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Por que “Jamais fomos modernos”?

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Como acreditar na jovem pós-modernidade se, como disse o antropólogo e filósofo francês Bruno Latour no título de seu livro, “Jamais fomos modernos”? O que fez com que nos autodeclarássemos pós-algo que, na verdade, nunca fomos? Somos vítimas culpadas de uma falácia? Mas onde está o ardil? Na modernidade? Na pós-modernidade? Ou em ambas?

Para Latour, “Jamais fomos modernos”, não porque a modernidade tenha sido interrompida, injusta e fortuitamente, por uma vanguarda qualquer, mas, antes, porque, em si mesma, ela é um projeto impossível realizar o que promete. E, como veremos, a pós-modernidade é justamente a reificação dessa impossibilidade; um sintoma; a tentativa de se desfazer o nó criado pelo modus operandi moderno.

Para desatar um outro nó, aquele com o qual a pré-moderna sociedade medieval manteve por tanto tempo juntos natureza, sociedade e Deus, a modernidade, tirando Deus da jogada, separou tudo o que restou de não-divino no mundo em dois polos opostos e absolutamente separados: natureza e sociedade. Dito de outro modo: natureza e cultura. Em suma: necessidade natural e liberdade humana.

O problema do esclarecimento moderno, contudo, era que, tudo aquilo que se apresentava entre estes dois polos irredutíveis, ou seja, os híbridos, não merecia dignidade ontológica, pelo menos até que fosse classificado ou como natural, ou como sociocultural. No cosmos da modernidade havia espaço apenas para: de um lado, objetos; e, de outro, sujeitos. No meio deles, apenas fenômenos, isto é, ocasiões nas quais os sujeitos conheciam os objetos.

E, de acordo com Latour, o calcanhar de Aquiles dessa sistemática e assumida recusa aos híbridos foi a inevitável produção subterrânea de novos híbridos, que, outrossim sistematicamente alienados, acumularam-se até ruir os alicerces da própria modernidade. Em uma imagem, a pós-modernidade é a sintomática visita à ruína da modernidade.

Um exemplo, dado por Latour, de híbrido que não teria como ser abordado pela modernidade, pois ela fazia das coisas ou só naturais, ou só socioculturais, é o buraco do ozônio. Metade natural, metade humano; quase-objeto-quase-sujeito; o buraco do ozônio seria inexplicável fora do laboratório pós-moderno, cujo procedimento é não desconstruir os híbridos para compreendê-los.

Em vez da moderna práxis que transformava os híbridos em entes ou naturais ou sociais, para só então compreendê-los, o que, mutatis mutandis, significava pervertê-los, os pós-modernos, em troca, respeitam a hibridez para compreendê-la em sua realidade. Dessa perspectiva, o buraco do ozônio não seria compreensível descobrindo-se somente suas causas naturais, ou somente as sociais, mas no entendimento de que natureza e sociedade estão inextricavelmente misturadas nele. Mais ainda, ganham qualquer realidade através dele.

A pós-modernidade é uma sobreorfandade. Os modernos eram órfãos orgulhosos de Deus, mas seguiram “rezando” para os anjos caídos da natureza e da sociedade. Assim acreditavam estarem a salvo do inferno dos híbridos que criavam e que sistematicamente enterravam sob seus pés. Mesmo que tenha sido eles mesmos os demonizadores da mistura! Já os pós-modernos queimam inclusive esse desdivinizado panteão dualista.

Sem Deus nem a confortável e moderna distinção entre natureza e sociedade, a pós-modernidade é a laica assunção de que, com efeito, só há híbridos, nada além de híbridos; quase-objetos-quase-sujeitos; relações que, primeira e concretamente, explicam apenas outras relações, outros híbridos; e só idealmente implicam abstrações tais como Natureza e Sociedade puras.

O puro, o ideal, o absoluto, nada disso existe para o pós-moderno. E era justamente dessa realidade sem pedigree que os modernos fugiam nas suas idealidades polarizadas. A primeira delas: a de uma natureza completamente livre de sujeitos, composta apenas por objetos substantivos (necessários) esperando para serem conhecidos. A segunda: a idealidade de sociedades livres da necessidade natural, capazes de serem instituídas e mantidas apenas pelo arbítrio (liberdade) humano.

Assim como os pós-modernos, os pré-modernos não faziam tal separação entre natureza e sociedade. Porém, porque Deus havia criado ambas. O problema dessa univocidade pré-moderna/divina entre natureza e sociedade estava em que era proibido aos homens mudarem seus costumes socioculturais sem violarem a natureza, e vice-versa. Em ambos os casos ofendiam a Deus, à Sua obra. Por isso tinham de ser absolutamente tradicionais. Do contrário, seriam punidos por Ele, seja através do colapso de suas sociedades, seja através de enchentes, secas, pragas ou pestes naturais.

Aliás, foi justamente para serem livres, tanto para mudarem suas sociedades quanto para se assenhorarem da natureza, que os modernos mataram Deus e fizeram da natureza e da sociedade mundos opostos. Só que o movimento de reduzir o infinito cosmo divino em duas instâncias estanques, natureza e sociedade, não permitindo que nada residisse no meio, acabou se tornando uma fábrica de monstruosidades híbridas ainda mais difíceis de serem conhecidas pelo filtro moderno.

E como a modernidade não lida com híbridos, nem mesmo com os que produz alienadamente, ela sozinha não tinha como enfrentar monstros mistos como por exemplo o buraco do ozônio: produto simultaneamente da liberdade sociocultural humana e da objetificação da natureza desdivinizada. Doença que nunca se cura, mas que apenas prolonga a sua própria agonia, a modernidade teve de ser pós-ela-mesma antes que fosse tarde demais. Se ela não era apta aos híbridos, ao menos o sintoma histórico dessa inaptidão deveria sê-lo.

Dessa forma, quando Bruno Latour afirma que “Jamais fomos modernos”, ele quer dizer que, sim, tentamos ser modernos; buscamos reduzir a diversidade ou ao polo natureza, ou ao polo sociedade/cultura; mas que essa aventura não obstante foi incompleta, porque insustentável. E a existência de algo chamado pós-modernidade é prova dessa incompletude; dessa insustentabilidade; da impossibilidade negarmos os híbridos sem produzirmos mais deles.

Em vez de forçar os híbridos ou à natureza ou à sociedade, a pós-modernidade compreende-os em redes de relações com outros híbridos. E se tais relações concretas ainda geram abstrações irredutíveis tais como natureza e sociedade puras, ideais, é porque o modernismo é incorrigível. A virtude, a correção pós-moderna está justamente em não inventar distância entre híbridos reais e polos ideais. Em primeiro lugar, para não distanciar os híbridos de si mesmos; e, em segundo lugar, para evitar que se multipliquem.

“Jamais fomos modernos” é antes uma confissão desiludida que uma constatação surpreendente. Tentamos ser modernos. Apostamos todas as fichas em viver sem Deus e somente entre uma natureza necessária e uma sociedade livre. Mas o sintoma pós-moderno, assim como o híbrido buraco do ozônio, estão aí para não deixar-nos esquecer de que, simultaneamente, as nossas liberdades socioculturais criam naturezas contingentes e a necessidade da natureza constrange as nossas sociedades.

Na pós-modernidade, tudo está em rede; tudo são redes de relações. E segundo essa concepção, as únicas referências para conhecermos e lidarmos com os híbridos reais são os demais híbridos reais, e não referenciais extremos abstratos e absolutos. Explicar essa hibridez somente pela necessidade natural, ou somente pela liberdade humana, como faziam os modernos, é, para dizer o mínimo, deixar metade da explicação de fora. E, sintomaticamente, essa metade reprimida retorna na forma de um novo híbrido, ainda mais difícil de ser explicado. Assim a modernidade nunca conclui seu trabalho. Por isso jamais fomos, e jamais seremos modernos.

Para concluir com uma metáfora, pensemos nos ideais de natureza e sociedade enquanto retas paralelas. Para os pré-modernos, estas retas se encontravam/nasciam no infinito, isto é, em Deus. Já para os modernos, órfãos de Deus, elas nunca se tocavam. Seu encontro era apenas uma distorção de perspectiva, um erro provocado pelos sentidos a ser corrigido pela razão. Enfim, para os pós-modernos, essas retas paralelas são finalmente decompostas em infinitos pontos, que, a partir de então, livres para estabelecerem relações entre si, formam tantas retas transversas quantos forem os pontos “naturais” e “sociais” a serem relacionados.

“Jamais fomos modernos” – e jamais seremos! – porque é impossível reduzir a infinidade de retas que se entrecruzam formando o real a duas únicas, ideais: natureza e sociedade. Oxalá consigamos ser minimamente pós-modernos e não nos esquecermos de que a diversidade, a hibridez que somos e na qual estamos imersos será tanto menos compreensível quanto mais a abstrairmos e simplificarmos; e inversamente, tanto mais cognoscível será ao passo que a complexificarmos em suas reais redes de relações. Já que “Jamais fomos modernos”, assumamos essa impossibilidade. Tal assunção já é a pós-modernidade.

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Violentem-me, meus violentados.

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“Olho por olho, dente por dente” é um antigo princípio de justiça criado na Mesopotâmia que exigia que um agressor fosse punido com o mesmo sofrimento que causou. Hoje em dia, contudo, condenamos tal prática, pois a vemos muito mais como vingança, barbárie, do que como justiça, civilidade. “Politicamente corretos” que somos, preferimos corrigir/educar quem viola leis, regras, tratos, em vez de violá-los na mesma medida. Do contrário, acreditamos, reproduziríamos, duplicaríamos os males dos quais queremos livrar-nos.

Em relação às violências do machismo e do racismo, por exemplo, somos outrossim refratários  ao “olho por olho, dente por dente”. Privar homens de votarem, de uma profissão, de salários iguais ou maiores que os das mulheres, nada disso passa pela cabeça sequer das feministas mais radicais. Abduzir brancos de seus locais de origem para escravizá-los por gerações; chibateá-los quando agem de acordo com os seus próprios arbítrios; obrigá-los a sentarem nos bancos traseiros de ônibus e a usarem banheiros segregados, da mesma forma, parece apenas a continuidade de desumanidades que queremos ultrapassadas.

Civilizada e surpreendentemente, violentadores e violentados históricos concordam que a tarefa mais importante é estabelecermos uma imediata igualdade entre todos. Agora, considerando-se a longevidade e a intensidade das violências machista e racista, essa saída “politicamente correta” não acaba sendo injusta? Pelo menos da perspectiva do “olho por olho, dente por dente”, violentadores privilegiados nunca experimentarem o que é sofrer violência nem serem obrigado ao desprivilegiado é injusto, sem dizer antieducativo.

Porém, como somos politicamente alérgicos ao “olho por olho, dente por dente”, quando feministas e ativistas raciais atuam combativa e irredutivelmente, muitos dizem que são violentas e violentos. Esquecemos, contudo, que tais violências combativas/reativas são sintomáticas em relação às históricas violências machista e racista. Porventura não foi a violência do homem branco que, depois de muito se exercer impunemente, gerou a violência combativa/reativa da qual o próprio homem branco, agora, diz-se vítima, e, covardemente, reclama?

Aqui tocamos no nó “politicamente correto” que, injustamente, ata violentadores privilegiados e violentados desprivilegiados em torno de uma igualdade que, se não é idealizada, ao menos é apressada. No entanto, esta é a melhor saída apenas para os primeiros. Da ruína de sua longeva torre patriarcalista, o homem branco, o violentador privilegiado per se, concorda com perder o seu confortável privilégio somente para passar à condição de igualdade entre ele e seus violentados. De forma alguma cogita a possibilidade de seus velhos oprimidos experimentarem, por um átimo que seja, o privilégio de oprimi-lo. O fim da violência, sim. A contra-violência, jamais!

Por isso interpelações feministas e antirracistas, ao buscarem um simples e privilegiado “lugar de fala” às mulheres, negros e negras, ainda causam tanta polêmica. Quão violento continua sendo para muitos homens ouvirem de uma mulher que eles não podem assediá-la sexualmente? E quão afrontoso foi para muitos brancos e brancas lidarem com a exigência da ativista negra no caso do turbante de Curitiba: “uma branca não pode usar turbante”? Os violentadores privilegiados tremem ao menos indício de sofrerem a violência com que sistematicamente subjugaram seus outros.

O problema de o homem branco, as mulheres, os negros e negras superarem de um só golpe os abismos machistas e racistas que historicamente privilegiaram àquele, passando todos a uma situação de igualdade, é, mesopotamiamente falando, injusto. Mantém uma cruel dissimetria: o violento homem branco perde o título de “senhor” histórico para ser “igual” aos seus violentados, enquanto mulheres, negros e negras passam apenas de “escravos” a iguais. Diante dessa conjuntura, aquele que pudesse tomar o ponto de vista do fim da história certamente concluiria que teria sido melhor ser homem branco: espécie de suprassujeito nunca violentado nem desprivilegiado; no pior dos casos, igual aos demais

Proponho duas metáforas para enxergarmos alguma pertinência na Lei da retaliação mesopotâmia contra o resistente privilégio do homem branco. A primeira, é imaginar o racismo e o machismo, combinados desastrosamente nesse “sujeito privilegiado”, como uma força atuando contra mulheres, negras e negros. Uma vez que a física comprova que uma força só é anulada por outra de mesma intensidade, todavia de sentido contrário, o “olho por olho, dente por dente” feminista e antirracista seria o único maeio de anular o machismo e o racismo.

A outra metáfora é imaginarmos um pêndulo, pendido há milênios para um dos lados, sendo finalmente solto. Seria perverter as leis da física querer que o pêndulo, imediatamente, repousasse no ponto central de equilíbrio, sem balouçar até o outro extremo. A lei da retaliação, de certa forma, reifica esse movimento. Por isso, aceitar que o homem branco passe da situação de total privilégio à de igualdade, sem ver o pêndulo que sequestrou pender para o lado que sempre careceu dele, é manter um privilégio a esse homem branco.

Essa última metáfora, contudo, obriga-nos a imaginar que, no balouçar do pêndulo do privilégio, de lá para cá, tantas vezes quanto for a energia acumulada no sistema, o homem branco, de um lado, e as mulheres, os negros e negras, de outro, serão, alternadamente, violentados e desprivilegiados, e violentadores e privilegiados. Pelo menos até a tensão da nossa desigual sociedade chegar a zero. Os idealistas, obviamente diriam que devemos passar imediatamente à situação de igualdade na qual ninguém é violentado nem desprivilegiado. O realista, contudo, saberá que a humanidade, se é que pode “escreve certo”, o fará sempre por “linhas tortas”.

Deixando as analogias físicas para nos aproximarmos da filosofia, em relação às superações do machismo e do racismo vale lembrar o argumento do filósofo Slavoj Žižek, que sustenta que desigualdade se combate com desigualdade, e não com igualdade. Se tratarmos ricos e pobres igualitariamente, por exemplo, não reduziremos o abismo entre eles, apenas o manteremos. Ao contrário, é só tratando-os desigualmente, ou seja, dando mais aos pobres do que aos ricos; ou tirando mais dos ricos do que dos pobres; que a desigualdade será combatida.

Assim como os ricos só abrirão mão de suas riquezas se forem forçados a tal, e por ninguém menos que os pobres, assim também o homem branco só perderá os seus privilégios fortuitamente, ao ser combatido exaustivamente por mulheres, negros e negras. O “altruísmo” do homem branco ao lutar pela igualdade entre ele e seus violentados será sempre suspeito de ser egoísta, pois, secretamente, pode ser apenas o discurso com que evita ser o violentado da vez. Já as mulheres, negros e negras que lutam apenas por igualdade em relação ao homem branco perdoam-no cedo demais. O que, aliás, é o que ele mais quer, ainda que não mereça isso devido à longevidade e intensidade de sua violência.

Sou obrigado a retornar à metáfora do pêndulo. Talvez não seja o caso de restabelecermos a lei mesopotâmia absolutamente, mas de misturá-la homeopaticamente ao nosso sistema educativo/punitivo. Assim como o pêndulo balouça de um lado para o outro, muitas vezes, antes de encontrar o equilíbrio, no entanto nunca reocupando os mesmos lugares extremos, mas sempre um tanto aquém deles, e sempre em direção ao centro de equilíbrio, assim também o privilégio da violência deveria pendular, de lá para cá, até que sua vil energia se dissipasse completamente. Aí, e somente aí, algo como justiça seria paulatinamente construído.

O problema dessa hipótese, contudo, é contar com a violência justamente no movimento de superá-la. Entretanto, se nos despirmos do sentido traumático, sanguinário com que essa palavra é comezinhamente usada, e privilegiarmos outros sentidos seus, tais como o de “veemência”, “impetuosidade” (em Latim: “violentia”), podemos quiçá conviver mais civilizadamente com ela. Até porque, se o machismo e o racismo são barbarismos assaz resistentes, violá-los, agir com violência contra eles, é construir civilização.

Se essa ideia, dita assim de modo abstrato, parece perigosamente desumana, compartilho aqui exercícios concretos que eu, um homem branco, tenho feito, nos quais me constranjo a ser violentado por aqueles que foram violentados por sujeitos como eu. Um deles, em relação ao machismo: sempre que mulheres me acusam de ser machista, independentemente de serem violentas ou não, ou de eu concordar ou não com elas, está a priori fora de questão a possibilidade de elas estarem erradas, ou de estarem exagerando. Enquanto homem branco, nem eu nem meus violentados devemos confiar no meu discernimento.

Da mesma forma, referente ao racismo, e aproveitando o caso do turbante de Curitiba, mesmo gostando de turbantes, e de certa forma achando que usá-los é elogioso à cultura africana, a partir do momento que uma ativista negra diz que brancos não podem usá-los, compreender as suas razões é imperativo. Não deve estar em questão se ela está certa ou errada, mas, primeiramente, de que modo a sua demanda é fundamental. E, nessa dificuldade, o que me impede de enxergar isso. Se compartilho aqui estes exercícios pessoais é para dizer que, ao permitir que meus violentados violentem-me, encontro uma paradoxal humanidade que argumentação alguma de minha parte traria.

Diante das bestas do machismo e do racismo, qualquer coisa que o homem branco disser será algo como o argumento da doença contra a cura. Se calar alguém é violentá-lo, calar quem há séculos faz tantos outros serem privados de suas vozes é uma violência curativa, mais que necessária. E se o homem branco nunca for calado, violentado pelas violências que sempre cometeu, mas apenas abandonar o seu histórico privilégio para então ser confortavelmente igualado aos desprivilegiados – claro, somente depois que estes deixarem de sê-lo -, tal igualdade outra coisa não significará que um novo nível de desigualdade, só que agora disfarçada de igualdade.

A maior dificuldade de fazer apologia da violência, ainda que terapêutica, contudo, é combiná-la com a contemporânea sede “politicamente correta”. No entanto, a “violentia” latina, ou seja, a “veemência”, a “impetuosidade”; violar no sentido de quebrar regras e costumes; essa violência não pode ser negada às lutas feministas e antirracistas.

Para concluir com uma metáfora banal, imaginemos duas pessoas discutindo e não mais se ouvindo por tagarelarem descontroladamente ao mesmo tempo. Em casos como este, basta um dos interlocutores agir com violência, isto é, violar a confusa regra do diálogo e elevar o tom impetuosamente para que o outro pare, escute, e o verdadeiro diálogo se restabeleça. Pelo menos desse tipo de violência o violento e privilegiado homem branco deve sofrer dos seus violentados desprivilegiados calados há tanto tempo.

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Gentrificação incompleta, ou urbanicídio no centro do Rio de Janeiro

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A Cidade Maravilhosa dispensa apresentações. Já o termo “gentrificação”, não. Principalmente se quisermos que “o Rio”, bem como todas as nossas cidades não percam o que elas têm de realmente maravilhoso: a coexistência da diversidade. Conhecer o significado da expressão “gentrificação” e seus perigosos sentidos sociais, econômicos, políticos e culturais é fundamental para as nossas urbanidades não serem pervertidas pela especulação imobiliária. Há várias modalidades de gentrificação urbana. Todavia, doravante farei relato de uma que, a meu ver, é de uma decadência notável, melhor dizendo, condenável, que tem exemplo triste e concreto no centro do Rio de Janeiro.

Etimologicamente, o nome “gentrificação” vem do francês arcaico “genterise”, significando “de origem gentil, nobre”. Gentrificar uma área urbana, portanto, é fazê-la, fortuitamente, parecer que teve tal origem. A coisa real que o nome designa é a elitização de espaços urbanos, até então de caráter popular; valorização cujo objetivo é o aumento de custos e bens de serviços. O preço imediato disso, por conseguinte, é a exclusão, de dentro desses espaços (regiões, bairros, ruas, praças), de antigos moradores, frequentadores, hábitos e tradições. Ou seja, a gentrificação é sempre o assassínio da urbanidade que a precede. Um urbanicídio.

A elitização de zonas urbanas é velha conhecida do Rio de Janeiro. Um exemplo trágico disso foi a expulsão, em 1957, da favela chamada de “A Cruzada São Sebastião” das margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, para, ali, serem erigidos nobres bairros, com os antigos e populares moradores tendo sido realocados fortuitamente para a famigerada “Cidade de Deus”, na distante Zona Oeste.

Mesmo assim, desde que o Rio se tornou sede oficial, tanto de jogos da Copa do Mundo, quanto da Olimpíada, a gentrificação que na cidade morava passou a ser “carioca da gema” (expressão que designa cariocas filhos de cariocas para se apontar “cariocas de verdade”). A consequência dessa gentrificação olímpica foi que muito cariocas da gema de verdade tiveram de deixar várias zonas da cidade nas quais viviam e/ou trabalhavam para se refugiarem em outras que coubessem nos seus orçamentos, claro, bem distantes dos noveau bolervards gentrificados.

A Gentrificação é espécie de Hidra de Lerna de muitas cabeças. A mais publicizada delas, obviamente, é a sofisticação de espaços urbanos. Outra, que decorre desta, é a substituição de classes sociais mais baixas pelas mais altas nesses espaços sofisticados. Uma outra ainda, cujos efeitos quero pensar aqui, é a gentrificação comercial que cada vez mais transforma o centro do Rio de Janeiro em uma área urbana que não serve nem às elites, nem tampouco aos antigos moradores/usuários do histórico bairro, em outras palavras, ao povo.

Usarei duas ruas do centro do Rio como exemplos desse tipo de gentrificação que, imediatamente, produziram o oposto do que pretendiam: decadência. A primeira delas: a Rua da Carioca; até os anos 2000 um movimentado polo de lojas de instrumentos musicais da cidade do samba, do chorinho e da bossa-nova. Assombrado pelo fantasma olímpico que fez com que, durante alguns anos, o Rio fosse a cidade do metro quadrado comercial mais caro do mundo, o logradouro viu os seus estabelecimentos comerciais rapidamente fecharem, sem, no entanto, nada de novo ou mais nobre tomar os lugares. A vida musical da rua calou completamente. O único som que hoje se ouve por lá é o do ruído dos automóveis reverberando tristemente no corredor de cortinas de ferro cerradas e enferrujadas, suportes para placas de Aluga-se ou Vende-se que, por mais que sejam vistas, não cabem no bolso de quem as vê

A pergunta que em primeiro lugar podemos fazer é: por que expulsar os antigos e tradicionais comerciantes e transeuntes da rua – que tem como nome o gentílico da cidade! – sem que outros, mais ricos e elitizados, os substituíssem? A resposta é mais triste do que se poderia esperar: em vez de apenas sofisticar o comércio que musicava a rua, a “política de terra arrasada” da especulação imobiliária gentrificatória é fazer com que a manutenção estratégica de uma ruína urbana apague quaisquer memórias popularmente simpáticas para, assim, parecer uma solução boa a todos serem construídos ali, por exemplo, antipáticos estacionamentos e shopping centers.

A Rua da Carioca, que inicialmente chamou-se Rua do Egito, depois, Rua do Piolho, tenha talvez de mudar de nome novamente, seja para fazer jus à ruína urbana que atualmente ela é, seja, futuramente, para nomear a “nova cidade” que ali será empreendida pelos interesses do capital imobiliário.

O segundo exemplo que trago é a Rua da Conceição, no movimentado corredor comercial popularmente chamado de Saara, que até alguns anos concentrava lojas essenciais a carnavalescos (na terra do carnaval!), sapateiros, costureiros, estofadores, encanadores, carpinteiros, e toda sorte de artesãos. Depois do tsunami gentrificatório que elevou os aluguéis, toda a variedade da Rua da Conceição foi substituída por um único tipo de serviço. Circular pelo logradouro, hoje em dia, é passear quase que exclusivamente por lojas que, uma depois da outra, vendem produtos para camelôs. Um olhar mais atento mostra ainda que tais lojas vendem todas as mesmas mercadorias. Com a gentrificação, a variedade sucumbiu diante da mesmidade.

Sem dizer que substituir lojas que antes serviam a um leque enorme da população por distribuidoras de bugigangas chinesas que suprem camelôs outra coisa não é que transformar um autêntico comércio oficial em um indesejado comércio informal, porque no mais das vezes ilegal, mediante atacadistas que, no final das contas, são os únicos que podem pagar por lojas legais em um ambiente assim gentrificado.

Só que, convenhamos, de “genterise”, isto é, de gentil, de nobre, essa gentrificação não tem nada, pois as visadas elites de modo algum passaram a frequentar os novos atacadistas que expulsaram os velhos lojistas da Rua da Conceição. Em vez disso, é o povo que, para buscar o que precisa ou deseja, não pode mais fazê-lo no interior de lojas devidamente estruturadas, mas tem de se expor nas congestionadas, sujas e perigosas ruas do centro do Rio onde os camelôs “atendem”, pelo menos até estas ruas serem gentrificadas também.

Aqui chegamos ao ponto que eu mais queria tocar. O centro Rio está sendo vítima de uma gentrificação incompleta, decadente, que expulsa o povo não para trazer elites, mas apenas para expulsar o povo. A lógica perversa dessa gentrificação é a seguinte: se as elites ainda não querem ocupar determinados espaços urbanos, ao menos a especulação imobiliária deve “limpá-los” de povo, e imediatamente, para quando os nobres desejarem, não terem “pedra no meio do caminho” alguma. Se já triste uma cidade ter a sua diversidade capitalisticamente expurgada para que certas zonas sejam privilegiadas às elites, que de certa forma também compõem a diversidade urbana, mais triste ainda é ver essa diversidade expulsa para que a não-cidade, ou seja, a não-diversidade tenha lugar cativo na cidade.

O silencioso corredor de lojas fechadas da antiga e musical Rua da Carioca, bem como a sequência de distribuidoras de bugigangas idênticas para camelôs que agora faz a Rua da Conceição, antes um rol de variedades, ambos os exemplos evidenciam, urbanisticamente, a tristeza reificada de uma gentrificação decadente, que, mesmo que não sofistique lugares às elites, precisa ao menos despopularizá-los imediatamente.

Não me atrevo propor uma solução para problema tão complexo e contra inimigos tão poderosos. Apenas peço que não nos esqueçamos de que, diametralmente oposta à gentrificação está a popularização. Pelo menos assim o povo pode saber qual dos dois movimentos que se digladiam dentro da cidade é o melhor para si, mesmo que, no momento, o movimento elitista esteja vencendo.

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Pós-racismo e desprivilegiação

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A jornalista e escritora Eliane Brum enviou uma arejada carta pública a Thauane Cordeiro, protagonista do “caso do turbante de Curitiba”, intitulada: “De uma branca para outra – O turbante e o conceito de existir violentamente”. Como não poderia deixar de ser, em se tratando de uma carta, Brum falava objetivamente a Thauane, mas, inevitável e subjetivamente a si mesma. E, por se tratar de uma carta pública, intersubjetivamente com seus leitores. E o vento virtuoso desse escrito devia mesmo ser publicizado, uma vez que o bafo úmido do racismo ainda é um resistente vício daqueles que, por trás de seus um crachás “politicamente corretos” seguem reproduzindo a incorreção que é o racismo.

Depois de fazer um elogiável, porque cada vez mais raro, exercício de alteridade, e ter se colocado na pele de Thauane, garota que por conta da leucemia perdeu os cabelos, e que por isso encontrou proteção (estética) no famigerado turbante africano, Brum assume que é mais fácil para ela se colocar no lugar da mulher branca que é Thauane do que no da mulher negra que a interpelou dizendo que “uma branca não pode usar turbante”. Entretanto, em vez do caminho fácil de se colocar do lado daquela com quem mais imediatamente se identificava – a mulher branca Tahuane -, a jornalista optou pela senda mais árdua, qual seja, a compreensão do lugar do outro mais outro que ela tinha em frente – a condição da mulher negra, crítica da apropriação cultural indevida de elementos de cultura negra por brancos.

Então, Brum compartilha com Thauane e seus leitores a contingência de ter nascido branca, em uma cidade de colonização europeia no interior do Rio Grande do Sul, tempos e ventos nos quais o racismo sequer precisava ser dissimulado. Conta-nos ela que nem mesmo para empregadas domésticas, ou para trabalhos dessa sorte, os negros eram solicitados. Vil conjuntura que Brum pensava ter superado somente pelo fato de ter superado as formas despudoradas de racismo em meio às quais cresceu. Mas o monstro do racismo, assim como a mitológica Hidra de Lerna, de três cabeças, faz crescer duas cabeças malévolas no lugar de cada uma que é cortada. Porém, como no mito, a Hidra racista só será eliminada se decepada a sua cabeça principal, chamada de imortal. Que sempiterna cabeça racista então a branca Brum estava cortando de si mesma, e competentemente levando os seus leitores a fazerem o mesmo?

Depois de lembrar-nos da histórica, monumental, fortuita e desumana instituição da subjugação dos negros pelos brancos, Brum constrange Thauane, a si mesma e a todos os brancos e brancas como elas a se ocuparem os lugares superprivilegiados de que os brancos sempre desfrutaram desde que esse mundo racista passou a ser o mundo. E, num ato de louvável consciência e coragem, afirma que, para mudarmos esse quadro, ela e todos os brancos precisam perder tal privilégio, pois tal dianteira outra coisa não é que o racismo per se. Para tanto, o privilégio relativista do qual muitos brancos se valeram ao colocarem o discurso defensivo de Thauane em pé de igualdade com o discurso crítico da mulher negra que a interpelou, esse privilégio deve ser extinto.

Sabiamente, Brum leva-nos a compreender que não deve haver igualdade entre os dois “lugares de fala” quando um deles, o de uma negra ou negro que luta por reconhecimento e identidade no mundo racista no qual vivemos, primeiramente foi privado, não só de sua fala, mas, como a História não nos deixa esquecer, de sua própria humanidade. Brum diz que, mesmo que ela possa usar um turbante, seja porque é livre, seja porque quer homenagear a cultura africana, ela todavia não deve fazer isso a partir do momento que esse outro mais outro do que ela mesma assim o solicita.

Essa postura lembrou-me a de Žižek em relação à desigualdade econômica provocada pelo capitalismo. Contrário à saída fácil, cínica, cretina, neoliberal par excellence, de se reduzir a desigualdade socioeconômica investindo-se na igualdade das partes, o filósofo defende que somente com desigualdade combatemos a desigualdade. Por exemplo, não acabaremos com o abismo entre ricos e pobres tratando-os igualmente. Isso apenas mantém intacto aquilo que inicialmente se quer modificar. Em vez disso, é ou dando mais aos pobres do que aos ricos, ou tirando mais dos ricos do que dos pobres que as desigualdades sociais serão reduzidas. Categoricamente, acabar com a desigualdade exige que ajamos desigualitariamente em favor do lado mais fraco e oprimido, e em detrimento do mais forte e opressor.

Na luta social contra o racismo, isso deve significar que os brancos ou devem abrir mão, civilizada e deliberadamente, de seus lugares de fala diante dos dos negros, ou, nessa dificuldade, serem fortuitamente privados deles. Se essa última opção parece radical, violenta, não obstante deve ser desestigmatizada. Assim como os ricos não abrirão mão espontaneamente do privilégio desigualitário de suas riquezas, mas só o farão se forem – revolucionariamente? – constrangidos a tal, assim também os brancos talvez só deixem de ocupar os seus privilegiados lugares de fala em respeito à luta dos negros por respeito e igualdade mediante constrangimento. O problema do atual “politicamente corretamento”, no entanto, é a priori rechaçar a violência. Todavia, ela não é só bárbara, sanguinária, mas pode ser civilizada, ademais, civilizatória, uma vez que “violar” (raiz semântica de violência) regras e costumes barbarescos como o racismo com o intuito de superá-los é construir civilização.

Num debate sobre o mesmo “caso do turbante de Curitiba” em um programa televisivo, vários jornalistas e comentadores brancos colocavam suas ideias sobre como devemos agir eticamente ante a luta contra o racismo. Mais uma vez, brancos, verticalmente, capitalizando para si o “ordenando o mundo”. Porém, depois de toda a “politico-corretice” branca, a única jornalista negra da mesa, até então calada, nos últimos minutos do programa, diz que, em assunto de racismo, tanto naquele quadro televisivo quanto na sociedade, não são, não serão, e não devem ser os brancos os donos da última palavra, mas os negros. Assim ela encerrou aquela discussão. Foi inevitável perceber o peso cinza no ar, melhor dizendo, o desconforto da maioria branca em ser despossuída, ao vivo e em cadeia nacional, do seu longevo e privilegiado lugar de fala diante de todo e qualquer assunto.

A jornalista negra foi violenta sim. Todavia, não porque foi agressiva nem desrespeitosa, mas, antes, porque violou a regra “politicamente correta” segundo a qual brancos e negros devem ter iguais direitos na luta contra o racismo. Ou, mais radicalmente ainda, porque violou o velho costume de os brancos encerrarem todos os discursos. Da mesma forma, só que nesse caso deliberadamente, Brum abdicou do privilégio intrínseco de sua confortável e historicamente segura condição de branca em nossa sociedade racista para dizer que é o discurso da ativista negra de Curitiba, e não o da branca Thuane, que deve reverberar privilegiadamente sem ser abafado pelo ruído branco. Essa é a lição mais civilizada em relação a casos como o do turbante de curitiba. Eliane Brum, de um lado, dizendo que é através da despriviliegiação fortuita dos brancos. Žižek, de outro, sustentando que só alcançaremos a igualdade quando atacarmos a desigualdade com a desigualdade que a corrigirá.

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Pós-Brasil e combate à corrupção “al Machiavelli”.

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A corrupção que assola o Brasil – que desde o seu princípio assolou, mas que atualmente está mais desnudada do que nunca – levou-me a estudar o combate à corrupção republicana proposto por Nicolau Maquiavel. Teria o fundador do pensamento político moderno um ensinamento válido para a corrompida terra brasilis, na qual empresários midiáticos (João Dória, prefeito de São Paulo) e pastores evangélicos (Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro) elegem-se justamente com discursos antipolíticos, da mesma forma como Trump, que conquistou o cargo político de maior poder no mundo dizendo que “As pessoas estão fartas de política”?

A resposta é: sim. E pelo menos no caso brasileiro, a explicação é a seguinte: se o combate à corrupção maquiaveliano, “velho” cerca de 500 anos, parece inócuo ao nosso corrompido país, “jovem” cerca de 500 anos, isso se deve não à limitação da teoria do italiano, mas, em vez disso, ao alto nível de corrupção da nossa república. Assim como o câncer não quer ser curado, pois seu mórbido desejo é metastasear-se o máximo possível, assim também a corrupção quer crescer sem resistência, até tomar todo o corpo do Estado. Por isso creio ser fundamental conhecer melhor o “remédio” para o mal da corrupção prescrito pelo pensador renascentista da aurora da modernidade.

Antes de combater a doença da corrupção republicana é preciso saber o que é esse mal: a corrupção; e o que é o corpo que ela ataca: a república. Comecemos por essa última. Res publica, ou seja, a coisa pública, é o Estado enquanto propriedade pública, governado em função dos interesses do povo, e não uma res privatam, voltado aos interessesprivados de um ditador, tirano, ou, no caso do Brasil, de um bando de longevos oligarcas.

Dessa perspectiva, vendo que o governo prioriza interesses de empreiteiras, agroconglomerados, canais de televisão e empresas de telefonia, em detrimento explícito dos interesses do povo, seria alienação sustentar que o Brasil é uma res publica. A presente conjuntura grita nos nossos ouvidos que o nosso Estado é uma desavergonhada res privatam. Se, todavia, quisermos insistir no fato de que o Brasil é uma república, o preço a ser pago todavia é assumirmos que é uma república corrompidíssima.

O que, então, para Maquiavel é a corrupção republicana. Conforme diz o italiano, uma república se sustenta através desuas leis e instituições. As primeiras, estabelecendo o que pode e o que não pode ser feito, deveres e direitos de todos. As segundas: fazendo cumprir as leis. Uma república saudável, não corrompida, é tanto aquela na qual as leis são sempre cumpridas por vigilância e competência das instituições, quanto aquela na qual as leis são infringidas, todavia, com instituições que punem/educam os infratores.

Um complicador natural na relação republicana entre leis e instituições é o fato de as leis serem dinâmicas, mudarem conforme as necessidades do povo e a força dele no sempiterno conflito com as elites. Entretanto, é bom que seja assim, uma vez que a liberdade do povo, fundamento das repúblicas, não é um ideal que seja dado ou negado ao povo, mas uma construção real, feita ao longo do tempo. Já as instituições, cujo objetivo é fazer valer as leis, não acompanham as mudanças destas; são estáticas. E é bom que seja assim também, pois instituições que mudassem constantemente, ao sabor dos momentos, não seriam confiável. A virtude de uma instituição é justamente a sua estabilidade diante das mudanças.

Aqui, portanto, vemos que a corrupção está inescapavelmente no horizonte de qualquer república, pois mesmo que leis e instituições cumpram plenamente seus papéis, em algum momento estas estarão defasadas em relação àquelas. E quando as instituições não têm mais capacidade para fazer cumprir as leis, alguns cidadãos se beneficiam disso. Em primeiro lugar, as elites em detrimento do povo. E, em segundo lugar, facções do próprio povo em relação a outras. Quando ambas acontecem simultaneamente, eis a corrupção reificada, ou, na letra de Maquiavel, a República corrompidíssima.

Mas isso significa que a república seja falha em si mesma, e que, portanto, o melhor a fazer é investir em outra forma para o estado? Auto lá! Basta não pressupormos Estados e repúblicas ideais, coisa que Maquiavel ensina do princípio ao fim de sua obra. O inevitável descompasso das instituições em respeito às leis não é um erro, um mal, mas, antes, um fato das repúblicas. O exemplo de Maquiavel para um Estado cujas instituições nunca ficaram aquém das leis era Esparta. O custo dessa “perfeição”, contudo, é que naquele Estado nada podia mudar. Algo antinatural em se tratando de coisas humanas. Criticamente falando, o povo espartano era a priori privado, por exemplo, de desejar, quiçá conquistar novos direitos. Em suma, não era livre.

Se a corrupção, ou seja, a defasagem das instituições ante as leis, é inevitável em uma república, então, combatê-la pode se dar por três caminhos. O primeiro: reformar as instituições para que doravante façam jus às leis existentes. O segundo: mudar as leis para que sejam exequíveis pelas mesmas instituições. Enfim, o terceiro: fazer leis e instituições totalmente novas. As duas primeiras opções são viáveis, porém, têm contra si os riscos de qualquer reformismo – o mal permaneceria presente em pelo menos metade do Estado. A terceira opção, apesar de radical, é a mais indicada por Maquiavel, porquanto estabelece leis e instituições novas, ambas livres dos velhos vícios. Só não devemos chamá-la de “revolucionária” porque o conceito usado pelo filósofo é outro, o de “refundação”.

Para Maquiavel, o único remédio para uma república corrompida é refundar-se. Em outras palavras, o “retorno à origem” dessa república, pois, segundo o renascentista, é lá, e somente lá que leis e instituições estão plenamente alinhadas. Radicalmente falando: confundem-se. O ilustre exemplo de Maquiavel para o seu “retorno à origem” é Roma, cuja virtuosa fundação por Rômulo era repetida sistematicamente na manutenção da saúde do corpo republicano romano ao longo do tempo. Mas oque havia na fundação originária de Roma que, refundado, alinhava leis e instituições e, consequentemente, livrava aquela república da corrupção?

Seria a mítica segundo a qual Rômulo matou o irmão Remo e então fundou Roma? Mas o que diz essa estória? Long story short, que Remo, pretendendoevidenciar que a cidade que o irmão estava fundando era vulnerável e não tinha futuro, pulou a muralha que Rômulo havia recém-construído, e que este, para mostrar que ninguém, nem mesmo um igual – seu irmão gêmeo – poderia infringir a ordem de sua nascente cidade, cometeu um dos fratricídios mais ilustres da história, ficando assim livre para erigir sua cidade que, um dia, seria chamada “Eterna”. Agora, investigar de que forma leis e instituições coincidiram nesse ato mítico e, aliás, bárbaro, porventura não nos afastaria da verdade factual na qual Maquiavel aconselha permanecermos?

Para Maquiavel, o que na verdade havia no princípio de Roma ao qual aquela república retornava para combater as corrupções que a assolaram ao longo do tempo era a virtude de um príncipe ordenador, Rômulo, que não poupou esforços para fazer valer as leis. Até mesmo a mítica encontra pertinência aqui: ao matar Remo por ter infringido a primeira ordem de Roma, qual seja, a muralha da cidade, Rômulo foi ao mesmo tempo a lei a ser cumprida e a instituição que a fez cumprir. Em suma, para Maquiavel, quando uma república estava corrompidíssima, o que ela precisava era de um príncipe virtuoso e corajoso.

Entretanto, como superar essa paradoxal necessidade de um príncipe, de um monarca, justamente por uma república? Sem embargo, era de um príncipe civil, escolhido pelo povo que Maquiavel falava, e não de um monarca que tomasse a cidade à força ou governasse por algum direito divino e/ou hereditário. Com efeito, príncipes podem facilmente tiranizar seus súditos. Estão com a faca e o queijo nas mãos. Não obstante, é quando um príncipe atua não como um ditador dono da res, mas como o primeiro cidadão (princeps) de uma res cuja posse é compartilhada com os súditos, que encontramos a virtude do principado referida por Maquiavel. E não poderia ser diferente, pois, para os mais atentos estudiosos do pensador italiano, ele era absolutamente republicano.

Não há dúvida de que a monarquia é extraordinária – fora da ordem – em se tratando de republicanismo. Contudo, uma vez que a república é a única forma para um estado na qual sua matéria, o povo, pode ser livre, e considerando que a corrupção republicana furta tal liberdade, a corrupção, outrossim, é republicanamente extraordinária. Por isso, quando Maquiavel receita um monarca – desde que civilmente eleito! – a uma república corrompida, assim o faz porque, para ele, “problemas extraordinários exigem soluções extraordinárias”. Um principado civil, metaforicamente, seria uma Unidade de Terapia Intensiva para uma república doente até que ela estivesse curada.

Todavia, não me dei por satisfeito com o maquiaveliano “retorno à origem” como forma de se combater a corrupção republicana romana significando apenas uma volta “terapêutica” à fundação monárquica de Roma na qual lei e instituição se alinhavam na persona de Rômulo. O mito do fratricídio insistia em meus pensamentos que ordem e executor confundidos na mesma pessoa produz despotismos, barbarismos. Onde, então, estaria o virtuoso e crucial ponto originário da fundação de Rômulo no qual leis e instituições se encontraram para produzir res publica, mais especificamente: liberdade para o povo?

Encontrei essa preciosa resposta na monumental obra “Ab Urbe Condita” (Desde a Fundação), do historiador romano Tito Lívio. Depois de narrar detalhadamente o mito da fundação de Roma, Lívio aponta, todavia passageiramente, o que, a meu ver, seja talvez o momento fundacional mais virtuoso, e concreto, ao qual os romanos retornavam sistematicamente para sanar a corrupção que o tempo (o inevitável descompasso das instituições em relação às leis) trazia à sua república. Mas o que diz Tito Lívio sobre isso?

Em primeiro lugar, que a cidade que Rômulo fundara havia sido populada inicialmentesobretudo por excluídos sociais de outras cidades, mercenários desocupados, antigos criminosos, ou seja, toda sorte de gente de índole duvidosa. Antes de criticarmos tamanha abertura, Maquiavel a defende dizendo que, na verdade, tratou-sede uma das grandes virtudes de Rômulo, pois, segundo o filósofo, aceitar indiscriminadamente dentro de suas fronteiras quem quisesse ser romano foi fundamental para, um dia, Roma alcançar o cosmopolitismo que a eternizou.

O grande desafio de Rômulo, por conseguinte, foi o de instituir leis para serem cumpridas por súditos tão pouco civilizados que, como o próprio Rômulo no caso do fratricídio, resolviam seus problemas barbarescamente. Com efeito, seria um idealismo condenável criar leis perfeitas para súditos imperfeitos. Tito Lívio conta que Rômulo teve de resolver duas questões cruciais. A primeira: como deveriam ser as leis de modo que súditos semicivilizados e estranhos a elas pudessem, de fato, observá-las? A segunda: como deveriam ser as instituições públicas de maneira que pudessem punir cidadãos tão rudes de modo civilizante, e não de modo barbarizante?

Aqui já posso apresentar a minha hipótese para a origem precisa – mais precisa do que a que Maquiavel receitou – à qual uma república corrompida deve retornar para combater o seu próprio mal. Essa hipótese, contudo, não refuta a prescrição maquiaveliana, apenas tenta complementá-la. A ideia é a seguinte: para se combater efetivamente a corrupção republicana al Machiavelli, a origem a qual se deve retornar para serem refundadas leis e instituições, pois só assim elas são absolutamente compatíveis e garantem a saúde da república, ou o que é o mesmo, a liberdade do povo, em suma, para fazer tudo isso não basta um monarca corajoso e bem-intencionado, como Rômulo, que confunda em si lei e instituição e que não permita que a sua ordem seja quebrada. Essa origem deve estar no átimo absolutamente realista no qual o Princeps concebe leis e instituições, isto é, a forma do Estado, a partir dos seus cidadãos, a matéria do Estado, e de forma alguma alienado deles.

Se arrisco contribuir com a pragmática maquiaveliana referente ao combate à corrupção republicana é porque não encontrei nos escritos de Maquiavel nada além do “retorno à origem” significando o realinhamento de leis e instituições na figura de um príncipe virtuoso e corajoso. Porém, dando um passo atrás, e pedindo ajuda a Tito Lívio, pude, creio eu, dar um passo à frente de Maquiavel e concluir que tal empreitada significa fazer como Rômulo, isto é: não pensar a forma para o Estado sem, desde o princípio, formatá-la em função da matéria desse estado. Metaforicamente, é agir como um alfaiate, e não ao modo prêt-à-porter.

Todavia, devo reconhecer que a minha hipótese é absolutamente maquiaveliana. Ora, para um pensador a quem só interessava a “veritá effettuale della cosa”, o fato de Rômulo ter pensado a forma de seu estado em função de sua matéria, qual seja, o povo; e, além do mais, ser exatamente isso que qualquer república deve fazer para combater a corrupção que inevitavelmente a assola; para tal pensador essa hipótese não é estranha. Desse modo, creio que minha humilde contribuição deva ser apenas mais uma volta – ou meia-volta – no parafuso realista com o qual Maquiavel, há 500 anos, fixou-se, ilustre e inarredavelmente, na superfície do pensamento político.

Confesso, contudo, que, antes de formular a minha hipótese, o tal “retorno à origem” para se combate a corrupção, que no caso de Roma significava retornar à virtuosa fundação por Rômulo, se aplicado à corrompida república tupiniquim soava demasiado desanimador. O que temos de virtuoso desde o descobrimento do Brasil até a Proclamação da República; entre o esquartejamento do território em capitanias hereditárias legadas a fidalgos da alta aristocracia e a derrota da monarquia pela oligarquia fazendeira, que mentiu ser republicana apenas para governar livremente e instituir uma pseudorrepública, apelidada de “Café com leite” porque nela oligarcas cafeeiros paulistas e leiteiros mineiros revezavam a verdadeira res privatam que era o Estado?

Considerando a origem republicana do Brasil, retornar a ela para se combater a atual corrupção seria o maior tiro no pé. Significa então que o Brasil está condenado à corrupção porque carece de uma origem não corrompida à qual retornar refundacionalmente ao estilo de Maquiavel? Talvez seja o caso de, em primeiro lugar, sermos radicalmente realistas, prudência que o italiano aconselharia, e compreendermos que nunca fomos, de fato, uma res publica; que apenas migramos da res privatam monárquica para uma res privatamoligárquica que, para melhor se manter, aceitou ser pós-verdadeiramente apelidada de república.

Depois de assumirmos a vacuidade da formalidade republicana com a qual as elites enganam o povo, a única coisa que nos resta é reconhecer que a República brasileira ainda está para ser fundada! Por isso a corrupção que furta a liberdade do povo não pode ser combatida republicanamente, porque esta corrupção não é verdadeiramente republicana, mas concretamente oligárquica, e, como tal, sequer é reconhecida pelos oligarcas como corrupção, mas como o seu sempiterno e lucrativo modus operandi. Somente depois que a res for publica, e o povo tão livre quanto as elites sempre foram, é que a prática corriqueira dessas elites será obrigada a engolir a denominação de corrupção.

Como então fundar essa república a partir da “bárbara” oligarquia que ainda governa o Brasil? Politicamente falando, precisamos de um Rômulo tupiniquim que crie formas para a república, isto é, leis e instituições verdadeiramente republicanas observáveis pela matéria do Estado brasileiro, ou seja, os cidadãos; desde que – e isso é fundamental! – ricos e pobres, elite e povo, em suma, todos estejam republicanamente horizontalizados nessa categoria chamada “cidadãos”. Aqui sim podemos, sobretudo devemos falar de Revolução!

O que não podemos é seguir normalizando um pseudo Estado republicano cujas leis, por exemplo, dizem, formalmente, que é crime roubar a riqueza nacional em função de interesses privados enquanto políticos, empresários, e até mesmo grande parte do povo o faz; e isso porque as instituições, que deveriam fazer valer as leis, não têm mais, se é que um dia tiveram, capacidade para fazê-lo. Michel Temer, Aécio Neves, Renan Calheiros, José Sarney, Romero Jucá, Moreira Sales, Paulo Maluf, só para citar alguns – de muitíssimos –, são prova de que o Brasil não é res publica, mas res privatam, e deles.

O combate à corrupção republicana de Maquiavel, contudo, tem a ensinar à res privatam que somos que, em primeiro lugar, precisamos fundar uma res publica. Só assim certas práticas poderão ser reconhecidas como corrupção e doravante combatidas republicanamente, ou seja, com participação do povo. O exemplo da realista fundação das leis Roma por Rômulo dado por Tito Lívio, por sua vez, ensina aos futuros fundadores da República brasileira que ninguém, nem mesmo um gêmeo, um sócio, parceiro do fundador poderá se arrogar o direito de infringir as leis, pois será inescapavelmente punido pelas instituições.

Claro, no Brasil, muitos cidadãos são punidos pelas instituições sempre que infringem as leis, o que até pode convencer alguns de que vivemos em uma república. Mas, verdade seja dita, na maioria esmagadora dos casos são indivíduos do povo que são elencados para encenarem o mito da república brasileira. Até mesmo a recente onda de prisões de grandes políticos e empresários, infelizmente, só estão aí para dar seguimento à fábula republicana que esconde o fato de que vivemos uma crua tragédia oligárquica. Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Marcelo Odebrecht só foram espetacularmente pegos pelas instituições por terem infringido as leis para que os peixes oligarcas verdadeiramente grandes permanecessem livres delas. Pós-modernice par excellence: mudar as coisas para que elas permaneçam exatamente como estão.

Por isso precisamos fundar a república brasileira, para finalmente todos estarmos sob as mesmas leis e à observância das mesmas instituições. Em outras palavras, para que o povo seja tão livre quanto as elites. Não para o povo estar fora do alcance das leis e instituições, como as elites, mas para que estas sejam tão constrangidas a cumprirem as leis quanto ele. Isso significa deixar o concreto Brasil oligárquico no passado e fundar um novo Brasil, pós-ele-mesmo, pós-oligarquia, pós-fábula republicana. Um pós-Brasil fundado do modo como Rômulo fundou Roma, com leis e instituições pensadas de modo realista, isto é, em função do nível de barbárie/civilização dos cidadãos que deverão observá-las. De formas republicanas vazias e de matérias oligárquicas plenas estamos fartos. São essas as “corrupções” que, enquanto não são efetivamente combatidas, impedem que lutemos republicanamente contra a corrupção.

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O bem dito Manifesto de Zuckerberg vs. o maldito algoritmo do Facebook

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Mark Zuckerberg, fundador & dono do Facebook, nesta quinta-feira 16 de fevereiro publicou um Manifesto em Defesa da Globalização. Espécie de “Ponte para o Futuro” para a próxima década de sua rede social, que, entretanto, assim como a golpista tupiniquim, mais mente levar-nos do presente a um futuro melhor do que de fato tem intenção e capacidade para tal. Assim como os nossos políticos corruptos fingem “representar” os interesses do povo enquanto tratam apenas de seus interesses privados, assim também Zuckerberg mente que “na última década o Facebook esteve focado em conectar amigos e famílias”, mas, como qualquer usuário do Facebook “sente na timeline”, a conexão principal vem sendo com empresas privadas e conglomerados midiáticos.

Zuck dirige o seu Manifesto à comunidade. À sua “comunidade”, obviamente. Teria feito bem maior para o futuro se tivesse se manifestado, de preferência silenciosamente, contra o maldito algoritmo de sua rede social, que, sob o pretexto de “criar comunidade”, na verdade produz bolhas de mesmidade cada vez mais incomunicáveis entre si. Ao contrário do que parece, nossos feed de notícias não são janelas que nos conectam à diversidade do mundo, mas um brete virtual através do qual somos constantemente reconduzidos para onde já estamos e de onde é cada vez mais difícil de escapar: nossos arraigados e preguiçosos hábitos e preferências. Se, como dizia Umberto Eco, a cultura de massa dividiu a humanidade em dois tipos: os Apocalípticos e os Integrados; o Facebook, em vez fazer comunidade com esses dois tipos antagônicos, sistematicamente conecta apocalípticos com apocalípticos e integrados com integrados.

Os ensimesmamentos solipsistas que o algoritmo do Facebook produz lembram as mônadas de Leibniz: unidades simples, autossuficientes e incomunicáveis entre si; microcosmos “sem portas nem janelas” que possuem em si a representação de todo o Universo e da relação entre todas as mônadas; mas que não podem exercer qualquer efeito umas sobre as outras. Só que as “mônadas facebookianas” não têm, cada uma delas, “a” representação do Universo, mas sim a “sua” representação. Se as de Leibniz não precisavam “dialogar” com as demais mônadas porque já compartilhavam com elas uma “ideia” fundamental, as do Facebook, em troca, não dialogam pelo motivo inverso: terem, cada uma, uma ideia completamente diferente. Antes de as “comunidades” monádicas do Facebook não quererem ou não poderem estabelecer comunidade entre si, é o próprio algoritmo da rede que furta delas essa possibilidade.

Mais grave do que “a comunidade facebookiana de Zuck” ser, ela mesma, uma mônada ignorante do que é uma verdadeira comunidade, é o fato de ela produzir tantas mônadas ignorantes em relação às demais quantos são os seus usuários; que, se não se percebem como tais, é porque a ausência de “portas e janelas” com a qual estão envoltos mente que é espécie de aquário, cujas paredes, no entanto, em vez de vidros transparentes, são feitas de espelhos. O Facebook é um mentiroso salão de espelhos, como o do Palácio de Versalhes: espetacular, sofisticado, capaz de repetir o mesmo, infinitamente, mentindo que ali está presente o mundo, mas, diferente do que Zuck quer fazer crer, não forma comunidade.

Em outras palavras, Zuck diz que o desafio do Facebook é criar soluções globais para problemas globais. Certamente falta a ele leituras sociológicas de vanguarda, segundo as quais: “para problemas globais, soluções locais”; ideia defendida por grandes intelectuais, como por exemplo, o recentemente finado Zygmunt Bauman, que em seu popular “Confiança e medo na cidade” esclarece que tentar solucionar um problema com o próprio problema outra coisa não é que duplicá-lo, que problematizá-lo. É como querer solucionar o capitalismo com mais capital; a bebedeira com mais álcool; o fascismo com mais egoísmo. O Bom-senso do velho e sensato sociólogo felizmente sobrevive para dizer a Zuck que, se “há pessoas que sentem que foram deixadas para trás pela globalização” – afirmação do dono do Facebook -, o problema é a globalização; precisamente, o modo como ela se dá; seu conceito que não consegue ser realizado. Ora, uma globalização que no final das contas é excludente sequer merecia esse nome.

No entanto, Zuck enche a boca para falar de “globalização” e “comunidade” enquanto o seu algoritmo, sob os ecrãs que simulam unir todos, produz glocalização (separação) e guetos virtuais que, infelizmente, não tardam em se materializarem na realidade. Exemplo disso é a divisão político-ideológica que tem espaço no Brasil atualmente. A incapacidade de “petralhas” e “coxinhas” estabelecerem diálogo, por exemplo, está muito menos em suas reais diferenças ideológicas do que no subterrâneo distanciamento em relação à alteridade que algoritmos como os do Facebook promovem através das redes sociais. Só que um verdadeiro espaço em comum não é aquele que somente “petralhas”, ou “coxinhas” compartilham entre si, sem a presença do outro. A comunidade de que mais precisamos é uma na qual as grandes diferenças possam compartilhar, e civilizadamente, o mesmo espaço.

Ao contrário da Lei de Coulomb, que, vulgarmente falando, diz que na natureza os opostos se atraem e os iguais se repelem -, a imperiosa “Lei Algorítmica do Facebook” é antinatural a ponto de aproximar iguais e separar opostos. Que universo se constrói com isso? Resposta: nenhum, apenas microcosmos insustentáveis; tão instáveis quanto a aproximação fortuita de duas cargas negativas, ou positivas. Aproximar iguais é duplamente burro. Em primeiro lugar, porque iguais não precisam ser aproximados. Tal aproximação já existe, mesmo que não seja noticiada em um mesmo feed. Em segundo lugar, porque a verdadeira comunidade de que precisa o problemático e excludente mundo globalizado é justamente aquela que possibilitará aos opostos compartilharem um espaço em comum; um locus onde “coxinhas” e “petralhas”, Apocalípticos e Integrados, bem como quaisquer pares de opostos que pudermos listar aqui, possam formar um universo humano.

A metáfora que a Lei de Coulomb e o modelo clássico de átomo têm para ensinar a Zuck é a seguinte: assim como a natureza não precisa aproximar elétrons de mesma carga negativa para que formem uma eletrosfera, nem tampouco prótons de carga positiva para que formem um núcleo, mas, em vez disso, junta elétrons com prótons para assim formar uma estrutura estável chamada átomo, assim também o algoritmo do Facebook não deve aproximar ideologias, gostos e práticas iguais ou demasiadamente similares para formar comunidade – iguais se entediam de si mesmos e se afastam! -, mas, em vez disso, sair do caminho dos opostos para que eles possam se atrair livremente. Quando os opostos não estão impedidos de se atrair, os iguais se organizam em função dessa atração.

Não há porque ter medo de deixar os opostos livres para atraírem-se. Como acontece nos átomos, os opostos elétrons e prótons se atraem mais do qualquer outra coisa, contudo, não se tocam; não se fundem; não querem ser o mesmo. O raio da órbita de um elétron é distância mínima que, tanto o elétron negativo quanto núcleo positivo, precisam para manterem, ambos, as suas alteridades. Sabe-se, também, que quem estabiliza essa atração/repulsão entre as partes negativa e positiva do átomo são os nêutrons, sem os quais os elétron se chocariam com os prótons e adeus átomo. Essa metáfora deve servir de exemplo ao futuro algoritmo do Facebook, que deveria se comportar como o nêutron, nem positivo, nem negativo, e por isso mesmo o cimento universal das “comunidades” atômicas.

O Manifesto de Zuckerberg é “politicamente correto”. Todavia, no sentido mais vil da popular expressão, pois, ou se é apenas e autenticamente político, e assim se constrói civilização; promove-se a realização do melhor para a humanidade; ou, ao contrário, não se é político, mas despótico. O vício condenável da político-corretice é querer fazer reluzir um verniz politico, civilizado, onde, na verdade, há um ato despótico que não tem coragem de assumir. E Zuck, nesse sentido, e sem aspas, é politicamente correto: sob a sua vendável apologia de uma “Comunidade Global” jaz o seu maldito algoritmo guetificador. Como se diz no Brasil: prega moral de cueca. Mas Zuck é um capitalista. E um dos mais bem-sucedidos da atualidade. Seu Manifesto, mutatis mutandis, poderia até fazer as vezes do ausente, porque desnecessário, Manifesto Capitalista. Todavia, ninguém deve esperar que a verdadeira comunidade futura, de que já carecemos presentemente aliás, virá de Manifestos tão distantes daquele que realmente se importou com o comum, qual seja, o Manifesto Comunista.

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Linchamento em planta-baixa

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De repente, ouço uma gritaria vinda da av. Nossa Senhora de Copacabana. Vou à minha janela, do décimo segundo andar, para ver o que se passava. Lá embaixo, cerca de dez homens corriam atrás de um garoto sem camisa e descalço, que ziguezagueava entre os carros de um congestionamento.

Nas calçadas, a massa que antes caminhava, somada a que estava dentro de bares e lojas, alinhavam-se junto aos meios-fio, como se estivessem em um camarote. Também devidamente camarotados, eu e dezenas de pessoas nas janelas dos prédios ao redor.

O burburinho, que a princípio não dizia nada claramente, na verdade, era uma centena ou mais de descompassados gritos de “pega ladrão”. Ao mesmo tempo, outras frases eram ouvidas: “arrebenta com ele”; “tem que matar”; “mostra para ele o que ladrão merece”, e por aí vai. Eu não era o único calado nesse Coliseu contemporâneo urbano, mas nós que apenas observávamos éramos certamente minoria.

Então o garoto leva um soco na nuca de um dos que corria atrás dele, e cai, literalmente, na sarjeta da Nossa Senhora. Os gritos de “pega ladrão” perdem lugar para os de “arrebenta”. Não só os cerca de dez homens que perseguiam o garoto começaram a chutá-lo, como receberam reforço de transeuntes/espectadores. Acho que, no final das contas, devia ter quase trinta pessoas em torno do garoto.

Da vista da rua nem devia mais ser possível enxergá-lo. Como, porém, eu estava doze andares acima do espontâneo linchamento, ainda podia ver, em planta-baixa, o corpo magrelo descamisado, encolhido qual feto, protegendo-se do útero violento que o envolvia. E os gritos não paravam. Nem os de ódio, da massa, nem tampouco os de dor, do garoto.

Preocupado com a vida do linchado, foi inevitável lembrar de Foucault, em “Vigiar e Punir”, dizendo que, antigamente, havia uma intensidade de suplício para cada delito, sendo o pior de todos aquele imputado contra o crime de regicídio, ou seja, o assassinato de um rei. Isso serviu para confirmar que a punição que o garoto estava recebendo já estaria sendo excessiva até mesmo para os padrões de mil anos atrás. Seja lá o que o garoto tivesse roubado, o suplício público extenuante que sofria, com certeza, é infinitamente mais criminoso.

Sem pestanejar, eu gritei para pararem; para chamarem a polícia… Então, alguns dos gritos de ódio contra o moleque, tanto os da rua, quanto os das janelas à minha frente, voltaram-se contra mim. Se eu estivesse lá, no nível da rua, certamente não seria somente ofensas verbais que eu receberia por criticar a excessividade da agressão.

Experiência triplamente traumática. Em primeiro lugar, em função da desmedida da agressão contra garoto. Em segundo lugar, por conta da impessoalidade do foco desse ódio, conduzido facilmente a quem quer que fosse contra ele. E, em terceiro lugar, por causa do fascismo explosivo dos meus vizinhos de bairro. Copacabana, a Princesinha do Mar, de uma hora para outra, forma uma turba de linchadores orquestrada por um coro odiento.

Afastei-me da janela para pararem de me ofender. Não mais via o bolo de linchadores em torno do garoto, só os ouvia. O que eu pude observar, no entanto, logo ali, do outro lado da rua, eram quatro soldados do exército – que agora fazem a segurança civil da cidade, devidamente armados com suas metralhadoras -, parados, olhado tudo aquilo acontecer, sem nada fazerem além de balançarem afirmativamente suas cabeças em reposta aos comentários da plateia insana que os cercava.

A polícia não mais funciona na cidade. Por isso os militares vieram fazer o serviço deles. No entanto, estes também nada fizeram além de fingir que estão fazendo o serviço da polícia que nada faz. O que ambos deveria estrar fazendo? Oferecendo segurança aos cidadãos. Mas, pelo jeito, o garoto não cai nessa gentrificada categoria chamada “cidadão”.

No vácuo da segurança pública carioca, são os cidadãos, sem treinamento nem escrúpulo algum, do jeito que podem e movidos por afetos barbarescos, que se arrogam o dever de fazer o trabalho que a polícia e o exército deveriam estar fazendo juntos. Justiça com as próprias mãos, ou, para ser literal, com os próprios pés. Que Leviatã que nada. No caos tupiniquim, é a guerra de todos contra todos.

Se a civilização é um projeto, e aquilo que eu estava vendo doze andares acima era uma planta-baixa desse “working process”, a conclusão, infelizmente nada surpreendente, é que aquelas pessoas, plenas de ódio e de falta de compreensão, não estão construindo outra coisa além da ruína da nossa sociedade. Na verdade, trata-se de um projeto público de demolição.

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Raças vs. Etnias, e a tal da “apropriação cultural”

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Na esteira da polêmica sobre “apropriação cultural” gerada pelo “Caso do Turbante de Curitiba”, qual seja: se uma pessoa “branca” pode ou não usar vestimentas típicas da cultura negra/africana; uma afirmação de ímpeto “politicamente correto” ecoou nas redes sociais: “Não existe raça. Por isso, não existe apropriação cultural”. A frase que pretendia encerrar a discussão, no entanto, levanta importantes questões. Uma delas: se não existe raça (ou qualquer quer nome que a valha) o que dizer de diferenças humanas geneticamente determinadas? Outra: se existisse raça, então existiria “apropriação cultural”? A terceira, decorrente dessa última: por que as culturas, produtos humanos par excellence, seriam inapropriáveis?

Contemporaneamente, ganha força o discurso de que a diversidade humana deve ser explicada pela cultura. Os justos intuitos “politicamente corretos” desse discurso são: a preservação identitária de determinadas culturas; a desconstrução de preconceitos raciais até hoje sobreviventes nas sociedades; e a prevenção contra o ressurgimento de quaisquer ideias de superioridade racial. E para isso, conceitos como os de etnia, povos, comunidades, grupos, tomam o lugar do conceito de raça. Dessa perspectiva, o que constituiria a identidade de uma etnia não seriam características naturais algumas, mas culturais: aquilo que, povos, grupos, comunidades cultuam em comum e que os diferenciam dos demais.

Esse enfoque, porém, não cobre diferenças naturais facilmente observáveis nos seres humanos, como por exemplo as que vemos em alguns esportes, tais como a natação e o atletismo. Independente de suas culturas, os maiores velocistas são invariavelmente negros e negras. Da mesma forma, os mais velozes nadadores são brancos e brancas. Sem desconsiderar consistentes análises sociológicas que apontam que certos esportes são mais elitizados que outros, e que por isso negros e brancos tiveram acessos desiguais a eles, é preciso considerar evidências científicas, sob o risco de sermos pós-modernos, demasiado pós-modernos.

Levando em conta um dado cientificamente irrefutável: a diferença de densidade óssea entre negros e brancos; não é absurdo, nem tampouco desrespeitoso aceitar que, por conta de uma ossatura mais densa, e consequentemente mais pesada em relação à dos brancos, os negros obtém menor performance dentro d’água. Por outro lado, comparativamente aos negros, a menor potência e resistência muscular natural dos brancos os deixa para trás nas pistas de corrida. Atentar a essas diferenças não significa necessariamente ser racista – embora muitos delas se valham e tenham se valido para tal -, mas, essencialmente, racialista.

O racialismo, ou – nome que de fato pouco ajuda – “racismo científico”, é uma “teoria científica das raças humanas” que estuda os tipos humanos a partir de suas diferentes características genéticas hereditárias, tais como, por exemplo, as apontadas acima. Se, para o discurso “politicamente correto”, diferenças culturais explicam satisfatoriamente a diversidade humana, o discurso “cientificamente correto”, por seu turno, não pode deixar de explica tal diversidade sem atentar à diferenças genéticas hereditárias.

O maior desafio dos racialistas, por conseguinte, é o de não serem racistas. Para tal, precisam ser absolutamente críticos em relação às contingências socioculturais e econômicas que, durante séculos, serviram de matéria para que alguns grupos humanos subjugassem desumanamente outros. A insólita virtude do racialismo, no entanto, é ainda se preocupar com diferenças genéticas humanas, todavia ao preço de colocá-las sob um guarda-chuva semântico que apenas atende pelo nome de raças, e isso justamente no contexto contemporâneo, “politica e culturalmente correto”, que, por sua vez, tenta suprimir a pertinência de tais diferenças.

No entanto, eleger a teoria de que as diferenças humanas são apenas construtos socioculturais e não também genéticos/hereditários, mutatis mutandis, é como fechar de vez os livros de ciência para manter aberto O Livro da Teoria da Criação, ou seja, A Bíblia. Ser pós-moderno, demasiado pós-moderno, nesse caso, confunde-se perigosamente com ser medieval, demasiado medieval. Dizer que é o homem, e só ele, que cria as suas diferenças, não é muito diferente do fundamentalismo de dizer que Deus, e só Ele, criou o homem. É anticientificamente dogmático.

A virtude do ímpeto “politicamente correto” contemporâneo em se recusar à diferenciações racialistas está no fato de lembrar a todos que o discurso racialista pode ser facilmente pervertido e apropriado pelo discurso racista. Com efeito, diante do desafio de acabarmos com o resistente barbarismo do racismo, certos discursos e teorias deveriam calar. Pelo menos até a humanidade alcançar um estágio civilizatório no qual tratar, aberta e cruamente, de diferenças genéticas não ofereça riscos de que certos grupos se considerem superiores e, por conta disso, subjuguem outros.

O vício do discurso “politicamente correto” que refuta as diferenciações racialistas (Não há raça!), no entanto, está em não reconhecer o seu próprio Calcanhar de Aquiles. Ideias de superioridade racial, bem como os males que elas causaram e ainda causam, não estão prescritas em gene algum, mas se justificam de forma muito mais clara culturalmente. O tropeço “politicamente correto” está em não reconhecer que os maiores males podem se justificar mais eficientemente na contingência de discursos culturalistas do que na verdade necessária de dados científicos.

Apesar de a contemporânea politico-correção em respeito à construção da igualdade entre as pessoas exigir que entendamos raça tão somente enquanto um constructo social perigoso, a antropologia e a sociologia, por exemplo, sabe muito bem que diferenças genéticas/fenotípicas afetam e organizam a vida de grupos humanos. Se, por um lado, tais diferenças provocaram e sustentam desigualdades sociais traumáticas, por outro lado, contudo, estabelecem pertenças culturais de valor e acolhimento insuperáveis, ou, para dizer o mínimo, humanos.

Diante da atual força do discurso “politicamente correto”, os cientistas de modo algum deixam de estudar as diferenças genéticas humanas. Apenas são constrangidos a usarem nomes que não causem, digamos assim, “polêmica política”. Como dito antes, em vez de raças: etnias, povos, grupos, comunidades, etc. No final das contas, e infelizmente, a político-correção muitas vezes se dá por satisfeita com meras vitórias nominalistas. Pós-modernice todavia condenável; pois, como provoca Žižek: o pós-moderno é aquele que quer mudar tudo desde que as coisas permaneçam como estão. Assim dá continuidade à sua luta, o que realmente importa a ele.

Todavia, os mesmos riscos e problemas socioculturais dos quais os “politicamente corretos” querem se ver livres não desaparecem ao apenas serem mudados os nomes mediante os quais se quer definir diferenças naturais dentro da humanidade. Ora, se o conceito de raça, por questões culturais, pôde gerar ideias de superioridade racial, os de etnia, de grupo, outrossim podem sustentar ideias de mesmo e vil calibre.

Para se ser “cientificamente correto” hoje em dia é preciso ser ao mesmo tempo “politicamente correto”. Até aí tudo bem. Nada de errado os cientistas serem devidamente civilizados. O mesmo, entretanto, não pode ser dito dos “politicamente corretos”, cujo discurso insiste em ser refratário a certas verdades científicas. Por isso dizem, por exemplo, que “raças não existem”, como se aquilo que racialistas estudam e comprovam inexistisse. O problema de se crer cegamente que tudo é construto social é que aquilo que precede a cultura, e que de forma alguma é anulado por ela, qual seja, a natureza, não é também determinante na existência humana.

A natureza existe, sem a menor sombra de dúvida, mas não foi feita por homens e mulheres, nem tampouco para eles. Dessa visada, é outorgar-se espécie de divindade querer menosprezar determinações naturais. Por outro lado, o que é feito por e para homens e mulheres é a sociedade, a cultura. Somente aí podemos agir como se fôssemos deuses. No entanto, não ao estilo do Deus cristão: único, onipotente e onisciente; mas no máximo ao modo dos deuses do paganismo: um panteão povoado por divindades sem o qual, em idas eras, a humanidade não se reconhecia nem se explicava.

Mais problemático ainda é a político-corretice de se sustentar que todas as diferenças humanas atendem pela acunha de culturais e ao mesmo tempo defender de que “não há apropriação cultural”. Com isso dizem que diferentes etnias, grupos, são inconciliáveis; alienígenas uns aos outros. Cindem a humanidade de modo irreversível. Felizmente, a simples experiência mostra que estão errados. Quaisquer povos, comunidades, podem se apropriar da língua e dos costumes de quaisquer outros. O problema do “politicamente correto” está em achar isso incorreto politicamente.

Se a língua é um dos mais inarredáveis fundamentos de uma cultura, e se o diálogo é a base da civilização, então, sem se apropriarem no mínimo das línguas uns dos outros, povos diversos nunca poderiam estabelecer relações civilizadas entre si. Por que com outros elementos culturais seria diferente? Dizer que “não há apropriação cultural”, em outras palavras, é condenar as diferenças a espécie de eterna barbárie. Sim, apropriamo-nos culturalmente de elementos de outros grupos, mas isso não significa necessariamente furtar-lhe suas identidades. Antes, é um passo civilizado, pois se dialoga com o outro ao se agir, pensar, falar como ele; em suma, ao se apropriar de sua cultura.

Então, a frase “Não há raça! Por isso não há apropriação cultural” é a saída mais fácil, todavia mais burra, para a complexa e interminável epopeia humana chamada civilização. Apropriação cultural há! E é ela que faz com que o mundo não recaia na barbárie. E, pelo menos do ponto de vista racialista, raças há! E são elas que explicam diferenças naturais que conjunturas culturais não o fazem nem tem como fazê-lo. Se ser “politicamente correto” impede que se compreenda as coisas também desse modo, desculpe-me, tal “correção” merece outro nome: limitação.

Os grandes e mais civilizados povos da antiguidade, o grego e o romano, tinham por bárbaros aqueles que se recusavam a apropriarem-se de suas culturas e que preferiam permanecer fechados em suas próprias. Roma, muito mais do que a Grécia, era um convite à alteridade. Qualquer um podia ser romano. Bastava apropriar-se de alguns costumes e leis para se desfrutar da pax romana. Não só há apropriação cultural, como ela é uma virtude humana, quiçá uma das maiores. Sem ela, não seriamos civilizados, mas bárbaros isolados em nossas próprias culturas.

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Radicalismo “politicamente correto” e civilização

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A expressão “politicamente correto” é redundante. Não há incorreção quando somos, de fato, políticos. Dentro dessa relação, até as diferenças mais irredutíveis não são e não devem ser vistas como erros, mas como matéria da política. Radicalmente falando, ou agimos politicamente, ou, em vez disso, somos despóticos. Se há algum erro, ele pertenceria ao segundo caso. A invenção da política pelos gregos se caracterizou justamente pela conversão do despotés (déspota) em polités (político). Dessa perspectiva, acusar alguém de ser “politicamente incorreto”, na verdade, significa chamá-lo de bárbaro.

Todavia, não pretendemos ser tão radicais quando, vulgarmente, apontamos a político-incorreção em um de nossos pares. O mais das vezes, queremos apenas denunciar, quiçá corrigir uma civilidade incompleta, falha, que precisa de um ajuste para se realizar plenamente. O problema dessa crítica, contudo, é pressupor que a civilização seja um projeto acabado, um modelo ideal e acessível, ao qual devemos nos conformar para dele nunca nos afastarmos. Só que não!

A civilização é, em si mesma, um projeto inacabado e inacabável da humanidade. Provas disso são: tanto a persistência, até hoje, do maior despotismo de todos, o assassínio; quanto principalmente a sistemática conversão de costumes, até certa altura naturais à civilização, em neobarbarismos a serem doravante extirpados, como por exemplo: não mais fazer piadas nem cantar marchinhas de carnaval racistas e sexistas; “brancos” eurocêntricos não usarem, banal e indiscriminadamente, roupas étnicas, e por aí vai.

Se ser civilizado, ou o que é o mesmo, ser político, é uma sempiterna construção, então, não há nada de fundamentalmente errado em descobrirmos e apontarmos, uns nos outros, zonas de despotismo, porões de aquém-civilidade. Isso, aliás, é o modus operandi per se da civilização. Se existe algo que podemos chamar de correto na história da civilização, é não abandoná-la enquanto a escrevemos. Com perdão da redundância, civilidade é permanecer civilizado na construção e na manutenção da civilização.

Exemplo disso é a postura do bloco carnavalesco carioca “Cordão da Bola Preta” que, diante da postura de ímpeto “politicamente correto” que condena a execução de algumas marchinhas de carnaval clássicas por conta de teores racistas, sexistas ou homofóbicas, decidiu apenas não tocá-las, seja porque de fato elas ofendem alguns, seja ainda porque há tantas outras músicas, tão mais alegres e/ou clássicas, e certamente menos polêmicas. O “Bola Preta” é civilizado porque não se impõe despoticamente àqueles que não compartilham do seu, digamos assim, estágio civilizatório. Apenas age exemplarmente.

Entretanto, pode-se ser radical em defesa da civilização. Um recente caso, que ilustra bem isso, é o da ativista negra curitibana que interpelou agressivamente uma concidadã branca que usava um turbante estilo africano para esconder a careca causada por tratamento quimioterápico, dizendo-lhe que “uma branca não pode usar roupa de negro”. A radicalidade “politicamente correta” da ativista estava em condenar a “apropriação cultural” de elementos da cultura negra precisamente pela etnia branca que se apropriou despoticamente dela por séculos.

A despeito do significado vulgar que damos à palavra “radical”, como se se tratasse apenas de “excessividade”, de “exagero”, etimologicamente, no entanto, ela significa “relativo à raiz” (do latim “radicalis”, derivação de “radix”: raiz). Dizer que algo é radical, portanto, é falar que esse algo está conectado à sua origem.

Esse esclarecimento é importante porque, ao chamar de “radicalismo politicamente correto” o ato político da ativista, eu não quero acusá-lo de desmesura, nem de, em última instância, despotismo. Em vez disso, o objetivo é entendê-lo enquanto um ato político autêntico que, no entanto, se aproxima polemicamente da origem que é a própria instituição da civilização.

Com efeito, na raiz da civilização estávamos muito mais próximas da questão dualista de o que fazer/o que não fazer para ser civilizado; para não ser bárbaro… A distinção radical da civilidade em relação à barbárie está em um “não” ao embate físico, e em um “sim” ao diálogo político. Nesse estágio, e somente nele, ser civilizado é simples assim.

A crítica da ativista negra à “apropriação cultural” do turbante africano por uma branca, está longe de ser errada. Apenas é radical no sentido de pretender estabelecer regras demasiadamente objetivas em respeito ao que se deve fazer para se ser, segundo seu ponto de vista, devidamente civilizado. Mutatis mutandis, pretende dizer que “correção política”, ou, mais apropriadamente, polidez, civilidade, é uma etnia não se apropriar, impune e banalmente, de elementos de identidade de outra etnia. Principalmente em se tratando de uma que, histórica e desumanamente, foi desapropriada de si mesma pela outra. E, infelizmente, não só culturalmente!

Embora tenhamos deixado de lado o significado comezinho de “radical”, qual seja, o de exagero, de excessividade, temos contudo de reconhecer a sua pertinência na luta politica dos negros por reconhecimento identitário e igualdade. E isso porque, fazendo uma analogia com as relações físicas de força, a força através da qual os negros foram historicamente subjugados pelos brancos não será anulada sem o expediente de, no mínimo, uma força de igual intensidade, porém, de sentido contrário.

Ser radical, no sentido amplo que essa palavra nos oferece, é tanto “estar junto à origem”, quanto, em relação à origem da própria civilidade, estar próximo à barbárie. O “Calcanhar de Aquiles” do ato político radical, no entanto, está em que, embora civilizante por natureza, de qualquer modo trara aquilo contra o qual empreende como se se tratasse de barbárie.

Se o ato político da ativista negra contra o uso de turbante por brancos é polêmico, o é porque entre a sua radicalidade e a sua contemporaneidade se interpõe toda sorte de relativismos. Um deles, assaz célebre e pertinente, vem do filósofo alemão Theodor Adorno, para quem “o consumidor não é soberano, como a Indústria Cultural quer fazer crer; não é o seu sujeito; mas o seu objeto”.

Com efeito, da vertical perspectiva dos rolos compressores que são a indústria cultural e o capitalismo que a industrializou, o fato de os negros terem sido historicamente subjugados pelos brancos, guardadas as devidas proporções, obviamente, é no entanto tão objetal quanto todos nós, brancos, negros, índios, mulheres, homens, gays, lésbicas, etc., estarmos subjugados aos ditames da moda, que, radicalmente, são os do sistema capitalista que de todos se apropria.

Se no nascimento da civilização a pecha se deu com a vitória do diálogo político sobre o embate despótico, atualmente, entretanto, em plena “Idade do Lobo” dessa mesma civilização, ser civilizado deve ser, antes de tudo, lutar contra o novo inimigo comum da civilização. Não mais a barbárie antepassada, mas o presente despotismo universal do capitalismo. Embatermo-nos uns com os outros em vez de, juntos, lutarmos contra o sistema que de todos se apropria imperiosamente é, como se diz, “bater em gato morto”.

Para concluir, uma metáfora com o objetivo de resumir a presente reflexão.

Imaginemos que a humanidade seja um pêndulo em busca de equilíbrio – de liberdade, de igualdade, de oportunidade para todos -, oscilando entre dois extremos: de um lado, a antepassada barbárie da violência que vence o diálogo, e, do outro lado, o contemporâneo despotismo do sistema capitalista, que se projeta futuro adentro, e cuja violência se dá inclusive no diálogo. O ponto ideal no qual a civilização estaria livre dos dois males seria, portanto, o centro: a maior distância possível dos dois extremos.

Porém, quem já observou um pêndulo funcionar sabe que seu equilíbrio final se dá paulatinamente, com tantas oscilações, para lá e para cá, quanto for a energia do próprio pêndulo. É somente quando a energia do sistema chega a zero que o pêndulo entra em equilíbrio. Metaforicamente, estágio no qual a civilização seria finalmente alcançada.

Contudo, projeto inconclusivo que é, a civilização é um pêndulo que nunca se equilibra. E isso porque nunca tem uma energia igual a zero. Muito pelo contrário, a civilização é um embate de forças que nunca cessa. Ao contrário do pêndulo físico, o da civilização balouçará ad aeternum.

Apesar de o ponto central de pleno equilíbrio nunca acolher perenemente a civilização, ele tem ao menos a virtude de marcar, ainda que fugazmente, uma medida ideal, intermediária às medidas reais que jazem nos extremos. Esse ponto de equilíbrio, pelo qual a civilização passa em meio ao seu sempiterno movimento; átimo no qual é possível o diálogo sem violência e onde a alteridade não é um problema, mas a matéria das nossas relações; esse é o momento político par excellence.

Se não conseguimos capturá-lo para nele permanecermos indeterminadamente, o que seria ideal, ao menos devemos manter memória dele, para, enquanto estivermos nos aproximando dos reais extremos do despotismo, permanecermos suficientemente civilizados. No caso da radicalidade da ativista negra Curitiba: sermos polidos, políticos, e não tratá-la como se estivesse exagerando, mas como voz que, assim como a da maioria, quer apenas realizar civilização.

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Trump e mixofobia

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A civilização é um cimento que uniu os seres humanos em um projeto em comum, tirando-os da barbárie. Sua materialização primordial foram as cidades; em latim chamadas de civitas; em grego, de pólis. O não-bárbaro, portanto, é aquele que prima pela convivência civilizada, politizada com os demais. O afeto desse primado é sociologicamente denominado de mixofilia, isto é, o amor à mistura. Sentimento que, entanto, o impertinente isolacionismo do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, parece desconhecer.

A exemplo daqueles que a instituíram, a civilização é ambígua. Por mais que ofereça às pessoas benesses de que nunca desfrutariam caso permanecessem barbarizadas, a começar pela substituição do embate físico pelo diálogo, a mistura civilizada gera afetos negativos. A proximidade com outros também produz medos, pavores, que por suas vezes impõem distanciamentos. Esse afeto isolacionista, em sociologia, é chamado de mixofobia, ou seja, o pavor da mistura. Movido pelo pretexto do terrorismo, o isolacionista Trump é o mixófobo espetacular da contemporaneidade.

Se, portanto, a civilização é a instituição humana na qual vivemos tanto o amor quanto o pavor em relação à alteridade, todavia com a vitória do primeiro, Trump é a prova da derrota diante do segundo. Ao passo que, mixofilicamente, experimentamos os prazeres e as vantagens da convivência com os outros, sendo o carnaval um exemplo mixofílico por excelência; mixofobicamente, ao contrário, priorizamos os riscos oferecidos por tal convivência, sendo o famigerado muro com o qual Trump irá isolar-se dos mexicanos o exemplo mixofóbico mais emblemático da atualidade.

A mixofobia patológica de Trump, contudo, é mais bárbara do que alienígena. Nossos condomínios e semblantes fechados já são espécie de muro trumpeano através dos quais nos isolamos do perigo da alteridade. Entretanto, por mais ambígua que seja a civilização, ela é, a priori, mixofílica, mesmo que, a posteriori, mixofóbica. O desafio primordial do civilizado, portanto, é superar sistematicamente os afetos mixofóbicos em prol dos mixofílicos. Pois é somente através do amor à mistura que transformamos as carências e vulnerabilidades inerentes ao isolamento em abundância e segurança. Afinal de contas, não foi por isso que o ser humano se civilizou?

Todavia, paradoxalmente, é em função do risco de perder essa abundância e segurança que os afetos mixófobos brotam. Trump, realmente acredita que uma “America Great Again” só é possível mediante isolamento; se ela estiver sitiada intramuros intransponíveis. Porém, o pavor da alteridade não desaparece ao se isolar dela. Esse isolamento, aliás, é o medo concretizado, espacializado; de forma alguma superado. Sem dizer que agir em função do medo, do pavor, ou seja, de afetos mixofóbicos não é coisa de quem é ou será “Great”. A América de Trump, isolada, será tão “small” quanto a barbárie diante da civilização.

O grande problema da mixofobia é que ela reinstitui o não-diálogo entre quem se sente atemorizado e quem causa tal temor. Ela é antipolítica por natureza. Mas, não nos esqueçamos, Trump se elegeu vendendo o peixe de que não era político; de que os americanos estavam fartos da política. Só que ser civilizado e ser político, “Mr. President”, são sinônimos! Felizmente, massivas e mixofílicas manifestações “worldwide” contra o mixófobo-mor estão ocupando a ágora mundial com a civilidade da qual não querem ser privadas. Uma luta política par excellence.

Não foi devido à ausência de mixofobia que a civilização se deu, mas, fundamentalmente, pelo conflito dela com os afetos mixofílicos. A civilização, por assim dizer, é o estágio humano no qual a mixofilia vence essa sempiterna pecha. E a mixofobia, sistematicamente derrotada, compõe a régua com que se mede a vitória da civilização. O triunfo mixofílico se sustenta na consciência de que, por mais que o outro possa ser um problema, antes disso, ele já é a solução. Quanto mais não seja, cada um de nós é um outro para os outros.

Trump, contudo, não considera o fato de que é um outro para os outros. Em vez da abertura política à alteridade, o bárbaro fechamento egoísta. “America First!”. E quando se está desse modo isolado, o temor serve de paradigma para toda sorte de apolitismo. Mas, se em uma imagem, civilização é vitória sobre barbárie, a nossa, sobre Trump e todos os que, como ele, não querem ser outros de ninguém, essa vitória consiste em seguirmos amando nos misturarmos: troféu que se ganha ao ser derrotado o medo da mistura.

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Relativismo moral

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Uma moral que cede às circunstâncias é absolutamente condenável, ou, em troca, há situações em que pode ser aceita, mais ainda, desejada? Na prática, quando os outros transgridem os valores que defendem – e os políticos nos oferecem os exemplos mais traumáticos disso – exigimos ética deles, acusando-os pejorativamente de “pregarem moral de cueca”. Agora, quando somos nós mesmos que adaptamos os nossos valores a imperativos momentâneos para alcançarmos fins que nos interessam, aí somos extremamente autocondescendentes. A flexibilidade moral parece ser ruim e boa ao mesmo tempo, dependendo de quem se vale dela.

A princípio, parece fundamental que os outros sejam morais. Essa hipótese, contudo, é insustentável, pois, uma vez que cada um de nós é um outro para os outros, a moral, no final das contas, cabe a todos, indiscriminadamente. A hipótese alternativa, qual seja, a de que ninguém precisa agir moralmente, no entanto, é de uma outra insustentabilidade, visto que levaria as relações humanas à ruína. Ora, se todos transgredirmos livremente as regras que estabelecemos uns com os outros, tais como: não mentir, não trair, não roubar, não matar, etc., voltaríamos ao hobbesiano estado de natureza “de todos contra todos”. E bye-bye civilização!

Para entender melhor essa contradição entre o relativismo moral quando se trata de nós mesmos, e a rigorosidade moral quando se trata dos outros, é interessante atravessarmos dois grandes edifícios morais da filosofia: o de Immanuel Kant e o de Nicolau Maquiavel; respectivamente: o rígido moralismo do Imperativo Categórico Universal, e o aparente amoralismo dos “fins que justificam os meios”.

A pertinência de aproximarmos esses dois autores, tão antagônicos em se tratando de moral, justifica-se contudo em um alinhamento fundamental digno de nota: Maquiavel queria descobrir a “veritá effettuale della cosa” (a verdade efetiva das coisas); Kant, por seu turno, “despertar do sono dogmático”. A consonância dos dois está em querem pôr fim ao longevo e resistente idealismo platônico que, desde a antiguidade, sacava os homens da realidade para lançá-los em utopias. A proximidade entre os dois filósofos, entretanto, acaba por aí.

Kant, a priori, era cético, isto é, acreditava que só podemos conhecer aquilo que passa pelos nossos cinco sentidos. Para ele, só conhecemos o que se dá na experiência sensível. Porém, a sensibilidade não segue regras universais: aquilo que é bom ou agradável para uns, pode ser – como não é difícil comprovar – ruim ou desagradável para outros. Os sentidos, portanto, não ofereceriam fundamento seguro para uma regra moral de validade universal.

Entretanto, a posteriori, Kant era idealista: dizia que podemos conhecer, racionalmente, coisas que não passam, nem tem como passar pelos nossos sentidos. O infinito, por exemplo, é “o que não tem fim” para a razão teórica, mesmo que nada seja para a sensibilidade empírica. Uma moral consistente, ou seja, uma regra universal a ser seguida imperativamente por todos, teria de advir, segundo Kant, da necessidade da razão pura, e contra as “impurezas” contingentes da sensibilidade. A moral kantiana, portanto, é uma moral que se fundamenta em princípios racionais.

Já Maquiavel, que era um realista radical, sustentava que o conhecimento de maior valor para o homem e as coisas humanas estava nos exemplos históricos concretos, e não em elucubrações racionais abstratas cujo vício é criar mundos que não existem. Para o italiano, a contrário do alemão, a sensibilidade não era um desvio, nem tampouco a razão o atalho para a fundamentação de sua moral, mas a coexistência inseparável e não hierárquica delas duas no homem. A sensibilidade seria responsável pelos desejos; a razão, por encontrar os meios para realizá-los. Os fins, desejados pelos sentidos, justificariam os meios, arquitetados pela razão.

Agora, podemos falar de uma moral em Maquiavel uma vez que, para alcançar um objetivo, a razão poderia planejar qualquer coisa, inclusive matar, roubar e trair? A frase maldita, atribuída ao florentino, “Os fins justificam os meios”, que parece pregar liberdade total para se alcançar determinado fim, na verdade é duplamente maldita. Em primeiro lugar, porque não foi dita por Maquiavel, mas mal lida por muitos intérpretes. E, em segundo lugar, porque o que foi bem dito pelo autor foi que: os meios, através dos quais se alcança certo fim, serão valorados em consequência do julgamento a que o fim obtido será submetido. O fim, sendo reprovado, outrossim o serão os meios.

O que superficialmente parece ser uma liberdade no presente, na verdade, é uma profunda subjugação em relação ao futuro. Para Maquiavel, o melhor tribunal para as ações humanas (os tais meios!) nunca é contemporâneo delas, mas extemporaneamente histórico. E, em se tratando de um pensador republicano como o florentino, o fim maquiavélico que absolve os meios que lhe deram vez é somente aquele que produz os melhores resultados à res publica, isto é, ao que é de todos.

Um bom exemplo histórico disso é o ilustre caso de Brutus, juiz de Roma que mandou assassinar os seus dois filhos, Tito e Tibério, assim que soube que eles estavam conspirando contra a República. Os contemporâneos do republicano romano reprovaram-no. Todavia, uma vez que o assassínio de sua prole contribuiu para a grandeza do Império e para a pax de milhões de romanos, o futuro findou aprovando o filicídio de Brutus.

Aqui podemos ver que, diferente de Kant, para quem a moral é baseada em princípios, Maquiavel, ao contrário, estabelece uma moral de resultados. Resumindo: a moral de Kant tem por fim os princípios; a de Maquiavel, inversamente, tem por princípio os fins. O problema, entretanto, é que essa moral maquiaveliana não pode ser universalizada dentro da república, pois, se todos forem livres para fazerem o que acreditam que será considerado bom futuramente, é bem possível que o presente seja arruinado antes mesmo de produzir o pretenso “futuro melhor”.

Em Maquiavel, somente os príncipes podem dispor do relativismo moral. Não por conta de sobre humanidade, semidivindade alguma, mas por dois motivos: o primeiro, porque são eles, os príncipes, que, mais que todos, têm a responsabilidade de primar pela república, isto é, pelo que é de todos, pelo é melhor para todos; o segundo, porque são os príncipes que serão julgados historicamente pelos seus atos e resultados, e não o vulgo anônimo.

Em vez de liberar o príncipe para ser um tirano com a maldita máxima “Os fins justificam os meios” e com uma flexibilidade moral negada aos cidadãos, o Maquiavel republicano, ao contrário, adverte os governantes de que os meios de que eles se valem em função de determinados fins serão inescapavelmente julgados; tanto para se averiguar se buscavam fins verdadeiramente republicanos, e não apenas glória pessoal, quanto para medir se os fins efetivados foram de fato os melhores para a república.

Já os cidadãos em geral, tanto faz se nobres ou povo, deveriam aceitar as leis da república como os únicos princípios morais. Todavia, como em uma república autêntica – ao contrário de uma tirania, na qual o povo é subjugado pela força – as leis atendem aos próprios cidadãos, aos seus desejos mais pungentes, estar moralmente submetido às leis é estar comprometido com os próprios interesses. Com efeito, para Maquiavel a liberdade dos cidadãos só é possível na república, mediante suas leis. Isso, claro, se a república não estiver corrompida, ou seja, se as leis não estiverem beneficiando somente a uma minoria.

Aqui já podemos ver que, em Maquiavel, em vez do amoralismo atribuído ao seu pensamento, há na verdade uma dupla moral: a dos cidadãos, que para serem livres devem obedecer à leis em todos os casos; e a do príncipe, que deve seguir às leis apenas quando elas garantem os melhores resultados aos cidadãos, mas que pode abstraí-las quando for mais prudente, isto é, quando o melhor fim exigir. Em Maquiavel, o relativismo moral não só é desejado, como sobretudo necessário. Todavia, somente ao príncipe. Não porque ele seja absolutamente livre – o que faria dele um tirano, mas, ao contrário, porque ele é necessariamente constrangido a fazer o que for melhor para todos.

Depois de aproximar Kant e Maquiavel em repeito à recusa ao idealismo que sobrevivia desde a antiguidade; e de mostrar a distância entre os edifícios morais deles; chegamos ao ponto em que podemos sugerir que a rigidez do moralismo kantiano tem lugar cativo no moralismo maquiaveliano, pelo menos na moralidade atinente aos cidadãos. Todavia, desde que compreendamos que essa moral é estabelecida, não por princípios racionais abstratos, mas, em vez disso, por imperativos republicanos reais, visto que, para o italiano, a república é a melhor conjuntura a todos. Já o relativismo moral do príncipe maquiaveliano será eternamente alienígena ao rígido moralismo kantiano.

Desse modo, a contradição apontada inicialmente, qual seja: condenarmos os outros quando eles infringem os valores morais, e, ao mesmo tempo, perdoarmos a nós mesmos sempre que meios extra-morais se fazem necessários para alcançarmos fins particulares; essa contradição se dá porque, mesmo que saibamos muito bem que somos cidadãos como os outros, no entanto, agimos como se fôssemos príncipes: desfrutamos secretamente – ou nem tão secretamente assim – de um relativismo moral que, entretanto, não deveria visar bem ou glória particulares alguns, mas o melhor resultado final a todos.

A dupla moral maquiaveliana, tanto o relativismo moral principesco – desde que absolvido pelo jugo histórico por ter resultado no bem maior para os cidadãos -, quanto a rigidez moral que cabe aos próprios cidadãos perante as leis; visa a liberdade geral que só se encontra na república. Já a moral kantiana, que se fundamenta em um imperativo da razão abstraído de resultados empíricos – e, aliás, contra eles! –, produz todavia uma moral impossível de ser realizada plenamente por qualquer homem, mulher ou príncipe, a não ser… “de cueca”; da mesma forma como seres humanos finitos nunca alcançarão o infinito, a não ser… idealmente.

A moralidade maquiaveliana, por visar nada além da efetividade concreta, deve ser preferida por homens e mulheres outrossim efetivos e concretos que desejam liberdade e igualdade, encontradas somente na república. Já a idealidade abstrata da moral kantiana, por mais que, a princípio, vise o universal em detrimento do particular, no entanto, acaba possibilitando desigualdade e furto de liberdades públicas em função das privadas, como prova o imoral liberalismo capitalista que encontrou alicerce na ética de Kant.

Considerando a aversão aos dogmas idealistas dos dois filósofos, a “veritá effettuale della cosa” de Maquiavel acaba sendo mais sólida para se edificar uma moral do que o “despertar do sono dogmático” de Kant. Seja porque a verdade efetiva das coisas não se abala, estejamos dormindo ou não, seja ainda porque estar desperto dos dogmas não significa que estejamos livres de sonharmos acordados com eles. Sem dizer que a dupla moralidade de Maquiavel, que tem uma moral para o povo e outra para o príncipe, tem a virtude de garantir a liberdade e a igualdade de todos.

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A grandeza prometida pelo “republicano” antirrepublicano

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“Make America Great Again” (Fazer a América Grande Novamente), slogan que levou Donald Trump à presidência dos EUA, é impossível de ser realizado a partir da política isolacionista que o bilionário defendeu em campanha e que, uma vez no poder, está implementando a contragosto do cosmopolitismo do mundo globalizado. Essa contradição é tácita no que alguns analistas políticos já chamam de “ O Imperialismo Isolacionista de Trump”. A impossibilidade de a América ser grande isolando-se será analisada à luz de algumas ideias de Nicolau Maquiavel, o fundador do pensamento político moderno. Aplicando-se a teoria maquiaveliana sobre a promessa de grandeza do slogan trumpeano, como ele ficaria?
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Investigando o que fazia um estado ser grande, Maquiavel encontrou o que procurava na Roma antiga, o maior exemplo da história, e, segundo o pensador, digno de ser imitado. Maquiavel não era um teórico que ficava imaginando estados ideais, tal como Platão, em “A República”, ou ainda Santo Agostinho, em “A Cidade de Deus”. Ele, na verdade, era um realista pragmático que buscava em exemplos históricos concretos os fundamentos para as suas lições políticas. Até mesmo o racionalismo de Aristóteles, na “Política”, e o historicismo de Cícero, em “Histórias”, ficavam aquém da concretude factual a partir da qual Maquiavel tirava as suas conclusões.
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Ao contrário do que sustentavam todos os pensadores políticos antes dele, Maquiavel não via em fronteiras intransponíveis; na ausência de tumulto interno; nem tampouco no poderio militar a grandeza de um estado, mas, em primeiro lugar, na possibilidade de os cidadãos desse estado, fossem ricos, fossem pobres (nas palavras do florentino: grandes e povo, respectivamente) poderem estabelecer entre si um conflito político aberto em função de seus interesses de grupo. E era precisamente a diversidade e a irredutibilidade dos desejos dos grupos sociais, chamados pelo florentino de “humores”, que fazia a riqueza política e a grandeza da Roma republicana que chegou ao conhecimento de Maquiavel através das Histórias de Tito Lívio.
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E se a diversidade de humores é fundamental para a grandeza de um estado, Roma foi o maior da antiguidade porque, desde a sua fundação até o seu declínio, abriu-se para quem quisesse ser romano. Roma era uma urbe de humores conflitantes! O surgimento da maior instituição republicana de todas, os Tribunos da Plebe, que equiparou povo e grandes politicamente, só foi possível porque Roma, incorporando paulatinamente indivíduos oriundos dos mais variados lugares, foi pluralizando e empoderando seu o povo diante dos estáticos interesses dos grandes, a ponto de aquele não ser mais dominado por estes, mas todos serem cidadãos com iguais direitos e obrigações perante a lei.
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Para mostrar como o isolamento de um estado leva-o à ruína, Maquiavel usou o exemplo de Esparta, cujas leis, instituídas por Licurgo, rejeitavam estrangeiros. Uma das causas dessa recusa era a manutenção da rígida estratificação social que impedida qualquer mobilidade política. O povo, nessa conjuntura, esteve sempre subjugado aos reis e à aristocracia. E, não tendo direitos políticos, o povo não compartilhava do estado. Como, por conseguinte, a res não era publicamas privada, o povo não tinha motivos para defender o estado de inimigos externos nem tampouco para lutar pela expansão desse estado que, no final das contas, não era seu, mas apenas dos grandes.
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Em Esparta, portanto, quem defendia o estado e empreendia a sua expansão era a própria aristocracia, a verdadeira dona da res. No entanto, como os grandes sempre são minoria em relação ao povo, o exército, que tinha por tarefa tais objetivos, era sempre limitado, pois composto ou apenas por indivíduos da aristocracia, ou por mercenários contratados por ela. Assim como nunca se confiou em escravos para defender uma res que não era deles, assim também o povo espartano não era alistado pelos reis e aristocratas. Com essa pragmática antirrepublicana, ensina Maquiavel, Esparta não só não se expandiu ao longo do tempo, como principalmente ruiu pela própria rigidez de sua estrutura política.
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O povo da Roma republicana, ao contrário, uma vez que também possuía a res, comprometia-se com ela, fosse em caso de ameaça externa, fosse em função de expansão. Quanto mais não seja, considerando a natureza humana egoísta pressuposta por Maquiavel, só faz sentido defender e fazer crescer aquilo que é seu. E os estrangeiros que, por vontade própria e aceitação de Roma, passavam a desfrutar da cidadania e da pax romana, defendiam esse estado e a sua expansão como se fossem romanos natos.
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Sem dizer que a própria origem mítica de Roma, qual seja, a fundação por Rômulo, deu-se mediante a abertura irrestrita aos estrangeiros. Depois de matar seu irmão, Remo, em um dos fratricídios mais ilustres da história, Rômulo aceitou indiscriminadamente indivíduos de todos os lugares e índoles dentro de suas muralhas. E essa diversidade, em vez de arruinar Roma, fez a sua grandeza.
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Voltando aos Estados Unidos, país que, como se sabe, foi formado por estrangeiros, e cuja atual grandeza ainda se dá pela mistura de praticamente todas as gentes do mundo, caso se ensimesme dentro de fronteiras intransponíveis cometerá o mesmo erro que Esparta. Fechando-se à diversidade, à novidade, à alteridade que são os estrangeiros, os EUA terão por destino imediato a estagnação e, a longo prazo, a própria ruína. Sem dizer que, erro maior, os EUA de Trump se encontram em um mundo fundamentado na globalização, como os estados da antiguidade jamais experimentaram. Fechar-se nunca foi tão impróprio!
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Se Donald Trump, que quer fazer a “América Great Again”, seguir ignorando que um estado só é verdadeiramente grande quando, a exemplo da Roma republicana, abre-se irrestritamente aos estrangeiros, incorporando o que de melhor eles têm, e com isso tornando-se mais diverso, mais plural, mais cosmopolita, em suma, “Great”, talvez o déspota contemporâneo descubra isso do modo mais difícil, ou seja, vendo o seu país encolher por conta de isolamentos, banimentos e muramentos impertinentes.
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Será que Trump, graduado na quarta melhor universidade dos Estados Unidos, não aprendeu nada dos ensinamentos políticos de Maquiavel? Minha aposta é que o “republicano” está sendo deliberadamente antirrepublicano, ou o que é o mesmo, antimaquiaveliano. Ora, se a res norte-americana não for publica, mas privada, ela será apenas de bilionários como ele. E se essa hipótese é verdadeira, a única coisa que faltou ser acrescida no famigerado slogan trumpeano, “Fazer a América Grande Novamente”, foi o complemento mais reacionário de todos, qual seja: “Para os poucos aos quais a América sempre foi grande”.
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Esse adendo obsceno, é claro, não poderia ter sido publicizado durante a campanha. Todavia, uma vez eleito, nada mais impede Trump de, desavergonhadamente, colocá-lo em prática na sua forma completa. Porém, levando em consideração os ensinamentos de Maquiavel e o isolacionismo antirrepublicano de Trump, o slogan do topetudo, no final das contas, tem de ser reescrito na seguinte forma: “Fazer o povo da América menor para ela ser novamente grande somente aos grandes. Só assim o slogan fará jus ao “republicano” antirrepublicano que atualmente preside a terra do Tio Sam.
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A morte de Dona Marisa, e a do povo brasileiro.

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Cliquei no vídeo facebookiano da cerimônia do velório de Marisa Letícia Lula da Silva e, ao mesmo tempo em que amigos, colegas e o próprio Lula faziam os seus discursos presenciais, uma torrente de comentários virtuais pipocavam, em um ritmo impossível de acompanhar. Uns, humanamente, de amor e solidariedade; outros, desumanamente, de ódio e discórdia. Em apenas três horas de publicação, o vídeo já constava de quase 100 mil comentários em pleno e embate. Creio que nunca alguém irá lê-los todos. Impossível, não só pela quantidade, mas principalmente pela irracionalidade de, pelo menos, metade deles.
Assistindo a incessante sequência de comentários me perguntei: por que não se calam? Qual a dificuldade em apenas assistirem ao vídeo do velório da ex-primeira dama (ou não assisti-lo), terem os seus próprios pensamentos, e guardá-los para si mesmos? Ora, porque não se tratava, para esses milhares de comentadores compulsivos, do velório de Marisa Letícia, nem tampouco da dor da perda da família Lula, mas, antes, da única coisa que acontece no Brasil atualmente: a divisão radical.
Qualquer coisa, até mesmo a morte de alguém, seja por AVC ou pela queda de um avião, é estopim para os brasileiros se digladiarem histérica e publicamente, pervertendo os fatos que deram origem ao combate e abandonando completamente civilidade e humanidade. Só a divisão é. Só ela tem de ser. Nem que seja às expensas da tristeza que é uma família perder a sua mãe.
Esse é o meu comentário, que, entretanto, recusei-me a enfileirá-lo entre as centenas de milhares de outros, tresloucados e deslocados, que ainda pipocam ao lado do vídeo fúnebre. Se lá me calei, por que aqui falo? Talvez porque tenha me lembrado, tanto daquela máxima pós-Holocausto: “Impossível pensar depois de Auschwitz?”; como principalmente da sua refutação por Zizek: “Como não pensar depois de Auschwitz?”. Como não pensar no que os brasileiros estão fazendo consigo mesmos no agonístico presente? Em nome de quê estamos agindo assim?
Se percebermos que, durante essa divisão radical do povo, as elites apenas estancam as suas próprias sangrias e sangram esse mesmo povo com mais facilidade, em um furto deslavado de diretos e em um vilipendio da riqueza nacional em benefício de parcos proprietários de petrolíferas e empresas de telecomunicações, perceberemos também que essa mesma divisão odienta que o próprio povo empreende internamente é a sua própria ruína. Divisão essa que, se não foi arquitetada desde o princípio pelas elites (o que é mais provável), ao menos a beneficia muito.
Quando um povo não consegue ao menos silenciar diante da morte de um dos seus, independentemente de diferenças políticas e ideológicas, é porque não há mais povo de fato, mas apenas um bando de bestas servis sangrando umas às outras, assim como as elites sempre fizeram. Só que agora é o próprio povo que faz o trabalho sujo e odiento das elites; por elas; em nome da ventura e da riqueza delas.
O antídoto contra esse mal, contudo, é conhecido e acessível: a solidariedade do povo diante das dificuldades, seja na perda de entes queridos de uns, sejam em golpes de estado dado pelas velhas oligarquias contra todos. Mas a falta de solidariedade que levou alguns brasileiros a fazerem buzinaços comemorativos e postagens facebookianas vingativas, desde o anúncio da morte cerebral da ex-primeira dama até o seu velório, atesta somente a falta de solidariedade de uma turba que não é povo.
Além dos pêsames que todos deveríamos declarar aberta e solidariamente pela morte da brasileira, trabalhadora, esposa e mãe que foi Dona Marisa Letícia, temos ainda um outro, mais radical e insuportável, para dar todavia a nós mesmos. Este, pela morte do próprio povo brasileiro enquanto povo. Novamente: em benefício de quem?