Neoterraplanismo, o outro do neoconservadorismo.

neoterraplanismo

Mais difícil do que suportar terraplanistas, isto é, aqueles que creem que a Terra é plana e não geoide, é entender porque, a despeito de evidências científicas, essa antiga crença ganhou espaço nas cabeças de certos indivíduos contemporâneos. Entretanto, esse fato absolutamente intempestivo não é acidental nem tampouco má-fé de seus polemizadores mais vulgares. Trata-se, objetivamente, da repercussão oportunista de um modelo cosmológico caduco que, todavia, ainda guarda em si os mesmos poderes ideológicos e consequências sociopolíticas de outrora. E é em prol de um certo projeto de poder: o neoconservadorismo, que essa velha ideia foi ressuscitada.

Um sistema cosmológico, fictício ou cientificamente comprovado, é uma imagem de como o universo é e se organiza, e, entre outras coisas, serve de fundamento, de justificativa para as instituições socioculturais daqueles que nele creem. A monarquia, qual seja, a centralização do poder em um só indivíduo, por exemplo, é a outra face do antigo modelo cosmológico ptolomaico/ geocêntrico, para o qual o universo tem um centro definido, com a Terra ocupando esse centro. Daí as sociedades passadas,  tradicionais, desejantes de respeitar e reproduzir “a lógica eterna do cosmos”, organizarem-se do mesmo modo: a sociedade também deve ter um centro e esse centro deve ser ocupado por um indivíduo determinado em torno do qual os demais orbitam.

Já a democracia dos nossos Estados modernos, que pulveriza igualitariamente o poder entre os indivíduos de uma sociedade (para a qual as ideias de centralidade e de poder, ao menos formalmente, são apenas representativas) é reflexo inevitável do subsequente modelo cosmológico copernicano, segundo o qual a terra não mais ocupa o centro do universo nem o universo tem um centro unívoco. Para Freud, essa foi a “primeira ferida narcísica da humanidade”. Com essa nova forma cósmica desenvolve-se a ideia de que, se não é natural as coisas se organizarem hierarquicamente no universo; se não há centros universais; as sociedades humanas, que são coisas no universo, tampouco devem refletir tal irrealidade.

Essas duas imagens cosmológicas: a ptolomaica e a copernicana, e as duas formas de organização do poder que delas decorrem: a monarquia e a democracia, respectivamente, esclarecem a identidade entre determinadas ideias de organização do universo e as realidades sociopolíticas humanas. A proposição inicial, segundo a qual o neoterraplanismo é o outro do neoconservadorismo, se dá sobre essa base. Assim como outrora a monarquia encontrou longeva justificativa em uma imagem cósmica, assim também os atuais promotores de uma nova centralização do poder agem. E colar cacos do passado para com eles construir os vasos do presente e futuro é próprio do pior conservadorismo reacionário.

Então, como foi dito, o uso da ideia terraplanista não é acidental. É, na verdade, a tentativa, de indivíduos sedentos pelo poder absoluto, de restabelecer uma ordem cósmica que justifique as suas ideias de como a sociedade deve estar ordenada. O neoconservadorismo não conseguirá ser tão profundo e longevo quanto sua versão pretérita enquanto a imagem copernicana de um universo livre de centros hierárquicos for paradigmática.

Ícone tupiniquim tanto do neoconservadorismo quanto do terraplanismo é o “pornofilósofo” Olavo de Carvalho que, como muitos autores conservadores, acredita que um projeto de poder não encontra espaço na realidade se com ele não vir junto uma imagem do todo, do cosmos, que o sustente com ares de naturalidade. Esse autor defende, há anos, a ideia de que a direita deve trazer ao mundo um novo e completo modelo de realidade caso queira recuperar o seu poder perdido para “as esquerdas”, que, segundo ele, venceram historicamente popularizando uma imagem do todo onde somente a democracia é reflexo cósmico fidedigno.

Pelo que podemos observar atualmente, o ressurgimento da falsa imagem da Terra plana; da centralidade da Terra e consequente periferização do restante do universo relativamente a esse centro excelente acompanha o levante dos poderes conservadores de direita no mundo, não apenas no Brasil. Apenas um projeto de poder tão ambicioso e intempestivo quanto o que Olavo de Carvalho e seus congêneres reacionários defendem justifica as presentes afrontas, tanto ao virtuoso cientificismo de nossa época, quanto à própria sensibilidade humana.

O Objetivo primordial dos promotores oficiais do neoterraplanismo não é revelar uma verdade maior a ser acordada por todos após uma batalha propriamente racional. Antes, pretendem apenas abrir uma discussão que de forma alguma deve ter fim, mas que crie dissidências irrecuperáveis entre as pessoas; para conturbar o espaço de esclarecimento que paulatinamente a humanidade construiu para si; para estabelecer dois tipos de pessoas: os que veem o universo como ele é, e os que não. Daí, se vitoriosos, poderão tratar os que discordam de sua “verdadeira imagem do cosmos”, no melhor dos casos, como idiotas, ou, no pior, como escravos. Ah, e nunca é demais lembrar da intimidade histórica do conservadorismo com a escravidão; com a sujeição de uns a outros; e, no ápice, e todos a um só.

Corriqueiro, historicamente falando, é portadores de grandes e revolucionárias verdades serem mortos, exilados, queimados vivos. Giordano Bruno, por exemplo, teve esse último destino por afirmar que o universo é infinito. Filósofos antigos, bruxas medievais e cientistas modernos: suas verdades são tão poderosas que ameaçam profundamente as forças que se fundamentam em imagens falsas da realidade.

 Há sim a possibilidade de a verdade científica ser obscurecida por sombras ideológicas demodês em função de objetivos mundanos perversos. O que pode salvar nosso presente e futuro, contudo, é outra imagem da realidade que dificilmente se poderá negar: a de que, na História, a racionalidade sempre venceu a irracionalidade; a civilização, a barbárie; a política, a violência. Pode demorar um tanto, assim como toda batalha, mas não temos melhor quadro da humanidade senão o da construção da liberdade justificada no conhecimento verdadeiro em relação à realidade.

Creio que a melhor tática anti-neoterraplanista seja espantar-se menos com a sua popular repercussão, e, em troca, alimentar a consciência de que essa mentira, embora mentira, é dita e sustentada por motivos reais, concretos, de uma elite que não suporta a ideia da distribuição universal do poder e, por isso, precisa rejeitar qualquer modelo de cosmos que exprima a descentralização. Os neoterraplanistas estrategicamente interessados, aqueles que incutem objetivamente tal ilusão nas cabeças de milhões de pessoas, não para informá-las sobre a realidade, mas para obter poder real, dificilmente acreditam que a Terra seja de fato plana. Apenas sabem, muito bem, por experiências históricas, que tal lorota tem as suas consequências sociopolíticas. E são justamente estas que eles objetivam com a sua neofalácia cosmológica, ainda que ao alto preço da racionalidade e sensibilidade humanas.

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