Mês: novembro 2015
Fundamentalismo fraco
Uma pequena história da Moda
Invejas tonalizadas
Marcados como inseguros
Mariana: o nosso Carma e a nossa lama
Com a minha fé na capacidade sustentável e ecológica do homem completamente soterrada pelas toneladas de lama contaminada que a Vale do Rio Doce esparramou pelas Minas Gerais, pelo Espírito Santo, e que jazerão indefinidamente no já bastante poluído oceano, só me resta fazer como os budistas: suprassumir as vicissitudes da “Roda de Samsara” (o ciclo existencial no qual reinam o sofrimento e a frustração produzidos pela ignorância), ao valioso desejo de encontrar o “Caminho da Libertação”. Em outras palavras, transformar o “Carma” dessa catástrofe ecológica em “Dharma”, ou seja, o “Caminho para a Verdade Superior”.
Entretanto, qual seria a verdade budista absolutamente elevada que superaria a verdade indesejada, e por isso baixa, do desastre ecológico mineiro? Com efeito, a primeira verdade dessa baixeza cármica é o “meio-ambiente capitalista” que, pelo que nós e a natureza podemos ver, parece ser o único que realmente importa para a Vale. Verdade também é que, se culpamos a Vale por ter despejado a sua lama no mundo de milhões de pessoas, antes, devemos culpá-la por ter produzido e estocado sistematicamente, em açudes/represas, toneladas de resíduo venenoso.
Agora, se a represa na qual a Vale estocava a fatídica lama tóxica não tivesse rebentado, a opinião pública em geral estaria hoje tão alienada em relação a esse monstro devastador como se ele nem existisse. Porém, o Monstro de Lama da Vale já estava lá, tóxico e ameaçador, sendo produzido, gerado, engordado, o tempo todo. A indignação que a opinião pública expressa agora, no entanto, não abarca essa parte, digamos assim, “a priori” do desastre. Nossas preocupações ecológicas parecem ser tão “a posteriori” quanto as da Vale: só depois de “a merda ser jogada no ventilador”, é que nós e a Vale paramos para pensar e para tentar remediar o problema.
No entanto, o budismo sussurra convincentemente que não há Caminho da Libertação apenas se nos revoltarmos contra o vazamento do resíduo mortífero da Vale. Se não houver a mesma revolta em respeito à longeva produção e à sempiterna estocagem desse veneno, ademais na natureza, estaremos eternamente presos em uma das trágicas estações de Samsara. Então, cativos de um dos estágios do Carma, não ascenderemos ao Dharma, que, nesse caso, deve ser entendido como “um mundo no qual a humanidade e a natureza convivam sem se destruir”.
Ademais, se quisermos atravessar o Carma, isto é, cruzar definitivamente o ciclo existencial no qual reinam o sofrimento e a frustração produzidos pela ignorância, não podemos deixar nós mesmos, cidadãos brasileiros, de fora desse indesejado “devir antiecológico” que, hoje, é representado pela Vale. Entretanto, por mais que essa empresa priorize sobretudo os seus interesses econômicos, ela só está aí porque interessa ao Brasil, portanto, aos brasileiros. Se, de um lado, temos a abjeta destruição da natureza pela Vale, por outro, temos as tão desejadas e necessárias divisas que esse antiecológico empreendimento traz ao Brasil, portanto aos brasileiros.
Quantas estradas, escolas, universidades, hospitais, só para citar algumas coisas que os brasileiros solicitam e necessitam, foram possíveis pelos impostos que a Vale paga? Desse ponto de vista, o brasileiro em geral, mais precisamente o seu silêncio ou ignorância em relação ao mar de lama que a Vale ia construindo paulatinamente nalgum lugar de Minas Gerais, também precisou desse lamaçal tóxico tanto quanto a própria Vale. Precisamente aqui é o lugar de não nos excluirmos dessa insuportável etapa cármica que gerou este último e maior desastre ambiental tupiniquim.
Por isso não podemos dizer que os antiecológicos interesses da Vale são tão diferentes dos interesses dos brasileiros em geral. De certa forma, ambos querem sobreviver e evoluir da melhor forma possível. Entretanto, pelo menos desde a modernidade, o modo de a humanidade realizar isso infelizmente se dá a despeito da natureza. Para ser mais preciso, explorando-a, destruindo-a.
As nossas tão desejadas viagens de avião ao exterior, por exemplo, só são possíveis ao custo de uma tonelada de monóxido de carbono lançados no ar por viajante, em um único voo. Porém, antes, durante e depois dos nossos passeios por Paris ou Londres, por exemplo, não nos culpamos diretamente pelo aquecimento global. Nem precisamos ir muito longe: os nossos ambientes artificialmente refrigerados, hoje em dia, também só são possíveis se queimarmos toneladas de carvão nas usinas termelétricas, aliás, cada vez mais usadas no Brasil. Por aí vai o homem. Entretanto, por aí também se esvai a natureza.
Desse modo, o aviltado sentimento ecológico que reclama nos nossos peitos é um afeto extremado cujo excesso, não obstante, visa justamente nos alienar do fato de que somos nós, e somente nós, homens e mulheres, os promotores concretos da destruição da natureza. Entretanto, a nossa ignorância faz com que o Monstro Antiecológico seja bem melhor representado em abstrações como, por exemplo, a Vale. Porém, enquanto não computarmos nós mesmos nesse devir antiecológico, nossa ignorância em relação a ele não nos levará a outro lugar senão a mais antiecologia. Por isso a solução para o atual desastre ocorrido em Minas deve compreender não só a Vale, mas os brasileiros, quiçá a humanidade em geral.
Ora, enquanto insistimos em deslocar a culpa da destruição da natureza para empresas ou instituições, como se se tratasse de um inimigo transcendente e Mau, deixamos de fora da tão necessária revolução ecológica os únicos que realmente podem mudar os tortos rumos do nosso mundo: nós mesmos; indivíduos que, de um lado, destroem a natureza, e, de outro, não querem tal destruição. Querer estas duas coisas é senão estar preso na Roda de Samsara. É estar tão distante do Dharma quanto da verdade, portanto, do Caminho da Libertação.
A antiecologia da Vale é a mesma que a nossa na medida em que destruímos a natureza para construir um mundo dito melhor para todos. Resistir em aceitar profundamente esse fato é manter-se senão na senda da ignorância e da alienação. Só existe uma Vale porque existem pessoas, que precisam umas lucrar astronomicamente, outras trabalhar arduamente em troca de salários miseráveis, e, todos, de um país que tenha uma receita gorda o suficiente para que todos tenhamos aquela “vida com um mínimo de qualidade” que, entretanto, sabemos ser a maior destruidora da natureza.
De modo que, para atravessarmos o Carma do desastre ecológico mineiro, brasileiro, e porque não dizer mundial, devemos nos colocar como corresponsáveis por ele. Afinal, por um lado, é o mundo no qual vivemos, do qual fazemos parte, mas também e principalmente o mundo do qual solicitamos a satisfação das nossas necessidades individuais, das mais básicas às mais supérfluas, o produtor do mar de lama tóxica que ninguém queria que existisse. Porém, uma vez existindo, e espalhado pela natureza, imediatamente queremos que seja só da Vale. Ora, se o mundo é feito senão pelos homens, temos que são estes, todos nós, aliás, os responsáveis pelas toneladas de lama tóxica em questão.
A sabedoria elevada do budismo, o seu Caminho da Libertação, no entanto, deve tornar verdade o fato de que tanto faz se a lama venenosa permanecesse contida/escondida em uma represa ou tragicamente espalhada pelo mundo. O Mal não é a lama ter rompido a represa. Somente a produção dessa lama também não é todo o Mal. Antes, o Mal absoluto é esse modo humano de viver no mundo que não consegue respeitar e proteger o meio-ambiente do nosso mundo, isto é, a natureza.
O Dharma que deve se seguir do presente Carma que nos atormenta desde que a represa tóxica em Minas Gerais rompeu é justamente a assunção de que, hoje em dia, mais do que nunca, o Mal concreto da natureza somos nós, os humanos. Podemos, com efeito, abstrair essa nossa culpa; culpar uma empresa particular ou uma instituição qualquer pelas vicissitudes ecológicas que nos ameaçam. Todavia, agindo assim, apenas mantemos a Roda de Samsara girando contra a natureza, e, no fim das contas, contra nós mesmos. Será esse o nosso Carma?
Sexualidades idealizadas
O que define a sexualidade de uma pessoa? Suas relações afetivas e ou sexuais objetivas, ou, antes, simplesmente a ideia que ela mesma faz – ou mesmo quer fazer – de sua própria sexualidade, ou seja, um critério meramente subjetivo? No primeiro caso, temos uma definição baseada em um juízo materialista correspondente às relações concretas que a pessoa tem. Já no segundo caso, ao contrário, a sexualidade é fruto de um idealismo, isto é, é definida apenas pela ideia que o sujeito tem de sua própria sexualidade, não importando se suas práticas sexuais convenham ou não com tal ideia.
O idealista, entretanto, pode findar chamando “urubu de meu louro”. Por exemplo, afirmar que é heterossexual enquanto mantém – ainda que esporadicamente – relações sexuais com alguém do mesmo sexo que ele. E não é exatamente isso que vemos nos “G0y” (assim mesmo, escrito com zero), homens que, por um lado, se dizem heterossexuais, mas, por outro, não têm problema algum em assumir que se relacionam sexualmente e inclusive afetivamente com outros homens?
A ideia aqui não é restringir ninguém de realizar seus desejos sexuais, mas problematizar o fato de alguém vivenciar concretamente uma sexualidade determinada e, ao mesmo tempo, determiná-la como se fosse outra. Novamente os “G0y”: homens que fazem sexo com homens e mulheres mas que não se consideram bissexuais. Haveria, porventura, alguma coisa de errado ou de aviltante no conceito de bissexualidade: a atração afetiva, seja ela sexual, romântica ou emocional, por pessoas de ambos os sexos?
Por outro lado, temos que o conceito de bissexualidade oferece a algumas pessoas como que uma aura virtuosa. Conheci duas meninas, uma de nove e outra de doze anos de idade, que nunca fizeram sexo, tampouco se apaixonaram, seja por um menino, seja por uma menina, mas mesmo assim afirmam categoricamente que são bissexuais. Não estamos lidando aqui com um caso de idealismo puro?
O fato de as duas garotas definirem previamente as suas bissexualidades, melhor dizendo, pressuporem-nas antes mesmo de terem qualquer experiência concreta, empírica, evidencia, de um lado, que se trata apenas de uma ideia desconectada da realidade. Entretanto, de outro, aponta para o perigo de que as suas sexualidades genuínas sejam pautadas por essa apressada ideia, até mesmo forçadas por ela.
Porventura não seria melhor as duas garotas esperarem até serem espontaneamente atravessadas por suas sexualidades, e, baseadas nesse atravessamento natural, perceberem com qual, ou com quais sexos as suas sexualidades são concretamente realizadas, para só então, lastreadas nas suas experiências, afirmarem que são bissexuais – ou hetero, ou homo? Da mesma forma, não seria menos confuso alguém que transa com ambos os sexos definir-se como bissexual em vez de chamar essa prática de um “nome fantasia” qualquer, como fazem os “G0y”?
No entanto, o que vemos é justamente um crescente espaço de confusão no que tange a definição que cada um faz de sua própria sexualidade: bissexuais praticantes não aceitando o conceito que lhes cabe – os “G0y” -, e pessoas que sequer se “inauguraram” na afetividade sexual atribuindo a si mesmas sexualidades que sequer podem vir a se expressar nelas, ou através delas – as duas meninas.
Idealismo e materialismo são modos antagônicos de se pensar alguma coisa. Por isso quem define a sua sexualidade de modo idealista não computa – ou não quer computar! – as suas práticas sexuais concretas. O antagonismo resultante dessa confusão, nos nossos exemplos, se expressam da seguinte forma: os “G0y” são heterossexuais idealizados “e” bissexuais materializados; as duas garotas, bissexuais idealizadas “e” pré-sexuais materializadas.
Onde exatamente jaz a impossibilidade de muitas pessoas assumirem as suas sexualidades concretas, refugiando-se covardemente em sexualidades idealizadas? No preconceito que ainda impera na nossa sociedade? Os “G0y”, na verdade, não estariam temendo serem tomados por bissexuais, e justamente por esse motivo se definem com esse “apelido”? E as duas garotas, não estariam tentando esquecer o fato de ainda não terem suas sexualidades concretizadas determinando peremptoriamente que são bissexuais ?
Infelizmente, vivemos em um mundo onde o sexo é superestimado. E a sexualidade, outrossim, não escapa de tal escrutínio. Ora, se materialmente algo é “X”, dizer que é “Y” ou “Z” é só um malabarismo das ideias. Todavia, em um mundo no qual a sexualidade é supervalorizada, muitas pessoas “manipulam-na” idealmente para nunca ficarem aquém das expectativas desse mesmo mundo.
Por isso a heterossexualidade idealizada dos “G0y” não está nem aí para o fato de eles serem concretamente bissexuais. Da mesma forma, a bissexualidade idealizada das duas garotas não se preocupa com o fato de que elas sequer conhecerem as suas dimensões sexuais. Podemos ou não dizer que os “G0y” apenas reciclam o velho conceito “gay no armário”? E das duas garotas, por acaso, apenas não ressignificam o conceito clássico de histeria: eu quero tal coisa (a definição de minha sexualidade) mesmo que eu não precise dessa coisa ainda?
A pergunta que eu gostaria que os “G0ys” se colocassem é a seguinte: qual é o problema da definição de bissexualidade, e até mesmo de homossexualidade, para que resistam em conformarem-se nelas? Às duas garotas, a pergunta seria: qual é o problema em ainda não terem uma sexualidade naturalmente estabelecida? A ambos, pediria que considerassem as suas práticas sexuais concretas – ou a ausência delas, no caso das duas garotas – para ver se ainda assim as sexualidades que declaram idealmente se sustentam no mundo material onde elas são, ou serão exercidas.
O Rio Olímpico e a caverna de Platão
A alegoria da caverna, de Platão, fala de como podemos nos libertar da escuridão, melhor dizendo, da ignorância na qual nos encontramos aprisionados, e que caminhar para fora da caverna é o meio de encontra a luz (o sol) da verdade. O breu de que fala o filósofo grego pode se justificar no fato de o seu Sol ser deveras brilhante, ameaçando inclusive cegar quem se aventure a sair da caverna escura para encará-lo. Com efeito, em Platão, a metáfora da fotofobia é o meio para pensarmos a “sapiofobia”, isto é, o medo do saber com que muitos de nós, quiçá todos, nos mantemos prisioneiros da ignorância.
Podemos usar essa “sapiofobia” de que fala a alegoria platônica para pensar uma “urbanofobia”, ou seja, um “medo da cidade”. Para tanto, esse real de que somos ignorantes deve ser pensado enquanto o real das cidades nas quais vivemos. Que real seria este? E que caverna faria o papel de aprisionadora, de alienadora da verdadeira Luz Urbana? Uma vez que a compreensão do mito platônico se dá no traslado entre dentro e fora da caverna, a analogia com a nossa condição dentro das nossas cidades deverá repetir tal promenade.
Todavia, seria ingênuo demais pensar que as nossas casas são as cavernas, que são elas que obscurecem a iluminada verdade urbana, que a cidade é o local da verdade, e que fora das nossas casas-cavernas jaz a Luz desejada. Antes, a cidade toda deve ser vista como A Caverna: suas ruas, praças, equipamentos, shopping centers etc. Inclusive os caros metros quadrados nos quais nos refugiamos, e que inocentemente chamamos de casa, são senão a forma escura com que nos mantermos distantes da Luz.
Se na caverna de Platão os homens vivem acorrentados e voltados para uma parede na qual titereiros (ideólogos?) projetam sombras para que creiamos que elas são as coisas reais, na caverna urbana, outrossim, estamos acorrentados e voltados à sombras que chamamos banalmente de ruas, praças, hospitais, escolas, shopping centers e casas; sombras estas que são projetadas pelos nossos titereiros (especuladores imobiliários e políticos) para que pensemos que a cidade é, e deve ser, somente isso que vemos e experienciamos enquanto cativos dela.
No gentrificado teatro de sombras urbano carioca, por exemplo, o vulto do aluguel mais caro do mundo, o fantasma da segregação espacial que nos finais de semana barra cidadãos suburbanos às portas da elitizada Zona Sul, o monstro dos congestionamentos em que nos aprisionamos em cada deslocamento, só para citar alguns urbano-personagens do Mal, são, sem dúvida, grandes sombras. Porém, são as mais verdadeiras, pois revelam a Luz mentirosa que tenta nos convencer de que a cidade é um espaço pleno de liberdade e de oportunidade para todos os que nela vivem.
Slavoj Zizek, na sua “A Visão em Paralaxe”, pergunta se a caverna de Platão não seria, antes de ser aquilo que nos afasta da verdade, a construção propriamente humana para nos protegermos do excesso de luz do Sol platônico. Desse ponto de vista, a caverna seria o primeiro estágio da civilização, aquilo que nos diferencia dos demais animais. Aqui a minha analogia agradece, pois a cidade é propriamente a construção humana feita para o homem se proteger das verdades/vicissitudes da natureza. A caverna platônica, portanto, é a natureza civilizada: a cidade.
Entretanto, a cidade-sombra, na qual a maioria das pessoas vive aprisionada, é efeito colateral da projeção de uma cidade-Luz gentrificada a uma minoria que, esta sim, pode pagar o aluguel mais caro do mundo, não ser barrada nas praias da ZS – porque já vive lá -, e com seu helicópteros fugir das avenidas congestionadas, etc. De modo que, na cidade, para alcançarmos alguma Luz, é preciso sair dela. Não é nela que reside a verdade. Antes, nas cavernas-cidades permanecemos cegos em respeito àquilo que as nossas vidas poderiam ser de verdade.
Porém, quando um cidadão qualquer, imerso na escuridão urbana e acorrentado por ela, decide romper os grilhões, levantar-se e sair, os titereiros urbanos projetam novas sombras que mentem novas verdades. No caso carioca, o tal legado dos jogos olímpicos é a mais nova e forte sombra insistentemente projetada para fazer com que os cidadãos dessa cidade acreditem que estão mais distante das trevas e mais próximos da Luz. O que vemos, no entanto, são sombras ainda mais negras: alugueis ainda mais caros, a Z.S. ainda mais gentrificada, o trânsito mais caótico que nunca etc.
O grande teatro do Rio Olímpico mostra muito bem que não há Luz a ser encontrada na cidade: a cidade é a Sombra-em-si. Portanto, fora da Caverna Urbana não faz sentido algum procurar por alguma Luz Urbana. O Urbano é já-sempre A Sombra. Ao deixarmos tal escuridão, o Sol que encontraremos é aquele que diz que a Luz está fora e longe da urbanidade; que nos limites citadinos estaremos sempre aprisionados às sombras enganosas dos especuladores imobiliários e da corja política que lhes servem.
E porventura não é exatamente isso que sentimos quando, por poucos dias, deixamos a cidade para gozarmos as nossas cada vez mais raras férias, seja no campo, seja nalguma praia deserta? Pode até ser que o tal “campo” e a tal “prainha” sejam sombras de uma caverna ainda maior. Entretanto, como Platão e a sua alegoria me levam a crer, a promenade que afasta das Trevas e aproxima da Luz não precisa ter um final definitivo para se dar. Apenas recusar sistematicamente as sombras que são colocadas diante de nós já é sair da caverna, pois esse é o passo que evidencia a existência da própria caverna.
Em respeito ao Rio de Janeiro, sair da caverna seria deixar para trás todas as suas sombras, estar a salvo delas. Não obstante, como o mito platônico mostra, isso é um processo! Antes de abandonar a Cidade Maravilhosa, cabe primeiro evidenciar que esse “Maravilhosa” já é uma sombra, a mais projetada, aliás; que a Luz olímpica não chega agora para iluminar a cidade “para” os cariocas, mas apenas para fazer com que as sombras que todos eles veem sejam mais eficientemente projetadas, para que os cariocas sigam acreditando que a sua cidade é Maravilhosa, embora ela não seja nem deles, nem Maravilhosa.
A Luz verdadeira, que fica obscurecida pela estratégica escuridão urbana, é a gentrificação da própria Caverna. A Caverna Carioca não escapa disso! E para que os cariocas não descubram que a cidade não tem nenhum Sol ideal no fim do túnel, a politicagem imobiliário-especulatória coloca na porta da caverna urbana um pelotão armado impedindo os “aprisionados” de sair, assim como fez o governador do Rio de Janeiro: proibiu os suburbanos – vítimas excelentes da gentrificação – de acessarem o sol dominical da Z.S.; essa Luz mentirosa que cria/projeta a sombra suburbana. Esta sombra, no entanto, é a primeira verdade que devemos conhecer – e iluminar! – dentro da obscura, todavia pretensiosa, Caverna do Rio Olímpico.