aceitando se submeter aos desígnios de um banco que não o seu.

Entretanto, se foram as moedas e as políticas econômicas que as regulam que fizeram os Estados-nação na era do capital, uma moeda e um banco central que englobem simultaneamente muitos dessas nações não tem como mantê-los intactos se o paradigma econômico não muda.

Uma nova união monetária consequentemente leva a uma nova situação político-econômica. No entanto, a política e a economia de cada país envolvido não desparecem mediante essa união. Ao contrário, no dia-a-dia concreto ambas se tornam conflitantes.

Antes da criação do euro era possível um país europeu, em caso de crise financeira, planejar uma desvalorização da própria moeda e assim revigorar sua economia. A inflação, apesar de seus muitos defeitos, em doses homeopáticas tem essa estranha virtude. Agora, se a moeda e o banco central que a regula não pertencem a esse país, ele não pode fazer isso.

Os bancos surgiram para lidar com dinheiro e cumprem essa tarefa conquanto haja tal “matéria-prima”. Porém, tratando-se de dívidas, só sabem aumentá-las e se relacionar austeramente com os devedores. Uma moeda única, cujo propósito é circular riquezas entre países, em caso de pobreza faz justamente o contrário: estagna aqueles que devem.

As novas moedas apátridas repetem o mal de qualquer moeda: a impossibilidade de circular o avesso da riqueza. Unificação monetária deveria significar também a unificação das dívidas dos países envolvidos. Do contrário, a moeda única fala como o treinador de futebol oportunista que, dependendo do resultado alcançado pelo seu time diz: “eu ganhei”; “nós empatamos”; ou “eles perderam”.

Dividir a pobreza parece uma utopia? Entretanto, moedas sem pátria, bancos sem Estado, e pedaços de papel que valem mais do que ouro também não foram quimeras até que se materializaram?

A lógica dos nossos 35 mil dólares individuais

De acordo com a Credit Suisse Wealth Report, a riqueza mundial atual (a soma do valor de todos os imóveis, bens e serviços existentes) é estimada em 240 trilhões de dólares. Essa é toda a riqueza produzida, direta e indiretamente, pelo homem. Portanto, esses 240 trilhões de dólares pertencem à humanidade.

Como hoje somos aproximadamente sete bilhões de pessoas no mundo, e a riqueza mundial é de 240 trilhões de dólares, então, matematicamente, a cada indivíduo cabe o justo montante de 35 mil dólares.

No entanto, a maioria das pessoas não dispõe dessa justa parcela da riqueza mundial. Ora, quando não se pode dispor do que é seu é porque se está sendo roubado. A maioria das pessoas, então, está sendo roubada da riqueza a que tem direito.

Se a cada ser humano cabem exatos 35 mil dólares – seja da maioria, seja da minoria -, porém, a maioria não possui esse valor, é a minoria, por conseguinte, que está roubando essa diferença para si.

Ora, o crime que a minoria está cometendo é roubar os 35 mil dólares da maioria das pessoas. Se justiça significa pagar pelos crimes que se comete, é justo que a minoria pague à maioria esses dólares roubados.

Para que no mundo haja justiça é necessário que a minoria gatuna pague pelos dólares que roubou. Agora, se ela não fizer isso, e ainda assim a maioria quiser um mundo justo, a maioria deve, portanto, eliminar essa minoria.

Desaparecendo-se com a minoria larápia restará apenas uma totalidade indivisa de pessoas diante dos seus 240 trilhões de dólares. Então, sem ter quem roube o que não lhe pertence, cada um terá de fato os seus justos 35 mil dólares de riqueza.

O vermelho na Grécia das ruínas apáticas

Um povo que sabe o que fazer com suas próprias ruínas é o grego. Não só as arquitetônicas monumentais, mas também a política cotidiana, ambos, escombros há muito contemporâneos deles. O solapamento daquela antiga e virtuosa sociedade se deu por conta do que podemos chamar de a globalização da época, que fez dos diferentes mundos que cercavam o Mar Mediterrâneo um só. Algum paralelo com a globalização atual que faz da Grécia um depredado terminal capitalista da União Europeia?

A História, matéria na qual a Grécia figura distintivamente, tem a revolucionária virtude de nunca se dar por encerrada. Os gregos, por conseguinte, seguem escrevendo a sua. Porém, a partir da vitória do partido de esquerda Syriza, não mais com a austera mão direita. Embora tal caligrafia canhota signifique um desalinho em relação às planilhas de Excel capitalistas e europeias, os gregos poderão lançar, sobre o seu roto papiro sócio-político, novos e íntimos diálogos, ao bom e velho estilo socrático, que lhes esclareçam o que é o bem e o justo para eles próprios – ainda que, para o resto do mundo, essa comunicação pareça insuportavelmente retórica.

Os gregos inventaram a melhor democracia que o mundo já testemunhou, cujo desmoronamento, entretanto, se deu mediante a capitulação que sofreram de Alexandre, o Grande, no século IV a.C. Então, furtados de seu característico e frutífero sistema de governo, e subjugados a um conquistador estrangeiro, os helenos inventaram formas de lidar com a alienação fortuita em respeito ao seu próprio destino. Uma delas foi o cinismo, isto é, a apatia em relação ao devir da sociedade. Os cínicos, por conseguinte, passaram a pregar a autarquia, ou seja, a autossuficiência diante das vicissitudes da vida.

Ora, a autarquia, a autonomia que o indivíduo institui entre ele e o resto, era o oposto da bela democracia grega, pois esta pressupunha o envolvimento total do cidadão na vida e na saúde da sociedade. Uma vez apático, o cidadão se converte num indivíduo isolado, voltado às suas próprias necessidades. Isso, contudo, em detrimento das necessidades globais. A democracia arruinada, doravante, fez controversa carreira no resto do mundo, mas não somente ela. A transversal apatia cínica também! Quantos de nós não se orgulha de ter votado em branco nas últimas eleições?

É irresistível a hipótese de que a busca da autossuficiência individual, efeito colateral da perda dos desígnios sócio-políticos que estruturavam a sociedade grega, tenha sido o germe – não reconhecido – do capitalismo. Afinal, não é capital galgar autarquia diante dos iguais, e em detrimento deles? Não é precisamente no momento em que o indivíduo passa a se ocupar apenas com suas próprias necessidades, agindo somente no sentido delas, que ele é irreversivelmente capitalizado? Ainda que a reificação do capital tenha se dado muitos séculos mais tarde, foi a partir da alienação daqueles cidadãos gregos em relação ao bem estar global de sua sociedade que a capitalização individual fincou pés no mundo.

Por conseguinte, a apatia que a antiga Hélade legou à posteridade depois do roubo de sua democracia por Alexandre, o Grande, da Macedônia, é novamente encenada diante de uma outra “invasão” que a Grécia vem sofrendo. Hoje, porém, o novo capitulador pode ser simbolizado pela austera Angela Merkel, a Grande, da União Europeia. A diferença, contudo, está em que o cinismo de agora se dirige aos conquistadores estrangeiros, não mais aos próprios gregos. E, principalmente, em função da reestruturação da sociedade grega partida pelos governos forasteiros.

Prova disso é a marola de solidariedade que cresce na península mediterrânea depois do tsunami liberal-europeu. Jon Henley, no artigo “Greece’s solidarity movement: ‘it’s a whole new model – and it’s working”, do jornal The Guardian de 23 de janeiro, revela que os cidadãos gregos vêm empreendendo ações populares e independentes para resolver questões fundamentais, como saúde e alimentação, preteridas pelo governo grego em função das exigências das potências credoras europeias. Pode parecer tímido, mas é um movimento que recoloca as escolhas e as ações necessárias à saúde da Grécia novamente nas mãos dos próprios gregos.

Estaríamos diante do renascimento da antiga e direta democracia grega? É cedo demais para afirmar isso. Afinal, o modo corrompido da democracia, ou seja, seu modelo representativo, ainda é a lei, e não só por lá. Infelizmente, a democracia direta experimentada pela Hélade antiga, hoje é taxada de vandalismo pelos representantes dos cidadãos. Entretanto, a atual escolha democrática grega por um governo de esquerda não deixa de ser um ato cínico diante das imposições estrangeiras.

A forma corrompida – representativa – da democracia primeira ganhou o mundo e o futuro. No entanto, mais parece a involução de sua virtuosidade pressuposta. Já cinismo, o modo grego de lidar com a ruína democrática, evidencia, hoje, uma evolução positiva ao arriscar uma nova autarquia. Todavia, essa autossuficiência não é mais aquela que isola o indivíduo da sociedade, mas a que pretende alienar os cidadãos gregos da tirania do mundo global.

Primeiro, os gregos ensinaram o ocidente a ser sociedade. Depois, o aprendiz capitalizado se voltou contra seus velhos mestres. Agora, a Grécia parece dizer cinicamente a seus pupilos desgarrados que eles entenderam mal seus ensinamentos. Reagrupam-se em assembleia, na ágora abalada pela globalização, para mais uma vez tentarem ser uma grande sociedade. Nós, o resto do ocidente que sempre tentou ser tão genial, autossuficiente e próspero quanto os antigos gregos, devemos ficar atentos a atual performance deles. A Grécia contemporânea, a exemplo da clássica, pode estar prestes a produzir novas lições fundamentais à humanidade, que, no entanto, devem ser aprendidas tanto pelos próprios gregos quanto pelo resto do ocidente cujas bases, entretanto, ainda são gregas.

Next Belle Époque Kapitalist

Para onde caminha a humanidade contemporânea que, a despeito do mais sincero humanismo produzido, se contenta em ser combustível e massa de manobra do capital? Há, porventura, força maior a designar os destinos e as volições individuais, as relações entre indivíduos e entre Estados – inclusive se guerra ou paz -, que o capitalismo? Pelo menos há oitocentos anos a resposta é um tácito não! A humanidade vem sendo, por conseguinte, matéria através da qual esse sistema econômico existe e se expande. Então, guiados sistematicamente pelo capital, caminhamos para onde ele precisa que estejamos. Novamente: para onde?

Thomas Piketty, na sua revolucionária obra “O capital no século XXI”, demonstra que marchamos, sem desvio, para o mesmo vigor que o capital tinha nos anos 1900, ou seja, na Belle Époque – uma bela época apenas para o capitalismo, diga-se de passagem. O economista prova que o desenvolvimento do capital se deu de modo gradual e sem abalos, desde a antiguidade – ou pelo menos desde os primeiros registros seguros de acúmulo de riqueza -, até o início do século passado. Esse pródigo destino teria mantido passo firme até hoje não fossem as duas grandes guerras mundiais.

Ao afrontarem a ascensão histórica do capital, Piketty demonstra que as grandes guerras geraram um duplo desentesouramento das riquezas até então acumuladas. Por um lado, inicialmente, no investimento belicoso que somente os capitalistas podiam fazer, mas não as massas de trabalhadores. Por outro, depois das guerras, novamente o capital foi responsável pela reestruturação das sociedades, sendo, portanto, usado em benefício de todos, e não apenas em função de si próprio. Ainda em detrimento do próprio capital, durante os conflitos, e principalmente depois deles, os salários e o poder de compra das massas, fundamentais para a manutenção e o reerguimento da sociedade, tiveram de ser assegurados por conta do capital.

Entretanto, depois das duas guerras mundiais, isto é, depois de 1945, o capital recomeçou a mesma procissão ascendente de antes dos conflitos, explorando tanto a paz quanto o crescimento econômico. Nos últimos setenta anos, os únicos contratempos significativos à re-acumulação de riqueza foram as guerras de tipo Estado-Estado – porém com menor intensidade, pois tais embates não foram globais -, e, surpreendentemente, assegura Piketty, nos períodos de baixo crescimento econômico nos quais, novamente, o capital teve de arcar com os custos da manutenção social, e não só com sua recapitalização pressuposta.

Com Piketty, portanto, caem por terra duas ideias fortemente estabelecidas. A primeira, que a guerra é o instrumento extremo, porém revigorante, do capitalismo. Antes, é o modo com que o capital é devassado, ou seja, usado, contrassenso seu, em prol do Estado e em benefício da sociedade como um todo. A segunda, e não menos importante, é aquela que insiste que o baixo crescimento econômico é ruim para a sociedade. Ora, a estagnação econômica é ruim para o próprio capital, porquanto é ele que não escapa de ser comprometido – e dilapidado – no necessário custeamento da economia. Já os trabalhadores, num contexto de estagnação, voltam a ser o capital principal sem o qual a sociedade não retomará o desejado crescimento, ou seja, valorizados.

Entretanto, apesar de desejado por todos, o crescimento econômico que, segundo Piketty, não privilegia os assalariados, mas sim a acumulação capitalista, é a meta global do planeta. Triste é ver os “proletários de todo o mundo” em uníssono com a estridente voz do capital que só fala em virtude própria. Todavia, esse é o coro da contemporaneidade globalizada. Então, mais uma vez, para onde caminha a humanidade, recitando a sórdida poesia do capital? De acordo com Piketty, a uma nova Belle Époque, tão desigual e subjugada ao capital quanto a dos 1900’, anterior aos grandes conflitos mundiais.

Então, para diminuir o fôlego do capital e para redistribuir as estratosféricas fortunas reacumuladas nos últimos setenta anos, o ideal seria uma mistura entre outra grande guerra e um baixo crescimento econômico? Difícil responder afirmativamente, pois isso vai contra a verdade que o capital há muito vende juntamente com suas demais mercadorias ideológicas. Entretanto, até então foram estes os dois principais instrumentos históricos capazes de deter o inexorável anseio capitalista de acúmulo – e consequente desigualdade.

Entrementes, se através do devir histórico Piketty descobriu que a guerra e a estagnação econômica são ruins para o capital, tais verdades não permaneceram ocultas para o próprio capitalismo. Por isso a fé e o compromisso de toda a sociedade com o crescimento econômico é metodicamente imputado a todos, indiscriminadamente. Também as guerras que o capitalismo empreende – mas que em verdade o estupram – transmutaram-se no sentido de não mais serem globais; sequer do tipo Estado-Estado. As novas e seguras guerras do capital são contra o terror, isto é, contra grupos terroristas, mas não contra um Estado. Ora, por ameaçadores que sejam, por exemplo, a Al-Quaeda, o Hamas ou o Talibã, uma guerra contra eles não ameaçam nem destroem a sociedade a ponto de o capital ser comprometido além da sua conta.

Desse modo, com a humanidade cegamente em função do crescimento econômico pregado pelo capital, e com a compra generalizada do novo produto capitalista, qual seja, a guerra contra o terrorismo, quem caminha a passos fortes, reinstituindo uma nova Belle Époque para si, é o capital. Entretanto, através do bulevar de uma humanidade sempre preterida em função da marcha dos cifrões. Do jeito que vai, a humanidade não evoluirá, mas permanecerá a via de acesso do capital futuro-adentro. Já este, cada vez mais belo e epocal, reconstrói para si um novo quintal, aos moldes daquele do início dos 1900’.

A luta da classe

Da afirmação de que “capital não é o capitalismo, mas a liberdade”, veio a pergunta: “seria a luta de classes o ‘meio’ para alcançar tal liberdade?” Pois bem, dando corpo à utopia de Marx e Engels, certamente sim. Para estes dois, o capitalismo cria duas classes essenciais, quais sejam, a dos capitalistas e a dos trabalhadores, aonde a primeira explora necessariamente a segunda. Entretanto, como os dois já sabiam, “a exploração de uma parte da sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos anteriores”. Sendo assim, a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas é apenas mais do mesmo, visto que o antagonismo entre classes não foi abolido nas relações capitalistas.

Porém, de acordo com os autores do Manifesto Comunista, uma diferença essencial é introduzida pelo capitalismo: a simplificação desse antagonismo em dois campos opostos, o que dramatizou sobremaneira a histórica relação de exploração de uns sobre outros. Segundo Marx e Engels, a classe da “burguesia colocou uma exploração aberta, direta, despudorada e brutal”, diretamente sobre o proletariado. Isso revela que o antagonismo entre ricos e pobres não aconteceu por acidente, não sendo, assim, facilmente revolucionável. Antes, é uma estrutura historicamente construída para figurar dessa forma, ou seja, desigual, a cujos explorados a revolução é sistematicamente bloqueada.

Se para Marx a luta de classes daria conta de libertar os trabalhadores da exploração, era porque ele entendia, de acordo com suas palavras, que “só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária”. Todavia, por que essa verdade locada pelo filósofo na classe explorada não foi capaz de realizar a revolução? A resposta talvez esteja em uma outra afirmação dele que, no entanto contradiz a primeira: “a burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente [as] relações sociais”. Ora, como pode “só” o proletariado ser revolucionário se a burguesia também o é, e “incessantemente”? Seria a classe proletária a possuidora do direito à revolução, mas somente a capitalista a que a efetua como modus oprerandi?

Se ambas as classe são de fato revolucionárias como as frases do filósofo apontam, diante do devir do capitalismo até aqui, resta dizer, portanto, que o potencial revolucionário dos trabalhadores, apesar de existente, é inócuo; ao passo que o dos capitalistas, vitorioso. Então, a promissora luta de classes preconizada por Marx parece ser o meio dos explorados submeterem-se ainda mais à exploração, e não o meio de libertarem-se dela. A luta contra o capitalismo parece acabar sempre em favor do próprio capitalismo! Marx não estaria falando também da classe proletária ao dizer que “a aristocracia feudal não é a única classe arruinada pela burguesia”?

Entretanto, qual foi, e qual é, até hoje, a luta real entre as classes dos trabalhadores e a dos capitalistas que, não obstante, só fez aumentar o poder destes sobre aqueles? Essa luta, materialmente, vem sendo nada além da relação comercial na qual o trabalhador vende a sua força de trabalho para esta ser explorada pelo capitalista, porém, unicamente de acordo com as necessidades deste. Essa relação, todavia, começa e finda com o trabalhador perdendo e o capitalista ganhando. Primeiro, o trabalhador produz para o capitalista por, digamos, um mês, para só então receber o seu salário. Nesse processo, o capitalista usa de graça o trabalho que produzirá não só o dinheiro que irá pagar tal trabalho, como também o seu lucro pessoal. Segundo, e mais importante, o salário recebido pelo trabalhador pela exploração é todo gasto na compra de mercadorias vendidas pelos capitalistas, devolvendo-lhes, assim, a miséria que receberam pela exploração mensal. Ou seja, é o trabalhador que de um lado paga a si mesmo com o seu trabalho, e por outro, enriquece o capitalista comprando as suas mercadorias; fazendo assim com que tudo o que o capitalista investe retorne “engordado” para ele.

Então, Marx pergunta: “O trabalho do proletário […] cria propriedade para o proletário? De modo algum. Cria o capital, isto é, a propriedade que explora o trabalho assalariado”. Está aí o tendão de Aquiles da luta-relação real entre a classe dos capitalistas e a dos trabalhadores. Disso Trotsky já sabia ao afirmar que “o proletariado não pode conquistar o poder dentro do sistema legal estabelecido pela burguesia”. O “capitalismo têm minado em todos os aspectos a construção de uma consciência revolucionária”, reitera o sociólogo James Petras.

A expressão “luta de classes” significa coisas diversas, e inclusive contraditórias. Para os trabalhadores, tal luta, enquanto relação material significa a venda constante da sua força de trabalho a ser explorada, ou seja, a subjugação diante do capitalista; mas, enquanto utopia significa uma inversão disso, em cuja vitória sua seria a classe capitalista a subjugada – o que, no entanto, não aconteceu até hoje. Do lado dos capitalistas, por sua vez, a luta enquanto relação material é a compra da força de trabalho por menos do que ela vale, já com o intuito da obtenção da mais-valia que desemboca na riqueza; porém, para estes, enquanto utopia revolucionária, na qual essa mais-valia permaneceria nas mãos dos trabalhadores que a produziram, essa luta não lhes oferece risco real algum.

O que os capitalistas querem mesmo – ao modo de já desenvolvê-la – é apenas uma relação material e ordinária com os trabalhadores, na qual estes permaneçam oferecendo-se à exploração, sem as lutas de classe realmente revolucionárias como as utopias sustentam. Basta, por conseguinte, não entrar em luta contra os trabalhadores. A classe detentora dos meios de produção usa o seu poder para salvaguardar tal poder mais do que tudo; produzindo, junto com as demais mercadorias, uma fundamental à sua sobrevivência: a repressão à ideias e valores que a ameacem. As lutas que o capitalismo empreendeu, na verdade, foram apenas duas: uma contra a aristocracia feudal, da qual saiu o vitorioso histórico; e outra, que constantemente desenrola, contra ela própria, isto é, a disputa interna entre os capitalistas por mais mercados.

Por conseguinte, a luta de classes que usualmente temos em mente entre capitalistas e trabalhadores, do lado dos capitalistas resume-se em uma relação cotidiana, isto é, na própria ordem do capital, que, sobretudo, deve permanecer ad aeternum. Já para os trabalhadores, essa luta que de um lado é uma relação real, na qual ele jaz subjugado, de outro, enquanto utopia revolucionária, na qual o subjugado é o capital, tal luta é o horizonte do qual o trabalhador, por conta da exploração que sofre, não consegue – e talvez não deva mesmo – desviar os olhos. Por conseguinte, a luta de classes, enquanto embate, é só dos trabalhadores, e não dos capitalistas. Estes, antes, querem a sua ausência. Se uma classe está bem, por que desejar inimigos? Desse modo, a luta que promete libertar os trabalhadores da exploração é apenas a luta de uma classe, a dos próprios trabalhadores.

A luta que envolve as duas classes, a dos capitalistas e a dos trabalhadores, já é o próprio capitalismo em sua saúde plena, de forma alguma aquilo que causaria o seu fim. O capital, em luta, é sempre vitorioso, pois o campo de batalha, as armas e o exército, simbolizados pela fábrica, pelas máquinas e pelos trabalhadores, respectivamente, desde o início do embate já são dos capitalistas. O trabalhador, nessa guerra, só entra para morrer. A luta de classes, portanto, é a expressão de um otimismo que favorece duplamente o capitalista, pois mantém os trabalhadores imersos em uma utopia até aqui inefetiva que, por conseguinte, os submerge cada vez mais fundo dentro do oceano capitalista que, como podemos perceber historicamente, não tem fundo.

O capital prossegue fortalecendo-se, seja na luta que os trabalhadores intentam contra ele, seja na sua relação “tradicional” para com eles. Inversamente, na única relação que o capital lhes oferece, os trabalhadores, infelizmente, são paulatinamente furtados tanto de sua força trabalho quanto da possibilidade de venderem essa força. A instituição materializada disso são as megafavelas que crescem ao redor do mundo, nas quais o proletário explorado entra para, em pouco tempo, tornar-se o “lumpemproletário” sem condições sequer de dispor ou de vender a sua força de trabalho. De acordo com a obra de Mike Davis, “Planeta favela”, na China, 40% da população é favelada; na Índia, 56%; na Nigéria, 80%; em Bangladesh, inacreditáveis 85% da população é favelada, estando abaixo da linha que lhes permitiria participar ativamente da sórdida roda exploratória do capitalismo. Um dos produtos do capital, talvez o mais cruel e desumano, é uma classe trabalhadora cada vez mais incapaz de enfrentá-lo.

A crença revolucionária de Marx de que “a burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros” cada vez mais revela seu teor utópico, pois “hoje os capitalistas não “arregimentam os homens que manejarão as armas” que desferirão o golpe mortal no capitalismo [como pensavam Marx e Engels]. Eles criam milhões de trabalhadores temporários, instáveis, amedrontados, amarrados ao nexo monetário”, aponta Petras. Desse modo, Marx estava errado ao dizer que “o proletariado, como resultado da sociedade moderna, traz em si a missão de suceder a burguesia”. Antes, a missão histórica do proletariado parece ser a vivificação cada vez mais intensa da burguesia; e o ideal da luta de classes, a sucessão dessa vida.

A classe capitalista, atualmente, se reproduz e se fortalece cada vez mais por intermédio de movimentos – investimentos – virtuais que paulatinamente a dispensam tanto da relação com o proletariado quanto da luta deste contra ela. Aliás, como bem ressaltou Petras, “a concentração e centralização de capital em escala global e o desenvolvimento de novas tecnologias são acompanhadas pelo ressurgimento de modos de produção pré-capitalistas baseados na exploração intensiva do trabalho”. A classe do capital, portanto, em vez de enfraquecer-se mediante a luta dos trabalhadores contra ela, nada mais faz que renovar incessantemente o germe de seu reaparecimento. Os enfrentamentos que recebe só a fortalecem.

Trotsky já havia percebido a ingenuidade de Marx e Engels em acreditarem que o capitalismo estaria liquidado antes de passar à sua fase de absoluto reacionarismo. Na verdade, segundo Petras, “hoje, a burguesia conta com o véu de uma retórica “pós-capitalista” para se referir a formas primitivas de exploração”, como que voltando à sua juventude, à incontrolável potência que reside em todo germe. Por outro lado, a globalização do capital fez do trabalhador um corpo global e amorfo, que somente agindo coordenada e também globalmente poderia revolucionar a realidade que o explora. Porém, a dificuldade de concatenar um exército mundial de trabalhadores à revolução é mais um produto do capitalismo que garante a sua perpetuação.

Consoante a isso, a luta de classes revolucionária – que a esta altura deve ser vista como a luta solitária da classe oprimida – é enfraquecida ainda mais devido ao fato de que o trabalhador atual não quer dar cabo do o burguês capitalista. O consumismo, produto essencial do capital, na verdade, faz do rico capitalista o sonho individual e a meta da maioria dos trabalhadores. A luta dos trabalhadores se dá mais no sentido de abandonar a classe a que pertencem, para então emergirem à classe dos seus algozes, do que no intuito de todos, capitalistas e trabalhadores, migrarem para uma classe única, intermediária, e sem desigualdade, como prega a utopia comunista. No capitalismo, ora bolas, todos querem ser capitalistas! O capital só é porque capitalizado por todos!

Infelizmente, a consciência de classe que guiaria os trabalhadores a uma luta realmente eficaz à revolução é sistematicamente solapada pela consciência maestra da classe capitalista. Esta sabe como, além de possuir os meios para capitalizar a sua própria realidade, transformá-la em mercadorias – no mais das vezes ideológicas – que, levadas ao mercado, retiram dos trabalhadores não só a miséria com a qual estes foram pagos para produzirem tais produtos, mas também a força de suas utopias e da realidade de suas necessidades, colocando, por conseguinte, as suas no lugar. A luta dos trabalhadores, até aqui, não é a de classes, mas sim a de uma única classe, a sua própria. Também não é contra os capitalistas, mas contra si mesmos. Em respeito a isso, Marx disse a eles: “Vós tereis de passar por quinze, vinte, talvez cinquenta anos de guerras civis e internacionais, não somente para mudar as condições sociais, mas [principalmente] para mudar a vós mesmos, e tornar-vos aptos a assumir o poder”.

Capital não é o capitalismo, mas a liberdade.

Muita coisa pode ser dita a respeito do “capital”, pois o seu “ser”, bem como todos os demais, conforme a metafísica aristotélica, “se diz de muitas maneiras”. Ora, se o ser do capital tem múltiplos sentidos (históricos, filosóficos, econômicos, etc.), um, dentre esta multiplicidade, merece destaque especial, qual seja, o seu ser primeiro. Então, subsistente ás muitas vozes que expressaram o capital – todas dignas de nota, porquanto expressões através das quais ele vem se revelando a nós – é na sua expressão primeira que reside algo de necessário, a partir do que as demais contingências a seu respeito ganharam vida.

Uma das primeiras investigações acerca do capital vem dos fisiocratas (fisiocracia = o governo da natureza). Ícone deste movimento teórico, François Quesnay, já no início dos 1700, afirmava que a riqueza máxima era a terra, mais especificamente as terras agrícolas, pois era a partir delas que a subsistência humana era produzida. Para a fisiocracia, portanto, capital era possuir e administrar a terra de forma produtiva, visando lucro. Na esteira aberta pelos fisiocratas, se colocaram David Ricardo e Adam Smith, descobrindo que o capital era mais do que simplesmente aquilo (a terra) a partir do que o valor – por conseguinte o lucro – se dava. Suas ideias revelaram um valor até então marginal ao capital: o trabalho e o interesse humanos.

Ricardo modificou o corpo do capital, fazendo dele também a força de trabalho do homem, bem como a produção dela proveniente. Porém, sua grande contribuição foi descobrir o valor que era gerado na circulação dessa produção, teoria ulteriormente desenvolvida por Marx. Smith, por sua vez, dizia que era o auto-interesse, isto é, o egoísmo dos indivíduos o capital que movia a sociedade toda. Para este pensador, seria uma “mão invisível” o que, por um lado, levava os indivíduos a buscarem o que antes não era do interesse deles (lucro, fortuna); e por outro, esta mesma “mão invisível” regularia os auto-interesses globais, baixando o preço dos produtos e aumentando o salário dos que os produziam.

Marx, um dos mais notáveis pensadores da história, iniciou sua teoria criticando Smith devido à sua ingenuidade em crer que era invisível e individual a força do capital; e também a Ricardo, pois este, apesar de considerar a produção humana e a sua circulação o capital da sociedade, pregava que o valor monetário do dinheiro gerado e acumulado dessa circulação não representava o capital. O pensador alemão foi o primeiro a enxergar que capital era a relação do homem com a produção da sua sobrevivência material. Entretanto, de Ricardo, Marx carregou consigo os valores do trabalho e da circulação dos produtos dele provenientes. Em respeito a Smith, sua “mão invisível” transformou-se, nas mãos de Marx, no colapso inevitável do capitalismo, gerado por ele mesmo no seu devir, independente das ações individuais.

Hoje, na teoria econômica da moda, produzida por Thomas Piketty, o capital volta a ser dito enquanto riqueza ela mesma, seja ela em forma de patrimônio imobiliário, ações financeiras, renda ou herança. Interessante é perceber que Piketty não considera a força de trabalho como capital, pois, para ele, capital é o que pode ser “comprado” definitivamente, como as riquezas supracitadas. A força de trabalho, portanto, fica de fora do capital porque, de acordo com os preceitos clássicos do capitalismo reiterados por Piketty, ela pertence inalienavelmente ao trabalhador, podendo ser “comprada” apenas por horas, dias ou meses, retornando sempre à posse do trabalhador no fim do negócio. Caso contrário, tratar-se-ia de escravidão, aonde o comprador, ao adquirir o indivíduo, leva junto, até a morte deste, a sua força de trabalho.

Entretanto, ao excluir a força de trabalho da essência do capital, elegendo a riqueza comprável e armazenável como tal, Piketty diminui, a um só tempo, o valor da força de trabalho ricardiana e a relação marxiana desta com o capital social. Resta o quê? A invisível mão smithiana, porém pikettyanamente pervertida, aumentando o preço dos produtos e reduzindo o valor dos salários. Por isso Piketty visualiza centralmente a acumulação de riqueza como “O capital do século XXI”. Ora, se somente aquilo que pode ser comprável e armazenável é capital – ainda que virtual (ações, investimentos e especulações financeiras) -, a força de trabalho dos homens, apenas “alugável”, deixa de ser o valor principal e, por conseguinte, essa força preterida jaz incapaz de revolucionar a realidade econômica que a pretere.

Tendo percorrido, ainda que superficialmente, algumas das mais conhecidas teorias econômicas que tentaram dar conta do capital, contemplando de certa forma as suas congruências e inevitáveis divergências, o que é, enfim, capital? O passado nos legou muitas ideias sobre isso. Outrossim, o futuro trará muitas outras. Todavia, se muitas coisas podem ser ditas acerca do capital, essa plurivocidade, por sua vez, significa contingência ou necessariedade? Aristóteles responderia que significa esta última, por certo. Assumindo então a visão do antigo grego, de todas as formas que o ser do capital já se disse, das que atualmente se diz, bem como das que ainda se dirá, qual é a mais essencial?

O capital – e a sua majestosa sistematização histórica, o capitalismo – não teria, antes, a sua forma essencial justamente na sua origem, porquanto descontaminado das contingentes especulações científicas que tentaram – e ainda tentam – reificá-lo, sem, no entanto, dar cabo dessa tarefa? Em caso afirmativo, a visão fisiocrata está mais próxima da essência do capital que a pikettyana. A fisiocracia, por contemplar centralmente os valores agrícolas e fundiários característicos do feudalismo, manteve no conceito do capital àquilo contra o que ele veio a ser, isto é, a sua causa. Não podemos deixar de fora do ser as suas causas! Do contrário trataremos apenas de efeitos, e, no final das contas, de contingências. Se o ser do capital é, aristotelicamente falando, tudo o que pode ser dito a seu respeito, aquilo que ele primeiramente foi, mas que ainda pode ser dito, é, portanto, a sua substância máxima.

O modelo econômico feudal foi o solo concreto a partir do qual o capitalismo germinou de forma irreversível. Portanto, algo de essencial ao capital há no feudal. Os desdobramentos históricos pelos quais o capitalismo passa e, sobremaneira, através dos quais ele se diz – ao modo de gerá-los nesse devir discursivo mesmo -, embora guardem verdades acerca do capital, são afastamentos da verdade primeira, mais substancial, do capital. A maior verdade sobre o capitalismo, portanto, contempla o feudalismo, pois foi este que, em sua saturação absoluta, o gerou. Todo resto é ou desdobramento ou interpretação de uma forma inicial essencial.

Logo, o capital foi a forma de valor que o homem inventou-produziu para comprar-pagar um futuro novo para si, livre das estagnadas relações de servidão do feudalismo. Não é que a força de trabalho tenha sido descoberta no ocaso do feudalismo e na aurora do capitalismo. Os escravos antigos e os servos medievais já eram essa força; e os senhores já a exploravam! O que houve foi a invenção da posse e da portabilidade, nas mãos dos indivíduos, de tal força; doravante, negociada e comercializada por eles com a nova classe dos capitalistas. Por conseguinte, capital, essencialmente, foi a necessidade dos homens, todos eles, de se libertarem da intransponibilidade social necessária ao feudalismo, para então experimentarem um destino outro, ainda que ninguém soubesse no que daria.

Porém, antes de afirmarmos no que isso deu, é no vazio dessa resposta que se encaixam todas as interpretações filosófico-econômicas sobre o capital feitas até aqui. Todavia, essencial mesmo foi o passo inicial, ou o empurrão, que deu início à caminhada! Do contrário, nada poderia ter sido dito. Sendo assim, foi quando o homem experimentou uma liberdade até então inexistente, isto é, a liberdade de possuir em si a força que gera a riqueza e que move a sociedade toda, que ele, assenhorando-se diante do seu senhor, pode usar tal força como moeda de troca para usufruir dessa liberdade. Esse homem, portanto, foi a primeira encarnação do capital. Disso decorre que capital é a liberdade ela mesma, independente da forma econômica através da qual se apresente.

Por mais que o sistema feudal possa ser visto como a prisão de cujas muralhas o capitalismo libertou os homens, o feudalismo em si não significava apenas isso. Antes, o regime feudal, por sua vez, também representou uma liberdade inédita, pois ofereceu aos homens um modo de sobrevivência que não a escravidão da antiguidade. Sendo assim, o capital transcende as formas econômicas, inclusive o capitalismo, pois capitais foram todos os movimentos no sentido de o homem conquistar maior liberdade na produção de sua sobrevivência; seja a liberdade em relação às vicissitudes da natureza que a escravidão legou aos nômades; seja a liberdade que a servidão ofereceu aos escravos; e ainda, seja em respeito à liberdade que o capitalismo proporcionou aos servos medievais.

Entretanto, a ideia de Marx de que o capitalismo geraria, com as suas próprias contradições, a sua estagnação, solicitando assim um sucessor histórico-econômico necessário, tal ideia subjaz genérica em todas as formas econômicas experimentadas pela humanidade, dado que todas elas nasceram de um germe essencial e necessário, floresceram, estagnaram e solaparam sob o seu próprio peso. Com o capitalismo não há de ser diferente, ainda que sua força-juventude atual desminta tal destino. O que acontece é que, ao nos afastarmos da essência primordial do capitalismo, afastamo-nos também da liberdade que ele outrora representou. Com isso, nos aproximamos cada vez mais dos efeitos de sua saturação e experimentamos o sabor intenso de suas contradições, o que, historicamente, acaba por figurar como novos grilhões a serem rompidos.

Ora, se capital é a liberdade do homem em respeito à sua sobrevivência, o inicialmente libertário capitalismo, ao aproximar-se de sua saturação histórica, assemelha-se a todos os sistemas econômicos anteriores quando em suas próprias saturações. Portanto, será – se é que já não o é – capital libertarmo-nos do próprio capitalismo! Isso porque o que é capital ao homem, ou seja, a sua liberdade, transcende as páginas históricas pelas quais ele passa. De um ponto de vista diametralmente oposto, a própria história em si é a imanência da liberdade humana, capitalizada. Novamente, em algum momento será capital libertarmo-nos do próprio capitalismo. Capital será, um dia, o pós-capitalismo, ainda que não saibamos, agora, a forma que esse capital tomará no futuro, não obstante, significando essencialmente liberdade. Mantendo proximidade com a essência primeva do capital, liberdade para sobreviver fisiocraticamente, ou seja, apenas sob o governo eterno da natureza.

Restrição material: fábrica de ideologia

Marx e Engels afirmam que o homem individual para-si não tem em si a essência do homem, mas que esta essência, antes, subsiste apenas na comunidade; o que pressupõe necessariamente o intercâmbio entre os homens para que o próprio homem exista. Os filósofos salientam que, de acordo com Feuerbach, são necessários dois homens para representar “o homem”. Ora, isso diz respeito à transformação da teologia em antropologia, promovida pela modernidade, que deslocou a essência da existência – propriedade medieval de Deus – para o próprio homem; e a essência da existência do homem na relação deste com os seus iguais. Doravante, o Ser não estaria alhures, mas sim onde estivesse o “estômago”. Por conseguinte, a ancestral contradição Deus- homem passou a ser substancial apenas entre os próprios homens, dado que cada um possui o seu próprio “estômago”; e a partir deles, os seus interesses conflitantes.

Antes disso, todavia, a crítica filosófica alemã, de acordo com Marx e Engels, limitava-se à crítica das representações religiosas, isso porque ela não investigava seus pressupostos filosóficos, mas dava continuidade ao idealismo hegeliano que mantinha o paradigma filosófico em terreno místico-religioso. Todas as esferas de interação humana, quais sejam, as jurídicas, morais, políticas, etc., eram subsumidas à esfera da representação teológica, o que, sobremaneira, fazia do homem um ser religioso. Se o domínio da religião era pressuposto, também de forma religiosa eram pressupostas as relações de dominação que, cultuadas ideologicamente, culminaram no culto ao Estado. O idealismo hegeliano clássico sustentava tal estrutura mística-ideológica na medida em que, mantendo teologizadas as representações, os pensamentos e os conceitos, fazia deles, dessa forma, os laços da sociedade humana. Em contraposição, os jovens hegelianos passaram a ver tais laços como grilhões inconvenientes, o que os levou à empresa de romperem tais grilhões, para assim reinterpretarem o existente, ou seja, reconhecer o real através de outras representações.

Porém, ao lutarem contra as representações, estes pretensos revolucionários esqueceram-se do mundo real, permanecendo, como os seus antecessores de escola, atrelados a escopos histórico-religiosos. Nesse sentido, Mark e Engels disseram que faltou aos neo-hegelianos encontrarem uma conexão efetiva entre a filosofia alemã e a realidade alemã, isto é, entre a crítica e a realidade material. Essa realidade de que falam os dois filósofos é a de desenvolvimento sem precedente presenciada pela Alemanha do século XVII, mas que, entrementes, ocorria majoritariamente no terreno do pensamento puro, o que, para Marx e Engels, significava o aprodrecimento em ato do ideal espírito absoluto de Hegel. No entanto, felizmente, tal decadência conduzia a filosofia a experimentar novas combinações de pensados. Já o desenvolvimento material alemão acirrou a concorrência entre os indivíduos e valorizou as conquistas materiais, levando a Alemanha a uma mesquinharia material que, no entanto, era dissimulada pelo falatório idealista vigente. Disseram os filósofos que o hegelianismo não enfrentava o contraste entre realidade material e realidade filosófica, tampouco assumia um ponto de vista intrínseco ao problema.

Entretanto, que problema era esse? Ora, para os materialistas Marx e Engels, o problema resumia-se na sua solução mesma, ou seja, na produção dos meios materiais necessários à sobrevivência do homem; na produção dos meios de vida; na produção da vida material. De modo que a produção material do homem não evidencia outra coisa que o próprio Ser do homem no mundo, pois este depende das condições materiais de sua própria produção para ser. Decorrente dessa produção é a troca, o intercâmbio material entre os homens – aquilo que, segundo Feuerbach, legitima a humanidade. Porém, esse intercâmbio é atrelado à produção, e esta à sobrevivência material do homem. Da mesma forma subsiste o Estado, que tem na sua produção, e no intercâmbio dessa produção com os demais Estados, a condição de sua existência real. Portanto, a força produtiva de um Estado depende do desenvolvimento da sua divisão do trabalho, pois é esse o quesito que o capacita tanto produzir como também intercambiar essa produção em benefício próprio. A divisão do trabalho, no sustento do Estado, separa o produzir industrial do agrícola; estes dois do intercambiar comercial, que, entretanto, articula aqueles outros dois. Por um lado há a cisão cidade-campo; por outro, a cidade em duas – esta última em respeito à propriedade –; e, sobretudo, o comércio interligando todas as esferas produtivas doravante cindidas.

Para entender a existência e a especificidade da propriedade, ou seja, as relações materiais entre os homens em uma sociedade basta contemplar a organização da divisão do trabalho desta sociedade. Onde essa divisão não é desenvolvida, isto é, onde a produção se dá por conta da família ou da mão-de-obra escrava, a propriedade é tribal, não particular. No momento em que, na antiguidade, muitas tribos se organizaram em cidades – por meio de contrato social – a propriedade passou a ser Estatal-comunal, a partir da qual surgem a divisão do trabalho, o intercâmbio e a cisão definitiva entre campo e cidade. Entretanto, desenvolveu-se paralelamente a este tipo de propriedade a privada-individual, cujo crescimento acabou por solapar aquela. Já aí vem ao mundo a cisão de classes, representada, por um lado, pela luta entre cidadãos e escravos; e por outro, entre cidadãos com diferentes propriedades individuais, isto é, cidadãos ricos e cidadãos pobres. Na Idade Média surge outro tipo de propriedade, a feudal, instituída pela decadência das cidades, decorrente das invasões bárbaras que sobremaneira destruíram as forças produtivas urbanas, porém, deixando intacta a estrutura de produção agrícola, locada no campo – estável e desenvolvida por conta das necessidades das urbes que lhe faziam frente. Desse modo, estando a propriedade urbana solapada, a agrícola, intacta, tornou-se a atividade principal deste período.

Portanto, o feudalismo opõe-se à cidade ao mesmo tempo em que dispensa a escravidão, valorizando, doravante, o campo e as relações de servidão. Todavia, a estrutura feudal, a exemplo da comunal, era uma associação oposta á classe produtora dominada; apenas as condições dessa produção foram modificadas. Diferente dos escravos que nada podiam possuir ou acumular, os servos, ligados às corporações urbanas, através do trabalho podiam rascunhar um acúmulo de capital – portanto de propriedade -; o que, de certo modo, ofereceu-os uma espécie de liberdade em respeito à vertical relação que a servidão tinha com os proprietários de terra – o valor real da época. Embora o capital individual tivesse uma inicial presença no feudalismo, a propriedade estruturante dessa sociedade era baseada na extensão territorial, cuja subsistência, por conseguinte, solicitava a existência e a intervenção do governo de um monarca. Na Alemanha, por exemplo, a propriedade feudal, bem como o desenvolvimento material que faria a riqueza da época de Hegel, deu-se por conta de influência ação militar.

Se um modelo de produção e de distribuição determinados gera indivíduos determinados, as relações políticas entre eles seguem esta mesma determinação. Sendo assim, para Marx e Engels, a filosofia, em vez de ficar atrelada ao idealismo hegeliano ou à teologia, deveria explicar, sem mistificação, a conexão real e material entre as determinações sociais, políticas e as produtivas. Os filósofos assim afirmam pois os indivíduos do Estado não podem e não devem ser tomados de acordo como são representados pelos filósofos idealistas, mas como realmente são, ou seja, do modo como produzem materialmente suas condições de sobrevivência, independente do arbítrio de quem quer que seja. Os dois filósofos disseram que se a filosofia basear-se nas representações através das quais toma os homens, ela corre o risco de ter como objeto algo ilusório. E mais, Marx e Engels colocam que tal ilusão, cuja medida única é a distância da consciência humana em relação à realidade também humana, reflete diretamente as restrições materiais e as limitações sociais entre os homens. Aqui sobrevém uma questão: uma representação fiel da realidade requeria, portanto, a condições materiais irrestritas e relações sociais ilimitadas?

Ora, se Marx e Engels colocam que a produção de representações está entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material entre os homens, a ausência de representações, isto é, o real em si, pressuporia a inexistência tanto da produção como do intercâmbio material. Todavia, como foi dito anteriormente, o homem só é através do que produz e do que troca. Logo, a existência humana, por estar atrelada à produção, não tem como existir sem representações. Retomando a crítica de Marx e Engels às representações da crítica filosófica idealista alemã que explicam o homem verticalmente, isto é, do céu para a terra – do mundo das ideias ao mundo real -, os dois filósofos combatem-na veementemente dizendo que a filosofia dever partir do chão mundano real a partir do qual o homem produz materialmente a sua sobrevivência. Só então o filósofo estaria livre, munido e seguro para ascender aos reflexos ideológicos e aos ecos desse processo de vida, sem, contudo, tomá-los pela realidade primeira. Marx e Engels reconhecem que os idealismos cumprem uma função sublimatória, demasiado sintomática, todavia necessária na produção material da sobrevivência humana; empiricamente constatável; ligada, sobretudo, a pressupostos materiais.

De modo que é a vida material que deve determinar a consciência, e não o contrário, como queriam os idealistas hegelianos. Outrossim, não é o Ser que deve determinar o indivíduo, mas o indivíduo o Ser. O pressuposto essencial é e deve ser o homem real, e não as representações a seu respeito; apesar de, segundo os materialistas, as representações, enquanto sintoma do real, devirem a posteriori; para não obstante separarem o homem de sua realidade material – aquela que lhe confere Ser – sempre que esta realidade estiver materialmente restrita ou socialmente limitada. Aliás, o tamanho e a força das representações através das quais o homem é tomado – ao modo de tomar-se a si próprio – é o mesmo das restrições e das limitações a que ele está historicamente acometido. Para Marx e Engels, portanto, a ideologia deve ser condenada porquanto é o que o homem produz a partir do momento em que a produção material humana deixa de refletir e contemplar o genuíno Ser do homem.