A lógica dos monstros: de Aristóteles à Lady Gaga.

O que é um monstro? Qual é a lógica da monstruosidade? Antes de imaginarmos figuras ficcionais hollywoodianas, que somente nos afastariam da concretude dos monstros que habitam o nosso “mundo real”, tentemos enxergar essa monstruosidade justamente em pessoas como nós, que, entretanto, por algum(ns) motivo(s) assim são consideradas.
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 Hitler, aqui, não seria o exemplo de monstro ao qual queremos chegar. Antes, o líder nazista seja talvez o maior produtor de monstros da história. Ora, o que foi o Estigma Judeu, na Segunda Grande Guerra, senão a maior empresa de monstruosidade da história? Para construir o seu ideal, Hitler precisou produzir a monstruosidade dos judeus, a “desnormalização” absoluta deles, para com isso dar algum sentido à estratégica “normalidade” alemã – que, na verdade, era um projeto de superioridade.
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Jota Mombaça, mais conhecido Monstra Erratika, corrobora com essa ideia colocando que os monstros são construções sociais produzidas por aqueles que desejam ostentar o rótulo da “normalidade”, cunhado, entretanto, às custas daqueles que a priori são privados do direito de definirem a si mesmos conforme suas naturezas individuais. Essa é uma definição moderno-contemporânea bastante apropriada. Todavia, não é a única.
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Aristóteles, há mais de dois mil anos, já havia escrito a sua Lógica dos Monstros, isto é, a sua Teratologia. Para o filósofo antigo, monstro era quem não tinha capacidade para atualizar a potência de sua natureza. Se, por exemplo, um homem devesse ser a atualização das potências de falar, caminhar, reproduzir etc., mas por alguma contingência da natureza é mudo, aleijado ou estéril, eis um monstro: aquele que nunca poderá atuar a potência humana em toda a sua plenitude.
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Se para Aristóteles os monstros eram produções da própria natureza, para Monstra Erratika, ao contrário, são construções sociais. O próprio Mombaça é um desses monstros socialmente construídos, pois, pelo fato de ser, segundo ele, uma “bicha gorda transex” em um mundo vitimado pela “normalidade”, ele é a priori tomado enquanto monstruosidade, pois ameaça justamente a pretensa normalidade a qual a humanidade crê que deve estar restrita.
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A Teratologia aristotélica, é preciso esclarecer, é física. Isto é, é a natureza, a própria “Physis”, que cria os seus monstros. Já os monstros de que fala Mombaça são produzidos socialmente, pela necessidade social de uma “atmosfera de normalidade” que, entretanto, precisa da anormalidade para se definir. Nesse caso, não seria a Teratologia Modernocontemporânea a própria Sociologia enquanto a Lógica da produção de monstros colaterais que sustentam a “normalidade central” da sociedade?
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Lady Gaga, musa Pop de adolescentes cujas sexualidades não encontram lugar no estreito hall da normalidade, chama seus milhões de fãs de “little monsters”, ou seja, pequenos monstros. Eles mesmos orgulhosamente se auto intitulam “monstrinhos”. Não seria essa aderência deliberada dos seguidores de Gaga à monstruosidade um ato absolutamente subversivo em relação à normalidade hegemônica de uns que, para ser, precisa pressupor a monstruosidade de outros?
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Mediante sua efêmera fama, Gaga ousou abrir num mundo verticalmente normatizado um espaço clandestino de conforto, de normalidade, quiçá de orgulho, àqueles que, por suas naturezas, sentem-se oprimidos pelo fato de não serem “normais”, nesse caso, Heterossexuais Cisgênero. Por isso, há uns três anos, Gaga lançou o álbum chamado “Born This Way”, cuja mensagem central era: não se culpe nem se deixe culpar pelo que você é, você é “Nascido(a) Assim”.
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Agora, não estaria Gaga, com o seu “Born This Way”, fazendo um Remix da teratologia de Aristóteles com a Sociologia-monstruosa-modernocontemporânea de que fala Mombaça ao dizer que, por um lado, a monstruosidade socialmente produzida é mentirosa, condenável, e, por outro, que o que realmente importa é o “jeito” como seus fãs nasceram, mas, ainda assim, chamando-os de “Monsters”?
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Gaga enfrenta a modernocontemporaneidade livrando os seus seguidores da monstruosidade justamente sem abrir mão do famigerado rótulo “Monstro” com o qual essa mesma modernocontemporaneidade tenta oprimí-los. E, ao sustentar que “normal” é qualquer “jeito” que uma pessoa nasça, e mesmo assim insistir que essa pessoa seja chamada de “monster”, outra coisa não faz senão levar Aristóteles ao extremo.
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A lógica dos monstros de Lady Gaga extrapola a teratologia aristotélica dizendo que, independentemente de como nascemos, ninguém é capaz de atualizar toda a potência disso que chamamos “Ser Humano”. Para a estrela Pop, a normalidade seria a assunção da impossibilidade de qualquer pessoa concreta atualizar, em si mesma, a potência dessa abstração que é conceito de humanidade que insiste em nos cercar.
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Para a “Mother Monster” Gaga, para a Monstra Erratika de Mombaça, e para o maior “monstro” da história da filosofia, Aristóteles – todavia, no caso de sua teratologia ser levada ao extremo -, ser “normal” é ser um monstro; é estar concretamente no mundo atualizando não exatamente a nossa potência de sermos humanos, mas principalmente a nossa impotência de sermos plenamente humanos conforme a abstração “Ser Humano” tenta nos convencer.

Fundamentalismo fraco

Quando criticamos o fundamentalismo religioso, por exemplo, o dos muçulmanos radicais, de onde exatamente proferimos nossa crítica? Obviamente, cremos nós, de um lugar descontaminado justamente daquilo que criticamos. Entretanto, o fundamentalismo não se restringe apenas às religiões. É-se fundamentalista inclusive quando se crê piamente, digamos, que o crescimento econômico é absolutamente bom e desejável, que devemos empreendê-lo sem nunca questioná-lo. Deus e o Capital, com efeito, não reinam sem doses elevadas de fundamentalismo. Entretanto, para além destes dois, seria o fundamentalismo intrínseco à nossa existência no mundo?
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Quase todos os países do Mundo Contemporâneo são laicos. Todavia, guiados inquestionavelmente pelo fundamento do Crescimento Econômico, em função do qual aliás até explodem-se uns aos outros. E pouco importa que o fundamentalista laico, aguerrido ao seu tão amado crescimento econômico, só explicite que segue um mau fundamento, quiçá o pior de todos, porque incompatível com as necessidades básicas dos indivíduos em geral e, mais ainda, insustentável de acordo com as possibilidades da natureza.
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Mesmo assim, o Mundo Contemporâneo Laico sustenta e leva adiante, com uma fé cega, o fundamento do crescimento econômico. E uma vez que, como canta Liza Minnelli em Cabaret, “money makes the world go round”, o que temos no cabaré mundano são sete bilhões de crentes no capital fazendo o mundo girar – ou o que é pior, chamando esse monstro piruetado histericamente por nós de mundo.
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O fanático religioso tem na Palavra do seu Deus o seu maior fundamento – mesmo que abaixo deste tenha outros, dentre eles o próprio capital. O fanático capitalista, por sua vez, tem no seu céu mais elevado ninguém menos que o onipotente Deus Capital – ainda que abaixo dele haja inclusive deuses religiosos eletrodomésticos. Ou seja, ambos têm os seus próprios fundamentos, uns supremos, outros de menor espectro, muitos deles em comum inclusive, dos quais não abrem mão e pelos quais são capazes de destruírem-se uns aos outros.
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Em novembro de 2015, o “laico” Estado Francês foi atacado por fundamentalistas do Estado Islâmico. Os franceses, obviamente, ficaram aterrorizados com as mortes no cabaré mais famoso do mundo, o Bataclan. Tal terror, no entanto, não levou em consideração que a própria França – mas não só ela – já estava, antes disso, aterrorizando as vidas de milhares de pessoas com bombardeios destinados ao EI. Porém, a França não foi taxada de fundamentalista nem quando, dois dias depois dos ataques em Paris, seguiu aguerrida ao velho fundamento “destruir os inimigos”, bombardeando novamente o EI.
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O predicado “laico”, do qual a maioria ocidentais se orgulha tanto, e com o qual se sentem inquestionavelmente superiores aos religiosos árabes-orientais, não isenta ninguém do fundamentalismo em si. Muitas vezes o fundamentalista laico é mais fundamentalista e destrutivo que o religioso. Todavia, enquanto ser laico ou ser religioso for uma verdade suprema, em função da qual vale explodir pessoas, seja a partir de drones orientados por GPS, seja com metralhadoras, dentro de cabarés famosos, desculpe-me, só falamos de fundamentalismo radical.
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Slavoj Žižek propõe uma reviravolta no modo de vermos e criticarmos o fundamentalismo ao perguntar-nos: o que é pior, o EI explodir os franceses por que Alá ordenou, ou os franceses explodirem os muçulmanos radicais simplesmente por acreditarem que é isso a coisa certa a ser feita? Não seria o francês laico muito mais cruel que os radicais religiosos muçulmanos ao explodi-los simplesmente por assim achar melhor? E o religioso, em troca, não seria, digamos, mais “absolvível” pelo fato de explodir os seus inimigos por não ter opção diante das ordens do seu Deus?
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Não obstante, a melhor coisa que temos a responder à Žižek é que ambos os fundamentalismos, tanto o laico quanto o religioso, são igualmente condenáveis. Do contrário, aventando a possibilidade de um fundamentalismo ser “menos pior” do que o outro, estaremos aderindo deliberadamente a este que sobrelevamos. Todavia, não se faz isso senão para atribuir colateralmente alguma dignidade ao fundamentalismo a partir do qual se critica os demais, o que é sempre questionável, para não dizer perigoso.
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Na verdade, é praticamente impossível se libertar completamente do fundamentalismo. Mesmo que se condene com a mesma veemência todas as formas fundamentalistas, essa postura mesma outra coisa não é além de mais um fundamentalismo. O pior de todos aliás, pois o fundamentalismo que se coloca sobre os demais, reprovando-os todos, é o mais fundamentalista. A não ser, é claro, que se seja absolutamente pirrônico, isto é, incondicionalmente cético e não se leve em consideração nem os próprios juízos sobre a realidade.
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Seguindo o exemplo de Gianni Vattimo, filósofo italiano defensor do “pensamento fraco”, ou seja, o pensamento que não precisa destruir nenhum outro pensamento para poder pensar, devemos aceitar o desafio de vivermos uma espécie de “fundamentalismo fraco”, para evitar sermos fundamentalistas radicais, afinal, o fundamentalismo também tem os seus “cinquenta tons de cinza”. Ora, não é difícil concordar com o fato de que o fundamentalista ecológico, por exemplo, é deveras necessário num mundo no qual o fundamentalismo capitalista poluí e destrói a natureza.
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Entretanto, o fundamentalismo fraco que podemos “comprar” e universalizar sem medo de errar, pois nos distancia, de um lado, do fundamentalismo radicalmente pernicioso, e, de outro, do nada cético que nos aliena do mundo, é precisamente este: estar no mundo. Obviamente, para que este fundamento não se transforme em um problema, devemos aceitar e defender que todos tenham direito a ele. O direito de “estar no mundo” do meu inimigo deve ser o limite para todas as minhas demais ideias fundamentais. Do contrário, em vez da virtude do “fundamento fundamental”, teremos somente o vício do fundamentalismo radical.

Uma pequena história da Moda

Nem sempre a Moda esteve “na moda”. Antes dela, o mundo e as coisas eram de determinado modo, e, ademais, deveriam ser exatamente do modo que eram. Mudá-los era ou burrice, ou pecado. Porém, nalgum lugar da história, as coisas precisaram mudar. Não para doravante serem de um outro modo e não mudarem mais, mas, ao contrário, para poderem mudar o tempo todo. Estamos falando, obviamente, da Modernidade, época na qual a humanidade passou a seguir modas, a inventar novos modos, novas maneiras para o mundo ser e de ser no mundo.
Antes da Modernidade não faz sentido falar em Moda. Para os gregos antigos, por exemplo, era irracional viver em função daquilo que muda o tempo todo. Racional, para eles, era se voltar para o que é sempre, o tempo todo, e não para o que muda constantemente. Aliás, não temos aqui o cerne da filosofia grega: a questão entre o Ser e o devir, ou seja, entre “o que é sempre” e “o que muda o tempo todo”? E Platão, por desprezar mais que todos o mundo da mudança e ser absolutamente fiel ao imutável mundo das ideias eternas, porventura não seria o “Inimigo Número 1” da Moda?
Já para os medievais, seguir modas seria, no mínimo, um grande pecado. Ora, se os cristãos da Idade Média aderissem às modas, outra coisa não estariam fazendo senão afirmar que aquilo que Deus criou certa vez, e que obrigatoriamente deveria ser perfeito e eterno, não era bom o suficiente, precisava ser mudado, melhorado. A perfeição divina, por conseguinte, desqualificava a priori qualquer outro modo de as coisas serem. A moda, a mudança, na Idade da Trevas, poderia apenas tornar o mundo menos perfeito do que já era. Por isso, enquanto Deus esteve vivo a Moda não entrou “na moda”.
Entretanto, na Modernidade, como Nietzsche deixou bem claro, Deus morreu. E “se Deus está morto, então tudo é permitido”, escreveu Dostoiévski no seu Os Irmãos Karamazov. Então, sem perfeição divina alguma solicitando que as coisas continuassem do modo irretocável como Deus as havia criado, a humanidade pode mudar o mundo e a si mesma a seu bel-prazer. Esse foi, portanto, o momento no qual a Moda entrou “na moda”.
A Pós-modernidade, que insiste em se colocar como sucessora da Modernidade, não deve todavia ser entendida como a Idade na qual a humanidade deixou de seguir modas. Aliás, o atual fluxo de mudanças que atravessa e constitui o nosso mundo deixa isso bem claro, não? Antes, a pós-modernidade deve ser vista como uma modernidade excessiva, uma “sobremodernidade”, como diria Marc Augé. Com efeito, a Pós-modernidade é a época na qual se é mais moderno que os próprios modernos. Portanto, a Moda está mais “na moda” hoje em dia do que na própria Idade das modas.
Atualmente, o suceder incessante das modas, a mudança contínua do mundo, se dá não por que o mundo-ele-mesmo se mostra defeituoso, carente de mudança, de melhoria. A Moda dos nossos dias muda o mundo simplesmente porque pode mudá-lo. Mesmo que as coisas estejam de modo que nos pareçam satisfatórias elas devem mudar. Sabemos, obviamente, que a histeria da Moda é aliada fiel do capitalismo. De outra perspectiva, Moda, Modernidade e Capitalismo podem ser vistos como um único Ser Histórico. Porém, isso já é outra história.
O objetivo aqui é ressaltar que se com os modernos a Moda entrou “na moda”, e isso porque as coisas deveriam mudar, entretanto, para serem de outros modos, necessariamente diferentes do já foram – “por que mudar”, perguntariam os modernos, “se é para voltarmos ao que já fomos?” -, para os pós-modernos, em troca, não há problema algum em elas serem novamente o que já foram em outras épocas. É perfeitamente normal a moda dos anos 1950, por exemplo, ser “a” Moda em algum momento dos anos 2015.
“Por que mudar somente no sentido de sermos diferente de tudo o que já fomos”, perguntariam os pós-modernos, “se podemos mudar inclusive para voltarmos aos nossos antigos modos de ser?” A Pós-Modernidade, portanto, é o espaço/tempo no qual a Moda é circular pelas modas, isto é: “ser de tal modo” que seja possível ser os diferentes “modos de ser” da humanidade; sejam eles atuais, sejam inéditos, sejam ainda aqueles que já experimentamos. Pecado, ou burrice, hoje em dia, é se privar dessa livre circulação pelos diversos modos de o mundo ser e de sermos nele.

Invejas tonalizadas

Inveja tem cor? Antes de responder que sim, vale lembrar que, para Spinoza, a inveja é uma tristeza que diminui a potência de agir de quem a sente. Talvez por isso seja tão vergonhoso confessar que sentimos inveja, afinal, é um afeto produzido por nós mesmos que produz a nossa própria impotência. Já aqueles por quem sentimos inveja não é afetado negativamente. Aliás, quando alguém percebe que está sendo invejado, geralmente experimenta aquele orgulho abjeto chamado vanglória.
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Então, quando alguém sente inveja, está se rebaixando, voluntariamente, e, ao mesmo tempo, elevando aquele a quem inveja. Podemos pensar inclusive que não é a inveja que gera o rebaixamento, mas que este é primeiro. Porventura não é isso que Spinoza queria deixar claro quando disse que “ninguém está mais propenso à inveja que aqueles que se rebaixam”? Com efeito, aquele que sente inveja outra coisa não faz além de dizer a si mesmo que já se julga inferior àquele a quem inveja.
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Entretanto, por mais que desejemos secretamente não sentir inveja dos outros, Spinoza afirma que “a natureza dos homens está, em geral, disposta de tal maneira que eles têm inveja pelos que vão bem”. Sendo a inveja, portanto, uma disposição natural do ser humano, mas, por outro lado, algo que o diminui, rebaixa, refreia a sua potência de agir, sentimo-la e, ao mesmo tempo não queremos senti-la. Por isso é tão difícil sentir e, mais ainda, confessar que sentimos inveja de alguém, tal é a natureza dos sentimentos ambíguos.
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Para amenizar o drama solipsista no qual a inveja nos coloca, muitas pessoas usam um subterfúgio que, no entanto, não deve passar sem ser questionado. Para assumirem esse afeto natural e espontâneo do qual, ao mesmo tempo, desejam estar livres, dizem que sentem “inveja branca”. Entretanto, o que é a “inveja branca”, e em que medida ela é diferente da inveja, essa bem conhecida nossa, e que não precisa de cor alguma para nos afetar nem para nos envergonhar?
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Ademais, haveria uma “inveja preta” que completasse, por oposição, o sentido da tal “inveja branca”, ou, antes, a “inveja preta” já seria a própria inveja? Assumamos, por enquanto, que há somente a inveja e, oposta a ela, a dissimulada “inveja branca”: aquela, o afeto de que temos vergonha de confessar, e esta, uma vergonha minimamente confessável.
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Entretanto, qual o critério para classificar o rebaixamento no qual nos colocamos de inveja ou de “inveja branca”? Bem, Spinoza diz que “ninguém inveja a virtude de um outro, a menos que se trate de alguém que lhe seja igual.” Ou seja, não invejamos uma montanha pela sua imponência, um gato pela sua elegância, tampouco uma flor pela sua cor, mas apenas seres iguais a nós. Portanto, só podemos invejar pessoas; mais especificamente, aquelas nas quais percebemos virtudes que nós, justamente por sermos iguais a eles, deveríamos ter, mas, como a inveja deixa bem claro, acreditamos que nos falta.
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Agora, se a inveja é mesmo um afeto que se interpõe entre iguais, porém pelo fato de um deles se sentir desigual, melhor dizendo, inferior, podemos colocar que ela instaura uma desigualdade justamente onde não deveria existir. Uma vez vítima da inveja, aquele a quem invejamos nos parece, todavia por pressuposição nossa, contrário à igualdade. Spinoza nos garante isso ao propor que os homens que são movidos pela inveja são “reciprocamente contrários”.
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Portanto, é o invejoso que traz contrariedade às suas relações, porquanto não são os invejados que partem do pressuposto de que são carentes de alguma coisa nem que são inferiores a alguém. A inveja, com efeito, faz aquele que a sente ver contrariedade onde há igualdade. Indo mais longe: a inveja tem duas faces. Uma mentindo uma desigualdade, a outra escondendo uma igualdade. A “inveja branca”, por sua vez, não seria a inversão dessas duas faces da inveja, uma estratégia para vermos uma igualdade justamente onde nós mesmos colocamos a desigualdade?
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Entretanto, não nos enganemos, pois a “brancura” de uma inveja não faz com que esse afeto alcance um estatuto de maior dignidade. Ela ainda é inveja; ainda nos rebaixa; ainda rouba a nossa potência de agir, mesmo que a confessemos. A “inveja branca” é apenas a “inveja normal” fingindo uma dignidade que não lhe cabe. Ora, se, como disse Spinoza, a inveja é um afeto que faz parte da natureza dos homens, mas que não obstante os rebaixa, não estaria a tal “inveja branca” querendo assumir e dissimular, simultaneamente, a baixeza de quem a sente?
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Portanto, sentir essa coisa chamada “inveja branca” é apenas o modo de seguirmos alienados do rebaixamento a que nós mesmos, por nosso esforço, auto imputamo-nos em relação a quem invejamos, sem, contudo, ocuparmos assumidamente esse lugar inferior. O invejoso “branco” é aquele que sente inveja e ao mesmo tempo finge não ser carente daquilo que acredita que só o invejado tem. Desse modo, a “inveja branca” é um sobre-rebaixamento: invejar é o rebaixamento primeiro, e “clarear” esse afeto para que não pareçamos tão rebaixados assim, o segundo.
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Se o “invejoso branco” fosse um criminoso, seria aquele que comete o crime deliberadamente mas que prefere se fazer de vítima das circunstâncias. Em vez de confessar o ilícito de modo transparente, tonaliza-o com cores, digamos, mais absolventes. Em troca, se assumisse opacamente que a inveja que sente não tem cor apaziguadora alguma, que é só inveja mesmo, obviamente não escaparia de se apossar desse espaço de rebaixamento que a inveja lhe lega. Todavia, desse chão inglório não passaria.
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Porém, branquear estrategicamente esse afeto outra coisa não é que reduzir ainda mais a própria potência de agir. Ora, se invejar é o primeiro sinal de que já nos sentimos rebaixados, dissimular este afeto apelidando-o com uma tonalidade mais amena apenas nos aliena ainda mais da baixeza que nós mesmos inventamos para nós. Ao contrário, assumindo a inveja, nua, sem fantasias coloridas, podemos enxergar melhor o desnível que inventamos entre nós e aqueles a quem invejamos. Desse modo, fica bem mais fácil superá-lo, isto é, agir contra aquilo que rouba a nossa potência de agir.

Marcados como inseguros

Fulano “foi marcado como seguro nos ataques em Paris”. Imediatamente, essa ferramenta que o Facebook está disponibilizando assim que ocorre uma tragédia em determinado lugar, como os ataques de 13/11, em Paris, é positiva. Afinal, é bom ser informado, o mais rápido possível aliás, de que alguém que conhecemos, ou de quem gostamos, que está ou poderia estar nalgum lugar atacado por terroristas, destruído por um terremoto ou pelo rompimento de uma barragem tóxica, está seguro. Entretanto, um segundo olhar pode mostrar que essa ferramenta que decide e informa “worldwide” a segurança de alguns dos seus usuários tem o seu lado negativo.
Em primeiro lugar, como não são as próprias pessoas que tomam a iniciativa de informar aos seus contatos que “estão seguras”, mas o próprio Facebook, baseado nas cidades que estão marcadas nos perfis dos seus usuários, nas localizações dos seu smartphones ou tabletes, ou nos locais a partir dos quais eles acessam a internet, e, outrossim, considerando que no mundo globalizado de hoje a localização geográfica de alguém é um dado assaz obsolescente, a tal ferramenta pode errar tanto quanto acertar.
Um exemplo: vi que uma amiga estava “marcada como segura” nos ataques parisienses. Na mesma postagem, entretanto, estava o comentário dela informando que estava no Brasil. Ou seja, o Facebook informou algo que teve de ser “desinformado” em seguida para que, digamos assim, “a verdade” terminasse informada. Melhor seria, obviamente, que a própria pessoa marcasse a si mesma “como segura em Paris” – no Nepal, ou em Mariana. Todavia, o que temos é uma pressuposição da empresa de Zuckerberg que precisa ser confirmada ou negada a posteriori.
Outro ponto negativo dessas particulares “marcações de segurança” é a imediata, todavia subjetiva, redução da gravidade dos eventos trágicos trazida justamente pela informação de que alguém das nossas relações pessoais está seguro em respeito a eles. Em outras palavras: 1) ficamos sabendo que mais de 150 pessoas morreram em um atentado na França; 2) isso é inquestionavelmente grave; em seguida, 3) ficamos sabendo que tais e tais pessoas que fazem parte das nossas vidas não foram afetadas; por fim, 4) temos uma tragédia que, para nós, é menos trágica. No entanto, mesmo que as vítimas do atentado parisiense tenham sido somente pessoas que não conhecemos, a tragédia em si mantém a mesma gravidade objetiva.
Agora, o ponto mais negativo de tudo isso é que ter sido “marcado como seguro” esconde o fato de que nós, na periclitante babilônia contemporânea, estamos completamente vulneráveis à ignomínia humana, ou seja, peremptoriamente “marcados como inseguros”. Afinal, não é exatamente isso que diriam os Charlie Hebdo assassinados em Paris, os mineiros soterradas pela lama tóxica da Vale, os refugiados sírios que se aventuram diariamente pelo Mar Mediterrâneo, só para citar alguns, todavia, todos comprovadamente “marcados como inseguros”?
Sim, somos “marcados como inseguros” no mundo em que vivemos. Melhor dizendo, “estamos” marcados como inseguros “pelo” mundo em que vivemos. E as marcações de segurança que o Facebook informa apenas escondem esse triste fato. Em troca, não estaríamos tão alienados da vulnerabilidade a que estamos sujeitos se a mesma rede social que eventualmente informa a segurança de alguns dos seus usuários informasse também, constantemente, a sempiterna insegurança de todos.
Por que somente “os seguros” merecem um “status” informativo? Não estariam os não-seguros, ou seja, todos nós, sendo varridos para baixo do tapete pela ferramenta facebookiana? Pior ainda, não seriam essas tranquilizantes “marcações de segurança” virtuais uma estratégia do mundo contemporâneo cunhada justamente para nos alienar ainda mais daquilo que de fato gera a nossa real condição de insegurança, qual seja: o próprio mundo contemporâneo?
Não obstante, para que não vejamos a angustiante imagem que mostra que estamos inseguros o tempo todo, em todos os lugares, recebemos, na segurança dos nossos feeds de notícia, pílulas-postagens que tentam nos convencer de que, pelo menos para alguns, há essa coisa tão desejada por todos, mas que cada vez mais falta, chamada “segurança”. Agora, a informação que realmente faria diferença, e que sem dúvida todos gostariam de ver postada nas redes sociais, mas que no entanto empresa privada alguma pode dar, não seria precisamente a seguinte: “o mundo foi marcado como seguro”?

Mariana: o nosso Carma e a nossa lama

Com a minha fé na capacidade sustentável e ecológica do homem completamente soterrada pelas toneladas de lama contaminada que a Vale do Rio Doce esparramou pelas Minas Gerais, pelo Espírito Santo, e que jazerão indefinidamente no já bastante poluído oceano, só me resta fazer como os budistas: suprassumir as vicissitudes da “Roda de Samsara” (o ciclo existencial no qual reinam o sofrimento e a frustração produzidos pela ignorância), ao valioso desejo de encontrar o “Caminho da Libertação”. Em outras palavras, transformar o “Carma” dessa catástrofe ecológica em “Dharma”, ou seja, o “Caminho para a Verdade Superior”.

Entretanto, qual seria a verdade budista absolutamente elevada que superaria a verdade indesejada, e por isso baixa, do desastre ecológico mineiro? Com efeito, a primeira verdade dessa baixeza cármica é o “meio-ambiente capitalista” que, pelo que nós e a natureza podemos ver, parece ser o único que realmente importa para a Vale. Verdade também é que, se culpamos a Vale por ter despejado a sua lama no mundo de milhões de pessoas, antes, devemos culpá-la por ter produzido e estocado sistematicamente, em açudes/represas, toneladas de resíduo venenoso.

Agora, se a represa na qual a Vale estocava a fatídica lama tóxica não tivesse rebentado, a opinião pública em geral estaria hoje tão alienada em relação a esse monstro devastador como se ele nem existisse. Porém, o Monstro de Lama da Vale já estava lá, tóxico e ameaçador, sendo produzido, gerado, engordado, o tempo todo. A indignação que a opinião pública expressa agora, no entanto, não abarca essa parte, digamos assim, “a priori” do desastre. Nossas preocupações ecológicas parecem ser tão “a posteriori” quanto as da Vale: só depois de “a merda ser jogada no ventilador”, é que nós e a Vale paramos para pensar e para tentar remediar o problema.

No entanto, o budismo sussurra convincentemente que não há Caminho da Libertação apenas se nos revoltarmos contra o vazamento do resíduo mortífero da Vale. Se não houver a mesma revolta em respeito à longeva produção e à sempiterna estocagem desse veneno, ademais na natureza, estaremos eternamente presos em uma das trágicas estações de Samsara. Então, cativos de um dos estágios do Carma, não ascenderemos ao Dharma, que, nesse caso, deve ser entendido como “um mundo no qual a humanidade e a natureza convivam sem se destruir”.

Ademais, se quisermos atravessar o Carma, isto é, cruzar definitivamente o ciclo existencial no qual reinam o sofrimento e a frustração produzidos pela ignorância, não podemos deixar nós mesmos, cidadãos brasileiros, de fora desse indesejado “devir antiecológico” que, hoje, é representado pela Vale. Entretanto, por mais que essa empresa priorize sobretudo os seus interesses econômicos, ela só está aí porque interessa ao Brasil, portanto, aos brasileiros. Se, de um lado, temos a abjeta destruição da natureza pela Vale, por outro, temos as tão desejadas e necessárias divisas que esse antiecológico empreendimento traz ao Brasil, portanto aos brasileiros.

Quantas estradas, escolas, universidades, hospitais, só para citar algumas coisas que os brasileiros solicitam e necessitam, foram possíveis pelos impostos que a Vale paga? Desse ponto de vista, o brasileiro em geral, mais precisamente o seu silêncio ou ignorância em relação ao mar de lama que a Vale ia construindo paulatinamente nalgum lugar de Minas Gerais, também precisou desse lamaçal tóxico tanto quanto a própria Vale. Precisamente aqui é o lugar de não nos excluirmos dessa insuportável etapa cármica que gerou este último e maior desastre ambiental tupiniquim.

Por isso não podemos dizer que os antiecológicos interesses da Vale são tão diferentes dos interesses dos brasileiros em geral. De certa forma, ambos querem sobreviver e evoluir da melhor forma possível. Entretanto, pelo menos desde a modernidade, o modo de a humanidade realizar isso infelizmente se dá a despeito da natureza. Para ser mais preciso, explorando-a, destruindo-a.

As nossas tão desejadas viagens de avião ao exterior, por exemplo, só são possíveis ao custo de uma tonelada de monóxido de carbono lançados no ar por viajante, em um único voo. Porém, antes, durante e depois dos nossos passeios por Paris ou Londres, por exemplo, não nos culpamos diretamente pelo aquecimento global. Nem precisamos ir muito longe: os nossos ambientes artificialmente refrigerados, hoje em dia, também só são possíveis se queimarmos toneladas de carvão nas usinas termelétricas, aliás, cada vez mais usadas no Brasil. Por aí vai o homem. Entretanto, por aí também se esvai a natureza.

Desse modo, o aviltado sentimento ecológico que reclama nos nossos peitos é um afeto extremado cujo excesso, não obstante, visa justamente nos alienar do fato de que somos nós, e somente nós, homens e mulheres, os promotores concretos da destruição da natureza. Entretanto, a nossa ignorância faz com que o Monstro Antiecológico seja bem melhor representado em abstrações como, por exemplo, a Vale. Porém, enquanto não computarmos nós mesmos nesse devir antiecológico, nossa ignorância em relação a ele não nos levará a outro lugar senão a mais antiecologia. Por isso a solução para o atual desastre ocorrido em Minas deve compreender não só a Vale, mas os brasileiros, quiçá a humanidade em geral.

Ora, enquanto insistimos em deslocar a culpa da destruição da natureza para empresas ou instituições, como se se tratasse de um inimigo transcendente e Mau, deixamos de fora da tão necessária revolução ecológica os únicos que realmente podem mudar os tortos rumos do nosso mundo: nós mesmos; indivíduos que, de um lado, destroem a natureza, e, de outro, não querem tal destruição. Querer estas duas coisas é senão estar preso na Roda de Samsara. É estar tão distante do Dharma quanto da verdade, portanto, do Caminho da Libertação.

A antiecologia da Vale é a mesma que a nossa na medida em que destruímos a natureza para construir um mundo dito melhor para todos. Resistir em aceitar profundamente esse fato é manter-se senão na senda da ignorância e da alienação. Só existe uma Vale porque existem pessoas, que precisam umas lucrar astronomicamente, outras trabalhar arduamente em troca de salários miseráveis, e, todos, de um país que tenha uma receita gorda o suficiente para que todos tenhamos aquela “vida com um mínimo de qualidade” que, entretanto, sabemos ser a maior destruidora da natureza.

De modo que, para atravessarmos o Carma do desastre ecológico mineiro, brasileiro, e porque não dizer mundial, devemos nos colocar como corresponsáveis por ele. Afinal, por um lado, é o mundo no qual vivemos, do qual fazemos parte, mas também e principalmente o mundo do qual solicitamos a satisfação das nossas necessidades individuais, das mais básicas às mais supérfluas, o produtor do mar de lama tóxica que ninguém queria que existisse. Porém, uma vez existindo, e espalhado pela natureza, imediatamente queremos que seja só da Vale. Ora, se o mundo é feito senão pelos homens, temos que são estes, todos nós, aliás, os responsáveis pelas toneladas de lama tóxica em questão.

A sabedoria elevada do budismo, o seu Caminho da Libertação, no entanto, deve tornar verdade o fato de que tanto faz se a lama venenosa permanecesse contida/escondida em uma represa ou tragicamente espalhada pelo mundo. O Mal não é a lama ter rompido a represa. Somente a produção dessa lama também não é todo o Mal. Antes, o Mal absoluto é esse modo humano de viver no mundo que não consegue respeitar e proteger o meio-ambiente do nosso mundo, isto é, a natureza.

O Dharma que deve se seguir do presente Carma que nos atormenta desde que a represa tóxica em Minas Gerais rompeu é justamente a assunção de que, hoje em dia, mais do que nunca, o Mal concreto da natureza somos nós, os humanos. Podemos, com efeito, abstrair essa nossa culpa; culpar uma empresa particular ou uma instituição qualquer pelas vicissitudes ecológicas que nos ameaçam. Todavia, agindo assim, apenas mantemos a Roda de Samsara girando contra a natureza, e, no fim das contas, contra nós mesmos. Será esse o nosso Carma?

Sexualidades idealizadas

O que define a sexualidade de uma pessoa? Suas relações afetivas e ou sexuais objetivas, ou, antes, simplesmente a ideia que ela mesma faz – ou mesmo quer fazer – de sua própria sexualidade, ou seja, um critério meramente subjetivo? No primeiro caso, temos uma definição baseada em um juízo materialista correspondente às relações concretas que a pessoa tem. Já no segundo caso, ao contrário, a sexualidade é fruto de um idealismo, isto é, é definida apenas pela ideia que o sujeito tem de sua própria sexualidade, não importando se suas práticas sexuais convenham ou não com tal ideia.

O idealista, entretanto, pode findar chamando “urubu de meu louro”. Por exemplo, afirmar que é heterossexual enquanto mantém – ainda que esporadicamente – relações sexuais com alguém do mesmo sexo que ele. E não é exatamente isso que vemos nos “G0y” (assim mesmo, escrito com zero), homens que, por um lado, se dizem heterossexuais, mas, por outro, não têm problema algum em assumir que se relacionam sexualmente e inclusive afetivamente com outros homens?

A ideia aqui não é restringir ninguém de realizar seus desejos sexuais, mas problematizar o fato de alguém vivenciar concretamente uma sexualidade determinada e, ao mesmo tempo, determiná-la como se fosse outra. Novamente os “G0y”: homens que fazem sexo com homens e mulheres mas que não se consideram bissexuais. Haveria, porventura, alguma coisa de errado ou de aviltante no conceito de bissexualidade: a atração afetiva, seja ela sexual, romântica ou emocional, por pessoas de ambos os sexos?

Por outro lado, temos que o conceito de bissexualidade oferece a algumas pessoas como que uma aura virtuosa. Conheci duas meninas, uma de nove e outra de doze anos de idade, que nunca fizeram sexo, tampouco se apaixonaram, seja por um menino, seja por uma menina, mas mesmo assim afirmam categoricamente que são bissexuais. Não estamos lidando aqui com um caso de idealismo puro?

O fato de as duas garotas definirem previamente as suas bissexualidades, melhor dizendo, pressuporem-nas antes mesmo de terem qualquer experiência concreta, empírica, evidencia, de um lado, que se trata apenas de uma ideia desconectada da realidade. Entretanto, de outro, aponta para o perigo de que as suas sexualidades genuínas sejam pautadas por essa apressada ideia, até mesmo forçadas por ela.

Porventura não seria melhor as duas garotas esperarem até serem espontaneamente atravessadas por suas sexualidades, e, baseadas nesse atravessamento natural, perceberem com qual, ou com quais sexos as suas sexualidades são concretamente realizadas, para só então, lastreadas nas suas experiências, afirmarem que são bissexuais – ou hetero, ou homo? Da mesma forma, não seria menos confuso alguém que transa com ambos os sexos definir-se como bissexual em vez de chamar essa prática de um “nome fantasia” qualquer, como fazem os “G0y”?

No entanto, o que vemos é justamente um crescente espaço de confusão no que tange a definição que cada um faz de sua própria sexualidade: bissexuais praticantes não aceitando o conceito que lhes cabe – os “G0y” -, e pessoas que sequer se “inauguraram” na afetividade sexual atribuindo a si mesmas sexualidades que sequer podem vir a se expressar nelas, ou através delas – as duas meninas.

Idealismo e materialismo são modos antagônicos de se pensar alguma coisa. Por isso quem define a sua sexualidade de modo idealista não computa – ou não quer computar! – as suas práticas sexuais concretas. O antagonismo resultante dessa confusão, nos nossos exemplos, se expressam da seguinte forma: os “G0y” são heterossexuais idealizados “e” bissexuais materializados; as duas garotas, bissexuais idealizadas “e” pré-sexuais materializadas.

Onde exatamente jaz a impossibilidade de muitas pessoas assumirem as suas sexualidades concretas, refugiando-se covardemente em sexualidades idealizadas? No preconceito que ainda impera na nossa sociedade? Os “G0y”, na verdade, não estariam temendo serem tomados por bissexuais, e justamente por esse motivo se definem com esse “apelido”? E as duas garotas, não estariam tentando esquecer o fato de ainda não terem suas sexualidades concretizadas determinando peremptoriamente que são bissexuais ?

Infelizmente, vivemos em um mundo onde o sexo é superestimado. E a sexualidade, outrossim, não escapa de tal escrutínio. Ora, se materialmente algo é “X”, dizer que é “Y” ou “Z” é só um malabarismo das ideias. Todavia, em um mundo no qual a sexualidade é supervalorizada, muitas pessoas “manipulam-na” idealmente para nunca ficarem aquém das expectativas desse mesmo mundo.

Por isso a heterossexualidade idealizada dos “G0y” não está nem aí para o fato de eles serem concretamente bissexuais. Da mesma forma, a bissexualidade idealizada das duas garotas não se preocupa com o fato de que elas sequer conhecerem as suas dimensões sexuais. Podemos ou não dizer que os “G0y” apenas reciclam o velho conceito “gay no armário”? E das duas garotas, por acaso, apenas não ressignificam o conceito clássico de histeria: eu quero tal coisa (a definição de minha sexualidade) mesmo que eu não precise dessa coisa ainda?

A pergunta que eu gostaria que os “G0ys” se colocassem é a seguinte: qual é o problema da definição de bissexualidade, e até mesmo de homossexualidade, para que resistam em conformarem-se nelas? Às duas garotas, a pergunta seria: qual é o problema em ainda não terem uma sexualidade naturalmente estabelecida? A ambos, pediria que considerassem as suas práticas sexuais concretas – ou a ausência delas, no caso das duas garotas – para ver se ainda assim as sexualidades que declaram idealmente se sustentam no mundo material onde elas são, ou serão exercidas.

O Rio Olímpico e a caverna de Platão

A alegoria da caverna, de Platão, fala de como podemos nos libertar da escuridão, melhor dizendo, da ignorância na qual nos encontramos aprisionados, e que caminhar para fora da caverna é o meio de encontra a luz (o sol) da verdade. O breu de que fala o filósofo grego pode se justificar no fato de o seu Sol ser deveras brilhante, ameaçando inclusive cegar quem se aventure a sair da caverna escura para encará-lo. Com efeito, em Platão, a metáfora da fotofobia é o meio para pensarmos a “sapiofobia”, isto é, o medo do saber com que muitos de nós, quiçá todos, nos mantemos prisioneiros da ignorância.

Podemos usar essa “sapiofobia” de que fala a alegoria platônica para pensar uma “urbanofobia”, ou seja, um “medo da cidade”. Para tanto, esse real de que somos ignorantes deve ser pensado enquanto o real das cidades nas quais vivemos. Que real seria este? E que caverna faria o papel de aprisionadora, de alienadora da verdadeira Luz Urbana? Uma vez que a compreensão do mito platônico se dá no traslado entre dentro e fora da caverna, a analogia com a nossa condição dentro das nossas cidades deverá repetir tal promenade.

Todavia, seria ingênuo demais pensar que as nossas casas são as cavernas, que são elas que obscurecem a iluminada verdade urbana, que a cidade é o local da verdade, e que fora das nossas casas-cavernas jaz a Luz desejada. Antes, a cidade toda deve ser vista como A Caverna: suas ruas, praças, equipamentos, shopping centers etc. Inclusive os caros metros quadrados nos quais nos refugiamos, e que inocentemente chamamos de casa, são senão a forma escura com que nos mantermos distantes da Luz.

Se na caverna de Platão os homens vivem acorrentados e voltados para uma parede na qual titereiros (ideólogos?) projetam sombras para que creiamos que elas são as coisas reais, na caverna urbana, outrossim, estamos acorrentados e voltados à sombras que chamamos banalmente de ruas, praças, hospitais, escolas, shopping centers e casas; sombras estas que são projetadas pelos nossos titereiros (especuladores imobiliários e políticos) para que pensemos que a cidade é, e deve ser, somente isso que vemos e experienciamos enquanto cativos dela.

No gentrificado teatro de sombras urbano carioca, por exemplo, o vulto do aluguel mais caro do mundo, o fantasma da segregação espacial que nos finais de semana barra cidadãos suburbanos às portas da elitizada Zona Sul, o monstro dos congestionamentos em que nos aprisionamos em cada deslocamento, só para citar alguns urbano-personagens do Mal, são, sem dúvida, grandes sombras. Porém, são as mais verdadeiras, pois revelam a Luz mentirosa que tenta nos convencer de que a cidade é um espaço pleno de liberdade e de oportunidade para todos os que nela vivem.

Slavoj Zizek, na sua “A Visão em Paralaxe”, pergunta se a caverna de Platão não seria, antes de ser aquilo que nos afasta da verdade, a construção propriamente humana para nos protegermos do excesso de luz do Sol platônico. Desse ponto de vista, a caverna seria o primeiro estágio da civilização, aquilo que nos diferencia dos demais animais. Aqui a minha analogia agradece, pois a cidade é propriamente a construção humana feita para o homem se proteger das verdades/vicissitudes da natureza. A caverna platônica, portanto, é a natureza civilizada: a cidade.

Entretanto, a cidade-sombra, na qual a maioria das pessoas vive aprisionada, é efeito colateral da projeção de uma cidade-Luz gentrificada a uma minoria que, esta sim, pode pagar o aluguel mais caro do mundo, não ser barrada nas praias da ZS – porque já vive lá -, e com seu helicópteros fugir das avenidas congestionadas, etc. De modo que, na cidade, para alcançarmos alguma Luz, é preciso sair dela. Não é nela que reside a verdade. Antes, nas cavernas-cidades permanecemos cegos em respeito àquilo que as nossas vidas poderiam ser de verdade.

Porém, quando um cidadão qualquer, imerso na escuridão urbana e acorrentado por ela, decide romper os grilhões, levantar-se e sair, os titereiros urbanos projetam novas sombras que mentem novas verdades. No caso carioca, o tal legado dos jogos olímpicos é a mais nova e forte sombra insistentemente projetada para fazer com que os cidadãos dessa cidade acreditem que estão mais distante das trevas e mais próximos da Luz. O que vemos, no entanto, são sombras ainda mais negras: alugueis ainda mais caros, a Z.S. ainda mais gentrificada, o trânsito mais caótico que nunca etc.

O grande teatro do Rio Olímpico mostra muito bem que não há Luz a ser encontrada na cidade: a cidade é a Sombra-em-si. Portanto, fora da Caverna Urbana não faz sentido algum procurar por alguma Luz Urbana. O Urbano é já-sempre A Sombra. Ao deixarmos tal escuridão, o Sol que encontraremos é aquele que diz que a Luz está fora e longe da urbanidade; que nos limites citadinos estaremos sempre aprisionados às sombras enganosas dos especuladores imobiliários e da corja política que lhes servem.

E porventura não é exatamente isso que sentimos quando, por poucos dias, deixamos a cidade para gozarmos as nossas cada vez mais raras férias, seja no campo, seja nalguma praia deserta? Pode até ser que o tal “campo” e a tal “prainha” sejam sombras de uma caverna ainda maior. Entretanto, como Platão e a sua alegoria me levam a crer, a promenade que afasta das Trevas e aproxima da Luz não precisa ter um final definitivo para se dar. Apenas recusar sistematicamente as sombras que são colocadas diante de nós já é sair da caverna, pois esse é o passo que evidencia a existência da própria caverna.

Em respeito ao Rio de Janeiro, sair da caverna seria deixar para trás todas as suas sombras, estar a salvo delas. Não obstante, como o mito platônico mostra, isso é um processo! Antes de abandonar a Cidade Maravilhosa, cabe primeiro evidenciar que esse “Maravilhosa” já é uma sombra, a mais projetada, aliás; que a Luz olímpica não chega agora para iluminar a cidade “para” os cariocas, mas apenas para fazer com que as sombras que todos eles veem sejam mais eficientemente projetadas, para que os cariocas sigam acreditando que a sua cidade é Maravilhosa, embora ela não seja nem deles, nem Maravilhosa.

A Luz verdadeira, que fica obscurecida pela estratégica escuridão urbana, é a gentrificação da própria Caverna. A Caverna Carioca não escapa disso! E para que os cariocas não descubram que a cidade não tem nenhum Sol ideal no fim do túnel, a politicagem imobiliário-especulatória coloca na porta da caverna urbana um pelotão armado impedindo os “aprisionados” de sair, assim como fez o governador do Rio de Janeiro: proibiu os suburbanos – vítimas excelentes da gentrificação – de acessarem o sol dominical da Z.S.; essa Luz mentirosa que cria/projeta a sombra suburbana. Esta sombra, no entanto, é a primeira verdade que devemos conhecer – e iluminar! – dentro da obscura, todavia pretensiosa, Caverna do Rio Olímpico.