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O buraco político de Steve Bannon

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Atos e declarações do presidente Bolsonaro e de membros de sua família ou governo espantam e, momentaneamente, paralisam o pensamento. Por observação empírica, sei que até defensores seus passam por tal aperto. A atual relação do presidente com seu próprio partido reforça a tese. Será a performance política dos Bolsonaros acidental ou, em vez disso, estratégia?

Não é segredo que a campanha de Bolsonaro usou os serviços de Steve Bannon, assessor político ultradireitista estadunidense que, previamente, elegeu Donald Trump, da mesma forma, mediante torrentes de fake news espetaculares e preconceitos reacionários de toda sorte. Entretanto, o radicalismo de Bannon fez até mesmo o tresloucado líder norte-americano tremer: foi escanteado logo após a vitória de Trump. E Jair Bolsonaro é o pé torto para o chinelo velho de Trump.

A virtude malévola da tática bannoniana está no fato de ocultar a si mesma no momento preciso em que atua. A “mamadeira de piroca”; o “Jesus na goiabeira”; o “um novo A.I.-5”; todas são declarações que, por mais que saibamos que são estranhamente estratégicas, ainda assim cumprem seu papel: espantam, imobilizam e desarmam sobretudo os seus mais radicais críticos. Chega-se ao ponto, paralisante, onde a veracidade ou não dos fatos ser de somenos importância comparado ao julgamento intenso que já fazemos a respeito deles. O objetivo é substituído pelo subjetivo. A lógica da pós-verdade estrutura esse sistema.

O sucesso dessa técnica política cobra preço alto: diante de ataques ou tropeços, a tática é dobrar a aposta, porém, contra si mesmo; ser mais autodestrutivo do que qualquer risco de destruição vinda de fora. Um dia após a reportagem do Jornal Nacional sobre o porteiro no caso Marielle, o Eduardo Bolsonaro ameaça seus opositores com um “novo A.I.-5, mesmo que, em seguida, todos, inclusive o pai, repreendessem-no publicamente. Ora, se é inevitável estar envolvido em um escândalo, que seja um criado pelos próprios Bolsonaros, sobre o qual podem ter maior controle, ainda que seja mais grave do que aquele do qual fogem.

É um tiro no pé que funciona, ao menos no calor do momento. O problema é que, de tiro no pé em tiro no pé, a besta vai se mutilando. A questão é saber quanto tempo aguentarão a autodestruição como forma de evitar a destruição externa? Trump já colhe os frutos podres do seu método bannoniano de ascensão ao poder. Pode estar deposto em breve.

O modo de sobrevivência política de Bannon, abusado por Bolsonaro, reflete o modo com que o capitalismo se mantém em pé. Suas crises antecipam-se e tomam o lugar de todas as outras. E não importa quão feias e desumanas sejam as resoluções subsequentes. Na crise de 2008, trilhões de dólares foram furtados da população norte-americana para salvar o sistema financeiro daquele país, o autor discreto e deliberado da crise. Tanto que o capitalismo não se contenta mais com crises estratégicas e revigorantes a cada dez anos. Caminhamos para um capitalismo de crise constante, o que faz muito bem para o capitalismo.

Assim como o capitalismo contemporâneo, Jair Bolsonaro sobrevive politicamente cavando ele mesmo buracos maiores do que aqueles nos quais cai. Dessa forma, sobrevive aos instantes críticos, repetindo sempre a mesma forma eficiente com outros conteúdos aleatórios: quilombolas, gêneros sexuais, ciência, comunismo, o próprio partido… E, como o capital, avança deixando atrás de si buracos mais profundos que, por suas vezes, exigem buracos ainda maiores para engoli-los e escondê-los.

Diante dos atos e declarações dos Bolsonaros ainda fico espantado e paralisado apesar da clara consciência de que é a estratégia bannoniana que as anima. E experimento genuinamente a dificuldade de permanecer atento a ela no calor dos fatos. Assim como é mais difícil responsabilizar o capitalismo financeiro pelas grandes tragédias humanas e ambientais, pois o capitalismo faz com que o problema crucial esteja sempre em outro lugar que não no próprio capitalismo, para, em seguida, apresentar-se como a única solução, assim também é difícil manter a consciência de que sob as vociferações crísicas e malévola dos Bolsonaros jazem crises e maldades ainda maiores, escondendo-se viciosamente sob novas e mais sofisticadas crises.

O drama social é que precisam levar tudo e todos para os buracos que criam para si, no sempiterno desvio dos obstáculos da realidade. Entretanto, buraco algum comportará, por muito tempo, a aberta dimensão humana. Nossa natureza, se é que há uma, é sair dos buracos que o real impõe; é superá-los com soluções positivas, que acrescentem liberdade, civilidade e, por que não dizer, beleza ao mundo; e não, como querem Bannon, Trump e Bolsonaro, saídas negativas, destrutivas, que tentem desviar de dilemas cruciais mediante regressões cognitivas, éticas, sociais, políticas; como se, refugiando-se no passado de uma determinada limitação estivéssemos enfim livres delas

A tarefa lúcida do povo brasileiro, eleitores de Bolsonaro ou não, é a seguinte: não esquecer de que o grotesco espetáculo político do presidente e família não é um problema real, mas uma realidade artificiosa, criada para esconder o real. Enquanto nos ocuparmos com as espumas das ondas bolsonarianas – “a mamadeiras de piroca”; “o Jesus na goiabeira”; “meninos vestem azul e meninas rosa”; o “novo A.I.-5 -, há uma realidade que importa a todos que, contudo, permanece ignorada. Talvez devamos nos habituar à barbárie política bannoniana até conseguirmos destacá-la objetivamente da imagem que temos do real. Esse é o buraco do qual devemos sair caso queiramos seguir humanos.

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Neoterraplanismo, o outro do neoconservadorismo.

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Mais difícil do que suportar terraplanistas, isto é, aqueles que creem que a Terra é plana e não geoide, é entender porque, a despeito de evidências científicas, essa antiga crença ganhou espaço nas cabeças de certos indivíduos contemporâneos. Entretanto, esse fato absolutamente intempestivo não é acidental nem tampouco má-fé de seus polemizadores mais vulgares. Trata-se, objetivamente, da repercussão oportunista de um modelo cosmológico caduco que, todavia, ainda guarda em si os mesmos poderes ideológicos e consequências sociopolíticas de outrora. E é em prol de um certo projeto de poder: o neoconservadorismo, que essa velha ideia foi ressuscitada.

Um sistema cosmológico, fictício ou cientificamente comprovado, é uma imagem de como o universo é e se organiza, e, entre outras coisas, serve de fundamento, de justificativa para as instituições socioculturais daqueles que nele creem. A monarquia, qual seja, a centralização do poder em um só indivíduo, por exemplo, é a outra face do antigo modelo cosmológico ptolomaico/ geocêntrico, para o qual o universo tem um centro definido, com a Terra ocupando esse centro. Daí as sociedades passadas,  tradicionais, desejantes de respeitar e reproduzir “a lógica eterna do cosmos”, organizarem-se do mesmo modo: a sociedade também deve ter um centro e esse centro deve ser ocupado por um indivíduo determinado em torno do qual os demais orbitam.

Já a democracia dos nossos Estados modernos, que pulveriza igualitariamente o poder entre os indivíduos de uma sociedade (para a qual as ideias de centralidade e de poder, ao menos formalmente, são apenas representativas) é reflexo inevitável do subsequente modelo cosmológico copernicano, segundo o qual a terra não mais ocupa o centro do universo nem o universo tem um centro unívoco. Para Freud, essa foi a “primeira ferida narcísica da humanidade”. Com essa nova forma cósmica desenvolve-se a ideia de que, se não é natural as coisas se organizarem hierarquicamente no universo; se não há centros universais; as sociedades humanas, que são coisas no universo, tampouco devem refletir tal irrealidade.

Essas duas imagens cosmológicas: a ptolomaica e a copernicana, e as duas formas de organização do poder que delas decorrem: a monarquia e a democracia, respectivamente, esclarecem a identidade entre determinadas ideias de organização do universo e as realidades sociopolíticas humanas. A proposição inicial, segundo a qual o neoterraplanismo é o outro do neoconservadorismo, se dá sobre essa base. Assim como outrora a monarquia encontrou longeva justificativa em uma imagem cósmica, assim também os atuais promotores de uma nova centralização do poder agem. E colar cacos do passado para com eles construir os vasos do presente e futuro é próprio do pior conservadorismo reacionário.

Então, como foi dito, o uso da ideia terraplanista não é acidental. É, na verdade, a tentativa, de indivíduos sedentos pelo poder absoluto, de restabelecer uma ordem cósmica que justifique as suas ideias de como a sociedade deve estar ordenada. O neoconservadorismo não conseguirá ser tão profundo e longevo quanto sua versão pretérita enquanto a imagem copernicana de um universo livre de centros hierárquicos for paradigmática.

Ícone tupiniquim tanto do neoconservadorismo quanto do terraplanismo é o “pornofilósofo” Olavo de Carvalho que, como muitos autores conservadores, acredita que um projeto de poder não encontra espaço na realidade se com ele não vir junto uma imagem do todo, do cosmos, que o sustente com ares de naturalidade. Esse autor defende, há anos, a ideia de que a direita deve trazer ao mundo um novo e completo modelo de realidade caso queira recuperar o seu poder perdido para “as esquerdas”, que, segundo ele, venceram historicamente popularizando uma imagem do todo onde somente a democracia é reflexo cósmico fidedigno.

Pelo que podemos observar atualmente, o ressurgimento da falsa imagem da Terra plana; da centralidade da Terra e consequente periferização do restante do universo relativamente a esse centro excelente acompanha o levante dos poderes conservadores de direita no mundo, não apenas no Brasil. Apenas um projeto de poder tão ambicioso e intempestivo quanto o que Olavo de Carvalho e seus congêneres reacionários defendem justifica as presentes afrontas, tanto ao virtuoso cientificismo de nossa época, quanto à própria sensibilidade humana.

O Objetivo primordial dos promotores oficiais do neoterraplanismo não é revelar uma verdade maior a ser acordada por todos após uma batalha propriamente racional. Antes, pretendem apenas abrir uma discussão que de forma alguma deve ter fim, mas que crie dissidências irrecuperáveis entre as pessoas; para conturbar o espaço de esclarecimento que paulatinamente a humanidade construiu para si; para estabelecer dois tipos de pessoas: os que veem o universo como ele é, e os que não. Daí, se vitoriosos, poderão tratar os que discordam de sua “verdadeira imagem do cosmos”, no melhor dos casos, como idiotas, ou, no pior, como escravos. Ah, e nunca é demais lembrar da intimidade histórica do conservadorismo com a escravidão; com a sujeição de uns a outros; e, no ápice, e todos a um só.

Corriqueiro, historicamente falando, é portadores de grandes e revolucionárias verdades serem mortos, exilados, queimados vivos. Giordano Bruno, por exemplo, teve esse último destino por afirmar que o universo é infinito. Filósofos antigos, bruxas medievais e cientistas modernos: suas verdades são tão poderosas que ameaçam profundamente as forças que se fundamentam em imagens falsas da realidade.

 Há sim a possibilidade de a verdade científica ser obscurecida por sombras ideológicas demodês em função de objetivos mundanos perversos. O que pode salvar nosso presente e futuro, contudo, é outra imagem da realidade que dificilmente se poderá negar: a de que, na História, a racionalidade sempre venceu a irracionalidade; a civilização, a barbárie; a política, a violência. Pode demorar um tanto, assim como toda batalha, mas não temos melhor quadro da humanidade senão o da construção da liberdade justificada no conhecimento verdadeiro em relação à realidade.

Creio que a melhor tática anti-neoterraplanista seja espantar-se menos com a sua popular repercussão, e, em troca, alimentar a consciência de que essa mentira, embora mentira, é dita e sustentada por motivos reais, concretos, de uma elite que não suporta a ideia da distribuição universal do poder e, por isso, precisa rejeitar qualquer modelo de cosmos que exprima a descentralização. Os neoterraplanistas estrategicamente interessados, aqueles que incutem objetivamente tal ilusão nas cabeças de milhões de pessoas, não para informá-las sobre a realidade, mas para obter poder real, dificilmente acreditam que a Terra seja de fato plana. Apenas sabem, muito bem, por experiências históricas, que tal lorota tem as suas consequências sociopolíticas. E são justamente estas que eles objetivam com a sua neofalácia cosmológica, ainda que ao alto preço da racionalidade e sensibilidade humanas.

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Política, comédia e educação.

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Diante da contemporânea “tragédia” política brasileira, parece um perigoso exercício de alienação o mar de memes que faz troça do roubo do poder por uma corja de golpistas criminosos e do radical furto de direitos da população. Todavia, esse talento cômico do nosso povo face às vicissitudes da política não é invenção sua. Nascida na Atenas antiga, a comédia era a crítica e a expressão mais candente da crise daquela democracia. E isso porque, nas palavras do filósofo Werner Jaeger, na sua clássica “Paideia”, “A comédia visa as realidades do seu tempo mais do que qualquer outra arte”.

Disseram alguns que o homem é o único animal capaz de rir. Outros, mais mordazes, que ele é o único capaz de rir de sua própria desgraça. Se é assim, a comicidade é a forma humana de encarar a realidade quando ela é mais difícil de suportar. Estaria a sabedoria popular certa ao repetir que “É melhor rir do que chorar”? Ou, antes, certo está Platão ao dizer que a vida humana tem de ser encarada ao mesmo tempo como tragédia e como comédia? Bem, o povo brasileiro parece não escapar do dito do pai da filosofia… Resta saber como a popular memética cômica desses nossos dias golpistas pode nos ajudar na nossa tragédia política.

Jaeger conta que “A origem da comédia encontra-se no incoercível impulso das naturezas mais comuns … na tendência popular, realista, observadora e crítica”. Na Atenas antiga, ela tinha a tarefa da crítica pública, ou seja, da crítica feita pelo povo, ou, pelo menos, da perspectiva do povo. Todavia, adverte o filósofo, a comédia nunca constituiu algum grande plano político organizado. De uma parte, contribuía para desanuviar a atmosfera de opressão. De outra, comunicava publicamente a situação de opressão, apontando distintivamente os opressores. Para Jaeger, a comédia é a “elevada arte do ataque pessoal dirigida até mesmo às pessoas de mais alto posto na hierarquia do Estado”.

Sabemos que a democracia, isto é, a administração do Estado pelo povo, foi uma invenção dos atenienses. Antes disso, e em outros lugares, a lei que regia as sociedades vinha sempre de cima. Primeiro, dos deuses. Depois, dos heróis e dos reis. Em Atenas, contudo, a lei passou a ser produto dos próprios cidadãos, de suas livres deliberações democráticas. Entretanto, afirma Jaeger, a democracia ateniense tanto deu liberdade ao povo que, a certa altura, precisou limitá-la para evitar o caos social. Só que essa limitação, democraticamente falando, não poderia vir do próprio Estado democrático. Se assim tivesse sido, falaríamos de tirania, e não de democracia. Então o Estado democrático, prossegue o filósofo, fez com que tal limitação viesse das interferências do próprio povo, melhor dizendo, da opinião pública, que se expressava, verdadeira e contundentemente, na comédia.

Com efeito, para Jaeger, a comédia veio ao mundo grego como “o mais genuíno produto da liberdade democrática da palavra”. Claro que as autoridades oficiais procuravam, sempre que podiam, proteger as pessoas de prestígio dos cômicos ataques populares. Mas o filósofo conta-nos que tais proibições não duravam muito. Afinal, cada vez mais sabia-se que negar o que a comédia trazia a público significava negar algo de muito importante da realidade. Para Jaeger, a comédia encarnava o invisível numa forma sensível, fazendo ver as forças opostas da comunidade e do indivíduo; do povo e da elite; dos pobres e dos ricos; da liberdade e da opressão; do passado e do presente. Em suma, era através da comédia que a crísica sociedade grega conhecia seus recônditos ao ironizar a si mesma.

Na crise da democracia e da pólis grega, prossegue Jaeger, “Só a comédia era capaz de exprimir isso para todos”. Antes disso, a religião, com seus deuses, e a tragédia, com seus heróis, cumpriam o papel de comunicadoras e unificadoras universais daquela sociedade. Porém, com a progressiva laicização da vida que resultou politicamente na democracia, os atenienses não puderam mais contar com sobre-humanidades nenhumas, fosse para compreender, fosse para atacar seus problemas sociais e políticos. Diante desse novo, grandioso e absolutamente mundano desafio, Jaeger conta que somente a comédia, com sua linguagem e penetração social, foi capaz de colocar a sociedade diante do espelho.

Está certo que a comédia não salvou Atenas e a sua democracia. Ainda mais depois da dominação de Alexandre, o Grande, quando as cidades-estado gregas perderam a sua razão de ser, e a revolucionária democracia ateniense passou a jazer apenas em forma de saudosa lembrança. Trágico destino, obviamente, depõe contra qualquer tentativa de se enfrentar a vileza da realidade apenas fazendo rir. Entretanto, como dito antes, a comédia nunca foi um macro plano organizado de solução sociopolítica global, mas sim uma forma particular – se bem que a maior de seu tempo – de reconhecimento público de um presente crísico.

Relativamente ao presente brasileiro, só devemos condenar o nosso ímpeto espirituoso face às agruras sociopolíticas se nada além de troça fizermos. Nada contra o riso – humano, demasiado humano tomar conta da sociedade, qual histeria coletiva, em reação imediata a grandes dificuldades. Afinal, como diz aquela canção, “É melhor ser alegre que ser triste”. Agora, como bem sabe o ditado popular, “Rir de tudo [e o tempo todo] é desespero”. Um povo que realmente espera resolver seus problemas, e isso sem contar com deuses nem heróis, depois de comunicar cômica e publicamente o próprio infortúnio, deve cerrar os dentes e agir seriamente.

Que seriedade, não obstante, pode sobrevir, primeiro, à tragédia, e, por fim, à comédia, senão a consciência positiva e comunicável desse processo? Jaeger é categórico em dizer que, após o apogeu da vida política e social da Grécia, quando finalmente estavam arruinados todos os seus maiores bens, tais como o Estado, o poder, a liberdade e a vida cívica, algo de extremamente valioso permaneceu vivo e operante: a Paideia grega, isto é, o sistema de educação e formação ética daquele povo, cujo escopo era a formação do cidadão perfeito e completo, capaz de desempenhar um papel positivo na sociedade.

Foi justamente em meio às trevas irremediáveis da catástrofe política grega que se revelaram os maiores gênios da educação, tais como Sócrates, Platão e Aristóteles, que transmitiram aos outros povos da Antiguidade e à posteridade histórica, até nós, a mais alta expressão possível de humanidade. Não que a educação deva surgir somente após a tragédia e a comédia. Na verdade, ambas desde sempre já foram modos educacionais a conduzir toda uma sociedade ao seu melhor fim. A grandeza grega esteve, e ainda está, justamente no fato de a educação ser substantiva. Superada a educação trágica, que socializava a imersão humana no inescapável fluxo da vida, e a educação cômica, que permitia ao público falar a si mesmo de seu trágico destino, restou a educação per se, enquanto objetivação racional do conhecimento do mundo e de si próprio.

Talvez devamos mudar um pouco a frase de Platão apresentada no início. Em vez de a vida humana, seja a grega antiga, seja a tupiniquim contemporânea, dever ser encarada ao mesmo tempo como tragédia e como comédia, se tomarmos o exemplo da própria evolução histórica da sociedade grega, que primeiro foi trágica, depois cômica, para, por fim, ser puramente paidêutica, isto é, educacional, quem sabe a atual dinâmica do povo brasileiro de, primeiro, sofrer seus revezes, para, em seguida, fazer piada deles, seja o necessário calvário do nascimento de um verdadeiro processo de conhecimento e de aperfeiçoamento de sua, de nossa, própria condição social.

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Financeirização da economia e a dominação ilimitada

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Como impedir a classe dominante de dominar? Marx bem tentou responder essa pergunta no seu Manifesto Comunista, que começa afirmando que “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Só que essa tarefa se mostrou bem mais difícil do que o grande filósofo materialista imaginou. Mais ainda depois que o capitalismo se libertou de qualquer limitação material, ou seja, após o presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971, abolir o lastro material do Dólar. Com esse ato, foi dispensado o fundamento material daquela moeda, e por efeito cascata, o de todas as demais. Doravante o dinheiro, e a dominação que ele proporciona, passaram a ser inventados. Claro, quem detém o poder (político e militar) para tal “alquimia” é a classe dominante, que, quanto mais inventa riqueza, mais a inventa para si mesma, e, portanto, mais-domina.

Para inventar sua dominação de modo legal, e além do mais democrático, basta, por exemplo, que as doze famílias mais ricas dos EUA, donas dos doze maiores bancos que formam o Federal Reserv Bank (o banco que cria os dólares para os EUA), enfim, basta que a classe arquitete uma devastadora crise econômica, para a qual apenas alguns trilhões de dólares – que ela mesma pode inventar imediatamente – sejam a solução mais objetiva. O governo então aceita esse dinheiro abstrato e, no mesmo instante, o povo e o futuro desse Estado passam a dever a exata quantia à classe, só que agora, obviamente, em forma de riqueza concreta. Se o lastro para o dinheiro que  a classe inventa findará em barras de ouro ou em mega favelas na África, Ásia e América do Sul tanto faz. A classe cobra concreta e materialmente por centavo que abstratamente inventa.

Só que, dado o montante de dinheiro inventado na nossa economia financeirizada, é impossível lastreá-lo materialmente. Há vários limites. Um deles, o ecológico, é quiçá o que melhor demonstra essa impossibilidade. Há quem diga que seria preciso de seis a dezesseis planetas Terra (em quantidade de ar, água, terra, minérios, etc.) para arrancar, da natureza ao mundo humano, a riqueza material necessária para lastrear a riqueza inventada pela classe. Todavia, embora essa dívida seja de fato material, econômica, social, política e ecologicamente impagável, ela só continua sendo criada porque é logicamente possível fazê-lo. Afinal, nada há de errado em cobrar do futuro, que além do mais é ilimitado, quando se abstrai o fato concreto de que não haverá planeta Terra para tanto.

Para manter essa lógica insustentável funcionando, todos os dominados/endividados que ousam afrontá-la devem ser restringidos legalmente e reprimidos militarmente pela classe. É tão impossível para a humanidade materializar toda a riqueza abstratamente inventada pela classe quanto deter a classe na sua desenfreada financeirização da econômica. Na época de Marx, o capitalismo ainda era refém do mundo material. A mercadoria, misto de matéria-prima e meios de produção capitalistas e de mão de obra proletária, era fundamental no processo de produção de mais-valor que permitia à classe mais-dominar. Na financeirização da economia, entretanto, nada de material precisa ser produzido para que venha ao mundo tanto dinheiro quanto deseja a classe. A produção material, obviamente, não desapareceu. Apenas sobrevive em modo zumbi, mentido caducamente que será através dela que se pagará a dívida à classe.

Agora, por mais perverso que seja, esse sistema no qual a classe minoritária dominante pode inventar, em nome da classe majoritária dominada, uma dívida maior do que o futuro da humanidade, obrigando esta última, legal e militarmente, a pagá-la, materializá-la, lastreá-la com o suor de seus corpos, é de uma estratégia admirável. Nunca foi tão fácil dominar! Žižek bem disse que, desaparecendo a necessidade de fundamento material para a dominação de classe, e bastando a classe inventar quantas vezes quer ser mais rica e dominante, o que resta é a dominação direta e injustificável de uns indivíduos sobre outros, como se se tratasse de uma determinação divina, extra-humana. Inventar dinheiro, no mundo capitalista, é inventar poder. Poder criar uma dívida em nome de outros, portanto, é criar poder sobre eles.

Desfinanceirizar a economia é, portanto, um urgente passo para libertar os povos dessa insustentável liberdade da classe de inventar, desimpedida de qualquer restrição material, a sua dominação. Talvez devamos reconsiderar a velha ideia marxiana segundo a qual o sumo valor é tão somente fruto de trabalho humano, pois ela reata os pés de Ajax da classe no chão material do mundo, impedindo-a de inventar abstratamente sua dominação concreta. O grande problema, contudo, é impedir a classe de se valer compulsivamente de sua maior sofisticação (inventar sua superioridade) uma vez que ela está de posse dos Estados e de seus exércitos.

Uma autêntica revolução seria a solução, pois desfinanceirizaria a economia capitalista ao destruir próprio o cosmo capitalista. Ora, se é para desafiar o Estado burguês e sua opressiva força militar, que seja para a maior das mudanças, pois só ela puxará naturalmente todas as demais necessárias. Entretanto, a revolução parece estar mais desacreditada do que nunca. Todavia, não porque os preceitos socialistas revolucionários tenham perdido sua pertinência, mas porque a classe, estrategicamente, assim como vem inventando a sua dominação, inventa também as pseudo verdades que lhes serve, tal como a ideia de que é melhor o capitalismo do que qualquer outra forma econômica para a humanidade subsistir materialmente.

Se não é possível fazer a revolução agora, pois, novamente, temos os Estados nacionais e os seus exércitos contra ela, ao menos alimentemos a ideia de revolução tal qual se encontra excelentemente em Marx. Que não seja possível mudar o mundo por esta ou aquela contingência não deve significar que a razão da mudança seja inválida. Muito pelo contrário. Talvez seja justamente nessa era de economia financeirizada, na qual a invenção de dominação concreta a partir de uma mera abstração é a regra, que uma simples ideia revolucionária possa, subversivamente, aproveitar a onda e materializar-se. Se não há como vencer uma guerra sem ter ao menos as mesmas armas do inimigo, afrontemos então a classe usando a sua mais sofisticada artilharia: inventemos um mundo sem dominação e exijamos, a qualquer custo, que o mundo material e concreto corresponda a essa justa, e até aqui, abstração.

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Neoliberalismo Político-Cultural na Cidade Sorriso

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Nelson Marchezan (esq.), prefeito de Porto Alegre, e, Luciano Alabarse, secretário de cultura.

O secretário de Cultura da capital portalegrense pelo governo do PSDB, Luciano Alabarse, participou do encontro promovido pelo Goethe-Institut chamado “Conversas Cidadãs” para debater “Política Cultural” com a comunidade. Entretanto, o mais próximo que se chegou do grande tema foi a apresentação, em números concretos, por parte do secretário, das políticas culturais da presente administração; e, da parte da plateia, contraposições atinentes à má assistência e até mesmo ilegalidades da atual política cultural estatal, outrossim referentes a fatos concretos. Um espaço franco como o que o Instituto Goethe promoveu entre a comunidade e o Estado, contudo, deveria ser também ocasião para a sociedade alçar-se a assuntos mais globais, pois estes são tão reais quanto determinantes nos casos particulares concretos. Infelizmente, não houve oportunidade para serem abordadas, abstratamente, isto é, independentemente da situação particular da Cultura em Porto Alegre, questões tais como: de onde partem as tais “Políticas Culturais”; a quem elas servem em primeiro lugar; e, o mais importante, que espécie de política resta e é combativa quando a “política cultural oficial” é problemática?

Nesse sentido, vale lembrar a distinção feita pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu entre “Política Cultural” e “política da Cultura”. A primeira, referindo-se à política culturalizante produzida e aplicada verticalmente por quem ocupa o poder político, e, sem ingenuidade, para benefício próprio. Como exemplos trágicos de “políticas culturais” temos as dos Estados de Mussolini, Hitler e Stalin. Contrapondo-se à “política cultural”, a “política da Cultura” é a organização e a mobilização política da categoria cultural para ter força diante da “Política Cultural estatal”. (Digo “categoria” e não “classe” porque é munição política ter bem claro que classes são apenas duas: a dominante e a dominada). Analogamente à distinção entre Estado e sociedade civil distinguem-se “Política Cultural” e “política da cultura”. A ausência dessa profundidade bourdieuana no “Conversas Cidadãs” acabou por impedir a plateia de poder criticar a própria ideia de “Política Cultural” e, consequentemente, de pensar uma outra política efetivamente em função da Cultura e de sua categoria.

Claro, para saber que a Política Cultural do Estado serve imediatamente a quem governa esse Estado é necessário saber também que os nossos Estados Nacionais são uma produção da classe dominante burguesa que afasta o povo do autogoverno via “a nossa democracia” representativa. Nisso, Marx sempre esteve certo: o Estado é um instrumento de dominação de classe. No ínterim estatal burguês, o povo ganha permissão para “participar do poder” apenas no cada vez mais inócuo expediente das urnas, sendo que em qualquer outra aventura popular em função de mais poder além desta será – como de fato é – constrangida legalmente e reprimida militarmente. Abstrair da ideia de “Política Cultural” as políticas culturais de um governo determinado permite ver inclusive que faz pouca diferença o Estado estar nas mãos de um partido de direita ou de um de esquerda: o Estado enquanto tal servirá à parcialidade às custas da totalidade. Sequer precisaríamos do exemplo peessedebista para vermos como e até onde políticas públicas são feitas para benefício de banqueiros e empresários.

Na ignorância desse fato, muitos participantes do Conversas Cidadãs, na defesa da Cultura e de sua categoria profissional, chegaram ao absurdo de, ingenuamente, defenderem que a categoria cultural deveria “sentar junto” com o secretário (do PSDB!) para “construírem conjuntamente” a solução para os graves problemas da cultura portalegrense. Alabarse, como legítimo representante do Estado neoliberal naquele auditório, elogiou diversas vezes a ideia. Entretanto, não por ser a solução para os reais problemas da Cultura e da categoria que dela sobrevive e nela se realiza, mas porque obscurece ainda mais a distância entre a “Política Cultural estatal” e a “política da Cultura”. Assim como o neoliberalismo mente uma igualdade onde não existe ao defender que é melhor deixar patrões e funcionários a sós para resolverem suas questões, assim também é mentiroso que seja melhor à categoria cultural sentar amigavelmente com o braço cultural do Estado como se houvesse paralelismo de metas entre eles.

Impossível não lembrar de Nicolau Maquiavel, filósofo italiano que deixou bem claro, lá na aurora da modernidade, que a ventura de uma sociedade não se dá na paz e na concórdia interna, mas na irresolubilidade do conflito político. Dessa perspectiva, obviamente, não é “sentando em paz” com o secretário do PSDB que a categoria cultural se beneficiará (assim como patrão e funcionários deixados sozinhos é bom só para o patrão). Maquiavelianamente falando, alguma autonomia à categoria cultural só será possível quando esta categoria se colocar, política e organizadamente, contra a verticalidade inerente a qualquer “Política Cultural estatal”, e, particularmente, contra a política cultural específica do PSDB. Por isso é importante manter a distinção de Bourdieu entre “Política Cultural” e “política da Cultura”: para não nos esquecermos de que no plano da “Política Cultural estatal”, ainda mais na de um Estado gestado neoliberalmente, não está a realização da Cultura nem tampouco a de sua categoria, mas somente no antagonismo a tal “Política”.

E o engodo neoliberal segundo o qual “a solução” é o secretário de cultura e a sociedade “sentarem juntos” para construírem o bem da Cultura portalegrense, estratégia que oblitera a dissimetria entre essas duas partes, serviu de trampolim para Alabarse dizer pública, vertical e neoliberalmente que “fora da parceria público-privado não há solução para os problemas da cultura local”. Resumindo: aceitar “sentar juntos” com esse representante do Estado é ter de engolir, de pronto, o propósito mor de seu partido: o privado – e às custas do público. Se isso fosse claro, a plateia não cogitaria pax alguma com o secretário, mas apenas uma incansável luta política, pois, com efeito, não se trata de a categoria cultural desejar que a política de seus governantes lhes sirva a partir de cima, acidental ou dadivosamente, mas, decisivamente, de fazer os governantes entenderem que é a “política da Cultura”, gestada e defendida pela categoria cultural, que deve ser tornada “a” política cultural do Estado. Pois assim o Estado não será obstáculo, mas, em vez disso, um meio de a Cultura e todos as pessoas que dela vivem realizarem-se cultural e materialmente. Se bem que, aí, nem poderíamos mais chamar essa coisa de Estado…

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Uma reflexão sobre o neofundamentalismo tupiniquim

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Imagem: Rafael Silva

A despeito de toda ciência, desenvolvimento tecnológico e cultural, em suma, de toda autonomia que a humanidade historicamente conquistou para si, o fundamentalismo religioso novamente se empodera dentro da nossa sociedade. É estarrecedor, por exemplo, que em pleno século XXI centenas de deputados estaduais cantem, de mãos dadas e entusiasticamente, um não sei que hino religioso-evangélico, em pleno horário de trabalho na Assembleia Legislativa do Estado (constitucionalmente laico) do Rio de Janeiro. Infelizmente, essa força obscurantista cresce não só no parlamento fluminense, mas em toda política brasileira, fato que conflita frontalmente com a certeza, moderna por excelência, de que da política a religião deve estar excluída.

Não estará errado quem disser, lucidamente, que por trás da ladainha neofundamentalista há, imediata e objetivamente, o projeto de poder de alguns poucos que, apenas instrumentalmente exploram o divino para melhor obterem êxito mundano. Não é mistério que engôdos para manipular a opinião pública é lugar-comum na luta pelo poder. Quem conhece minimamente a “nossa democracia” sabe muito bem que basta plantar sordidamente, e regar insistentemente certas ideias em parte substantiva da população para ideologizá-la em benefício próprio. E uma vez que a alienação fundamentalista estrategicamente criada por uns poucos em função do poder é só uma variante da sempiterna alienação produzida pelo macroprojeto de poder do capital, talvez seja mais oportuno investigar a particularidade da vulnerável população tupiniquim sobre a qual esses oportunistas fundamentalistas estão lançando suas podres sementes para crescerem qual erva daninha.

Procurando, na presente conjuntura, pelo “sentimento nacional” que estaria unindo a um só tempo gregos e troianos, melhor dizendo, fundamentalistas retrógrados e modernistas progressistas, encontraremos, em primeiro lugar, a indignação coletiva com a corrupção política. E, em segundo e remediativo lugar, temos a exigência outrossim coletiva de que haja ética na política. Exemplos emblemáticos e históricos, tais como junho de 2013 e os movimentos pró-impeachment de 2015 e 2016, porventura não foram, cada qual com sua distinta qualidade, clamores massivos no sentido de se eticizar a política para então ser possível controlar, quiçá erradicar a afrontosa e sistemática corrupção?

Entretanto, para frustração geral, a corrupção e a imoralidade na política não desapareceram. Ao contrário, estão mais livres e corrosivas do que nunca. Ai está o ponto que merece especial atenção para se entender a receptividade religiosa-fundamentalista por parte da população brasileira. O fracasso popular – tanto o dos progressistas de 2013 quanto o dos reacionários de 2015 e 2016 – diante da corrupção política pode explicar o fato de algumas pessoas deixarem de confiar nelas mesmas, enquanto indivíduos, enquanto cidadãos, para cumprirem tal empreitada, e, desesperada e irracionalmente, começarem a crer que essa tarefa é sobre-humana, digna apenas de um Deus, ou, o que o projeto de poder por trás disso quer que concluam, digna dos oportunistas vigários mundanos dEle.

Aqui é salutar lembrar de Nicolau Maquiavel, não só porque foi precursor do pensamento político moderno, revolucionária e escandalosamente apartando o longevo casamente entre política e moral, mas sobretudo – o que aqui mais deve nos interessar – porque ele viu que as pessoas só conseguiram um dia se sujeitar às leis civis, isto é, as leis que as próprias pessoas dão a si mesmas, porque, antes, foram habituadas pelas religiões a aceitarem e seguirem mandamentos que valiam e deveriam valer para todos. As religiões, dessa perspectiva maquiaveliana, seriam um estágio pré-civilizatório fundamental à civilidade.

Esse apontamento de Maquiavel sobre o papel das religiões na construção da dimensão propriamente civil pode iluminar o fato de, hoje, algumas pessoas estarem reagindo à corrupção generalizada recorrendo à religião em forma de um clamor desesperado por uma reeducação cívica aplicada pelo “mestre supremo do universo”. O “Não roubarás”, por exemplo, que “coxinhas” e “petralhas” estão exigindo dos seus representantes políticos, em um plano absolutamente laico pode ser inobservado, como de fato o é, quando se acredita que se pode ficar legalmente impune. Já num plano religioso, onde há um Deus onisciente, mesmo que ninguém no mundo saiba da corrupção cometida por alguém, ainda assim o Ser supremo saberá; dela nunca se esquecerá; e cedo ou tarde fara justiça.

Essa ideia de que Deus é o maior, mais presente e eficiente juiz; de que sua “governança” celestial será a melhor ou única solução; é tão ingênua quanto primitiva. Todavia, explica porque historicamente, no árduo e longo processo de autonomização da humanidade, as pessoas sempre sobrehumanizaram alguns de seus iguais para se assegurarem de que “um poder maior” do que elas lhes protegesse. Daí se sujeitarem ao pai, ao padre, ao rei, ao ditador, ao representante político, e por aí vai; pois sem nenhum poder superior e inquestionável as observando e constrangendo não encontrariam, não dariam a si mesmas restrições suficientes no sentido de não se corromperem.

O paralelo político dessa histórica autonomização humana é a evolução das formas de governo: respectivamente: teocracia, monarquia, aristocracia e democracia. O que os fundamentalistas religiosos talvez mais queiram seja apenas reiniciar o ciclo; enquanto os progressistas se negam terminantemente a isso. Porém, lembrando Maquiavel novamente, cada uma das diversas formas de governo se coloca como “a” solução aos problemas, temporal e inevitavelmente, trazidos pela anterior: a monarquia solucionando as insuficiências da teocracia; a aristocracia, as da monarquia; e a democracia, as da aristocracia. Só que a democracia, assim como as demais formas, com o tempo também se torna problemática e insustentável, e, também como as demais, precisa de uma solução extrínseca.

Maquiavel é taxativo – e talvez devêssemos atentar mais para a sua revolucionária sabedoria: a corrupção trazida pela democracia não tem como ser sanada democraticamente. Antes, a democracia apenas a agravará. Se aceitarmos a necessidade de um expediente extraordinário à democracia para resolver os problemas que ela mesmo coloca, as opções seriam duas: ou regride-se reacionariamente a uma forma de governo prévia – a teocracia, a monarquia ou a aristocracia -; ou, em vez disso, progressivamente, introduz-se uma nova forma de governo que possa resolver a crise democrática. Se são essas as opções, temos que os reacionários fundamentalistas já têm a deles, enquanto que os progressistas, infelizmente, ainda não.

Diante do perigo do fundamentalismo teocrático, os progressistas, inclusive os melhor intencionados, insistem na democracia sustentando que nenhuma outra forma de governo é aceitável, independente da circunstância. Interessante é que os progressistas, nessa insistência, são tão fundamentalistas quanto os religiosos; apenas colocam outro deus no pedestal: em vez do perfeito Deus celestial, o imperfeito anjo caído da democracia. Nesse sentido, e paradoxalmente, os neofundamentalistas religiosos são algo menos conservadores que os progressistas: ao menos relativizam democracia e ousam se arriscar em uma outra forma de governo. Algo de salutar no neofundamentalismo religioso – e a a única! – é o fato de aceitarem com menor resistência os limites imanentes da democracia, ainda que seu imperdoável vício seja eleger imediatamente o transcendente.

Esse apego dos progressistas à democracia porventura não poderia ser chamado de fundamentalismo laico? Afinal, como categorizar essa fé cega, essa crença inarredável de que o melhor é o único caminho, em toda e qualquer circunstância, é o democrático? Ora, para quem sabe que a “nossa democracia”, cujo real nome é democracia parlamentar burguesa, é uma forma de governo criada pela casse dominante em benefício próprio para que a única participação da classe dominada no poder se dê no expediente paliativo das urnas, e para que contra todas as demais tentativas dessa classe desfavorecida de participar do poder sejam reprimidas legal e militarmente, enfim, para quem conhece a essência dessa “nossa democracia”, defendê-la é mais do que fundamentalista, é burrice!

Com efeito, há um pecado comum aos fundamentalistas religiosos e aos progressistas laicos: ambos não aventam uma nova e mais eficiente forma de autogoverno mundano. Aqueles, recolocam Deus no comando da sociedade; estes, insistem na forma atual, problemática como bem podemos observar. Que os fundamentalistas assim o façam, não deve causar espanto. Agora, que os progressistas estejam estagnados na ladainha democrática merece uma crítica contundente, afinal, caberia a eles, que defendem o progresso, não permanecerem beatos do já existente para então realizarem de fato o progresso; trazerem o novo, o melhor; em suma, materializarem a evolução.

Os progressistas deveriam criticar a si mesmos, pelo menos tanto quanto criticam os reacionários. Defendendo cega e ingenuamente a democracia, apenas colocam o seu “deus fundamental” para se digladiar com o “deus fundamental dos seus oponentes, e a arena política, por consequência, resta absolutamente fundamentalista. Se os progressistas deixassem de demonizar os ídolos dos reacionários para, em vez disso, trazerem ao mundo não o velho e desgastado deus democrático, que no atual estado das coisas todos deveríamos rejeitar, mas sim uma nova e melhor forma para a realmente resolver o que é mais crítico na nossa sociedade mundana, talvez os deuses dos fundamentalistas caíssem mais facilmente de seus falsos pedestais. Porém, enquanto os progressistas não fazem bem esse seu trabalho de reificar o progresso, os reacionários fazem o deles, notoriamente miserável e velho. E tanto pior para todos.

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A liberdade é um partido!

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Com a modernidade surgiu a ideia de que a história da humanidade é a história da liberdade, mais especificamente, da conquista da liberdade pelo ser humano. No entanto, quando falamos, e até mesmo lutamos por “liberdade”, porventura sabemos o que é esse objeto? Na pós-modernidade não é difícil encontrar quem diga que sim, que cada um conhece a liberdade, afinal, cada sujeito tem ideia do que, para si, a liberdade significa. Todavia, se cada indivíduo tiver o próprio ideal de liberdade, como se se tratasse de uma mera percepção subjetiva e singular, como poderíamos lutar conjunta e objetivamente por uma liberdade que valha igualmente para todos, e, assim, darmos continuidade à história que é a nossa?

Qualquer luta conjunta que pretenda alguma eficiência exige, em primeiro lugar, que haja um acordo em relação ao objeto pelo qual se luta. Mais ainda: um verdadeiro conhecimento desse objeto. E não é demais lembrar que a palavra “conhecer”, do Latim cognoscere, é a composição de “com”, que significa “junto”, mais gnoscere, que significa “saber”. Para a luta pela liberdade ser encampada eficaz e coletivamente, portanto, devemos saber juntos o que liberdade significa, em detrimento de ideias particulares, criticamente atomizados. Nesse urgente sentido, mobilizo aqui as duas concepções quiçá as mais contundentes, na nossa Idade, sobre a liberdade: a burguesa e a socialista.

Para os burgueses, liberdade significa o não impedimento dos indivíduos em seus propósitos particulares. Classicamente, a burguesia lutou para se ver livre dos impedimentos do Estado absolutista e da Igreja. Porém, não tinha por fim a liberdade enquanto tal. Apenas defendeu as “liberdades individuais” estrategicamente, fazendo delas meios para alcançar o fim propriamente burguês: dominar economicamente a sociedade. Já para os socialistas, liberdade significa mais do que apenas não ser impedido de realizar o que se busca. Precisa também ser o poder para os indivíduos materializarem os próprios objetivos. A liberdade burguesa enquanto não impedimento decerto é necessária para, enfim, os indivíduos terem a liberdade socialista de poderem realizar o que querem. Todavia, do ponto de vista socialista, a liberdade burguesa é apenas metade do caminho.

Aqui já podemos ver a importante diferença entre a liberdade burguesa e a liberdade socialista: a primeira significando apenas o não impedimento dos indivíduos por poderes extrínsecos a eles; e a segunda, exigindo que ao desimpedimento burguês seja necessariamente adicionado o poder necessário para que os indivíduos se realizem. Verdade seja dita, as liberdades individuais burguesas foram de valor inestimável para a humanidade: introduziram na tal história da liberdade o desimpedimento dos indivíduos em relação aos intransponíveis vínculos tradicionais do passado. O grande problema delas, entrementes, é que, apesar de boas, não são acessíveis a todos. Sãolibertárias apenas formalmente, e não real ematerialmente.

Só mesmo para um sujeito burguês privilegiado as liberdades individuais significam, ao mesmo tempo, desimpedimento e poder. Já para a imensa maioria das pessoas, que das liberdades individuais burguesas só colhem a migalha formal do desimpedimento, mas não o bife material do poder, para estes, enfim, as liberdades burguesas são tão distantes quanto opressivas. Essa opressão, no entanto, foi o preço sócio-histórico, pago pela maioria das pessoas, pela aventura burguesa de criar e salvaguardar (mediante instituições sólidas) as tais liberdades individuais, que, imediatamente, são inegavelmente boas aos indivíduos e, mediatamente, um passo evolutivo na história da liberdade humana.

Por isso os socialistas não rejeitam as liberdades burguesas, como ingenuamente se poderia pensar. Na verdade, levam-nas muito a sério, quiçá mais do que os próprios burgueses, pois, afinal, tentam fazer com essas liberdades o que o próprio liberalismo burguês não conseguiu, ou não quis fazer. De um lado, os socialistas afirmam que a liberdade enquanto desimpedimento é uma liberdade negativa, meramente formal, e mais importante, que a liberdade real não pode prescindir de poder. De outro lado, defendem a ideia de que o poder deve dizer respeito a todos e à humanidade como um todo, pois só assim os indivíduos serão igualmente livres e a história da humanidade enquanto história da liberdade poderá passar ao seu próximo capítulo.

Com efeito, mobilizando a visão marxiana clássica segundo a qual, do escravismo antigo à servidão medieval, e desta ao capitalismo moderno, o que temos é um processo histórico de libertação humana, o próximo passo que o filósofo previu para a humanidade, o socialismo, não poderia deixar de representar mais liberdade. De modo que o socialismo é o modo de as valorosas liberdades burguesas serem um bem não apenas para poucos (os dominantes), mas para todos, igualitariamente.

Fazer com que todas as pessoas sejam igualmente livres no sentido socialista do termo, ou seja, igualmente desimpedidas e empoderadas, deve ser o próximo passo na história humana da liberdade. Como vimos, a liberdade burguesa, por importante que seja, contudo, não tem condições de democratizar as benesses libertárias que trouxe ao mundo. Evoluir, dentre as opções de que estamos tratando, é investir na liberdade socialista: a liberdade que só se reconhece enquanto tal quando a sociedade como um todo a possui; como desimpedimento e como no poder.

Quem pagará o preço de a liberdade deixar de ser desigualmente particularizada para ser igualitariamente socializada? Essa pergunta permite ver que o ônus da mudança em questão recairá somente sobre a minoria burguesa privilegiada, cuja liberdade é, e no sentido socialista do termo, tanto a de desimpedimento quanto a de poder. Já à maioria desprivilegiada das pessoas, a mudança outra coisa não representará que o bônus do empoderamento material ao praticamente inócuo desimpedimento formal.

O próximo passo humano, no que tange à liberdade, precisa impedir essa minoria burguesa de possuir privilegiadamente o que a maioria desprivilegiada não possui: o poder material para efetivar a sua liberdade. É preciso confrontar socialistamente a burguesia assim como, outrora, elao fez comos poderes tradicionais que lhe impediam. A liberdade material e igualitária dos socialistas, portanto, deve superar a liberdade formal e particularista dos burgues assim como estes superaram a rede de rígidos privilégios medievais que impediam o modo burguês de produção de ter lugar no mundo.

Quando se pressupõe que história da humanidade é a história de sua liberdade, e, além disso, que esta é uma história na qual cada forma socioeconômica representa um passo no sentido da liberdade comparativamente à anterior, o aumento de nossa liberdade depende exclusivamente de que não paremos de caminhar. E o percurso à maior liberdade depende, hoje, de superarmos o particularista paradigma burguês de liberdade e de avançarmos para o igualitarista paradigma socialista de liberdade. E a tarefa pode ser mais fácil do que imaginamos, visto que não estamos falando de uma revolução, mas de simples evolução: da boa, mas desigualitária liberdade burguesa, à melhor, porque igualitária liberdade socialista.

A liberdade, como podemos ver, além de uma questão histórica, coloca-se como uma questão de partido, mais especificamente, de se tomar um partido em relação a ela. Nossas opções, no atual momento histórico, resumem-se a duas – e não na miríade de versões particulares e subjetivas, como insistiria o pós-modernóide. Pode-se tomar o partido dos burgueses e aceitar que a liberdade é boa e válida mesmo que seja para uns poucos – se bem que tomar este partido e não tomar nenhum acabam sendo a mesma decisão, visto que o paradigma burguês da liberdade é dominante. Pode-se em troca, tomar o partido dos socialistas, para os quais só existe liberdade quando todos forem igualmente lives. Leia-se: todos igualmente desimpedidos e empoderados.

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Nada contra a arte. Tudo à liberdade.

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Foto: Rafael Silva. Manifestação contra o cancelamento da Mostra Queer. Porto Alegre.

O cancelamento da Mostra Queer pelo Banco Santander, devido à pressão do Movimento Brasil Livre (MBL), traz uma questão que envolve arte e liberdade. Porém, as manifestações contrárias ao acontecido ainda são vulgares a ponto de colocarem a questão da arte e a questão da liberdade em um mesmo patamar, ou, o que é mais grave, de priorizarem a ofensa à arte em detrimento da afronta à liberdade. Mais do que não resolver o problema, sobrelevar a arte em relação à liberdade faz com que essa própria irresolução sirva (siga servindo) às forças reacionárias; ao próprio MBL. Por quê?

Em primeiro lugar, porque evitar tratar o autoritarismo do MBL apenas como uma censura artística, estética, mas, centralmente, como uma questão ética referente à liberdade enquanto tal, enfim, fazer isso permite apontar a contradição quiçá mais escandalosa desse vil inimigo: confrontá-lo com o fato de que, de um lado, ele se autodenomina liberal, ou seja, defensor das liberdades individuais, mas, de outro lado, furta, assumida e despoticamente, a liberdade tanto dos artistas quanto do público que quer fruir da arte deles. Focalizar na questão da liberdade permite metralhá-los com a crua verdade que lhes cabe: são nada além de conservadores; mais ainda, covardes, pois se disfarçam de não-conservadores mentindo que são “liberais”.

Se os integrantes do MBL realmente acreditam que são liberais, isso só pode se dar porque fazem uma confusão que, infelizmente, é muito comum: identificam totalmente os valores liberais com os valores burgueses. Porém, estes valores são e devem ser distinguidos. De uma parte, porque a burguesia não inventou a liberdade. Apenas precisou dela para alcançar seus propósitos capitalistas. A partir da modernidade os burgueses foram apenas mais uns a fazerem isso. Ademais, distinguir valores liberais de valores burgueses permite reconhecer mais claramente os burgueses que odeiam a liberdade. E há vários deles a serem reconhecidos… Se não o próprio MBL, sem dúvida o poder que o patrocina.

Razão mais importante para levar a discussão sobre o cancelamento da Mostra Queer do campo da arte censurada para o da liberdade ceifada é o fato de a liberdade ser a própria condição da vida civilizada e de todo progresso humano. Diante dela as demais coisas são e devem ser secundárias, inclusive a arte. Só havendo liberdade é que poderá haver arte livre – ciência livre, sexo livre, etc. Não seria absurdo, sem dizer ofensivo, uma arte livre em um mundo opressor? E quão abominável seria aquele que defende a liberdade da arte mas não luta com mais esforço pela liberdade enquanto tal? Só focando mais no valor da liberdade do que no da arte é possível levar o debate para um plano mais universal e efetivo.

Os verdadeiros liberais – não os do MBL, obviamente – sabem que a liberdade é um bem para a arte. E isso porque a liberdade é um bem para qualquer coisa humana. Agora, dizer o contrário, ou seja, que “a arte é um bem para a liberdade”, isso pode ser refutado apenas lembrando-se de que governos totalistas, como o nazista alemão e o comunista soviético, que usaram também a arte como ferramenta de poder, produziram tudo menos liberdade. Só se dá um verdadeiro primeiro passo para compreender e superar casos como o da mostra cancelada pelo Santander quando se deixa a esfera artística, estética, e se passa para a ética, colocando a liberdade como sumo valor humano a ser defendido.

Para mostrar que a liberdade importa mais que a arte, basta lembrar daquela máxima: “os maiores valores são aqueles pelos quais se está disposto a morrer”. Será que alguém, algum artista está disposto a morrer pela arte? Acho que não… Não se arrisca a própria vida por coisas que não valham tanto a pena. E não se arrisca a própria vida pela arte porque ela não é o valor último da humanidade, mas apenas um valor instrumental que, sem dúvida, colabora na obtenção, agora sim, do bem maior que a humanidade pode desejar: a liberdade.

Todos que são contrários ao mentirosamente liberais do MBL têm a obrigação de ser radicalmente liberais – todavia, sem serem burgueses! -, e por dois motivos. O primeiro, para deixar claro, por comparação forçada, que o MBL é absolutamente conservador. O segundo, de suma importância, porque defender a liberdade é lutar em prol do valor supremo da humanidade. Defender a liberdade da arte para o bem da própria arte é fazer metade do trabalho; é ser parcialmente humano apenas. Já aquele que defende a liberdade da arte para que a liberdade humana não seja comprometida, esse sabe o que é instrumentalizar o seu mundo em favor do que mais importa.

No caso Santander/MBL, muito antes da arte enquanto tal e das particulares obras de arte que foram censuradas, foi a liberdade que foi constrangida. Novamente: o problema não é estético, mas ético-político. A afirmação mais contundente, portanto, não é: “a arte deve livre”; mas sim: “deve haver liberdade, incondicionalmente”; pois havendo liberdade, fazer com que a arte seja livre é passo menor e mais fácil. Por isso, todo esforço sério contra autoritarismos como o do Santander/MBL deve se ater à questão da liberdade, apenas lembrada pela questão da arte censurada da Mostra Queer. Nada contra a arte. Mas tudo a favor da liberdade.

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Não pronuncie “fascismo” em vão!

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Os predicados “fascista” e “fascismo” estão, como se diz, “em bocas de Matilde”, sendo usados vulgar e indiscriminadamente a ponto de pretenderem significar coisas absolutamente opostas. Deve causar espanto o fato de progressistas e reacionários ambos estarem chamando uns aos outros de fascistas. Os primeiros querendo apontar autoritarismos, despotismos; os segundos, mais ignorantes, crendo e repetindo que “o fascismo é produto da esquerda”, e que, portanto, comunista e fascista são sinônimos. As duas partes, infelizmente, estão fazendo uso errado do conceito. Não à toa a dicotomia tupiniquim não está se resolvendo, mas, em vez disso, agudizando-se.

Diante dessa bagunça semântica, acredito serem duas as atitudes mais urgentes e prudentes a serem tomadas. Em primeiro lugar: recuperar e respeitar o significado inequívoco de “fascismo”. Afinal, uma relação civilizada começa e subsiste com a concordância em respeito às palavras e o que elas significam no mundo real. E, em segundo lugar, uma vez que “sábios” e idiotas não concordam mais sobre o que significa “fascismo”, mostrar que não se é idiota começa por saber o que é a coisa nomeada pela palavra em questão e só usá-la para se referir a essa coisa. Melhor ainda, porém não mais fácil, é dispensar totalmente a própria palavra “fascismo” e descrever mediante outras palavras e conceitos menos equívocos a realidade que queremos criticar. Por hora, mais sábio do que não usar a palavra “fascismo” em vão é dispensá-la absoluta e estrategicamente.

Slavoj Žižek, em seu “Alguém disse totalitarismo?”, critica Hannah Arendt pelo seu conceito de “totalitarismo”, acusando-a de cunhar um termo que, em vez de bem explicar uma determinada conjuntura sócio-histórica, ou mesmo um “novo” sistema de governo surgido no século XX, ao contrário, funciona até hoje como um “conceito tampão” que, no final das contas, impede-nos de conhecer aqueles eventos históricos singulares. Não tenho dúvida de que precisamos fazer contra a vulgarização do conceito de “fascismo” o mesmo que Žižek fez contra o de “totalitarismo”, de Arendt. Afinal, como podemos observar, hoje em dia, chamar alguém de fascista, ou um ato qualquer de fascismo, tornaram-se os atos vazios e covardes par excellence. Seja para se finalizar uma discussão – como as pseudopolíticas, nas redes sociais, onde já no terceiro ou mais tardar quinto comentário algo ou alguém é predicado de fascista e as discussões deixam de ser produtivas -, seja ainda para um único indivíduo encerrar o seu próprio pensamento – pois o contemporâneo fetiche da palavra “fascismo” está em iludir que tudo foi pensado, e que, portanto, só é preciso repetir a palavra. Mas aí podemos estar falando de papagaios inclusive.

Não pronunciar a palavra “fascismo” em vão, por exemplo, é significá-la inequivocamente ao radicalismo político autoritário e nacionalista que galgou poder no início do século XX na Europa, cuja origem jaz na Itália de Mussolini, e que teve lugar na Alemanha de Hitler, na Espanha de Franco, na França de Vicky, entre outras. Caso tenhamos a prudência de nos limitarmos a dizer, por exemplo, que “fascista” é aquele que coloca os conceitos de nação e raça sobre os valores individuais, como aconteceu na Itália e a Alemanha da primeira metade do século passado, só aí, então, seremos civilizados a ponto de sermos compreendidos, digamos assim, mais universalmente, pois até mesmo o intelectual mais progressista e o idiota mais reacionário são capazes de concordar tal formulação.

A confusão em torno da palavra “fascista”, contudo, começa quando se quer fazê-la significar coisas no mundo real que, porém, já tem seus nomes acordados; seus conceitos mais e melhor universalizados. Por exemplo, tornou-se banal chamar de fascistas pessoas que cometeram meros – todavia não menos criticáveis – atos machistas, racistas, e até mesmo moral, política e economicamente ilícitos. O preço dessa banalidade é, de um lado, colocar dentro do guarda-chuva semântico do “fascismo” coisas que ele não tem dever algum de nomear, e, de outro lado, deixar de dar o nome certo ao boi que estamos criticando e que merece uma crítica e um nome certeiros, oxalá mortais. No exemplo do machista que é chamado de fascista, ao mesmo tempo ele é chamado de algo que ele não é, sem dizer que deixa-se de criticá-lo usando o(s) predicado(s) que realmente lhe cabe(m). Analogamente, é como esquecer, perdoar o crime do criminoso atribuindo-lhe um outro crime. Como podemos ver, o atual e indevido uso do conceito fascismo implica injustiça.

(Obviamente!) Não se trata de deixar de pensar, de falar da nossa crísica realidade e da sorte de autoritarismos que nos acossam e que apenas se parecem com o real fascism. Trata-se apenas de não chamar o nosso momento sócio-político-histórico – que só por este ou aquele “parentesco” lembra a Itália de Mussolini ou da Alemanha de Hitler – de fascista. Seja para não banalizarmos as radicais e monstruosas experiências históricas do século XX – o que seria imediatamente imoral e eternamente desumano; seja sobretudo para não deixar de dar, aos nossos próprios bois historicamente determinados os seus nomes específicos em vez de aliená-los por trás de outros mais equívocos.

Evitar ser confundido com um idiota é saber que o fascismo encontrou sua razão de ser em nacionalismos e racialismos radicais, e que o “ismo” do poder que hoje se coloca enquanto regime é outro. Diz respeito ao capital globalizado, que, ao contrário dos fascismo, tem na transnacionalidade e na trans-racialidade combustíveis excelentes. Pouco importa se se é indiano, norte-americano ou chinês; branco, preto ou amarelo; basta ter dinheiro, aliás, bastante dele, e, como disse Žižek, pode-se frequentar quaisquer ambientes, colocar os filhos nas melhores escolas, e por aí vai.

A expressão “fascista” vem do latim fasces. Significava “cetro”, “cajado”, do tipo que os magistrados da Roma Antiga usavam para ostentar poder, afastar ou e até mesmo agredir a plebe. Tratava-se de um feixe, em italiano, de um fascio de varas finas, cada uma muito frágil, porém, quando unidas e amarradas firmemente se tornavam inquebráveis. Quando Mussolini implantou o seu famigerado regime autoritário, usou o antigo símbolo. Portanto, o uso generalizado do conceito de “fascismo” por progressistas e reacionários os coloca, saibam disso ou não, em um grande fascio, se não totalmente ignorante, certamente produtor de ignorância. Escapar dessa obscuridade, portanto, começa por recusar-se a usar a palavra “fascismo” para significar movimentos sociopolíticos que não estritamente os radicais da primeira metade do século XX.

Em respeito à presente ofensiva reacionária da nossa direita contra direitos e liberdades populares, nós temos muitos nomes prontos e inclusive mais pertinentes. Basta resistir ao “conceito tampão” mais fetichizado do momento e criticar o que se quer criticar mediante palavras que reacionários e progressistas entendam e concordem com o que significam no mundo. Só então o crítico e o criticado (o progressista e o reacionário, ou vice-versa) estarão em relação civilizada, devidamente palavreada. Só assim será possível, se não superar, ao menos entender melhor os antagonismos presentes.

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Crítica da política

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Por que a política ainda promete ser o meio de luta contra os interesses espúrios do capital se é ele, o próprio capital, que sempre vence na arena política todas as batalhas que enfrenta? Está certo que a política é bem mais antiga que o capitalismo, entretanto, desde que este sistema econômico colonizou o mundo, também a política passou a servi-lo subservientemente. Não seria o caso então de realizarmos que a promessa de libertação social via política é apenas mais uma, quiçá a mais sagaz mentira do capital no sentido de mais-dominar?

Karl Marx foi contundente em criticar a política enquanto instrumento revolucionário, apontando que, na verdade, ela é o meio sempre presente de o passado, isto é, a dominação da maioria pela minoria – da totalidade pela parcialidade – prosseguir futuro adentro. A revolução em Marx não se dá apenas com a superação do Estado, mas também com a da política enquanto tal. Para o filósofo alemão, agir no interior de formas políticas pertence à velha sociedade, à sociedade na qual a dominação de uns poucos sobre a maioria é regra.

É imperativo sair da perspectiva meramente política para poder ser verdadeiramente crítico em relação à dominação do capital sobre a sociedade segundo Marx. E isso porque ele anteviu de modo muito profundo que a dominação do capital se dá, imediatamente, por via econômica, e não política. A política, em troca, é o meio, o modo mediato de o capital dar continuidade à sua dominação econômica. Ser fiel à Marx, portanto, significa crer, como ele, que a dominação do capital não tem como ser totalmente destruída no nível político. A política, na verdade, é o bunker social do capital.

Embora a política sirva imediatamente o inimigo capital da sociedade, ela ainda é, contudo, o ringue onde interesses sociais e interesses econômicos se digladiam; uma arena relacional na qual sociedade e capital mantém ao menos uma linguagem em comum, ainda que de modo assimétrico, pois, politicamente falando, trata-se de um diálogo no qual a sociedade, de seu lado, externa sinceramente suas demandas diante do vilipêndio capitalista, ao passo que o capital, ao contrário, é sistematicamente parlapatão em fingir que ouve a sociedade e que moderará o seu ímpeto acumulador em função de algum bem-estar social.

Entretanto, por ainda ser o nível no qual sociedade e capital se comunicam – mesmo que este sempre vença as discussões -, Marx apontava uma dimensão subversiva da política contra o capital: a sua potencialidade negativa. Para o filósofo, a política é adequada para realizar as funções destrutivas da transformação social. Marx não tinha dúvida de que, nas mãos da sociedade, a política pode ser instrumento de crítica no sentido de minar a dominante ideologia capitalista. Também sabia, contudo, que enquanto a sociedade permanecer apenas no âmbito político o seu inimigo capitalista permanece livre e dominante na sua esfera excelente: a economia.

Como o domínio da parcialidade sobre a totalidade é produzido economicamente e mantido politicamente, enquanto age somente politicamente a sociedade permanece no campo de conforto do inimigo. A vitória da totalidade sobre a parcialidade, embora deva começar politica e destrutivamente, só se finalizará, contudo, se depois da destruição for abandonada a esfera política e iniciada uma construção econômica alternativa. A revolução se dará apenas quando os indivíduos sociais operarem econômica e diretamente uns com os outros distantes da liturgia com que o capital segue intermediando vitoriosamente todas as relações humanas.

A verdadeira revolução nunca será simplesmente uma revolução política. Antes de tudo, deve ser uma revolução social que ultrapasse os limites do sistema político que perpetua a exploração econômica capitalista. E isso porque a virtude das revoluções sociais está em minar a contradição entre a parcialidade e a totalidade. Já as revoluções meramente políticas apenas reproduzem a velha hierarquia da parcialidade sobre a totalidade, pois a política, desde que foi usucapida pelo capital, outra coisa não é senão a subjugação das necessidades da totalidade aos arbítrios da parcialidade.

Se para Marx uma revolução social restrita à política é um absurdo, um primeiro passo político, desde que negativo, na medida em que há a necessidade da destruição das formas vigentes, é fundamental. No entanto, tão logo o TNT político da totalidade cause as primeiras rachaduras no bunker da parcialidade, a totalidade deve desinvestir do expediente político e investir no econômico, preenchendo essas rachaduras com novas relações socioeconômicas até que o edifício minado rua por completo.

Essa revolução socioeconômica será a maior transformação positiva da história, na qual a política, contudo, tem a contribuir apenas com sua negatividade imediata e destrutiva. O que Marx ainda tem a nos ensinar é que negligenciar a dimensão socioeconômica e priorizar a dimensão política impossibilita a revolução que fará a parcialidade ser derrotada e absorvida pela totalidade porque tira da política o seu mais revolucionário fim, qual seja: ser apenas o meio de se iniciar a destruição do capital, do Estado e inclusive de si própria.

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Estado de mal-estar capital

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Efêmero e tenso ponto de equilíbrio entre as necessidades básicas das pessoas e os imperiosos interesses do capital encontrado no século XX, o Estado de bem-estar social foi a garantia de serviços públicos e proteção à população mediante a organização da economia; algo como uma visível luva social que vestiu a invisível, porém sempre larápia, mão capitalista. Todavia, nesse início de século XXI, já sentimos na carne que o bem-estar deixou de ser prioridade do Estado, que voltou a ser apenas aquilo que Marx bem disse no Manifesto Comunista: “o comitê executivo da burguesia”.

Por degradar sistematicamente as condições de vida daqueles que lhes vendem força de trabalho, o capitalismo da Belle Époque viu a classe trabalhadora se organizar ameaçadoramente. Porém, pelo fato de não viver sem os trabalhadores – pois é deles que extrai a sua mais-valia – o ímpeto capitalista teve de se refrear. Sem dizer da então presente experiência socialista soviética do início do século XX que obrigou o capitalismo a ao menos fingir que sobre a face da terra havia também as necessidades das pessoas. Do contrário, todas elas poderiam, digamos assim, optar pelo outro sistema econômico que, segundo Marx, superaria(rá) o capitalismo.

Portanto, durante um estratégico período o capital aceitou comprometer parte de seus ganhos com a sociedade que, não obstante, nunca deixou de explorar. O Estado de bem-estar, social cujo apogeu se deu nas décadas de 1960 e 1970 na Europa, com efeito, foi patrocinado pelo capital para que os trabalhadores tivessem o mínimo suficiente para não se revoltarem nem pensarem em Revolução. Com o oferecimento de saúde, educação e segurança públicas mais um punhado de seguridades sociais o capital anestesiou as massas exploradas da dor que provoca nelas.

Como, contudo, a lógica capitalista não pode se privar de aumentar incessantemente a exploração sobre a vida, o Estado de bem-estar social não tinha como durar. Os grandes e decisivos ataques contra o bem-estar social foram cometidos na década de 1980 por Margaret Thatcher e Ronald Reagan. A destruição violenta das organizações e dos direitos trabalhistas, árdua e historicamente conquistados, permitiu que a vida voltasse a ser escravizada pelo capital. O velho liberalismo, de roupa nova, agora neoliberalismo, reconduziu o Estado à sua prévia condição de bureau da burguesia.

O que vemos no Brasil desde o golpe de Estado de 2016 outra coisa não é que o carnaval macabro do neoliberalismo, que para não tolher em nada a sede de lucro do capital destrói, rápida e certeiramente, o público em benefício do privado. As atuais reformas trabalhista e da Previdência, desenhadas golpisticamente para os empresários comprometerem cada vez menos as suas mais-valias com aqueles que as produzem; a drástica redução de investimento público em segurança, saúde e educação, expressa no aumento da criminalidade, das filas do SUS e do sucateamento do sistema de ensino público; tudo isso e muito mais é o fim do Estado de bem-estar social tupiniquim que mal e porcamente foi rabiscado na terra brasilis.

Depois do curto recreio chamado Estrado de bem-estar social que tivemos no curso histórico do capitalismo, estamos de volta à rígida e degradante disciplina de um mundo no qual a economia, para usar a ideia do filósofo alemão Robert Kurz, vence a vida. A destruição neoliberal de quaisquer organizações capazes de fazer frente aos interesses espúrios do capital; a vitoriosa ideologia da classe média, que faz a classe dominada se esquecer de sua real condição e perder sua força revolucionária; enfim, o Estado violentamente usucapido pela classe dominante finalmente reifica o vertical projeto capitalista de um “Estado de mal-estar capital” – sendo que esse mal-estar, obviamente, recai sobre todos aqueles que, com suas próprias vidas, produzem o bem-estar e o mais-valor do capital.

Por mais que o social esteja derrotado pelo capital, não podemos esquecer que no passado a consciência da classe trabalhadora, as grandes greves e o fantasma socialista foram as forças reais que obrigaram o capital a se conter e a devolver à sociedade pelo menos algo daquilo que dela furtava. Contra o Estado de mal-estar capital que se erige, a classe dominada podem muito bem repetir aqueles passos: reconhecendo-se como tal, e não como classe média; lembrando a classe dominante, através de grandes greves, que ela não é nada sem aqueles de quem compra a força de trabalho; e, por fim, mantendo o socialismo no horizonte, se não como realidade, ao menos como ideia ameaçadora.

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Memes e política

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Notória é a capacidade dos brasileiros para transformar as suas atuais frustrações politicas em memes que fazem graça do que é grave. Pelo jeito, Cartola continua paradigmático: “Rir pra não chorar”. Agora, diante da gravidade da realidade política tupiniquim, não podemos deixar de perguntar se esse talento para fazer troça espontânea da própria desgraça não é, antes, incompetência no sentido de se levarmos a sério os nossos próprios e mais sérios problemas. Afinal, palhaçada como arma política não é coisa de bobo da corte?

Não devemos nos fiar na descontração massivamente democratizada pelos memes. Relaxar no meio da guerra outra coisa não é que se vulnerabilizar. Ainda mais diante de inimigos que falam sério e jogam baixo. Entretanto, não joguemos a água suja com o bebê junto! Algo essencial e digno de louvor nos memes pode e deve ser usado na jihad política do povo contra as “despolíticas” que o afrontam: a viralidade imediata deles. Com efeito, se conseguirmos trazer às ações propriamente políticas essa potência viral a luta popular só tem a ganhar.

Para tanto, devemos conhecer melhor esse objeto, o meme. Etimologicamente, meme deriva do grego mimesis, que significa imitação. Porém, desde 1976 o biólogo evolutivo Richard Dawkins sustenta que “meme” designa uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro. Em termos mais simples, meme significa a transmissão de informação de uma mente para outra. Para Dawkins, os memes são replicadores de comportamentos, em plena analogia com o gene da genética. Tanto que Dawkins chamou a ciência dos memes de memética. A memética está para a ideologia assim como a genética está para a biologia.

Jaz nessa característica replicadora de comportamentos a virtude que queremos apontar nos memes no sentido de serem usados como arma política efetiva. Para tanto, o meme não deve ser pensado enquanto pólvora mortal, visto que ele é forma, e não conteúdo, mas como cartucho subversivo capaz de ser preenchido e de levar adiante, com grande poder replicador, pólvoras propriamente políticas capazes de minarem as “despolíticas” dos que ocupam sordidamente o poder.

Em vez de fazer troça da vil realidade, os memes, devida e politicamente usados, devem ser capazes de fazer dela – melhor dizendo: da percepção que dela temos – troço, coisa, res. Em suma, a memética, enquanto metralhadora nas mãos do povo, deve reificar nossas frustrações e desejos, a ponto de nos tornarmos inarredáveis “pedras no caminho” dos nossos inimigos. Afinal, um conteúdo capaz de produzir a mudança que o povo quer é melhor que seja colocado em um continente capaz de propagá-lo, viralmente, ao maior número de pessoas e no menor tempo possível.

Por isso não devemos apenas nos satisfazer com a graça dos memes. Isso seria nada além de alienação. Devemos, politicamente, valer-nos do poder de penetração deles nas graves realidades. Claro, desde que a piada seja substituída por protesto político. Melhor ainda, por demandas políticas. Manter o cartucho memético, sim. Agora, caso queiramos interferir, quiçá corrigir as “despolíticas” que nos assaltam, a pólvora que precisamos colocar dentro desse pacote ideológico precisa ser mais explosiva do que engraçada.

Resta saber se o talento brasileiro para fazer piadas de longo e intenso alcance pode ser usado para fazer críticas políticas de mesma envergadura. Em suma, se conseguiremos politizar a nossa capacidade memética a ponto de ela nos levar adiante na guerra, e não apenas servir de trincheira jocosa que, enquanto nos mantém protegidos pela graça, impede de ataquemos mortalmente quem nos ataca gravemente. E isso porque a realidade está exigindo de nós mais memes/coquetéis Molotov e menos memes/anedota de salão.

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Despolitização e repolitização

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A transformação do cidadão em mero consumidor, a invenção e a manutenção da famigerada classe média, e também o surgimento de lutas políticas parciais e atomizadas (como a das mulheres, negros, homossexuais, etc.) são vitórias inequívocas do processo de despolitização que a classe capitalista dominante promove contra a sua histórica inimiga econômica: a classe dominada – que, atualmente, sequer se reconhece como tal.

Ardil do êxito despolitizante da classe dominante é impedir que os despolitizados retornem à violência própria do âmbito pré-político. E isso é feito empanturrando-os com mercadorias, pseudoprivilégios burgueses e semidireitos particulares que, como diz Slavoj Žižek, se por um lado mudam alguma coisa, por todos os outros lados deixam as coisas – e para a classe dominante! – exatamente como estão.

Para entender melhor a relação estrategicamente interrompida da despolitização com a violência, digamos de modo bastante sucinto que, quando surgiu na antiga Grécia, a política foi a substituição da violência pelo diálogo. Em outras palavras: a migração das resoluções verticais baseadas na força física para o consenso horizontal através da palavra. Categoricamente, a politização foi um processo de transformação do despótes (déspota) em polites (político).

Portanto, “despolitizar”, que no dicionário significa apenas “retirar o caráter político das relações humanas”, deveria apontar também para o fato de tai relações se reaproximarem da violência. Afinal, quando o polites sai de cena, é o despótes que a protagoniza. E isso porque, depois dos gregos, ninguém inventou nada além da política como opção à violência despótica na resolução dos díspares interesses humanos.

Entretanto, porque violência demais traz um custo indesejado à classe dominante, o expediente econômico de sua jihad despolitizante contra a classe dominada é justamente inventar pseudoesferas políticas, como as do consumo, da classe média, das micro lutas multiculturais, etc., que, com efeito, mantêm os dominados a meia distância da política e da violência. Sendo que esses extremos estrategicamente desabitados pelos dominados findam usucapidos exclusivamente pelos dominantes.

Vil jogada de mestre! A violência e a política, nas mãos da classe dominante, não são mais opostos, mas, antes, cada uma, o meio de a classe dominada não mais acessar a outra. Ou os dominantes despolitizam os dominados, e a violência que isso suscita nestes é eficientemente reprimida pela sobreviolência daqueles, ou simplesmente aumentam a violência sobre os dominados, pois sabem que o consumismo, a alienação e os particularismos políticos impedem que os dominados constituam um corpo verdadeiramente político, grande e forte o suficiente.

O que devemos ver nisso tudo é que a presente despolitização da classe dominada não é, de modo algum, o fim da política. Antes e exitosamente, é o vigoroso projeto político da classe dominante, que, se aqui e ali –com Trumps e Dórias – traveste-se despoliticamente, o faz apenas para melhor dissimular-se. Esse plano dominante de impedir os dominados de acessarem tanto a esfera política quanto a da violência, e isso mediante o usufruto exclusivo delas, traz o paradoxo de uma política despótica.

De fato, a classe dominante é um grande despolites; uma mistura impertinente de despótes e polites; um Frankenstein composto de política e violência; um misto do remédio e do mal que ele pretende curar. A vitoriosa despolitização produzida por essa classe dominante monstruosa, entretanto, tem como ser remediada, tanto pela via política, quanto pela violenta. Mas para que tal antidoto tenha efeito, deve contar com a poderosa, todavia alienada ideia marxista de consciência de classe. Mais especificamente, a da classe dominada.

De modo que a única política da liberdade é a da classe dominada reconhecendo-se como tal, apesar e por causa dos biombos políticos com os quais a classe dominante mantém a classe dominada alienada de suas potências, seja a política, seja ainda a violenta. Por isso, repolitizar-nos significa, entre outras coisas, recusarmos o consumismo, o pseudoclassismo e as políticas particularistas, pois o ouro alquímico da liberdade da classe dominada não conta com os metais pesados da classe dominante.

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Falácia libertária pós-moderna

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Não sem muita controvérsia, cada vez mais o pensamento pós-moderno libertário de esquerda, produzido sobretudo por intelectuais após maio de 68, como por exemplo o de Deleuze e Guattari, é acusado pela redução da liberdade e pelo enfraquecimento das esquerdas pelo mundo. Se essa causalidade ainda é suspeita, certamente não o são as notórias crises das esquerdas e da própria liberdade. Esse ensaio caminhará no sentido de criticar o ideário de liberdade pós-moderno concebido a partir da segunda metade do século passado, acusado de minar o pensamento verdadeiramente libertário – marxista – que o precedeu, e, considerando isso, qual virtude ainda resta ao pensamento pós-moderno.

Comecemos dizendo que a ausência de liberdade, socialmente expressa na desigualdade e na dominação socioeconômica de umas pessoas sobre outras, teve, a seu favor, as mais variadas explicações ao longo da história. Os antigos atenienses criadores da democracia, por exemplo, acreditavam que a natureza havia feito uns homens melhores que outros, e que estes “melhores homens”, em grego, os aristoi – aristocratas -, deveriam governar e decidir por todos. Mulheres, escravos e estrangeiros não tinhas direitos alguns. Posteriormente, chegou-se a justificar a desigualdade nalguma decisão divina. Em ambos esses casos, tentar eliminar a desigualdade social significava ou atentar contra a natureza, ou contra o eterno plano de Deus. E assim a desigualdade fez carreira no mundo.

No século XIX, contudo, Karl Marx criticou contundentemente essas visões, apontando que a desigualdade entre os homens era produto tão somente deles próprios. Afirmando, no Manifesto Comunista, que “a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”, Marx fez-nos ver que era o privilégio material de uns que gerava a dominação dos desprivilegiados materialmente. Na antiguidade, isso se deu com homens livres dominando escravos e patrícios, dominando plebeus; no medievo, senhores dominando servos; e na modernidade da qual Marx falava, o mesmo acontecia com os burgueses dominando os proletários.

Com essa nova visão, a ideia de Revolução deixou de ser não só antinatural ou pecaminosa, mas também utópica. Compreendendo a real dinâmica socioeconômica de modo científico, Marx previu a vitória da classe dominada sobre a dominante. Para tal, os dominados, isto é, os proletários, desde que unidos, deveriam tomar a revolucionária consciência – de classe – de que eles eram os agentes da mudança. Em outras palavras, que a realização de sua liberdade estava tão somente nas suas mãos. Mudança que, obviamente, ameaçava o longevo império da classe dominante, ainda mais depois da Revolução aventurada na Rússia em 1917, onde a ideia socialista se fez realidade. E como a classe dominante nunca esteve disposta a perder o seu histórico privilégio, a contraofensiva diante dessa abertura histórica à Revolução não tardou e não deixou por menos.

Em resposta à ameaça socialista, a classe dominante, primeiramente, chamou a Revolução – a liberdade enquanto coisa para todos – de “caos social”. Com efeito, o fato de os dominados se libertarem dos grilhões com que os dominantes os oprimiram desde sempre era o desmoronamento do cosmos aristocrático. Então, os aristoi dominantes do início do século XX iniciaram uma potente engenharia social para, com ela, desarticular qualquer consciência revolucionária dos oprimidos, e, assim, impedirem o que, para os dominantes, seria o “caos”. E o produto mais efetivo dessa neoarquitetura da dominação foi a invenção da famigerada classe média: uma classe intermediária, composta por parte da classe dominada, que, no entanto, não mais se reconhecia como tal.

Com o expediente da classe média, os oprimidos enganados foram convencidos de que ascenderam socialmente e se esqueceram da Revolução para então sustentarem, em beneficio da classe que seguiu os dominando, a manutenção da situação de desigualdade e opressão social, desde que, é claro, essa pseudoclasse fosse ao menos aparentemente preservada da sempiterna degradação social promovida pela classe dominante. Com efeito, a estratégia da classe dominante para não perder o seu domínio foi enfraquecer a classe dominada, dividindo-a em classe baixa e classe média, a despeito da verdade marxista segundo a qual há apenas duas classes: a dominante e a dominada. E, cereja do bolo, colocar essa pseudoclasse contra a classe dominada à qual ela, de fato, nunca deixou de pertencer.

Nessa conjuntura, pensamentos que apontassem a real e cruel dominação e, ainda por cima, rotas de fuga efetivas precisaram ser alienados desse mundus classe média. E o esquecimento fortuito do pensamento verdadeiramente libertário – como o de Marx – deu-se, também, com a ascensão do pensamento pós-moderno, declaradamente libertário, mas que, por sob suas mais sinceras intenções, prosseguiu obliterando o cruel fato de que, no fundo, só há classe dominante e dominada. Resultado: atomizações sociais, tão benéficas à classe dominante – afinal, átomos isolados não constituem consciência de classe nem tampouco fazem Revolução -, cresceram qual erva daninha regado pelo ingenuamente sincero pensamento libertário pós-moderno.

Ideias de micropolítica, de sujeito molecular, de desterritorialização, e, mais recentemente, de empoderamento e de lugar-de-fala, em suma, toda a conceituália pós-moderna esterilizou sobremaneira o único solo sobre o qual poderia florescer a Revolução: o continente perdido da classe dominada, e isso mediante o plantio de guetos cada vez menores e mais atomizados, e, consequentemente, mais fracos diante da peste dominante. Em oposição ao pensamento marxista, que explicava as partes em função do todo, a pós-modernidade ainda é a aventura de explicar o todo a partir das partes. Todavia, assim como o todo não é a soma das partes, e assim como falta ao finito condições ontológicas para explicar infinito, assim também a particularidade de onde arranca o pensamento pós-moderno de modo algum consegue explicar o todo sócio-econômico-polítioco-cultural.

Diante dessa incapacidade pós-moderna, restou a ela permanecer no micropensamento que se ocupa de desejos e de experiências individuais e de demandas particulares. De modo que, quando finalmente há alguma coletividade organizada em função da liberdade, ela é tão justa que comporta apenas um sexo, uma sexualidade, uma raça, em suma, uma demanda particular, por uma liberdade outrossim particular. No entanto, a busca de liberdade enquanto privilégio particular, não nos esqueçamos, é o objetivo per se da classe dominante. Aliás, jaz aí a diferença entre classe dominante e dominada borrada pelo pensamento libertário pós-moderno: a classe dominante quer liberdade e segurança contra o caos apenas para si, enquanto a classe dominada deveria querer estas coisas para todos, indistintamente.

No entanto, com o patrocínio do atomizante pensamento pós-moderno libertário, temos mulheres, negros, homossexuais, transexuais, etc., em lutas atomizadas, cada qual buscando uma liberdade parcial. Com isso, o objetivo maior da esquerda, qual seja, a socialização irrestrita da liberdade, é impossibilitado. As partes, isoladas, porém paradoxalmente crentes na centralidade de suas próprias excentricidades, perdem assim a possibilidade de constituírem a consciência realmente coletiva – de classe! – que mostre que todas elas são classe dominada. E mais, que o inimigo das mulheres, o dos negros, o dos homossexuais e transexuais, é o mesmo: a classe dominante. Por mais importante que seja às partes, às minorias, as suas lutas particulares, o marxismo ainda está aí para nos lembrar de que há uma luta muito mais urgente, primeira e universal que, no entanto, deixa de ser lutada ao ser dividida em uma miríade de lutas parciais.

Em relação ao viral discurso sobre o tal do “lugar-de-fala”, o filósofo brasileiro Vladimir Safatle diz que jamais a esquerda deveria ter sucumbido a ele. Não obstante, porque o fez, levou a rasteira épica que assistimos worldwide. Outro filósofo, Slavoj Žižek, é mais acusativo: que o discurso pós-moderno do “lugar-de-fala” é o discurso autoritário por excelência. Ora, dizer que um homem não pode se colocar no lugar de uma mulher; um branco, no de um negro; um heterossexual, no de um gay, e por aí vai; em nada difere do discurso dominante/patrimonialista segundo o qual ninguém pode ocupar a minha propriedade. Todavia, a ladainha libertária pós-moderna nos convence de que impedir o outro de se colocar no meu lugar é algo diverso das cercas eletrificadas e da militarização com que a classe dominante se resguarda. O que falta ser pensado seriamente é que, assim como o revolucionário marxista luta para que os privilégios socioeconômicos todas caiam em benefício da totalidade, assim também o libertário que pós-moderno deveria preferir a liberdade da classe dominada como um todo muito antes de querê-la para um (o seu) gueto particular.

Com tudo isso devemos concluir que o pensamento libertário pós-moderno deve ser jogado no lixo? Obviamente que não. Não só porque há pensadores pós-modernos, como os supra citados, que com efeito contribuem para a consciência de classe necessária ao vigor das esquerdas e à liberdade, mas isso ao criticarem o próprio pensamento pós-moderno – uma filosofia pós-moderna rigidamente crítica! -, mas sobretudo porque sem percorrermos os descaminhos do próprio pensamento libertário pós-moderno não entenderemos a dramática redução da liberdade nem a bancarrota das esquerdas pelo mundo. Marx sempre é de grande ajuda, mas não explicará essa desgraceira sozinho, visto que a maior virtude de seu pensamento é ser a ciência do caminho contrário: o da realização da liberdade universal.

Por mais que devamos criticar o pensamento libertário pós-moderno, não podemos jogar a água suja com o bebê junto – entendendo aqui a água suja enquanto a atomização social que esse pensamento produziu; e o bebê, a causalidade pela qual esse pensamento ganhou o mundo, mas que, no entanto, entregou o contrário do que prometeu. Algo como conhecermos bem a história do erro para não mais o repetirmos. Portanto, consumir o pensamento pós-moderno, sim. Porém, de modo radicalmente crítico – sendo que as melhores raízes dessa crítica devem estar fincadas no solo marxista. Não só o perigoso vigor da classe dominante exige isso, mas inclusive as justas suspeitas dos próprios pensadores pós-modernos de esquerda que ainda trabalham pela libertação universal. E isso porque somente quando a classe dominante não mais dominar – econômica, política, social, cultural e intelectual e ideologicamente – é que poderá haver um pensamento e uma vida verdadeiramente livres.

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O “povo” nas ruas e o povo “na rua”

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“Não são só 20 centavos”, “Saúde e educação padrão FIFA”, “Fora Dilma”, “Não vai ter golpe”, “Fora Temer” e, agora -novamente -, “Diretas Já” são os (emb)lemas das grandes manifestações populares brasileiras que levaram “o povo às ruas” de 2013 a 2017. Jovens e velhos, ricos e pobres, coxinhas e petralhas, monarquistas e anarquistas usaram as ruas e fizeram nelas grandes eventos de expressão pública/política. Esses eventos, no entanto, envolveram invariavelmente a ideia de festividade. Muito embora todas contassem com pautas políticas – umas notoriamente sociais, outras inacreditavelmente elitistas -, a necessidade da política foi usada também como pretexto para espécie de carnavais cívicos.

Nas muitas manifestações de que fui partícipe, depois de os manifestantes respirarem muito gás lacrimogênio e torcerem para não serem agredidos pela Polícia Militar, invariavelmente se reuniam em torno de cervejas geladas na construção de um pseudo-heroísmo-hedonista-patriótico-revolucionário. Nas poucas que eu participei, não por concordar com suas pautas, mas, digamos assim, por interesse sociológico, via que após os manifestantes proferirem coletivamente seus despautérios pró-ditatoriais ao som de ruídos de panelas e com a Polícia Militar servindo de cenário para selfies, outro pseudo-heroísmo-hedonista-patriótico, só que dessa vez reacionário, era coletivamente construído, todavia ao redor de taças de champanhe e em restaurantes devidamente gentrificados.

A última grande manifestação popular tupiniquim desse domingo 28 de maio na praia de Copacabana pedia por Diretas já. E a festividade, como não poderia deixar de ser, também esteve presente, embalada por deliciosos shows de reconhecidos artistas e celebridades nacionais. Mais uma vez é reforçado o fato de que o “momento festa” vem sendo condição sine qua non às atuais manifestações políticas. Essa neopolítica afetivo-hedonista, que muitas vezes se confunde com uma micareta, além de desidratar politicamente a efetividade das manifestações populares, nos obriga a colocar a seguinte pergunta: que povo é esse que está nas ruas?

Essa pergunta, que não se dará por satisfeita enquanto não tiver como resposta: “um povo para o qual a vitória política é menos importante que a construção de uma narrativa pessoal digna de Facebook”, tem o propósito de evidenciar um outro povo, que também está nas ruas desde 2013, mas que, apesar de ser bem mais numeroso, pelo simples fato de não fazer festa pelas esquinas, tampouco faz celebridade nas timelines. Estou falando dos 14 milhões de desempregados que estão, literalmente, na rua. Aliás, porventura não temos aqui o estranho caso de uma metáfora literal: o maior índice de desemprego da história do Brasil botou o povo “no olho da rua”?

Com efeito, também temos esse povo, que é de outra categoria, nas ruas; povo este que, diferente do político-festivo-redesocializado, não tem condições de pagar por cervejas – muito menos por taças de champanhe – depois de sua extenuante “manifestação” diária atrás de emprego. E o seu contingente, infelizmente, só aumenta. E como procurar por trabalho não paga as contas nem enche barriga de ninguém, esse massivo desemprego tem uma consequência socioeconômica mais aparente do que as longas e frustrantes filas de emprego. E – spoiler – também nas ruas. A neoexplosão da informalidade na forma com que esse povo desempregado busca sobreviver é empiricamente perceptível nas cidades brasileiras, principalmente nos grandes centros urbanos.

Minha percepção mais aguda disso se dá em Copacabana, bairro populoso no qual vivo e onde, consequentemente, recaem mais cotidianamente minhas observações. Faz um ano que vejo o número de camelôs aumentar drasticamente pelas calçadas da Princesinha do Mar. Essa “ilegalidade” há muito se faz presente, todavia, de modo comedido e somente após o término do horário comercial – na verdade, depois que o “rapa” para de trabalhar. Atualmente, contudo, as calçadas estão lotadas de ambulantes desde a manhã até a noite. A crise econômica que levou a isso muitas vezes me fez pensar que estamos nos reaproximando do modo medieval de troca de mercadorias feito exclusivamente em ágora pública.

Noite dessas, voltando para casa em um ônibus que circula pela Avenida Atlântida, via à beira-mar conhecida, de um lado, pelo calçadão de ondas de pedras portugueses pretas e brancas mais famoso do mundo, e de outro lado, pela prostituição ao grande estilo “Katia Flávia, Godiva do Irajá, escondida aqui em Copa”, fiquei surpreso ao ver que, assim como os camelôs nas avenidas internas do bairro, também sobre as calçadas de Burle Marx na orla as prostitutas se multiplicaram, e muito. O povo desempregado, para sobreviver, vende tanto coisas na rua, quanto a si mesmo nelas.

Interessante é ver que o prefeito da Cidade (que luta para seguir mentindo que é) Maravilhosa discute publicamente e busca solução apenas para a parte do povo desempregado que lota as ruas vendendo bugigangas. Também pudera, essa impertinente presença é um problema social na medida em que é um problema econômico: faz os lojistas legais arrecadarem menos e, consequentemente, pagarem menos impostas. Já o tsunami de prostitutas à beira-mar permanece longe dos “problemas oficiais” da cidade. Não só porque alimenta melhor o internacionalmente procurado mercado turístico-sexual carioca, mas também porque as prostitutas, assim como as mulheres em geral, têm constantemente suas necessidades preteridas pela nossa sociedade.

Para ilustrar com um último exemplo carioca a presença do povo desempregado nas ruas, cito aqui uma velha conhecida da Guanabara: a presença de ambulantes vendendo toda sorte de mercadorias nos trens metropolitanos, fato que mesmo na era lula de pleno emprego se fazia presente. Entretanto, na atual situação de “vácuo-emprego”, o comércio informal nos trens não só aumentou drasticamente, como sobretudo radicalizou os roubos de carga na cidade do Rio de Janeiro. Somente nesses primeiros meses de 2017 foram mais de 3 mil. O esquema de roubos de mercadorias e sua venda ilegal é tão eficiente que menos de duas horas depois de uma carga ser roubada na Avenida Brasil ela já está sendo vendida nos trens, e muitas vezes por 1/4 do que custam nos estabelecimentos legais. Afinal, esse povo desempregado não só precisa fazer dinheiro com o que estiver à mão, mesmo que ilegalmente, como também precisa pagar o mínimo possível seja lá pelo que for.

Tentei aqui apresentar duas ideias distintas de “povo nas ruas”. A primeira, referente às eventuais manifestações político-festivas, cujo “povo” (e a essa altura as aspas já devem fazer seu pleno sentido), depois de gases lacrimogênios e cervejas ou selfies e champanhes, esvazia as ruas para então ocupar orgulhosamente as redes sociais. A segunda, apontando uma realidade nada carnavalesca na qual o povo (sem aspas algumas, afinal, estamos falando de quem não é povo apenas eventualmente) manifesta desesperadamente sua necessidade de trabalho. Só que esse povo, que foi posto “no olho da rua”, isto é, que não tem trabalho, é quem verdadeira e diariamente está “nas ruas”, seja procurando emprego, seja fazendo delas o seu escritório informal/ilegal.

Minha crítica conclusiva, que se dirige a esse “povo” entre aspas, é no sentido de acusá-lo de que, se fosse povo mesmo, e não só um bando de personagens político-festeiros, ele sairia às ruas para lutar por um país no qual o povo – sem aspas – desempregado e desesperado não tivesse somente as ruas como opção de vida. E isso porque, na realidade, o que vemos é que, quanto mais aquele “povo” se manifesta carnavalescamente nas ruas, mais o povo está, literal e metaforicamente, “na rua”. O que o povo brasileiro precisa, e urgentemente, é de menos festa e mais política.

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“Diretas Já!”, bebê? Consciência de classe!

diretas já
Desenho: Laerte

O povo brasileiro, depois de 24 anos, clama novamente por “Diretas já!” diante do risco, aberto pela crise política tupiniquim, de uma eleição indireta para presidente da república capitaneada por um parlamento notoriamente corrupto e antipopular. Entretanto, esse clamor popular mais uma vez esconde uma terrível ingenuidade. Ora, “Diretas Já!” pressupõe que eleições diretas atenderiam os interesses do povo, e eleições indiretas, os dos políticos corruptos clientes do capital. Não obstante, entendendo esses dois “adversários” em termos marxistas, enquanto classe dominada versus classe dominante, o frágil castelinho de cartas democrático do povo desmorona, pois crer que eleições diretas mudarão o fato de que quem seguirá dominando será a classe dominante é tão tolo quanto esperar que dominante aceite outro significado.

Sequer podemos dizer que “Diretas Já!” é folclórico, pois, do inglês folklore (folk: povo + lore: conhecimento), folclore significa “conhecimento do povo”. Não obstante, a classe dominada entender que pela mera ocasião das urnas pode moderar, quiçá impedir a dominação da classe dominante outra coisa não é senão ignorância popular a respeito dos sistemas político e econômico vigentes. Dentro da engenharisticamente arquitetada democracia representativa/liberal/burguesa, o povo achar que o fato de ele votar ou votarem por ele fará alguma diferença é nada mais que estupidez; o seu folclore estúpido; sua folkstupidity.

E isso porque, em primeiro lugar, o competente trabalho de classe da classe dominante vem sendo obliterar a certeira leitura de Marx, eternizada no Manifesto Comunista, segundo a qual o Estado não é nada além do que “o comitê executivo da burguesia”. E a democracia, essa ideia de que é o povo, mediante o voto, que governa é a falácia da classe dominante para mentir que o Estado não é a sua exclusiva res privata. Ora, em uma democracia liberal/burguesa, o Estado democrático continua sendo o bunker do capital; a democracia, o bureau da oligarquia. Com efeito, a maior burrice do povo é seguir ignorando isso.

Sejamos realistas, povo brasileiro! Em ambos os casos, seja com eleições diretas, seja com indiretas, será eleito presidente um representante dos interesse da classe dominante. “A realidade é dura”: ou a classe dominante apresentará seus candidatos ao arbítrio popular, ou arbita ela mesma entre eles. Até mesmo Lula, tido como o herói “guerreiro do povo brasileiro”, embora tenha de fato distribuído renda, universidades e cisternas aos mais pobres como “nunca antes na história desse país”, ele só foi presidente da república porque atendeu, melhor dizendo, enriqueceu a classe dominante. Prova disso é que bastou o lulismo – todavia nas mãos menos competentes de Dilma – não mais realizar o sempiterno objetivo das elites e, voilà, rua!

O paralelo entre as “Diretas Já!” de 1983 e 2017 é inevitável. No recente século passado, a pecha “democrática” – e derrotada – foi tentar impedir que os militares escolhessem o presidente da república – que, como sempre, representaria as elites – para que o povo pudesse escolher, “democraticamente”, o presidente da república representante das elites. E o atual “Diretas Já!”, repetindo o erro do passado, pretende impedir que parlamentares corruptos – clientes cativos de empresários outrossim corruptos – elejam indiretamente um representante dos interesses desses empresários para que nós, o povo, escolhamos, dentre as opções que os políticos corruptos nos darão, o representante dos interesses dos empresários corruptos.

Eis a falácia da moderna “democracia”: fazer com que o povo, estupidificado, legitime a escolha dos representantes da classe dominante sem que esta precise fazê-lo despoticamente, via ditadura ou golpe, expedientes que, para quem quer lucrar sempre e muito, têm preço – econômico, político, ético – alto demais para serem usados constantemente. E “Diretas Já!”, novamente, é o grito do povo no sentido de seguir fazendo o que a classe dominante quer que ele faça: legitimar os representantes dela.

Fazendo uma analogia com a contemporânea e mui polemizada mazela social do crack, assim como os seus usuários, preteridos e esquecidos pelo sistema, valem-se desesperada e compulsivamente da “pedra” para suportarem tal condição – sem no entanto mudá-la com o vício -, assim também o povo, copiosamente, corre atrás da “pedra” da “democracia” para ao menos suportar, melhor dizendo, esquecer o fato de que o sistema seguirá dominado pela classe dominante. Nesse velho quadro, clamar coletivamente por “Diretas Já!”, infelizmente, é apenas desespero popular diante de uma crise de abstinência mais fortemente percebida. Metaforicamente, é a ignorância suicida do viciado fazendo-o escolher ele mesmo a sua destruição para não ver, crua e claramente, que, na verdade, não há escolha: o sistema no qual se encontra é que o destrói.

Ver essa realidade sem o Véu de Maya “democrático” tecido historicamente pela classe dominante para perpetrar mais expeditamente a sua dominação; no caso tupiniquim, aceitar o fato de que não importa quem escolherá o próximo presidente do Brasil, se o povo, diretamente, ou se os representantes da classe dominante, indiretamente, pois em ambos os casos a classe dominante seguira como tal; realizar isso, sem dúvida alguma, é traumático. Psicanaliticamente falando, contudo, todo trauma tem uma dupla virtude: primeiramente, não permitir que aquilo que o causa desapareça no esquecimento – o trauma é a fortuita presentificação de uma intervenção insuportável do real; e, em segundo lugar, é superável na medida em que o traumatizado é capaz de falar dele, de comunicá-lo àqueles que podem entendê-lo – sendo o analista o ouvinte/remédio ideal desse processo de cura.

Por isso aqui eu me dispenso, para evitar o pecado da ingenuidade, de propor alguma solução para o impasse traumático no qual nós, povo brasileiro, estamos metidos nessa inócua querela entre “Diretas Já!” e “Indiretas quando a classe dominante quiser”. Faço apenas questão de reforçar insuportavelmente esse trauma. Não só para que o meu encontro – enquanto povo – com o real se apresente em toda a sua radicalidade, sem véus/cracks anestesiantes, mas, sobretudo, para que, ao mesmo tempo, falando dele a quem me ler/ouvir, eu possa me “destraumatizar”. Se todos nós, dominados, fizéssemos isso certamente nos despatologizaríamos a ponto de lidarmos com o real de nossa opressão de modo mais objetivo, político e subversivo, exatamente como a classe dominante faz para nos oprimir.

É porque a classe dominante sabe nitidamente que, de um lado, a democracia liberal/burguesa é a melhor fantasia para a sua estável oligarquia, e que nem mesmo eleições diretas mudarão o fato de que os presidentes serão representantes exclusivos seus; e também, de outro lado, porque está certa de que, até aqui, conseguiu fazer com que a classe dominada permanecesse alienada dessas cruéis verdades; por isso tudo é que ela domina tão certeiramente. O que se depreende disso tudo é que falta ao povo um esclarecimento fundamental, precisamente aquilo que Marx prescrevia aos trabalhadores para que a Revolução fosse possível, qual seja: consciência de classe – consciência essa que sobra à classe dominante. E se o povo puder conscientizar-se de sua potencialidade revolucionária fazendo aquilo que a psicanálise prescreve ao traumatizado: assumir o trauma e comunicá-lo a quem melhor pode compreendê-lo, não a psicanalistas, obviamente, mas a si próprio?

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Uma crônica aos neo-servos

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Utopias, ou seja, lugares ou estados de completa felicidade e harmonia, estão, infelizmente, sempre distantes um futuro. Já as distopias, isto é, lugares ou estados de extrema opressão e infelicidade, estes, mais infelizmente ainda, conseguem se fazer presentes. A série norte-americana The handmaid’s Tale (Crônica de uma Serva), de 2017, adaptação do romance distópico escrito pela canadense Margaret Atwood em 1985, mais do que mostrar um futuro inacreditavelmente opressor, apresenta, no entanto, algo mais raro no mundo ficcional, qual seja, o processo através do qual uma distopia social é produzida. Para nós, brasileiros já insatisfeitos com apenas os primeiros metros da “Ponte para o Futuro” golpista, elitista, machista, racista e homofóbica que está nos conduzindo a um futuro indubitavelmente asfixiante, a Crônica de uma Serva é cruelmente distópica: apresenta a incontornável impotência dos oprimidos diante dos opressores.

A ficção de Atwood apresenta um mundo no qual a poluição esterilizou quase todas as mulheres e o terrorismo é a maior ameaça. Em resposta a isso, os homens norte-americanos mais ricos e poderosos dissolveram o congresso, aboliram a Constituição, fizeram das forças militares milícias suas, e transformaram as pouquíssimas mulheres férteis que restaram em servas pessoais cujos úteros geram os seus filhos. E tudo isso regado ao mais radical fundamentalismo religioso. Os EUA e a sua mui celebrada democracia desaparecem dando lugar à República de Gilead, uma teocracia totalitária cristã. Em Gilead, uma nação dominada por homens ricos que precisam se reproduzir, os homossexuais são tratados como bestas abomináveis. Os gays são enforcados sumariamente. As lésbicas só escapam deste destino quando são férteis, todavia, tendo os seus clitóris extirpados para então serem enviadas às famílias ricas e servirem de útero escravo.

As servas são propriedade, são coisas reprodutoras de seus “comandantes”, isto é, de seus “donos semeadores” casados com mulheres estéreis. Não podem se dirigir a qualquer homem, nem mesmo aos seus donos. São proibidas de andarem sozinhas. Sempre saem acompanhadas de outras servas, para que umas sirvam de olho espião do “grande outro teocrático” às outras. Não há liberdade às mulheres em geral, férteis ou inférteis. Com efeito, tudo na história gira em torno da necessidade dos aristocratas masculinos de levarem seus genes e fortunas adiante em um mundo que, contudo, parece se recusar a dar prosseguimento natural à raça humana. Estranha e sábia natureza!

O que, entretanto, acho mais urgente apontar em The Handmaid’s Tale é o violento e rápido processo pelo qual sua distopia foi implantada. Offred, a serva protagonista da série, conta esse processo através de suas traumáticas memórias. Tudo começou quando o presidente dos EUA foi assassinado por terroristas – mote para a teocracia totalitária cristã ser instaurada. Poucos dias depois, um bando de milicianos armados entra na empresa na qual Offred trabalha para comunicar a nova lei do novo Estado, segundo a qual todas as mulheres estavam proibidas de trabalhar. Em seguida, vê que sua conta bancária foi bloqueada, e isso porque as mulheres foram também impedidas de terem propriedade. Tudo delas foi transferido para seus maridos. As que ão eram casadas tiveram seus patrimônios confiscados pelo Estado. Pior ainda, todas as mulheres passaram a ser propriedade dos homens; ou de seus maridos, ou dos que comandam a sociedade.

Offred e as suas contemporâneas, acostumadas a usufruírem da liberdade do dito “país mais democrático do mundo”, até se organizam em resistência imediata contra a mudança social que furtou delas todo e qualquer direito. Entretanto, a violência desmedida das forças milicianas que defendem o totalitarismo impede qualquer avanço delas. Civis são sumariamente assassinados ao expressarem a menor discordância em relação ao novo sistema. Offred e seu marido, desesperados, resolvem fugir com a filha do país. No entanto, a milícia os captura, mata o marido, sequestra e separa mãe e filha para que sejam escravizadas por famílias ricas estéreis. Offred é levada a um campo de concentração onde é fortuitamente treinada para ser produtora de bebês para a aristocracia, a despeito de sua resistente consciência a respeito do absurdo em que se transformou a realidade. Para uma mulher até então livre e realizada, a impossibilidade de controlar seu destino a obriga a permanecer livre somente na solidão isolada de seus pensamentos.

E porventura não é mais ou menos isso que nós, cidadãos brasileiros, estamos sendo obrigados a fazer diante da involução forçada que a falocracia oligárquica golpista está produzindo no nosso país? Com efeito, estamos vendo um podre poder avançar pujante e violentamente em função exclusiva de si esmo, furtando verticalmente nossos direitos, liberdades e futuro, sem que nada possamos fazer para barrar, quiçá reverter o distópico quadro. Até nos manifestamos coletiva e indignadamente contra tudo isso, mas, como a experiência vem mostrando, a interlocução do inimigo é sempre acachapante, em forma de cada vez mais bombas de efeito imoral e crânios rachados. Estamos sendo obrigados a engolir a seco esse amargo presente, e qualquer doçura utópica que ainda resta só sobrevive nas nossas imaginações, sem chance de ter lugar no real.

O grande problema é que este presente distópico, opressor e infeliz não se abate sobre todos, mas apenas sobre a maioria que não tem como evitar a opressão. Na verdade, essa imensa e assaz democratizada distopia é o alto preço a ser pago pela utopia, liberdade e felicidade de uma minoria opressora. A correlação com a desigualdade econômica é total. A riqueza dos 1% custa a miséria do restante. Simples, desumano e cruel assim. E enquanto o poder econômico puder comprar as melhores e mais mortais armas, tanto as servas de The Handmaid’s Tale, quanto nós, brasileiros neo-servos de homens brancos ricos golpistas estaremos todos condenados a mais amarga distopia para, com ela, sustentarmos a utopia de nossos algozes.

The Handmaid’s Tale não aponta saídas para essa vil conjuntura. Antes, deixa claro que não há saída. É uma bofetada na cara de todos nós que ainda cremos que o inimigo pode ser contido em sua ignomínia. Entretanto, talvez esteja aí a grande virtude do romance distópico de Atwood: fazer com que a inescapável insuportabilidade de uma distopia produza, subversiva e subterraneamente, um gigante Frankenstein utópico incontrolável capaz de, na sua bestialidade, matar o médico fascista que o criou. Contra toda opressão, resistência é fundamental. Se ela, contudo, ainda não pode ser exercida fisicamente, que seja ao menos cultivada metafisicamente, nas ideias secretas dos oprimidos, assim como faz Offred, que, se por um lado é serva da elilte, por outro ainda é senhora de seus ideais. E como na nossa atual distopia nós, os oprimidos, somos a imensa maioria, nosso primeiro trabalho revolucionário conjunto deve ser formar uma imensa constelação com os nossos ideais utópicos, e deles fazer as armas de nossa urgente jihad.

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Ainda é possível uma vitória da vida sobre a economia?

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Para entender a lógica do governo golpista e ilegítimo do Brasil em respeito a tudo o que ele está fazendo/cometendo contra o seu povo, e, ademais, a lógica neoliberal per se, nada melhor do que o título do texto do filósofo alemão Robert Kurz: “A vitória da economia sobre a vida”. Com efeito, é disso que se trata a vertical e imbatível priorização dos interesses econômicos a despeito de quaisquer outros: políticos, sociais, culturais, ecológicos, etc. Se a economia sempre foi determinante na vida das sociedades, e, consequentemente, na dos indivíduos que as compõem, depois de alguns poucos séculos, paramentada com a sua veste história capitalista, a economia reina tiranicamente sobre tudo e todos.

Kurz, em um outro texto seu chamado “A falta de autonomia do Estado e os limites da política”, apresenta de modo muito direto o empecilho indesejável que o Estado, mais especificamente o Estado de bem-estar social é para os propósitos do capital. Embora o capitalismo, em seu nascimento, tenha precisado dos Estados Nacionais – suas estradas, portos, forças militares, leis, etc. – para se alavancar, no seu desenvolvimento, melhor dizendo, na sua globalização, no entanto, os Estados Nacionais findaram como suas novas pedras no caminho. Não à toa, a neoliberália tem por lugar-comum o discurso do Estado mínimo; em termos neoliberais: o Estado que interfere minimamente – que, com sorte, não interfere – nos projetos do capital.

No que tange os cidadãos desses Estados Nacionais – indesejados pela economia capitalista global -, a saúde, a educação, a segurança e toda a sorte de direitos que receberam durante algum tempo do Estado de bem-estar social – e isso para que as massas fossem socialmente contidas, controladas, em suma, entretidas democraticamente para não interferirem decisivamente nos sórdidos movimentos do capital – a estes cidadãos resta engolir “A vitória da economia sobre a vida”, isto é, aceitar o fim do Estado enquanto amortizador/compensador da ignomínia capitalista.

O furto de direitos que nós, brasileiros, estamos sofrendo por parte do governo ilegítimo é a reificação da forma neoliberal que o Estado precisa assumir para não atrapalhar os movimentos do capital em sua forma global. “Esqueçam aquele Estado que se compromete com o socius” – diz-nos secamente o neoliberalismo. “Doravante, saúde, educação, segurança e tudo mais o que precisarem, tratem de vocês mesmos, reles cidadãos, de conseguirem, pois o capital não pode mais perder tempo, quer dizer, lucros sustentando vocês” – completa verticalmente.

Estamos, nós, cidadãos cativos dos nossos Estados Nacionais, definitivamente perdidos e irremediavelmente derrotados pela economia? Aparentemente sim, mas não absolutamente. Por mais que o capitalismo, atualmente, viceje melhor distante de seu velho bureau Estatal Nacional, a democracia ainda lhe é fundamental. Por isso, e talvez somente por isso os Estados Nacionais democráticos ainda não são desinvestidos completamente; são, aliás, mantidos e impostos, mundial e belicamente, como faz o mais capitalista dos Estados Nacionais, os EUA. E uma vez que o capitalismo, até aqui, não pôde prescindir da democracia (moderna/burguesa/representativa) pra se legitimar, e uma vez que a democracia envolve os cidadãos, eis aí a via com que estes ainda podem interferir nos planos daquele.

Um corpo de cidadãos, Estado Nacional e Capital formam o ser histórico moderno par excellence. Entretanto, por mais que o capital esteja vencendo os dois primeiros – melhor dizendo, sequestrando, minimizando o segundo contra os primeiros -, todas as três as instâncias ainda são constituintes essenciais da equação histórica que atende pelo nome de Sociedade Moderna. Outro alemão, o filósofo Jürgen Habermas, no texto “A nova obscuridade”, ressalta a potência revolucionária que os cidadãos ainda têm justamente dentro do Estado democrático imprescindível ao capitalismo. Superando a aparente ingenuidade da proposta de Habermas, ele aconselha o estabelecimento de laços solidários e comunicativos positivos entre os cidadãos, pois isso, e somente isso!, é capaz de fazer com que o Estado não seja tiranizado exclusivamente pelo capital.

O que Habermas propõe é que seja estabelecida pelos/entre os cidadãos, organizados concretamente em esferas subculturais, uma autogestão em resposta ao capital; uma nova organização dos poderes capaz de fazer as vezes do perdido Estado de bem-estar social. O filósofo chama essa nova organização de “sociedade da comunicação”. E como, conforme o provérbio popular, “quem não se comunica, se trumbica”, a sociedade fundamentada na comunicação pode reequacionar a hierarquia do capital sobre a vida, não somente tornando tácito a todos os cidadãos que é mais importante a eles, ou seja, à vida, com principalmente comunicando globalmente os crimes desumanos que comete o capital quando ele não é controlado, contido, como, por exemplo, o foi durante a valência do falecido Estado de bem-estar social.

Nesse sentido, a incontinente sordidez capitalista aclarada, por exemplo, na íntima e criminosa relação entre empresários e políticos no Brasil, apesar de ser um dos males que os cidadãos devem combater, deve, por isso mesmo, servir de carranca insuportável às formações e decisões políticas populares. Se as vilanias político-econômicas como as que estamos conhecendo nos seus mais abjetosdetalhes não servirem ao menos para reunir, política e solidariamente, os cidadãos contra elas, aí sim Kurz terá razão: a economia terá obtido vitória absoluta contra a vida.

Agora, como podem os cidadãos estabelecerem entre/para si uma autogestão democrático-comunicativa em função da vida como um todo e em detrimento da determinação meramente econômica da vida? Minha aposta inicial – em contribuição à proposta habermasiana – é a reconversão dos cidadãos, transformados pela economia em simples consumidores, naquilo que eles nunca deveriam ter deixado de ser, qual seja: indivíduos que constituem, eles mesmos, um Estado, para desse modo usufruírem de direitos civis e políticos. Com efeito, os cidadãos abandonarem o papel de reles consumidores – que o “estado capitalista” os obrigou a encenar para a sua própria bonança – outra coisa não significa, se não o mais certeiro ataque contra esse estado inimigo da vida, ao menos o mais à mão.

Em suma, para que a vida vença a economia dentro de um Estado Nacional, a condição de cidadão não deve mais servir, como vem sendo feito pelos próprios “cidadãos”, para que uns indivíduos se sobrelevem em relação a outros mediante ganhos particulares. Ao contrário, uma cidadania revolucionária em termos habermasianos, isto é, solidária e que se comunique em prol da vida – enfim, que comunique vida! – deve ser aquela que se encontra no pleno gozo de direitos comuns e públicos que permitam, sobretudo comprometam os cidadãos a participarem ativamente da vida política, a fim de que esta não seja mais fraca e derrotada diante do ímpeto da economia, este sim, conhecido de todos.

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Sobre o monopólio da violência

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Foto: Ana Carolina Fernandes – Greve Geral, Rio de Janeiro, Cinelândia, 28 de abril de 2017.

Discordemos do Estado, e, no melhor dos casos – como quando trabalhadores protestam na defesa de direitos constitucionais – recebemos bombas de gás e balas de borracha. A repressão do Estado na greve geral de 28 de abril, no Brasil, não deixa dúvida disso. No pior dos casos, como na Síria atualmente, cidades inteiras são dizimadas com armas químicas e ataques aéreos. O monopólio da violência pelo Estado é sempre tirânico, independente de o Estado ser democrático ou tirânico. E se essa violência, que monopolizada é sempre despótica, fosse democratizada? Será que não seria menos violenta?

O monopólio da violência pelo Estado é didaticamente explicado pela teoria política do filósofo Inglês Thomas Hobbes, que justifica essa posse exclusiva no medo natural dos homens da “morte violenta”. Grosso modo, o substantivo medo dos homens de serem mortos, violenta e intempestivamente, por outro ou outros homens fez com todos travassem um “contrato social”, um trato coletivo no qual todos abrem mão do “direito natural” de matarem uns aos outros em caso de necessidade, para então terem o direito artificial, nomeadamente civil, de não serem mortos; ou, caso isso aconteça, que justiça seja feita.

Só que esse “contrato social” – e isso não mistério para ninguém – de forma alguma extinguiu as mortes violentas e injustas. A violência da qual o homem quis se ver livre, na verdade, foi transferida toda ela ao Estado, ou, na imagem clássica de Hobbes, ao Leviatã. Só ele pode matar, violenta e injustamente, sem sofrer punição, como comprovam, por exemplo, os cotidianos assassinatos de suburbanos cariocas pelo Estado, na figura da polícia militar – que, segundo os coros populares desde a primavera brasileira: “Não acabou. Tem que acabar. Eu quero o fim da polícia militar”. Entretanto, por mais monstruoso que o Leviatã possa parecer, Hobbes insiste, em outras palavras, que esse é o melhor e mais racional dos mundos.

Para o filósofo contratualista, quebrar o contrato, ou seja, retirar do artificial Leviatã o monopólio da violência é o ato mais irracional possível, uma vez que o Estado é resultado dos melhores cálculos humanos a respeito da segurança. Em suma, para o liberal Hobbes, a revolução do Estado será sempre para pior; devolver-nos-ia imediatamente ao “estado de natureza” no qual, conforme suas célebres expressões, há a “guerra de todos contra todos”: estado no qual “o homem é o lobo do homem”. Por isso, justifica ele, a violência deve ser posse do Estado, tão somente dele.

Entretanto, e quando o Leviatã, cuja função essencial é transformar o Homo homini lupus no “cachorrinho melhor amigo do homem”, falha, deixando seus súditos temerosos não só de serem mortos violentamente uns pelos outros, mas, sobretudo, pelo próprio Estado, como de fato ocorre cada vez mais banalmente? Pior ainda: e quando esse Estado delibera que são os súditos os lobos e usa sua monopolizada violência não para protegê-los, mas para proteger-se deles? Porventura não temos aí um mau contrato, que deve ser quebrado para que possamos travar outro que melhor nos sirva?

Falta-me comprovação estatística, mas minha intuição sugere que o número de mortes no “estado de natureza” seria o mesmo que temos no artificial Estado Civil, com a diferença que, no primeiro caso, essas mortes seriam cometidas pelos homens e em nome dos próprios homens, e, no segundo caso, seriam feitas outrossim por homens, não obstante, em nome do Estado. Se essa minha ideia não pode ser comprovada cientificamente, ao menos pretende questionar a capacidade da violência, monopolizada pelo Estado, de assegurar aos homens que eles não serão mortos violenta e injustamente. Porventura seria um barbarismo imperdoável propor uma redemocratização da violência, mediante a suspensão, ainda que experimental, de sua posse pelo Estado, para vermos se assim estaríamos algo mais seguros?

Para relativizar o lugar-comum que repete que as pessoas não podem e não devem agir violentamente – lugarzinho esse que nos faz gritar, em coro, “Sem violência” até mesmo quando estamos engolindo, violentamente, litros de gás lacrimogêneo comprados pelo nosso violentador com o nosso dinheiro -; faço questão de comentar uma cena do seriado norueguês Fortitude, que se passa em uma isolada cidadezinha, no extremo norte do mundo, encravada em uma geleira.

O que há de promissoramente reflexivo nesse exemplo ficcional é que, pelo fato de os cidadãos de Fortitude viverem na tundra, precisam, todos, ter armas para se protegerem dos ursos polares que coabitam o local. Quando, então, a governadora local pretende impor medidas antipopulares aos cidadãos, alguém lembra ela que isso não pode ser feito, pois, como ser impopular em uma cidade onde o povo é armado e pode responder com igual ou maior violência a violência que receberá? Fortitude sustenta uma pergunta fundamental: e se o Estado, para não ser injustamente violento com o povo, precise estar sujeito à violência deste?

Certamente dirão que armar o povo é uma ideia fascista, diga do execrável Bolsonaro. O problema dessa crítica, contudo, é que ela pressupõe que as pessoas deveriam ter armas apenas para matar umas às outras. Todavia, o exemplo de Fortitude mostra que os cidadãos devem ser armados para se defenderem de feras, de bestas, de “monstros não humanos” que os ameacem violentamente. Os moradores da geleira fictícia não têm armas para as usarem contra si próprios – ainda que isso possa acontecer acidentalmente. E se, como dissemos, o Leviatã não é um cidadão, mas um ser artificial criado por cidadãos, um “monstro”, por assim dizer, então, usar de violência contra ele quando ele é desmedidamente violento significa defender os cidadãos.

Muitos, dirão, decerto, que nos EUA, país com a população mais armada do mundo, o Estado não se sente ameaçado nem deixa de agir violentamente sempre que julga necessário. Com efeito, para que o Leviatã norte-americano tivesse medo dos milhões de sobrinhos do Tio Sam, seria preciso que estes tivessem não apenas pistolas, mas algumas centenas de ogivas nucleares. Afora o absurdo dessa ideia, ela deve ao menos nos levar a pensar que o atual Leviatã norte-americano só seria moderado pelo seu povo se este fosse “nuclearizado”. E isso porque há muito tempo só o Estado deteve a posse da violência. Ora, deixe isso acontecer por alguns séculos, e, voilà, a violência será patrimônio inalienável do Estado.

Seria pretensão demais querer descobrir a forma de acabar com o monopólio da violência pelo Estado. Entretanto, qualquer movimento nesse sentido só será possível se, primeiro, refletirmos sobre esse monopólio, sobretudo quando ele não entrega o que promete. Pior ainda, entrega o contrário: mais violência e mortes aos cidadãos.

Se a física comprova que qualquer ação suscita uma reação de mesma intensidade, porém, de sentido contrário, então, aceitar ser violentado pelo Estado sem ter a liberdade de reagir com igual violência contra ele é se alienar em uma dimensão metafísica que, com efeito, apenas permite ao Estado seguir agindo impune e injustamente. Esperar não-violência do violentíssimo Leviatã tupiniquim, por exemplo, é crer ingenuamente não só que Deus é brasileiro, mas que Ele, mistica e milagrosamente, irá livrar-nos do “Lobo do Estado”.

Que virtuosas reformas econômicas, políticas, sociais, culturais, éticas, etc., são necessárias para que possamos, novamente, ter a violência democratizada, porém, sem que a voltemos viciosamente contra nós mesmos, mas, ao contrário, possamos usá-la, conjuntamente, contra os “monstros” nossos inimigos, por exemplo: o Estado injusto e violento? Não nos esqueçamos jamais: essa mudança não virá do além sobrenatural, mas do aquém natural dos próprios homens que, ao passo que não querem ser mortos nem violentados injustamente, muito menos podem aceitar tal violência justamente de quem foi posto no mundo – e por eles! – para protegê-los dela.

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A pior república

pior república

Assistir às delações do fim-do-mundo protagonizadas pelos Odebrecht produz um sentimento angustiosamente ambíguo em quem é povo. De um lado, há a profunda tristeza em se saber que eles – e oligarcas de mesmo calibre – cometeram, subterrânea e livremente, crimes contra a república, e, nas palavras do Odebrecht pai, pelos últimos trinta anos. De outro lado, há a estranha felicidade de se ver estes mesmos crimes antirrepublicanos sendo finalmente desenterrados, divulgados, em suma, publicizados. Que país foi esse, estamos, como nunca, cientes. Agora, relembrando a música da banda brasiliense Legião Urbana, como saber “Que país é esse”? E, mais ainda, que país será esse?

A República Federativa do Brasil está em uma encruzilhada histórica em plena e ardente luz do meio-dia. Aquilo que até então ainda se tinha por res publica, ou seja, o governo, o parlamento, até mesmo as leis, tudo isso se revelou a mais funcional res privata de meia dúzia de empresários que compram toda sorte de políticos, de vereadores à presidentes da república, tanto para monopolizarem os orçamentos públicos, quanto para aprovarem leis que os beneficiem e enriqueçam ainda mais. A única res publica, melhor dizendo, a única coisa que é realmente pública nesse momento de sangria aberta é o conhecimento de que o Brasil é uma res privata, isto é, uma coisa privada de uma criminosa oligarquia político-empresarial.

O golpe de Estado de 2015 comprova a mesma situação. A quadrilha de políticos e empresários – corruptos e corruptores, respectivamente –, que deslegitimaram a democracia para não ter seus longevos esquemas criminosos descobertos e punidos, e isso ao vivo, em cores e em cadeia nacional, também atesta que a administração da res publica em benefício da res privata, hoje em dia, não tem pudor algum em ser publicizada. O golpe militar de 1964 ao menos teve a virtude de mentir, a desumanos custos, é preciso dizer, que defendia a república. Já o atual, é assumidamente particularista. Como o telefonema de Romero Jucá, tornado público, relembra-nos em baixíssimo e mau tom, o golpe foi para “estancar a sangria”, ou seja, para encerrar as investigações que levariam à prisão aqueles que fazem do Brasil uma res privata.

Publicidade é uma ideia chave na realidade republicana. Tudo o que, direta e indiretamente, afeta e interessa os cidadãos de uma república deve necessariamente se tornar público, afinal, como a etimologia da palavra não deve deixar esquecer, “público” é tudo aquilo que diz respeito ao povo. Pois bem, crimes de lesa-pátria como os da Odebrecht e afins são duplamente antirrepublicanos. Em primeiro lugar, porque são cometidos às escondidas, longe de qualquer publicidade; e, em segundo lugar, porque fazem da res publica res privata. Já o crime golpista de 2015 é antirrepublicano apenas pela segunda razão, pois a primeira, a falta de publicidade, não foi expediente utilizado. Mostraram a cobra morta, a democracia, e o pau assassino, o acordão golpista; e isso em muitas sessões televisionadas e telefonemas publicizados.

Entretanto, embora ambos os crimes acima citados sejam antirrepublicanos por natureza, antes mesmo de serem devida e finalmente tornados públicos por vias jurídico-midiático-institucionais, o que, por assim dizer, é o mínimo a ser feito para que haja algo que se pareça com uma república, esses crimes já se publicizavam sintomaticamente, e da pior forma possível, há pelo menos o mesmo tempo, por exemplo, na forma de uma saúde pública, uma educação pública e uma segurança pública por demais insuficientes. A presente “falência” dos serviços públicos de estados como o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, só para citar dois, mostra como a não publicidade estratégica de roubos à coisa pública cometidos por políticos e empresários acaba sendo, inevitavelmente, contemporânea de uma desassistência em relação às necessidades básicas do povo, essa sim, tacitamente pública e publicizada.

Nessa conjuntura, a república é cruelmente parcial: apenas os problemas são tornados públicos, não aquilo e aqueles que os causam. No entanto, na “encruzilhada sangrenta” em que o Brasil se encontra, com Odebrechts e OASses revelando cruamente e em cadeia nacional os seus muitos e longevos crimes contra a res publica, ao menos tem-se a oportunidade de que as causa e as consequências das mazelas brasileiras se tornem, ambas, públicas. O povo, há muito consciente de sua desassistência por parte do Estado, agora tomando conhecimento de que isso se dava porque o Estado estava voltado para os interesses de meia dúzia de megaempresários, obviamente não tem diante de si a melhor visão do mundo, mas, ao menos, o grotesco quadro do seu mundo real.

Talvez o Brasil esteja experimentando, pela primeira vez, o que é essa coisa chamada república com a publicidade não só de seus problemas, mas sobretudo das causas até então ocultas deles. Se o país era uma república de fachada, por trás da qual a coisa que deveria ser pública era manipulada para atender os interesses privados de poucos, agora esse biombo está no chão. Hoje, mais do que nunca, é insuportavelmente público o que fazia da aparente res publica uma verdadeira res privata. Com efeito, se isso constitui o primeiro degrau autêntico da nossa república, convenhamos, é a pior república: aquela que publiciza apenas o fato de que a coisa pública não é do povo. Entretanto, não se chega a patamares mais elevados sem passar pelos mais baixos.

A virtude de, em uma república, ser dado publicidade a tudo aquilo que afeta e interessa o povo, até mesmo e inclusive aquilo que o priva de sua, e tão somente sua, res, é a oportunidade de se criar instituições adequadas que, doravante, impeçam que a res publica seja voltada a interesses meramente privados. It´s a long way home, folks! ButThis is the only way. O fim do roubo à república sistematicamente cometido pela criminosa sede privada de modo algum será uma dádiva ao povo, mas sim a batalha dele – nossa! – para que uma res que é e deve ser publica não seja privata, e pouco importa se às escondidas ou publicamente.

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“We need to talk about” democracia

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Ninguém mais questiona a democracia. Cremos nela cegamente, como se estivéssemos diante de Deus, contra o qual é heresia suprema levantar a mínima suspeita. E pouco importa saber que Hitler tenha ascendido ao poder democraticamente na Alemanha pré-nazista, ou que, no Brasil de há um ano, um bando de criminosos corruptos tenham deposto injustamente uma presidenta por vieses outrossim democráticos: continuamos defendendo a “nossa democracia”. Agora, uma coisa é preciso perguntar: democracia de quem – e para quem! – cara pálida?

O mordaz Nelson Rodrigues disse certa vez que “toda unanimidade é burra”. Aplicando essa chave rodrigueana à generalizada ideia de que a democracia é condição política padrão e obrigatória, não é difícil concluir que há grande falta de inteligência política. Não só o povo, que se compraz com a tradução literal de democracia (“o governo do povo”), mas também todas as importantes instituições internacionais, e, sobretudo, a classe burguesa/dominante prescrevem nada além da democracia como base da justiça e plataforma para um presente e um futuro melhores. Até mesmo os governos autoritários não podem deixar de, ao menos, encenarem eleições democráticas, mesmo que subterraneamente fraudadas. Mas, como ressalta Francis Fukuyama, “o simples fato de um país possuir instituições democráticas nos diz muito pouco se é bem ou mal governado”.

Deus, há muito tempo, não é mais amor. Hoje em dia Ele é democracia. E projetamos essa deidade, vertical e inquestionavelmente, sobre o universo das sociedades humanas. A democracia se tornou tirana! Interessante é o comentário de Fukuyama sobre a invasão dos Estados Unidos no Iraque, em 2003, cujo objetivo era derrubar a ditadura de Saddam Hussein para lá instalar a democracia. Realizada a primeira parte do plano, certamente a mais fácil, restou aos norte-americanos a frustração de ver que somente a anarquia teve lugar no país “libertado”. Diante desse fato, em vez de os sobrinhos do Tio Sam – e boa parte do mundo – questionarem a própria democracia, melhor dizendo, a impossibilidade e ou a impertinência de ela ser aplicada indiscriminada e universalmente, a imperfeição foi aplicada sobre sobre o povo iraquiano, suas instituições e costumes.

A impossibilidade de a democracia ser universalizada vem, em primeiro lugar, dos diferentes significados que ela tem, não só para diferentes sociedades, mas, mais essencialmente, para o povo e para os poderosos de uma mesma sociedade. Com efeito, o povo acredita ingenuamente que todo poder emana dele. Já os poderosos de hoje em dia sabem muito bem que todo poder emana do seu capital. É como se o povo acreditasse que democracia ainda é e deve ser aquilo que acontecia na antiga Atenas, uma democracia direta, sem saber, contudo, que tal regime era privilégio de apenas 10% daquela população. Direta para quem, cara pálida? Já a burguesia, desde a sua revolução, a Revolução Francesa, aventurou o mundo na sua própria e mui lucrativa democracia: a democracia representativa ou liberal; de um lado, iludindo o povo com a ideia de participação política nas decisões públicas mediante o singelo expediente do voto; porém, por todos os outros lados, monopolizando a res publica tiranicamente. A Odebrecht que o diga!

Desmistificando a virtude da antiga democracia direta ateniense para além do fato de ela considerar demos, isto é, povo, apenas 10% da população – o que, mutatis mutandis, no melhor dos casos, significava uma aristocracia, e, no pior, uma oligarquia – temos a clássica teoria política de Aristóteles segundo a qual exitem seis formas de governo; Três delas essencialmente boas: monarquia, aristocracia e regime constitucional (ou, na letra do filósofo, a politeia). As outras três, essencialmente ruins, porque são as degenerações das três primeiras, respectivamente: tirania, oligarquia e democracia. Já à época, a ilustre democracia direta ateniense tinha seus críticos, pois confundia-se com a anarquia, ou seja, a ausência de governo. 1800 anos depois Maquiavel ainda sustentava a teoria das formas de governo aristotélica, porém, em vez de opor a virtude da politeia aos vícios da democracia, nas palavras do italiano essa oposição se apresentava entre a virtuosa república e a viciosa licenciosidade, outro nome para a anarquia.

Como podemos ver, durante a maior parte da existência da civilização humana, a democracia foi considerada uma forma corrompida de governo, indesejável pelos maiores pensadores políticos. Foi apenas recentemente, desde a Revolução Francesa burguesa, que a democracia se vestiu com a toga da virtude inquestionável, obviamente, sem esclarecer ao demos que era essencialmente burguesa: para e pelos os burgueses. Mesmo assim o mundo ainda resistiu em universalizá-la. Fukuyama nos conta que 1973, apenas 45, dos 151 países do mundo eram democráticos, “livres” – um terço deles. Somente no ano de 2000 é que a democracia foi majoritária, com 60% dos países sendo governados democraticamente.

Só que, como Aristóteles e Maquiavel nos diriam, essa nossa contemporânea conjuntura democrática não teria como se sustentar, dado o princípio de corrupção intrínseco à própria democracia, seja ela direta, seja representativa. Prova disso é que, diz Fukuyama, de 2000 a 2010 20% dos países democráticos reverteram ao autoritarismo. O presente processo de autoconversão de Erdoğan em ditador, na Turquia de 2017, é apenas mais um capítulo desse afastamento do sonho democrático que por uma breve noite encantou o mundo. Sobre a democracia, Fukuyama tem uma boa tirada sobre a democracia, que certamente agradaria a Aristóteles e Maquiavel: “é como uma fábrica de salsichas, parece menos atraente quanto mais perto se chega do processo”. Talvez seja por isso que nós, brasileiros, estejamos clamando tanto pela “nossa democracia”: estamos distantes dela.

Quando a democracia está ausente, o que lembramos dela é a sua aura grega antiga, na qual os cidadão – na verdade os pouquíssimos que tinham o privilégio de serem considerados com tais – governavam. Já quando ela está presente, a exclusão que gera, ainda mais na democracia liberal, é tácita insuportável. E isso porque, na realidade, democracia não é a falácia da maioria da população decidindo sobre a sua res a partir do tímido e esporádico parlatório das urnas, mas, como a burguesia faz questão de esconder – ou pelo menos fazia até estrear espetáculos escatológicos tal como o protagonizado no Brasil pela Odebrecht -, a democracia é o expediente com o qual, relembrando Marx, a burguesia gere o seu bureau privado: o Estado.

Por mais que hoje em dia queiramos “a nossa democracia de volta”, é preciso considerar o preço desse desejo. Do contrário, seremos como o viciado em heroína que deseja cegamente aquilo que o escraviza e mata. Por que não considerar o que nos legaram gênios como Aristóteles e Maquiavel, cujas obras sustentam que há uma forma de governo virtuosa – a constituição civil ou politeia, para o grego; o governo popular ou a república, para o italiano – em relação a qual a democracia é a forma degenerada, licenciosa, anárquica? Será por burrice mesmo, como diria o dramaturgo brasileiro, que seguiremos todos, povo e poderosos, ricos e pobres, incluídos e excluídos, desejando unanimemente a mesma coisa? Seja a democracia direta antiga, seja a representativa/liberal moderna, elas sempre serviam apenas às minorias, mais especificamente: os poderosos, os ricos, os incluídos. Jaz aí a sua corrupção essencial. Dessa visada, a burrice é do povo.

Quanto tempo ainda demorará para que enxerguemos a armadilha democrática com a qual os privilegiados nos capturam, e, doravante, passemos a desejar, mas não só isso, comecemos a construir um governo verdadeiramente virtuoso à maioria, algo como a politeia aristotélica ou a república maquiaveliana? Ainda que, nós, os muitos do povo, ainda não saibamos como instituir um governo autenticamente popular, podemos devemos começar esse processo abandonando esse coro, unânime e burro, em nome da democracia, que, na verdade, desde sempre foi em nome de poucos e poderosos. We need to talk about democracia. Precisamos criticá-la duramente pelo que ela é: a corrupção do que significa um legítimo governo da maioria e para a maioria.

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Falácias humanitárias

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Há um ano, quando do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, paralelamente às manifestações populares propriamente políticas contra o democraticídio, houve um evento no Rio de Janeiro chamado “Ioga contra o golpe”. Nada contra as tradicionais disciplinas físicas e mentais indianas, que fazem bem tanto ao corpo quanto à mente dos seus praticantes. Agora, acreditar que cuidar do próprio umbigo físico e metafísico faria qualquer verão contra o inverno golpista que abriu a “era do gelo” ao Estado de bem-estar social brasileiro, convenhamos, é mais do que ingenuidade: é alienação ipsis litteris. E a direita golpista só tem a agradecer às ações “políticas” dos “yoggers contra o golpe”.

Está sendo divulgado um vídeo com o comediante Marcelo Adnet no qual ele convida os cariocas para um evento musical na Fundição Progresso chamado “Rock por Aleppo”, cujo objetivo é destinar 100% do valor arrecadado no festival às crianças afetadas pela guerra civil síria. Até aí nada de absurdo, pois, desde o “We are the world” do pedófilo Michael Jackson, “pela fome na África”, em 1985, assim caminha o humanitário. O que, entretanto, denuncia a imperdoável alienação do “Rock por Aleppo” é o restante do convite de Adnet, que, com seu sorriso falso à la Jim Carrey, diz o seguinte: “Venha se divertir e ao mesmo tempo ajudar as crianças da Síria!” Em outras palavras, “o máscara” tupiniquim convida-nos para assistirmos aos nossos músicos prediletos, bebermos nossas cervejas geladinhas, dançarmos alegremente junto de nossos amigos, e, ainda assim, acreditarmos que estamos fazendo alguma diferença contra o crime quiçá mais hediondo da atualidade: a “explosão” de crianças inocentes em função uma guerra feita por adultos culpados de poder.

O humanitarismo, decerto, chega até nós com muitas e distintas máscaras. Por trás de algumas delas, no entanto, não há nada de humanitário, apenas uma performance vazia, ou, o que pode ser pior, um egoísmo incapaz de se assumir, a não ser sob o espetaculoso disfarce do altruísmo. O filósofo Slavoj Žižek nunca teve papas na língua para denunciar que o real objetivo dos ricos países do primeiro mundo que dispendem vultuosas ajudas humanitárias aos pobres países do terceiro mundo é mitigar a culpa oriunda da consciência de que são precisamente as suas abundantes riquezas que causam, por mil vieses capitalistas, as aviltantes pobrezas em cada vez mais cantos do mundo. Basta estes afortunados países mandarem algumas migalhas aos miseráveis – que só são miseráveis relativamente às fortunas deles – e, voilà, os ricos podem fruir de suas bonanças mais tranquilamente.

Esse expediente dos países ricos de enviarem alguns trocados aos distantes necessitados pobres, com o objetivo de dirimir algo dos males do capitalismo, e que se apresenta sob o manto cada vez mais canastrão do humanitarismo, merece um neologismo só seu, que me arrisco aqui a chamar de “humanetarismo”: um humanitarismo meramente monetário, baseado no envio de algum dinheiro a quem precisa, desde que quem o envie nada mais precise fazer. Claro, o que deveria ser feito, o que realmente resolveria os problemas da miséria e da radical desigualdade socioeconômica mundial, seria o deliberado desinvestimento nesse sistema – capitalista – produtor de desigualdades radicais e de misérias extremas em nome de riquezas cada vez mais astronômicas concentradas em menos mãos.

Todavia, o exemplo do “Rock por Aleppo” mostra que é mais do que apenas enviar algum dinheiro aos desendinheirados o que esse “humanitarismo” está planejando. Ao mesmo tempo que pretende destinar alguns tostões às crianças vitimadas pela guerra síria – movimento no entanto absolutamente paliativo, pois não toca na causa do problema, apenas a remedia -, esse “humanitarismo” quer fazer isso mediante o prazer hedonista dos pretensos “humanitários”; via boa música, boa iluminação, bom ar-condicionado, boas bebidas, tudo isso rodeado de pessoas bonitas e bem vestidas dentro de um espaço devidamente gentrificado e, o que é mais importante, bem distante do real problema que imaginam resolver. Dessa visada, o “humanetarismo” diz pouco desse humanitarismo tacitamente hedonista. Mais apropriado seria outro neologismo, que sou tentado a chamar de “hedonitarismo”: o humanitarismo que se dá mediante o prazer hedonista de quem pretende agir humanitariamente.

O verdadeiramente hedonista e duvidosamente humanitário “Rock por Aleppo”, que nada faz para que adultos culpados deixem de explodir crianças inocentes, apenas pretende enviar “lotes de Band-aid” às feridas delas, pode ser colocado no mesmo saco de alienação do verdadeiramente egoísta e vergonhosamente político “Ioga contra o golpe”, que, através do alongamento muscular e do “equilíbrio do eu alienado”, acreditou que faria alguma diferença contra o democraticídio e o roubo dos direitos sociais que teve e está tendo lugar no Brasil. A Ioga não é uma religião, e sim uma “filosofia”. Entretanto, no caso do “Ioga contra o golpe”, cabe a ele a crítica de Marx segundo a qual “a religião é o ópio do povo”. Só que, nesse caso, em vez de rezar contra os males propriamente humanos do mundo, alonga-se o corpo e relaxa-se a mente; no caso do “Rock por Aleppo”, ouve-se boa música, sacode-se o corpo, bebe-se “bons drinques”, e, para muitos, volta-se desse “hedonitarismo” no ar refrigerado do Uber.

Insisto nessas aberrações que aqui chamo de “humanetarismo” e “hedonitarismo” sobretudo em respeito aos verdadeiros humanitaristas, por exemplo, os do Médicos sem fronteiras e os do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, notadamente aqueles indivíduos que, mais do que apenas dinheiro, levam os seus corpos e tempos a quem deles necessita urgentemente, não para obterem prazeres egoístas e consumistas, visto que estar presente em campos de guerra ou em áreas de catástrofes humanas e ou naturais é qualquer coisa menos ajudar o outro “curtindo a vida”. Os verdadeiros humanitários são aqueles que sabem que a miséria do outro só será realmente reduzida se o conforto deles for realmente comprometido: reduzido na medida do desconforto desse outro. Esse é o humanitarismo real. Envergonhem-se todos os que pensam fazer isso regados a boa música e cerveja ou alongando o próprio umbigo.

A vilania do capitalismo não é patente apenas por produzir sistematicamente miséria e guerras para melhor se manter e crescer. Seu mau também se expressa nessas “mercadorias” que aqui chamei de “humanetarismo” e de “hedonitarismo”, distribuídos worldwide com o rótulo falso do humanitarismo; mas que, como qualquer iPhone ou Uber, “ajuda” necessariamente apenas os próprios capitalistas, e, contingentemente, os indivíduos que os consomem alienadamente. Não, “yoggers contra o golpe” e “rockers por Aleppo”, a potência política e o senso humanitário de vocês, longe de serem a mais pálida solução a qualquer um dos graves problemas atuais, são, no mínimo, a manutenção deles. Mais grave ainda: o seu agravamento.

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As palavras, a política e as coisas.

PALAVRAS POLÍTICA

Na obra-prima “Política e tragédia: Hamlet, entre Hobbes e Maquiavel”, o filósofo argentino Eduardo Rinesi expõe um dos fundamentos do pensamento político do filósofo inglês Thomas Hobbes, “a questão das palavras”, que acaba ocultado pelo ilustre e imenso edifício teórico desse autor, simbolizado pelo Leviatã, que trata sistematicamente da forma do Estado absoluto e soberano. Atentar a esse soterrado “alicerce” hobbesiano, como veremos, é exercício urgente para quem quer tocar o núcleo quiçá mais imanente da política.

Rinesi ressalta que a preocupação primordial de Hobbes é com as palavras. Melhor dizendo, na relação que elas têm com as coisas que nomeiam. Segundo o filósofo argentino, a problemática que levou o inglês a conceber o seu Leviatã está no fato de as pessoas, embora usem as mesmas palavras, na maioria das vezes discordam das coisas que essas palavras designam no mundo. E, para ele, a política existe justamente por conta desses hiatos: para fazer com que as pessoas concordem com as coisas que as palavras nomeiam.

Tomemos como exemplo as palavras: “liberdade”, “justiça” e “democracia”. Por mais que sejam as mesmas nas bocas de todos, no mundo real elas significam coisas muito distintas. O que na boca do capitalista significa “liberdade para vender a força de trabalho”, no mundo real do proletariado representa uma quase escravidão. Trazendo a tona um exemplo contemporâneo, o significado de “justiça” para o juiz/celebridade Sérgio Moro significa o contrário para grande parte da população brasileira. E “democracia”, que para o povo significa, ingenuamente, “o governo do povo”, para a burguesia, no entanto, sempre significou o sistema político mediante o qual é ela quem governa o povo mais livremente.

Para Hobbes, ressalta Rinesi, se as pessoas concordassem com as coisas que palavras tais como “liberdade”, “justiça” e “democracia” designam, não haveria necessidade de política. O (con)trato de todos com todos – a ordem – estaria dado. Porém, é precisamente por conta da desordem entre as palavras e as coisas que elas deveriam significar que as pessoas entram em conflito. O caos semântico é o que a priori estabelece a célebre “guerra de todos contra todos” hobbesiana. Só que essa batalha, para não ser bárbara e sim política, precisa se dar no campo minado das próprias palavras.

Lembremos do surgimento dessa coisa chamada “política” na antiguidade grega. Somente após aqueles helenos abandonarem o conflito físico com o qual defendiam os seus interesses particulares para então disputarem na esfera da palavra foi que o despótes, isto é, o bárbaro, se converteu em polités, ou seja, em político, civilizado. A relação política que travaram entre si produziu não só a concordância em relação às coisas reais que as suas palavras significavam, como também a coisa que chamamos de “civilização”.

Hobbes, porém, sabia que tal concórdia em torno das palavras, sempre que existia, era frágil, instável demais. Não que para ele as próprias palavras fossem as culpadas, senão que eram as próprias pessoas, suas verbalizadoras, que naturalmente pervertiam o que elas significavam em função de interesses particularistas/egoístas. Não nos esqueçamos que, para o inglês, Homo homini lupus (O homem é o lobo do homem)!

E Rinesi parte desse equívoco semântico que sempre instabiliza as relações humanas para desmistificar a ideia de que a pré-política “guerra de todos contra todos”, ou o que é o mesmo, o famigerado “estado de natureza” hobbesiano, seja um estágio ancestral, anterior à civilização, do qual, uma vez súditos do onipotente Leviatã, estaríamos devidamente protegidos. Ao contrário, o “estado de natureza” no qual as pessoas se embatem – em função do que significam as palavras – é constantemente presente. E é em função dele aliás que devemos ser políticos com a mesma constância. O provérbio popular “matar um leão por dia”, parafraseado hobbesianamente, ficaria assim: domar um homo homini lupus por dia, mas com um chicote político cujo “sustenido” sejam palavras.

Empreitada do tamanho da civilização que Hobbes só conseguiu sistematizar erigindo o seu onipotente Leviatã, isto é, mostrando que, em suma instância, só conseguiremos concordar com o que significam “medo”, “morte” e “violência”, presentes no hobbesiano fundamento subjetivo do Estado, qual seja, “o medo da morte violenta”, se tivermos um soberano invencível que nos prive, objetivamente, do direito de mudarmos as coisas que concordamos em colocar sob as palavras que pronunciamos em conjunto.

Caos semântico contemporâneo, por exemplo, acontece com os significados de “mulher” e “homem”. O atual movimento envolvendo a “questão de gênero” altera o quiçá mais longevo trato humano: aquele que dizia que homem é quem nasce com falo, e mulher, quem nasce sem. Não que seja a priori condenável a modificação desses conceitos, afinal, o devir histórico impõe necessidades, senão que, a posteriori, devemos enxergar nisso como passamos a não mais concordar com as coisas que nós mesmos colocamos sob as nossas palavras.

A lente hobbesiana colocada sobre a presente questão de gênero magnifica o fato de que a transexualidade abriu brechas semânticas – angustiantes para uns, libertárias para outros – entre as velhas palavras “homem” e “mulher” e as coisas que elas até então representavam. Mais importante, contudo, é a sabedoria de Hobbes no sentido de apontar que a superação desses inevitáveis hiatos deve ser sempre política: é no campo das palavras, do diálogo, do (con)trato, e não no da violência física que devemos permanecer até, com sorte, voltarmos a concordar com o que, no caso, “homem” e “mulher” devam significar. A vitória transexual, portanto, equivalerá a todos concordarem que nem toda pessoa que nasce com um falo é homem, e nem toda que nasce sem, é mulher.

Sim, somos livres para mudarmos as coisas que até então estiveram significadas pelas nossas palavras, afinal, elas sempre foram tão somente nossas. Não obstante, devemos saber que isso tem um custo que somente pago com a moeda política evita que entremos numa sanguinária “guerra de todos contra todos”. Se formos políticos, civilizados a ponto de concordarmos, por exemplo, que “homem”, como dizia Platão, é “um bípede implume de unhas largas”, e ninguém discordar, a paz, pelo menos em torno dessa coisa/palavra, estará dada.

Universalizando essa lógica, a “paz total entre os homens”, a “civilização absoluta”, ou, dito ainda de outro modo, a domesticação completa do Homo homini lupus, será possível somente quando concordarmos, todos, que sob cada palavra há uma única e inequívoca coisa. Tarefa impossível, já sabia Hobbes. Por isso mesmo: mais política! Pragmaticamente falando, nosso trabalho político mais urgente seria concordarmos com o que significam: “natureza”; “igualdade”; “sustentabilidade”; “justiça”; “direitos”; só para citar algumas das nossas palavras que significam coisas perigosamente distintas para uns e outros.

Se não fizermos nós mesmos, natural e horizontalmente, essa politicagem, Hobbes nos diz que só resta criarmos um ser artificial, o Leviatã, que nos obrigue, verticalmente, a tal. Quando o Estado, do topo do seu monopólio da violência, lança bombas de gás lacrimogêneo contra, por exemplo, trabalhadores que se manifestam por salário, esse mesmo Estado está fazendo o seu trabalho – sujo, baixo, é preciso dizer – de obrigar todos a entenderem que, sob a palavra “manifestante”, em vez da “coisa trabalhador”, está a “coisa desordem”, ou a “coisa ameaça”.

Por isso devemos empreender nós mesmos, antes de nossos monstros artificiais, esse árduo trabalho político, polido, civilizado, de concordarmos com as coisas apontadas pelas nossas palavras. Do contrário, essa necessidade intratada acaba por produzir: ou a imanente “guerra de todos contra todos”; ou o transcendente Leviatã, que todavia tratará dela à sua maneira sobrehumana, demasiadamente próxima da desumanidade. Se, conforme Hobbes e Rinesi, quando discordamos do que significam as coisas nomeadas pelas nossas palavras é que precisamos ser políticos, tanto melhor que nós mesmos possamos produzir o consenso ausente, pois tanto pior é a sobre presença tirânica do Leviatã fazendo isso por nós.

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O animal político Lula

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Lula, livre, ganha. Simples assim. Em popularidade, em fama, em importância histórica, e, o que mais preocupa as atuais forças reacionárias brasileiras, nas urnas. E é em função dessa imbatível dianteira política que o ex-metalúrgico está sendo, nas palavras dele, “massacrado publicamente” pelas elites. Só que as – apressadas – pesquisas eleitorais estão mostrando que Lula, como se diz, “quanto mais apanha, mais cresce”. Sem dizer que o tal “massacre” mais que tudo denuncia os interesse espúrios de seus “carrascos”. Lula estaria, estrategicamente, “dando a cara a tapa”, tanto para se agigantar quanto para apequenar seus inimigos?

O que assistimos entre Lula e seus oponentes é um círculo – virtuoso para aquele; vicioso para estes – no qual quanto mais Lula é atacado como objetivo claro de ser excluído do próximo pleito presidencial, mais ele repete que não só concorrerá à presidência da república, como principalmente a vencerá. “Que eles rezem para eu não concorrer à presidência em 2018, porque se eu concorrer, eu vou ganhar!”, diz o ex-presidente, seguro de si. Em resposta, seus inimigos recrudescem ainda mais, lançando contra ele novas e maiores ofensivas e difamações, e assim por diante. De “ladrão de pedalinho” à “chefe da maior organização criminosa da história do país” Lula foi e é chamado pelos que o querem definitivamente fora da política.

Agora, por que Lula não se cala, momentânea e estrategicamente, deixando de repetir, reativamente, que concorrerá à próxima eleição presidencial e a vencerá, se, com isso, atiçaria menos os pavores e as investidas de seus inimigos elitistas? Por que Lula coloca, ativamente, mais lenha na fogueira, justamente no seu momento mais ardente? Por que anuncia com tanta antecedência uma provável candidatura se isso faz apenas com que seja mais e mais “massacrado”?

Seguindo a lógica do “quanto mais apanha, mais cresce”, “dar a cara a tapa”, em se tratando de determinados “agressores”, no caso atual, uma elite desavergonhadamente corrupta e antidemocrática, é, para um animal político do calibre de Lula, “dar a cara ao povo”, “dar a cara à lei”, e, consequentemente, “dar a cara ao voto”. A “reação” pública de Lula ao “massacre” outrossim público que sofre é estrategicamente proativa: é uma ação antecipada que evita ou resolve problemas futuros. Expor-se e elevar-se intrepidamente é o passo que até aqui mantém Lula na dianteira. “Quem não deve não teme” é o lema que ele parece levar a cabo.

Não obstante, qual seria “o problema futuro” que Lula estaria tentando evitar com sua proatividade política? A resposta quiçá mais política de todas, dita pelo próprio Lula, é a seguinte: “Mais do que nunca, sou um homem de uma causa só. E esta causa se chama Brasil”. Contra os críticos do “populismo de esquerda” do ex-líder sindical, temos que, depois de se eternizar como “o maior presidente da história do Brasil” e como “o maior líder mundial do início do século XXI”, Lula pode sim, mais do que nunca, esquecer de si e colocar o Brasil na frente; coisa que oligarca algum jamais conseguirá fazer.

Experiência empírica do que é ser povo não tem preço. Passar fome e sede na infância; ser impedido, social e economicamente, de estudar; ser um autêntico – e explorado! – proletário já na adolescência; ser marginalizado, e até mesmo preso por se dedicar à construção de uma força sindical potente no Brasil; e, como se não bastasse, no meio do seu árduo caminho à presidência, ser “golpeado eleitoralmente” para que o “Marajá caçador de marajás” Fernando Collor de Melo vencesse o pleito presidencial de 1989; tudo isso só contribui para que Lula soubesse como nenhum outro presidente o que é o Brasil de verdade, e, sobretudo, que Brasil precisa ser construído para que o povo – isto é, para que gente como o próprio Lula – não permaneça sistematicamente excluído.

Último capítulo da exibição pública do que me atrevo a chamar de “a ciência empírica de Lula” em respeito à realidade brasileira se deu nesse domingo, 19 de março de 2017, na “Inauguração Popular” da Transposição do Rio São Francisco. Obra prometida ao povo nordestino desde a época do Império que, entretanto, somente Lula, que sofreu concretamente com a carência hídrica daquela região, foi capaz de tirá-la do mundo das ideias; mais ainda: do mundo das mentirosas promessas eleitoreiras. Só ele não é demagógico ao dizer que “nenhum doutor” – referindo-se aos governantes sempre bem-hidratados vindos das elites – “jamais teve consciência da real necessidade de se levar água ao nordeste”.

E, quando, setenta anos depois de passar sede no nordeste, o ex-presidente, com os pés dentro do “novo rio” que ele construiu a partir do “Velho Chico” (o Rio São Francisco), encheu seu chapéu com a água que fez o “Sertão virar mar” e a jogou para cima, qual chuva republicana, Lula fez, mais uma vez, a façanha de juntar inextricavelmente o real e o simbólico em um único ato. E é essa a singular visceralidade do um autêntico animal político que deve ser “abatida” selvagemente por aqueles – as elites – que tanto mais se beneficiam quanto mais distantes estiverem a realidade do Brasil e a ideia de Brasil.

O fato de Lula estar se “presidencializando” novamente diante da atual ofensiva das elites é a sua virtuosa estratégia para mostrar que quem menos merece decidir o futuro do país são justamente os seus algozes. Pode ser que o velho Lula, devido ou à idade ou aos escusos estratagemas de seus oponentes, morra antes das próximas eleições. Mas ser presidente não parece, melhor dizendo, não precisa mais ser o grande e final objetivo dele. O fundamental de sua atual pecha pública talvez seja mostrar ao povo, a todos, a violência, o despotismo, a injustiça com que as elites o tratam, que, com efeito, é a mesma com que tratam o povo, e historicamente.

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Fora “Fora Temer”

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E se deixássemos de gritar, hashtaguiar e, agora, carnavalizar o famigerado “Fora Temer”; se desinvestíssemos da ideia de um inimigo externo que nos subjuga fortuitamente? Se, enfim, assumíssemos plena responsabilidade pelo mal que aflige a nós e às nossas democracia e república, o que restaria como nosso lema de protesto? Um desiludido “Fora nós”! A radicalidade dessa mudança seria dupla. Em primeiro lugar, de sujeito: de Temer, o grande vilão, para nós, os cidadãos brasileiros; e, em segundo lugar, da nossa própria condição enquanto sujeitos políticos: de cidadãos traídos, golpeados para cidadãos traidores, golpistas de nós mesmos. Se tivéssemos coragem para encarar a realidade dessa forma, o mal do qual, agora, dizemos ser vítimas, e do qual, imediatamente, queremos nos ver livres, estaria definitivamente dentro da nossa esfera de ação, e, portanto, seria mais fácil de ser combatido.

“Fora Temer” é uma interjeição que soa patética quando consideramos seriamente a teoria política do filósofo inglês Thomas Hobbes, autor que, a meu ver, propõe o mais desafiador convite à responsabilidade cidadã. Hobbes diz categoricamente que “tudo quanto o representante” – isto é, o governante, o Leviatã – “faz, como ator, cada um dos súditos faz também, como autor”. Em outras palavras, também do filósofo: “cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer; por consequência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio”.

Dessa perspectiva hobbesiana, gritar “Fora Temer” outra coisa não é que vaiar o ator em cima do palco por desempenhar mal o espetáculo político que nós mesmos escrevemos conjuntamente. A amarga ideia com que Hobbes nos confronta é que, na relação entre súditos/cidadãos e Leviatã/representante, não há vítimas. Mais ainda, se há culpados, este são os primeiros. Já o Leviatã não é vítima nem culpado, pois é feito apenas de cidadãos, pelos cidadãos, para os cidadãos. O representante político é o resultado de cálculos, de acordos, de disputas entre cidadãos. Em suma: é feito apenas de relações sociais. E como a matemática comprova, se o resultado de uma equação está errada, o erro está aquém dele.

Temer, gostemos ou não, é o nosso atual Leviatã: o resultado da disputa concreta entre os cidadãos brasileiros. Portanto, repetir “Fora Temer” apenas nos aliena do fato de que, quando Temer atua, somos nós, os cidadãos brasileiros, que atuamos através dele. Amargo preço da representatividade política que dispensa os cidadãos de atuarem, direta e constantemente, em função de suas necessidades. Para os antigos gregos, inventores da democracia direta, seria uma barbaridade legar interesses pessoais a outrem. Nós, porém, fizemos disso regra. Só que, covardemente, não queremos pagar o preço dessa mudança.

Ora, se, como coloca Bruno Latour, o Leviatã apenas traduz os cidadãos, e se, como denunciam os maiores críticos literários, qualquer tradução é sempre uma traição, está no horizonte do representante máximo trair os seus representados. Só que quando isso acontece, reclamamos, gritamos “Fora Temer”, como se estivéssemos em uma democracia direta, esquecendo-nos, no entanto, de que, desde o princípio, sustentamos uma democracia indireta, burguesa, que, se por um lado trai-nos sistematicamente, por outro dispensa-nos do árduo e constante trabalho cidadão. Afora o compromisso bienal nas urnas, desperdiçamos nosso impagável tempo cívico nos shopping centers comprado smartphones.

Nos anos Lula, quando todos, ricos e pobres, éramos mínima e decentemente representados, a alienação que a representatividade política sempre promove não era um problema. Um bom Leviatã todos amamos. Agora, bastou um oligarcas que representa única e escancaradamente os interesses dos seus encarnar o Leviatã e essa mesma representatividade política burguesa mostrou o seu lado insuportável. Mas, não nos esqueçamos, esta é a forma com que decidimos, consensualmente, ou, em termos hobbesianos, contratualmente, viver. Hobbes, comprometedoramente, não nos deixa esquecer de que o soberano é apenas um ator designado pelo contrato social travado pelos cidadãos.

Dar um Fora no “Fora Temer”, para então focarmos em nós mesmos enquanto sujeitos de um lema de ordem que de fato possa melhorar a nossa condição de cidadãos, é assumirmos que somos nós, e ninguém mais, que delegamos, e democraticamente!, nosso poder a um representante, a um Leviatã, que, em verdade, é apenas o resultado dos nossos cálculos, em função dos nossos anseios. Para Hobbes, são os cálculos dos cidadãos, todos equacionados em um contrato, que constituem o Leviatã. Se, a posteriori, o “resultado Temer” parece-nos um desastre, a responsabilidade cidadã está na assunção de que, a priori, nós não soubemos equacionar nossos valores individuais de modo menos desastroso.

O “erro Temer” é um resultado verdadeiro: a verdade do erro das operações que nós, brasileiros, viemos realizando nos últimos anos. Insistir no “Fora Temer”, portanto, é como continuar somando 2+2 e querer, estupidamente, que o resultado dessa soma seja 5. Da visada hobbesiana, um “Fora Nós”, em vez de um “Fora Leviatã”, ou, no nosso caso específico, do “Fora Temer”, não só seria mais responsável, como principalmente ensejaria revermos tanto os nossos parciais cálculos individuais, quanto os subtotais cálculos coletivos, cujo total, no final das contas, é o Leviatã – ou Temer.

Minha hipótese é que a revisão “matemática” da problemática representatividade política, hoje protagonizada tristemente por Temer, passa por esclarecermos, primeiramente, o ardil da democracia representativa burguesa, que não foi feita para atender os interesses dos cidadãos, apenas para dar tal impressão. Devemos criticar a nós mesmos pela “democracia” burguesa, indireta, representativa, mediante a qual somos cidadãos estruturalmente ausentados da nossa luta.

Se, por um lado, o presente impede de voltarmos ao passado idílico de uma democracia direta, na qual ninguém além de cada cidadão pode frustrar ou trair a si próprio, nada, por outro lado, nos priva de construir uma democracia diferente dessa na qual oligarcas criminosos usam o Estado como bureau de seus vis interesses. Por isso: Fora “Fora Temer”. E em seu lugar, um ensurdecedor e consensual “Fora nossos erráticos cálculos cidadãos”; tanto os individuais quanto os coletivos; pois é essa incompetência que resulta em erros crassos, totais, tais como Michel Temer Leviatã tupiniquim.

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Violentem-me, meus violentados.

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“Olho por olho, dente por dente” é um antigo princípio de justiça criado na Mesopotâmia que exigia que um agressor fosse punido com o mesmo sofrimento que causou. Hoje em dia, contudo, condenamos tal prática, pois a vemos muito mais como vingança, barbárie, do que como justiça, civilidade. “Politicamente corretos” que somos, preferimos corrigir/educar quem viola leis, regras, tratos, em vez de violá-los na mesma medida. Do contrário, acreditamos, reproduziríamos, duplicaríamos os males dos quais queremos livrar-nos.

Em relação às violências do machismo e do racismo, por exemplo, somos outrossim refratários  ao “olho por olho, dente por dente”. Privar homens de votarem, de uma profissão, de salários iguais ou maiores que os das mulheres, nada disso passa pela cabeça sequer das feministas mais radicais. Abduzir brancos de seus locais de origem para escravizá-los por gerações; chibateá-los quando agem de acordo com os seus próprios arbítrios; obrigá-los a sentarem nos bancos traseiros de ônibus e a usarem banheiros segregados, da mesma forma, parece apenas a continuidade de desumanidades que queremos ultrapassadas.

Civilizada e surpreendentemente, violentadores e violentados históricos concordam que a tarefa mais importante é estabelecermos uma imediata igualdade entre todos. Agora, considerando-se a longevidade e a intensidade das violências machista e racista, essa saída “politicamente correta” não acaba sendo injusta? Pelo menos da perspectiva do “olho por olho, dente por dente”, violentadores privilegiados nunca experimentarem o que é sofrer violência nem serem obrigado ao desprivilegiado é injusto, sem dizer antieducativo.

Porém, como somos politicamente alérgicos ao “olho por olho, dente por dente”, quando feministas e ativistas raciais atuam combativa e irredutivelmente, muitos dizem que são violentas e violentos. Esquecemos, contudo, que tais violências combativas/reativas são sintomáticas em relação às históricas violências machista e racista. Porventura não foi a violência do homem branco que, depois de muito se exercer impunemente, gerou a violência combativa/reativa da qual o próprio homem branco, agora, diz-se vítima, e, covardemente, reclama?

Aqui tocamos no nó “politicamente correto” que, injustamente, ata violentadores privilegiados e violentados desprivilegiados em torno de uma igualdade que, se não é idealizada, ao menos é apressada. No entanto, esta é a melhor saída apenas para os primeiros. Da ruína de sua longeva torre patriarcalista, o homem branco, o violentador privilegiado per se, concorda com perder o seu confortável privilégio somente para passar à condição de igualdade entre ele e seus violentados. De forma alguma cogita a possibilidade de seus velhos oprimidos experimentarem, por um átimo que seja, o privilégio de oprimi-lo. O fim da violência, sim. A contra-violência, jamais!

Por isso interpelações feministas e antirracistas, ao buscarem um simples e privilegiado “lugar de fala” às mulheres, negros e negras, ainda causam tanta polêmica. Quão violento continua sendo para muitos homens ouvirem de uma mulher que eles não podem assediá-la sexualmente? E quão afrontoso foi para muitos brancos e brancas lidarem com a exigência da ativista negra no caso do turbante de Curitiba: “uma branca não pode usar turbante”? Os violentadores privilegiados tremem ao menos indício de sofrerem a violência com que sistematicamente subjugaram seus outros.

O problema de o homem branco, as mulheres, os negros e negras superarem de um só golpe os abismos machistas e racistas que historicamente privilegiaram àquele, passando todos a uma situação de igualdade, é, mesopotamiamente falando, injusto. Mantém uma cruel dissimetria: o violento homem branco perde o título de “senhor” histórico para ser “igual” aos seus violentados, enquanto mulheres, negros e negras passam apenas de “escravos” a iguais. Diante dessa conjuntura, aquele que pudesse tomar o ponto de vista do fim da história certamente concluiria que teria sido melhor ser homem branco: espécie de suprassujeito nunca violentado nem desprivilegiado; no pior dos casos, igual aos demais

Proponho duas metáforas para enxergarmos alguma pertinência na Lei da retaliação mesopotâmia contra o resistente privilégio do homem branco. A primeira, é imaginar o racismo e o machismo, combinados desastrosamente nesse “sujeito privilegiado”, como uma força atuando contra mulheres, negras e negros. Uma vez que a física comprova que uma força só é anulada por outra de mesma intensidade, todavia de sentido contrário, o “olho por olho, dente por dente” feminista e antirracista seria o único maeio de anular o machismo e o racismo.

A outra metáfora é imaginarmos um pêndulo, pendido há milênios para um dos lados, sendo finalmente solto. Seria perverter as leis da física querer que o pêndulo, imediatamente, repousasse no ponto central de equilíbrio, sem balouçar até o outro extremo. A lei da retaliação, de certa forma, reifica esse movimento. Por isso, aceitar que o homem branco passe da situação de total privilégio à de igualdade, sem ver o pêndulo que sequestrou pender para o lado que sempre careceu dele, é manter um privilégio a esse homem branco.

Essa última metáfora, contudo, obriga-nos a imaginar que, no balouçar do pêndulo do privilégio, de lá para cá, tantas vezes quanto for a energia acumulada no sistema, o homem branco, de um lado, e as mulheres, os negros e negras, de outro, serão, alternadamente, violentados e desprivilegiados, e violentadores e privilegiados. Pelo menos até a tensão da nossa desigual sociedade chegar a zero. Os idealistas, obviamente diriam que devemos passar imediatamente à situação de igualdade na qual ninguém é violentado nem desprivilegiado. O realista, contudo, saberá que a humanidade, se é que pode “escreve certo”, o fará sempre por “linhas tortas”.

Deixando as analogias físicas para nos aproximarmos da filosofia, em relação às superações do machismo e do racismo vale lembrar o argumento do filósofo Slavoj Žižek, que sustenta que desigualdade se combate com desigualdade, e não com igualdade. Se tratarmos ricos e pobres igualitariamente, por exemplo, não reduziremos o abismo entre eles, apenas o manteremos. Ao contrário, é só tratando-os desigualmente, ou seja, dando mais aos pobres do que aos ricos; ou tirando mais dos ricos do que dos pobres; que a desigualdade será combatida.

Assim como os ricos só abrirão mão de suas riquezas se forem forçados a tal, e por ninguém menos que os pobres, assim também o homem branco só perderá os seus privilégios fortuitamente, ao ser combatido exaustivamente por mulheres, negros e negras. O “altruísmo” do homem branco ao lutar pela igualdade entre ele e seus violentados será sempre suspeito de ser egoísta, pois, secretamente, pode ser apenas o discurso com que evita ser o violentado da vez. Já as mulheres, negros e negras que lutam apenas por igualdade em relação ao homem branco perdoam-no cedo demais. O que, aliás, é o que ele mais quer, ainda que não mereça isso devido à longevidade e intensidade de sua violência.

Sou obrigado a retornar à metáfora do pêndulo. Talvez não seja o caso de restabelecermos a lei mesopotâmia absolutamente, mas de misturá-la homeopaticamente ao nosso sistema educativo/punitivo. Assim como o pêndulo balouça de um lado para o outro, muitas vezes, antes de encontrar o equilíbrio, no entanto nunca reocupando os mesmos lugares extremos, mas sempre um tanto aquém deles, e sempre em direção ao centro de equilíbrio, assim também o privilégio da violência deveria pendular, de lá para cá, até que sua vil energia se dissipasse completamente. Aí, e somente aí, algo como justiça seria paulatinamente construído.

O problema dessa hipótese, contudo, é contar com a violência justamente no movimento de superá-la. Entretanto, se nos despirmos do sentido traumático, sanguinário com que essa palavra é comezinhamente usada, e privilegiarmos outros sentidos seus, tais como o de “veemência”, “impetuosidade” (em Latim: “violentia”), podemos quiçá conviver mais civilizadamente com ela. Até porque, se o machismo e o racismo são barbarismos assaz resistentes, violá-los, agir com violência contra eles, é construir civilização.

Se essa ideia, dita assim de modo abstrato, parece perigosamente desumana, compartilho aqui exercícios concretos que eu, um homem branco, tenho feito, nos quais me constranjo a ser violentado por aqueles que foram violentados por sujeitos como eu. Um deles, em relação ao machismo: sempre que mulheres me acusam de ser machista, independentemente de serem violentas ou não, ou de eu concordar ou não com elas, está a priori fora de questão a possibilidade de elas estarem erradas, ou de estarem exagerando. Enquanto homem branco, nem eu nem meus violentados devemos confiar no meu discernimento.

Da mesma forma, referente ao racismo, e aproveitando o caso do turbante de Curitiba, mesmo gostando de turbantes, e de certa forma achando que usá-los é elogioso à cultura africana, a partir do momento que uma ativista negra diz que brancos não podem usá-los, compreender as suas razões é imperativo. Não deve estar em questão se ela está certa ou errada, mas, primeiramente, de que modo a sua demanda é fundamental. E, nessa dificuldade, o que me impede de enxergar isso. Se compartilho aqui estes exercícios pessoais é para dizer que, ao permitir que meus violentados violentem-me, encontro uma paradoxal humanidade que argumentação alguma de minha parte traria.

Diante das bestas do machismo e do racismo, qualquer coisa que o homem branco disser será algo como o argumento da doença contra a cura. Se calar alguém é violentá-lo, calar quem há séculos faz tantos outros serem privados de suas vozes é uma violência curativa, mais que necessária. E se o homem branco nunca for calado, violentado pelas violências que sempre cometeu, mas apenas abandonar o seu histórico privilégio para então ser confortavelmente igualado aos desprivilegiados – claro, somente depois que estes deixarem de sê-lo -, tal igualdade outra coisa não significará que um novo nível de desigualdade, só que agora disfarçada de igualdade.

A maior dificuldade de fazer apologia da violência, ainda que terapêutica, contudo, é combiná-la com a contemporânea sede “politicamente correta”. No entanto, a “violentia” latina, ou seja, a “veemência”, a “impetuosidade”; violar no sentido de quebrar regras e costumes; essa violência não pode ser negada às lutas feministas e antirracistas.

Para concluir com uma metáfora banal, imaginemos duas pessoas discutindo e não mais se ouvindo por tagarelarem descontroladamente ao mesmo tempo. Em casos como este, basta um dos interlocutores agir com violência, isto é, violar a confusa regra do diálogo e elevar o tom impetuosamente para que o outro pare, escute, e o verdadeiro diálogo se restabeleça. Pelo menos desse tipo de violência o violento e privilegiado homem branco deve sofrer dos seus violentados desprivilegiados calados há tanto tempo.

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Pós-racismo e desprivilegiação

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A jornalista e escritora Eliane Brum enviou uma arejada carta pública a Thauane Cordeiro, protagonista do “caso do turbante de Curitiba”, intitulada: “De uma branca para outra – O turbante e o conceito de existir violentamente”. Como não poderia deixar de ser, em se tratando de uma carta, Brum falava objetivamente a Thauane, mas, inevitável e subjetivamente a si mesma. E, por se tratar de uma carta pública, intersubjetivamente com seus leitores. E o vento virtuoso desse escrito devia mesmo ser publicizado, uma vez que o bafo úmido do racismo ainda é um resistente vício daqueles que, por trás de seus um crachás “politicamente corretos” seguem reproduzindo a incorreção que é o racismo.

Depois de fazer um elogiável, porque cada vez mais raro, exercício de alteridade, e ter se colocado na pele de Thauane, garota que por conta da leucemia perdeu os cabelos, e que por isso encontrou proteção (estética) no famigerado turbante africano, Brum assume que é mais fácil para ela se colocar no lugar da mulher branca que é Thauane do que no da mulher negra que a interpelou dizendo que “uma branca não pode usar turbante”. Entretanto, em vez do caminho fácil de se colocar do lado daquela com quem mais imediatamente se identificava – a mulher branca Tahuane -, a jornalista optou pela senda mais árdua, qual seja, a compreensão do lugar do outro mais outro que ela tinha em frente – a condição da mulher negra, crítica da apropriação cultural indevida de elementos de cultura negra por brancos.

Então, Brum compartilha com Thauane e seus leitores a contingência de ter nascido branca, em uma cidade de colonização europeia no interior do Rio Grande do Sul, tempos e ventos nos quais o racismo sequer precisava ser dissimulado. Conta-nos ela que nem mesmo para empregadas domésticas, ou para trabalhos dessa sorte, os negros eram solicitados. Vil conjuntura que Brum pensava ter superado somente pelo fato de ter superado as formas despudoradas de racismo em meio às quais cresceu. Mas o monstro do racismo, assim como a mitológica Hidra de Lerna, de três cabeças, faz crescer duas cabeças malévolas no lugar de cada uma que é cortada. Porém, como no mito, a Hidra racista só será eliminada se decepada a sua cabeça principal, chamada de imortal. Que sempiterna cabeça racista então a branca Brum estava cortando de si mesma, e competentemente levando os seus leitores a fazerem o mesmo?

Depois de lembrar-nos da histórica, monumental, fortuita e desumana instituição da subjugação dos negros pelos brancos, Brum constrange Thauane, a si mesma e a todos os brancos e brancas como elas a se ocuparem os lugares superprivilegiados de que os brancos sempre desfrutaram desde que esse mundo racista passou a ser o mundo. E, num ato de louvável consciência e coragem, afirma que, para mudarmos esse quadro, ela e todos os brancos precisam perder tal privilégio, pois tal dianteira outra coisa não é que o racismo per se. Para tanto, o privilégio relativista do qual muitos brancos se valeram ao colocarem o discurso defensivo de Thauane em pé de igualdade com o discurso crítico da mulher negra que a interpelou, esse privilégio deve ser extinto.

Sabiamente, Brum leva-nos a compreender que não deve haver igualdade entre os dois “lugares de fala” quando um deles, o de uma negra ou negro que luta por reconhecimento e identidade no mundo racista no qual vivemos, primeiramente foi privado, não só de sua fala, mas, como a História não nos deixa esquecer, de sua própria humanidade. Brum diz que, mesmo que ela possa usar um turbante, seja porque é livre, seja porque quer homenagear a cultura africana, ela todavia não deve fazer isso a partir do momento que esse outro mais outro do que ela mesma assim o solicita.

Essa postura lembrou-me a de Žižek em relação à desigualdade econômica provocada pelo capitalismo. Contrário à saída fácil, cínica, cretina, neoliberal par excellence, de se reduzir a desigualdade socioeconômica investindo-se na igualdade das partes, o filósofo defende que somente com desigualdade combatemos a desigualdade. Por exemplo, não acabaremos com o abismo entre ricos e pobres tratando-os igualmente. Isso apenas mantém intacto aquilo que inicialmente se quer modificar. Em vez disso, é ou dando mais aos pobres do que aos ricos, ou tirando mais dos ricos do que dos pobres que as desigualdades sociais serão reduzidas. Categoricamente, acabar com a desigualdade exige que ajamos desigualitariamente em favor do lado mais fraco e oprimido, e em detrimento do mais forte e opressor.

Na luta social contra o racismo, isso deve significar que os brancos ou devem abrir mão, civilizada e deliberadamente, de seus lugares de fala diante dos dos negros, ou, nessa dificuldade, serem fortuitamente privados deles. Se essa última opção parece radical, violenta, não obstante deve ser desestigmatizada. Assim como os ricos não abrirão mão espontaneamente do privilégio desigualitário de suas riquezas, mas só o farão se forem – revolucionariamente? – constrangidos a tal, assim também os brancos talvez só deixem de ocupar os seus privilegiados lugares de fala em respeito à luta dos negros por respeito e igualdade mediante constrangimento. O problema do atual “politicamente corretamento”, no entanto, é a priori rechaçar a violência. Todavia, ela não é só bárbara, sanguinária, mas pode ser civilizada, ademais, civilizatória, uma vez que “violar” (raiz semântica de violência) regras e costumes barbarescos como o racismo com o intuito de superá-los é construir civilização.

Num debate sobre o mesmo “caso do turbante de Curitiba” em um programa televisivo, vários jornalistas e comentadores brancos colocavam suas ideias sobre como devemos agir eticamente ante a luta contra o racismo. Mais uma vez, brancos, verticalmente, capitalizando para si o “ordenando o mundo”. Porém, depois de toda a “politico-corretice” branca, a única jornalista negra da mesa, até então calada, nos últimos minutos do programa, diz que, em assunto de racismo, tanto naquele quadro televisivo quanto na sociedade, não são, não serão, e não devem ser os brancos os donos da última palavra, mas os negros. Assim ela encerrou aquela discussão. Foi inevitável perceber o peso cinza no ar, melhor dizendo, o desconforto da maioria branca em ser despossuída, ao vivo e em cadeia nacional, do seu longevo e privilegiado lugar de fala diante de todo e qualquer assunto.

A jornalista negra foi violenta sim. Todavia, não porque foi agressiva nem desrespeitosa, mas, antes, porque violou a regra “politicamente correta” segundo a qual brancos e negros devem ter iguais direitos na luta contra o racismo. Ou, mais radicalmente ainda, porque violou o velho costume de os brancos encerrarem todos os discursos. Da mesma forma, só que nesse caso deliberadamente, Brum abdicou do privilégio intrínseco de sua confortável e historicamente segura condição de branca em nossa sociedade racista para dizer que é o discurso da ativista negra de Curitiba, e não o da branca Thuane, que deve reverberar privilegiadamente sem ser abafado pelo ruído branco. Essa é a lição mais civilizada em relação a casos como o do turbante de curitiba. Eliane Brum, de um lado, dizendo que é através da despriviliegiação fortuita dos brancos. Žižek, de outro, sustentando que só alcançaremos a igualdade quando atacarmos a desigualdade com a desigualdade que a corrigirá.

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Pós-Brasil e combate à corrupção “al Machiavelli”.

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A corrupção que assola o Brasil – que desde o seu princípio assolou, mas que atualmente está mais desnudada do que nunca – levou-me a estudar o combate à corrupção republicana proposto por Nicolau Maquiavel. Teria o fundador do pensamento político moderno um ensinamento válido para a corrompida terra brasilis, na qual empresários midiáticos (João Dória, prefeito de São Paulo) e pastores evangélicos (Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro) elegem-se justamente com discursos antipolíticos, da mesma forma como Trump, que conquistou o cargo político de maior poder no mundo dizendo que “As pessoas estão fartas de política”?

A resposta é: sim. E pelo menos no caso brasileiro, a explicação é a seguinte: se o combate à corrupção maquiaveliano, “velho” cerca de 500 anos, parece inócuo ao nosso corrompido país, “jovem” cerca de 500 anos, isso se deve não à limitação da teoria do italiano, mas, em vez disso, ao alto nível de corrupção da nossa república. Assim como o câncer não quer ser curado, pois seu mórbido desejo é metastasear-se o máximo possível, assim também a corrupção quer crescer sem resistência, até tomar todo o corpo do Estado. Por isso creio ser fundamental conhecer melhor o “remédio” para o mal da corrupção prescrito pelo pensador renascentista da aurora da modernidade.

Antes de combater a doença da corrupção republicana é preciso saber o que é esse mal: a corrupção; e o que é o corpo que ela ataca: a república. Comecemos por essa última. Res publica, ou seja, a coisa pública, é o Estado enquanto propriedade pública, governado em função dos interesses do povo, e não uma res privatam, voltado aos interessesprivados de um ditador, tirano, ou, no caso do Brasil, de um bando de longevos oligarcas.

Dessa perspectiva, vendo que o governo prioriza interesses de empreiteiras, agroconglomerados, canais de televisão e empresas de telefonia, em detrimento explícito dos interesses do povo, seria alienação sustentar que o Brasil é uma res publica. A presente conjuntura grita nos nossos ouvidos que o nosso Estado é uma desavergonhada res privatam. Se, todavia, quisermos insistir no fato de que o Brasil é uma república, o preço a ser pago todavia é assumirmos que é uma república corrompidíssima.

O que, então, para Maquiavel é a corrupção republicana. Conforme diz o italiano, uma república se sustenta através desuas leis e instituições. As primeiras, estabelecendo o que pode e o que não pode ser feito, deveres e direitos de todos. As segundas: fazendo cumprir as leis. Uma república saudável, não corrompida, é tanto aquela na qual as leis são sempre cumpridas por vigilância e competência das instituições, quanto aquela na qual as leis são infringidas, todavia, com instituições que punem/educam os infratores.

Um complicador natural na relação republicana entre leis e instituições é o fato de as leis serem dinâmicas, mudarem conforme as necessidades do povo e a força dele no sempiterno conflito com as elites. Entretanto, é bom que seja assim, uma vez que a liberdade do povo, fundamento das repúblicas, não é um ideal que seja dado ou negado ao povo, mas uma construção real, feita ao longo do tempo. Já as instituições, cujo objetivo é fazer valer as leis, não acompanham as mudanças destas; são estáticas. E é bom que seja assim também, pois instituições que mudassem constantemente, ao sabor dos momentos, não seriam confiável. A virtude de uma instituição é justamente a sua estabilidade diante das mudanças.

Aqui, portanto, vemos que a corrupção está inescapavelmente no horizonte de qualquer república, pois mesmo que leis e instituições cumpram plenamente seus papéis, em algum momento estas estarão defasadas em relação àquelas. E quando as instituições não têm mais capacidade para fazer cumprir as leis, alguns cidadãos se beneficiam disso. Em primeiro lugar, as elites em detrimento do povo. E, em segundo lugar, facções do próprio povo em relação a outras. Quando ambas acontecem simultaneamente, eis a corrupção reificada, ou, na letra de Maquiavel, a República corrompidíssima.

Mas isso significa que a república seja falha em si mesma, e que, portanto, o melhor a fazer é investir em outra forma para o estado? Auto lá! Basta não pressupormos Estados e repúblicas ideais, coisa que Maquiavel ensina do princípio ao fim de sua obra. O inevitável descompasso das instituições em respeito às leis não é um erro, um mal, mas, antes, um fato das repúblicas. O exemplo de Maquiavel para um Estado cujas instituições nunca ficaram aquém das leis era Esparta. O custo dessa “perfeição”, contudo, é que naquele Estado nada podia mudar. Algo antinatural em se tratando de coisas humanas. Criticamente falando, o povo espartano era a priori privado, por exemplo, de desejar, quiçá conquistar novos direitos. Em suma, não era livre.

Se a corrupção, ou seja, a defasagem das instituições ante as leis, é inevitável em uma república, então, combatê-la pode se dar por três caminhos. O primeiro: reformar as instituições para que doravante façam jus às leis existentes. O segundo: mudar as leis para que sejam exequíveis pelas mesmas instituições. Enfim, o terceiro: fazer leis e instituições totalmente novas. As duas primeiras opções são viáveis, porém, têm contra si os riscos de qualquer reformismo – o mal permaneceria presente em pelo menos metade do Estado. A terceira opção, apesar de radical, é a mais indicada por Maquiavel, porquanto estabelece leis e instituições novas, ambas livres dos velhos vícios. Só não devemos chamá-la de “revolucionária” porque o conceito usado pelo filósofo é outro, o de “refundação”.

Para Maquiavel, o único remédio para uma república corrompida é refundar-se. Em outras palavras, o “retorno à origem” dessa república, pois, segundo o renascentista, é lá, e somente lá que leis e instituições estão plenamente alinhadas. Radicalmente falando: confundem-se. O ilustre exemplo de Maquiavel para o seu “retorno à origem” é Roma, cuja virtuosa fundação por Rômulo era repetida sistematicamente na manutenção da saúde do corpo republicano romano ao longo do tempo. Mas oque havia na fundação originária de Roma que, refundado, alinhava leis e instituições e, consequentemente, livrava aquela república da corrupção?

Seria a mítica segundo a qual Rômulo matou o irmão Remo e então fundou Roma? Mas o que diz essa estória? Long story short, que Remo, pretendendoevidenciar que a cidade que o irmão estava fundando era vulnerável e não tinha futuro, pulou a muralha que Rômulo havia recém-construído, e que este, para mostrar que ninguém, nem mesmo um igual – seu irmão gêmeo – poderia infringir a ordem de sua nascente cidade, cometeu um dos fratricídios mais ilustres da história, ficando assim livre para erigir sua cidade que, um dia, seria chamada “Eterna”. Agora, investigar de que forma leis e instituições coincidiram nesse ato mítico e, aliás, bárbaro, porventura não nos afastaria da verdade factual na qual Maquiavel aconselha permanecermos?

Para Maquiavel, o que na verdade havia no princípio de Roma ao qual aquela república retornava para combater as corrupções que a assolaram ao longo do tempo era a virtude de um príncipe ordenador, Rômulo, que não poupou esforços para fazer valer as leis. Até mesmo a mítica encontra pertinência aqui: ao matar Remo por ter infringido a primeira ordem de Roma, qual seja, a muralha da cidade, Rômulo foi ao mesmo tempo a lei a ser cumprida e a instituição que a fez cumprir. Em suma, para Maquiavel, quando uma república estava corrompidíssima, o que ela precisava era de um príncipe virtuoso e corajoso.

Entretanto, como superar essa paradoxal necessidade de um príncipe, de um monarca, justamente por uma república? Sem embargo, era de um príncipe civil, escolhido pelo povo que Maquiavel falava, e não de um monarca que tomasse a cidade à força ou governasse por algum direito divino e/ou hereditário. Com efeito, príncipes podem facilmente tiranizar seus súditos. Estão com a faca e o queijo nas mãos. Não obstante, é quando um príncipe atua não como um ditador dono da res, mas como o primeiro cidadão (princeps) de uma res cuja posse é compartilhada com os súditos, que encontramos a virtude do principado referida por Maquiavel. E não poderia ser diferente, pois, para os mais atentos estudiosos do pensador italiano, ele era absolutamente republicano.

Não há dúvida de que a monarquia é extraordinária – fora da ordem – em se tratando de republicanismo. Contudo, uma vez que a república é a única forma para um estado na qual sua matéria, o povo, pode ser livre, e considerando que a corrupção republicana furta tal liberdade, a corrupção, outrossim, é republicanamente extraordinária. Por isso, quando Maquiavel receita um monarca – desde que civilmente eleito! – a uma república corrompida, assim o faz porque, para ele, “problemas extraordinários exigem soluções extraordinárias”. Um principado civil, metaforicamente, seria uma Unidade de Terapia Intensiva para uma república doente até que ela estivesse curada.

Todavia, não me dei por satisfeito com o maquiaveliano “retorno à origem” como forma de se combater a corrupção republicana romana significando apenas uma volta “terapêutica” à fundação monárquica de Roma na qual lei e instituição se alinhavam na persona de Rômulo. O mito do fratricídio insistia em meus pensamentos que ordem e executor confundidos na mesma pessoa produz despotismos, barbarismos. Onde, então, estaria o virtuoso e crucial ponto originário da fundação de Rômulo no qual leis e instituições se encontraram para produzir res publica, mais especificamente: liberdade para o povo?

Encontrei essa preciosa resposta na monumental obra “Ab Urbe Condita” (Desde a Fundação), do historiador romano Tito Lívio. Depois de narrar detalhadamente o mito da fundação de Roma, Lívio aponta, todavia passageiramente, o que, a meu ver, seja talvez o momento fundacional mais virtuoso, e concreto, ao qual os romanos retornavam sistematicamente para sanar a corrupção que o tempo (o inevitável descompasso das instituições em relação às leis) trazia à sua república. Mas o que diz Tito Lívio sobre isso?

Em primeiro lugar, que a cidade que Rômulo fundara havia sido populada inicialmentesobretudo por excluídos sociais de outras cidades, mercenários desocupados, antigos criminosos, ou seja, toda sorte de gente de índole duvidosa. Antes de criticarmos tamanha abertura, Maquiavel a defende dizendo que, na verdade, tratou-sede uma das grandes virtudes de Rômulo, pois, segundo o filósofo, aceitar indiscriminadamente dentro de suas fronteiras quem quisesse ser romano foi fundamental para, um dia, Roma alcançar o cosmopolitismo que a eternizou.

O grande desafio de Rômulo, por conseguinte, foi o de instituir leis para serem cumpridas por súditos tão pouco civilizados que, como o próprio Rômulo no caso do fratricídio, resolviam seus problemas barbarescamente. Com efeito, seria um idealismo condenável criar leis perfeitas para súditos imperfeitos. Tito Lívio conta que Rômulo teve de resolver duas questões cruciais. A primeira: como deveriam ser as leis de modo que súditos semicivilizados e estranhos a elas pudessem, de fato, observá-las? A segunda: como deveriam ser as instituições públicas de maneira que pudessem punir cidadãos tão rudes de modo civilizante, e não de modo barbarizante?

Aqui já posso apresentar a minha hipótese para a origem precisa – mais precisa do que a que Maquiavel receitou – à qual uma república corrompida deve retornar para combater o seu próprio mal. Essa hipótese, contudo, não refuta a prescrição maquiaveliana, apenas tenta complementá-la. A ideia é a seguinte: para se combater efetivamente a corrupção republicana al Machiavelli, a origem a qual se deve retornar para serem refundadas leis e instituições, pois só assim elas são absolutamente compatíveis e garantem a saúde da república, ou o que é o mesmo, a liberdade do povo, em suma, para fazer tudo isso não basta um monarca corajoso e bem-intencionado, como Rômulo, que confunda em si lei e instituição e que não permita que a sua ordem seja quebrada. Essa origem deve estar no átimo absolutamente realista no qual o Princeps concebe leis e instituições, isto é, a forma do Estado, a partir dos seus cidadãos, a matéria do Estado, e de forma alguma alienado deles.

Se arrisco contribuir com a pragmática maquiaveliana referente ao combate à corrupção republicana é porque não encontrei nos escritos de Maquiavel nada além do “retorno à origem” significando o realinhamento de leis e instituições na figura de um príncipe virtuoso e corajoso. Porém, dando um passo atrás, e pedindo ajuda a Tito Lívio, pude, creio eu, dar um passo à frente de Maquiavel e concluir que tal empreitada significa fazer como Rômulo, isto é: não pensar a forma para o Estado sem, desde o princípio, formatá-la em função da matéria desse estado. Metaforicamente, é agir como um alfaiate, e não ao modo prêt-à-porter.

Todavia, devo reconhecer que a minha hipótese é absolutamente maquiaveliana. Ora, para um pensador a quem só interessava a “veritá effettuale della cosa”, o fato de Rômulo ter pensado a forma de seu estado em função de sua matéria, qual seja, o povo; e, além do mais, ser exatamente isso que qualquer república deve fazer para combater a corrupção que inevitavelmente a assola; para tal pensador essa hipótese não é estranha. Desse modo, creio que minha humilde contribuição deva ser apenas mais uma volta – ou meia-volta – no parafuso realista com o qual Maquiavel, há 500 anos, fixou-se, ilustre e inarredavelmente, na superfície do pensamento político.

Confesso, contudo, que, antes de formular a minha hipótese, o tal “retorno à origem” para se combate a corrupção, que no caso de Roma significava retornar à virtuosa fundação por Rômulo, se aplicado à corrompida república tupiniquim soava demasiado desanimador. O que temos de virtuoso desde o descobrimento do Brasil até a Proclamação da República; entre o esquartejamento do território em capitanias hereditárias legadas a fidalgos da alta aristocracia e a derrota da monarquia pela oligarquia fazendeira, que mentiu ser republicana apenas para governar livremente e instituir uma pseudorrepública, apelidada de “Café com leite” porque nela oligarcas cafeeiros paulistas e leiteiros mineiros revezavam a verdadeira res privatam que era o Estado?

Considerando a origem republicana do Brasil, retornar a ela para se combater a atual corrupção seria o maior tiro no pé. Significa então que o Brasil está condenado à corrupção porque carece de uma origem não corrompida à qual retornar refundacionalmente ao estilo de Maquiavel? Talvez seja o caso de, em primeiro lugar, sermos radicalmente realistas, prudência que o italiano aconselharia, e compreendermos que nunca fomos, de fato, uma res publica; que apenas migramos da res privatam monárquica para uma res privatamoligárquica que, para melhor se manter, aceitou ser pós-verdadeiramente apelidada de república.

Depois de assumirmos a vacuidade da formalidade republicana com a qual as elites enganam o povo, a única coisa que nos resta é reconhecer que a República brasileira ainda está para ser fundada! Por isso a corrupção que furta a liberdade do povo não pode ser combatida republicanamente, porque esta corrupção não é verdadeiramente republicana, mas concretamente oligárquica, e, como tal, sequer é reconhecida pelos oligarcas como corrupção, mas como o seu sempiterno e lucrativo modus operandi. Somente depois que a res for publica, e o povo tão livre quanto as elites sempre foram, é que a prática corriqueira dessas elites será obrigada a engolir a denominação de corrupção.

Como então fundar essa república a partir da “bárbara” oligarquia que ainda governa o Brasil? Politicamente falando, precisamos de um Rômulo tupiniquim que crie formas para a república, isto é, leis e instituições verdadeiramente republicanas observáveis pela matéria do Estado brasileiro, ou seja, os cidadãos; desde que – e isso é fundamental! – ricos e pobres, elite e povo, em suma, todos estejam republicanamente horizontalizados nessa categoria chamada “cidadãos”. Aqui sim podemos, sobretudo devemos falar de Revolução!

O que não podemos é seguir normalizando um pseudo Estado republicano cujas leis, por exemplo, dizem, formalmente, que é crime roubar a riqueza nacional em função de interesses privados enquanto políticos, empresários, e até mesmo grande parte do povo o faz; e isso porque as instituições, que deveriam fazer valer as leis, não têm mais, se é que um dia tiveram, capacidade para fazê-lo. Michel Temer, Aécio Neves, Renan Calheiros, José Sarney, Romero Jucá, Moreira Sales, Paulo Maluf, só para citar alguns – de muitíssimos –, são prova de que o Brasil não é res publica, mas res privatam, e deles.

O combate à corrupção republicana de Maquiavel, contudo, tem a ensinar à res privatam que somos que, em primeiro lugar, precisamos fundar uma res publica. Só assim certas práticas poderão ser reconhecidas como corrupção e doravante combatidas republicanamente, ou seja, com participação do povo. O exemplo da realista fundação das leis Roma por Rômulo dado por Tito Lívio, por sua vez, ensina aos futuros fundadores da República brasileira que ninguém, nem mesmo um gêmeo, um sócio, parceiro do fundador poderá se arrogar o direito de infringir as leis, pois será inescapavelmente punido pelas instituições.

Claro, no Brasil, muitos cidadãos são punidos pelas instituições sempre que infringem as leis, o que até pode convencer alguns de que vivemos em uma república. Mas, verdade seja dita, na maioria esmagadora dos casos são indivíduos do povo que são elencados para encenarem o mito da república brasileira. Até mesmo a recente onda de prisões de grandes políticos e empresários, infelizmente, só estão aí para dar seguimento à fábula republicana que esconde o fato de que vivemos uma crua tragédia oligárquica. Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Marcelo Odebrecht só foram espetacularmente pegos pelas instituições por terem infringido as leis para que os peixes oligarcas verdadeiramente grandes permanecessem livres delas. Pós-modernice par excellence: mudar as coisas para que elas permaneçam exatamente como estão.

Por isso precisamos fundar a república brasileira, para finalmente todos estarmos sob as mesmas leis e à observância das mesmas instituições. Em outras palavras, para que o povo seja tão livre quanto as elites. Não para o povo estar fora do alcance das leis e instituições, como as elites, mas para que estas sejam tão constrangidas a cumprirem as leis quanto ele. Isso significa deixar o concreto Brasil oligárquico no passado e fundar um novo Brasil, pós-ele-mesmo, pós-oligarquia, pós-fábula republicana. Um pós-Brasil fundado do modo como Rômulo fundou Roma, com leis e instituições pensadas de modo realista, isto é, em função do nível de barbárie/civilização dos cidadãos que deverão observá-las. De formas republicanas vazias e de matérias oligárquicas plenas estamos fartos. São essas as “corrupções” que, enquanto não são efetivamente combatidas, impedem que lutemos republicanamente contra a corrupção.

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O bem dito Manifesto de Zuckerberg vs. o maldito algoritmo do Facebook

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Mark Zuckerberg, fundador & dono do Facebook, nesta quinta-feira 16 de fevereiro publicou um Manifesto em Defesa da Globalização. Espécie de “Ponte para o Futuro” para a próxima década de sua rede social, que, entretanto, assim como a golpista tupiniquim, mais mente levar-nos do presente a um futuro melhor do que de fato tem intenção e capacidade para tal. Assim como os nossos políticos corruptos fingem “representar” os interesses do povo enquanto tratam apenas de seus interesses privados, assim também Zuckerberg mente que “na última década o Facebook esteve focado em conectar amigos e famílias”, mas, como qualquer usuário do Facebook “sente na timeline”, a conexão principal vem sendo com empresas privadas e conglomerados midiáticos.

Zuck dirige o seu Manifesto à comunidade. À sua “comunidade”, obviamente. Teria feito bem maior para o futuro se tivesse se manifestado, de preferência silenciosamente, contra o maldito algoritmo de sua rede social, que, sob o pretexto de “criar comunidade”, na verdade produz bolhas de mesmidade cada vez mais incomunicáveis entre si. Ao contrário do que parece, nossos feed de notícias não são janelas que nos conectam à diversidade do mundo, mas um brete virtual através do qual somos constantemente reconduzidos para onde já estamos e de onde é cada vez mais difícil de escapar: nossos arraigados e preguiçosos hábitos e preferências. Se, como dizia Umberto Eco, a cultura de massa dividiu a humanidade em dois tipos: os Apocalípticos e os Integrados; o Facebook, em vez fazer comunidade com esses dois tipos antagônicos, sistematicamente conecta apocalípticos com apocalípticos e integrados com integrados.

Os ensimesmamentos solipsistas que o algoritmo do Facebook produz lembram as mônadas de Leibniz: unidades simples, autossuficientes e incomunicáveis entre si; microcosmos “sem portas nem janelas” que possuem em si a representação de todo o Universo e da relação entre todas as mônadas; mas que não podem exercer qualquer efeito umas sobre as outras. Só que as “mônadas facebookianas” não têm, cada uma delas, “a” representação do Universo, mas sim a “sua” representação. Se as de Leibniz não precisavam “dialogar” com as demais mônadas porque já compartilhavam com elas uma “ideia” fundamental, as do Facebook, em troca, não dialogam pelo motivo inverso: terem, cada uma, uma ideia completamente diferente. Antes de as “comunidades” monádicas do Facebook não quererem ou não poderem estabelecer comunidade entre si, é o próprio algoritmo da rede que furta delas essa possibilidade.

Mais grave do que “a comunidade facebookiana de Zuck” ser, ela mesma, uma mônada ignorante do que é uma verdadeira comunidade, é o fato de ela produzir tantas mônadas ignorantes em relação às demais quantos são os seus usuários; que, se não se percebem como tais, é porque a ausência de “portas e janelas” com a qual estão envoltos mente que é espécie de aquário, cujas paredes, no entanto, em vez de vidros transparentes, são feitas de espelhos. O Facebook é um mentiroso salão de espelhos, como o do Palácio de Versalhes: espetacular, sofisticado, capaz de repetir o mesmo, infinitamente, mentindo que ali está presente o mundo, mas, diferente do que Zuck quer fazer crer, não forma comunidade.

Em outras palavras, Zuck diz que o desafio do Facebook é criar soluções globais para problemas globais. Certamente falta a ele leituras sociológicas de vanguarda, segundo as quais: “para problemas globais, soluções locais”; ideia defendida por grandes intelectuais, como por exemplo, o recentemente finado Zygmunt Bauman, que em seu popular “Confiança e medo na cidade” esclarece que tentar solucionar um problema com o próprio problema outra coisa não é que duplicá-lo, que problematizá-lo. É como querer solucionar o capitalismo com mais capital; a bebedeira com mais álcool; o fascismo com mais egoísmo. O Bom-senso do velho e sensato sociólogo felizmente sobrevive para dizer a Zuck que, se “há pessoas que sentem que foram deixadas para trás pela globalização” – afirmação do dono do Facebook -, o problema é a globalização; precisamente, o modo como ela se dá; seu conceito que não consegue ser realizado. Ora, uma globalização que no final das contas é excludente sequer merecia esse nome.

No entanto, Zuck enche a boca para falar de “globalização” e “comunidade” enquanto o seu algoritmo, sob os ecrãs que simulam unir todos, produz glocalização (separação) e guetos virtuais que, infelizmente, não tardam em se materializarem na realidade. Exemplo disso é a divisão político-ideológica que tem espaço no Brasil atualmente. A incapacidade de “petralhas” e “coxinhas” estabelecerem diálogo, por exemplo, está muito menos em suas reais diferenças ideológicas do que no subterrâneo distanciamento em relação à alteridade que algoritmos como os do Facebook promovem através das redes sociais. Só que um verdadeiro espaço em comum não é aquele que somente “petralhas”, ou “coxinhas” compartilham entre si, sem a presença do outro. A comunidade de que mais precisamos é uma na qual as grandes diferenças possam compartilhar, e civilizadamente, o mesmo espaço.

Ao contrário da Lei de Coulomb, que, vulgarmente falando, diz que na natureza os opostos se atraem e os iguais se repelem -, a imperiosa “Lei Algorítmica do Facebook” é antinatural a ponto de aproximar iguais e separar opostos. Que universo se constrói com isso? Resposta: nenhum, apenas microcosmos insustentáveis; tão instáveis quanto a aproximação fortuita de duas cargas negativas, ou positivas. Aproximar iguais é duplamente burro. Em primeiro lugar, porque iguais não precisam ser aproximados. Tal aproximação já existe, mesmo que não seja noticiada em um mesmo feed. Em segundo lugar, porque a verdadeira comunidade de que precisa o problemático e excludente mundo globalizado é justamente aquela que possibilitará aos opostos compartilharem um espaço em comum; um locus onde “coxinhas” e “petralhas”, Apocalípticos e Integrados, bem como quaisquer pares de opostos que pudermos listar aqui, possam formar um universo humano.

A metáfora que a Lei de Coulomb e o modelo clássico de átomo têm para ensinar a Zuck é a seguinte: assim como a natureza não precisa aproximar elétrons de mesma carga negativa para que formem uma eletrosfera, nem tampouco prótons de carga positiva para que formem um núcleo, mas, em vez disso, junta elétrons com prótons para assim formar uma estrutura estável chamada átomo, assim também o algoritmo do Facebook não deve aproximar ideologias, gostos e práticas iguais ou demasiadamente similares para formar comunidade – iguais se entediam de si mesmos e se afastam! -, mas, em vez disso, sair do caminho dos opostos para que eles possam se atrair livremente. Quando os opostos não estão impedidos de se atrair, os iguais se organizam em função dessa atração.

Não há porque ter medo de deixar os opostos livres para atraírem-se. Como acontece nos átomos, os opostos elétrons e prótons se atraem mais do qualquer outra coisa, contudo, não se tocam; não se fundem; não querem ser o mesmo. O raio da órbita de um elétron é distância mínima que, tanto o elétron negativo quanto núcleo positivo, precisam para manterem, ambos, as suas alteridades. Sabe-se, também, que quem estabiliza essa atração/repulsão entre as partes negativa e positiva do átomo são os nêutrons, sem os quais os elétron se chocariam com os prótons e adeus átomo. Essa metáfora deve servir de exemplo ao futuro algoritmo do Facebook, que deveria se comportar como o nêutron, nem positivo, nem negativo, e por isso mesmo o cimento universal das “comunidades” atômicas.

O Manifesto de Zuckerberg é “politicamente correto”. Todavia, no sentido mais vil da popular expressão, pois, ou se é apenas e autenticamente político, e assim se constrói civilização; promove-se a realização do melhor para a humanidade; ou, ao contrário, não se é político, mas despótico. O vício condenável da político-corretice é querer fazer reluzir um verniz politico, civilizado, onde, na verdade, há um ato despótico que não tem coragem de assumir. E Zuck, nesse sentido, e sem aspas, é politicamente correto: sob a sua vendável apologia de uma “Comunidade Global” jaz o seu maldito algoritmo guetificador. Como se diz no Brasil: prega moral de cueca. Mas Zuck é um capitalista. E um dos mais bem-sucedidos da atualidade. Seu Manifesto, mutatis mutandis, poderia até fazer as vezes do ausente, porque desnecessário, Manifesto Capitalista. Todavia, ninguém deve esperar que a verdadeira comunidade futura, de que já carecemos presentemente aliás, virá de Manifestos tão distantes daquele que realmente se importou com o comum, qual seja, o Manifesto Comunista.

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Raças vs. Etnias, e a tal da “apropriação cultural”

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Na esteira da polêmica sobre “apropriação cultural” gerada pelo “Caso do Turbante de Curitiba”, qual seja: se uma pessoa “branca” pode ou não usar vestimentas típicas da cultura negra/africana; uma afirmação de ímpeto “politicamente correto” ecoou nas redes sociais: “Não existe raça. Por isso, não existe apropriação cultural”. A frase que pretendia encerrar a discussão, no entanto, levanta importantes questões. Uma delas: se não existe raça (ou qualquer quer nome que a valha) o que dizer de diferenças humanas geneticamente determinadas? Outra: se existisse raça, então existiria “apropriação cultural”? A terceira, decorrente dessa última: por que as culturas, produtos humanos par excellence, seriam inapropriáveis?

Contemporaneamente, ganha força o discurso de que a diversidade humana deve ser explicada pela cultura. Os justos intuitos “politicamente corretos” desse discurso são: a preservação identitária de determinadas culturas; a desconstrução de preconceitos raciais até hoje sobreviventes nas sociedades; e a prevenção contra o ressurgimento de quaisquer ideias de superioridade racial. E para isso, conceitos como os de etnia, povos, comunidades, grupos, tomam o lugar do conceito de raça. Dessa perspectiva, o que constituiria a identidade de uma etnia não seriam características naturais algumas, mas culturais: aquilo que, povos, grupos, comunidades cultuam em comum e que os diferenciam dos demais.

Esse enfoque, porém, não cobre diferenças naturais facilmente observáveis nos seres humanos, como por exemplo as que vemos em alguns esportes, tais como a natação e o atletismo. Independente de suas culturas, os maiores velocistas são invariavelmente negros e negras. Da mesma forma, os mais velozes nadadores são brancos e brancas. Sem desconsiderar consistentes análises sociológicas que apontam que certos esportes são mais elitizados que outros, e que por isso negros e brancos tiveram acessos desiguais a eles, é preciso considerar evidências científicas, sob o risco de sermos pós-modernos, demasiado pós-modernos.

Levando em conta um dado cientificamente irrefutável: a diferença de densidade óssea entre negros e brancos; não é absurdo, nem tampouco desrespeitoso aceitar que, por conta de uma ossatura mais densa, e consequentemente mais pesada em relação à dos brancos, os negros obtém menor performance dentro d’água. Por outro lado, comparativamente aos negros, a menor potência e resistência muscular natural dos brancos os deixa para trás nas pistas de corrida. Atentar a essas diferenças não significa necessariamente ser racista – embora muitos delas se valham e tenham se valido para tal -, mas, essencialmente, racialista.

O racialismo, ou – nome que de fato pouco ajuda – “racismo científico”, é uma “teoria científica das raças humanas” que estuda os tipos humanos a partir de suas diferentes características genéticas hereditárias, tais como, por exemplo, as apontadas acima. Se, para o discurso “politicamente correto”, diferenças culturais explicam satisfatoriamente a diversidade humana, o discurso “cientificamente correto”, por seu turno, não pode deixar de explica tal diversidade sem atentar à diferenças genéticas hereditárias.

O maior desafio dos racialistas, por conseguinte, é o de não serem racistas. Para tal, precisam ser absolutamente críticos em relação às contingências socioculturais e econômicas que, durante séculos, serviram de matéria para que alguns grupos humanos subjugassem desumanamente outros. A insólita virtude do racialismo, no entanto, é ainda se preocupar com diferenças genéticas humanas, todavia ao preço de colocá-las sob um guarda-chuva semântico que apenas atende pelo nome de raças, e isso justamente no contexto contemporâneo, “politica e culturalmente correto”, que, por sua vez, tenta suprimir a pertinência de tais diferenças.

No entanto, eleger a teoria de que as diferenças humanas são apenas construtos socioculturais e não também genéticos/hereditários, mutatis mutandis, é como fechar de vez os livros de ciência para manter aberto O Livro da Teoria da Criação, ou seja, A Bíblia. Ser pós-moderno, demasiado pós-moderno, nesse caso, confunde-se perigosamente com ser medieval, demasiado medieval. Dizer que é o homem, e só ele, que cria as suas diferenças, não é muito diferente do fundamentalismo de dizer que Deus, e só Ele, criou o homem. É anticientificamente dogmático.

A virtude do ímpeto “politicamente correto” contemporâneo em se recusar à diferenciações racialistas está no fato de lembrar a todos que o discurso racialista pode ser facilmente pervertido e apropriado pelo discurso racista. Com efeito, diante do desafio de acabarmos com o resistente barbarismo do racismo, certos discursos e teorias deveriam calar. Pelo menos até a humanidade alcançar um estágio civilizatório no qual tratar, aberta e cruamente, de diferenças genéticas não ofereça riscos de que certos grupos se considerem superiores e, por conta disso, subjuguem outros.

O vício do discurso “politicamente correto” que refuta as diferenciações racialistas (Não há raça!), no entanto, está em não reconhecer o seu próprio Calcanhar de Aquiles. Ideias de superioridade racial, bem como os males que elas causaram e ainda causam, não estão prescritas em gene algum, mas se justificam de forma muito mais clara culturalmente. O tropeço “politicamente correto” está em não reconhecer que os maiores males podem se justificar mais eficientemente na contingência de discursos culturalistas do que na verdade necessária de dados científicos.

Apesar de a contemporânea politico-correção em respeito à construção da igualdade entre as pessoas exigir que entendamos raça tão somente enquanto um constructo social perigoso, a antropologia e a sociologia, por exemplo, sabe muito bem que diferenças genéticas/fenotípicas afetam e organizam a vida de grupos humanos. Se, por um lado, tais diferenças provocaram e sustentam desigualdades sociais traumáticas, por outro lado, contudo, estabelecem pertenças culturais de valor e acolhimento insuperáveis, ou, para dizer o mínimo, humanos.

Diante da atual força do discurso “politicamente correto”, os cientistas de modo algum deixam de estudar as diferenças genéticas humanas. Apenas são constrangidos a usarem nomes que não causem, digamos assim, “polêmica política”. Como dito antes, em vez de raças: etnias, povos, grupos, comunidades, etc. No final das contas, e infelizmente, a político-correção muitas vezes se dá por satisfeita com meras vitórias nominalistas. Pós-modernice todavia condenável; pois, como provoca Žižek: o pós-moderno é aquele que quer mudar tudo desde que as coisas permaneçam como estão. Assim dá continuidade à sua luta, o que realmente importa a ele.

Todavia, os mesmos riscos e problemas socioculturais dos quais os “politicamente corretos” querem se ver livres não desaparecem ao apenas serem mudados os nomes mediante os quais se quer definir diferenças naturais dentro da humanidade. Ora, se o conceito de raça, por questões culturais, pôde gerar ideias de superioridade racial, os de etnia, de grupo, outrossim podem sustentar ideias de mesmo e vil calibre.

Para se ser “cientificamente correto” hoje em dia é preciso ser ao mesmo tempo “politicamente correto”. Até aí tudo bem. Nada de errado os cientistas serem devidamente civilizados. O mesmo, entretanto, não pode ser dito dos “politicamente corretos”, cujo discurso insiste em ser refratário a certas verdades científicas. Por isso dizem, por exemplo, que “raças não existem”, como se aquilo que racialistas estudam e comprovam inexistisse. O problema de se crer cegamente que tudo é construto social é que aquilo que precede a cultura, e que de forma alguma é anulado por ela, qual seja, a natureza, não é também determinante na existência humana.

A natureza existe, sem a menor sombra de dúvida, mas não foi feita por homens e mulheres, nem tampouco para eles. Dessa visada, é outorgar-se espécie de divindade querer menosprezar determinações naturais. Por outro lado, o que é feito por e para homens e mulheres é a sociedade, a cultura. Somente aí podemos agir como se fôssemos deuses. No entanto, não ao estilo do Deus cristão: único, onipotente e onisciente; mas no máximo ao modo dos deuses do paganismo: um panteão povoado por divindades sem o qual, em idas eras, a humanidade não se reconhecia nem se explicava.

Mais problemático ainda é a político-corretice de se sustentar que todas as diferenças humanas atendem pela acunha de culturais e ao mesmo tempo defender de que “não há apropriação cultural”. Com isso dizem que diferentes etnias, grupos, são inconciliáveis; alienígenas uns aos outros. Cindem a humanidade de modo irreversível. Felizmente, a simples experiência mostra que estão errados. Quaisquer povos, comunidades, podem se apropriar da língua e dos costumes de quaisquer outros. O problema do “politicamente correto” está em achar isso incorreto politicamente.

Se a língua é um dos mais inarredáveis fundamentos de uma cultura, e se o diálogo é a base da civilização, então, sem se apropriarem no mínimo das línguas uns dos outros, povos diversos nunca poderiam estabelecer relações civilizadas entre si. Por que com outros elementos culturais seria diferente? Dizer que “não há apropriação cultural”, em outras palavras, é condenar as diferenças a espécie de eterna barbárie. Sim, apropriamo-nos culturalmente de elementos de outros grupos, mas isso não significa necessariamente furtar-lhe suas identidades. Antes, é um passo civilizado, pois se dialoga com o outro ao se agir, pensar, falar como ele; em suma, ao se apropriar de sua cultura.

Então, a frase “Não há raça! Por isso não há apropriação cultural” é a saída mais fácil, todavia mais burra, para a complexa e interminável epopeia humana chamada civilização. Apropriação cultural há! E é ela que faz com que o mundo não recaia na barbárie. E, pelo menos do ponto de vista racialista, raças há! E são elas que explicam diferenças naturais que conjunturas culturais não o fazem nem tem como fazê-lo. Se ser “politicamente correto” impede que se compreenda as coisas também desse modo, desculpe-me, tal “correção” merece outro nome: limitação.

Os grandes e mais civilizados povos da antiguidade, o grego e o romano, tinham por bárbaros aqueles que se recusavam a apropriarem-se de suas culturas e que preferiam permanecer fechados em suas próprias. Roma, muito mais do que a Grécia, era um convite à alteridade. Qualquer um podia ser romano. Bastava apropriar-se de alguns costumes e leis para se desfrutar da pax romana. Não só há apropriação cultural, como ela é uma virtude humana, quiçá uma das maiores. Sem ela, não seriamos civilizados, mas bárbaros isolados em nossas próprias culturas.

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Radicalismo “politicamente correto” e civilização

politicamente

A expressão “politicamente correto” é redundante. Não há incorreção quando somos, de fato, políticos. Dentro dessa relação, até as diferenças mais irredutíveis não são e não devem ser vistas como erros, mas como matéria da política. Radicalmente falando, ou agimos politicamente, ou, em vez disso, somos despóticos. Se há algum erro, ele pertenceria ao segundo caso. A invenção da política pelos gregos se caracterizou justamente pela conversão do despotés (déspota) em polités (político). Dessa perspectiva, acusar alguém de ser “politicamente incorreto”, na verdade, significa chamá-lo de bárbaro.

Todavia, não pretendemos ser tão radicais quando, vulgarmente, apontamos a político-incorreção em um de nossos pares. O mais das vezes, queremos apenas denunciar, quiçá corrigir uma civilidade incompleta, falha, que precisa de um ajuste para se realizar plenamente. O problema dessa crítica, contudo, é pressupor que a civilização seja um projeto acabado, um modelo ideal e acessível, ao qual devemos nos conformar para dele nunca nos afastarmos. Só que não!

A civilização é, em si mesma, um projeto inacabado e inacabável da humanidade. Provas disso são: tanto a persistência, até hoje, do maior despotismo de todos, o assassínio; quanto principalmente a sistemática conversão de costumes, até certa altura naturais à civilização, em neobarbarismos a serem doravante extirpados, como por exemplo: não mais fazer piadas nem cantar marchinhas de carnaval racistas e sexistas; “brancos” eurocêntricos não usarem, banal e indiscriminadamente, roupas étnicas, e por aí vai.

Se ser civilizado, ou o que é o mesmo, ser político, é uma sempiterna construção, então, não há nada de fundamentalmente errado em descobrirmos e apontarmos, uns nos outros, zonas de despotismo, porões de aquém-civilidade. Isso, aliás, é o modus operandi per se da civilização. Se existe algo que podemos chamar de correto na história da civilização, é não abandoná-la enquanto a escrevemos. Com perdão da redundância, civilidade é permanecer civilizado na construção e na manutenção da civilização.

Exemplo disso é a postura do bloco carnavalesco carioca “Cordão da Bola Preta” que, diante da postura de ímpeto “politicamente correto” que condena a execução de algumas marchinhas de carnaval clássicas por conta de teores racistas, sexistas ou homofóbicas, decidiu apenas não tocá-las, seja porque de fato elas ofendem alguns, seja ainda porque há tantas outras músicas, tão mais alegres e/ou clássicas, e certamente menos polêmicas. O “Bola Preta” é civilizado porque não se impõe despoticamente àqueles que não compartilham do seu, digamos assim, estágio civilizatório. Apenas age exemplarmente.

Entretanto, pode-se ser radical em defesa da civilização. Um recente caso, que ilustra bem isso, é o da ativista negra curitibana que interpelou agressivamente uma concidadã branca que usava um turbante estilo africano para esconder a careca causada por tratamento quimioterápico, dizendo-lhe que “uma branca não pode usar roupa de negro”. A radicalidade “politicamente correta” da ativista estava em condenar a “apropriação cultural” de elementos da cultura negra precisamente pela etnia branca que se apropriou despoticamente dela por séculos.

A despeito do significado vulgar que damos à palavra “radical”, como se se tratasse apenas de “excessividade”, de “exagero”, etimologicamente, no entanto, ela significa “relativo à raiz” (do latim “radicalis”, derivação de “radix”: raiz). Dizer que algo é radical, portanto, é falar que esse algo está conectado à sua origem.

Esse esclarecimento é importante porque, ao chamar de “radicalismo politicamente correto” o ato político da ativista, eu não quero acusá-lo de desmesura, nem de, em última instância, despotismo. Em vez disso, o objetivo é entendê-lo enquanto um ato político autêntico que, no entanto, se aproxima polemicamente da origem que é a própria instituição da civilização.

Com efeito, na raiz da civilização estávamos muito mais próximas da questão dualista de o que fazer/o que não fazer para ser civilizado; para não ser bárbaro… A distinção radical da civilidade em relação à barbárie está em um “não” ao embate físico, e em um “sim” ao diálogo político. Nesse estágio, e somente nele, ser civilizado é simples assim.

A crítica da ativista negra à “apropriação cultural” do turbante africano por uma branca, está longe de ser errada. Apenas é radical no sentido de pretender estabelecer regras demasiadamente objetivas em respeito ao que se deve fazer para se ser, segundo seu ponto de vista, devidamente civilizado. Mutatis mutandis, pretende dizer que “correção política”, ou, mais apropriadamente, polidez, civilidade, é uma etnia não se apropriar, impune e banalmente, de elementos de identidade de outra etnia. Principalmente em se tratando de uma que, histórica e desumanamente, foi desapropriada de si mesma pela outra. E, infelizmente, não só culturalmente!

Embora tenhamos deixado de lado o significado comezinho de “radical”, qual seja, o de exagero, de excessividade, temos contudo de reconhecer a sua pertinência na luta politica dos negros por reconhecimento identitário e igualdade. E isso porque, fazendo uma analogia com as relações físicas de força, a força através da qual os negros foram historicamente subjugados pelos brancos não será anulada sem o expediente de, no mínimo, uma força de igual intensidade, porém, de sentido contrário.

Ser radical, no sentido amplo que essa palavra nos oferece, é tanto “estar junto à origem”, quanto, em relação à origem da própria civilidade, estar próximo à barbárie. O “Calcanhar de Aquiles” do ato político radical, no entanto, está em que, embora civilizante por natureza, de qualquer modo trara aquilo contra o qual empreende como se se tratasse de barbárie.

Se o ato político da ativista negra contra o uso de turbante por brancos é polêmico, o é porque entre a sua radicalidade e a sua contemporaneidade se interpõe toda sorte de relativismos. Um deles, assaz célebre e pertinente, vem do filósofo alemão Theodor Adorno, para quem “o consumidor não é soberano, como a Indústria Cultural quer fazer crer; não é o seu sujeito; mas o seu objeto”.

Com efeito, da vertical perspectiva dos rolos compressores que são a indústria cultural e o capitalismo que a industrializou, o fato de os negros terem sido historicamente subjugados pelos brancos, guardadas as devidas proporções, obviamente, é no entanto tão objetal quanto todos nós, brancos, negros, índios, mulheres, homens, gays, lésbicas, etc., estarmos subjugados aos ditames da moda, que, radicalmente, são os do sistema capitalista que de todos se apropria.

Se no nascimento da civilização a pecha se deu com a vitória do diálogo político sobre o embate despótico, atualmente, entretanto, em plena “Idade do Lobo” dessa mesma civilização, ser civilizado deve ser, antes de tudo, lutar contra o novo inimigo comum da civilização. Não mais a barbárie antepassada, mas o presente despotismo universal do capitalismo. Embatermo-nos uns com os outros em vez de, juntos, lutarmos contra o sistema que de todos se apropria imperiosamente é, como se diz, “bater em gato morto”.

Para concluir, uma metáfora com o objetivo de resumir a presente reflexão.

Imaginemos que a humanidade seja um pêndulo em busca de equilíbrio – de liberdade, de igualdade, de oportunidade para todos -, oscilando entre dois extremos: de um lado, a antepassada barbárie da violência que vence o diálogo, e, do outro lado, o contemporâneo despotismo do sistema capitalista, que se projeta futuro adentro, e cuja violência se dá inclusive no diálogo. O ponto ideal no qual a civilização estaria livre dos dois males seria, portanto, o centro: a maior distância possível dos dois extremos.

Porém, quem já observou um pêndulo funcionar sabe que seu equilíbrio final se dá paulatinamente, com tantas oscilações, para lá e para cá, quanto for a energia do próprio pêndulo. É somente quando a energia do sistema chega a zero que o pêndulo entra em equilíbrio. Metaforicamente, estágio no qual a civilização seria finalmente alcançada.

Contudo, projeto inconclusivo que é, a civilização é um pêndulo que nunca se equilibra. E isso porque nunca tem uma energia igual a zero. Muito pelo contrário, a civilização é um embate de forças que nunca cessa. Ao contrário do pêndulo físico, o da civilização balouçará ad aeternum.

Apesar de o ponto central de pleno equilíbrio nunca acolher perenemente a civilização, ele tem ao menos a virtude de marcar, ainda que fugazmente, uma medida ideal, intermediária às medidas reais que jazem nos extremos. Esse ponto de equilíbrio, pelo qual a civilização passa em meio ao seu sempiterno movimento; átimo no qual é possível o diálogo sem violência e onde a alteridade não é um problema, mas a matéria das nossas relações; esse é o momento político par excellence.

Se não conseguimos capturá-lo para nele permanecermos indeterminadamente, o que seria ideal, ao menos devemos manter memória dele, para, enquanto estivermos nos aproximando dos reais extremos do despotismo, permanecermos suficientemente civilizados. No caso da radicalidade da ativista negra Curitiba: sermos polidos, políticos, e não tratá-la como se estivesse exagerando, mas como voz que, assim como a da maioria, quer apenas realizar civilização.

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Trump e mixofobia

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A civilização é um cimento que uniu os seres humanos em um projeto em comum, tirando-os da barbárie. Sua materialização primordial foram as cidades; em latim chamadas de civitas; em grego, de pólis. O não-bárbaro, portanto, é aquele que prima pela convivência civilizada, politizada com os demais. O afeto desse primado é sociologicamente denominado de mixofilia, isto é, o amor à mistura. Sentimento que, entanto, o impertinente isolacionismo do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, parece desconhecer.

A exemplo daqueles que a instituíram, a civilização é ambígua. Por mais que ofereça às pessoas benesses de que nunca desfrutariam caso permanecessem barbarizadas, a começar pela substituição do embate físico pelo diálogo, a mistura civilizada gera afetos negativos. A proximidade com outros também produz medos, pavores, que por suas vezes impõem distanciamentos. Esse afeto isolacionista, em sociologia, é chamado de mixofobia, ou seja, o pavor da mistura. Movido pelo pretexto do terrorismo, o isolacionista Trump é o mixófobo espetacular da contemporaneidade.

Se, portanto, a civilização é a instituição humana na qual vivemos tanto o amor quanto o pavor em relação à alteridade, todavia com a vitória do primeiro, Trump é a prova da derrota diante do segundo. Ao passo que, mixofilicamente, experimentamos os prazeres e as vantagens da convivência com os outros, sendo o carnaval um exemplo mixofílico por excelência; mixofobicamente, ao contrário, priorizamos os riscos oferecidos por tal convivência, sendo o famigerado muro com o qual Trump irá isolar-se dos mexicanos o exemplo mixofóbico mais emblemático da atualidade.

A mixofobia patológica de Trump, contudo, é mais bárbara do que alienígena. Nossos condomínios e semblantes fechados já são espécie de muro trumpeano através dos quais nos isolamos do perigo da alteridade. Entretanto, por mais ambígua que seja a civilização, ela é, a priori, mixofílica, mesmo que, a posteriori, mixofóbica. O desafio primordial do civilizado, portanto, é superar sistematicamente os afetos mixofóbicos em prol dos mixofílicos. Pois é somente através do amor à mistura que transformamos as carências e vulnerabilidades inerentes ao isolamento em abundância e segurança. Afinal de contas, não foi por isso que o ser humano se civilizou?

Todavia, paradoxalmente, é em função do risco de perder essa abundância e segurança que os afetos mixófobos brotam. Trump, realmente acredita que uma “America Great Again” só é possível mediante isolamento; se ela estiver sitiada intramuros intransponíveis. Porém, o pavor da alteridade não desaparece ao se isolar dela. Esse isolamento, aliás, é o medo concretizado, espacializado; de forma alguma superado. Sem dizer que agir em função do medo, do pavor, ou seja, de afetos mixofóbicos não é coisa de quem é ou será “Great”. A América de Trump, isolada, será tão “small” quanto a barbárie diante da civilização.

O grande problema da mixofobia é que ela reinstitui o não-diálogo entre quem se sente atemorizado e quem causa tal temor. Ela é antipolítica por natureza. Mas, não nos esqueçamos, Trump se elegeu vendendo o peixe de que não era político; de que os americanos estavam fartos da política. Só que ser civilizado e ser político, “Mr. President”, são sinônimos! Felizmente, massivas e mixofílicas manifestações “worldwide” contra o mixófobo-mor estão ocupando a ágora mundial com a civilidade da qual não querem ser privadas. Uma luta política par excellence.

Não foi devido à ausência de mixofobia que a civilização se deu, mas, fundamentalmente, pelo conflito dela com os afetos mixofílicos. A civilização, por assim dizer, é o estágio humano no qual a mixofilia vence essa sempiterna pecha. E a mixofobia, sistematicamente derrotada, compõe a régua com que se mede a vitória da civilização. O triunfo mixofílico se sustenta na consciência de que, por mais que o outro possa ser um problema, antes disso, ele já é a solução. Quanto mais não seja, cada um de nós é um outro para os outros.

Trump, contudo, não considera o fato de que é um outro para os outros. Em vez da abertura política à alteridade, o bárbaro fechamento egoísta. “America First!”. E quando se está desse modo isolado, o temor serve de paradigma para toda sorte de apolitismo. Mas, se em uma imagem, civilização é vitória sobre barbárie, a nossa, sobre Trump e todos os que, como ele, não querem ser outros de ninguém, essa vitória consiste em seguirmos amando nos misturarmos: troféu que se ganha ao ser derrotado o medo da mistura.

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A grandeza prometida pelo “republicano” antirrepublicano

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“Make America Great Again” (Fazer a América Grande Novamente), slogan que levou Donald Trump à presidência dos EUA, é impossível de ser realizado a partir da política isolacionista que o bilionário defendeu em campanha e que, uma vez no poder, está implementando a contragosto do cosmopolitismo do mundo globalizado. Essa contradição é tácita no que alguns analistas políticos já chamam de “ O Imperialismo Isolacionista de Trump”. A impossibilidade de a América ser grande isolando-se será analisada à luz de algumas ideias de Nicolau Maquiavel, o fundador do pensamento político moderno. Aplicando-se a teoria maquiaveliana sobre a promessa de grandeza do slogan trumpeano, como ele ficaria?
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Investigando o que fazia um estado ser grande, Maquiavel encontrou o que procurava na Roma antiga, o maior exemplo da história, e, segundo o pensador, digno de ser imitado. Maquiavel não era um teórico que ficava imaginando estados ideais, tal como Platão, em “A República”, ou ainda Santo Agostinho, em “A Cidade de Deus”. Ele, na verdade, era um realista pragmático que buscava em exemplos históricos concretos os fundamentos para as suas lições políticas. Até mesmo o racionalismo de Aristóteles, na “Política”, e o historicismo de Cícero, em “Histórias”, ficavam aquém da concretude factual a partir da qual Maquiavel tirava as suas conclusões.
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Ao contrário do que sustentavam todos os pensadores políticos antes dele, Maquiavel não via em fronteiras intransponíveis; na ausência de tumulto interno; nem tampouco no poderio militar a grandeza de um estado, mas, em primeiro lugar, na possibilidade de os cidadãos desse estado, fossem ricos, fossem pobres (nas palavras do florentino: grandes e povo, respectivamente) poderem estabelecer entre si um conflito político aberto em função de seus interesses de grupo. E era precisamente a diversidade e a irredutibilidade dos desejos dos grupos sociais, chamados pelo florentino de “humores”, que fazia a riqueza política e a grandeza da Roma republicana que chegou ao conhecimento de Maquiavel através das Histórias de Tito Lívio.
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E se a diversidade de humores é fundamental para a grandeza de um estado, Roma foi o maior da antiguidade porque, desde a sua fundação até o seu declínio, abriu-se para quem quisesse ser romano. Roma era uma urbe de humores conflitantes! O surgimento da maior instituição republicana de todas, os Tribunos da Plebe, que equiparou povo e grandes politicamente, só foi possível porque Roma, incorporando paulatinamente indivíduos oriundos dos mais variados lugares, foi pluralizando e empoderando seu o povo diante dos estáticos interesses dos grandes, a ponto de aquele não ser mais dominado por estes, mas todos serem cidadãos com iguais direitos e obrigações perante a lei.
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Para mostrar como o isolamento de um estado leva-o à ruína, Maquiavel usou o exemplo de Esparta, cujas leis, instituídas por Licurgo, rejeitavam estrangeiros. Uma das causas dessa recusa era a manutenção da rígida estratificação social que impedida qualquer mobilidade política. O povo, nessa conjuntura, esteve sempre subjugado aos reis e à aristocracia. E, não tendo direitos políticos, o povo não compartilhava do estado. Como, por conseguinte, a res não era publicamas privada, o povo não tinha motivos para defender o estado de inimigos externos nem tampouco para lutar pela expansão desse estado que, no final das contas, não era seu, mas apenas dos grandes.
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Em Esparta, portanto, quem defendia o estado e empreendia a sua expansão era a própria aristocracia, a verdadeira dona da res. No entanto, como os grandes sempre são minoria em relação ao povo, o exército, que tinha por tarefa tais objetivos, era sempre limitado, pois composto ou apenas por indivíduos da aristocracia, ou por mercenários contratados por ela. Assim como nunca se confiou em escravos para defender uma res que não era deles, assim também o povo espartano não era alistado pelos reis e aristocratas. Com essa pragmática antirrepublicana, ensina Maquiavel, Esparta não só não se expandiu ao longo do tempo, como principalmente ruiu pela própria rigidez de sua estrutura política.
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O povo da Roma republicana, ao contrário, uma vez que também possuía a res, comprometia-se com ela, fosse em caso de ameaça externa, fosse em função de expansão. Quanto mais não seja, considerando a natureza humana egoísta pressuposta por Maquiavel, só faz sentido defender e fazer crescer aquilo que é seu. E os estrangeiros que, por vontade própria e aceitação de Roma, passavam a desfrutar da cidadania e da pax romana, defendiam esse estado e a sua expansão como se fossem romanos natos.
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Sem dizer que a própria origem mítica de Roma, qual seja, a fundação por Rômulo, deu-se mediante a abertura irrestrita aos estrangeiros. Depois de matar seu irmão, Remo, em um dos fratricídios mais ilustres da história, Rômulo aceitou indiscriminadamente indivíduos de todos os lugares e índoles dentro de suas muralhas. E essa diversidade, em vez de arruinar Roma, fez a sua grandeza.
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Voltando aos Estados Unidos, país que, como se sabe, foi formado por estrangeiros, e cuja atual grandeza ainda se dá pela mistura de praticamente todas as gentes do mundo, caso se ensimesme dentro de fronteiras intransponíveis cometerá o mesmo erro que Esparta. Fechando-se à diversidade, à novidade, à alteridade que são os estrangeiros, os EUA terão por destino imediato a estagnação e, a longo prazo, a própria ruína. Sem dizer que, erro maior, os EUA de Trump se encontram em um mundo fundamentado na globalização, como os estados da antiguidade jamais experimentaram. Fechar-se nunca foi tão impróprio!
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Se Donald Trump, que quer fazer a “América Great Again”, seguir ignorando que um estado só é verdadeiramente grande quando, a exemplo da Roma republicana, abre-se irrestritamente aos estrangeiros, incorporando o que de melhor eles têm, e com isso tornando-se mais diverso, mais plural, mais cosmopolita, em suma, “Great”, talvez o déspota contemporâneo descubra isso do modo mais difícil, ou seja, vendo o seu país encolher por conta de isolamentos, banimentos e muramentos impertinentes.
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Será que Trump, graduado na quarta melhor universidade dos Estados Unidos, não aprendeu nada dos ensinamentos políticos de Maquiavel? Minha aposta é que o “republicano” está sendo deliberadamente antirrepublicano, ou o que é o mesmo, antimaquiaveliano. Ora, se a res norte-americana não for publica, mas privada, ela será apenas de bilionários como ele. E se essa hipótese é verdadeira, a única coisa que faltou ser acrescida no famigerado slogan trumpeano, “Fazer a América Grande Novamente”, foi o complemento mais reacionário de todos, qual seja: “Para os poucos aos quais a América sempre foi grande”.
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Esse adendo obsceno, é claro, não poderia ter sido publicizado durante a campanha. Todavia, uma vez eleito, nada mais impede Trump de, desavergonhadamente, colocá-lo em prática na sua forma completa. Porém, levando em consideração os ensinamentos de Maquiavel e o isolacionismo antirrepublicano de Trump, o slogan do topetudo, no final das contas, tem de ser reescrito na seguinte forma: “Fazer o povo da América menor para ela ser novamente grande somente aos grandes. Só assim o slogan fará jus ao “republicano” antirrepublicano que atualmente preside a terra do Tio Sam.

A prática da Teoria da Conspiração

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Arte: Rafael Silva

A morte do ministro do Supremo Tribunal Federal e relator da Operação Lava Jato, Teori Zavaski, em 19 de janeiro de 2017, causada pela queda de um avião no Rio de Janeiro, antes mesmo de ser oficialmente confirmada, para milhares de pessoas nas redes sociais, no entanto, “já seria uma queima de arquivo” conspirada pelo governo golpista. Também pudera, os suspeitos a priori são justamente aqueles que deram um golpe de estado para, entre outras coisas, “estancar a sangria”, isto é, não terem os seus crimes investigados e punidos pela operação Lava Jato. A máxima “O teu passado te condena” alimentou instantaneamente a ideia de “Teoria da Conspiração”. Mas será que ideias como essa, hoje em dia, não são ingênuas demais?

Se sim, eu padeci de tal ingenuidade. Contudo, confesso que, mesmo na impossibilidade de me desvencilhar da certeza subjetiva de que Teori foi morto pelo governo golpista, eu invejei a prudência daqueles que acharam que, objetivamente, tratava-se apenas de um acidente, pelo menos até ser provado o contrário. Contra a racionalidade que sustentava que “às vezes um acidente é só um acidente”, eu ainda insisto no fato de que “às vezes uma queima de arquivo é só uma queima de arquivo”, principalmente quando parece um acidente. Afinal, mafiosos oligarcas poderosos se valem desse tipo de expediente, não é mesmo? Se, como bem apontou Foucault, o poder tende a preservar a si próprio, quando esse poder é espúrio, outrossim degeneradas serão as suas estratégias de automanutenção.

Mesmo assim, uma primeira denúncia deve ser feita contra os que, como eu, aderiram à teoria de que o governo golpista conspirou a morte de Zavaski: a materialização da tal “pós-verdade” – neologismo pós-moderno referente à “verdades” fundamentadas não em fatos objetivos, mas em emoções ou crenças pessoais. O desejo ou a crença subjetivos de que Temer tenha matado Teori, se não falou por todos, ao menos gritou mais alto e primeiro. Mesmo que a morte do ministro relator tenha sido um acidente de fato, o “fato alternativo” (apelido que a equipe de Donald Trump deu à pós-verdade essa semana), isto é, o seu assassinato previamente conspirado, certamente teve apelo incontrolável.

Pós-verdades à parte, se não temos como saber a verdade a respeito da morte de Zavaski (se acidente ou conspiração), ao menos devemos saber quem a sabe. Até o presente momento, somente os golpistas suspeitos detêm essa verdade: se conspiraram a morte do ministro, sabem que não foi acidente; se, todavia, não conspiraram, sabem que foi apenas um acidente. A brecha pós-verdadeira se abre justamente porque, se Teori foi de fato assassinado pelos golpistas, o poder e as estratégias destes podem facilmente ocultar esse fato com o “fato alternativo” de que foi acidente. E se pelo menos parte dos brasileiros não sustentar a teoria conspiratória de que Teori foi “queimado” pelos golpistas, esse fogo terá sido acidental desde o princípio, mesmo que propositalmente ateado.

A virtude das Teorias da Conspiração está precisamente em tentar dar voz àquilo que, de antemão, deve estar absolutamente silenciado. No início do Holocausto, por exemplo, quando Hitler dizia publicamente que seu projeto não era outro senão fazer a Alemanha “Great Again”, foram as teorias da conspiração, à época obscuras e desacreditadas, que em primeiro lugar insistiram que, na verdade, tratava-se de um genocídio judeu. Como, por conseguinte, a História mostra que que seis milhões de judeus foram exterminados, às vezes… apostar nas Teorias da Conspiração é investir na verdade.

No caso Zavaski, a Teoria da Conspiração não é absurda: é apenas a impertinência de defender uma verdade que, se de fato verdadeira, todavia nasceu planejada para ser eternamente ocultada. Ora, se a pragmática golpista, na manutenção do seu podre poder, já “matou”, ao vivo e em cadeia nacional!, a própria democracia no Brasil, “queimar um arquivo” humano no meio do percurso é apenas burocracia menor e subsequente. Todavia, mesmo que o povo, e sobretudo os inimigos dos golpistas nunca saibam se a morte de Teori foi acidental ou conspirada, a publicizada foto dos golpistas em torno do caixão do ministro que poderia comprometê-los já é uma mensagem de poder que, como li em outro lugar, nem Al Capone enviaria com tanto êxito.

Mas se a Teoria da Conspiração foi tão pertinente no caso do Holocausto, assim como parece ser no caso Zavaski, por que então foi dito no início que era ingênuo embarcar nela? Porque, conforme uma afirmação de Slavoj Žižek em “Às portas da Revolução”, hoje em dia não há a menor necessidade de teorizarmos sobre uma organização oculta dentro de uma organização explícita: “a conspiração” – diz o filósofo – “já está na organização ‘visível’ como tal, na forma capitalista, na forma como o espaço político e os aparelhos de Estado agem”.

Ora, se, longe de serem conspirações secretas, as ações aparentes do poder na sociedade capitalista globalizada já dizimam, e publicamente, populações inteiras, seja em função de petróleo (mundo árabe), seja em busca de novas terras à agricultura (África), achar que esse mesmo poder precisa obscurecer-se, conspirar secretamente para fazer o mesmo com um singelo indivíduo que se lhes oponha é, sem dúvida, tolo. Talvez o fato de a “conspiração oculta” já ser a ação explícita é que seja insuportável.

Pode ser que o atual reinvestimento tupiniquim na Teoria da Conspiração vise justamente a manutenção da velha ilusão de que as obscenas ações do poder não possam se dar de modo tão explícito, como cada vez mais se apresentam. Aqui chegamos ao ponto de supor que defender uma conspiração secreta por parte do poder nada mais é que pedir a esse poder que ao menos mantenha o velho modus operandi de agir como se ocultasse as suas vis estratégias. Algo como: “por favor, já que estão agindo somente em função de si mesmos, ao menos finjam que isso é vergonhoso demais para ser explicitado”; em outras palavras: “mantenham nas suas vilanias reais a possibilidade de elas serem abordadas somente como teorias, e não como tácitas práticas efetivas”.

Como bem apontou Žižek, “as teorias da conspiração são o oposto da convicção iluminista de que a Razão governa o mundo”. E se ainda teorizamos sobre conspirações, é porque, de fato, o mundo não é governado pela Razão, mas, em troca, pela lógica abjeta do capital, que a tudo e a todos consome indiscriminadamente para mais-valorizar-se incessantemente. E essa lógica governante é poderosa a ponto de poder dispensar os expedientes das conspirações secretas para se apresentar em forma de ações cruas  e explícitas. São justamente os que padecem dela que, paradoxalmente, inventam mentiras “factuais alternativas”, “pós-verdades” para mentirem a si mesmos que o poder não é tão evidentemente vil; que ele ao menos ainda exercer a sua vilania tentando escondê-la.

Em suma, as Teorias da Conspiração, por um lado, existem para dar voz ao que é intencionalmente reprimido – e nesse sentido vale lembrar a inversão žižekiana da máxima wittgensteiniana: “do que não se pode falar, deve-se guardar silêncio”, para “o que não se pode falar, não se pode calar”. Todavia, por outro lado, elas disfarçam as ações reais e evidentes do poder em sua sempiterna manutenção de objetos de teoria, escondendo o que de fato são: práticas sistemáticas desavergonhadamente objetivadas.

Talvez as Teorias da Conspiração sejam essencialmente controversas mesmo. Aqui, teorizando sobre verdades aparentemente reprimidas, para, logo ali, essas verdades, uma vez desbravadas, jazerem enquanto teoria mesmo, e não enquanto práticas reais que afrontam insuportavelmente. Teorizar sobre conspirações no mundo atual não é outra coisa que desejar que as ações mais aviltantes ao menos sejam praticadas como se fossem aviltantes.

Brasil, meu impaís

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Se uma coisa não é mais possível, dizemos que é impossível. E se essa coisa é um país, por exemplo, o meu, o Brasil, nem mesmo a sua língua deve censurar a minha impertinência neologista de, no atual momento, mais do que em todos os outros dos meus 43 anos de brasilidade, chamá-lo de impaís. Nas linhas que se seguem, nas quais ocuparei o meu “lugar de fala” enquanto cidadão brasileiro, solicito a distinção entre “país”, enquanto o lugar no qual os interesses do povo são possíveis, e impaís, onde eles são impossíveis.

Nasci em 1973, último ano do famigerado “Milagre Brasileiro”. Convenhamos, milagre mesmo é uma época também conhecida como “Anos de Chumbo”, e o que é pior, cativa de uma ditadura militar, ser chamada de milagrosa. Mas a explicação é fácil: o tal milagre se referia ao extraordinário crescimento econômico, que, no entanto, beneficiava apenas a velha minoria dominante, justamente a classe que sentiam-se, mais uma vez, milagrosamente abençoada.

A partir de 1974, no entanto, o milagre começou a degringolar. Milagre pela metade: o crescimento nacional, que chegou a ser de 13% ao ano, dez anos depois mundanizou-se em parcos 6,5%. Em 1983 a inflação anual era de 200%. Dívida externa galopante, estagnação econômica, radicalização das desigualdades sociais, desemprego: eis a graça de um milagre produzido por anjos militares caídos. Em suma, embora eu tenha nascido em um ano ainda apelidado de “milagroso”, o chão de toda a minha infância foi a crise, cuja aridez só não me afetou porque eu ainda estava no colo de mamãe. Já os pés dela…

Quando eu então estava deixando a infância e começando a entender minimamente a realidade ao meu redor, o pouco que eu percebia seria posteriormente chamado de “A década perdida”, alcunha ressentida à estagnação econômica que o Brasil, bem como a América Latina toda, sofreu ao longo da década de 1980. Se o impaís ainda não me impossibilitava por conta das possibilidades que mamãe mantinha abertas para mim, isso não quer dizer que a realidade não estivesse sendo madrasta, fosse para ela, fosse para a maioria dos brasileiros.

Minha entrada na adolescência foi contemporânea do colapso do Regime militar. A “Redemocratização”, mudança de paradigma nacional, de militar para democrático, foi o ingresso definitivo em mim de uma germinal consciência política a respeito daquilo que eu ainda chamava de meu país. Consciência todavia torpe e ingenuamente maniqueísta: o “Último Ditador”, João Baptista Figueiredo, era o mal; o “democrata” oportunista da vez, José Sarney, o bem. Os anos que se seguiram, entretanto, não deixaram dúvidas de que aquele bem era igualmente mal, ou pior. Mas, como disse Hegel, sempre começamos errando.

A euforia das “Diretas Já” de 1984 é um belo exemplo disso. Começamos com um presidente da república eleito indiretamente, Tancredo Neves, e, como se não bastasse, com a sua morte misteriosa antes mesmo da posse. De “Já”, o melhor que as “Diretas” puderam nos oferecer foi um presidente interino eleito indiretamente, José Sarney, que, se por um lado promulgou a “Constituição Cidadã” de 1988, por outro, manteve prioritários os seus interesses oligarcas, tão distantes dos interesses dos cidadãos brasileiros quanto os da ditadura militar. Só mesmo em 1989 os brasileiros tiveram oportunidade de votar diretamente para presidente.

Mas, repetindo Hegel, os começos são sempre erráticos – o acerto, se é que existe, é apenas a longa história de muitos erros. E para provar que o Brasil errou feio nesse (re)começo democrático, o povo elegeu ninguém menos que Fernando Collor, o marajá que se elegeu autodenominando-se “O caçador de marajás”, uma de suas muitas mentiras que, em parcos dois anos, tornou-se insustentável a ponto de ele ser deposto escandalosamente. Embora eu não votasse à época, foi inevitável concluir que o primeiro voto do povo depois de 25 anos de ditadura é que mereceu o impeachment.

Os “Cara pintada”, que acreditaram serem os responsáveis pela deposição de Collor – dentre os quais eu me incluía ingenuamente-, garatujavam em suas ideias um novo país, ou simplesmente um país, não obstante, sobre a tela rota do impaís que seguiu vivo pelas mãos do vice de Collor, Itamar Franco, que no seu último ano de governo, 1994, levou o país a uma inflação de 916,4%. Os “Cara pintada” desapareceram não porque seus anseios naif haviam desaparecido, mas porque as tintas verde e amarelo estavam custando os olhos da cara. A inflação incontrolável só parecia minimamente domada mediante sistemáticos cortes de zeros e mudança de nome da moeda. De 1989 a 1994 foram nove zeros e cinco nomes.

Então, na primeira eleição presidencial de que participei, na qual votei no metalúrgico sindicalista de um partido de esquerda, o Lula, o Brasil, no entanto, elegeu diretamente um doutor em sociologia de um partido de direita, Fernando Henrique Cardoso. Eleger diretamente um presidente da república, entretanto, ainda não significou que a res publica fosse diretamente do público, mas penas de parte dele – a parte que sempre foi privilegiada, diga-se de passagem. Mas o fato de durante o governo de FHC a inflação ter sido de 100% parecia um novo milagre depois dos mais de 900% do seu antecessor.

Tanto que o povo não só reelegeu FHC, como também, antes disso, aceitou passivamente que ele alterasse escusamente a Constituição para poder ser reeleito. Lula e eu mais uma vez perdemos as eleições de 1998. Nos anos que se seguiram vimos a dívida externa brasileira dobrar, e, como se tornaria vergonhoso doze anos mais tarde, nenhuma universidade federal foi aberta durante os oito anos de governo do doutor sociólogo. E isso porque o Brasil ainda era governado para que fosse nada além de um impaís.

Então, em 2002 Lula foi eleito presidente da república. Pela primeira vez, desde que me reconhecia como um cidadão brasileiro, senti-me representado. Minha passagem para a vida adulta foi contemporânea da possibilidade de o meu impaís finalmente se tornar um país. Mas como saber de antemão se ainda estávamos na hegeliana fase errática inerente aos começos? No entanto, ao longo dos dois governos do ex-metalúrgico, a inclusão social e a divisão de riqueza que teve início no país; a queda da inflação para metade do que era no governo FHC; sem dizer do pagamento da dívida externa – que antes de Lula era dita impagável; tudo isso e muito mais fazia parecer que estávamos nos aproximando da fase do acerto; que o impaís finalmente estava se tornando um país.

Só que a ventura lulista tinha duas faces: uma, populistamente publicizada, outra, sorrateiramente ocultada. Se, por um lado, começávamos a acertar, com o povo desfrutando, como nunca antes, da riqueza que ele mesmo produzia, por outro, no entanto, seguíamos errando, pois a manutenção da desigualdade persistia nos bastidores, com a velha classe dominante enriquecendo mais com Lula do que com seu antecessor de direita, FHC. Ao contrário do que eu pensei por muito tempo, o Brasil de Lula não deixou de ser um impaís para tornar-se um país: era os dois ao mesmo tempo.

Sem dizer que a ventura econômica que o país/impaís experimentou durante o governo Lula cobrou um preço altíssimo: se, aqui, enchia os brasileiros de eletrodomésticos, viagens ao exterior e “carrinhos do ano” – como repetia o ex-metalúrgico -, ali, fazia esquecer completamente a necessidade de o povo educar-se politicamente. O brasileiro se alienou mais ainda de sua historicamente precária politização porque confiou cegamente que o Pai Lula faria todo o trabalho. Hegel sussurra no meu ouvido que essa é a pior fase: aquela na qual erramos dramaticamente, todavia, iludidos de que estamos acertando.

Em 2010, Dilma Rousseff não foi eleita pelo povo e pelas elites senão para manter o desigual enriquecimento geral da nação – os pobres, desejando subir mais um degrau na escala social; e os ricos, planejando ascender mais ainda, e de elevador panorâmico. Só que, enquanto isso, a crise internacional crescia e imigrava clandestinamente para o Brasil. Quando, porém, a queda do valor dos commodities finalmente golpeou o Brasil em cheio, e o enriquecimento dos ricos foi afetado primeiramente – e isso para que o mínimo de autonomia econômica que o povo havia conquistado fosse preservado -, as até então silenciosas elites gritaram e golpearam o misto de país e impaís que vínhamos sendo, entretanto, para restabelecerem o impaís que beneficia somente a elas.

Hoje, em 2017, o povo é vítima de um governo golpista, corrupto não só por ter forjado um “crime de responsabilidade” inexistente com o qual depuseram Dilma – antes fosse! -, mas corrupto estrutural e descaradamente. O impaís que agora tempos abusa de sua impopularidade para reverter rapidamente a divisão de renda e a inclusão social que os governos do PT conseguiram realizar. Em poucos meses, o golpe já comprometeu profundamente os 20 próximos anos de educação e de saúde do povo; o mesmo estando para acontecer com a Previdência Social; sem dizer das imediatas privatizações que espoliam criminosamente a res publica.

Nasci e cresci em um impaís, ao qual, infelizmente, estou de volta na maturidade, depois de uma breve experiência na qual o meu impaís metamoforseava-se em país. Todavia, muito antes da metamorfose se completar, os ratos golpistas da velha elite devoraram a borboleta em cadeia nacional.

Para concluir prestando contas a Hegel, sou obrigado a reconhecer que, em matéria de país, estamos demasiadamente no começo. Basta olhar a quantidade de erros; seja os do povo, elegendo péssimos representantes, como no emblemático caso de Collor; seja principalmente os da elite, deselegendo anticonstitucionalmente os representantes do povo assim que estes não privilegiam os seus interesses. Não obstante, se essa nacional história de erros servir ao menos para construir um acerto logo mais adiante – como Hegel defende – o meu impaís quiçá possa ser chamado de país. Oxalá essa história errática seja mais breve do que eu.

Entre a Cruz e a Revolução

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Se a classe dominante brasileira está, como se diz, “livre, leve e solta”, fazendo a sua “festa da opressão” sobre a classe dominada, isso se dá exatamente por quê? Antes de responder, vale lembrar que, marxianamente falando, a sociedade é o resultado da luta entre as classes dominante e dominada; e que, sob uma lente maquiaveliana, essa luta – que nas palavras do italiano é dita entre grandes e povo – é amoral, ou seja, não há nada de errado nem de mau no fato de qualquer uma das classes obter vitória sobre a outra, afinal, trata-se apenas do sempiterno jogo de forças que, para os dois filósofos, constitui o socius.

Apontadas essas ideias, recoloco a pergunta inicial em outros termos: o que a classe dominante brasileira está fazendo suficientemente, dentro da luta substantiva, para obter tamanha ventura, ou, o que é o mesmo, o que a classe dominada não está fazendo suficientemente, dentro dessa mesma luta, para padecer de sua atual desventura?

A ideia de suficiência, assaz apropriada à luta política, é trazida aqui por conta de uma conclusão teológica de Slavoj Žižek, qual seja: a de que “não fomos cristãos o suficiente. A digressão à religião em uma linha de raciocínio que se quer política, e ademais de cunho prático, pode parecer estapafúrdia, sobretudo depois de termos chamado à discussão tanto o materialismo de Marx segundo o qual “A religião é o ópio do povo”, quanto o amoralismo de Maquiavel que tirou Deus do comando das coisas humanas. Todavia, se, por um lado, desvios nos afastam da meta, por outro, servem para que possamos analisar os caminhos principais de uma outra perspectiva.

O que, então, Žižek quer provocar apontando a nossa insuficiência cristã? Aonde chegaremos trazendo à tona o apontamento do filósofo na compreensão da presente relação entre as classes dominante e dominada no Brasil, uma vez que o objetivo aqui é entender melhor como a classe dominada deve lutar para ser suficientemente vitoriosa frente à classe dominante? Comecemos entendendo a proposta político-teológica de Žižek.

Como é tácito, cristianismo, judaísmo e islamismo são as três grandes religiões monoteístas. Entretanto, diferentemente das duas últimas, somente na cristã, coloca Žižek, Deus não é transcendente. Não exatamente porque Ele viva no mundo, ou seja o mundo, mas, antes, porque Deus é morto: morreu na cruz, através da morte do corpo mundano de seu filho, Jesus Cristo.

Antes de prosseguir, é preciso frear aqueles que vociferam que as histórias da Bíblia são apenas estórias. Žižek sustenta que é preciso deixar de lado a necessidade de provas empíricas da passagem de Cristo na terra e se ater à estória mesma, pois foi ela que moveu o mundo durante séculos – sé é que ainda não move -, e, ademais, com imensa potência. Potência essa que o filósofo pretende ressignificar em prol da revolução. Aos laicos de plantão, sugiro uma imagem convidativa: uma cruz, todavia formada pela classe dominante enquanto seu eixo vertical, e pela classe dominada enquanto seu eixo horizontal; e no centro, no exato encontro das duas, a luta entre os eixos contraditórios, o locus excelente da Revolução.

Voltando à Žižek, a morte de Deus da qual o filósofo parte é a mais banal de todas, ou seja, aquela contada na Bíblia, na qual Ele, encarnado em Cristo, foi crucificado e morto mundanamente. Essa banalidade não obstante se torna grave quando compreendemos que em nenhuma outra religião Deus teve tal experiência. O Deus cristão, de fato, foi o único que, em determinado momento de sua existência eternal, percebeu que Lhe faltava certas coisas para ser absolutamente onisciente. Para ser Deus de verdade, Ele precisava ainda: ser carne; apaixonar-se; e, por fim, morrer. Mas morrer de verdade! Afinal, um Deus que se preze precisa de experiências absolutas, e não de simulacros.

Comparados a esse Deus, os das demais religiões são deuses entre aspas; pseudo-oniscientes; conhecem o mundo em teoria; não como o Deus cristão que antes de morrer o conheceu também na prática. Para Žižek, quando Cristo na cruz diz a Deus: “Pai, por que me abandonaste?” – relembrando que Cristo é Deus encarnado -, o que devemos entender é que o próprio Deus reconhece, ali, que Ele mesmo não existe mais; que Deus perdeu a divindade ao descer à Terra. Por isso Cristo morre, pois não há mais Pai onipotente algum para salvá-lo. Cristo/Deus teve, na prática, o conhecimento do que é ser mundano. Foi absolutamente Deus na hora exata em que deixou de sê-lo.

“Mas na Bíblia consta que Ele ressuscitou no terceiro dia e depois subiu aos céus novamente” – dirão alguns. Recusemo-nos a isso e teremos a melhor parte da estória, sem dizer a mais eficaz contribuição teológica à revolução. Na teologia de Žižek, Deus não reascendeu ao seu velho posto transcendente depois de morrer. O que houve foi o surgimento do Espírito Santo, ou seja, a Comunidade dos Fiéis. O Espírito Santo é nada além disso: a comunidade de homens e mulheres que restaram órfãos no universo depois da morte de Deus; comunidade que, entretanto, deve se dar conforme a mensagem que Ele transmitiu enquanto foi homem e soube o que era ser humano. Não uma abstrata, e por isso suspeita mensagem de Deus aos homens, mas, em troca, a concreta mensagem de um homem – o homem – aos demais.

Uma bela metáfora da orfandade de Cristo pode ser vista no filme “Últimos Dias no Deserto”, do diretor colombiano Rodrigo García. Cristo (Ewan McGregor), do alto da cruz e da profundidade do sofrimento e da falibilidade de que a carne é capaz, espera a resposta à sua última e, redundantemente, crucial pergunta: “Pai, por que me abandonaste?”. Procura no céu algum sinal que, todavia não vem. De repente, diante de seus olhos surge um beija-flor furta-cor, espetacular como só a natureza. E é justamente nesse momento que Cristo desiste da resposta pela qual espera. Não porque o belo pássaro fosse Deus-Pai dizendo-lhe algo, mas, antes, porque era a prova de que Deus não existia, e por isso nada faria. Ali surge a certeza de que única coisa que há é a condição humana e a natureza. Nada mais. Então Deus morre em paz.

A aceitação dessa teologia que prega a não existência de Deus depois de Sua morte na cruz, mas somente a do Espírito Santo, isto é, a da Comunidade de Fiéis, é revolucionariamente virtuosa porque ensina aos homens e mulheres que, em relação às suas realizações, eles estão absolutamente sozinhos no universo; que a melhor coisa que podem fazer é viver em comunidade, porém, conforme os ensinamentos que Deus proferiu durante a sua única e fugaz estada no mundo. E se somos universalmente órfãos, manter o mundo como está ou revolucioná-lo depende inteira e exclusivamente de nós, homens e mulheres.

A revolução tem sua raiz no Espírito Santo cristão assim como “comunidade”, e outrossim “comunismo”, têm suas raízes no “comum”. Se não percebemos isso, é porque, repete Žižek, “não fomos cristãos o suficiente”. O verdadeiro cristão é mais comunista do que pensa a nossa vã filosofia política. Se quisermos ser mais oportunos, os Mandamentos cristãos podem sim ser encarados como espécie de arché do Manifesto Comunista

O Primeiro Mandamento, “Amar a Deus sobre todas as coisas”, entendido enquanto “respeitemos uns aos outros”; “a todos sirvamos”; “a ninguém excluamos”, porventura é alienígena ao comunismo? E o Terceiro, “Guardar domingos e feriados”, é o que senão o respeito ao descanso e à liberdade do trabalhador? Já o Sétimo, “Não roubar”, levado à cabo, não poria fim à mais-valia capitalista que rouba metade ou mais do valor do trabalho das pessoas? Para terminar, o Décimo Mandamento: “Não cobiçar as coisas alheias”, mutatis mutandis, não é a máxima comunista, “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, popularizada por Marx?

Ser comunista e ser cristão se equivalem na medida em que uma comunidade, uma sociedade cujos integrantes praticam e desfrutam de determinações como as acima citadas não pode ser constituída por ninguém além de nós, homens e mulheres, pois não há Deus bondoso todo-poderoso, nem tampouco teleologia histórica, capazes de fazer isso por nós. Deus está morto! A história somos nós que a fazemos. Mas porque está sendo dito tudo isso se o objetivo é fortalecer a classe dominada na sua luta política contra a classe dominante?

Ora, se, como foi colocado no início, a classe dominada brasileira só está desventurada porque não está lutando suficientemente contra a classe dominante, talvez essa desventura se dê porque ela ainda espere que alguém ou alguma coisa externos à luta a salve; lute por ela; com ela. Se, em vez disso, a classe dominada tivesse a sólida certeza de que nada nem ninguém além dela mesma lhe fortalecerá no conflito que constitui a sociedade, a Comunidade, em suma, o Espírito Santo, talvez assim se apassivasse menos diante dos desafios sociais nos quais está imersa.

Talvez seja o caso de a classe dominada prestar atenção na práxis teológico-política da classe dominante. Por mais que esta encha a boca com o nome de Deus, ela na verdade sabe que sua ventura depende exclusivamente de si. Talvez por isso, historicamente, tenha saído vitoriosa na sempiterna luta social. Seria muito proveitoso se a classe dominada entendesse que Deus, por estar morto, não tem como interferir nos assuntos humanos; que a sua ventura terrena depende somente de si.

No entanto, a ideia de providência externa ainda ocupa, e por isso mesmo enfraquece, a classe dominada. Seja a providência divina, como no caso extremo dos cristãos evangélicos pentecostais, que creem que é Deus que faz desde o fiel passar no vestibular, até o ônibus vir na hora certa; seja ainda a providência da própria classe dominante que lhe antagoniza. E a prova disso é a constante preferência da classe dominada por “salvadores” da classe dominante, tais como João Dória e Donald Trump.

Não! Deus está morto desde antes de sua estória angariar um mundo de fiéis. Não! Ninguém da classe dominante salvará a classe dominada, e isso porque eles não acreditam em salvação, mas somente na luta mundana para fazer valer seus interesses outrossim mundanos. A fraqueza do próprio comunismo até aqui, dizem lucidamente muitos críticos, está em crer que a revolução dependa da contribuição de intelectuais engajados na luta proletária. Mas até aqui a intelectualidade ainda é a classe dominante. Outro vilão do comunismo foi a burocracia, espécie de terceiro elemento que, por estar entre as classes dominante e dominada, não é classe nenhuma, e, não estando na luta, não pode lutar pela classe dominada.

Quão difícil é a classe dominada aceitar que ela está só, sem ninguém além dela mesma que faça valer seus anseios, e o que é pior, inescapavelmente envolvida em uma luta contra um adversário imperioso? A órfã Comunidade dos Fiéis ainda quer ser adotada! Sua espera no orfanato social, no entanto, apenas lhe deixa à mercê de pais adotivos que serão, ou da classe dominante, ou deuses zumbis, ou ainda anjos burocráticos caídos. Sofrer a orfandade universal absolutamente; encarnar a angústia inerente à ideia de que o presente e o futuro dependem exclusivamente dela: eis o trauma/desafio que a classe dominada deve enfrentar para ser páreo suficiente na luta política na qual ainda é dominada.

Quando Žižek afirma que “não fomos cristão o suficiente”, devemos entender o seguinte: não acreditamos suficientemente na Comunidade de Fiéis, a única coisa que restou no universo para homens e mulheres depois que Deus (a ideia de providência externa por excelência) morreu na cruz. A teologia política de Žižek foi insistida até aqui porque o meu objetivo é concluir que a classe dominada deve, revolucionando a terra de suas crenças e trazendo à superfície as raízes cristãs que nela apodrecem esquecidas, entender finalmente que “Comunidade de Fiéis” outra coisa não é senão “Fidelidade ao Comum”. Isso, todavia, não é a Revolução per se, mas uma orientação fundamental a ela.

A eleição da vulgaridade

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Um dos maiores talentos de Donald Trump, presidente eleito dos Estados Unidos, é a sua capacidade de ser criticado. Há poucos dias, a atriz Meryl Streep o criticou em uma famosa premiação cinematográfica. A plateia que a assistia ao vivo e os Trump-haters de todo o mundo aplaudiram-na. Todavia, quase a mesma quantidade de gente – eleitores norte-americanos e admiradores Worldwide do futuro presidente – rechaçaram-na. Até aí tudo bem, afinal, oposição de opiniões cai muito bem à democracia. Porém, como não podia deixar de ser, o ato mais criticável de todos a respeito do ocorrido no Globo de Ouro foi mesmo o de Trump.

Poucas horas depois, o topetudo já respondia, pelo Twitter, à crítica de Streep dizendo, entre outras pós-verdades, que ela é uma “atriz superestimada” e “lacaia de Hillary”. Como dito no início, a capacidade de Trump de ser criticado é imensa, porém, a sua aptidão para receber críticas é inexistente. Ele, ao contrário, orgulha-se de ser do tipo que “não leva desaforo para casa” e, mais ainda, esforça-se para que os “desaforados” recebam desaforos ainda mais pungentes. Agora, em se tratando de alguém que pretende ocupar o cargo político de maior poder no mundo, ser refratário à dissonância a esse ponto é postura que, além de extremamente perigosa, é lamentavelmente patética.

No seriado “The Young Pope”, dirigido pelo grande Sorrentino e protagonizado pelo delicioso Jude Law, o Jovem Papa Pio XIII, tão controverso quanto diabólico, é acusado publicamente de heresia e ameaçado de deposição devido ao teor de cartas de amor escritas na adolescência. Para protegê-lo, a assessora de imprensa do Vaticano exige dele que declare, também publicamente, que não é um herege. O papa, entretanto, responde perspicuamente: “Se não sou herege, por que eu deveria declarar que não sou? Defender-me apenas levantará suspeitas… A melhor coisa a fazer é ignorar a acusação e a ameaça”. No final das contas, as cartas são divulgadas e, para a decepção dos inimigos do Jovem Papa, o mundo se apaixona ainda mais pelo Vigário de Cristo na terra, afinal, a maioria das pessoas se compraz com o amor. Só não percebe isso que não o tem em si.

Trump seria incapaz da segurança e da fineza do Papa ficcional, seja porque aquilo de que lhe acusam ser verdadeiro, e o que é pior, corroborável por vídeos do Youtube, seja principalmente por ser incapaz de resistir às críticas que recebe. Se lembrarmos do que disse Nietzsche em algum lugar, que “toda vulgaridade vem da incapacidade de resistir a uma solicitação”, o mais adequado predicado para o bilionário quase presidente é: vulgar!

Do latim vulgaris – derivação de vulgus (multidão) -, “vulgar” é aquilo que é usado pelo povo e não possui quaisquer traços de nobreza ou distinção. Com efeito, Trump reage às críticas que recebe como se fosse um de seus patéticos eleitores homens brancos de classe média e sem formação superior. Só que, afora sua raça, ele é rico desde a infância – um biógrafo seu conta que, na adolescência, Trump vendia jornais no seu bairro levado pelo seu chofer -, e, além disso, o magnata é diplomado em economia pela quarta melhor universidade dos EUA. Trump não é vulgar fortuitamente, por falta de opção, mas deliberadamente, o que o sobrevulgariza.

Recentemente, intrometendo-se, com sua inconveniência habitual, na delicada diplomacia EUA-Israel, Trump vomita mais um tweet impertinente, desta vez dizendo para Netanyahu: “Mantenha-se forte! 20 de janeiro [data de sua posse] está chegando”. Não obstante o fato de o ordinário Trump não ter sido eleito pelo voto popular, mas indiretamente pelos ardis do suspeitíssimo sistema eleitoral norte-americano, ele ainda por cima não respeita a presidência oficial do seu próprio país.

E o que dizer do polêmico caso político/amoroso/tweetico entre Trump e Putin? Agências de inteligência dos EUA dizem, e até mesmo os próprios colegas republicanos de Trump confirmam, que Putin ordenou espionagem hacker nas eleições norte-americanas para favorecer Trump e desacreditar Hillary. E o que é mais grave de tudo, Trump será empossado mesmo assim, pois nem mesmo a paranoia anti-espionagem dos extremamente paranoicos sobrinhos do Tio Sam parece ter mais poder do que as intempestividades tweeticas de Trump. A mensagem descarada do bilionário a Putin – na verdade, cinicamente endereçada ao povo americano e ao mundo – foi a seguinte: “Junte-se ao nosso time para fazer a tirania grande novamente. Será enorme”.

Convenhamos, o que foi eleito nas últimas eleições norte-americanas não foi um presidente, mas um representante legítimo do antipolitismo, da falta de diplomacia, da vulgaridade. Cereja tirânica do bolo tweetico de Trump: “Quem se importa com a Constituição?”. Ora, se o próximo presidente dos EUA não se importa com a lei, nem tampouco com a civilidade, o que na verdade foi eleito pelo “país mais poderoso do planeta” foi a barbárie. Quase metade dos eleitores, mais o sistema político norte-americano, escolheram a barbárie em detrimento da civilização! Paradoxal é o fato de, hoje, a barbárie poder ser acompanhada pelo Twitter, uma das maiores sofisticações da civilização. Afinal… It´s Trump times, folks!

Bestas sacrificiais

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“Não pense em crise. Trabalhe!”, diz a classe dominante golpista aos brasileiros. O que querem que engulamos a seco, contudo, é uma dura verdade: o sacrifício que estão (re)impondo ao povo não tem nada a ver com crise mesmo, como se se tratasse de uma dificuldade presente a ser superada. Querem apenas a radicalização da velha realidade sacrificial na qual a classe dominada trabalha única e exclusivamente para enriquecer e privilegiar ainda mais os já muito ricos e privilegiados. A novidade está em que, hoje, isso se dá sobre as cinzas da utopia de “igualdade social” que certas ideologias de esquerda tentaram tornar reais.

Entretanto, para quem ainda se recusa a aceitar essa desigual realidade, na qual umas pessoas são sacrificadas em função de outras (os pobres, em prol dos ricos; os proletários, em benefício dos burgueses etc.); para quem acha que, se as coisas infelizmente ainda são assim, essa história deve ser mudada, isto é, que devemos evoluir socialmente; proponho atravessar uma ideia do liberalíssimo filósofo alemão Immanuel Kant, presente no seu texto “Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita”, que diz o seguinte: a evolução é algo que concerne somente à espécie, e não aos seus indivíduos.

A hipótese do filósofo, obviamente, engloba todos os indivíduos de uma espécie. No caso da humana, indiscriminadamente ricos e pobres, proletários e burgueses, dominados e dominantes, etc. Para Kant, todos somos indivíduos de menor, insignignificante importância a construir, sacrificialmente, com nosso sangue, vida e histórias particulares, uma história muito maior, a da espécie humana, cuja finalidade, no entanto, desconhecemos, seja por nossa individual finitude temporal, seja principalmente por nossa ignorância em respeito ao plano da natureza que a tudo e a todos engloba.

Agora, se todos nós, humanos, somos nada mais que vítimas sacrificiais da “História Universal”, por que, além disso, a maioria de nós, a classe dominada, ainda é sacrificada pela minoria, a classe dominante? Por que o sobressacrifício? Será por que essa minoria até aqui dominante pensa que é a protagonista da grande História Universal, em função da qual todo resto – a classe dominada – deve ser sacrificada? Muito provavelmente sim. Todavia, mutatis mutandis, não foi exatamente isso que fez Marx ao eleger o proletariado enquanto o agente excelente e personagem principal da história humana, na qual era a burguesia a besta a ser sacrificada?

Mesmo que, como disse Kant, a grande história do universo não seja a nossa, mas a da natureza, ao menos podemos ler nesse subcapítulo confuso que somos que todos nós, ricos e pobres, dominantes e dominados etc., queremos uma única coisa: ser o centro em torno do qual a verdadeira história se dá. O problema é que, para tal, uns tenham de ser sacrificados; talvez para que o restante possa se alienar da verdade mais cruel, qual seja, que todos seremos sacrificados em função da história universal. Sacrificar alguns promete – todavia mentirosamente – espécie de coprotagonismo na grande história do universo.

Dentro dessa lógica, se, além do inalienável sacrifício ao qual todos estamos sujeitos dentro da História Universal, nossa pequena e impertinente glória subcapitular é sacrificarmos uns aos outros, cabe a pergunta: é melhor que a minoria (os ricos, a burguesia, etc.) seja sacrificada em função da maioria (os pobres, o proletariado, etc.), ou o contrário? Porventura não está nessa resposta a diferença entre esquerda e direita? Se sim, não seria a direita o agente anti-histórico por natureza, uma vez que seu intuito é manter as coisas como sempre foram, isto é, a minoria dominando a maioria? E a esquerda, por sua vez, cujo objetivo é mudar esse fato, não é, como diria Marx, o único agente histórico dentro da pequena história humana?

Ora, o objetivo de uma verdadeira esquerda deve ser o fim da sociedade de classes, isto é, o fim da dominação de uns por outros. Só assim será possível evoluirmos a uma realidade social onde nenhumas pessoas sacrifiquem outras, uma sociedade na qual nem mesmo o proletariado domine a burguesia, mas haja somente povo. E uma realidade na qual todos se “sacrifiquem”, melhor dizendo, sejam “sacrificados” igualmente já não é razão suficiente para que a “história” da direita seja sacrificada em função “história” da esquerda.

Se, como dito antes, a direita não quer fazer história, mas apenas manter as coisas como sempre foram, isto é, manter a dominação da minoria sobre a maioria, o desejo da esquerda de acabar com a sociedade de classes, de pôr fim à dominação de uns por outros, para que doravante haja somente uma sociedade igualitária, quer por sua vez também espécie de fim da história. A diferença entre elas, entretanto, está precisamente em um único e decisivo passo, qual seja, o fim da dominação de classe: a direita, evitando com unhas e dentes essa evolução; e a esquerda, fazendo o que pode para realizá-la.

Kant foi trazido aqui para lembrar-nos de que uma existência humana completamente livre de sacrifícios é impossível, uma vez que a história principal na qual estamos temporariamente imersos não é a nossa, mas a da natureza; em função da qual todos os indivíduos são inescapavelmente sacrificados. A presença de Marx, em troca, é fundamental porque nos informa que esse sacrifício pode e deve ser mitigado, mas isso somente se for igualitariamente democratizado, a ponto de as pessoas não sacrificarem-se umas às outras dentro do grande espetáculo sacrificial que é a História Universal.

Marx propõe a melhor “política de redução de danos” ao capítulo humano dentro da História Universal kantiana. Para os que acham que a dominação de uns sobre outros é capítulo que deve ser superado, essa é a política. Já àqueles que, em troca, impõem à maioria das pessoas que apenas trabalhe para privilegiá-los mais ainda, e, ademais, sem pensar que isso se trata da mais candente crise humana, a solução marxista é uma ameaça absoluta. E isso porque faz com que o inevitável sacrifício humano dentro da História Universal kantiana seja de fato comum a todos, e não recrudescido à maioria para que à minoria ele seja amenizado. Só assim o fatal sacrifício humano dentro da História Universal será menos sacrificial. Sacrificados, sim, mas pelo universo; não bestas sacrificiais de nós mesmos.

A Revolução na era dos “pós”, ou… acho que vi um proletariozinho!

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Hoje em dia, as esquerdas estão miseravelmente enfraquecidas. A revolução socialista que elas deveriam empreender, parece mais utópica que nunca. Culpar a vigorosa rea(scen)ção das direitas, no entanto, só aumenta a miséria das esquerdas, por mais que a fraqueza destas interesse àquelas. O atual tsunami reacionário, ao contrário, deveria estimular mais os seus antagonistas de esquerda. Contudo, a presença deles na pecha política mais parece ausência.

Mas as esquerdas não estão exatamente ausentes… Elas andam por aí, perambulando pelos parlatórios do mundo, todavia em modo zumbi. Zumbis que sobrevivem de hashtags. Que vida real, entretanto, está faltando às esquerdas para que, em vez de apenas reagirem pateticamente feito mortas-vivas, ajam virtuosamente contra a direita? Quem ou o que é a vida das esquerdas?

Marxianamente falando, a nossa sociedade capitalista é composta pela luta antagônica entre burguesia e proletariado. Estes, organizados politicamente, são a direita e esquerda, respectivamente. Assim como a vida da direita pulsa no peito da burguesia, assim também a vida da esquerda pulsa no peito do proletário – ou pelo menos deveria. Se hoje as esquerdas estão, como dito acima, zumbis, isso se deve a alguma “parada cardíaca” do próprio proletariado. Antes de desfibrilá-lo, talvez devamos recordar quem  ele é.

Dito de modo comezinho, o proletário é um trabalhador. Uma definição mais sofisticada, todavia, dirá que o proletário é o trabalhador que sabe que é ele o agente da sua revolução social. Melhor ainda é a distinção que Marx faz entre a classe trabalhadora, uma categoria social objetiva oposta à burguesia, e o proletariado, o portador de uma posição subjetiva que corporifica a singularidade da estrutura social como classe universal.

Agora, se, por um lado, o agente da revolução socialista é o trabalhador conscientizado de sua singularidade, e, por outro, há trabalhadores pelo mundo todo, a ausência pela qual estávamos procurando só pode ser a da consciência proletária nos trabalhadores. Existem trabalhadores; sobram razões para a revolução; o que falta é a conscientização política deles; sua proletarização. O que está impedindo esse processo?

Dando um passo atrás, há espécie de desidentificação, de preconceito dos sujeitos “pós-modernos” com a condição de trabalhadores. A jocosidade do filósofo Slavoj Žižek coloca isso em uma frase provocativa: “Na perspectiva ideológica de hoje, o próprio trabalho, não o sexo, aparece como o locus de indecência obscena a ser escondido do olhar do público”. E se o próprio trabalho é algo vergonhoso, imagine-se a proletarização.

As novas formas do trabalho na era chamada pós-industrial dão oportunidade para os trabalhadores não mais se reconhecerem como tais. Designers e programadores computacionais, personal trainers e hair stylists, doutores acadêmicos e curadores de arte, entre tantas outras novas modalidades de trabalho, resistem em se subjetivarem como trabalhadores, mesmo que a maioria deles tenha jornadas de trabalho extenuantes e seja explora como operários de fábrica.

E qual o preço que pagam por isso? Em primeiro lugar, o de sua despolitização dentro do verdadeiro antagonismo social, pois sem a inicial identificação de quem trabalha com a sua condição de trabalhador; em seguida com a de proletário; e finalmente com a de uma força de esquerda que represente seus interesses, não há potência política que faça frente a direita. Esta, ao contrário, é politizada até os dentes, e isso porque o burguês se identifica, mais ainda, orgulha-se de sua condição social.

Ao contrário do que os “pós-trabalhadores” de hoje creem, o desinvestimento no papel de trabalhador, mais ainda no de proletário, não lhes oferece mais ou nova liberdade. Em troca, esconde deles a velha sujeição de que nunca se libertaram. Nas palavras dramáticas de Žižek, “a tradição na qual o trabalho é subterrâneo, sendo realizado em cavernas escuras, culmina em nossos dias na ‘invisibilidade’ dos milhões de trabalhadores anônimos que suam em fábricas do Terceiro Mundo”.

Com efeito, a pós-modernidade pós-verdadeira tagarela histericamente que, “a classe trabalhadora está desaparecendo”, mesmo que, adverte Žižek, essa classe seja facilmente identificável no mundo de mercadorias que consumimos. Na letra do autor, “tudo o que temos de fazer é olhar a etiquetazinha que diz: ‘Made in… (China, Indonésia, Bangladesh, Guatemala)’A China merece inteiramente a alcunha de ‘Estado de trabalhadores’: é o estado da classe trabalhadora para o capital norte-americano”, por exemplo.

O trabalho imaterial virtual dos nossos dias mente muito bem que não é trabalho. No entanto, por trás de toda mentira há uma verdade foracluída. E o que se esconde por trás dessa pós-verdade pós-moderna pós-industrial? Que os “pós-trabalhadores virtuais” do Primeiro Mundo, no final das contas, pertencem à mesma classe que a dos milhões de trabalhadores “reais” das fábricas do Terceiro Mundo. A diferença é que aqueles são alienados disso, enquanto estes, não. Os “pós-trabalhadores”, da perspectiva política, estão muito aquém dos proletários. Doce paradoxo: o “pós” que na verdade é “pré”.

Se muitos trabalhadores não se reconhecem como tal, temos aí uma “divisão de classe” dentro da mesma classe, ao molde da velha divisão burguesa entre classes média e baixa, cuja estratégia obscena é borrar a substantiva e cruel divisão social entre classes dominante e dominada. Assim como a classe média, os “pós-trabalhadores” apenas se alienam do fato concreto de que são classe dominada.

E quando a classe singular que é a razão de ser da esquerda separa-se de si mesma, cinde-se em duas, criando um novo e impertinente antagonismo dentro do velho, ambas as partes cindidas perdem potência política diante do real oponente social, a classe dominante, que com o oponente dispersado apenas se fortalece. A esquerda, nessa guerra interna entre suas próprias células, algo como um câncer político, enquanto não morre, sobrevive feito zumbi.

Nesse pseudoantagonismo entre “pós-trabalhadores” e trabalhadores “reais”, a desvalorização do trabalho humano real resulta em um real trabalho de desvalorização da própria humanidade. Visto que o objetivo da revolução socialista é eliminar a sociedade de classes, não restando nem mesmo a classe trabalhadora no final, mas apenas povo, a resistência à proletarização, e em suma à revolução é, a priori, espécie de ojeriza à horizontalidade entre as pessoas. Que a classe dominante pense assim, vá lá. Agora, a dominada, o que ganha com isso?

O trabalhador que não se reconhece como tal, é esvaziado de sua substância social, algo como o a cerveja sem álcool, o chocolate sem açúcar, o leite sem gordura – para usar a recorrente provocação de Žižek. Mais grave ainda, o trabalhador que não se reconhecer como proletário é como o sujeito que faz um pacto com o diabo e em seguida se esquece de que o preço a ser pago é maior do que o benefício; que será cobrado impreterivelmente – e em se tratando de um diabo capitalista, com juros impagáveis!

Žižek critica a sociedade “pós-moderna” como aquela na qual “compro meu preparo físico indo a academias de ginástica; compro minha iluminação espiritual ao me matricular em cursos de meditação transcendental”, etc.. Podemos na sequência criticar a sociedade “pós-industrial” e a ideologia do “pós-trabalho” como aquelas nas quais “compra-se” a experiência “pós-proletária” ao se alienar deliberadamente da potência política singular que a condição de trabalhador confere.

Novamente: o que o “pós-trabalhador” perde com isso? O filósofo Claude Lefort relembra que o resultado de 150 anos de luta dos trabalhadores incorporou na sociedade demandas que eram ridicularizadas pela direita há cem anos, tais como o sufrágio universal, a educação gratuita, o sistema de saúde público, a assistência aos idosos, as restrições ao trabalho infantil, entre tantas outras. A própria participação democrática popular de hoje, aponta Lefort, é resultado da luta da classe trabalhadora. Ou alguém acha que é dádiva da classe burguesa dominante?

Por isso é fundamental o trabalhador se reconhecer como tal. Só assim descobre a força política que tem, mas isso só ao se proletarizar verdadeiramente; ao engrossar com sua consciência social o sangue da esquerda. “A tarefa urgente”, insiste Žižek, “é, mais uma vez, repetir a ‘crítica da economia política’ de Marx, sem sucumbir à tentação das múltiplas ideologias que há nas sociedades pós-industriais”. Quem trabalha é trabalhador; e para não ser eternamente explorado, deve se proletarizar; só assim haverá força política para lutar, quiçá vencer os seus opressores.

Žižek repete Hegel dizendo que “todos os eventos históricos têm de acontecer duas vezes”. Talvez seja a hora de os trabalhadores se proletarizarem novamente, ou seja, repolitizarem-se. Do contrário, a luta política é esquecida, e no lugar dela vinga não o vazio, mas uma “pós-política” burra onde a economia domina, com o “pós-proletário” “votando” cotidianamente na classe que o domina ao comprar seus iPhones, TVs de plasma, conexões com a internet, passagens aéreas à Machu Picchu, etc.

A histeria dos “pós” mantém não só os trabalhadores, mas a esquerda toda numa “pós-vida”: zumbi. Mas a dimensão política do proletariado não está morta, apenas em coma. Para reanimá-la, insiste Žižek, “a primeira coisa a se fazer é aprender a decodificar o modo pelo qual o conflito básico continua a funcionar como ponto de referência secreto dos antagonismos aparentemente ‘apolíticos’”. É essa realidade apagada, travestida, que, se esclarecida, assumida, pode fazer com que o trabalhador se reconheça como tal, encarne o seu papel social singular de proletário, constitua uma esquerda virtuosa, e seja o agente de sua própria revolução.

Por isso, no lugar de os trabalhadores, cindidos em “pós-trabalhadores” e trabalhadores “reais”, desaparecerem com sua própria classe, e inclusive como coloca Žižek, “em vez de procurarmos a classe trabalhadora que desaparece, deveríamos, em vez disso, perguntar: hoje em dia, quem ocupa, quem consegue tornar subjetiva, a posição de proletário?” Essa potencialidade, sem dúvida, está em todos aqueles que, independentemente das pós-verdades que digam a si mesmos, não se enquadrem na classe dominante.

Como, entretanto, saber isso hoje em dia, tempos nos quais ser dono de um restaurante ou ator de novela, por exemplo, leva muitos a crerem que são classe dominante? Uma simples pergunta basta: eu e os meus iguais podemos mudar a realidade social conforme os nossos anseios? Se a resposta for não, violà, você é classe dominada; trabalha para a classe dominante. Todavia, será menos dominado à medida que se proletarizar.

Apesar de subterranizados ideologicamente, trabalhadores com potencial político cobrem o mundo. Só não se reconhecem como tal por conta da forte neblina amorfizante do “capitalismo pós-industrial”. No entanto, mesmo que ainda preso na gaiola da classe dominante, qualquer trabalhador pode procurar ao seu redor e, parafraseando o Piu-piu quando vê o Frajola, dizer a si mesmo: “Acho que vi um proletariozinho!”. Só que em vez de temê-lo, ou achar que se trata de um fantasma do passado, junte-se a ele. O proletário é a realidade que permaneceu real em meio a tantos “pós” de realidade duvidosa.

Feliz “Not All”

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Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil (29/08/2016

Tem um momento de extrema e simples verdade em meio à pós-verdadeirice vigarista de 2016. Quando foi vazado o áudio de uma conversa telefônica grampeada ilegalmente entre o ex-presidente Lula e a até então presidenta Dilma, um pouco antes de ela ser deposta, e na iminência de ele ser preso, Lula, ao saudar a companheira de partido e sucessora, disse: “Oi, querida. Tudo bem?”. Uma pausa de Dilma, tão grave quanto ela. Então ela responde: “Não, Lula, não tá, né? Não tá tudo bem não!”. Afirmação que, obviamente, o ex-metalúrgico não teve como negar. “É, é…” – concordou ele quase que envergonhado.

O subtexto da búlgara guerrilheira no seu repreensivo, porém curto silêncio provavelmente foi: “Que papo é esse de tudo bem, mané? Tu tá prestes a ser preso; eu, deposta; e o Brasil, a cair de novo nas mãos da velha oligarquia; e tu me vem com esse papo de tudo bem?”. E não é que ela estava certa? Pelo menos para ela as coisas não estavam bem, uma vez que, como se diz, não terminaram bem. Para Lula, as cartas ainda estão na mesa. Mas os prognósticos não são muito alentadores…

No ano da pós-verdade, pelo menos segundo o Dicionário Oxford, mas que, sem papas na língua, no Brasil foi o ano da pró-mentira-deslavada, a repreensão de Dilma à alienação retórica de Lula ao telefone foi um ponto fora da curva de grande valor. E talvez esse átimo de diálogo vazado da ex-presidenta tenha sido não somente prova da capacidade dela de enfrentar a realidade sem subterfúgios, como também extremamente simbólico em relação à postura dela diante daqueles que a golpearam.

Todos os que queriam que Dilma enfiasse goela abaixo do povo aquilo que depois do golpe chamou-se “Uma Ponte para o Futuro”, receberam dela algo como: “Não, não tá bom não… Vou tentar de outra forma”. Como é sabido, melhor dizendo, devidamente gravado e publicizado, os canalhas pró-golpe também queriam “estancar a sangria” das investigações e prisões que em breve beberia do sangue deles. Outrossim a presidenta disse um: “Não, não tá bom não… Prefiro que sangremos até o fim”.

Gata escaldada, mais ainda, torturada, Dilma devia saber muito bem com quem estava lidando. Ter lutado contra a Ditadura Militar no Brasil dos anos 1970 certamente a fez conhecer o deslimite e o cinismo de oponentes fascistas. Não obstante, na sua última “guerrilha” parlamentar ela resistiu, ao vivo e a cores, às investidas golpistas, mesmo ciente de que isso custaria o seu cargo. E isso porque, para ela, tem coisas que “não, não tá bom não”.

Nem mesmo o ex-presidente Lula, infinitamente mais popular e creditado que Dilma, consegue ser tão verdadeiro. Depois de ter sua fama devassada “como nunca antes nesse país”, agora ele quer ser presidente novamente. A pós-verdade mais triste da qual nem mesmo Lula consegue se livrar, contudo, é o velho discurso de que o melhor para o povo é voltar a comprar “seu carrinho; sua TV de plasma; sua máquina de lavar roupa”. Aqui é preciso engrossar o coro com Dilma: “Não, Lula. Não tá bom não!”.

Será que o vilipêndio que o povo e o país sofreram em 2016 não serviu para mostrar a Lula que priorizar o poder de compra do povo, em vez de educá-lo e empoderá-lo politicamente em primeiro e mais importante lugar, permitiu que, de um só golpe, o seu legado fosse arrasado, e, de quebra, que a elite golpista retornasse confortavelmente ao poder? Esse seu discurso populista agrada as massas. Sem dúvida repeti-lo dará votos à sua reeleição – isso, claro, se não for preso até lá. Agora, em se tratando do que realmente é melhor para o povo, “Não, Lula. Não tá bom não”.

Ok, Dilma deu seguimento à política consumista inaugurada por Lula. A diferença entre eles, contudo, é que ela não ficava fazendo apologia populista disso. Ela é uma burocrata fria. Mas, forçando a barra, sua “burrocracia” teve ao menos a virtude de impedir que ela caísse na falsa intelligentsia pós-verdadeira que inundou 2016 qual tsunami.

Se faltou à Dilma fazer a tão solicitada mea-culpa, isso ainda divide muito as opiniões. Agora, o que não deixa dúvida é que a guerrilheira sabe melhor do que qualquer um de seus pares aceitar publicamente quando as coisas não vão bem. Ah se Aécio Neves tivesse essa virtude!

Por isso, não tem como eu desejar um Feliz Natal à Dilma. Seria pós-verdadeiro demais de minha parte pretender que seja possível, para uma mulher, como se diz, tão pé-no-chão como ela, alienar-se completamente da tristeza que foi esse nosso ano e, de uma hora para outra, ter um Natal feliz. Desse modo, desejo a minha presidenta que seja feliz, mas… “not all”.

O Estado ideal de Platão e os reais estados desunidos do brasil

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Nesse momento, no qual grande parte dos brasileiros acha que o Estado não faz jus aos seus cidadãos, “A República” de Platão é mais que pertinente. Nela, o pai da filosofia faz o exercício de imaginar um Estado ideal, dizem as boas línguas, em resposta à decadência em que se encontrava a sua Atenas real. Uma das grandes virtudes do diálogo foi estabelecer que as qualidades do Estado são as qualidades dos indivíduos que o compõem. Esquecemo-nos, ou, antes, queremos esquecer que o Estado não é, nem nunca foi uma instituição cujas virtudes e vícios advenham de cima para baixo, dos governantes aos governados, mas, ao contrário, é o resultado da soma dos estados individuais de cada cidadão, que, entretanto, se tornam notórios, e sobretudo criticáveis apenas na figura do Estado?

Antes de prosseguir, peço licença à convenção que usa a palavra “Estado” com letra capital para distinguir o Estado moderno das unidades políticas, econômicas e sociais anteriores ao século XVIII, como por exemplo, as cidades-estado gregas. Doravante, “Estado” se referirá indiscriminadamente à unidade final da totalidade dos cidadãos, e “estado”, à condição de um indivíduo ou grupo deles dentro do Estado.

Diferença essencial entre o Estado ideal platônico e o nosso, contudo, é que aquele era o que, todavia anacronicamente, poderíamos chamar de comunista. O comum deveria imperar, fosse em relação à propriedade, fosse ainda em respeito a cônjuges e filhos. E isso porque a propriedade individual, segundo Platão, era o germe do mal a contaminar paulatinamente os cidadãos. E, consequentemente, o Estado, cujo objetivo não deveria ser outro que o bem-estar geral. Tão logo um homem começasse a ficar rico, adverte o filósofo, deveria mais que tudo exercitar as suas virtudes, pois estas seriam as primeiras a serem sepultados sob sua riqueza nascente; e por último, a virtude do Estado.

Um contemporâneo nosso mais reacionário que estivesse dialogando com Platão, certamente argumentaria em defesa da meritocracia. O filósofo, contudo, repetiria contra ele o seu argumento: o intuito de um Estado é o bem-estar geral, e não o bem particular. Além do que, um Estado no qual a competição entre seus indivíduos permitisse diferenciações econômicas, e consequentemente sociais, não seria um Estado, mas sim muitos estados, notoriamente antagônicos, em espécie de guerra interna. Havendo desigualdades sociais dentro do Estado, haverá tantos estados quantas forem essas desigualdades. E, conforme Platão, o Estado desigual internamente fatalmente ruirá sob o peso dos seus próprios antagonismos.

Podemos, hoje, imaginar um Estado nos moldes d’A República platônica? Para tal, precisaríamos necessariamente fazer o árduo exercício de desimaginar os antagonismos socioeconômicos, mui concretos nos nossos Estados modernos, entre os estados de riqueza, satisfação e liberdade dos famigerados 1% mais ricos, e os estados de pobreza, carência e opressão dos 99% restantes. “Tal homem, tal Estado”, reforça Platão. Um homem rico e poderoso é, a um só tempo, um homem e um estado; ao passo que um pobre e explorado, é outro e outro. Por isso, platonicamente, um Estado só pode ser chamado dessa forma quando todos os cidadãos gozarem de bem-estar.

Entretanto, para nós que achamos que o nosso Estado está aquém do que merecemos, não causa espécie alguma o esforço individual no sentido de um estado melhor apenas para nós mesmos e nossas famílias. Infelizmente, a ideia de um Estado bom para todos permanece apenas uma ideia. Na prática, contudo, o bem comum é sistematicamente preterido em benefício do bem privado. O problema dessa pragmática individualista é que ela não constitui nem verdadeiros cidadãos, nem um Estado propriamente dito, mas sim uma miríade de indivíduos egoístas e, por conseguinte, a mesma quantidade de estados contraditórios.

Parafraseando a máxima de Wittgenstein, “os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, para então intrometê-la na problemática platônica com a qual estamos lidando, poderíamos dizer que “os limites dos cidadãos significam os limites do seu Estado. Dentro dessa lógica, o Estado brasileiro só não ultrapassa o limite que tanto criticamos, qual seja, não ser um estado de bem-estar a todos os seus cidadãos, porque esse é o limite dos seus cidadãos – ou pelo menos o da maioria deles. Se isso parece falacioso, proponho que se imagine a resposta que teríamos se fizéssemos a seguinte pergunta à maioria dos brasileiros: o que você acha mais importante, o bem-estar geral ou o seu bem-estar individual?

Será que é necessário relembrarmos aqui banalidades individualistas e contrárias ao bem-estar geral, tais como estacionar o carro em vagas reservadas para deficientes físicos; consumir álcool e dirigir assim mesmo, burlando através de aplicativos a Lei Seca; sonegar imposto; lucrar uma bolada em algum investimento financeiro sem ter de derramar uma gota de suor enquanto milhões de concidadãos trabalham de sol a sol para não ganharem o suficiente sequer para alimentar os filhos; ou, como bem sintetizou o historiador pop Leando Karnal, “colar do colega durante a prova de ética”? Agindo assim, instituímos apenas estados, reais e de péssima qualidade aliás,mas de forma alguma o Estado que alhures idealizamos.

Seria bem mais corajoso, sem dizer minimamente justo com o Estado que deliberadamente criticamos, se nós, brasileiros, assumíssemos que, em primeiro lugar, não temos condições de produzir o Estado que pensamos merecer. Ainda somos uma colha malcozida de retalhos/estados egoístas, em conflito uns com os outros, incapazes de priorizar o bem-estar geral. Todavia, não nos privamos de exigir um Estado que cumpra essa tarefa independentemente de seus cidadãos. Por isso “A República” de Platão é fundamental nesse momento, pois lembra-nos de que as qualidades do Estado são as qualidades dos indivíduos que o compõem.

Resta saber, contudo, se há alguma verdade nesse desejo dos cidadãos brasileiros de que seu Estado seja realmente de qualidade, ou, antes, isso é somente uma mentira politicamente correta que contamos uns aos outros para encobrir a obscenidade de desejarmos, no final das contas, um estado bom apenas para nós mesmos, e que dane-se a totalidade. E se, para além de qualquer platonismo, qualquer comunismo (com ou sem aspas), essa coisa chamada bem-estar só faça algum sentido concreto para nós se for distribuída desigualmente?

Se for assim mesmo, ao menos deveríamos deixar de culpar o Estado, que, como ensinou o pai da filosofia, é apenas o resumo da ópera dos nossos verdadeiros estados individuais. Seria então menos hipócrita se, em vez de chamarmos o nosso Brasil de “República Federativa”, parafraseássemos o velho nome do nosso país, auto intitulando-nos assumidamente de “estados desunidos do brasil”, assim mesmo, tudo com letras minúsculas, para ao menos não esquecermos o tamanho da nossa capacidade ou desejo de constituirmos um Estado.

Uma crítica da ideologia pós-colonialista

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Imagem: The Sale of Venus – Lili Bernard

O pós-colonialismo, surgido nos anos 1970 como um conjunto de teorias acadêmicas cujo objetivo era analisar os efeitos que as nações colonizadoras, sobretudo as europeias, deixaram na cultura dos países colonizados, hoje em dia, entretanto, jaz vulgarizado em uma problemática ideológica multiculturalista que orbita estreitamente em torno do direito das minorias – étnicas, sexuais, religiosas etc. – de narrarem, livres de qualquer crítica, as suas próprias experiências singulares. Slavoj Žižek, no livro “Às portas da revolução”, mais especificamente no capítulo chamado “Direito à verdade”, faz uma crítica dessa ideologia pós-colonialista que, a meu ver, vale a pena ser ecoada, por mais que o discurso politicamente correto exija ou apologia ou silêncio a respeito dela.

E isso porque, para Žižek, uma crítica da ideologia “nos obriga a inverter a frase de Wittgenstein, ‘do que não se pode falar, deve-se guardar silêncio’, para ‘o que não se pode falar, não se pode calar’”. O que o filósofo esloveno quer salientar com essa inversão é que, antes de se pretender dizer toda ou “mais verdades” sobre determinado fenômeno, o fundamental no discurso que não se cala diante da proibição ética/política é dar voz ao excesso inerente a esse mesmo fenômeno que, se por um lado o ameaça, por outro o completa. Além do que, uma crítica que não vai além do que critica, isto é, que não se aventura a dizer mais do que o criticado “permite”, faria um trabalho tacanho demais.

A primeira parte da crítica žižekiana da ideologia pós-colonialista recai sobre os próprios acadêmicos pós-culturalistas contemporâneos. O filósofo, em primeiro lugar, lembra-nos de que “a grande maioria dos acadêmicos ‘radicais’ da atualidade, silenciosamente conta com a estabilidade de longo prazo de uma posição de trabalho segura”. E isso para dizer que eles, quando lidam de modo politicamente correto com questões de sexismo, gênero, racismo, xenofobia, exploração dos trabalhadores etc., estão na verdade presos “a um ritual compulsivo cuja lógica oculta é: Falar o máximo possível sobre a necessidade de uma mudança radical, para nos assegurarmos de que nada realmente vai mudar!”.

Ou seja, as questões com que grande parte dos acadêmicos pós-colonialistas se ocupam, e para as quais buscam “soluções” teóricas, é melhor que, na prática, não encontrem solução, pois só assim, mantendo vivo o problema de que tratam, eles manterão pertinentes as suas pesquisas e, consequentemente, os seus privilegiados salários acadêmicos. E isso porque, critica Žižek, suas escolhas e atos já são “um ato dentro das coordenadas ideológicas hegemônicas”. Dito de outro modo, eles são concretamente o mundo colonizado a respeito do qual fazem abstrações teóricas descolonializantes. Para Žižek, são como o pós-moderno padrão, cuja lógica é “vamos continuar mudando algo todo o tempo para que, globalmente, as coisas fiquem iguais”.

Dessa visada, pode parecer que Žižek está dizendo que somente aqueles que não têm nada a perder poderiam abordar a realidade de modo autêntico. “Só que não!” Face à inautenticidade dos acadêmicos pós-colonialistas do Primeiro Mundo, o filósofo faz um elogio aos ideólogos e práticos do Terceiro Mundo. Estes, pelo menos assumem mais honestamente o fato de serem cativos das coordenadas globais do capitalismo. E aceitar corajosamente que se é parte do problema com o qual se está envolvido, porventura não é começar justamente por aquele excesso intrínseco que todavia pede desesperadamente para que se cale a respeito de si?

Já a segunda parte da crítica žižekiana da ideologia pós-colonialista ataca o hoje popularizado – e por que não dizer sacralizado? – “direito de narrar”. Para Žižek, o Calcanhar de Aquiles do direito de narrar é que ele usa “uma experiência particular singular como argumento político”. Por exemplo: só um jovem pobre gay latino-americano pode dizer o que significa ser um jovem pobre gay latino-americano. Entretanto, adverte o filósofo, “tal recurso a uma experiência particular que não pode ser universalizada é sempre, por definição, um gesto político conservador”. E o perigo disso é que, se qualquer um pode se valer de sua experiência singular para se justificar, pode-se com isso ser justificado experiências abomináveis. Dentro dessa lógica absolutamente permissivista, deveríamos nos calar diante de muçulmanos radicais que matam seja lá quem for. Afinal… não sabemos o que é ser um muçulmano radical.

Mutatis mutandis, a crítica do pós-colonialismo e do pós-modernismo se confundem. A pós-modernidade é conhecida por ser a Idade onde inexistem certezas absolutas, verdades universais, ou, nietzschianamente falando, a era na qual “Deus está morto”. O problema é que, aponta Žižek, sem a referência a uma dimensão universal de verdade, o que resta é uma profusão de perspectivas, de narrativas, que, no final das contas, dá espaço à “narrativas ridículas”, tais como “a supremacia da sabedoria aborígene holística”, e o que é mais grave, o desprezo à ciência como se se tratasse de “apenas mais uma narrativa entre as superstições pós-modernas”.

Para escapar a esse relativismo, que, como vimos, pode facilmente endossar absurdos, Žižek propõe que qualquer abordagem pós-colonialista deve estabelecer a priori critérios externos à narrativização – atitude paradoxalmente contrária à ladainha pós-moderna pós-colonialista. Retomemos o exemplo anterior. Um jovem pobre e gay latino-americano narrando a sua experiência existencial a um grupo de senhores ricos heterossexuais europeus. O critério que estes têm de preestabelecer é o seguinte: nada do que aquele narrar será alienígena a eles, às suas possibilidades de compreensão. Afinal, “jovem” só faz sentido contraposto a “velho”; “pobre”, a “rico”; “gay”, a “heterossexual”; e assim por diante.

Ainda que somente negativamente, uma pessoa pode, em determinado nível, compreender a experiência existencial singular de outra, afinal, estamos falando de seres humanos que a priori pertencem a um universal comum, qual seja, a humanidade. Desse modo, o medo pós-colonialista de que a comparação de singularidades as anule, atenta justamente contra o fundo comum sem o qual a própria ideia de singularidade deixa de fazer sentido.

Para esclarecer melhor o seu argumento, Žižek vale-se provocativamente da defesa politicamente correta da singularidade do Holocausto. Contra aqueles que acham que comparar, que relativizar a ignomínia nazista é inadmissível, o filósofo sustenta que “sim, o Holocausto foi singular, mas a única maneira de estabelecer essa singularidade é compará-la com outros fenômenos similares”. A provocação do autor ataca justamente a proibição à comparação, pois, nas palavras dele, “a suspeita atormentadora que emerge [da proibição à comparação] é que, se nos fosse permitido comparar o Holocausto com outros crimes similares, este seria privado de sua singularidade”.

Ora, se algo, alguém ou grupo desfruta de singularidade, o faz não porque foi resguardado de ser relativizado, comparado, mas, antes, porque pode sê-lo, sem que essa singularidade corra o risco de ser solapada. O zelo pós-culturalista em respeito às singularidades das narrativas na verdade é covarde: é o medo de que as suas “singularidades” não se sustentem diante de singularidades minimamente diversas.

Pós-culturalismo corajoso é aquele que garante a singularidade de uma narrativa, de um fenômeno, justamente através do universal, do comum de que eles participam, ainda que seja da essência de uma singularidade resistir internamente a isso. A universalidade, fantasma à ideologia pós-culturalista, muito antes de comprometer uma singularidade, na verdade traz à luz o seu excesso, “aquilo” do singular sem o qual ele não é; ou, lacanianamente falando, “aquilo mais do que ele mesmo” que, entretanto, faz com que ele seja justamente o que é: uma singularidade dentro do (ou de um) universo.

Povo desmaquiavelizado: povo impotente.

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Dizer que é errado os ricos e poderosos oprimirem cruelmente o povo em busca de mais riqueza e poder – em vez de produzirem uma sociedade mais justa, igualitária, blá-blá-blá -, porventura não é como, a despeito da natureza, decidir que é errado a água (ao nível do mar…) ferver a 100°C, e não a 50? Assim como seria em relação à ebulição da água, é muita ingenuidade o povo desejar que a classe dominante não aja conforme a sua natureza, que é dominar e nada mais. Dessa perspectiva, o povo que, dominado, segue achando que os dominantes agem erradamente; que depende da boa vontade dos poderosos a liberdade e felicidade do povo; este povo merece a dominação que sofre, pelo menos até levar à cabo a sua própria natureza, que nasce no desejo de não ser dominado; e que vive somente na luta contra a dominação.

Desde Nicolau Maquiavel sabemos que a sociedade é composta pela relação conflitiva, e sobretudo amoral entre “grandes” e “povo”; cada um com sua natureza própria. Aqueles, dominar; este, não ser dominado. E o trabalho do filósofo renascentista foi justamente ter retirado dessa relação toda a velha moralidade que orbitava entre bem e mal, certo e errado, falso e verdadeiro. Moralidade esta que desde a antiguidade raptava a realidade da política. Retomando a nossa analogia, assim como a água, em determinada pressão e temperatura, entra em ebulição, assim também os grandes, em sociedade, oprimem o povo; tão necessariamente quanto as leis físicas! Dizer que isso é errado, convenhamos, é preferir quimeras em lugar do real. E o amargo preço dessa ilusão, pago inescapavelmente pelo povo, é justamente uma maior liberdade aos grandes dominadores, pois estes, em momento algum, alienam-se moralmente da – nem deixam de investir politicamente na – sua natureza dominadora.

Embora o desejo – e a ação objetiva! – dos grandes seja dominar o povo, e para isso precisem roubar descaradamente liberdades e direitos populares, a natureza do povo não é dominar os grandes, mas, assimetricamente, desejar não ser dominado. Entretanto, ensina Maquiavel, o desejo popular de não ser dominado, para se realizar, precisa se converter em luta política objetiva por liberdade. Não obviamente para circular livremente dentro do universo dos grandes – não como queria Lula: que o povo brasileiro fosse “livre” apenas para comprar eletrodomésticos e viagens ao exterior, coisa que em verdade só alimentava o bolso e o universo dominador dos grandes -, mas liberdade para lutar contra os grandes, contra o natural desejo deles de dominação.

O povo fica aquém de sua própria natureza enquanto reclama da dominação que sofre; enquanto apenas acusa os grandes – quase sempre vitoriosos – de serem maus, desumanos, gananciosos, etc. Ora, quando o povo, parte envolvida no conflito político, não atualiza a sua potência natural, ao passo que os grandes, a outra parte, o faz “sem dó nem piedade”, não é mistério algum qual parte sairá, e deverá sair vencedora. E, para além do ressentimento popular, não há nada de errado nessa vitória dos grandes, uma vez que o real é o conflito entre eles, e que vence quem realiza melhor a sua própria natureza.

Da perspectiva dos grandes empresários, banqueiros, latifundiários, por exemplo, só pode parecer patético, ignorância ou ressentimento impotente o povo crer que os grandes deveriam deixar de dominá-lo e desejarem, como o povo, o fim da dominação e a liberdade irrestrita. A imperdoável ingenuidade popular é precisamente crer que os grandes devam ser como o povo; que há algo de errado em os grandes serem como são. Não! O fato de os grandes desejarem dominar é como a água ferver a 100°C, ora bolas. Agora, o fato de o desejo último do povo ser a liberdade em relação à dominação dos grandes parece não ser tão claro assim para o próprio povo. “Em que mundo você pensa que vive?”; “Quem você pensa que nós somos?”; “Você conhece a realidade e sabe como lutar dentro dela?” – perguntariam justamente os grandes ao povo.

Algo realmente errado é o povo achar errado os grandes agirem como agem! Para sair desse erro, contudo, a primeira coisa que o povo deve fazer é reconhecer, e maquiavelianamente!, que os grandes, para muito além do bem e do mal, do certo e do errado, do falso e do verdadeiro, fazem unicamente o que a sua natureza prega. Fosse de outra forma, isto é, se os grandes ou não quisessem dominar, ou fossem definitivamente eliminados pelo povo, isso significaria o fim da sociedade ela mesma, que, como ensina Maquiavel, é o resultado do conflito político entre grandes e povo.

Desse modo, o desejo acertado do povo, ou seja, a realização plena de sua natureza, deve ser: ser tão ou mais forte que os grandes. Não, como seria ingênuo pensar, que os grandes devam ser fracos para serem finalmente vencidos. E isso porque é somente dentro dessa batalha, árdua e, como ensinou Maquiavel, amoral por natureza, que qualquer vitória do povo no sentido de sua liberdade terá algum valor; e, o mais importante, constituirá uma verdadeira sociedade. Não mais uma sociedade utópica, na qual o povo contaria com a benevolência de seus oponentes; na qual é errado os mais potentes vencerem os mais impotentes na luta da qual ambos não têm como escapar; mas sim uma sociedade onde cada lado do sempiterno conflito político atua com toda a sua potência contra a potência do outro lado.

A sociedade definitivamente não é o lugar de os indivíduos serem livres e felizes gratuitamente, como algum deus bom poderia ter desejado. Antes, ela é a árdua e humana conversão do combate bárbaro-animal, no qual uns aniquilam definitiva e violentamente outros, em conflito político, onde as diferenças podem coexistir, todavia ao preço de uma sempiterna luta de forças. O fato de os grandes liderarem esse conflito na maior parte das vezes não deve ser moralizado, considerado um erro, um mal, porquanto o moralismo custa sempre muito mais caro do que aceitar o real amoralmente. Todavia, muito embora o povo inadvertidamente predique moralmente a ação daqueles que o domina, seu primeiro “acerto” político deve ser reconhecer o “erro” enquanto seu. E esse erro é não ter feito o seu dever cívico básico, isto é, não ter sido, e a qualquer preço, tão ou mais forte que o seu oponente opressor.

Bye-bye, multiculturalismo?

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O multiculturalismo é a coexistência harmoniosa e não hierarquizada de diferentes culturas numa mesma região, cidade ou país. Sua ideia sustenta que o hibridismo cultural produz realidades comuns mais ricas e plurais baseadas no respeito e na aceitação irrestrita das diferenças. Uma sociedade multiculturalista é aquela que, mesmo com uma maioria branca, heterossexual e cristã, por exemplo, coloca em pé de igualdade demandas e direitos de negros, árabes, índios, gays, lésbicas, transexuais, muçulmanos, umbandistas, satanistas, e por aí vai.

Mesmo que, logicamente, a globalização só tivesse a lucrar com plena abertura multicultural, a realidade, entretanto, está se mostrando refratária à utopia pluralista. Conquanto nas últimas décadas os discursos oficiais tenham sido como que obrigados a contemplar a alteridade, desde o fatídico 11/9 no entanto, movimentos monoculturais, nacionalistas, xenófobos encontraram na ameaça do terrorismo o guarda-chuva perfeito para justificarem e retomarem a velha e rançosa recusa ao outro.

A crise econômica mundial que cresceu ao longo da década de 2010, as migrações em massa que explodiram nos últimos dois anos, a vigorosa ascensão “worldwide” das direitas radicais de caráter fascista, tudo isso somente reforça que a aventura multiculturalista, infelizmente, foi um projeto passageiro. Hoje em dia, a ideia cada vez mais vigente, ou pelo menos midiatizada, é a de que a diversidade cultural, étnica, religiosa, sexual, etc., é uma ameaça às identidades nacionais.

Trump, nos EUA; Le Pen, na França; Wilders, na Holanda; Farage, na Inglaterra; Voigt (líder do neo-nazi Partido Nacional Democrático), na Alemanha; Strache, na Áustria; Bolsonaro, no Brasil – só para citar alguns-, reencarnam, política e espetacularmente, a ideia de que o multiculturalismo é danoso às suas sociedades e culturas, sem dizer suas economias.

Até mesmo a ideia do filósofo canadense Charles Taylor de que a democracia é a única alternativa para alcançar o reconhecimento do outro, ou seja, da pluralidade encontra-se malograda. Prova disso é o anti-multiculturalismo crescendo ao redor do mundo justamente pela via democrática. Eis o vício pouco evidente da “cracia” do “demos”: basta a maioria querer o mal – ou ser levada a querê-lo – e, volià, o mal é eleito. Não nos esqueçamos de que foi a democracia que colocou Hitler no poder!

Antes, porém, de sustentar, covarde e defensivamente, que são Trumps, Le Pens e Bolsonaros que reinauguram, deliberada e verticalmente, o extremismo monocultural, é bom considerar a possibilidade de que esta onda anti-multiculturalista que eles surfam notória e oportunisticamente na verdade é o cúmulo de milhares de marolas individuais anônimas formadas aos poucos ao redor do mundo. O diabo não inventa inferno algum. É apenas mais um danado que, percebendo-se rodeado de muitos outros iguais, apenas furta a coroa.

Como, por conseguinte, não é cortando as cabeças de algumas poucas figuras protagonistas que conseguiremos parar o tsunami anti-multicultiural, uma vez que este processo nasce nas milhões de cabeças anônimas que apenas encontram representação naquelas figuras espetaculares, a visão mais realista, e triste, é que, doravante, e por algum tempo pelo menos, viveremos em um mundo que, novamente caça bruxas.

O anti-multiculturalismo tira da tumba um mundo monológico, radical e cruel, no qual a Klu Klux Klan poderá queimar negros na cruz – casas de negros já começaram a ser incendiadas nos EUA um dia depois da eleição de Trump; onde imigrantes ou descendentes de imigrantes serão alienados do humano e universal direito de ir e vir – fato para sírios, iraquianos e afeganistãos, e agora, com Trump, mexicanos; e onde gays, lésbicas e transexuais poderão ser assassinados, ou, com miserável sorte, proibidos de viverem seus desejos e orientações sexuais.

O mundo cosmopolita nos últimos anos tanto condenou o radicalismo religioso fundamentalista, que acabou encarnando ele mesmo o seu maior fantasma. Retorno do reprimido? Pelo jeito sim. Como, porém, colocar esse mundo doente no divã para que, percebendo o seu bárbaro sintoma anti-alteridade, possa atravessar o seu trauma para finalmente se ver livre dele?

A psicanálise tem a nos dizer algo que, nesse momento de ascensão anti-multicultural, é assaz desanimador, qual seja, que antes da cura tem de haver o desejo de ser curado. Esse desejo, não obstante, pressupõe a consciência da doença. O problema, contudo, é que os monoculturalistas vivem hoje, fortemente, a chamada fase da negação. Iludem-se de que são a cura para “o” problema do mundo para se alienarem do fato de que eles mesmos são o maior e pior câncer. O pior de tudo é que confrontá-los nessa fase só faz com que, autodefensivamente, agarrarem-se ainda mais ao mal que os atravessa.

Conseguirá a parte sã do mundo fazer como os psicanalistas, isto, é aguardar pacientemente até que o anti-multiculturalismo encontre-se em sua neurose e a assuma; então deseje curar-se dela; para enfim iniciar o seu processo de recuperação? Ou, antes, o mundo que ainda é e que quer ser multicultural precisa apenas ser um tanto menos ortodoxo, sem dizer um tanto mais subversivo em seu multiculturalismo a ponto de recusar, e com a mesma violência, especificamente os anti-multiculturalistas que o recusa?

Por hora, a via não pode ser, como quer Charles Taylor, democrática, pois, basta olhar pela janela do presente, a democracia está sendo justamente o veículo dessa recusa ao outro. Diante da radicalidade anti-multicultural, manifesto-me em favor de uma tirania multicultural declarada. Afinal, um tirano que obrigue todos a aceitarem-se mutuamente, e só quem não quiser obedecê-lo que desapareça, é absolutamente preferível comparado aos os frutos podres de uma democracia doente cuja única opção que oferece à pluralidade é: desapareça. Quem mais merece o bye-bye despótico, o multiculturalismo ou a sua antítese?

Ocupemos a nós mesmos!

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As muitas ocupações de escolas e universidades brasileiras seguem firmes e fortes contra a péssima representatividade política que o povo está recebendo. Porém, isso é só parte da luta. A jovem máxima “Ocupa Tudo”, para ser verdadeiramente revolucionária, não deve deixar de fora desse “tudo” a exploração econômica que sistemática e sorrateiramente constitui aquela má representatividade. Ocupemos a nós mesmos! E economicamente.

As ocupações restauram intempestivamente algo da antiga democracia direta grega, na qual é o “demos” que atua a sua “cracia”, sem intermediários. Prática que no entanto foi soterrada pela erva-daninha da democracia representativa, posta em prática pela burguesia e para a burguesia. E é contra esses beneficiários burgueses, os únicos que são devidamente representados por aqueles que na verdade deveriam representar o povo, que as ocupações devem também contemplar. Ora, pouco adianta resistir abertamente aos desígnios dos maus políticos aqui, se, ali, alienadamente, segue-se enchendo os bolsos dos burgueses, os grandes e verdadeiros responsáveis pela má representatividade política.

Se, como dizem, a política apenas faz o trabalho sujo da economia, a ocupação deve ser também e principalmente econômica-estrutural, e não somente política-espacial. Do contrário, a luta que deixa de ser lutada é justamente aquela na qual o inimigo mais oprime. Políticos, como sabemos, vão e vêm. O poder do capital, em contrapartida, permanece e cresce nos bastidores do teatro de horrores político que ele mesmo patrocina, tanto para o povo se alienar do verdadeiro inimigo, como principalmente para que este algoz siga aumentando o seu sórdido poder discretamente.

“Ocupar Tudo”, portanto, é o povo ocupar também o lugar econômico mui ocupado por esse inimigo burguês que, antes, durante e depois de quaisquer manifestações políticas, segue enriquecendo com o mundo de mercadorias que nos oferece em todos os lugares e ocasiões. Mundo  mercadológico que seguimos consumindo ingenuamente, como se isso não fosse precisamente o cerne do problema. Como, porém, ocupar a nós mesmos economicamente? As ocupações políticas podem dar o caminho das pedras.

“Encher um espaço de lugar e de tempo” é uma bela definição de “ocupar”. Todavia, assaz abstrata para o que está se querendo propor aqui. Outra definição, bem mais concreta e pontualmente eficiente no sentido de ocupar-nos economicamente uns aos outros, diz que “ocupar” é: “dar trabalho; empregar”. Voilà! Eis a ocupação com a qual também devemos nos ocupar para enfrentar o inimigo, não em sua aparência política, mas em sua essência econômica. Como, entretanto, ocuparmos economicamente os nossos iguais para com isso enfraquecermos, quiçá falirmos o inimigo burguês que até aqui nos ocupa para o seu próprio fortalecimento?

O primeiro passo, o mais acessível, é a já conhecida “economia colaborativa”, ou seja, a esfera de produção, distribuição e consumo de bens e serviços que dispensa as grandes corporações e prioriza aquilo que os próprios indivíduos têm a oferecer uns aos outros. Pragmaticamente, é preferir a quentinha que a vizinha tem para vender ao BigMac; a costureira da esquina à loja Zara; e por aí vai. Se é para dar os nossos míseros e explorados tostões a alguém, que seja a nós mesmos, e não àqueles que nos exploram, ora bolas!

Este primeiro passo, que  nos leva a comprar coisas uns dos outros, não obstante mantém vivo algo essencial ao inimigo: o dinheiro. Um segundo e mais virtuoso passo, que com certeza pode completar a ocupação, por parte do povo, do belvedere da elite econômica é o escambo, ou seja, a troca direta de bens e serviços entre os próprios indivíduos, sem o intermédio vicioso do dinheiro. Em outras palavras, e usando os exemplos anteriores, trata-se de a vizinha trocar as suas quentinhas pela calça produzida pela costureira da esquina, e assim por diante.

Isso é ocupar economicamente os nossos iguais: dar trabalho a eles, empregá-los. Não para explorá-los, obviamente, uma vez que o escambo aqui proposto visa justamente eliminar os exploradores burgueses das relações econômicas – com a “mais-valia” de golpear os maus políticos que os representam. Sem dizer que, propondo-nos à troca com nossos iguais, cada um de nós tem também de ocupar-se em produzir algo que seja útil a esses iguais, e tão somente a estes. Restaurar o escambo é quiçá a maior rasteira econômica que os indivíduos podem no verdadeiro inimigo, e, de quebra, obsoletar a íntima & vil relação entre o capital e os seus representantes políticos.

O desafio, obviamente, é imenso. Afinal, como trocar quentinhas ou alfaiatarias por aluguel na imobiliária? Como bens ou serviços produzidos diretamente pelas nossas próprias mãos pagarão a passagem do ônibus? Para destrinchar o inimigo econômico-burguês, façamos como Jack, o estripador, façamo-lo por partes. Comecemos por estabelecer algumas relações de escambo com aqueles que nos são próximos e dispostos a tal. Hoje em dia há muitos aplicativos que podem ajudar nessa experiência. Não devemos esquecer de que também é da natureza humana se comprazer com trocar. Durante milênios foi assim. Pelo menos até o capitalismo convencer a todos de que o seu capital deveria intermediar todas as trocas.

Se cada um de nós conseguir fazer com que pelo menos 10% de nossas compras sejam substituídas por escambo, o inimigo-mor será enfraquecido nessa mesma proporção. E, quanto mais não seja, é muito mais fácil aumentar qualquer experiência, de 10 para 20%, e assim sucessivamente, do que pretender começá-la já nos seus 100%. Por partes e com calma; e também com prazer, repete Jack.

Certamente demorará para que a Apple aceite uma torta de maçã ou uma poesia em troca de um iPhone. Contudo, com o tempo, ocupando-nos a nós mesmos em função de nossa sobrevivência e liberdade, e sobretudo desocupando subversivamente os nossos algozes econômicos-políticos da intermediação de tudo o que precisamos para viver, poderemos descobrir que os smartphones deles só valem mais do que as nossas tortas de maçã ou poemas porque assim eles nos fizeram acreditar. Essa ideia aliás é a mercadoria excelente deles; se a desocuparmos, definitiva e coletivamente, todas as outras perdem o valor.

O socialistas ortodoxos de plantão dirão que é ingenuidade acreditar que o caminho da revolução é tão simples. Mais ainda, que não podemos dispensar a velha, todavia respeitável profecia marxista. Nada contra as Bíblias dos revolucionários, muito pelo contrário. Que elas sigam angariando fiéis até completarem a sua mui aguardada revolução. Afinal, a liberdade que elas prometem é mais que necessária. Porém, a candente novidade e promissora efetividade das ocupações nos sugerem, não um atalho, mas um desvio em relação às velhas teorias.

O “Ocupa Tudo” deve: ocupar os espaços onde a representatividade política não se efetua; tomar nas mãos a representação das próprias demandas; perceber que enquanto a economia estiver alienada dos indivíduos ela só produzirá má representatividade política; experimentar-se e fortalecer-se em relações econômicas não alienadas, baseadas em trocas diretas, nas quais o valor não é mais um imperativo extrínseco, mas propriedade daqueles que trocam entre si; e, por fim, fazer essa experiência – que não é nova, apenas obsoletada estrategicamente pelo capitalismo – crescer até ocupar totalmente a vida das pessoas.

Muito embora seja fundamental começar ocupando os espaços que os nossos representantes políticos não estão ocupando conforme prometeram ao se elegerem par tal, é só quando os indivíduos ocuparem a si mesmos, não só política, mas sobretudo economicamente, sem deixar espaço livre para qualquer mediação oportunista. Só então a revolução, senão estará dada, ao menos terá sido devidamente iniciada.

Portanto, ocupemos a nós mesmos. Descubramos o que podemos fazer que sirva somente a nós, e de forma alguma ao sistema que só quer nos explorar e oprimir. Reocupemos o sentido grego, e há muito esquecido, de “oikonomia”: “administração de uma casa, lar”. Desocupemos a macroeconomia! Só assim a má representatividade política será desocupada da sua vil participação nas nossa vidas.

Trump e o maquiaveliano retorno à origem.

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Donald Trump presidente dos Estados Unidos é um trauma político inclusive para os seus próprios eleitores, pois o bilionário venceu não por conta de virtude política alguma, mas, ao contrário, justamente pelo seu despotismo escancarado. A defesa pública e violenta da superioridade branca, masculina, heterossexual e aristocrata baseada apenas na opinião contingente do próprio Trump é o que senão a reencarnação à la americana do despótes? A melhor coisa a ser feita a partir do resultado das eleições norte-americanas, e talvez a única, é entender por que a nudez do déspota venceu a fantasia do político.

Traumático, sobretudo, é que, do belvedere da crise de representatividade política que boa parte do mundo civilizado atravessa, a escolha por Trump seja a mais racional, uma vez que, como disseram muitos e esclarecidos comentadores, “Hilary é o mal com máscara; Trump, o mal desmascarado”. Assim como, psicanaliticamente, não se supera um trauma sem atravessá-lo corajosamente, assim também, politicamente, a superação da atual crise de representatividade parece estar exigindo que se comece justamente pela má-representatividade, de forma assumida, cruelmente desnudada.

Se os políticos não conseguem mais representar os seus eleitores como estes esperam, mas, como cada vez mais se vê, asseguram prioritariamente os interesses daquilo que o Ocuppy Wall Street chamou de o 1%, é porque a relação política entre a massa de representados e seus representantes está corrompida. E como se ver livre do inimigo votando justamente nele? Trump foi a alternativa apolítica, e por isso mesmo trágica, para esse dilema. Como, entretanto, a tragédia trumpeana pode ajudar a resolve o problema da corrupção da representatividade política?

Nicolau Maquiavel dizia que para se combater a corrupção em uma república era necessário um retorno à origem dessa república. Um retorno lógico, e não cronológico; não farsesco, mas, autenticamente trágico. Para o filósofo italiano, Roma só era a maior e mais “eterna” porque tinha a virtude de retornar sistematicamente à sua origem trágica, qual seja, o fratricídio de Remo por Rômulo. Mutatis mutandis, não estão os americanos fazendo exatamente isso com a sua res pública ao elegerem Donald Trump, isto é, dando um maquiaveliano “passo para trás”, como quem toma distância para o salto necessário, passo retrógrado sem o qual não superarão o abismo da corrupção que percebem entre eles e os seus representantes políticos?

Para Maquiavel, uma república é virtuosa enquanto suas leis são capazes de serem sustentadas por suas instituições. O problema é que as leis são dinâmicas, mudam conforme a necessidade pública, mas as instituições, ao contrário, são estáticas. Desse modo, com o tempo, as instituições não conseguem mais fazer valer as leis. E é aí que cresce o vício da corrupção. Tentar resolver tal corrupção sem retornar à origem seria o mais abjeto reformismo; algo como dar uma demão de tinta nova sobre a velha casa carcomida. Retornar ao momento fundacional, em troca, é fazer a ruína ruir, fortuita e totalmente, para só então haver a oportunidade de se reconstruir a res pública desde seus alicerces.

E isso porque, segundo Maquiavel, é só no ato fundacional de um estado que lei e instituição coincidem. Somente nesse átimo não há espaço para a corrupção. No exemplo excelente do filósofo, Roma ressincronizava  leis e instituições, e portanto se via livre da corrupção, sempre que retornava à sua raiz violenta/fratricida, recolocando-se a questão fundamental, qual seja: Rômulo não mataria Remo por quê? Como, porém, Rômulo cometeu o fratricídio, os romanos reencontravam nas respostas que davam  a essa pergunta a razão de ser do seu estado.  Por mais angustiosamente trágico que o fosse o “revival” lógico desse “momentum” violento fundacional, nele a “Cidade Eterna” refundava-se livre da corrupção.

Agora, como Trump presidente faz esse serviço aos norte-americanos? Obviamente, a razão fundacional dos Estados Unidos é outra que a de Roma. Foi para pôr fim ao despotismo colonizador do Império Britânico que os Estados Unidos se independizaram. Jaz aí a razão de ser da República Constitucional Federal dos Estados Unidos da América. E é a ela que, segundo a pragmática maquiaveliana, os sobrinhos do Tio Sam retornam ao se sujeitarem democraticamente a um governo como o de Trump. O apolitismo declarado do magnata topetudo porventura não sujeita novamente os EUA a espécie de rei despótico todo-poderoso, algo como outrora estavam sujeito aos impérios da coroa britânica?

Elegendo Trump, os norte-americanos escolheram o protagonista perfeito para a tragédia que com sorte fará com que reencontrem – não se sabe todavia em que ato – a razão de ser do polités, e a civilizada vantagem deste sobre o despótes. Assim fizeram os antigos gregos quando inventaram a política. Assim também precisam fazer os americanos – mas não só eles! -, pois se a política perde o seu jaez virtuoso, é somente porque o despotismo, embora espetacularmente presente, mascara-se, e isso para poder ser tão ou mais despótico.

A razão de ser da política é ser a alternativa civilizada ao despotismo. No entanto, quando a civilização escolhe um déspota declarado, isso se dá não porque optaram entre este e um político stricto sensu, mas, antes, porque não havia político stricto sensu na jogada, somente déspotas, um com máscara, o outro sem. Mesmo que o que as pessoas menos desejem para si mesmas é estarem sujeitadas aos desígnios de um déspota, quando isso é inevitável ao menos hão de preferir um algoz que não dissimule o seu despotismo. Hilary seria tão ou mais despótica que Tump, mas os americanos estariam estrategicamente alienados disso. Por pior que seja, a verdade venceu, ainda que traumática.

O “White Trash”, isto é, a massa de eleitores bancos, homens e sem formação superior que elegeram Trump fizeram quiçá o maior favor ao futuro político daquele país. Como não tinham mais confiança nos representantes que há muito os decepciona; como a representatividade política é hoje uma instituição corrompida; agora ao menos os norte-americanos não vão se decepcionar em termos de representatividade. Elegeram o real em sua crueza desnudada. Mesmo que o “White Trash” americano desconheça Maquiavel, a sabedoria do italiano os atravessou intuitivamente nesse retorno trágico à origem despótica. E isso porque quando o polités está doente de corrupção, precisa de doses traumáticas de despotismo para civilizar-se novamente.

 

Atenção, ocupações!

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Só mesmo muita alienação para não ver nas ocupações de escolas e universidades brasileiras, contrárias às propostas do Governo Temer, um movimento político de resistência, quiçá o maior da atualidade. Entretanto, mesmo e principalmente quem atua diretamente nesse explosivo movimento estudantil não deve se alienar do mais importante, ou seja, de que agir politicamente exige sempre mais. Do contrário, em pouco tempo as ocupações se tornarão eventos performáticos incapazes de alcançar o objetivo principal: barrar as propostas do governo golpista.

Obviamente, ninguém em sua sã consciência cívica é contra estudantes permanecerem nas suas escolas para, além das horas-aula, produzirem voluntariamente melhoria das instalações físicas e estreitamento das relações sociais. Aliás, uma crítica aos estudantes que hoje são ocupantes é não fazerem isso desde sempre. Esperar que alguma tragédia nacional se abata para só então agirem como se as escolas lhes pertencesse é agravante do problema que os próprios estudantes querem resolver. Todavia, antes tarde do que nunca.

As ocupações estarão realizando um novo e importante movimento se forem sobretudo políticas, muito antes de serem meramente físicas e simbólicas – ainda que estas duas formas sejam essenciais à primeira. Estudantes pintando paredes imundas e varrendo sujeira do pátio por certo calam a boca da opinião pública que a priori gostaria de estigmatizá-los de vândalos e vagabundos. No entanto, não se está ocupando mais de mil escolas e quase duzentas universidades com esse objetivo, mas para se ter força política capaz de barrar propostas golpistas tais como o “Escola sem Partido”, a “Reforma do ensino médio” e a PEC 55 (ex-241).

Uma das definições da palavra “ocupar” que eu gosto muito, embora bastante abstrata, é a seguinte: “encher um espaço de lugar e tempo”. Ocupar politicamente, portanto, é encher um espaço vazio de “lugar de cidadania” e de um “tempo de evolução social”. Caso contrário, este espaço será ocupado por outros interesses, e o lugar resultante pode ser tão opressor, e o tempo de tanta involução social quanto indica a distopia que já se deixa avistar através da névoa corrupta que envolve a “Ponte para o Futuro” golpista. Só mesmo agindo politicamente o “Brasil, pátria educadora” golpeado terá nova chance de futuro. Só a política constrói lugares e tempos melhores.

Como, entretanto, os estudantes ocupantes podem ser efetivamente políticos apesar do romantismo performático que já glamoriza as ocupações, e que por isso as enfraquece politicamente? Ora, por mais radical que possa parecer, é só parando a “linha de produção” das escolas; parando as aulas; as aprovações; o ENEM; as formaturas de novos profissionais; da mesma forma que a classe operária para a sua produção e compromete economicamente a classe dominante que os oprime e explora até que esta se abra à negociação. Desafio, contudo, é fazer com que a falta da “mercadoria intelectual” que sai das escolas e universidades, de somenos importância para o nosso governo golpista, ameace tanto quanto uma greve de ônibus ou da polícia.

Para tanto, os espaços a serem ocupados devem transcender os “bunkers” das escolas. A famigerada estudante paranaense Ana Júlia, de 16 anos, por exemplo, fez isso. Ocupou os espaços da Assembleia Legislativa do Paraná e da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal transformando-os em lugares de fala dos estudantes e em tempos de escutá-los. Fossem todos os ocupantes Anas Júlias, a ocupação seria do tamanho do Brasil, e PEC alguma contrária ao futuro dos estudantes teria vez.

Uma lição fundamental a ser aprendida ainda na escola é que a ação política não tem fim; não chega a um patamar estável de onde não precise evoluir. Quando se institui um corpo político, a sua potência e alcance têm de ser constantemente aumentados na medida em que as forças que lhe fazem oposição também crescem. Em outras palavras, nossos adversários políticos se fortalecem em resposta à adversidade que recebem de nós, e por isso devemos aumentar a nossa potência política, tanto ou mais que a deles. Portanto, ocupar, sim! Mas esse é só um passo de uma luta que na verdade é uma caminhada sem ponto de chegada preestabelecido.

Lembremo-nos, toda a virtude política que explodiu em 2013 foi rápida e sorrateiramente deslegitimada pelo conservadorismo que contra-atacou em 2015 e 2016 tão munido quanto imbatível. Que as atuais ocupações aproveitem a explosão que performam, mas que não pensem que isso é tudo. O mundo não mudará apenas porque alguma tentativa para tal chamou atenção da opinião pública, mas sim porque essa tentativa é levada adiante, sem trégua. O degrau físico/espacial já foi alcançado. O simbólico/performático também. Mais importante, porém, é encarar o resto da escada, que é arduamente política, e em cujos patamares superiores está a possibilidade de realização dos objetivos postos pelo presente.

Ocupai!

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Ocupar é fazer política? “Claro que sim!”, diriam aqueles atenienses da antiguidade que ocupavam constantemente o espaço público, com seus corpos e ideias, em defesa de seus interesses. Democracia direta é como chamamos o que eles faziam. Mesmo que a erva daninha da representatividade política, ou o que é o mesmo, a democracia indireta tenha pervertido o antigo fazer político desde que o mundo é da burguesia, em nenhum lugar está escrito que política não possa nem deva ser feita novamente com corpos presentes e potentes representando diretamente os seus desejos e necessidades. As ocupações reencarnam intempestivamente a antiga virtude de combinar corpo e mente na ação política, refundando assim uma civilidade mais autêntica.

Entretanto, a elite política & econômica, que muito se beneficia com a ausência física dos seus representados, treme de medo ao ver cerca de 1200 escolas e universidades ocupadas por milhares de ideias e corpos tão frescos quanto promissores. Felizmente, apesar da burrice de boa parte da opinião pública e da violência policial, as ocupações estudantis crescem, aparecem e se legitimam como força política eficiente. Como não lembrar da vitória dos estudantes de São Paulo sobre o peessedebista Alckmin em 2105? Muito embora a guerra em torno da educação no Brasil não tenha vencedores ainda – se é que terá -, uma coisa importante aquelas ocupações paulistas provaram: são capazes de vencer batalhas. E porventura não é delas que são feitas as guerras?

Para que as ocupações não percam o fio virtuoso da meada política que desenrolam, e para que possam cada vez mais contra o inimigo que tenta reprimi-las, seja com algemas, fuzis, tortura sonora, “Escola sem Partido”, “Reforma do Ensino Médio” e/ou “PEC do fim do mundo”, é bom que os ocupantes compreendam política enquanto afetividade. Não sentimentalismos, estados de espíritos, como pode parecer a alguns, mas sim uma rede de relações, originadas nos corpos, que são afetados desta ou daquela maneira, e que, por suas vezes, afetam outros corpos, de outras tantas maneiras, a fim de alcançar determinados objetivos. Tanto o corpo individual de cada estudante, como o corpo coeso e determinado de centenas ou milhares deles, por exemplo, são corpos políticos autênticos; unidades capazes de serem afetadas e, sobretudo, afetar.

Nesse momento a física tem uma excelente e intuitiva lição às ocupações, qual seja: “dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo”. Seguindo essa a “Lei da Impenetrabilidade”, enquanto corpos coesos e organizados os estudante ocupam os espaços de suas escolas não só porque o corpo do Estado não os ocupava devidamente, mas também para que esse Estado ausente volte a ser corpo único com os próprios estudantes e faça a sua parte de oferecer educação e futuro com qualidade para todos os estudantes. E isso começa por ser democrático em respeito aos projetos que tem para a educação e para o futuro.

A física também nos diz que se um corpo G (de golpista) quiser ocupar o lugar de um corpo A (de alunos), terá de aplicar-lhe uma força que vença a determinação própria de A de permanecer no lugar em que está, ou seja, a sua inércia. A violência com que o Estado golpista tenta se (re)colocar nos espaços das escolas ocupadas é essa força. E ela está sendo violenta, desumana, sem dizer inconstitucional. E isso porque para o Estado o corpo estudantil é matéria bruta e inerte, com sorte massa de manobra, e não como um corpo afetivo, pleno de desejos, aspirações, projetos e dignidade própria. Tratando as ocupações como se invasões fossem, e os estudantes como vândalos e vagabundos, o Estado pretende abafar duas verdades insuportáveis: a sua vergonhosa ausência nas escolas, e o fato de seus projetos para a educação não falarem a língua dos maiores interessados, quais sejam, os próprios estudantes.

A crise de representatividade política que veio à luz nas manifestações de junho de 2013 está encarnada nos estudantes ocupantes como em nenhum outro corpo político no Brasil. Tomara que eles representem melhor a crise de representatividade do que as flores da “Primavera Brasileira”. Desde lá, não só seguimos sendo afetados negativamente pela má representatividade, como a qualidade desse “serviço” piorou tragicamente. Raros somos os que agem contra esse afeto. Os jovens ocupantes são desse jaez. Quem ocupa age na medida em que acredita mais em si e nos que estão ao seu lado do que em qualquer outro corpo político para representar os seus interesses. Tampouco aceita que o seu corpo seja movimentado politicamente apenas nos eventos bienais das urnas.

Assim como aqueles gregos ingênuos de antigamente, que acreditaram que só com seus corpos e ideias presentes representariam bem seus interesses e resolveriam civilizadamente as suas mais importantes questões – e que por conta disso ostentam o título de “Berço da Civilização Ocidental”! – assim também os estudantes brasileiros ocupam as suas escolas com seus corpos e ideias e com isso constroem um presente tão digno de futuro quanto eles mesmos. O fato de as ocupações brasileiras serem incompreensíveis e/ou inaceitáveis das perspectivas da elite reacionária e da população ignorante não depõe contra o movimento. Muito pelo contrário, apenas prova que as ocupações são fortes o suficiente para ameaçarem, e oxalá derrubarem o velho status quo. Por isso, fazendo referência à ocupação talvez a mais célebre de todas, a de Wall Street em 2011, ocupai!

Que fim do mundo para o Brasil?

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Algo chama atenção nos apelidos da PEC 55 (ex-241) e da delação premiada de Marcelo Odebrecht na Operação Lava Jato. A “PEC-do-fim-do-mundo” e a “Delação-do-fim-do-mundo” compartilham, de modo trágico e viral, a ideia apocalíptica. Que “zeitgeist” tupiniquim é esse que aproxima os brasileiros da escatologia? Qual desses dois fins do mundo entretanto o povo deve evitar, e qual investir? E como?

Não há dúvida de que o congelamento dos gastos com saúde e educação no Brasil pelos próximos vinte anos, como tenta a polêmica PEC, é o fim do mundo aventurado no Brasil durante a era petista. Outrossim a publicização de crimes cometidos por grandes e protegidas figuras políticas, dentre elas ninguém menos que o presidente golpista da república, promete ser o fim do mundo, não só da impunidade no corrompidíssimo sistema político brasileiro, como o do próprio e presente golpe de estado.

O primeiro “fim do mundo”, o da PEC 55, afetará muito, e negativamente o povo brasileiro. Já o segundo, ao contrário, é a negativação –ainda que inicial, parcial – do que há de pior no Brasil. Da perspectiva do povo – que deve ser a “de Deus”, afinal, se a voz do povo é a voz dEle… -, o “fim-do-mundo-odebrechteano” portanto é desejável.

Por isso o povo deve investir nesse fim do mundo e exigir do Rei da República de Curitiba, o “juizeco” Sérgio Moro que investigue, julgue e puna seus delatados como o apelido apocalíptico da delação que os traz à luz promete. Como, porém, exigir isso de juiz tão empoderado quanto comprometido com os seus investigados, ainda mais na “judiciocracia” em que se transformou o Brasil?

Ao mesmo tempo o povo deve resistir contra a PEC-do-fim-do-mundo. A ocupação de mais de 1100 escolas e 70 universidades brasileiras contra os cortes em investimentos sociais, se não é a única solução, ao menos está colocada como a mais forte e promissora no momento. Basta, por conseguinte, que sejam fortalecidas e engrossadas para que haja possibilidade de o povo não ser oprimido como planejam seus algozes golpistas.

Minha aposta para ambos os desafios é no formato da ocupação como estratégia política. A exemplo do que está acontecendo dentro das escolas ocupadas, e que ganha cada vez mais força fora delas contra a PEC escatológica, ocupar os palácios do Poder Judiciário do país seja quiçá a única forma de o povo fazer uma pressão impossível de ser ignorada pelo “judiciocrata” Moro, para que a tal delação apocalíptica seja levada a cabo.

E isso porque ocupação é política feita com corpos. E se, como diz a física, dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, o corpo presente e resistente do povo nos lugares onde golpistas, corruptos e juízes vendidos atuam contra esse mesmo corpo popular é a melhor estratégia “que temos para hoje”. Se isso será o fim do mundo, oxalá o seja conforme imaginou Dostoiévski: “no fim do mundo … há de acontecer algo de sublime que satisfará todos os corações.”

Talvez o melhor apocalipse de todos seja mesmo o fim do mundo no qual o povo é corpo político ausente e miseravelmente presentificado pelos desgovernos dos seus representantes. E quem irá negar que a crise de representatividade política aberta espetacularmente em junho de 2013 é o que mais legitima e torna necessárias as atuais ocupações no Brasil? Afinal, onde ocupa o povo, não ocupa quem não o representa.

Incompetente demiurgia tupiniquim

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“Deus é brasileiro”, aquela expressão tão popular quanto ingênua, está sendo customizada pela mais histérica ignorância a ponto de os antigos conterrâneos dEle estarem já acreditando que “brasileiro é Deus”. “Hilary Clinton é comunista”; “Lula é o maior quadrilheiro da história do Brasil”; “filosofia, sociologia e arte são coisas de vagabundo”; e até mesmo a maior irrealidade de todas, “Cunha salvador”; é o que senão a plena ignorância mundana pretendendo-se onisciência divina?

Querer fazer destas afirmações verdades absolutas, se não é pretender agir como Deus, ou seja, criar o mundo do nada, é ao menos a mais pretensiosa demiurgia, isto é, a tentativa de fazer com que uma coisa seja absolutamente outra. É justamente isso o que acontece no Brasil: basta empunhar e tilintar uma panela aqui, vestir a camiseta da corrupta CBF ali, e, voilá, eis um novo “real” circulando pelas ruas do Brasil, por mais que a realidade ela mesma afirme o contrário.

Ora, se lá nos EUA Trump diz que imigrantes e muçulmanos devem ser expulsos porque assim ele deseja, e no Brasil Aécio sustenta que a voz do povo – que até então era a voz de Deus – errou ao eleger Dilma, por que cargas d’agua qualquer cidadão brasileiro não pode fazer o mesmo e inventar uma real para si? Se hoje em dia até os mais pobres sentem-se capazes de criar o mundo que lhes passa pela cabeça, imagina as elites, cuja vantagem é crer que compartilham a riqueza do mundo com aqueles dois “deuses caídos & reacionários”.

O problema é que essa produção de mundos inexistentes não chega nem perto de se colocar como utopia, ou seja, como imaginação de um mundo futuro libertador. Pior ainda, tem o vício de ser uma distopia, isto é, a ideia de um futuro decadente e opressor, só que trazido fortuitamente para o presente. Pressa em adiantar o apocalipse?

O brasileiro, enquanto um Ansioso Deus Distópico, remete ao que disse Slavoj Žižek no seu livro “O sofrimento de Deus”, qual seja, que “adotar uma postura apocalíptica é a única maneira de mantermos a cabeça fria”. Para o filósofo, isto faz sentido na medida em que querer se preocupar com o futuro a partir do que o presente está fazendo com ele é realmente não ter mais mas paz de espírito alguma.

E é exatamente isso o que a maioria dos brasileiros está fazendo: trazendo o caos que o capitalismo globalizado produtor de desigualdade e opressão sempre coloca no nosso horizonte para o exato agora. Assim a angústia dessa espera vira coisa do passado, mesmo que o preço para tal seja viver o “Apocalipse Now”. Mas por que o imediatismo contemporâneo é distópico & reacionário, e não “utopique et révolutionnaire?

Onde foi que a ideia de revolução frustrou o povo brasileiro a ponto de, hoje em dia, a maioria marchar deliberada e reaccionariamente? Longe de ser revolucionário, é preciso dizer, o lulismo no entanto foi a nossa maior aproximação da velha utopia de igualdade social, de divisão de renda e de oportunidade para todos. Seria porventura a timidez, e a consequente incompletude desse “socialismo à lá Lula” a razão da atual e massiva recusa a essa tentativa?

Se, como se diz, “Deus mora nos detalhes”, e, como está sendo dito aqui, o brasileiro pós-Lula comporta-se como se fosse Deus, uma boa conclusão para esse silogismo é o fato de o brasileiro ter se sentido apenas um detalhe desde o governo Lula. O problema é que antes, até o governo FHC, o povo era um detalhe ainda mais irrelevante, e que é exatamente o oposto com o governo Lula no qual o povo foi “a” preocupação central

Talvez esteja aí a chave da questão: enquanto o povo permanecia realmente um detalhe esquecido na realidade socioeconômica brasileira, ele não sabia que o era. Somente depois de Lula ter tentado fazer desse histórico detalhe menor, o povo, o centro focal da sua obra política, mas no entanto não tê-lo feito completamente, como uma crítica acurada precisa apontar, foi que este povo reconheceu-se como detalhe, ainda que minimamente focalizado como, nas palavras do próprio Lula, “nunca antes na história desse país”.

É como se a maioria da população tivesse chegado à conclusão de que “não deu”; “nem o Lula, o nosso grande pai, conseguiu nos salvar”; “deu-nos uma televisão de plasma aqui, um carro popular ali, uma viagem para a Europa acolá, mas consciência de classe que é bom para podermos revolucionar a realidade que desde sempre nos oprime, ah, isso ele não fez”. E o povo tem razão em se revoltar contra esse pai incompleto qual adolescente rebelde.

Fugimos então da casa da velha democracia; abandonamos o lar da razoabilidade; e nos refugiarmos debaixo da “Ponte para o Futuro” que o passado nos oferece espetacularmente. Aceitamos as pedras de crack políticas que os golpistas no oferecem para fumar, que, ao passo em que nos aliena da nossa presente frustração, rouba-nos a possibilidade de sermos saudáveis, livres e respeitados.

“Ah, Pai Lula e Mãe esquerda, vocês não me amaram o suficiente! Então vou dar motivos para vocês não me amarem de verdade: vou me entregar à droga da direita! Eis o que acontece. Qual Lúcifer caído, arrogamo-nos o direito de sermos deuses ou semideuses nós mesmos, criadores ignorantes de nossa realidade menor. Demiurgos incompetentes cujo destino é viver no inferno. Era ou não melhor quando o brasileiro acreditava apenas que Deus era conterrâneo seu?

Obrigado Doria. Obrigado Crivella.

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Graças a Deus “Universal” e ao chiquérrimo Yves “Saint” Laurent por terem escolhido o pastor Marcelo Crivella e o coxíssimo João Doria para governarem as duas mais espetaculares cidades brasileiras – muito embora eu tenha votado no Freixo, aqui no Rio, e, se fosse eleitor paulistano, teria escolhido o Haddad sem a menor sombra de dúvida.

Mas por que cargas d’água agradecer por algo que para muitos é tão trágico? – perguntaria justamente a minoria vencida em ambas as cidades? Ora – respondo – porque a única, todavia grande virtude dessa tragédia é o fato de a realidade estar sendo coerente consigo mesma.

Para entender essa ideia basta lembrar do que vem acontecendo no Brasil nos últimos dois anos: as panelas ruidosas nos metros quadrados mais caros do país contra a divisão de renda aventurada nos governos petistas; a “jihad” golpista da direita derrotada nas últimas eleições presidenciais para “eleger” indiretamente a fatídica “Ponte para o Futuro” deles; o Escola sem Partido; a PEC 241.

O que todas essas coisas tem em comum, sua estrutura genérica implícita, é nada outro que uma ofensiva incontrolável das direitas contra as esquerdas. E isso não é exclusividade do Brasil. No resto do mundo, a Europa de Le Pen e os EUA de Trump exemplificam muito bem esse movimento. A presente tragédia da realidade, portanto, é o protagonismo vitorioso e espetacular do 1% rico, que, para tal, precisa colocar os 99% restante mais na sombra ainda.

Tanto é assim, e tão generalizadamente, que nem cabe mais falar em “onde” a esquerda está sendo destruída pela direita, mas sim de “um tempo” – o presente – no qual isso acontece irrefreável e globalmente. E é desse ponto de vista que Doria ter sido escolhido pela rica sampa, e Crivella, pelo Rio reacionário, provam que a realidade está sendo consistente consigo mesma, sem falha alguma. Pelo menos isso!

Sejamos sinceros, e principalmente racionais: na época reacionária em que vivemos, se por acaso o petista Haddad tivesse vencido na “peessedebeizada” Terra da Garoa”, e o “esquerda-radical” Freixo tivesse ganho na cidade que só é “maravilhosa” para quem tem fé, seria como se a realidade estivesse, ou confessando que é esquizofrênica, ou tirando sarro da cara de todo mundo.

Às combalidas esquerdas tupiniquins é melhor que essa realidade se apresente em sua insuportável coerência mesmo. Reside aí quiçá a oportunidade para elas desacreditarem de seus muitos idealismos, para, aceitando plenamente a queda, reexperimentarem o gosto amargo que acompanha qualquer materialismo, e que nunca deveria ter sido esquecido. Só assim as esquerdas, parafraseando o samba de Beth Carvalho, sacodirão, levantarão a poeira e darão a volta por cima.

Foi um pecado político ter tido esperança de que o Haddad venceria em sampa, e o Freixo, no Rio. E isso porque esperar é não agir; é se privar do ato em função dos próprios idealismos; Conforme reza o materialismo de Espinosa: é cultivar a própria impotência, nada além disso. Para além das atuais derrotas das esquerdas paulista e carioca, é a coerência da realidade consigo mesma que devemos ter estômago para experimentar em toda a sua gravidade.

Afinal, é esse o (des)gosto que qualquer revolucionário deve engolir, ainda que a contragosto, caso queira efetivamente “mudar o mundo”. Agradeçamos à realidade o fato de ela estar se mostrando nua e cruamente. Vejamo-la sem os nossos tantos véus ideais. E, sobretudo, não nutramos esperança em relação a ela.

Por isso, repito: obrigado Doria, obrigado Crivella. Primeiramente, por permitir-nos ver a realidade como ela é, ou melhor, como está. E, segundamente, por frustrarem radicalmente as nossas esperanças. Agora estamos mais com os pés no chão do que antes – muito embora saibamos que esse chão se trate de um lodo fétido e reacionário.

Eu, o Brasil, e a filosofia.

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Dois mil e quinhentos anos é o tempo da filosofia no mundo. Faz pelo menos vinte que ela é presente na minha vida. E há três eu decidi graduar-me nela. “Mas, por quê?” – perguntavam-me à época. A resposta banal que eu dava era que a minha “philia” pela “sofia” era tamanha e tão antiga que eu precisava conhecê-la intimamente antes de morrer, afinal, não é bom que seja assim com as coisas que nos fazem felizes?

Em 2014, quando eu então ingressei na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, o senso comum acerca da filosofia me dizia, através dos comentários de familiares, amigos e conhecidos, que essa era uma profissão que não me daria dinheiro algum, muito embora fosse “bem interessante”. “Ainda bem que vc já tem uma profissão, pois sobreviver de filosofia vai ser bem difícil”, era o texto – ou o subtexto – que eu mais ouvia.

A despeito dessas pessoas, o meu objetivo íntimo com o “amor ao conhecimento”, era, e ainda é, ser professor/pesquisador em uma universidade, e pública, de preferencia. Objetivamente, o salário e as condições de trabalho, na época, me pareciam bastante dignos, e, subjetivamente, eu não tinha dúvida de que era a melhor ocupação até a minha morte, porque, citando Montaigne, “filosofar é aprender a morrer”.

Já no governo Dilma, contudo, a coisa começou a mudar. A terceirização de professores passou a ser presente no horizonte das universidades públicas brasileiras. Em outras palavras, as universidades não teriam mais pesquisadores em filosofia, dentre cujas atividades estaria dar aulas, mas simples horistas, funcionários contratados por outras empresas prestando serviço às universidades, como já acontece com a limpeza e a segurança dessas instituições. Uma quase “uberização” de tão nobre profissão.

Entretanto, o meu amor ao “amor ao conhecimento” não me deixou afastar um milímetro sequer dos meus estudos filosóficos. Resistência! Antes, a crise que aterrissava na universidade pública, e por consequência na da pista essencialmente crítica da filosofia, eram cada vez mais compreensíveis, e sobretudo suportáveis, quanto mais eu estudava Maquiavel, Espinosa, Kant, Hegel, Marx, entre tantos outros. Paradoxalmente, a própria faculdade de filosofia prometia me salvar da crise nas faculdades de filosofia.

Só que a coisa piorou mais. A partir de 2015 o espetáculo do impeachment que ocupou o palco da vida brasileira, muito antes de tirar Dilma da presidência, de imediato já “impitimou” a maioria das pessoas da presidência de suas próprias razões. “Intervenção Militar Já” e “Monarquia no Brasil”, só para citar duas das muitas barbaridades que passaram a ser inacreditavelmente lógicas na terra brasilis, implicitamente ameaçavam o horizonte do pensamento crítico e do culto ao saber.

A história nos lembra de que, diante de reis e ditadores, aqueles que questionam a realidade são enforcados, torturados, ou, com sorte, exilados. Agora chegou a vez de serem lumpemproletarizados! No entanto, novamente, o tsunami irracional que passou a assolar o  Brasil apenas me dizia que a torre da filosofia era o lugar mais seguro, não só para mim, mas para quem não quisesse se afogar na barbárie. Até porque a barbárie só é observável do belvedere da civilização, cujos arquitetos excelentes foram aqueles gregos filósofos da antiguidade. Do contrário, a barbárie é o real sem nome, sem conceito, e portanto sem escapatória.

Porém, em 2016, com o golpe de estado dado pela velha oligarquia política/econômica, o pensamento crítico deixou de ser um inimigo implícito do então poder protagonista. O “Escola sem Partido”, e sobretudo o fim do ensino de arte, sociologia e filosofia nas escolas, golpisticamente travestido de “desobrigatoriedade”, são ações concretas, não só contra o conhecimento, como principalmente contra o amor a ele.

Hoje em dia é o Estado que me diz, verticalmente e com todas as suas tortas letras, que filosofia é um péssimo negócio. E o terremoto da razão tupiniquim que começou em 2015, em 2016 faz com que o fato de alguém estudar filosofia – mas também sociologia, história, artes – seja considerado falha de caráter. “Pobre”, “vagabundo”, “comunista”, e até mesmo “petista” passaram a ser sinônimos de quem se ocupa com ciências sociais ou arte, claro, de acordo com a (des)razão que impera no Brasil atualmente

E com a PEC 241, mais conhecida como “PEC do fim do mundo”, o fato de se ter uma graduação em filosofia, mais do que antes, não dará dinheiro mesmo, e agora, pelo menos durante os próximos 20 anos. Sem dizer que, ideologicamente, será uma chaga purulenta da perspectiva da classe golpista dominante. Só que o domínio dessa classe, embora notadamente econômico e político, para por aí. Pois o desprezo dela em relação à razão e ao saber, embora fantasiado de senhor,  não deixa de ser escravo, e o que é mias grave, do pior de si mesma.

Se, diferente do que planejei em 2013, o meu destino em filosofia, no Brasil, a partir de 2016, é ser pobre e marginalizado, que assim seja. Tamanha adversidade pode inclusive fazer com que a filosofia brilhe mais forte, não só em mim, mas, com sorte, no meu país, mais do que se o pensar se encontrasse em condições totalmente favoráveis, o que, na verdade, estimula-o menos. Afinal, parafraseando o dito popular, o que é proibido e marginalizado por uma ideologia retrógrada e golpista é muito, muito mais gostoso, sem dizer necessário.

Papo reto, carioca.

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“Malandro é malandro e mané é mané”, dirá eternamente o samba de Bezerra da Silva. Por agora, entretanto, para a cidade do Rio de Janeiro, que neste domingo escolhe o seu novo prefeito, o verso de Silva deve ser parafraseado caso o carioca queira seguir cantando a sua malandragem. Para tanto, a música que deve fazer reverberar nas urnas é a seguinte: Malandro que é malandro vota em Freixo e mané que é mané vota em Crivella.

Fala sério! Que malandro iria preferir ser governado por um pastor evangélico homofóbico, racista, classista, fantoche da pior direita fundamentalista, em vez de confiar os próximos quatro anos de sua cidade a um professor de história, laico, democrático, libertário, inclusivo e representante autêntico de uma das melhores esquerdas que temos no momento? Malandro que escolhe o primeiro, desculpe-me, é mané, ainda que tenha sido doutrinado do contrário.

Mané é aquele que não percebe que o Crivella, ao dizer: “Quero mudar radicalmente a saúde e a educação dos cariocas”, e ao mesmo tempo ser apólogo ferrenho da PEC 241, trata, não só os seus fiéis, mas o povo como um todo, como ignorantes que não irão enxergar que ele, primeiramente, quer encher os bolsos de sua Igreja, e, segundamente, engordar os cofres dos banqueiros e empresários. Se o pastor vai mudar radicalmente a saúde e a educação dos cariocas, o fará, no entanto, para pior.

A cidade boêmia e alegre que só ela, lar e destino turístico de gays e lésbicas de todos os cantos do mundo, terra de todas as cores, religiões e classes sociais, não pode de forma alguma ter como prefeito um sujeito que discursa descaradamente que homossexualidade é pecado e/ou doença; que pelo fato de as mulheres terem sido “feitas da costela de Adão devem obedecer mais aos homens”; que o catolicismo é uma religião de idólatras hereges; e que, num jantar religioso/político em um apartamento chique na Vieira Souto, diz que “o povo lá de trás” – os suburbanos e pobres- tem que entender a priorização da já rica Zona Sul, “afinal, é a vitrine do Rio!”

Mané que é mané escolhe os seus representantes políticos de acordo com a ordem do pastor mais próximo, sem levar em consideração que há séculos a coisa mais racional é separar completamente política e religião. Malandro que é malandro, ao contrário, independentemente de sua fé – ou da falta dela -, não se esquece de que a política existe para de resolver problemas mundanos concretos, como saúde, educação, segurança, e que melhor realiza essas tarefas quanto mais distante estiver de questões espirituais abstratas.

O Brasil é um Estado laico, diz a Constituição, e, por consequência, a cidade do Rio de Janeiro. Malandro não só respeita essa determinação, como também está em sua essência querer que isso seja respeitado por todos. Já o mané, em contrapartida, rasga a letra da lei do país ao votar em um candidato que profetiza que “ainda teremos um presidente da República evangélico que finalmente faça por nossa Igreja”, como disse Crivella em um de seus cultos/comícios.

Votar no pastor que defende a PEC do fim do mundo, o Escola sem Partido, o fim das discussões sobre gênero, é transformar a pretensa Cidade Maravilhosa em uma cidade medieval em pleno século XXI. Votar em Freixo, em contrapartida, que defende justamente o oposto do pastor, é fazer o Rio de Janeiro ser, não maravilhoso, coisa que um mínimo realismo mostra que demorará muito ainda, mas ao menos um pouco melhor do que já é. Só assim será possível esta cidade, um dia, ser maravilhosa. Por isso, malandro, nesse domingo é Freixo 50!

O Estado contra o povo. E este?

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O Estado brasileiro está em guerra contra o povo! Primeiramente, o golpe parlamentar dado por um bando de criminosos cínicos, e, por último, a PEC 241 deles, seguida da tentativa de impedir manifestações e greves contrária a esse mesmo Estado golpista, sugerem que o “PMSDB”, o Frankenstein oligárquico que tomou o país de assalto, seja o grande inimigo. Só que não! Tais políticos golpistas são só a metralhadora giratória do verdadeiro inimigo. Quem é ele, na verdade? O que está fazendo o povo atacado? E se não está, por que essa passividade diante de tamanha violência?

Se, como a práxis liberal não faz questão de esconder, a política apenas faz o trabalho sujo da economia, o monstro que está em guerra contra o povo, portanto, é ninguém menos que o 1% da população que detém 50% da riqueza, como bem nomearam e popularizaram os 99% restantes e manifestantes do  Ocuppy Wall Street de 2011. Sim, é essa minoria, dona espúria de pelo menos metade da riqueza, e que quer mais ainda – desejo sem o qual capitalismo algum se sustenta -, que está em guerra contra o povo.

“O Capital do Século XXI”, livro que Thomas Piketty lançou em 2013, traz informações suficientes para vermos que, atualmente, a concentração de riqueza nas mãos de poucos é maior do que na Belle Époque, período entre o quarto final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial no qual se observou a até então a maior desigualdade socioeconômica da história da humanidade. Cínico mesmo é aquela época seguir sendo chamada de bela. “Belle” para quem, cara pálida&rica? Outrossim cínico é o programa de guerra dos golpistas brasileiros, o “Ponte para o Futuro”, que, entretanto, ao povo outra coisa não diz senão aquele verso de “God Save the Queen”, do Sex Pistols: “No future for you”.

Com efeito, o 1% está mais poderoso – e ávido – do que nunca! E é ele que, na verdade, dispara golpes, PECs, partidos políticos e juízes entogados contra os 99% restantes. De modo que, apesar de ser uma difícil tarefa, não devemos gastar toda a nossa revolta contra os políticos e juízes espetacularmente golpistas, visto que a atual e forte investida destes contra o povo é só o projeto/projétil dos seus discretos patrões neoliberais. Marxianamente falando, o inimigo é essencialmente econômico/capitalista, e só aparentemente político/brasileiro.

Agora, se, como explica Piketty, as astronômicas concentração de riqueza e desigualdade socioeconômica da Belle Époque só foram alquebradas pela primeira grande guerra (1914), assim como a tentativa de retomá-las foi frustrada pelo segundo conflito mundial (1939) – e isso porque, segundo o autor, nessas duas ocasiões a riqueza acumulada foi contragosto “socializada”, tanto no investimento bélico dos Estados antes e durante as guerras, quanto na reconstrução das sociedades, depois delas -, as atuais e ainda maiores concentração de riqueza e desigualdade socioeconômica dos 1% que se voltam política&belicamente contra os “99%”, seguindo a lógica pikettyana só seriam malogradas por uma Terceira Guerra Mundial.

Não obstante a certeza de Piketty de que um terceiro conflito global faria isso, o investimento teórico do economista é em um reformismo social democrata, que, no entanto, como a realidade mostra muito bem, só entrincheira confortavelmente os interesses dos 1%. Portanto, em função dos interesses dos 99%, sigo apostando na violência disruptiva, seja a das grandes guerras, seja ainda, nacionalmente, a da guerra civil.

Se o voto do cidadão já não vale nada, como o atual golpe deixou bem claro, tampouco é possível acreditar em hashtags, como largamente se faz hoje em dia. As #NÃOVAITERGOLPE, #FORATEMER e #NÃOÀPEC214, só para citar três famosas, embora massivas são todavia andorinhas solitárias que, politicamente, não tem capacidade alguma de fazem verdadeiros verões populares. Não os fizeram; não os estão fazendo; e não os farão! Nem mesmo as estratégias clássicas do povo contra a dominação das elites, como megamanifestações populares e/ou greves nacionais, funcionam mais; aquelas facilmente anuladas pela mídia; e estas, despoticamente ameaçadas por juízes golpistas.

Como disse Alain Badiou dos revolucionários de maio de 1968, eles perderam a “guerra” porque insistiram em velhos conceitos e performances da “esquerda revolucionária” que, entretanto, já estavam computados subversivamente pela direita inimiga. Não foram verdadeiramente revolucionários porque não foram suficientemente violentos. Isto é, não violaram o jogo de cartas marcadas imposto a eles pelo inimigo. Da mesma forma, a resistência tupiniquim contra os seus ativíssimos algozes é tão ou mais velha que estes.

Àqueles que sustentam, não sem razão, que as guerras são, em última instância, eficientes ferramentas do capitalismo para, em meio a uma crise, retomar grande e maior fôlego, é preciso contrapor que, se, por um lado, a violência máxima possibilita uma maior dominação do capital, por outro, retomando Piketty, é somente durante e imediatamente às guerras que é impossível para o capital seguir o seu curso natural de acumular-se em cada vez menos mãos, empoderando-as contra o povo. Então, não seria o caso de o povo querer grandes guerras, por exemplo, a cada 20 ou 30 anos?

O problema dessa ideia é o seu radicalismo, principalmente para os sujeitos burgueses&hedonistas, demasiado burgueses&hedonistas que somos. Hoje em dia não há nada mais absurdo do que imaginar arriscar a vida por uma nobre causa. Preferimos ser golpeados, vilipendiados cinicamente em nossos direitos, mesmo com alto e consequente preço de os 1% detentores de 50% da riqueza se tornarem os 0,01% donos de 99,99% da mesma riqueza, do que colocarmos nossos corpinhos lumpemproletarizados, todavia satisfeitos com uma TV de plasma e um automóvel popular, na linha de frente de qualquer guerra. A burguesia foi o berço excelente desse sujeito tão covarde quanto alienado do seu horizonte de respeito e liberdade.

Porém, ainda que, no caso brasileiro, deflagrar uma guerra civil estivesse no horizonte povo, como este se organizaria? Com que armas lutaria conta o violento Estado golpista? Antes que ressurjam velhos AIs ditatoriais ao modo do golpe de 1964, confesso que eu não só empunharia metralhadoras contra o parlamento golpista do meu país, como também, se alvejado fatalmente, nos últimos segundos de existência que me restassem, fruiria o maravilhoso gosto agridoce – que se confunde com o de sangue – de ter dado o valor máximo à minha simples vida.

Todavia, quase todos os meus concidadãos insatisfeitos com a situação do nosso país – com certa exceção aos Black Blocs, é preciso dizer – são tão “esquerda festiva” e “hashtaguicos”, tão pouco dispostos à violência radical, que, como andorinha solitária, é impossível participar que qualquer verão sangrento contra o invernal Estado golpista. Três companheiros do Partido Comunista Brasileiro com quem conversei disseram que não sabem de nenhuma resistência armada sendo formada contra os golpistas de Brasília, nem nada do gênero. Quando aqueles que são radicalmente contra a dominação dos 99% pelos 1% não têm em seu horizonte outras regras que não aquelas ditadas por estes 1%,  a guerra realmente é perdida antes mesmo de ser imaginada.

Talvez o Estado golpista inimigo não tenha até aqui sido tão violento, tão inimigo do povo a ponto de este se organizar, violenta e belicamente, contra ele – por mais que os poucos meses de golpe devessem provar o contrário. Pergunto-me, por conseguinte, quanto tempo levará; quantos direitos os golpistas ainda terão de furtar do povo para que recebam uma contraofensiva radical e mortal?

Espero que a demora do povo brasileiro em aceitar o convite à guerra que o Estado já declarou contra ele seja quiçá o tempo de o povo entrar em constelação em seu atual e absurdo vilipêndio, não mediante hashtags nem passeatas festivas, mas, como a teoria política de Spinoza propõe, em armas. E isso porque, no atual estado da guerra, retórica alguma dá melhor voz ao povo do que muitos e certeiros estampidos de revólver. Basta apenas que o povo perca o seu burguês medo de morrer lutando pelo que lhe é essencial, encarnando algo de uma esquecida antiguidade anterior ao capitalismo, qual seja: o heroísmo inegável de morrer na guerra que não pode deixar de ser travada.

Retornando às raízes do Estado com Thomas Hobbes

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“Quem tem medo do Lobo Mau?”, cantarolava Chapeuzinho Vermelho enquanto cruzava o bosque, não porque destemesse verdadeiramente a fera, mas, ao contrário, porque precisava se alienar desse temor para seguir caminhando. Visto que “homo homini lupus”, isto é, que o homem é o lobo do homem,  como disse o dramaturgo romano Plauto duzentos anos antes de Cristo, e como repetiu categoricamente o filósofo inglês Thomas Hobbes dezenove séculos depois, os seres humanos têm medo do Lobo Mau na medida em que sabem que o maior perigo – o lobo – é o outro – humano.

Assim como Chapeuzinho, todavia nas nossas urbes globalizadas, cantarolamos para nos distrairmos do perigo que somos uns para os outros. Só que fora da ficção, entoar melodias ingênuas não basta. Hobbes deixou bem claro no seu “Leviatã” que precisamos da pesada ópera do Estado Civil para que o frágil espetáculo das nossas vidas prossiga com um mínimo de segurança. Usamos o “earplug” leviatânico para deixar de ouvir o ruído insuportável do “homo homini lupus”, que na teoria do filósofo inglês se eternizou no “medo da morte violenta”, o fundamento seu Estado.

A gravidade dessa fundamentação, todavia, encontra severa resistência nos sujeitos burgueses-tardios que somos. Parece uma afronta até assumir que nos organizamos civilmente por causa do medo de sermos mortos violentamente – muito embora tal temor de fato nunca tenha desaparecido do nosso horizonte. Antes, nos satisfazemos com a ideia de que o Estado está aí apenas para garantir à propriedade privada, para regular as relações trabalhistas, para assegurar o cumprimento de contratos comerciais e civis que os indivíduos travam entre si, e coisas desse tipo.

Sem dizer que, hoje em dia, nesse nosso mundo multiculturalista, demasiado multiculturalista, a função primordial do Estado é como que pervertida no sentido de, antes de tudo, garantir que os gays possam casar e adotar crianças; que as mulheres não sejam oprimidas pelos homens; que os negros tenham os mesmos direitos que os brancos; que muçulmanos e umbandistas desfrutem de liberdade de crença, e por aí vai. Antes que chovam críticas à minha crítica ao multiculturalismo, declaro que não tenho dúvida de que Estado deve também atender às demandas multiculturais. Elas são muitíssimo importantes. Mas não fundamentais.

O que se pretende evidenciar na ideia de que o Estado deve se fundamentar no liberalismo e multiculturalismo, entretanto, é a distância em relação ao Estado hobbesiano cujo fundamento é livrar os indivíduos da morte violenta. Então, pergunto:  não estariam o capitalismo e o multiculturalismo fazendo as vezes da canção ingênua de Chapeuzinho Vermelho no sentido de nos alienar do perigo que nunca deixamos de representar uns aos outros, qual seja, a morte violenta? Considerando as imensas crises que nos ameaçam – ecológica, econômica, social, política, humana -, é preciso cantarolar muito para deixar de ver que seguimos sendo os nossos próprios e maiores lobos.

Embora o Leviatã hobbesiano tenha vindo ao mundo para livrar os indivíduos do perigo da morte violenta, por meio dele intentamos mais, muito mais – burgueses que somos. Desejamos, na verdade, alienar-nos da ideia desse perigo. Por isso o Estado deve ser fortuitamente a (des)unidade de uma miríade de burocracias menores e cada vez mais particularistas em vez de ser o fruto do contrato social travado por todos os indivíduos cujo objetivo primordial é impedir que sejamos mortos violentamente – ou que ao menos haja justiça no caso de sermos.

Pensando assim, todavia, nos esquecemos de que a morte e a violência combinadas subsistem, seja nas megafavelas que se multiplicam na Ásia, África e América Latina, nas toneladas de agrotóxico que consumimos nos nossos alimentos, seja ainda nas ações do Estado sempre que ele faz a manutenção de sua (des)ordem. Hobbes se compadeceria conosco pelo fato de não mais considerarmos o universal medo da morte violenta como o fundamento da nossa Constituição Civil, mas, no lugar dele, uma sorte de pseudofundamentos mais fracos e particularistas, cujo custo não obstante é outra sorte de mortes e violências que, se por um lado são menos violentas, por outro são muito mais presentes.

Talvez a dureza da ideia hobbesiana, qual seja, que fundamos nossos Estados para evitar a morte violenta, seja o arquétipo mais efetivo para evitarmos não só a própria morte violenta, obviamente, pois as estatísticas provam que dessa vulnerabilidade ainda não nos libertamos, como também as micro&múltiplas mortes que nos acossam despudorada e diariamente, tanto no ar que respiramos, na água que bebemos, na exploração que sofremos no trabalho, quanto nas imigrações forçadas por guerras e crises econômicas. Ou pelo menos para que elas não permaneçam demasiadamente desconsideradas.

Com efeito, é um proposta radical retirarmos a teoria hobbesiana do seu estado zumbi para a reencontrarmos em sua insuportável gravidade. Todavia, um retorno às raízes do Estado Moderno, à fundamentação do Leviatã que Hobbes descreveu tão bem, é urgente, pelo menos na medida em que, como muitos dizem, nunca deixamos de ser modernos. Metaforicamente, é como as árvores, que só podem “evoluir” na medida que também são, o tempo todo, as suas raízes. Se se alienassem disso, morreriam. Outra coisa não seriam que lobas de si mesmas. Como, entretanto, é o homem que é o lobo de si mesmo, o mínimo que devemos fazer é não nos esquecermos disso, radicalmente.

Maquiavel contra o golpe

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Contra a circunstancial “vitória” da oligarquia política brasileira, ou, sem papas na língua, contra o golpe, em vez de indignação, melancolia, e até mesmo apatia plena, a minha aposta radical – que retorna às raízes – é na visão política de Nicolau Maquiavel. E isso porque o inaugurador do “pensamento político moderno”, tendo revelado a essência conflitiva das relações políticas, faz-nos compreender tanto ímpeto de dominação dos “grandes” contra o “povo”, como também e principalmente o desejo de liberdade do povo, e, mais importante, o modo de construí-la a partir do conflito político ele mesmo.

Em primeiro lugar, devemos dispensar a ideia vulgar de que, para este autor, “os fins justificam os meios” apenas. Ora, quando se justifica certas causas em função de um efeito, retrospectivamente, fora do tempo em que tais causas de fato “causam”, perde-se o caráter plenamente agonístico da política. Em suma, justificar o passado através do presente é sempre um anacronismo insuficiente. Toda ação política tem de ser justificada em si mesma, no seu átimo kairológico, sem contar com “perdão” futuro algum. Reside aí um princípio de justiça muito elementar, pois, como bem coloca o filósofo Thomas Berns, quando “os fins justificam os meios” essa justificação “chega sempre tarde demais”.

Enquanto crermos que “tudo vale para se conseguir um fim”, o que por sua vez justifica inclusive as mais pérfidas tiranias, deixamos de ser agraciados com a potência republicana das ideias de Maquiavel. O pensamento do renascentista demonstra, de modo muito mais sofisticado e autojustificado que a teoria moral de Kant, o caminho para a liberdade, que na verdade é o desejo genuíno do povo, bem como o sempiterno “tecido conflitivo” da política, sobre o qual aliás essa liberdade –sempre desejada pelo povo e sempre contestada pelos dominantes- deve ser, digamos assim, “bordada” fortuitamente.

O Maquiavel republicano faz do embate entre “grandes” e  “povo” a cena excelente e sempiterna do palco político. Na linguagem pré-sociológica do autor, o “humor” objetivo dos grandes é o de dominar; enquanto o do povo é o de não ser dominado. A grande revolução trazida ao mundo por este pensador é a desmoralização do conflito político, que, para além de qualquer bem ou mal substancial, sustenta que a realização do humor essencial do povo, qual seja, a liberdade, só calha de parecer um bem a partir do conflito com o humor essencial dos grandes, qual seja, dominar.

O filósofo francês Gérard Sfez explica que a insolubilidade do conflito político na teoria maquiaveliana se deve a uma dupla assimetria. Em primeiro lugar, diz o autor, ambas as partes disputantes não querem a mesma coisa: os grandes querem dominar; o povo, não ser dominado. É importante atentar para a diferença entre os objetos desses desejos. Em segundo lugar, grandes e povo tampouco buscam a realização dos seus díspares humores do mesmo modo: os grandes dominam às custas dos direitos do povo, ao passo que este, diferentemente, só alcança a sua liberdade ao preço de todos, grandes e povo, compartilhares dos mesmos direitos.

Se cada lado do conflito quisesse a mesma coisa que a outra, por exemplo, dominar apenas, bastaria o povo “cortar as cabeças” dos grandes para instituir o seu domínio. Nesse caso, não obstante, o povo realizaria, não o seu humor essencial, que é o de ser livre, mas o humor do inimigo, que é o de dominar. O problema disso é que, excluindo o outro –os grandes- da relação política, Maquiavel nos faz ver que a própria ideia de povo se desfaz, e por conseguinte, o próprio tecido político no qual ela se inscreve agonisticamente. Pior ainda, diz o italiano, um conflito de mesmo calibre se estabeleceria no corpo político formado somente pelo povo mediante toda sorte de oportunismos particularistas.

Eliminando o seu outro, o povo perde a sua identidade política, que se torna concreta somente a partir da oposição em relação aos grandes, pois, conforme Maquiavel, o conflito entre grandes e povo é a condição de existência do fenômeno político. A realização de um não deve significar a inexistência do outro, visto que querem coisas distintas, e de modos distintos. O povo quer liberdade. Para isso precisa ter seus direitos respeitados e ampliados conforme a ideia objetiva de bem-comum, que não obstante só se revela na presença opositiva dos grandes. Já estes, querem dominar. E para tal precisam furtar os direitos povo, afastando-se da ideia de bem-comum. Entretanto, a existência do outro/povo é fundamental aos grandes. Do contrário, a quem dominariam?

A visão política de Maquiavel é tão intuitiva e universal que sequer precisamos fazer paralelos explícitos com a circunstância brasileira. O conflito entre grandes/golpistas e povo/golpeado é insuportavelmente aclarado sob a lanterna maquiaveliana. Que no Brasil os “grandes” estejam realizando o seu “humor” dominador de forma tão contundente não deve ser visto, maquiavelianamente, em termos de bem e de mal, pois a liberdade do povo só pode ser um objeto de desejo, e moralmente figurar como  um bem, porque furtada pelos grandes. Mutatis mutandis, não ser dominado é um humor que só se revela e se pode positivar contra um humor dominador. Do contrário, seria um idealismo que não faz verão no moderno pragmatismo político de Maquiavel.

Uma lição fundamental de Maquiavel é a seguinte: o povo não deve querer a extinção dos grandes, mas sim conquistar para si o poder de, agonística e politicamente, conter o ímpeto dominador deles, a ponto de ser o agente de sua própria liberdade. A empresa do povo, entrementes, precisa primeiro positivar o seu “humor” essencial, que nasce negativado na forma de “não ser dominado”. E essa positivação se dá quando o “não ser dominado” se torna  “ser livre”, ao modo da distinção marxiana entre trabalhador e proletário: o trabalhador é o agente negativo da revolução; sua positivação se dá quando ele encarna o proletário.

Ora, não basta desejar não ser dominado, pois nesse aquém negativo não se contempla o inimigo em sua obstacular positividade. Para tanto, o povo precisa conhecer tanto o seu desejo essencial, quanto o do seu oponente. Só assim, na agonia do conflito político, não desejará inadvertidamente o desejo do outro, ou seja, o humor dominador dos grandes, que faria do povo o seu próprio inimigo. Para Maquiavel, a completa falta de virtude política! Uma segunda lição de Maquiavel, portanto, é o velho “Conhece-te a ti mesmo” socrático.

Em terceiro e mais árduo lugar, temos a lição maquiaveliana do combate à corrupção das instituições republicanas que desequilibra o conflito político sempre em benefício dos grandes. Para Maquiavel, o conflito político permite a realização do humor do povo somente enquanto as leis, que estabelecem as regras do conflito político, puderem ser sustentadas pelas instituições. Só assim é possível conter os excessos da cada um dos lados, ao mesmo tempo em que ambos expressem os seus desejos. O problema, aponta o autor, é que, republicanamente, as leis se modificam em função do bem-comum, ao passo que as instituições que as devem sustentar não acompanham essa dinâmica. E é nesse descompasso que a corrupção – que prefere os grandes e pretere o povo- faz carreira.

Em solução a isso, Maquiavel propõe uma “refundação” sistemática da república. Pragmaticamente falando, trata-se de um retorno lógico, e não cronológico!, ao momento pré-legal/institucional que fundamenta a existência das leis e das instituições. Somente nesse “ground zero” a corrupção inexiste, pois só aí lei e instituição se alinham absolutamente ao modo de se confundirem. O exemplo clássico de Maquiavel é o mito fratricida de Rômulo e Remo que funda Roma, ao qual o povo romano deveria “retornar” –a cada dez anos, no máximo, vaticina o italiano- para então reencontrar a razão de ser de suas Leis e instituições.

No caso romano, uma pergunta simples e estratégica bastava para produzir o tal “retorno à origem” pré-legal que justifica tanto a necessidade da Lei, quanto o seu sustento institucional pleno: Rômulo não mataria Remo por quê? Em resposta a ela, entretanto, não devemos vir com moralismos do tipo “porque assim Deus deseja”. Antes, é a angustiosa falta de resposta que deve nos ocupar nesse exercício lógico. Ora, na inexistência de uma lei, Rômulo não comete crime algum ao matar seu irmão. Mas por que deveria haver uma lei que o tivesse proibido? Por quê? Essa resposta justifica inequivocamente tanto a existência da Lei como principalmente a necessidade de instituições que a façam valer. Do contrário, a lei passa a ser um idealismo que somente permitiria a “Rômulos” seguirem matando “Remos”.

E no caso brasileiro, que átimo pré-legal e institucional fundador devemos retornar a fim de atualizar a razão de ser da nossa república, de ressincronizar suas leis e instituições? A violência assassina fundamental maquiaveliana, irmã mais velha do “medo da morte violenta” hobbesiano, é a resposta mais fácil, todavia demasiado genérica. Façamo-nos então a mesma pergunta maquiaveliana que os romanos deveriam fazer a si mesmos, buscando no entanto uma resposta à lá brasileira: os “grandes” não devem dominar o “povo” por quê? Dito de modo mais direto ainda: a nossa oligarquia política-econômica não deve golpear o povo em função de quê? Com esta resposta encontraríamos o casamento perfeito, ainda não corrompido, entre leis e instituições, ao menos no sentido de golpistas serem barrados de alguma forma.

O atual golpe de estado dado pelos “grandes” do PMDB e do PSDB é a prova de que as nossas instituições estão aquém das leis que dizem defender. Por isso a Constituição, como se diz, está sendo rasgada. Todavia, maquiavelianamente falando, não é que as instituições estejam corrompidas, nem que sejam a sede excelente da corrupção, mas, antes, que elas apenas não estão a par da atualidade das leis que deveriam fazer valer. As atuais instituições político-jurídicas brasileiras encontrariam plena atualidade num Brasil de cem anos atrás ou mais, mas não no país pós-Lula, no qual o povo também passou a ser objeto de contemplação das leis. Usar “Maquiavel contra o golpe”, portanto, é tornar insuportável a necessidade de reencontrar a resposta para a seguinte pergunta: os grandes não devem golpear o povo por quê?

Política: passo, tropeço, novo passo, novo tropeço… ad aeternum.

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Já não era sem tempo: o brasileiro finalmente quer fazer política! Entretanto, por mais virtuoso e desejável que seja este passo, isso não quer dizer que a pura intenção de ser um autêntico cidadão da “pólis” seja imediatamente acompanhada de boa performance. O empuxo do longevo vício da despolitização é forte e faz tropeçar no movimento para além de si por muito tempo ainda, quiçá até o final, diriam os mais realistas. E isso porque não existe o ideal estado político puro. A política ela mesma outra coisa não é senão a ininterrupta ação humana de se afastar do despotismo, sua figura anterior e justificadora, de modo que só se faz política porque, parafraseando Marx no Manifesto Comunista, o espectro do despotismo sempre rondará a humanidade. E o momentum  brasilis apenas relembra-nos disso.

Agora, de onde vem as ideias de que, primeiro, o brasileiro finalmente quer fazer política, e, segundo, que tropeça nessa tentativa? Pois bem, os exemplos mais espetaculares são: a “Primavera brasileira” de 2013, que gritava e vandalizava bancos e paradas de ônibus em nome de um Brasil “Padrão FIFA”; e os “Invernos reacionários/golpistas” de 2015 e 2016”, que culminaram na suspensão da democracia no país. Ambas as ações foram tentativas coletivas de se fazer política, todavia “com as próprias mãos”. Não obstante, como podemos observar, elas mostraram-se ineficiente em ambos os casos, vide o atual desgoverno golpista que não prioriza um Brasil para multidão alguma, mas para uma elite que atende muito bem pelo apelido de “os 1% mais ricos”, e olhe lá.

O passo e o tropeço de junho de 2013, por exemplo, foi a multidão ter pedido por saúde, educação, segurança, e até mesmo representatividade política “Padrão FIFA”, esquecendo-se de que a FIFA é tão ou mais corrompida e gentrificatória do que a estrutura política que essa mesma multidão queria revolucionar. Não à toa a jovem e venturosa promenade petista de distribuição de renda e inclusão social, bem como e principalmente o engatinhar contra a corrupção sistêmica, tudo isso realmente se tornou “Padrão FIFA”, isto é, deixou de existir efetivamente, ainda que sobreviva mentirosamente sob o lema “Ponte para o futuro”. Aqui é inevitável não lembrar daquela máxima: “muito cuidado com o que tu desejas”.

Já o passo e o tropeço dos “coxinhas” de 2015 e 2016 se confundem espetacular e imediatamente. A ação “política” deles desde o princípio foi um tiro no pé, não só nos deles, infelizmente, mas nos de todos os brasileiros –com exceção dos pés em meias de seda dos famigerados 1% mais ricos. Pedir por “Intervenção Militar Já”, pela volta da ditadura, e o que pior e mais surpreendente, pela restituição da monarquia no Brasil é o que senão o ato político mais errático de todos, justamente por pedir a sua própria anulação? Os “coxinhas”, cujos clamores paradoxais pretendiam por fim à crise econômica e à corrupção política sistêmica, com governo golpista que ajudaram a instituir apenas ganharam mais crise econômica e mais corrupção. Afinal, o que há de mais corrompido do que um bando de corruptos rasgarem a constituição e desmontarem a democracia diante do país inteiro para não terem de pagar pelos seus próprios crimes?

E o andar errático do povo brasileiro no terreno da política, hoje em dia, transcendeu a sua forma multidudinária, claras nos ajuntamentos de 2013, 2015 e 2016, para se imanentizar nos indivíduos. Os cada vez mais numerosos casos de “arruaças políticas” entre cidadãos e entre cidadãos e políticos, cujos registros vão se amontoando no Youtube, são a proliferação desses andares erráticos em nome da política. Realmente muitas pessoas estão acreditando que ficar gritando “ladrão, sem-vergonha, petista de merda” dentro de um restaurante ou em um voo doméstico é fazer política. Se isso é política, o é contudo no modo de estar com um pé no enlodaçado latifúndio do despotismo e o outro no ar, logo acima do areal continental da política. Não basta usar a palavra para se fazer política. É necessário que a palavra suprima a violência despótica.

Se ao menos essas arruaças pré-políticas que estamos vendo coinduzirem o “politizando cidadão brasileiro” adiante, isto é, para longe dessa performatividade despótica travestida de política, já terá valido a pena. Ademais, talvez esse seja o único caminho da politização ela mesma. Aqui é fundamental lembrar Hegel: não se começa acertando, mas, em contrapartida, o acerto é apenas o fim de uma procissão de erros. Com efeito, a ignorância política do brasileiro não tinha como dar um fim a si mesma para, imediatamente, ser triunfante, isto é, politicamente correta. O tão condenável “politicamente incorreto” também é o entremeio entre o erro despótico e o acerto político. Em uma palavra, só se erra politicamente quando se tenta ser político. Do contrário, o que se tem é apenas o prosseguimento desavergonhado do despotismo.

A metáfora do arqueiro, que para acertar “na mosca” não deve de forma alguma mirar exatamente no alvo, mas, ao contrário, um tanto mais acima dele, a fim de vencer a força da gravidade, e também um tanto mais à esquerda ou à direita, por conta da influência do vento, é pertinente aos neonatos políticos tupiniquins. E isso porque a ingenuidade política do nosso povo é acreditar que para acertar o seu alvo, deve mirar exatamente nele. Por isso erra. Também pudera, saber os desvios e descontos políticos necessários para se atingir o alvo das próprias realizações em cheio é espécie de ciência empírica que demanda uma série indefinida de tentativas e erros.

E para quem acha que os muitos e crassos erros que temos visto na ágora política brasileira são imperdoáveis, Hegel tem a dizer que, em vez de condená-los peremptoriamente, devemos assumi-los. Melhor dizendo, com as palavras do filósofo, suprassumí-los no processo de superá-los. O que não pode acontecer, caso queiramos realmente evoluir politicamente, é renegar nossas incorreções políticas e, pior ainda, transferi-las, covarde e despoticamente, para outrem, assim como a esquerda está fazendo com a direita, e vice-versa. Isso outra coisa não é que perder a oportunidade de se tornar realmente hábil em superar tais erros e estar condenado a permanecer indefinidamente cativos deles. Ao erro político de hoje, portanto, ao menos uma amanhã menos errático, e assim ad infinitum.

Prisão de Lula: cereja do bolo melancólico.

 

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Desde os primeiros tilintares pré&pró golpe de panelas em 2015, incerteza, angústia e medo foram, digamos assim, largamente democratizados no Brasil. Depois dos 367 votos e discursos golpistas da fatídica sessão da Câmara dos Deputados que aprovou a admissibilidade do processo de impeachment contra a presidenta Dilma em abril de 2016, a mãe de todos os afetos tristes, a Tristeza ela mesma, se instalou no cerne da maioria dos “cidadãos-de-bem-pensar”. Nos meses que se seguiram, a performance da nossa oligarquia política apenas fez engordar essa tristeza. E o último ato espetacular da presente tragédia golpista não deverá ser outro que a prisão de Lula.

No meio desse processo eu publiquei um ensaio chamado “Contra o golpe, qual o melhor afeto?”, onde relacionei a crítica de Spinoza à tristeza, na qual o filósofo demonstra que este é o afeto mais impotente de todos, à necessidade de o povo brasileiro cultivar afetos que lhe potencializassem diante do Mal que se apresentava. A minha aposta era, conforme Spinoza, o amor. Se é o afeto mais potente de todos, é o melhor contra o golpe. A pergunta, portanto, era: como sermos afetados de amor diante de tamanha barbaridade? A resposta teve de buscar o único objeto passível de amor dentro do caos tupiniquim, qual seja: o povo golpeado. Em suma, somente nós, o povo, amando-nos uns aos outros, podemos nos afetar de modo a nos potencializar contra as forças contrárias a nós. Qualquer tristeza, seja ela a raiva, o medo, a vingança, a angústia, etc., portanto, deve ser desinvestida, pois apenas nos enfraquece.

Cerca de um mês depois, ouvi o filósofo brasileiro Vladimir Safatle dizer que, diante do golpe, precisávamos fazer uma crítica dos nossos afetos. Para ele, o afeto generalizado era a melancolia, ou seja, a tristeza em forma de saudosismo em função do que estávamos perdendo. Mesmo sem se fundamentar em Spinoza, Safatle criticava acertadamente a imobilização na qual a melancolia nos coloca. Muito mais pragmático do que eu, a aposta de Safatle era (e ainda é) a necessidade de superarmos as nossas melancolias individuais para finalmente colocarmos as nossas demandas reais (de democracia, respeito, direitos, etc.) em constelação, pois só assim poderemos formar um grande, forte e conectado corpo político, uma vez que forte e grande e conectadíssimo é o corpo inimigo.

A leitura afetiva de Safatle denunciando a melancolia como o afeto do brasileiro diante da realidade em curso não me saiu da cabeça. Subsumi minhas ideias às dele desde então, pois essa chave de leitura passou a clarificar muito melhor não só o que eu particularmente sentia, como principalmente a inefetividade de quaisquer ações coletivas tentadas contra os golpistas, hoje quase absolutamente vitoriosos. A nossa melancolia, aliás, produz espécie de tábula-política-rasa sobre a qual os golpistas seguem erigindo o seu “bunker” elitista. E o afastamento definitivo de Dilma, bem como a destruição de leis trabalhistas e, mais recentemente, a retrógrada proposta de reforma do ensino médio que saca as humanidades dos currículos escolares, só para citar três das várias absurdidades com que estão nos golpeando, tudo isso mantém pulsante dentro de nós a melancolia pelo que, dia a dia, vamos perdendo.

Minha proposta aqui é inverter o velho princípio da causalidade que nos convence de que, primeiro, temos a causa para, somente depois, experimentarmos o efeito, para investir na psicanalítica visão de que são os efeitos que criam, retroativamente, as suas próprias causas. A ideia, portanto, é deixar de pensar a nossa tristeza melancólica enquanto efeito dos atos dos golpistas para, em contrapartida, pressupormos esse afeto triste como o produtor dos seus próprios algozes. Essa proposta, todavia, só se sustenta em um “desejo prévio de melancolia” fundado em uma promessa de gozo na própria melancolia. Perguntar se essa tristeza em relação a tudo que perdemos e estamos perdendo com o atual governo golpista é primeiramente um desejo obscuro nosso, que aos poucos foi permitindo que um golpe de estado ipsis litteris fosse sendo pública e escandalosamente construído até a sua presente efetivação, é ao menos um primeiro passo não covarde.

Assumindo que de fato produzimos as causas para o efeito melancólico que experimentamos, vale investigar essas causas. Proponho fazer um recorte histórico para pensar o caos atual a partir do maior e mais caótico evento da nossa história recente, qual seja, a “Primavera brasileira” de junho de 2013. Quanto mais não seja, lá clamávamos justamente pelo oposto do que estamos vivendo hoje. Naquela ocasião, multidões foram às ruas, vestindo e gritando o que tinham certeza de possuir inalienavelmente: direitos, voz, força e, especialmente, democracia.

Entretanto, as muitas e difusas pautas do movimento, somadas às performances blackbloquianas contra bancos Itaú e paradas de ônibus, e principalmente o grito de “Sem partido” –em rejeição à organização política partidária-, minaram os seus próprios propósitos diante da opinião pública. Não, todavia, sem a mão pesada da mídia reacionária. Isso porque aquelas manifestações populares ameaçavam muito mais o Império da direita oligárquica  do que a favela da esquerda. Seria ingenuidade deixar de pensar que o tsunami da direita em 2016 é também resposta àquela liberdade democrática na qual o povo se aventurou em 2013.

E não precisamos nem esperar o golpe de estado de 2016 para termos certeza de que a primavera brasileira foi um fracasso. As urnas de 2014 já deixaram isso bem claro: a eleição de parlamentos muito mais à direita e fundamentalistas. No entanto, até aqui resistimos em fazer o nosso mea culpa. Ainda achamos que ter saído às ruas por vinte centavos gritando coletivamente contra a representatividade e os partidos políticos valeu a pena; que não poderíamos não ter nos manifestado; mesmo que isso tenha sido o início da fragilização espetacular do PT e das esquerdas em geral. Em outras palavras, até aqui não queremos aceitar o fato de que aquele nosso desejo primaveril de um Brasil menos corrompido e mais igualitário não só deixou a direita corrupta de cabelo em pé, como principalmente a colocou numa “jihad” incontrolável cujo prosseguimento nos escandaliza até o presente instante.

Por isso devemos investigar se a melancolia que atualmente experimentamos não é espécie autopunição pelo que foi feito -principalmente pelo que não foi feito- em 2013. Pergunta subsequente inevitável: o que tínhamos em 2013? Ora, uma notória desaceleração do venturoso projeto lulista de inclusão social, distribuição de renda e combate à corrupção, cuja responsabilidade, obviamente, é também do próprio PT, mas que foi fortemente dramatizada pela crise econômica internacional, é preciso dizer. O Brasil de 2103 então explodiu quando a bonança democratizada por Lula se reduziu nas mãos de Dilma. Acostumados que estávamos com a crescente valorização das demandas populares, abandonamos o barco na primeira tempestade. Agora, se pudéssemos ter previsto o tsunami oligarca antipopular que assolaria o Brasil três anos depois, teríamos nos revoltado tanto contra as intempéries de 2013, que perto das de 2016 parecem, nas palavras de Lula, marolas?

A tristeza, mais especificamente a melancolia que nos assola hoje, porventura não é uma culpa travestida por termos explodido, coletiva e fortemente, contra uma conjuntura que, comparada à atual, nem era tão contrária a nós assim? Aqui vale lembrar a estrutura das tragédias da antiguidade: qualquer tentativa de escapar ao destino que os deuses estabeleciam para os homens trazia apenas destinos mais vis. Édipo Rei que o diga! Por acaso o destino que os deuses oligarcas tupiniquins reservaram para nós, que tentamos mudar o Brasil em 2013, não é a trágica armadilha golpista de 2016, da qual novamente não temos como escapar?

Com as tragédias, os gregos aprendiam que não podiam escapar ao destino; que tinham de conviver com o que os deuses tinham reservado para eles. Com a nossa atual tragédia, os nossos “deuses capitalistas” não estão querendo dizer-nos o mesmo? Tristes, melancólicos, somos tal qual Édipo Rei furando os nossos próprios olhos, punindo a nós mesmo por termos tido a petulância de desafiar o “destino liberal”. Não que eu acredite que haja de fato um destino predeterminado escrito por algum deus. No entanto, não posso me esquecer de que a mão invisível liberal escreve e reescreve livremente o destino de todos ao escrever o seu. E aí de quem tentar escapar dele!

O fato de não haver nenhum afeto potente sendo cultivado e atravessando os corpos dos brasileiros golpeados, mas apenas afetos tristes, com destaque à melancolia, é indício de que, ainda que inconscientemente, sentimos merecer tal tristeza, quiçá a desejamos subterraneamente, como se, ao vivê-la pungentemente, pudéssemos nos redimir do nosso próprio erro. Não conseguirmos ser afetados por outra coisa senão por tristeza deve ser visto como uma insistência nessa própria tristeza; um gozo paradoxal e coletivo que promete a superação da nossa incapacidade de, pelas nossas próprias mãos, termos feito um país melhor, justamente o que queríamos desde o princípio.

Lula ter terminado o seu segundo mandato com 87% de aprovação popular, recorde na história do Brasil, e hoje estar prestes a ser preso por crimes que sequer podem ser provados, dentre eles ter roubado badulaques da Presidência da República, é o que senão o povo brasileiro estar produzindo a sua própria tristeza, ou, dito de modo mais adequado, permitindo que a produzam pelas suas costas para entregá-la espetacularmente pela frente, como se não soubéssemos de nada? Atenção: a prisão de Lula pelos golpistas, que veem no maior líder popular da história do Brasil a única força que pode vencê-los democraticamente, será o desabamento definitivo do horizonte utópico de 2013.

Certamente nos entristeceremos e nos melancolizaremos mais ainda na primeira nota da prisão de Lula, quando ela sair. Mas, como desde há muito nada estamos fazendo para impedir isso além de ineficientes postagens no Facebook, penso que precisamos ainda desse último golpe, como se se tratasse da cereja do bolo melancólico com o qual estamos nos empanturrando desde o fracasso de 2013. Não que desejemos essa vil dieta para sempre. Longe disso. Na verdade, estamos querendo mais que tudo chegar naquele domingo gordo, no qual arrotaremos a bílis da nossa própria gula desmedida, para então cairmos na real e vermos o perigo dos nossos desejos difusos. Talvez a prisão de Lula inaugure a famigerada segunda-feira na qual se começa -pelo menos mentirosamente- as dietas para emagrecer.

Kuntas Kinte contemporâneos

KUNTA

150 anos depois da Guerra de Secessão, cujo virtuoso resultado histórico foi o fim da escravidão de negros na América do Norte, novamente “os Estados Unidos estão em situação de quase guerra civil em torno das tensões de origem racial”, alerta Flávio Aguiar, correspondente internacional da Rede Brasil Atual. Essa crise, no entanto, está anunciada desde 2014 quando a morte do jovem negro Michael Brown por um policial branco, no Missouri, originou a mobilização “Black Lives Matter” (Vidas dos Negros Importam) e a denúncia sistemática das práticas racistas das forças policiais norte-americanas. E com as mortes, também por policiais brancos, de outros dois negros, Alton Sterling, em 5 de julho de 2016, na Louisiana, e Philando Castile, no dia seguinte, em Minnesota, a tensão racial voltou a conturbar a arena social dos EUA, com milhares de pessoas protestando nas principais cidades do país.

A “resposta negra” à “violência branca”, porém, não está dispensando a violência. Em julho de 2016, o jovem negro Micah Johnson matou cinco agentes brancos e feriu outros sete em Dallas, e, na capital da Louisiana, outros seis policiais brancos foram atacados por um negro, com três deles terminando mortos. A “barbárie negra” só não é tão bárbara quanto a “branca”, pois, conforme afirma Heidi Beirich, a líder do Centro Legal para a Pobreza no Sul, o “extremismo negro” é apenas a resposta, na “língua” do imimigo, à velha “opressão branca”. E em certas conjunturas políticas emergenciais, “a violência se torna o único modo de reequilibrar as balanças da justiça”, reconhece Hannah Arendt no seu ensaio “Sobre a Violência”, escrito em 1969.

Só que mesmo mediante a violência, a situação parece tão insolúvel dentro da sociedade americana que o “Novo Partido das Panteras Negras para Autodefesa”, um dos principais grupos separatistas negros do país, está mobilizando outros grupos com o mesmo propósito, como a “Nação do Islã” e o “Partido da Liberação dos Cavaleiros Negros”, bem como milhares de cidadãos, para a fundação de uma “Nação Negra”. Só mesmo cindindo a Norte-América em duas estes extremistas acreditam que os negros se verão definitivamente livres da brutalidade policial branca, uma vez que a simples promoção de uma reforma policial em vista da tão necessária justiça racial nos Estados Unidos defendida pelos ativistas do “Black Lives Matter” não parece promissora.

Antes de seguir pensando na eclodida crise racial estadunidense, vale a pena relembrar a “facção” (mistura de “fato” e “ficção”) publicada pelo escritor negro norte-americano Alex Haley em 1976 chamada: “Raízes: A Saga de uma Família Americana”. O personagem central do manifesto/romance é Kunta Kinte, africano nascido na Gâmbia de 1750 e criado para ser guerreiro da tribo Mandinga. Com 17 anos, o até então livre Kunta procurava madeira para fazer um tambor ritual quando foi capturado por ingleses que buscavam escravos para serem vendidos aos EUA. As primeiras humilhações do guerreira africano foram: ter sido amordaçado, exposto nu, sondado em todos os seus orifícios corporais, marcado com ferro quente e, com outros 170 negros, jogado no porão fétido de um navio negreiro por cem dias até chegar a Maryland.

Uma vez nos EUA, Kunta foi comprado por John Waller, que em primeiro lugar exigiu de seu escravo que assumisse o nome Toby, já que doravante ele seria uma “coisa” americana, e não mais um ser africano. O Guerreiro Mandinga, desde sempre orgulhoso de si e de sua origem, resistiu veementemente à alcunha americana. Porém, algumas horas de extenuantes chibatadas ao troco convenceram-no a ao menos mentir ao seu senhor que aceitava se chamar Toby. Sobrebutalidade branca que, não satisfeita em escravizar um negro, ainda por cima exige o enterro do seu passado livre.  Kunta Kinte, entretanto, em nenhum dia sequer deixou de reafirmar, a si mesmo, aos seus familiares e amigos, a sua nobre e livre, e por isso mesmo inesquecível graça africana.

A liberdade que Kunta mantinha viva sob a sua pele negra escravizada o levou a três tentativas de fuga. Como castigo teve a metade de seu pé direito amputada e e, seguida foi vendido a “preço de banana” para o socialmente desqualificado irlandês William Waller, de quem foi jardineiro e cocheiro até seus últimos dias. Nesse meio tempo, teve a permissão do seu senhor para casar-se com outra escrava, Bell, com quem tem uma filha, Kizzy, a quem ensinou secretamente a cultura e as técnicas guerreiras mandinga, pois sonhava para ela a liberdade negada aos escravos. A força e o carisma de Kizzy a aproximaram da filha de seu senhor, que, também secretamente, ensinou-lhe a leitura, o que até então era proibidíssimo a escravos. Mesmo vetada a leitura aos negros em geral, os Kinte nunca mais seriam analfabetos.

Para pagar dívidas de jogo Kizzy foi vendida. Kunta não mais veria a filha. Alhures, Ela teve um filho, Chicken George, a quem fez saber e adorar a história e os sonhos do avô guerreiro africano. A força e a grandeza da ideia de Kunta Kinte na vida de George levou-o, já no fim de sua escravizada vida, a finalmente conseguir comprar a sua liberdade. Sua esposa e filhos, entretanto, permaneceram escravos de um senhor absolutamente cruel até o final da Guerra de Secessão, em 1865, quando então todos os negros foram libertados. Todavia, mesmo livres, George e a sua família ouvem do despótico e derrotado senhor sulista: “nunca os negros serão reconhecidos como iguais a nós, os brancos”; mais ainda, que “nós, os brancos, faremos de tudo para reconquistar o que é nosso por direito divino”.

E a brutalidade dos atuais policiais brancos norte-americanos contra os negros porventura não é o eco contemporâneo daquela fatídica promessa repetida pelos combalidos escravocratas brancos, bem representada na derradeira fala do último senhor do neto de Kunta Kinte? Aqueles “derrotados” Senhores de escravos, que no entanto se tronaram os Senhores do capital, parecem não se satisfazer com o seu novo modo de subjugação: a proletarização, mais ainda, a lumpemproletarização dos ex-escravos não foi suficiente para que a elite branca mantivesse a velha ideia de sua superioridade racial. A precarização econômica da vida de milhares de pessoas não basta; assim como não bastou ao primeiro dono de Kunta Kinte a mera escravização do guerreiro africano: foi preciso ainda por cima arrancar-lhe o nome e a história, ou seja, a sua humanidade.

A violência racial, hoje espetacularizada nos atos dos policiais norte-americanos, ao mesmo tempo que precisa acabar, deve fazer a sua devida sua mea culpa. Quanto mais não seja, como bem ressaltou Hannah Arendt, porque “o racismo não é um fato da vida, mas uma ideologia, e os atos a que ele conduz não são atos reflexos, mas ações deliberadas baseadas em teorias pseudocientíficas”. Em outras palavras, o racismo é uma estratégia fundada em falsas verdades cujo objetivo é à dominação violenta de uma raça pela outra. A violência racista, prossegue a filósofa, “não é ‘irracional’; é a consequência lógica e racional do racismo, que eu não compreendo como certos preconceitos vagos, mas como um sistema ideológico explícito”.

A história de Kunta Kinte e sua família é uma trágica, no entanto pertinente alegoria dessa ideologia que a modernidade colonialista voltou contra os negros, e que, como os últimos acontecimentos nos EUA deixam bem claro, prossegue contemporaneidade adentro. Em uma imagem “kunta-kinteana, o negro africano foi arrancado de sua ancestral liberdade, escravizado pelo Novo Mundo e, depois de séculos de exploração e desrespeito, recebeu algo chamado de liberdade. Não, obviamente, aquela liberdade de que desfrutava no seu continente-pai, mas sim a “liberdade” capitalista-madrasta que o manteve escravo, embora com uma nova alcunha: “proletário”. Há quem sustente, não sem razão, que só se trocou velhas e pesadas correntes por novos grilhões, mais abstratos, mas nem por isso menos escravizadores.

A selvageria racial do “Poder Branco de Estado” que oprime os negros americanos atualmente é muito maior do que aquela africana-ancestral, cujas bestas eram leões ou gorilas, por exemplo, que apesar de facilmente poderem matar uma pessoa em um instante, nunca a humilhariam nem a explorariam por uma vida inteira. Sem dizer que também é mais selvagem que a selva-branca-escravocrata-moderna, que ao menos tinha a coragem de deixar bem claro aos negros que ele eram escravos. Hoje em dia, em troca, violenta-se os negros como se eles ainda fossem escravos, todavia mentindo que eles são livres.

Hannah Arendt, no entanto, nos leva a entender que onde há violência não há mais poder, mas só a tentativa condenada de, digamos assim, ressuscitar um poder defunto. Sendo assim, a crescente violência dos policiais norte-americanos contra os negros daquele país outra coisa não é que a assunção de que o Império Branco já está solapado. A persistência dessa violência apenas mostra que os senhores brancos não querem aceitar a derrota, do mesmo modo como o último senhor branco do neto negro de Kinta Kunte não quis. Baseados no que disse Arendt, qual seja, que o uso da violência apenas corrói o poder, nunca o preserva nem o aumenta, podemos ter certeza de que o abuso da violência por parte do poder branco estadunidense é apenas a aceleração do fim desse mesmo poder.

Em contrapartida, a violência dos negros norte-americanos contra os seus violentos policiais brancos, por ser reflexiva, isto é, ser uma reação e não uma ação, de acordo com a lógica arendtiana não reduz o poder dos próprios negros, apenas acrescenta mais violência à violência de seus algozes, e, portanto, catalisa a ruína do poder destes. Não é o caso, todavia, de dizer que a violência reativa dos negros contra a violência ativa dos policiais brancos é a única solução para o fim da crise racial norte-americana –ou a de qualquer outro país-, mas sim de entender que qualquer violência, longe de garantir ou criar mais poder, apenas cria mais violência. Em suma, menos poder. Não adianta esperar que os negros não ajam violentamente usando-se de violência contra eles. Absolutamente inteligente –e por isso mesmo improvável de acontecer, infelizmente- seria essa “força branca” decadente empoderar os negros, pois só assim se empoderaria junto com eles, todavia pagando o preço da igualdade e da divisão do poder.

Entretanto, não é isso o que está acontecendo. Basta ver o maciço apoio da população branca ao candidato à presidência dos Estados Unidos, o racista –e também sexista e xenófobo- Donald Trump. A branca sociedade norte-americana está deixando claro que não está evoluída suficientemente para dividir com os negros o poder que historicamente carrega consigo. Como na Guerra de Secessão, a guerra civil que se anuncia na terra do Tio Sam é a preferência de que o país se divida em dois, para que pelo menos em algum dos lados o poder permaneça nas mãos dos brancos. Até mesmo os negros radicais separatistas que querem a fundação da “Nação Negra” refletem essa incapacidade de se imaginar um país onde os brancos dividam o poder com os negros e não os violente.

Só que na selvageria de um guerra civil, os negros, cujo potencial para a violência é bem menor do que o dos brancos, uma vez que não detêm o estatal direito à violência, são os únicos que não terão o seu poder reduzido, mesmo que sejam profundamente vitimados pela violência generalizada. Já o “poder branco”, atolando-se mais um pouco na violência inerente a qualquer guerra, só tem mais poder a perder. Ainda mais se cada soldado negro com o qual se confrontará nesse anunciado conflito carregar em suas veias, senão o sangue de Kunta Kinte, ao menos o inquebrantável espírito do guerreiro de Mandinga, que, como na “facção” de Alex Haley, resistiu dignamente até, três gerações depois, reconquistar a liberdade furtada pelos brancos.

E ainda que novamente vitoriosos os negros não voltem para paraíso perdido algum, assim como os escravos libertos depois da Guerra de Secessão também não voltaram, oxalá gozem de liberdade e igualdade suficientes para não serem mais subjugados e assassinados pelo ódio nem pelo cano da arma de qualquer branco decadente. Para tanto, a sociedade americana precisa deixar para trás aquela ideia de Mao Tse Tung, mui criticada por Hannah Arendt aliás, que diz que o “Poder político cresce do cano de uma arma”, para finalmente entender o que coloca a filósofa alemã, qual seja, que enquanto uma relação é mediada pela violência, nenhum dos lados tem poder.

Sociabilidade insociável

sociabilidade insociável

O filósofo alemão Immanuel Kant, no ensaio chamado “Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita”, publicado em 1784, fala da tendência humana natural a uma sociabilidade absoluta. Tal cosmopolitismo, porém, parece um projeto fadado ao fracasso diante da atual marcha xenófoba no mundo. Agora, se, como coloca Kant, “toda a cultura e toda a arte … e a mais bela ordem social são frutos da insociabilidade”, talvez a distopia antissocial que parece estar sendo construída na contemporaneidade outra coisa não seja que o alicerce de uma utopia social futura.

Se descesse do topo de seu moderno farol iluminista, e caminhasse pela areia movediça da obscura contemporaneidade, que sob a superfície mentirosa da globalização esconde a crescente e profunda recusa ao outro -simbolizada mormente pela recusa declarada ao outro imigrante-, será que ainda assim Kant sustentaria o destino cosmopolita da humanidade? Para responder essa pergunta é preciso primeiro compreender a paradoxal “sociabilidade insociável” proposta pelo filósofo enquanto o fundamento da mais excelente organização humana, a Sociedade Civil.

Para o iluminista alemão, sociabilidade e insociabilidade são capazes de harmonizarem-se nos homens porque eles “não procedem de modo puramente instintivo, como os animais, e também não como racionais cidadãos do mundo em conformidade com um plano combinado”. De modo que a inclinação para viver em sociedade, que assegura e abre oportunidades, anda de mãos dadas com uma propensão ao isolamento devido à resistência que os planos e desejos de cada um encontra na íntima relação com os dos demais.

No entanto, diz Kant, “esta resistência é que desperta todas as forças do homem e o induz … a obter uma posição entre os seus congêneres, que ele não pode suportar, mas dos quais também não pode prescindir”. E é nesse ínterim que se passa da insociabilidade inerente à barbárie para a sociabilidade própria da civilização. Obviamente, não é o bárbaro solitário que realiza o potencial humano, mas o civilizado socializado, e isso porque o uso da razão –a ação própria do ser humano- “desenvolve-se integralmente só na espécie, e não no indivíduo”, coloca o filósofo.

Não obstante a paradoxal “sociabilidade insociável” humana, que por um lado nos leva a viver em sociedade, mas que por outro lado ameaça dissolver essa mesma sociedade, é essa contrariedade mesma que faz o homem evoluir, segundo Kant, de modo patologicamente condicionado. Ora, cada homem quer viver confortavelmente entre seus iguais; quer os benefícios do acordo civilizado com eles; mas estes, que também querem o mesmo, impõem a cada um e a si mesmos obrigatoriedades que, por conseguinte, tolhem a liberdade individual. Eis o “pathos” do qual não nos vemos livres mas sem o qual não avançamos.

Em uma bela metáfora o filósofo esclarece a virtude da “sociabilidade insociável”: “tal como as árvores num bosque, justamente por cada qual procurar tirar à outra o ar e o sol, se forçam a buscá-los por cima de si mesmas e assim conseguem um belo porte, ao passo que as que se encontram em liberdade e entre si isoladas estendem caprichosamente os seus ramos e crescem deformadas, tortas e retorcidas.” E aqui devemos entender esse “bosque” enquanto a Sociedade Civil, o estado ideal para a realização do objetivo cosmopolita humano de que fala Kant.

Sem a limitação individual inerente à pertença a uma sociedade, Kant garante que  “cada um, pois, abusará sempre da sua liberdade”. E, como na metáfora acima, se desviará de sua humanidade. Em uma imagem, crescerá “torto”. Absolutamente livre já éramos enquanto selvagens. No entanto, para Kant, vimo-nos compelidos a renunciar à nossa “liberdade brutal para buscar a tranquilidade e a segurança numa Constituição Civil”, pois só limitados por nós mesmos, e em suprema instância por um governante, deixamos ser bárbaros escravos de nossos impulsos e passamos a ser senhores de uma liberdade propriamente humana, qual seja: viver de acordo com uma vontade universalmente válida.

O que Kant quer dizer é que o homem, para atualizar plenamente a sua natureza, tem de galgar para si uma outra liberdade que não aquela experimentada na selvageria primordial. Os homens, começando por limitarem-se uns aos outros em vista de maior conforto e segurança, e, insistindo nesses objetivos, organizando-se em forma de Estados Nacionais, trazem ao mundo -a si mesmos- uma especial liberdade cuja virtude é não poder ser contestada, visto que universalmente acordada. Mutatis mutandis, a civilizada liberdade universal exige que seja abandonada a bárbara liberdade individual.

Portanto, enquanto não impusermos a nós mesmos um conjunto de regras e leis, e principalmente um indivíduo -ou grupo deles- que nos obrigue à conformidade com essas regras e leis, disporemos apenas da menor e mais primitiva liberdade, cujo inconveniente é ser contestável por qualquer outro, seja por palavras, seja pela força. Só que essa Constituição Civil que garante a maior das liberdades não é fruto de uma deliberação pontual e contingente, mas, antes, como o título do ensaio kantiano pretende deixar bem claro, apenas mediante uma “Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita”.

E tal ideia pode ser alcançada, por exemplo, na letra de Kant, “se partirmos da história grega, se seguirmos a sua influência na formação e na desintegração do corpo político do povo romano, que absorveu o Estado grego, e a influência daquele sobre os bárbaros que, por seu turno, destruíram o Estado romano, e assim sucessivamente até aos nossos dias; se, além disso, acrescentarmos episodicamente a história política dos outros povos … descobrir-se-á um curso regular da melhoria da constituição estatal”.

Essa espécie de pré-hegelianismo kantiano outra coisa não é que a busca de um fio condutor que nos guie ao “absoluto cosmopolita” no qual o inescapável devir político da humanidade se torne, nas palavras do próprio Kant, “a arte política de predição de futuras mudanças políticas”. Desse modo, a condenável xenofobia que vemos crescer no presente pode ser compreendida, por exemplo, como o amargo, todavia necessário primeiro passo na histórica construção de sua condenação universal futura. Mas isso, é claro, se Kant estiver certo, ou seja, se a natureza humana tiver mesmo um “Propósito Cosmopolita”.

Gramados de Brasília

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Circular por Brasília é perceber que o provérbio “A grama do vizinho é sempre mais verde” não tem validade universal. Na capital do Brasil, apenas os gramados dos prédios e equipamentos governamentais é que realmente gozam dessa cor. Nos demais, imensos e numerosos canteiros espalhados pela cidade, com sorte vemos grama seca, quando não, a vermelhíssima terra local. O “vizinho” povo, portanto, é o único que pode invejar a “verdura” do gramado do seu “vizinho”, o Estado. E esse desigual paisagismo outra coisa não reflete que a velha desigualdade social e econômica brasileira.

Projeto urbano modernista de proporção descomunal, a cidade de Brasília não nasceu como uma cidade normal, isto é, através de uma formação orgânica e gradual. Na verdade, foi fruto de uma “canetada” caprichosa do Presidente da República Juscelino Kubitschek, na década de 1950, dada no Palácio do Catete, na até então capital brasileira, o Rio de Janeiro. A desculpa de Kubitschek era interiorizar o Brasil, segundo ele, demasiadamente litorâneo. O objetivo cru, entretanto, era levar o poder para bem longe do velho Brasil.

Então, em uma área completamente erma e bastante árida do alienado e imenso interior brasileiro, sem viv’alma nem passado político algum, o urbanista Lúcio Costa riscou uma cruz em forma de avião -o seu “Plano Piloto”- indicando os dois troncos viários venais da nova capital do poder tupiniquim. De leste a oeste se estendia o Eixo Monumental -a maior avenida do mundo segundo o Guinness Book- para os equipamentos governamentais; e, de norte a sul, o Eixo Rodoviário para as residências e demais serviços urbanos.

Já nas suas duas primeiras linhas Brasília indicava não só a cisão entre cidadania e poder, como também a estratégica dramatização da velha hierarquia entre eles. A solução político-modernista, por conseguinte, fez o Eixo Monumental “governamental” passar por cima do Eixo Rodoviário “popular”. E nesse nó central, justamente onde o povo e o poder deveriam compartilhar o mesmo locus, ainda que em níveis diferentes, foram colocados dois shopping centers e uma rodoviária. Ou seja, em relação ao “eixo dos poderosos”, as opções populares eram: chegar, comprar e ir embora.

O fato de a cidade ser pensada a partir de suas duas mega avenidas foi influência clara do automobilizado “American Dream” do qual Kubitschek era apólogo declarado. Brasília não foi feita para o pedestre, mas para o automóvel. Planejada para não ter semáforo algum, para assim não ser preciso para o “carro” uma vez sequer de qualquer origem a qualquer destino, a capital pretendia ser uma utopia para qualquer “Sr. Volante”, o clássico personagem “walt-disneyco” do Pateta. Tanto que, hoje em dia, os próprios brasilienses dizem, e com orgulho, que, diferente da humanidade, cujos corpos são compostos de cabeça, tronco e membros, eles têm cabeça, tronco e rodas.

Criar uma cidade do zero, mas que fosse imponente o suficiente para justificar o astronômico investimento público, exigiu alguns truques. Um deles: todas as edificações da cidade foram farta e desumanamente distanciadas umas das outras para que então a cidade nascesse, pelo menos aparentemente, “grande”. E para preencher essas distâncias todas, além das largas avenidas, imensos “tapetes” de grama, tanto para disfarçar o árido faroeste no qual a capital foi construída, quanto para convir aos higienistas preceitos modernistas.

Só que na secura do cerrado brasileiro, os gramados modernistas, idealizados por urbanistas europeus, não sobrevivem sem muita, mas muita água, recurso que, entretanto, é escassíssimo na região. Então, dos muitos gramados espalhados pela cidade, só permanecem verdes aqueles que podem dispor desse caro, porque cada vez mais raro bem natural, a água. Ícone da desigualdade paisagística brasiliense é o imenso Lago Paranoá, construído para envolver, adornar e climatizar o centro do poder –e não para o povo desfrutar dele, obviamente, visto que são as mansões das elites e as duas residências presidenciais que o margeiam.

Os poucos gramados verdes de Brasília, portanto, são os símbolos urbanísticos-paisagísticos do desigual consumo de recursos, não só ambientais, como principalmente econômicos, que sempre existiu vicejante no Brasil: o Estado e as elites enquanto os consumidores excelentes das riquezas desse país. Ao povo, o vizinho cujo gramado -e também os bolsos- são sempre secos, resta observar e, como prega o provérbio popular, invejar o viço dos gramados daqueles.

Deus, volte a ser brasileiro!

deusbrazuka

Deus, que os brasileiros insistem em tomar por conterrâneo, poderia “salvar” o Brasil da imoralidade política, ou essa tarefa é exclusivamente mundana? Não obstante o brazuka estar querendo mais que tudo a moralização dos seus representantes políticos, é paradoxal ver esse povo que mantém vivo o paralegal “jeitinho brasileiro” estar exigindo moralidade dos seus políticos em primeiro lugar.

Embora os paradoxos sejam insolúveis, todavia não são imunes à compreensão de sua insolubilidade. Aliás, compreendê-los é a chave para não se ficar aprisionado neles. Como, então, o povo brasileiro pode superar a sinuca-de-bico na qual ele mesmo se coloca, e que pode ser bem resumida na seguinte imagem: plantar imoralidade esperando colher moralidade? Os pensamentos do italiano Nicolau Maquiavel e os do alemão Immanuel Kant podem ser de grande ajuda nesse sentido.

Treze anos depois do descobrimento do Brasil, Maquiavel escrevia a sua obra-prima, “O Príncipe”, dizendo ao mundo moderno que ele mesmo ajudava a inaugurar que, ao contrário do que até então pregava o longevo casamento entre fé e poder, moral e política não se misturam. Para o pensador italiano, o político virtuoso não é aquele que segue as regras estabelecidas nem tampouco o que se pauta pelo bem do povo, mas, precisamente, aquele que consegue manter ou aumentar o seu próprio poder, seja por que meio for.

Decerto que dentro da lógica maquiavélica a justeza moral é um empecilho. E essa semente imoral encontrou solo fértil no Brasil politicamente virgem dos 1500. Desde então a imoralidade política vem sendo extensivamente cultivada, a ponto de hoje ser colhida nos quatro cantos desse país, qual mato. Não se espantem com isso -diria Maquiavel- mas sim com essa insistência, melhor dizendo, com a ingenuidade de vocês em ainda esperarem que vossos políticos sejam éticos!

E o pensador renascentista poderia dar dois exemplos bem locais. O primeiro, que Lula só é considerado um dos maiores políticos do mundo porque soube driblar a amoralidade da Fortuna com uma “tabelinha” estratégica entre moralidade e imoralidade. E o segundo, que Dilma Rousseff merece a crítica de que não sabe fazer política justamente por causa de seu moralismo intransigente. Realmente ela não foi política, afinal, decidiu ser ética. E o preço dessa escolha: o impeachment.

Entretanto, apesar Maquiavel ter percebido lá atrás que política e ética não coabitam o mesmo espaço, isso não significa que não possa vir a ser diferente. A crise de representatividade política espetacularmente deflagrada no Brasil em Junho de 2013 com o seu popular “Ninguém me representa!”, mas que seguiu ecoando decadentemente a partir de 2015 na boca das elites com o slogan “Intervenção Militar Já!”, são manifestações diversas, todavia, em repúdio ao mesmo problema: a imoralidade do mundo político.

Agora, para que o contemporâneo desejo popular de representantes políticos éticos possa se realizar, a primeira coisa a ser feita é dispensar a covarde e preguiçosa ideia de que tal moralização deva começar de cima para baixo, isto é, da própria casta política imoral para a base da sociedade, qual dádiva. Até porque, relembra-nos Aristóteles: “a qualidade de um Estado é a qualidade dos seus cidadãos”, o que provavelmente inspirou o historiador Leandro Karnal a dizer que “não existe país com governo corrupto e população honesta”.

O que é fundamental entender dos dois filósofos é que só teremos políticos éticos na nossa sociedade na medida em que nós, os indivíduos que constituem essa sociedade, e que por nossas vezes elegemos aqueles, formos éticos antes de tudo. A moralidade deve ser primeiramente posta por quem a exige, ora bolas! Do contrário, o que exatamente se está exigindo? Como, então, moralizar-nos individual e basilarmente para que, consequentemente, tenhamos o edifício social moral de que estamos carecendo?

Kant é fundamental para esse desafio, e isso porque ele coloca que a moralidade não é algo transcendente que precise ser procurado alhures, mas, ao contrário, é uma faculdade imanente da nossa razão. Desse ponto de vista, cabe a cada um de nós conhecer tal faculdade, melhor dizendo, reconhecê-la em nós mesmos e, sobretudo, exercitá-la se quisermos que ela paute os nossos atos e, por conseguinte, esteja presente nos políticos que nos representam.

Conhecer essa nossa faculdade moral, diz Kant, é saber que sua pedra de toque é o bem. Não o que por acaso é bom a alguém em particular, como pensaria o egoísta –ou o político corrupto. Ao contrário, o bem moral é aquele que é bom em si mesmo, independentemente de qualquer benefício particular, porquanto não visa os objetos-fins das nossas ações, mas as ações em si mesmas, ou seja, o meio com a qual se obtém os fins. Para o bem que é fruto de interesses egoístas, em troca, é justamente o resultado da ação que vale. Aqui, são os fins que determinam as ações.

Dito de outro modo, moralidade é a razão dar as suas leis às nossas ações, ao passo que imoralidade é os objetos ditarem leis à razão. Como bem podemos ver, na imoralidade a razão é escrava das ações e de suas finalidades. Para uma ação ser plenamente moral, portanto, deve-se abstrair dela todo e qualquer objeto de desejo, até que nada influencie a razão no seu trabalho, pois só assim ela não é, como diz Kant, “uma mera administradora de interesse alheio”. Reconhecer a moralidade em si mesmo é perceber-se sustentando um bem que, antes de ser bom para tal e qual caso, é bom em si mesmo, seja em que caso for, ainda e principalmente que não se frua dele.

Tarefa difícil para nós, sujeitos profundamente hedonizados  desde a modernidade, para os quais os prazeres individuais e as vantagens pessoais são os motores principais. “Não se deve mentir”, por exemplo, é um imperativo moral que mesmo o maior dos mentirosos reconhece, uma vez que até mesmo ele não tem como achar bom ser alvo de mentiras. E Kant vai mais longe ainda dizendo que não é somente quem mente que é imoral, mas também aquele que não o faz apenas para continuar honrado. Para o filósofo, só existe moralidade naquele que pensa: não devo mentir ainda que mentir não me traga prejuízo algum.

Só que a ideia de bem fundamental com o qual a nossa faculdade moral determina os bens a serem perseguidos é anterior a esses mesmos bens; afinal, estes só podem ser considerados bons por causa daquela ideia de bem fundamental. A metáfora “não colocar a carroça na frente dos bois” é pertinente aqui. Qual seria então esse bem primordial, racional e a priori que, a partir de todas e ações possíveis, determina quais são as éticas?

De acordo com Kant trata-se da liberdade. Estritamente falando, da liberdade da própria razão em relação ao império dos sentidos e às inclinações subjetivas. Ora, quando julgamos boa alguma coisa porque ela satisfaz algum desejo nosso -sacia a nossa fome, sede, tesão, nos enriquece ou privilegia privadamente etc.- decerto que esta coisa mente ser um bem. Entrementes, é um bem menor, e de forma alguma um bem moral, uma vez que apenas obriga a nossa razão a buscá-lo. Nesses casos, a nossa razão não é livre, mas escrava de desejos patológicos. Só mesmo a moralidade não rouba a liberdade da razão nem impõe o contrário do que ela ordena.

Dessa visada, a condenável imoralidade dos nossos representantes políticos não é outra que a de cada um de nós, indivíduos-cidadãos sempre dedicados ao que é bom primeiramente para nós mesmos. E para nos alienarmos dessa imoralidade celular, não só nos esforçamos para projetá-la no organismo político que nos representa, como mais covardemente ainda exigimos dele que seja ético em primeiro lugar. Melhor dizendo: no nosso lugar. Só que eles, por suas vezes, ou pensam o mesmo, ou, aferrados ao maquiavelismo, sequer dão bola para isso.

Mas o sumo bem, esse objeto fundamental da nossa faculdade moral, felizmente não desaparece sob essa imoralidade toda. Como dito antes, ele é imanente à nossa razão. Subsiste incólume naquilo que cada um entende por “dever”, mesmo que não se o respeite deliberadamente. O dever, na verdade, nasce justamente da nossa incapacidade em atender plenamente aos imperativos morais racionais, seduzidos que somos pelas promessas e gratificações egoístas. E aquilo que não fazemos necessariamente, devemos fazer pelo dever, pois a moralidade não é a lei do que é, mas a do que deve ser.

Para a razão escapar à servidão em relação aos nossos desejos e interesses patológicos, coloca Kant, ela precisa todavia de um referencial metafísico que não seja corrompível por qualquer condição física. Quanto mais não seja, sem esse bem metafísico a ideia de bem incondicional, que por sua vez nos impõe a sensação de dever, não tem como escapar do relativismo, em cuja esfera roubar em função do enriquecimento pessoal, por exemplo, pode passar por um bem -como aliás vemos acontecer fartamente na nossa sociedade.

O que seria então esse sumo bem metafísico absoluto que fundamenta sem relativismo algum uma conduta moral? Para Kant, trata-se da mais perfeita ideia que a nossa razão é capaz de produzir, ou seja: Deus. E Deus só representa o bem absoluto porque, muito antes de ser aquela figura cristã demasiadamente antropomorfizada e problemática, é na verdade a liberdade plena da razão em relação ao mundo sensível e às suas contingências. A ideia de Deus é tão perfeita que dispensa o dever, pois somente nela qualquer querer já coincide com o bem absoluto.

Para a nossa razão produzir a ideia de Deus, entretanto, ela precisa necessariamente excluir qualquer imperfeição ou finitude; qualquer bem menor, particular, egoísta. Porventura Deus precisaria se empanturrar de comida ou bebida; enriquecer; mentir; roubar; trair? Logicamente que não. Portanto, só mesmo com a ideia de Deus a nossa razão pode indicar-nos o que é incondicionalmente bom e, portanto, a regra moral plena. Transgredindo o bem supremo que a nossa razão representa através da ideia de Deus, podemos no máximo ser imorais conscientes, ou, como se diz, “moralistas-de-cuecas”.

Entretanto, a modernidade que começou com Maquiavel cindindo ética e política, e que foi simbolicamente encerrada por Nietzsche com o seu “Deus está morto”, de certa forma foi uma abertura epocal à imoralidade. Com efeito, sem moral e sem Deus nada é mau nem pecado. Então, mentir, roubar, trapacear etc. em função de prazeres e benefícios pessoais, desde que obviamente não se seja descoberto por nossos pares ou leis mundanas, não ameaça trazer dano ulterior. Aqui, o imoral não precisa ser moral, só não deve ser descoberto em sua imoralidade

Só que do outro lado dessa moeda imoral por meio da qual cada um de nós pode se beneficiar individualmente, jaz a imoralidade angustiante dos nossos representantes políticos que se beneficiam justamente às nossas custas. E aqui porventura não vale o provérbio “ladrão que rouba de ladrão tem cem anos de perdão”? De que adiante então sair às ruas e encher as redes sociais de clamores por moralidade política se nós mesmos não cultivamos, pré-politicamente, uma prática moral efetiva? Exigir que um outro realize o que nós mesmos não conseguimos realizar é o que senão imoralidade pura?

Devemos voltar a ser crentes, é isso? Não necessariamente! Basta que reconheçamos em nós mesmos a ideia de bem supremo. Não é necessário ressuscitar aquele Deus cristão. Aliás, tanto melhor que ele não ocupe o lugar do Deus-racional que, em outra palavras, é a própria liberdade da nossa razão em relação às exigências patológicas da existência. O filósofo Baruch Spinoza disse que “Deus é a natureza”, o que, para mim, é irrefutável. Como, porém, o objetivo aqui é mais pragmático, qual seja, pensar uma moralização política que não obstante comece pelos indivíduos, “Deus é a razão” é um bom começo.

Ora, a perfeição da ideia de Deus é maior liberdade da nossa razão; de onde surge a ideia de bem supremo; que por sua vez fundamenta incondicionalmente todos os bens ulteriores que procuramos com nossas ações. A ideia de Deus, portanto, é fundamental para conseguirmos ser éticos. E somente depois de realizada essa tarefa é que podemos passar a exigir moralidade dos nossos representantes políticos sem sermos covardemente imorais, isto é, sem exigirmos moralidade sem primeiramente a colocarmos no mundo.

Vitória absoluta da razão, por conseguinte, será quando todos os brasileiros “endeusarem” em si mesmos a ideia de bem incondicional que tanto estabelece o que não deve ser feito de jeito algum, quanto impõe inescapavelmente o dever ao bem. Aí sequer seria necessário exigir moralidade dos outros, afinal, teríamos moralizado o mundo imanentemente, a partir do que já somos, seres de razão, locus único da moralidade. Talvez o povo que repete insistentemente que “Deus é brasileiro” deva imanentizar essa proverbial conterraneidade divina para realizar a priori a moralidade, e, só então, a posteriori, exigi-la de seus representantes políticos.

 

“O Príncipe” maquiavélico tupiniquim

09.03.2016  DD dia a dia --  Lula   --  CONTRA -- Foto: Divulgaçao

Nordestino que nasceu pobre, cresceu analfabeto, tornou-se metalúrgico, virou líder sindical, fundou o maior partido de esquerda do Brasil e, como “cereja do bolo”, considerado o maior presidente que esse país já teve, Lula é admirado internacionalmente, amado pela maioria dos brasileiros e, principalmente, temido pelas elites nacionais. Estas, em 29 de junho de 2016, finalmente o colocaram no banco dos réus por “tentativa de obstrução da justiça”. Mestras em tal obstrução quando se trata de suas próprias e muitas injustiças, essas elites construíram um teatro moralista para emparedar Lula, em cujo palco, no entanto, elas são incapazes de representar a mais pálida e curta pantomima moral. Já Lula, para além da moralidade e da imoralidade, ainda é a maior estrela do espetáculo político nacional.

Pode ser dito inclusive, sem medo de errar e sem intenção de denegri-lo, que Lula é o político mais maquiavélico que este país já conheceu. Isso, claro, desde que entendamos que a teoria de Nicolau Maquiavel, ao contrário do que vulgarmente se pensa, vai muito além da rasa máxima “os fins justificam os meios”. Desse ponto de vista apenas, pode-se pensar até barbáreis como por exemplo o nazismo. Mas não é o caso. O filósofo renascentista italiano, fundador do pensamento político moderno, trouxe ao mundo uma compreensão muito mais profunda da dimensão política e do que é, de fato, ser um político virtuoso.  É a partir desta profundidade maquiavélica, portanto, que devemos pensar Lula, o nosso grande estadista.

Na sua célebre obra, “O Príncipe”, publicada em 1532, Maquiavel esclareceu que política e moral não andam juntas. Mais ainda, que não devem andar caso um político deseje êxito. Auto lá! –protesta o povo brasileiro traumatizado com a aclarada imoralidade de seus representantes políticos, que, concretamente e no final das contas, resulta na corrupção que tanto o vilipendia. Com efeito, a maioria desse povo, mais do que nunca está exigindo que a classe política moralize-se. Decerto não há nada de errado nesse desejo, afinal, o futuro sempre está para ser construído, e o presente é a prancha de projeto e o canteiro de obras para tal. Porém, é ingenuidade, sem dizer profunda ignorância em relação ao Maquiavel deixou bem claro há 484 anos, surpreender-se com o fato de que até aqui o nosso castelo político não foi morada da moral.

Se, vulgarmente falando, ser moral é seguir um conjunto de regras -sociais, religiosas, etc.-, ser imoral, em contrapartida, é desrespeitar tais regras, no entanto, reconhecendo-as. Não respeitar regras porque não se as reconhece é ser amoral. Por exemplo: se de acordo com a lei é proibido roubar, o moralista não roubará de forma alguma; o “imoralista”, entretanto, poderá roubar de acordo com seus interesses particulares e momentâneos, todavia, sabendo que está infringindo a lei; já o “amoralista”, para quem a única lei é a da necessidade particular e momentânea mesmo, se porventura roubar não estará quebrando qualquer regra preexistente, pois para ele, estas não existem.

Em se tratando de política, obviamente não há lugar para o amoralismo, pois o político que não reconhece regras sociais, na verdade, é um déspota. Por outro lado, sabemos muito bem que, pelo menos no Brasil, políticos verdadeiramente morais são raros. Como conclusão, temos que até hoje o mundo político tupiniquim é o habitat da imoralidade. Há inclusive uma expressão que traduz poeticamente essa sempiterna imoralidade: “o jeitinho brasileiro”. Percebendo isso, não há nada com o que se espantar com um líder de esquerda ter flertado estrategicamente com a imoralidade afora o fato de ele, pública e propagandisticamente, ser contra ela.

Não obstante a democratização da imoralidade no mundo político brasileiro, uma diferenciação há de ser feita no caso de Lula. Aqui precisamos entender que quando um moralista atende fielmente à lei, não é ela o que realmente importa, pois a lei é apenas a indicação pragmática de algo mais abstrato, todavia essencial, qual seja, o bem maior. E não havendo Deus algum ditando um bem supremo e inquestionável às sociedades, esse bem maior a ser perseguido deve ser construído socialmente. E tanto maior é, quanto mais democraticamente for estabelecido, isto é, quando é -ou promete ser- o bem para a maioria das pessoas. Politicamente falando, ser moralista é acatar a esse bem maior projetado pela maioria dos indivíduos. Ser imoral, em troca, é preterir esse bem maior de que no entanto se tem consciência justamente em função de benefícios particulares, ou de bens menores, se se preferir.

Essa régua moral/política, que vai dos menores bens (os mais privados) aos  maiores (os mais coletivos), serve para medir uma diferença essencial entre o imoralismo da elite tupiniquim e o de Lula que com efeito faz deste último o grande maquiavélico brasileiro. Não é mistério algum que o objetivo sempiterno das elites sempre foi resguardar e conquistar privilégios para si mesmas, e em detrimento da maioria da população. Os bens que buscam são tão baixos, porque para tão poucos, que jazem muito próximos do zero. Imoralidade quase que plena, beirando a amoralidade aliás. Já Lula, mesmo conhecidos os seus imorais mensalões e caixas-dois-de-campanha, por meio deles é que conseguiu possibilitar à maioria das pessoas justamente aquilo que para elas é bom, por exemplo: a maior distribuição de riqueza da história do Brasil, a erradicação da fome, a democratização do acesso à educação, entre tantos outros bens inquestionáveis.

A imoralidade de Lula por pouco não passa por moralidade. Tendo realizado um feito prodigioso, o ex-metalúrgico de nove dedos conseguiu ao mesmo tempo deixar os ricos mais ricos e os pobres menos pobres. Todos saíram ganhando: quem sempre ganhou e quem nunca. Claro, de acordo com uma rígida régua socialista, Lula não avançou muito na escala. Resta saber, porém, se algum socialista radical conseguiria realizar o bem à maioria do povo adstrito à moralidade apenas. Péssimo, todavia indispensável exemplo dessa impossibilidade foi o comunismo de Stalin, cujo bem, que era para ser coletivizado, no entanto, ficou restrito a ele mesmo e à sua pesada burocracia, ambos responsáveis pelo insucesso do grande projeto socialista russo. Se, de um lado, Lula foi “pelego das grandes corporações” ao permitir que elas seguissem engordando, de outro, foi revolucionário ao fazer com que no Brasil não mais se morresse de inanição.

Outro ponto interessante na teoria de Maquiavel que faz de Lula o nosso “Príncipe” é a boa conjunção entre “Virtù” (conhecimento prático do governante para obter e manter o poder) e “Fortuna” (o curso dos acontecimentos que não dependem da vontade humana, tampouco da do governante). Para Maquiavel, o governante virtuoso é aquele que bem governa porque saber aproveitar os movimentos da Roda da Fortuna, isto é, a imprevisibilidade da realidade. Em respeito à Virtù, Lula não tinha propriamente um conhecimento prático quando se tornou presidente, afinal, este foi o seu primeiro cargo oficial. Entretanto, a sua intuição política fez as vezes, e na verdade superou em muito esse conhecimento faltante. Já em relação à Fortuna, desculpe-me a redundância, Lula foi muito afortunado. Durante a sua gestão, houve uma bonança econômica mundial movida pela sobrevalorização das commodities, como o petróleo e os minérios por exemplo, que Lula soube aproveitar magistralmente. A conjunção de uma Virtù intuitiva incomparável e uma sagacidade invejável diante da Fortuna faz com que Lula seja o mais maquiavélico dos políticos brasileiros.

Companheira de Partido e de projeto de Estado, Dilma Rousseff sucedeu Lula na presidência da República. No começo de seu primeiro mandato ela até surfou a mesma boa onda dele. No entanto, faltou-lhe Virtù. Seu primeiro defeito, pasmem, foi ser demasiado moralista: recusar-se abertamente a participar de estratagemas ilícitos, e o que é mais moral ainda, investigar a corrupção e punir corruptos e corruptores, e isso de dentro de um sistema político-econômico corrompido dos pés à cabeça. Isso acabou sendo o seu tiro no pé. Sua impertinente moralidade fez o Brasil imoral mergulhar em grande crise. Os ricos, os pobres, e principalmente ela mesma, todos saíram perdendo. Maquiavel ainda é tão pertinente! Sem dizer que, para o italiano, a Virtù, além de tudo, é a capacidade de manter a paz e a estabilidade do Estado, coisa que definitivamente ela não conseguiu. Foi afastada por uma canetada oligárquica-parlamentar vergonhosa.

Esse ensaio, no entanto, não estaria completo se não falássemos da maquiavélica relação entre amor e temor do povo com o governante. Para o filósofo, um bom governante é aquele que é ou amado, ou temido. A primeira opção é a mais desejável pois estabelece vínculos mais estáveis com o povo. Já a segunda é mais frágil; basta o povo temerário se reunir suficientemente para depor quem lhe causa medo. Em ambos os casos, porém, Lula é Hors Concours. Tendo terminado o seu segundo mandato com 87% de aprovação popular, mais que Nelson Mandela na África do Sul, Lula foi o presidente mais amado do mundo. E como se não bastasse, além de adorado pela maioria, até hoje é temido pelas minorias, as elites, que se borram de medo de sua força política. Colocá-lo no banco dos réus -e se essas elites tiverem Virtù suficiente, na cadeia- é a estratégia covarde para que Lula não concorra na próxima eleição presidencial em 2018, na qual, de acordo com recentes pesquisas de opinião, ele teria vitória garantida, mesmo que profundamente combalido pela atual oposição jurídica, política e midiática.

Já Dilma não conseguiu ser temida, nem tampouco amada pelo povo. Sua saída forçada do governo até  fez com que ela se tornasse objeto de certo amor coletivo -todavia paralelo a um ódio irracional extremado. Agora, se fizermos uma crítica dos afetos a partir do presente golpe de estado brasileiro, como sugere o filósofo Vladimir Safatle, veremos apenas melancolia. O colateral amor por Dilma, na verdade, é uma máscara à tristeza pela perda da democracia e do valor de 54 milhões de votos populares legítimos. Dilma realmente não tem porque ser amada, seja por sua pálida Virtù, seja por sua questionável relação com a Fortuna, seja ainda por não ter obtido um bom equilíbrio entre estas duas. E isso, maquiavelicamente falando, por conta de sua insistente moralidade. Se tivesse flertado cirurgicamente com a imoralidade -bem menos que Lula até-, Dilma não só teria mantido o poder nas suas mãos, como também sob o governo de um partido de esquerda, o que por sua vez seria muito melhor para a maioria da população. Sem dizer que teria impedido a velha elite política oligárquica brasileira, a mais imoral de todas, de ter retornado ao poder e estar governando sozinha o país.

No entanto, ser um animal político como o ex-líder sindical, isto é, ter Virtù suficiente para espremer o melhor da Fortuna, é para pouquíssimos. E a grande Virtù de Lula, da perspectiva maquiavélica, foi perceber onde e quando deveria ser moral, isto é, colocar o bem maior como o seu motor político –e aqui não precisamos citar novamente os seus grandes feitos-, e onde precisava ser imoral, ou seja, se relacionar com a velha, resistente e corrompida estrutura política brasileira, pagando todavia alto preço -que também não precisa ser repetido aqui. Tática ideal? Não, obviamente. Prática virtuosa, no entanto. Afinal, não sucumbir diante da amoralidade da Fortuna é para quem sabe dosar moralidade e imoralidade. E se Paracelso, médico alemão contemporâneo de Maquiavel, está certo, e “a diferença entre remédio e veneno está na dose”, Lula foi o nosso mais doce e virtuoso alquimista político.

 

Trepalium, a série, exemplo de lumpenrealidade.

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Imagine uma realidade distópica na qual 80% da população é desempregada, miserável e sem utilidade social alguma, e que, por conta disso, deve jazer separada dos 20% afortunados por um grandioso e intransponível muro bem ao estilo Donald Trump. Se não conseguiu, basta assistir “Trepalium” (2016), série francesa criada por Antarès Bassis e Sophie Hiet que oferece um “belo” vislumbre do horror que está logo ali, na virada da esquina que separa o nosso problemático hoje do não menos nosso insustentável amanhã. A expressão alemã “lumpen”, que significa “trapo”, “farrapo”, usada por Marx para predicar a degradação do proletariado, deve ser também predicada à realidade ficcional de Trepalium, bem como à “realidade real” aludida pelo seriado, que por acaso é a nossa: lumpenrealidade.

Na ficção francesa, a minoria altamente aburguesada, chamada de “ativos”, de modo algum quer contato com a maioria lumpemproletarizada em situação de miséria e desesperança extremas, os  “inativos”.  Para tal, além do muro, no lado pobre também é mantida uma publicidade ostensiva que vende aos miseráveis, não a possibilidade de cruzarem para o lado rico, mas um “Sul” utópico e distante que sequer precisa existir para cumprir certeiramente o seu papel alienante. Interessante é ver que esse “Sul” dos sonhos é ilustrado com imagens de Brasília, capital do Brasil, com destaque às famosas e curvilíneas colunas que o arquiteto Oscar Niemeyer colocou no Palácio Alvorada, a residência presidencial oficial.

O que querem os ricos da série francesa dizer com isso? Que o melhor destino dos seus “desgraçados” é o Brasil, mais especificamente o “bureau” político tupiniquim? Como podemos ver, o muro de Trepalium é mais intransponível do que se pode imaginar. Em vez de transpô-lo, os miseráveis são levados a desejar se afastar mais ainda dele; a migrarem (clandestinamente?) para bem longe, para esse “Sul” distante, afinal, nem mesmo em sonho o privilégio da burguesia trepaliana pode estar no horizonte dos pobres. Um alienante e profundo fosso ideológico compondo a estrutura de uma barreira material injusta e excludente. E isso porque, conforme o provérbio árabe, “muro baixo, povo pula”

Como não poderia deixar de ser, do lado pobre há crescentes insatisfações e agitações populares. Porém, em vez de serem tradadas com programas sociais, distribuição de renda e principalmente empregos, apenas são encobertas pelos governantes –que, obviamente, vivem no outro lado- com mais imagens alienantes do tal “Sul”. Do lado rico, todavia, há também insatisfações e inquietações, não econômicas nem sociais, mas as do velho existencialismo burguês: espécie de tédio hedonista cuja miséria subjetiva serve apenas para reforçar a riqueza objetiva. Trepalium corrobora com provérbio popular que diz: “dinheiro não traz felicidade”, pois, como o seriado mostra muito bem, traz apenas mais divisão social.

Sem mais nada a perder, os pobres inúteis aproveitam que o Ministro do Trabalho vai até eles demagogizar mais uma vez sobre o “Sul” utópico e sequestram-no para exigir melhorias para as suas vidas. O governo então promete distribuir 10.000 empregos aos lumpemproletários “inativos” em troca do Ministro sequestrado, desagradando assim o 1/5 da população rica e “ativa”; não só porque esta não querer dividir o seu nobre espaço com os miseráveis, mas porque de fato não tem necessidade alguma do trabalho dos pobres, afinal, suas máquinas já fazem todo o serviço necessário. “Pobres inúteis” no lugar da tecnologia para quê? Não obstante a ordem do governo, os ricos não têm escapatória: devem aceitar a “colaboração” dos pobres.

A inutilidade dos “inativos” aos “ativos” é bem desenhada na cena na qual uma mulher pobre, contemplada com um emprego na casa de uma família rica, é recebida a contra-gosto pelo casal de patrões que de antemão não quer que ela cuide da casa, nem faça compras, muito menos tome conta da filha deles. Dizem que ela deve ficar sentada, sem fazer nada, o dia todo. Antes de sair de casa para os seus privilegiados trabalhos, os patrões dizem ainda que se a empregada fizer alguma coisa, pasmem, as câmeras de segurança mostrarão e ela será expulsa de volta à zona pobre.

Outro “inativo” introduzido no lado “ativo” da sociedade, sem ter o que fazer, é no entanto escolhido pelo governo para ser o garoto propaganda do “Programa de Reinserção Social”, cujo objetivo, na verdade, é apenas facilitar um empréstimo junto ao Banco Internacional. A ingênua felicidade do “inativo” em ter sido “reinserido” socialmente é apenas a aparência de uma essência que os ricos queriam que não existisse ou que não saísse do outro lado do muro que erigiram. De fato, a sociedade excludente não sabe nem tem o que fazer com seus excluídos além de excluí-los ainda mais.

A Teoria do Valor, que Marx popularizou como ninguém, e que diz que o trabalho é a fonte de toda riqueza, parece ter lugar excelente na sociedade trepaliana. Todavia de modo a manter a sua intransponível desigualdade. Ora, se aos lumpemproletários é oferecido “trabalho” para que então se libertem da miséria e participem da ventura social, mas se o que de fato recebem é apenas um trabalho de fachada, um pseudotrabalho, isso serve apenas para que permaneçam alienados da riqueza da sociedade. Em suma, para que sugam profundamente excluídos, todavia, sob o verniz mentiroso da inclusão.

Um professor, “ex-ativo” -“inativado” forçosamente por conta de seus ideais socialistas-, ensina aos seus alunos do lado pobre a origem da palavra trabalho. Aí o nome da série é contemplado. Trepalium (“tripálio” em português), diz o professor, “é o nome de um instrumento de tortura, composto por três sarrafos, usado na antiguidade para arrancar lentamente os membros dos escravos. E foi daí que surgiu a expressão trabalho”. Os alunos protestam imediatamente, pois, para eles, filhos de desempregados miseráveis, é justamente a ausência de trabalho que é “a” verdadeira e maior tortura. Aqui é impossível não lembrar da frase do portão de Auschwitz: “O trabalho liberta”. Traz liberdade, sem dúvida. Contudo, como bem mostra a série, apenas a uma minoria, e ao preço da prisão da maioria.

O desemprego de 80% da população não só é excludente como principalmente serve para sobrevalorizar ideologicamente os parcos 20% de trabalho existente. Enquanto do lado rico os “úteis” se entediam com os seus privilégios, do lado pobre os “inúteis” endeusam o que aqueles não mais precisam valorizar. Idolatram todavia justamente aquilo que os excluí. O tripálio, antes usado para arrancar membros de escravos, na série francesa serve tanto para arrancar os pobres da sociedade, quanto para convencê-los de que o grande problema social é apenas a falta de trabalho deles, e não o monopólio das oportunidades por parte dos ricos excludentes.

Haverá uma revolução na sociedade trepaliana? É preciso esperar pelo fim da série. No entanto, as dificuldades que os revolucionários da ficção terão de enfrentar para tal já são as mesmas que a nossa sociedade real tem diante de si, só menos espetacularizadas talvez. O muro de Trump, que promete alienar ainda mais os cucarachas da bonança norte-americana, bem como as cercas eletrificadas europeias, que já negam a milhares de refugiados um futuro no lado dito civilizado do mundo, são exemplos reais, absolutamente cruéis, todavia ainda pálidos se comparados à barreira que foi erigida na ficção francesa.

Se Lacan está certo, e a realidade tem mesmo estrutura de ficção, a revolução ficcional que acabará tanto com o muro e, consequentemente, com a intransponível cisão social em Trepalium bem poderá servir, ao menos como estrutura simbólica, à revolução real de que o mundo outrossim real cada vez mais carece. Quanto mais não seja, porque o problema central do seriado francês é o mesmo que o das sociedades humanas em geral, qual seja, nas palavras de Isaac Newton: “construímos muros demais e pontes de menos”.

 

Até mais, civilização!

até mais

Como se não bastasse o crescente estímulo capitalista à velha exploração do homem pelo homem; a pandemia individualista hedonista a qual as pessoas se entregam entusiasticamente; o esgotamento sistemático da natureza para sustentar tanta exploração e tanto entusiasmo; sem dizer do vigoroso fôlego que a xenofobia, o fascismo e o terrorismo tomam pelos quatro cantos do mundo; tudo isso já seria suficiente para nos perguntarmos: estamos marchando a passos firmes de volta à barbárie? A ode norte-americanas a “Donald Trump para presidente da maior potência econômica mundial” ao menos traz uma certeza inegável: queremos debandar da civilização.

Ascendendo politicamente como ninguém poderia imaginar, todavia não por virtude sua alguma, o bilionário topetudo, infelizmente, é a escolha de milhões de norte-americanos que se dizem desiludidos, pasmem, com o modo “polido de se fazer política”. Uma superficial análise etimológica já mostra que essa preferência impõe um desafio impossível a qualquer intelecto civilizado, pois, na verdade, significa “queremos política sem política”. A alienação das cabeças ocas e aburguesadas dos norte-americanos homens brancos heterossexuais de classe média, eleitores de Trump, no entanto, passa longe dessa questão.

Claro, somente por isso não podemos concluir que que os rebentos do Tio Sam querem a barbárie pura e simples. Cabe ainda lembrar que entre ela e a dimensão política há o limbo despotismo. O déspota de antes da invenção da política pelos antigos gregos era um semibárbado/semicivilizado através de cuja força física impunha sem escapatória as suas vontades sobre o seu núcleo familiar, sem se valer de racionalidade alguma, e o que é menos polido que tudo, sem a palavra. Mutatis mutandis, o despotismo pré-político por acaso não é o nosso bem conhecido fascismo, todavia, sem o disfarce das Instituições civilizadas?

Seria o caso então de concluirmos que os EUA, e por “efeito rebanho” o restante mundo, estão querendo líderes despóticos para si mesmos? Se sim, resta saber todavia se tirânicos -os mais próximos da barbárie-, ou, em alternativa, “esclarecidos” -característicos na Europa do século XVIII; mistura contraditória de absolutismo real com ideais de progresso. As bestas políticas contemporâneas, pela simples sonoridade da palavra “progresso”, dirão que é a segunda opção. No entanto, podem estar desejando inadvertidamente, e sobretudo merecendo a primeira.

Mesmo que o progresso seja uma seta estridente e imperiosa que aponta da barbárie para a civilização, ele tem o poder de, estratégica e dissimuladamente, realocar-nos no passado, e ainda por cima deixar-nos com um falso gosto de futuro na boca. Prova disso é a Igreja Católica Apostólica Romana, hoje em dia nas mãos do “Pop” Francisco, ter o surpreendente sabor de instituição progressista. Essa aparência de progresso, no entanto, é apenas uma prova amarga de que todas as demais instituições que lhe superaram historicamente estão aquém dela! Por certo que a “Apostólica” já foi a instituição mais sofisticada do mundo. Porém, esse tempo atende pelo nome de passado.

Talvez os efeitos colaterais das doses cavalares de progresso que desde a modernidade vêm sendo aplicadas no mundo pela “halopatia” capitalista tenham nos tornado insensíveis, quiçá alérgicos à civilização, à política, até mesmo ao futuro. Só que “supositórios” tipo Trump, por exemplo, não são antídoto contra esse mal. Longe disso, são antes a evidenciação inegável dos seus sintomas. No entanto, o mundo, mais evidentemente os eleitores de Trump, parecem com aquele indivíduo que, morrendo de câncer de pulmão devido ao tabagismo, gasta o seu último sopro de vida para pedir o cigarro derradeiro.

Ícone do contemporâneo desejo de passado é o famigerado muro que Trump quer construir entre os EUA e o México caso seja eleito. Decerto que muralhas -e fossos com crocodilos até- são estratégias de defesa, mas, como sabemos, as que restaram há muito jazem apenas enquanto peças de museus urbanos, símbolos do que a humanidade deixou para trás na sua senda civilizatória. Entretanto, nem mesmo “A Queda do Muro de Berlin”, tão recente, é capaz de frear o ímpeto neo-bárbaro de fronteiras intransponíveis no seio da era globalizatória.

Na verdade, sob o pretexto de barrar a imigração clandestina para preservar emprego aos norte-americanos, o que o muro de Trump traz ao mundo, muito antes de significar mais empregos e mais dólares no lado mais rico, é a impertinente separação da civilização em duas. E como o outro alienado da civilização sempre foi a barbárie, eis o que teremos de um dos lados do muro. Só que os bárbaros da vez não serão os mexicanos “xeno-rejeitados”, mas os pretensos civilizados apólogos da neo-muralha. Oxalá um dia os “cucarachas” possam agradecer esse isolamento deliberado das bestas norte-americanas.

Menos espetacular, mas nem por isso menos retrógrada, é a recusa ao outro imigrante em muitos e ricos países europeus. Comparados com estes, a distopia de Trump tem ao menos a virtude de ser declarada, uma vez que não se esconde atrás de covardes canetadas institucionais igualmente intransponíveis, todavia invisíveis. O topetudo quer instituir materialmente, tijolo por tijolo, a sua “solução xenófoba-econômica” em torno de si. Como, por conseguinte, é mais fácil “cortar a cabeça” de inimigos concretos e visíveis, a ópera dantesca trumpeana poderá muito bem estar sendo o seu próprio réquiem.

Não que Hilary Clinton, se vencer Trump nas eleições desse ano, representará a vitória da civilização sobre a barbárie. Sua longeva fidelidade às forças capitalistas, de qualquer modo, senão construirá novos muros, com certeza reforçará os que já existem, translúcidos, mas que nem por isso deixam de separar dramaticamente o mundo em dois: de um lado os ricos, e de outro os pobres. Novamente, Trump parece ser, não a “menos pior”, mas a “melhor pior opção”, pois a vilania de um déspota declarado é bem mais fácil de ser reconhecida e combatida do que a de uma burocrata do mal fantasiada de democrata.

Por mais que Donald Trump seja um letreiro luminoso ofertando o passado, todavia travestido de progresso, e que a sua paradoxal e cada vez mais popular “política sem polidez” outra coisa não seja que o modus operandi da barbárie assumindo o controle do escritório climatizado da civilização, a civilidade, por sua vez, como aconteceu no passado, é cada vez mais necessária à medida que a presença da barbárie se torna insuportável. Hilary, “a” opção contra o déspota Trump, no entanto só manterá invizibilizada a barbárie que já nos acossa. Nesse sentido, e talvez somente nesse, Trump seja uma vantagem, uma vez que dá carne, osso, tijolo e “insuportabiliade” a esse espectro maléfico como ninguém.

Mas isso, claro, só se vaticinarmos que, haja o que houver, a civilização adoecida vencerá a o vírus da barbárie. Do contrário, Trump será o neo-Hitler icônico da morte daquela. Entretanto, se a humanidade é mesmo uma sempiterna dialética barbárie-civilização, não é o caso de querer hipostasiar um vencedor final. Essas duas dimensões existenciais como que dão força e significado uma à outra. Assim como a fina-flor da civilização foi capaz de produzir um Trump, assim também a erva-daninha que ele encarna é capaz de estimular a civilização.

E porventura o efêmero e agorafílico fenômeno Bernie Sanders não deve muito de sua força à agorafobia bárbara de Trump? Com quantos Trumps imperialistas então faremos um Sanders socialista presidente dos Estados Unidos? Mas não nos esqueçamos, muitos Sanders, por suas vezes, trarão um novo Trump! Tal é a dialética entre as forças que eles representam; basta olhar a gangorra democrata-republicana naquele país -ainda que no playground do Tio Sam, Sanders seja como que alienígena. Por isso, Por mais que Trump seja uma ameaça à civilização, não temos motivos para dar um terminal adeus a ela.

Antes de concluir, não dá para não falar do movimento brasileiro em direção ao passado, ironicamente nomeado pelos seus apólogos golpistas de “Ponte para o Futuro”. O governo de esquerda que em pouco mais de uma década produziu a maior inclusão social da história do Brasil -sem dúvida um passo civilizatório por excelência!- no entanto, recentemente levou um golpe baixo da direita reacionária. E para dizer a que veio, e principalmente para onde quer levar-nos todos, de pronto os golpistas se apresentaram em forma de um ministério exclusivamente masculino, rico, branco e -até onde dizem- heterossexual. E isso em pleno Século XXI…

Obviamente, os golpistas brasileiros não reinstituíram a barbárie ela mesma, mas, sem dúvida, pavimentaram o primeiro quilômetro de uma ponte que, sem empecilho, pode levar até ela. E ao povo brasileiro, que deveria ser “o” empecilho àqueles, mas que no entanto está dócil e melancolicamente retrocedendo por essa via impertinente -e aqui se alinha às bestas norte-americanas-, resta ao menos, na esperança de poder um dia retornar ao virtuoso estágio civilizatório no qual se encontrava, dizer: “Até mais, civilização”.

Homem lobo solitário do Homem

solus lupus

Homo homini lupus”, ou seja, o homem é o lobo do homem, disse o dramaturgo romano Tito Mácio Plauto em 200 a.C., máxima que o filósofo inglês Thomas Hobbes, dezoito séculos depois, usou para justificar o contrato social que institui o Leviatã, isto é, o Estado, cuja função primordial é a de proteger os homens da morte violenta. As palavras de Plauto e o posterior uso que Hobbes fez delas, a meu ver, explicam muito melhor o fenômeno assaz contemporâneo, bastardo do terrorismo, encarnado nos “lobos solitários” do que a ideia fácil que diz apenas que “os lobos caçam solitariamente”.

Quanto mais não seja, porque a recência dos “solus lupus” na arena contemporânea ainda nos deixa com muito mais perguntas do que respostas. Pois bem, que o lobo solitário age desconectado de organizações terroristas, digamos assim, oficiais, é óbvio pelo próprio nome. Obscuras, todavia, são as ideias que o movem. Provavelmente, a ideologia insólita do lobo solitário seja um híbrido de psicopatologia, ignorância, frustração pessoal e informações desconexas que ele saca da mídia e das redes sociais, porém, e tal hibridez infeliz o impele incontrolavelmente ao terror. Afinal, é aterrorizante mesmo tamanha confusão. A sombra ideológica sob a qual vive o lobo solitário faz com que entendê-lo seja tão difícil quanto prever um ato seu.

Agora, se, como dissemos no início, afirmar que “o homem é o lobo do homem” é uma metáfora para o fato de o homem ser o seu próprio e maior inimigo, quem, então, seria seu amigo? Impossível não lembrar do provérbio popular “o cachorro é o melhor amigo do homem”. Não podemos esquecer que esse amigão canino, como sabemos, não existia na natureza até a existência do homem em sociedade primitiva. O lobo é um produto genuinamente humano, a partir da matéria prima do lobo selvagem, ou seja, do seu inimigo simbólico. Essa gradual e real domesticação, do lobo selvagem em cachorro amigável, representa a questão hobbesiana da instituição do Estado Absoluto: o “homo homini lupus”, pelo chicote do Leviatã, tornado o “homo homini canis”.

Tanto da perspectiva de Hobbes, como dessa imagem acima, a do lobo feito cão pelo homem socializado, o lobo solitário terrorista pode estar querendo mostrar algo dos imensos canis que são os nossos Estados: em primeiro lugar, que a segurança que os Estados deveriam assegurar não está mais funcionando. O terror que esses lobos trazem ao mundo dá o seu recado, efetivamente, por mais amargo que seja. O recado: voltamos a ser lobos de nós mesmos. Ou, ao menos, um: “Olhem! Vejam como é fácil ser Lobo de nós mesmos!” O protesto radical do Lobo Solitário traz uma imagem: a do cachorro, frustrado e desesperado, em pele de lobo valente e revolucionário diante do lobo do Estado, violento e dominador, em pele de cachorro, fingindo melodramaticamente que é amigo.

Pensando nos lobos solitários, é impossível também não lembrar da “Idade do Lobo”, expressão usada para falar da fase da vida na qual certos homens, por volta dos 40 anos, entram na famigerada “crise de meia idade”. A psicologia explica que na Idade do Lobo os homens percebem que não viveram as suas vidas conforme desejaram porque seguiram apenas as regras da sociedade. Isso os leva então a querer fazer tudo o que nunca fizeram, e com pressa, pois sentem que não lhes resta mais muito tempo. A patologia a ser percebida aqui é a seguinte: o Lobo busca desesperadamente “fazer as coisas que não fez” em vez de simplesmente “fazer o que gostaria de fazer”.

A analogia entre o lobo solitário e o homem na Idade do Lobo é válida. O terrorista insólito seria aquele que, a certa altura de sua vida, percebe que é escravo de um sistema opressor muito maior do que ele; que é vítima de imperativos que não o satisfazem, nem tampouco o satisfará. Então, a certeza de que sucumbirá o leva a fazer coisas que nunca fez.

A expressão Idade do Lobo, todavia, é inspirada no conflito psicopatológico analisado por Freud e nomeado por ele de “O Homem dos Lobos”. O Lobo freudiano é o indivíduo vítima de um excesso pulsional causado pela sensação de castração devido à sempiterna “ausência do pai ideal”. Como essa falta é cada vez mais insuportável, ele se vê num processo vicioso de, por um lado, admiti-la e, por outro, negá-la. Em suma, esse dilema resulta na “divisão do eu”, ou seja, a divisão do ego como forma de defesa. Um “eu”, resignando-se à falta, renuncia ao seu desejo frustrado, frustrando-se em definitivo, e o outro “eu”, em contrapartida, desmente o primeiro; nega a realidade, e se recusa a aceitar qualquer limitação.

O lobo solitário terrorista, da perspectiva do “O Homens dos Lobos” freudiano, seria o indivíduo cujo “pai ideal” faltante se apresenta enquanto “o mundo ideal ausente”. Orbita obsessivamente esse seu mundo ideal, sem, no entanto, alcançá-lo. Tal é a estrutura da pulsão. Se, ao contrário, atingisse a sua meta, isto é, o centro da órbita onde esse objeto idealizado foi colocado por ele mesmo, no caso, a conquista de seu mundo ideal, teria a frustrante visão de que tal mundo, assim como o pai ideal, não existe. E para evitar essa sobrefrustração, a velha sensação de castração lhe convence do contrário, e assim o lobo solitário reintroduz-se em sua mórbida órbita pulsional.

Então, o “Solus Lupus”, egoicamente, divide-se em dois: um dos quais, aceitando a falta insanável e renunciando ao desejo frustrado, foge da inexistência desse mundo idealizado; enquanto o outro, negando a realidade e se recusando a limitar o seu desejo, segue obsessivamente na sua busca. Ao mesmo tempo nega e afirma o mundo ideal. Só mesmo a forma pulsional para sustentar esse problema: orbitar em torno do mundo ideal faltante, tanto para assumir centrifugamente a incapacidade de tocá-lo, quanto ainda para mantê-lo centripetamente no seu horizonte de possibilidade. A tensão é grande. Só que a tentação de seguir buscando o objeto impossível é maior do que a resolução de abandoná-lo definitivamente.

Lacan diz muitas coisas muito importantes acerca da pulsão. Uma delas, que o objeto que jaz no centro da meta pulsional, para ele o “petit objet a”, é desde sempre algo a nunca ser alcançado. A meta principal da pulsão é nunca alcançar as suas metas secundárias. E isso porque o gozo da pulsão é tão somente a busca, não aquilo que é buscado. Compreender essa paradoxal dinâmica é fundamental para entender o lobo solitário. Decerto ele sabe que, no fundo, o terror que promove é tudo menos a realização de quaisquer mundos ideais. Mas como o “petit objet a” do lobo solitário, qual seja, o mundo ideal, não é para ser alcançado, apenas buscado, o mundo real piorado que o seu ato terrorista produz acaba sendo espécie de altar e  adubo para o seu mundo ideal impossível

A violência e a morte que o lobo solitário traz ao mundo real, com efeito, é a tentativa de convencer todos à sua volta de que a busca obsessiva da qual ele não consegue se ver livre é mais que necessária. Sua solidão quer atenção mundial! A contundência de seus atos, sem dúvida, só reforça a ideia de que um mundo melhor precisa ser construído. Só que ele, vítima da pulsão, antes de todos já sabe que tal mundo não existe, que é só um fantasma: o negativo, real e coletivizado, de sua presente e insuportável frustração por ter sido castrado do mundo que idealizou, abstrata e solitariamente.

Para Freud, “O Homem dos Lobos” seria o “Édipo invertido”, isto é, aquele que, em vez de matar o pai e casar com a mãe, acabou desejando o pai, todavia sob o preço de se colocar no lugar da mãe. E para se ver livre, tanto desse desejo homossexual pelo pai, que ele percebe não ter espaço na realidade, quanto da identificação com a mãe, que por seu turno estimula aquele desejo problemático, o Édipo invertido se esconde atrás de um fetiche/máscara cujo objetivo é ocultar dele próprio a imagem da sua irrealização sexual. Por trás do semblante viril com que “O Homem dos Lobos” se apresenta jaz, no entanto, a triste sensação da sua distância em relação ao seu desejo desde sempre impossível.

Seria demais, contudo, investigar aqui a possível homossexualidade do lobo solitário. Basta que tenhamos em mente o seguinte: a frustração diante da impossibilidade do seu grande desejo, nesse caso, o mundo ideal, ou ao menos idealisticamente melhor; a angústia de permanecer em um lugar que é o seu, mas que não é desejado que seja, pois é ruim; e, sobretudo, o mascaramento dessa tensão mediante uma virilidade radical, que em seu extremo pode sim ser vista na adesão insólita do Lobo Solitário ao terror. O fetiche do lobo solitário terrorista deve ser a destruição pública e violenta do mundo real para com isso dar realidade ao seu mundo privado e idealizado.

Por certo que a belicosidade destrutiva do Homem dos Lobos freudiano é bem menor que a do lobo solitário terrorista. E isso porque objetos que o primeiro elege como responsáveis por suas frustrações são mais concretos e tangíveis: sua sexualidade, seu corpo, sua profissão, sua família, etc. Já os do segundo são assaz abstratos, e por isso mesmo, dificilmente alcançáveis: a humanidade, a sociedade, o Estado, o capitalismo, e por aí vai. Contra estes, cuja medida obviamente escapa a qualquer indivíduo isolado, pois só começam a ser tanto perceptíveis quanto atacados a partir da perspectiva de uma coletividade, o lobo solitário, que se opõe à coletividade, só pode agir desmedidamente. Nesse sentido, e talvez somente nesse, alistar-se ao terror do Estado Islâmico pudesse ser menos infeliz do que investir insolitamente no terror.

Porém, terror algum será capaz de fazer do mundo um lugar melhor.  “O Homem dos Lobos” deve aceitar a sua homossexualidade para então se ver livre da asfixiante pulsão de mascarar a sua frustração sexual. Do mesmo modo, o homem da Idade do Lobo deve deixar de perder tempo com o que até então não fez, mas compreender que há, de um lado, coisas que jamais realizará, e, de outro, realizações possíveis que ele bem gostaria de fazer; assim também o Lobo Solitário deve aceitar a sua irremediável limitação individual diante dos grandes problemas mundiais e dos desmedidos desafios que impõe a si mesmo.

Em outras palavras, o lobo solitário precisa mais que tudo rever a sua meta, redimensioná-la à modéstia do indivíduo que é. Participando de uma organização terrorista, ele seria apenas menos patético, porém, igualmente patológico, monstruoso e condenável. Sem dizer que não estaria reduzindo os problemas do mundo que ele mesmo percebe e contra os quais protesta. Muito pelo contrário, aliás. A modéstia que seria bom o lobo solitário adquirir é a consciência de que a saída para o problema que lhe afeta é cada vez mais coletiva e positiva, e não solitária e negativa. Ou seja: cada vez mais política. E é muito mais fácil um déspota solitário se convencer disso do que um Estado despótico todo.

A psicologia diz que a “Idade do Lobo” pode ser uma crise importante na vida de alguém, uma vez que envolve tomadas de consciência próprias do humano, tais como das rígidas imposições sociais; dos limites próprios da vida; da desmedida dos desejos individuais; e sobretudo da necessidade de se produzir um futuro com mais liberdade e oportunidade de realização. Da mesma forma, para o que aqui eu chamo de “A Idade do Lobo Solitário”, ou seja, o momento crísico e individual no qual alguém cogita ser um terrorista insólito, pode também ser positivo, porém, se, e apenas se, for o átimo no qual esse indivíduo finalmente toma consciência, digamos assim, do mal da sociedade a ser combatido sem trégua, não solitária e barbaramente, mas coletiva, política e civilizadamente.

Ora, não é alienígena para ninguém aquela vontade de, como se diz, “chutar o balde”, isto é, explodir o patrão capitalista, jogar os homofóbicos na fogueira, metralhar os racistas, socar os machistas etc. Decerto que sempre nos depararemos com o semibárbaro que se jaz incorrigível sob a nossa pele civilizada. Porém, civilização é superar as nossas resistências bárbaras constantemente, e nunca replicá-las. É nesse sentido que até mesmo o lobo solitário terrorista, porque também está com um pé na civilização e outro na barbárie, tem a oportunidade de saltar o lodo bárbaro que vê diante de si para quiçá alçar um patamar mais elevado de civilidade.

E o leviatã hobbesiano, que fez do “homem lobo do homem” o “cidadão amigo do cidadão”, é talvez a maior encarnação da civilização. Barbárie alguma pode oferecer produto melhor. Se alguns discordam disso, trata-se, novamente, apenas de uma combinação confusa de psicopatologia, ignorância, frustração pessoal e informações impróprias. O lobo solitário, se tomasse consciência disso, perceberia que é mais fácil desfazer essa sua confusão e, com calma, tratar de suas mazelas pessoais, do que, antes, sair solitária e desesperadamente tentando mudar o mundo. Afinal, coagir os outros à mudança para não precisar mudar nada em si mesmo é o espírito mais primordial do despotismo.

Esse ensaio sobre os lobos mais simbólicos do mundo, contudo, ficaria incompleto se não falássemos do Lobo Mau de “A Chapeuzinho Vermelho”. Nas palavras do seu autor, o francês Charles Perraut, “o Lobo é um tipo com uma disposição receptiva – sem rosnado, sem ódio, sem raiva, mas dócil, prestativo e gentil, seguindo as empregadas jovens nas ruas, até mesmo em suas casas. Ai de quem não sabe que esses lobos gentis são de todas as criaturas as mais perigosas!” A moral perraultiana da estória é trazida aqui para refletirmos sobre muitos dos depoimentos de parentes e amigos de lobos solitários terroristas. Em suma, geralmente ouve-se daqueles que estes são pessoas boas, trabalhadoras, divertidas, amigáveis, amáveis até.

É perturbador confrontar tal dimensão, digamos assim, civilizada dos lobos solitários com a barbárie que promovem. A solução, obviamente, não é evitar aqueles que se aproximam receptivamente, como disse Perrault, “sem rosnado, sem ódio, sem raiva, mas dócil, prestativo e gentil” só porque podem ser “criaturas as mais perigosas”. Isso seria se privar das benesses da civilização elas mesmas. Talvez a moral desse ensaio queira apenas concluir que o lobo solitário, bastardo de um mal muito maior e anterior a ele, é apenas uma pessoa como qualquer outra, como eu e você, com suas humanas frustrações, desejos e limitações, que, entretanto, em determinado momento patológico, erra o passo e se atola no lodo da barbárie, que, de certa forma, está sempre logo abaixo da porcelana da civilização.

Porém, qual gelo fino, essa civilidade de onde nos aterrorizamos com os lobos solitários e os criticamos, assim como aconteceu com eles, pode ruir sob os nossos pés. Então, enquanto estamos no privilegiado belvedere civilizado, seria bom que nos empenhássemos na construção um mundo melhor, oxalá capaz de dar vida ao clássico lema anarquista “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, pois só mesmo um ambiente assim dispensará qualquer pertinência ao terrorismo.

A beleza salvará o mundo

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Parafraseando o poeta Vinícius de Moraes, os revolucionários que me perdoem, mas a beleza é fundamental. Esse perdão parafraseado, na verdade, é um pedido de paciência àqueles que, não sem razão, enxergam os perigos da frivolidade e da alienação na beleza, afinal, a besta capitalista há muito a sequestra para melhor e mais dissimuladamente agir contrarevolucionariamente. “Hesitamos a aprovar tal fascinação pelo belo: sabemos que ela dissimula a face atroz da realidade” diz o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov no seu livro intitulado com uma frase de Dostoievsky, que é o cerne do que se quer pensar aqui, qual seja: “A Beleza Salvará o Mundo”.

Em primeiro lugar, os revolucionários que não acreditam que a beleza nos salvará da vilania do inimigo capitalista deveriam saber que o “amigo” fiel, não só deles, mas em verdade de todos nós, qual seja, o comunismo, não é e não deve ser refratário ao belo. Afinal, “a beleza não conhece privilégios sociais e nem de classe”, diz Todorov, para quem “todos são iguais diante da beleza, e podem participar dela nas mesmas condições”. Mais ainda, de acordo com o filósofo alemão Immanuel Kant na sua “Crítica da faculdade do juízo”, o belo é alavanca do sentimento de comunidade; nas palavras dele: do sensos communis.

Antes, porém, de trazermos os argumentos de Kant e de seguirmos nos de Todorov e outros pensadores, o amor ao conhecimento, ou seja, a filosofia exige que comecemos pela investigação sobre o belo por excelência, o diálogo socrático escrito por Platão, “Hípias Maior”. Nele, o filósofo Sócrates pede ao sofista Hípias uma definição do belo. As respostas do sofista ao filósofo sobre a beleza são as seguintes: uma bela jovem; o ouro e o marfim com que se adorna as coisas; ser rico, respeitado e tratado com honrarias; o que é útil; o que é bom; o que agrada os sentidos; e, finalmente, que a Beleza é a salvação proveniente de um discurso bonito.

Não obstante, todas as tentativas do sofista não convencem o filósofo, afinal, Sócrates quer saber, não o que por acaso é belo, mas o que é “o belo”, isto é, aquilo que faz com que as coisas sejam, possam ser belas. A grande questão, infelizmente, permaneceu sem resposta. Não só porque o sofista sequer compreendeu o ponto do filósofo, uma vez que só pensou em coisas e ações belas em vez do belo-em-si, como também porque até mesmo Sócrates não sabia defini-lo. Em vez disso, mediante o seu paradoxal “só sei que nada sei”, o filósofo conclui o diálogo dizendo apenas: “o belo é difícil”.

Vinte e dois séculos depois, na modernidade, Kant encontrou uma solução para a questão irresoluta da beleza das mais elegantes. O alemão concorda com Sócrates em que o belo não está nas coisas belas, que não é uma propriedade que exista nelas independentemente da percepção humana. Porém, o filósofo moderno supera o antigo ao entender que o belo é um produto da nossa faculdade de ajuizar as coisas, que em si mesmas não são belas, mas sim a nossa disposição subjetiva diante delas.

Para Kant, quando nossos sentidos, mais privilegiadamente a visão, percebe um objeto que lhe causa espécie de prazer e, diante dessa complacência subjetiva espontânea, resistimos, de um lado, a conceituar tal objeto e, de outro, a dar-lhe qualquer utilidade, mas permanecemos apenas nessa relação de prazer contemplativo com ele, eis o belo: não o objeto, não a nossa capacidade para contemplá-lo complacentemente, mas a relação com ele livre dos conceitos e do pragmatismo humanos.

Porém, para entender como “a beleza salvará o mundo”, é preciso compreender que, para Kant, não basta um objeto, um indivíduo e o prazer subjetivo deste. Chave para o belo kantiano é uma paradoxal universalização desse particular subjetivo. Funciona assim: quando me comprazo contemplativamente com determinado objeto, o meu juízo só pode sustentar que ele é belo se, antes, eu pressupor que qualquer pessoa que porventura entre em contato estético, isto é, sensível com este mesmo objeto o ajuizará da mesma forma que eu.

Em suma, kantianamente falando, eu só consigo achar que uma coisa é bela ao presumir que ela será bela para todos. Mesmo que posteriormente certos indivíduos não concordem com o meu ajuizamento de gosto -o que é bem provável aliás- ainda assim esse meu juízo só é possível se a priori eu pressupuser que ele será universalmente considerado belo. Nas palavras do filósofo, “em todos os juízos pelos quais declaramos algo belo não permitimos a ninguém ser de outra opinião, sem com isso fundarmos nosso juízo sobre conceitos, mas sobre nosso sentimento: não como sentimento privado, mas como um sentimento comunitário.”

Espero que a esta altura o revolucionário refratário ao belo já possa baixar sua guarda, pois se o belo, por um lado, exige a pressuposição de um gosto comum, nas palavras de Kant, um sensus communis, isto é, um sentido comunitário, a beleza -embora fortemente coagida pelo capitalismo para alienar-nos da vil realidade que ele mesmo impõe-, por outro lado, é a essência daquilo pelo qual este revolucionário desde sempre esteve em luta, qual seja, o comum. E para quem acha que a revolução é antes racional, intelectual do que sensorial, Kant tem a dizer que “a faculdade de juízo estética, antes que a intelectual, pode usar o nome de um sentido comunitário”.

E isso porque a faculdade de ajuizamento estético, isto é, o gosto considera, e a priori, o gosto de todos os demais. Quando, ao contrário, tenho certeza de que algo é prazeroso apenas para mim, levo em consideração somente a minha sensibilidade, impossível de ser universalizada. Esse não seria o horizonte intransponível do burguês? Quando, ainda, o que me compraz parece que causará o mesmo somente em determinados indivíduos, isso se dá porque levo em consideração certos valores. Nesse sentido, se meu prazer, parecer-me, será igualmente prazeroso à maioria, meu sentimento subjetivo dirá que o objeto que o causa é bom. Então sou moral. Aqui não estamos no limite socialdemocrata?

Agora, enquanto pressuponho que todos terão prazer com aquilo que me apraz, o belo, que é o que surge dessa reflexão, é a ideia de que a mais espontânea e menos interesseira disposição subjetiva que eu posso experimentar não se dá sem a consideração de que a humanidade é uma só. Com efeito, coloca Friedrich Schiller, outro filósofo alemão, “a beleza revela nossa humanidade, ela é o nosso ‘segundo criador’”. E uma segunda criação seria o que senão a primeira revolução humana? A beleza, e o communis sem a qual ela não é, deve ser um princípio ao revolucionário.

“Não podemos ser um sem o outro; só a comunidade exprime a humanidade”, diz Feuerbach. Rousseau diz o mesmo, todavia de modo mais poético: “para conhecer seu coração é preciso começar por ler o coração de outrem”. E a beleza, segundo Kant, mutatis mutandis não exige o mesmo de cada indivíduo? Sem ela, ou temos o individualismo, cujo vício é o de remeter todos os prazeres somente a quem os sente, e dane-se o resto, ou, com sorte, a democracia, cuja pseudovirtude é se satisfazer com o prazer da maioria, não com o de todos.

Reduzindo a verticalidade entre a torre de marfim filosófica kantiana e o chão comum do revolucionário, Schiller afirma que, se a revolução se perdeu, é porque seus atores não estavam maduros para a liberdade. Seria preciso, portanto, proceder à educação desses atores; transformá-los em seres morais. E essa educação, garante o filósofo, é estética. Nas suas palavras, “é pela beleza que nos encaminhamos para a liberdade”. Grosso modo, para Schiller, submeter a vida às exigências do belo é o verdadeiro caminho para a liberdade.

Aqui já podemos ver, não a vitória, mas a dianteira do estético em relação ao político, e até mesmo ao ético. O escritor britânico Oscar Wilde concordava com isso. Para ele, a estética é um enriquecimento da ética e da política, muito mais do que a substituta alienante delas. Na sua controversa apologia à beleza, o antológico “O retrato de Dorian Gray”, Wilde sugere que “é melhor ser belo do que ser bom”, uma vez que a beleza não é apenas preferível ao bem, mas também “a única capaz de perdoar o mal”.

Dandismos à parte, o que o revolucionário deve tirar dessa ideia wildeana é que o bem não é tão potente quanto o belo no sentido de “perdoar toda a humanidade”, quer dizer, de contemplá-la em uma só disposição prazerosa de espírito. Ora, o bom, o moral, é aquilo que seria melhor em dada circunstância e em função de determinado fim. Nessa dimensão, entretanto, há espaço por exemplo até mesmo para o capitalismo passar por um bem, por fim a ser perseguido. Sua força e incontáveis apólogos worldwide provam isso muito cruelmente.

Já o belo é a perfeição incondicional! Há na sua contemplação um prazer que, embora produzido subjetiva e individualmente, todavia porque só se finaliza na contemplação a prior de todas as demais subjetividades, ou seja, da humanidade inteira, assalta-nos a nós próprios e faz com que sintamos que a perfeição só é produzida coletivamente, comunitariamente. O belo, para ser, sopra ao mesmo tempo duas coisas maravilhosas no nosso ouvido: um gratuito e espontâneo prazer contemplativo, e a certeza de que temos um gosto em comum com a humanidade inteira. A beleza e o communis sem o qual aliás ela não é, é essencial ao comunismo.

Kant, além de resolver elegantemente a antiga questão socrático-platônica acerca do belo, com a sua “Crítica da Faculdade do Juízo” também dá o caminho das pedras ao revolucionário, evidenciando que o indivíduo, diante de seu gosto, para poder ajuizar que algo é belo, precisa se colocar em pé de igualdade com todos os gostos do mundo. Claro, o comunismo tem muitos outros e dificílimos desafios. Todavia, sem esse princípio prazeroso, universalizante, comunitário envolvido na beleza, sequer poderia pensar em um primeiro passo.

A revolução, portanto, é primeiramente estética. Só depois pode ser ética, moral, política, econômica, científica etc. Pois, como já disse o ensaísta francês Michel de Montaigne, “no estado estético, todo mundo, mesmo o trabalhador que é um mero instrumento, é um cidadão livre cujos direitos são iguais aos do mais alto nobre”. Ao contrário do que disse Sócrates à Hípias, não é o belo que é difícil. Ele é fácil e acessível a qualquer um. Mudar o mundo, fazer a revolução é que ainda seguem complicados para nós. Talvez porque ainda acreditemos que esses desafios não têm e não devem ter nada a ver com a beleza.

Escola sem Partido: ex-cola

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O que quer para o Brasil o Senador Magno Malta, do Partido da República, com o seu “Programa Escola sem Partido”, Projeto de Lei do Senado (PLS nº 193 de 2016) cuja diretriz é a erradicação da crítica política na educação brasileira? Ora, cidadãos mais mal-educados politicamente, e portanto mais manipuláveis –e por que não dizer golpeáveis-, do que os que o país já tem em abundância. Com efeito, se já foi fácil para um bando de oligarcas corruptos dar um golpe de estado em um país semialfabetizado politicamente, imagina então em um analfabetizado estrategicamente desde o bê-a-bá.

Se o “Programa Escola sem Partido” fosse um empreendimento da Igreja não teríamos nada de novo, somente mais da mesma e velha batalha contra um força reacionária cuja doutrina sempre andou alienada do pensamento crítico. Agora, vindo de um político cujo partido pelo menos no nome carrega a República, o “Programa Escola sem Partido” é de uma vilania digna de nota. Só mesmo um rol de objetivos espúrios, que podem ser sintetizados na imbecilização de um povo inteiro para que a velha elite possa mais facilmente e mais intensamente dominá-lo, para explicar o projeto de Malta.

Inimigo declarado do “Escola sem Partido”, o historiador brasileiro Leandro Karnal ressalta que nenhum evento social é bem compreendido senão através da crítica política. Relembrando-nos da decapitação do rei da França Luís XVI, um dia depois de sua deposição em 1792, e de sua esposa, Maria Antonieta, também guilhotinada um anos depois, Karnal pergunta o que pode ser dito de tais acontecimentos sem analisá-los politicamente: “Coitados dos reis da França?”, ironiza.

Precisamos nos perguntar: por que Malta e os seus, do centro do próprio sistema político, projetam a apolitização dos estudantes brasileiros se desde a Grécia antiga o indivíduo político é a base da nossa civilização (pelo menos a ocidental), e o que é mais importante frisar, em solução ao modus operandi despótico, e por que não dizer bárbaro, que lhe antecedeu historicamente. Seria a despolitização sistematizada um projeto de barbárie 2.0, um “New despotism”?

Se sim, então o Senador Malta não é somente um político mal-intencionado, mas um terrorista radical, e o que é pior, um que ainda por cima goza do privilégio de ter sido eleito política e democraticamente. Assim como o “golpe branco” tupiniquim é a mais nova sofisticação em matéria de golpes de estado, assim também o projeto do Senador republicano é uma requintada forma de terrorismo. Observando a escalada do terror no mundo, não é de espantar que ele se fantasie com a vil sutileza do “Programa Escola sem Partido”.

Para entender melhor o que ganhamos e perdemos com a destruição do ser político dentro de uma sociedade, vale remontarmos a antes da Atenas de 500 a.C. para entendermos a transição do ser despótico em ser político. Pois bem, “despótes”, isto é, déspota, era o pai de família, senhor, dono e soberano da esfera doméstica, cujo poder ilimitado atendia às necessidades materiais de sobrevivência do seu “génos”, ou seja, do núcleo parental (daí genética). As querelas entre os diferentes “génos” eram resolvidas na desmedida da potência física de seus “despótes”, isto é despoticamente.

Porém, na Grécia Clássica, com o advento da “pólis”, ou seja, a cidade-estado, esses “despótes” instituíram entre si e para si um outro modo –pelo jeito mais eficiente e sem dúvida mais sofisticado- para resolverem as dificuldades referentes à sobrevivência material de seus “génos” particulares. A “pólis”, portanto, partindo da matéria bruta do “despótes”, fez o “politikos”, o homem  político propriamente dito, cuja característica essencial era colocar-se diante dos demais mediante racionalidade e discurso crítico, e não mais através da força e do embate físico.

Importante ressaltar que este “homem” grego político não é o genérico de ser humano, mas exclusivamente os indivíduos do sexo masculino, os únicos que tinham o direito de serem “politikos”, pois, lembremos, estamos falando de uma sociedade absolutamente sexista. E a exclusão da mulher da esfera política levou mais de vinte séculos para ser superada. Todavia, tanto a batalha quanto a vitória feminina no campo da política só foi possível porque o “despótes”, lá atrás, instituiu uma ágora política aonde a brutalidade física não tinha mais vez. Uma vez aberto esse horizonte às relações entre os indivíduos, era só uma questão de tempo até as mulheres conquistarem igualdade com os homens na administração da vida coletiva.

Já aqui podemos ver que um dos resultados do “Escola sem Partido” é destruir o ambiente político que possibilitou às mulheres se libertarem do jugo despótico masculino. Em primeiro lugar, portanto, o “Escola sem Partido” é machista. Afinal, sem dimensão política disponível, os indivíduos buscarão a realização de seus objetivos e resolverão as suas diferenças de que forma senão mediante a força física, a única aparente vantagem -todavia não substantiva- do homem sobre a mulher? Não deveria nos surpreender, por consequência, que o autor do “Escola sem Partido” seja um homem, e, ademais, tão machista quanto a ideologia reacionária do seu Partido.

A possibilidade do sexismo da Antiguidade, porém, não é o único passado que ganharemos do “Escola sem Partido”. Também a medieval submissão do servo ao senhor é mais um distópico horizonte aberto pelo projeto de Malta. Só que nesse caso, não só as mulheres, mas também os homens jazem alienados do controle da vida social, pois na Idade Média reis e senhores feudais decidiam tudo. Tanto a terra necessária à subsistência, quanto a proteção militar fundamental à sobrevivência, eram favores daqueles aos camponeses, isto é, ao povo apolitizado.

Também o passado que ganhamos de presente com projeto de Malta é mais da moderna exploração da burguesia sobre o proletariado. Passado que, todavia, não é tão passado assim… Ora, um povo acrítico politicamente de modo algum chegará à revolucionária consciência de classe. O “Escola sem Partido”, portanto, é um tobogã quase vertical à alienação em respeito à exploração das classes dominantes. Sem saber se relacionar politicamente, seja entre eles mesmos, os explorados, seja com os detentores dos meios de produção, seus exploradores, a massa de trabalhadores que sairá da “Escola sem Partido” não tem outro destino senão permanecer subjugada.

Afora os grilhões que o despolitizante projeto de Malta ressuscita da antiguidade, do medievo e da modernidade, recontemporaneizando impertinentemente um passado que com muita luta foi superado, o “Escola sem Partido”, por outro lado, quer tornar passado talvez a maior virtude do presente: a crescente politização dos estudantes. Ação política das mais elogiáveis, as ocupações que os estudantes brasileiros têm feito em suas escolas frente o descaso dos nossos representantes políticos são os atos mais efetivos da distópica arena social.

Da perspectiva de uma oligarquia dominante, permitir que as escolas sigam formando jovens cidadãos com tal virtude e potência política com efeito é assinar a própria sentença de morte. Para tanto: “Escolas sem partido”. Dito de modo bastante dramático: Escola sem Escola; afinal, sem ensinar aos jovens aquilo de que eles mais precisarão vida-adentro, qual seja, a capacidade de criticar politicamente o mundo desde sempre opressor no qual vivem, e consequentemente politizarem em busca de uma maior liberdade, escola para quê?

Desconsiderando o conteúdo programático que cada um dos nossos estudantes bem ou mal levará consigo para a ágora brasilis, na resolução das questões sociais mais pungentes os seres apolitizados oriundos do “Escola sem Partido” serão ou uma massa idiotizada e subserviente, ou um bando de bárbaros que para realizarem seus objetivos pessoais poderão no máximo atuar despoticamente. Tire-se a política e o que teremos é o despotismo. Dito de outro modo: prive as pessoas da fina flor da civilização, a política, o que sobra são as raízes podres da barbárie.

Barbárie pouca é civilização

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“Besteira pouca é bobagem”, diz um provérbio português, que nesses nossos tempos de cotidianização de atentados terroristas bem poderia ser parafraseado da seguinte maneira: ‘barbárie pouca é bobagem’. Quem iria imaginar que no cume de sua civilização o ser humano fosse ressuscitar de forma tão banal modos tão primitivos de ser no mundo?

A atual barbarização da nossa “nobre” civilização, todavia, não é tão surpreendente assim se relembrarmos do ensaísta político francês Pierre Drieu la Rochelle, que, no início do século passado, de sua vista privilegiada para a Belle Époque, já dizia que “a civilização extrema gera a barbárie extrema”. Essa máxima de la Rochelle tem a virtude de apontar algo de que estamos esquecidos há muito: a viciosidade disso que chamamos evolução.

Desde que o cristianismo se tornou o paradigma da nossa civilização, e depois a ciência, acreditamos piamente que o tempo é histórico, isto é, que o passado corrompido só faz ficar cada vez mais para trás em detrimento de um futuro sempre e cada vez novo e melhorado. O brilho ofuscante da barbárie na berlinda da nossa contemporaneíssima arena histórica, porém, põe em cheque justamente essa visão, melhor dizendo, essa previsão.

Mesmo com a mui martelada e centenária “Morte de Deus” nietzschiana, mantemos cegamente o vaticínio da evolução em coma assistido. E isso quiçá para não reencontrarmos uma sabedoria da Antiguidade, aliás, própria do estoicismo, vertente filosófica fundada em Atenas por Zenão no início do século III a.C., que propunha a mítica repetição do mundo. Esta concepção afirmava que o mundo retorna sempre à sua origem para que os mesmos atos ocorram novamente, ad aeternum.

Da perspectiva estoica pelo menos, não há nada de errado no retorno da barbárie no sofisticado lounge da civilização. Antes, é a sempiterna dinâmica do mundo ele mesmo. Afinal, o que viria após a civilização senão o seu outro alienado? Por mais que tenhamos afastado estrategicamente barbárie e civilização uma História inteira, a Antiguidade tem a nos relembrar que entre aquelas duas não há mais do que um passo; e que, passo-a-passo, passamos de uma a outra, sem escapatória.

Por isso, o fato de nós, civilizados, estarmos aterrorizados com a barbárie que explode na contemporaneidade é espécie de ingenuidade, para não dizer ignorância; seja porque nunca nos alienamos completamente de nossa essência bárbara, mas apenas a encobrimos com a fina seda da civilização, seja ainda porque nos esquecemos da sabedoria dos antigos, que diz que o mundo é um circuito fechado no qual nada que aconteceu desaparece, mas retorna, eternamente.

Como não esperar que a barbárie e o terror que ela suscita reocupem a arena mundial, por exemplo, no reinado do não menos bárbaro e aterrorizante capitalismo, sistema econômico que, mantendo-se e crescendo mediante a desigualdade entre os agentes sociais, e estimulando a competição desenfreada entre eles, estabelece espécie de inimizade irrecuperável -e lucrativa- entre todos?

Aqui vale a pena relembrar o que disse o italiano Umberto Eco, que “o fim do terrorismo não é somente matar cegamente, mas lançar uma mensagem para desestabilizar o inimigo”. O terrorismo, com efeito, é a mensagem que, uma vez enviada, inimigo algum tem como dar “unfollow”. É lê-la ou lê-la. Ou, do contrário, ignorá-la e ser morto. E nesse ciclo do mundo no qual até mesmo continentes inteiros são transformados em inimigos pelo aterrorizante, cego e surdo capitalismo, mensagens inalienáveis e igualmente aterrorizadoras são cada vez mais trocadas.

E se, como colocou Edward R. Murrow, comentarista e repórter americano do meio do século passado, “nada pode aterrorizar toda uma nação a menos que todos nós sejamos cúmplices”, temos que a barbárie que o mundo assiste atualmente e da qual padece aterrorizado outra coisa não é que o produto coletivo desse mesmo mundo, dito civilizado. Ingenuidade ou ignorância, e por que não dizer covardia, é sustentar que são apenas os bárbaros fundamentalistas muçulmanos ou a besta capitalista os apólogos do eterno retorno da barbárie no cerne da civilização.

Levando em conta a infindável dialética entre barbárie e civilização, cuja única síntese possível repousa sob o signo do mito, isto é, da perpétua superação de uma pela outra, porventura podemos concluir que o investimento cego na civilização, paradoxalmente, é a preparação do mundo para mais um retorno da barbárie? Se é assim, então, um estratégico estímulo à barbárie, por sua vez, faria com que a civilidade se fizesse mais presente?

O que está se desenhando aqui? Que a barbárie é o caminho para a civilização? Esse rascunho, todavia, não deveria parece absurdo, uma vez que, anteriormente, como ninguém há de questionar, foi exatamente assim que se deu. Se em determinado momento do circuito fechado do nosso mundo partimos da barbárie para a civilização, não há motivos para crer que tal procedimento seja, digamos assim, alienígena nem tampouco irrepetível.

Só mesmo uma fé cega na ladainha cristã que prega há pelo menos dezesseis séculos que o tempo e a história são lineares, que nada do passado retorna, que há um fim da história mundana no paraíso celeste, blá-blá-blá, para não esperar que, sim, podemos passar, mais ainda, que passaremos muitas vezes, miticamente, pelo processo de encontrar e abandonar certa barbárie para encontrar e abandonar certa civilização, e assim por diante.

Então, aqui, chegou a hora de reencontrarmos o título desse ensaio, qual seja, “barbárie pouca é civilização”, ou o que é o mesmo, “civilização pouca é barbárie”, se se preferir, afinal, se, miticamente, uma e outra se sucedem dialeticamente, a humanidade é as duas em uma infindável relação. Compreender a humanidade, portanto, é saber, em cada momento, a diferença de nível de uma balança que em um prato carrega a barbárie, e, no outro, a civilização.

Dessa visada -e de forma alguma de uma perspectiva idealista que pressuporia barbárie e civilização como formas puras e hipostáticas capazes de existirem separadamente-, somos, materialmente falando, sempre e ao mesmo tempo semibárbaros e semicivilizados. Aqui vale repetir o que escreveu o pós-romancista português José Valentim Fialho de Almeida no final do século XIX, que “dar a um semibárbaro as regalias de um ser culto e consciente é pôr a civilização na contingência de um regresso brutal à barbárie”.

A solução que se rabisca aqui em respeito ao levante intempestivo da barbárie na contemporaneidade civilizada, cujo ícone último, excelente e espetacular é o terrorismo -muito embora, a meu ver, a sistematizada exploração capitalista seja infinitamente mais bárbara; afinal, quantas mortes contam nas costas do capitalismo e quantas nas dos terroristas?-, em suma, essa solução talvez possa parecer radical demais para ser considerada “politicamente correta”. Todavia, ao menos enquanto proposta deve ser pensada até o final.

Parafraseando o provérbio “besteira pouca é bobagem”, propôs-se outros dois, quais sejam seja, “barbárie pouca é civilização e “barbárie pouca é bobagem”. Colocando estes dois últimos como premissas de um silogismo, temos que, conclusiva e logicamente, “civilização é bobagem”. E isso, todavia, para reforçar a ideia de que investir na civilização contra a barbárie é tolice, pois é nada além de dar acesso privilegiado, melhor dizendo, privilegiar a barbárie.

Então, se é assim que dialeticamente a coisa funciona, deveríamos ser promotores, não da civilização, mas da barbárie ela mesma, pois assim ganharíamos aquela no final do empreendimento desta. No caso do maior problema do mundo atual, o terrorismo, sua solução seria levá-lo ao seu extremo, para que, finalmente, tendo dado tudo de si, sido esgotado, e o que é mais importante, aterrorizado absolutamente a humanidade, não houvesse mais espaço algum para ele, somente para o seu outro, a paz, ou a tranquilidade, se se preferir.

Aqui lembro da controversa afirmação dada pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek, que Hitler não foi mau o suficiente. O que o filósofo quis dizer com isso -e que muitos não entendem- foi que se o líder nazista tivesse sido absolutamente mau, não haveria, hoje em dia, não só os neonazistas, que ainda veem pertinência nos ideias genocidas da Segunda Grande Guerra, como também a crescente xenofobia que, galopante, redesenha as fronteiras do mundo em descarada recusa ao outro estrangeiro imigrante.

Seguindo a lógica žižekiana, se Hitler tivesse sido absolutamente mau, isto é, se seu ódio aos judeus tivesse restado universalmente monstruoso, ou seja, absolutamente inaceitável para todas as pessoas e tempos futuros, os ódios mortais e insuportavelmente quje vemos presentemente, como aos estrangeiros, negros, homossexuais, mulheres etc., certamente não teríamos ainda hoje solo fértil para a erva daninha da intolerância radical em relação ao outro seguir lançando tantas e profundas raízes.

Seria o caso então de contribuirmos, no núcleo duro e aterrorizado do agora, com espécie terrorismo absoluto, um terror maior que todos os terrores, em suma, uma barbárie totalmente monstruosa que doravante universalizasse uma recusa definitiva ao terror? Em outras palavras, a pergunta que cabe respondermos é a seguinte: será que só o terrorismo é capaz de dar cabo de si próprio? Vendo a atual impotência das movimentações políticas nesse sentido, é de se pressupor que só mesmo a sua versão prévia, o despotismo, primogênito da barbárie, possa realizar tal empresa.

Lembrando da máxima de Paracelso, médico e físico suíço-alemão do século XVI, qual seja, “a diferença entre um remédio e um veneno está só na dosagem”, é preciso investigar qual seria a dose precisa de terror para que ele fosse um veneno a si próprio, ou, tanto faz, um remédio para a paz mundial. Um elixir paradoxal que, aplicado comedidamente, fizesse com que a quase banalizada ignomínia terrorista esgotasse seu “potencial mensageiro” -como colocaria Eco- e que deixasse irremediavelmente claro a todos porque este tipo de “conversa” não deve mais ter lugar nem vez no nosso mundo.

Colocar-se e responder essa pergunta, porventura, não seria a maior vantagem da civilização em relação à barbárie? Ou, em troca, seria a vantagem desta sobre aquela? Linha tênue essa que separa a barbárie da civilização! Outrossim delicada é a dinâmica que faz com uma suscite a outra, dialeticamente, como viemos tentando pensar até aqui. Dando uma passo além de Paracelso, é preciso dizer que não só a dose do “remédio/veneno terrorisa” a ser aplicado contra o terror real é fundamental. Também a fórmula específica dessa paradoxal “poção” é importante, pois assim como o atual mal terrorista é peculiar, outrossim específico deve ser o veneno/remédio contra ele.

Somente me privo de vaticinar que terror e que dose seriam os mais adequados por dois motivos. Em primeiro lugar, porque decerto já me expus e contrariei o senso comum em demasia fazendo do terror a solução ao problema que ele mesmo é, sem dizer da fé no investimento na barbárie como via à civilização. E, em segundo e último lugar, porque mesmo entendendo que sou bárbaro e civilizado ao mesmo tempo, a pequena vantagem que, em mim, a civilização ainda tem sobre a barbárie é suficiente para impedir-me de ser um terrorista ipsis litteris.

“Uma única andorinha não faz verão”, diz o provérbio popular. Do mesmo modo, um bárbaro solitário –hoje em dia um “lobo solitário”- não faz a revoada bárbara capaz de produzir o verão civilizado de que tanto necessitamos. O paradoxal passo civilizatório que viemos tentando pensar até aqui se dará somente quanto tanto o terror quanto a sua dose, digamos assim, medicinais, forem prescritos e administrados coletivamente. Do contrário, teremos um mundo de semicivilizados aterrorizados por um único semibárbaro terrorista. A balança então penderia para a civilização, todavia,  com esta sendo apenas peso morto na sempiterna dinâmica da humanidade.

#NãoVaiTerGolpe Vs. #DarbeDeğil

Turkish people gather to react against uprising attempt

“Quando o machado entrou na floresta, as árvores disseram: o cabo é dos nossos”, diz um antigo provérbio turco. Os cidadãos/árvores do estado/floresta chamado Turquia certamente reatualizaram essa sabedoria popular ao impedirem o machado golpista de, em 15 de julho de 2016, depor à força Recep Tayyip Erdogan, presidente democraticamente eleito por mais de 54% daquela população. O já caduco e desde sempre impotente #NãoVaiTerGolpe tupiniquim tem muito do que se envergonhar, e mais ainda o que aprender com o neonato e vitorioso # DarbeDeğil (#GolpeNão) da Ásia-menor.

Porém, uma diferença é crucial entre a tentativa de golpe turca e o atual golpe brasileiro que, de certa forma, facilitou as coisas para aqueles. Lá, o levante foi militar, aqui, parlamentar; lá, vermelho da cor do sangue (265 mortos e 1.440 feridos), aqui, branco da cor dos colarinhos dos oligarcas golpistas; lá, valente, aqui, covarde. Com efeito, o fato de os golpistas turcos terem começado a ação deles presente nas ruas e de modo violento já deu os termos da luta a quem quisesse tentar impedi-los. Bastava portanto estar presente e agir com violência contra os golpistas. E não é que bastou? Já no Brasil, a sofisticação acovardada do golpe jurídico-político foi a de usar armas das quais a população não dispunha (estratagemas sórdidos de poder, influência midiática etc.), com as quais, infelizmente, ela não poderia voltar-se contra ele, mas, conforme critica o filósofo brasileiro Vladimir Safatle, apenas melancolizar-se passivamente.

Diante de que tanques nos prostrarmos, como fizeram os turcos, e contra que inimigos assumidos iconicamente uniformizados nos voltarmos, se o golpe brasileiro foi dado por uma cambada quase que incontável de políticos corruptos entrincheirados em suas legitimidades representativas e, ademais, que fizeram de um objeto inexistente, o crime de responsabilidade fiscal de Dilma Rousseff, que cada vez mais claro resta que nunca houve, o equipamento bélico com o qual derrubaram não só a presidenta, mas, de quebra, a democracia no Brasil? Os turcos ao menos tiveram esses inimigos concretamente presentes diante de si, pois um golpe militar tem ao menos a virtude de ser físico; visível, tocável, portanto, atacável e assassinável. Já a sua versão branca/parlamentar se viabiliza mediante um pretensioso vício, digamos assim, metafísico, isto é, para além da materialidade mundana capaz de contê-lo.

Já aqui podemos concluir que o golpe militar é melhor ao menos em um sentido: nele o inimigo e suas ações são desde o princípio evidentes e reconhecíveis e, por consequência, mais fáceis de serem contragolpeados. No caso dos turcos, a força que mostraram diante dos seus algozes já estava desde há muito em um dito popular deles: “a arma é o inimigo de quem a tem”. Enquanto que o dito golpe branco de que os brazukas padecem, sorrateiro que só ele e, é muito mais pernicioso porque age em trincheiras assaz alienadas daqueles que não o aceitam. E essa alienação pode ser simbolizada por um provérbio bem brasileiro: “em rio que tem piranha, jacaré nada de costas”. Em suma, jacaré brazuka ameaçado dá as costas aos seus inimigos, não os confronta.

Desse ponto de vista fica um pouco mais fácil entender a preferência de alguns pela tirania em relação à democracia. Um tirano e um representante democraticamente eleito podem, ambos, ser bons ou maus governantes. A diferença, não obstante, está em que, caso sejam maus, aquele pode ser assassinado e o estado viciado cair imediatamente, ao passo que em uma democracia, uma simples morte de forma alguma elimina o núcleo do problema. Matar Mussolini e Hitler foi suficiente para libertar a Itália e a Alemanha do fascismo e do nazismo. Agora, matar Barak Obama, por exemplo, por acaso livraria os EUA da ignomínia da tirania capitalista? Infelizmente, não.

De forma alguma a ideia aqui é fazer uma apologia à tirania. A intenção, todavia, é ressaltar que a tácita evidência do inimigo, como se dá no velho golpe militar, é muito mais favorável ao contragolpe do que a semi ocultação do algoz, como acontece no golpe estilo “branco”, dividido por cabeças demais para serem decapitadas. Erdogan, embora eleito democraticamente, nos primeiros passos dos golpistas agiu com pitadas de tirania: destituiu, despótica e imediatamente, cinco generais e 29 coronéis, prendeu dois 2.800 militares envolvidos no golpe, e, o que chega a dar inveja aos brasileiros golpeados, afastou 2.745 juízes e cinco membros do alto conselho judicial do país.

Eis a diferença entre os turcos quase golpeados e os brasileiros há meses golpeados: aqueles foram valentes, tanto quanto os seus golpistas fracassados. Do nosso lado, os brasileiros golpeados foram covardes porque assim agiram os seus golpistas. Caberia dizer aqui que cada povo tem os golpistas que merece? Se Aristóteles está certo, e “a qualidade de um estado é a qualidade de seus cidadãos”, não seria um absurdo pensar que a qualidade de um golpe de estado, por sua vez, deverá ser a qualidade dos seus cidadãos golpeados.

De acordo com outro provérbio turco que pelo jeito vive forte dentro daquele povo, qual seja, “um leão dorme no coração de todo homem corajoso”, os militares golpistas turcos foram vencidos porque tiveram de enfrentar o exército de feras selvagens que constitui aquele país. Agora, se lembrarmos, conclusivamente, do provérbio tupiniquim que diz que “é melhor não cutucar a onça com vara curta”, é fácil perceber porque nós, brasileiros, fomos e seguimos golpeados. Na terra brasilis, a onça oligarca de dentes e história longos ainda é a rainha da selva. Não exatamente porque os brasileiros têm vara curta, mas porque não articulam suas varas individuais a ponto de, somadas, formarem uma vara longa o suficiente para cutucar e sobretudo matar a onça golpista.

V de Vindima

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Em recente entrevista à revista brasileira Carta Capital, o filósofo esloveno Slavoj Žižek, criticando a paralisia da esquerda atual diante das forças imperialistas e retrógradas, diz que nem mesmo eventos como a manifestação de 1 milhão de pessoas na Praça Tahir, no Egito, em 2011, são verdadeiramente revolucionários. “Eu não me importo com esse tipo de conquista”, diz o filósofo, para quem “a revolução não é o porre, a revolução está na ressaca do dia seguinte”. Žižek então reconta uma piada sua sobre o filme V de Vingança, de 2005: “o filme termina com cidadãos mascarados tomando o Parlamento. Eu adoraria mesmo é assistir V de Vingança, parte 2. O que eles fariam no dia seguinte, como reorganizariam a vida cotidiana?”, pergunta o filósofo, pragmaticamente.

O mais próximo que eu cheguei de manifestações como a egípcia foi o junho de 2013 brasileiro, do qual eu era participante ativo e crédulo. O porre de 2013, para não deixarmos a piada de Žižek, foi intenso, promissor, festivo até. Sua ressaca, no entanto, foi insuportável. Não deu a mínima continuidade à miríade de demandas de seus manifestantes. Muito pelo contrário, um anos depois, em 2014, ganhamos das eleições nacionais um congresso e um senado mais retrógrado e fundamentalista do que podíamos imaginar. Retrospectivamente não é difícil concluir que a chamada “primavera brasileira” foi um desserviço invernal.

O desfavor da bebedeira revolucionária das flores de 2013, porém, não parou por aí. Sua ressaca insuportável foram também as populosas marchas pró-impeachment, pró-ditadura militar e, pasmem, pró-monarquia que ocuparam as ruas brasileiras em 2015 e 2016, cujo resultado amargamente concreto foi o afastamento de uma presidenta democraticamente eleita e a tomada do poder por uma corja de oligarcas corruptos que, se não estão levando o país de volta para o tempo do Império, como queriam alguns, ao menos reinstauraram a Velha República de antes de 1930, ambiente excelente dos resistentes oligarcas tupiniquins.

Diante dessa ressaca revolucionária brazuka, é impossível não concordar com a piada de Žižek. Tanto que não pude deixar de rever o filme em questão: V for Vendetta. Depois de reassisti-lo, no entanto, a piada do filósofo me pareceu mais pertinente ainda. Paradoxalmente, tanto melhor porque mais sem graça. Embora o herói do filme, mascarado de Guy Fawks, rascunhe na superfície do real distópico a mais utópica anarquia revolucionária, cujo ícone certamente é o terrorismo poético da explosão de símbolos do estado opressor ao som de Tchaikovsky, tudo o que vemos –Žižek tem razão!- é apenas o delicioso porre; nada da necessária administração da ressaca revolucionária subsequente.

É frustrante ver que, em vez de o herói mascarado usar a sua verve revolucionária para fazer dos cidadãos os agentes efetivos e sempiternos da mudança, ele os mantêm como espectadores passivos o tempo todo. Anuncia, em um hackeamento televisivo, que explodirá o parlamento dentro de um ano. Solicita aos seus telespectadores apenas que compareçam na data marcada. Nesse meio tempo, sai à caça de políticos e empresários corruptos, e, como assinatura de seus atos, deixa uma rara rosa vermelha sobre os corpos assassinados. O público, no entanto, segue alienado de seu trabalho revolucionário, uma vez que a mídia divulga sempre outros motivos para as tais mortes e atentados. E também sobre a rara flor, nada.

Dias antes do agendado atentado ao parlamento, o mascarado envia, pelo correio, máscaras e roupas teatrais negras como as suas à população, para que as usem durante o espetáculo terrorista final. No dia “D”, melhor dizendo, no dia “V”, milhares de pessoas vestidas de Guy Fawks marcham em direção ao parlamento. O Estado opressor, que cerca o prédio do poder ao modo de proteger a si próprio, fica apenas confuso com a multidão de mascarados. Enquanto isso, subterrânea a solitariamente, o herói mata o chanceler do mal, contudo, pagando por esse penúltimo ato com sua vida.

Morto e coberto com centenas das suas raras rosas vermelhas, o mascarado repousa sobre as toneladas de explosivos que destruirão o parlamento. Novamente Tchaikovsky invade as ruas da cidade. O símbolo máximo do poder é então explodido espetacularmente. Mistura de ópera, implosão e Réveillon de Copacabana. Os milhares de cidadãos mascarados assistem entusiasmados. Porém, mais uma vez, apenas assistem. Nenhuma envolvimento prático. Somente mais do mesmo exercício contemplativo, impotente por natureza, com o qual, aliás, estão bem acostumados. E essa contemplatividade coletiva, é preciso lembrar, é o espaço de conforto excelente à atividade dos opressores.

Agora, se o herói mascarado, em vez de presentear os milhares de cidadãos com um belo figurino, tivesse lhes ensinado o caminho da revolução; em vez de meramente ter vestido adequadamente a plateia, tivesse feito dela a atriz coletiva e dona do palco da mudança; em outras palavras, se tivesse dividido entre todos eles as toneladas de explosivos que destruiriam o poder opressor, para que cada um levasse consigo e detonasse uma parcela da pólvora, certamente teria feito deles parceiros, senão da mudança efetiva, ao menos de sua tentativa. Não obstante, o mascarado-mor, desde o início do filme, monopolizou toda a ação e manteve aqueles a quem a revolução realmente interessava nos assentos de suas reacionárias passividades contemplativas. O V de Vingança bem poderia ser de Vaidade.

É óbvio que no dia seguinte, no dia “R” de Ressaca, essa multidão alienada, porém entretida, não saberia o que fazer com a ruptura produzida pelo espetáculo que, em verdade, apenas assistiram. Se o tivessem produzido e encenado ativamente, isto é, se tivessem se embebedado com a revolução e explodido eles mesmos o poder que lhes oprimia, haveria alguma esperança. Entretanto, ineptos à manutenção de uma mudança que sequer foram capazes de propiciar, quem os comandará no “day after” será o poder atingido, pois este sabe muito bem como emendar fraturas, tal é a perícia da reação.

Porventura não aconteceu o mesmo na famigerada primavera brasileira de 2013, com milhares de cidadãos ironicamente usando a mesma máscara de Guy Falks e querendo o mesmo fim do estado explorador, mas que, no entanto, tiveram o seu dia seguinte reconquistado e a sua ressaca administrada justamente pelos poderes que queriam ver destruídos? Quem foi o mascarado solitário que incitou as hordas de brazukas a vestirem e desfilarem sua máscara para que realizassem a “revolução” dele, e não a que os próprios brasileiros necessitavam empreender coletivamente? Se atentarmos ao dia seguinte, e a quem o dominou e domina até aqui, temos que é a direita brasileira.

Žižek, na mesma entrevista, diz que, na disputa eleitoral americana, o absurdo imperialista de Donald Trump tem ao menos a virtude de ter fortalecido o socialismo de Bernie Sanders. Sem Trump, os esquecidos ideais socialistas não teriam sido reacesos com tanta intensidade no coração do debate político daquele país. E isso porque que toda ação tem uma reação de igual intensidade, porém, de sentido contrário. As flores de 2013, ingenuamente, desconsideraram essa dinâmica. Sua explosiva pretensão revolucionária, no dia seguinte, foi confrontada por uma tensão reacionária contrária, e o que é pior, de maior intensidade. E para não dizer que a metáfora da lei da física não se aplica aqui, esse diferencial desfavorável à revolução atina justamente à ingenuidade dos pretensos revolucionários em respeito à sempiterna dialética da luta.

A atual vitória da direita brasileira, todavia, não é o fim da história. Se a ação de 2013 acendeu a reação de 2016, a “ação reacionária” de 2016, por sua vez, outra coisa não é que o germe de uma “reação revolucionária” próxima, assim como, diz-nos Žižek, o capitalismo galopante de Trump foi capaz de recolocar o socialismo de Sanders em marcha no núcleo duro e capitalista que são os Estados Unidos. Agora, uma coisa é fundamental: só haverá uma verdadeira revolução que atravesse o porre da ruptura inicial e prossiga virtuosa na ressaca subsequente se ela for empreendida ativamente pelos que dela precisam. Do contrário, se confiarmos em heróis mascarados espetaculares e promissores somente, outro destino não teremos que o de espectadores passivos de uma revolução que apenas mentirosamente era para ser nossa.

Atualmente, as mais expressivas, todavia ainda ineficazes, reações da esquerda em relação à ostensiva “ação reacionária” da direita oligárquica brasileira são as milhares de hashtags-redes-sociais e os sobretudo recreativos encontros do tipo OcupaMinc, nos quais um artista ou um intelectual qualquer -que bem pode estar fazendo o papel do revolucionário mascarado solitário de V de Vingança- coloca suas palavras de ordem enquanto a massa o assiste e aplaude, passiva e contemplativamente. As hashtags mentem muito bem que somos nós que estamos discursando, e para o mundo todo; os shows musicais das ocupações nos iludem de que estamos todos afinados em um objetivo único. No entanto, os selfies que de lá saem direto para as timelines individuais e a conta da cerveja pós-manifestação depõem contra essa pretensa harmonia.

E isso porque essas ações são mais estéticas do que políticas, o que, mutatis mutandi, é o calcanhar de Aquiles das esquerda atual. A dimensão estética é a da sensibilidade, ou o que é o mesmo, a da subjetividade. Envolvidos subjetivamente com a revolução, somos apenas uma multidão de exércitos de um indivíduo só, cada um lutando solitariamente por seus próprios ideais, e, muitas vezes, uns contra os outros. Já o envolvimento objetivo com a mudança, esse é e só pode ser político. Quanto mais não seja, porque a política nasce da superação do solipsismo subjetivo, estético, em função de uma objetividade capaz não só de compartilhar universalmente a condição particular de cada um, suas necessidades e potencialidades individuais, como também e principalmente, de planificá-las todas em busca de suas realizações. Afinal, a essencialidade da revolução não está na ruptura que promove, mas nas vindimas que é capaz de oferecer, uma vez que a vindima engloba o período entre a colheita das uvas -o porre revolucionário- e o inicio da produção do vinho -a ressaca da reorganização da vida cotidiana, como gostaria Žižek.

 

Uma reflexão sobre a banalidade da corrupção

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A corrupção estrutural do sistema político brasileiro nunca esteve tão desnudada. Não que os brasileiros não soubessem dela, mas até bem pouco tempo ainda era mistério para a maioria seu modus operandi detalhado e, principalmente seu alcance. Essa parcial ignorância, por sua vez, mantinha silenciosa espécie de permissividade em relação à corrupção. Não foi à toa que os brasileiros cunharam e repetiram resignadamente por muito tempo a famigerada máxima “rouba, mas faz”.

Hoje, porém, com investigações como a Lava Jato, e com a  massiva divulgação midiática dos esquemas de corrupção entre a classe política e grandes empresas, como empreiteiras e a Petrobras, a permissividade da população em respeito à corrupção -a dos políticos, diga-se de passagem- se reduziu drasticamente. Afronta-nos profundamente, aliás. Arrisco dizer inclusive que há uma perigosa histeria instantânea ao menor indício de envolvimento de qualquer político nesse velho esquema corrompido.

Já não era sem tempo! Entretanto, há certa desmedida, altamente alienante, é preciso frisar, nessa radicalidade coletiva contra a corrupção. Tanto que milhares de brasileiros, indignados com a evidenciada corrupção sistêmica, de uma hora para outra foram às ruas, de verde, amarelo e panelas ruidosas, contra uma presidenta suspeita de crime fiscal, ao lado, e o que é pior, sob ordens implícitas de políticos deslavadamente corruptos. Note-se, a presidenta em questão, até aqui, não consta em nenhuma das longas listas de ladrões e propineiros, estes sim apólogos do impeachment daquela! A desmedida da indignação popular produz esse absurdo: crucificar uns para que paguem pelos “pecados” de outros, muito mais “pecadores”.

A histeria é uma patologia. Sua presença não faz com que se pense ou aja de modo racional. Sem dizer que, por outro lado, a recência do conhecimento pormenorizado da corrupção sistêmica confronta o brasileiro com a incapacidade de lidar com ela de modo objetivo. Não que se deva perdoar os corruptos. Isso seria justificar o injustificável. Todavia, para agirmos com justiça, melhor dizendo, para que justiça seja feita, é fundamental que entendamos, e coletivamente, não só o que a corrupção tem de mais evidente e recente, mas, principalmente, suas velhas e ocultas raízes.

Tarefa difícil que, não obstante, eu tive necessidade de praticar por conta de um situação particular e contingente. Diferente da maioria da população, que vê nas redes sociais, nos jornais e na televisão um político atrás do outro ser incriminado por recebimento de propina e desvio de verba pública, e que a esta distância midiática resta somente o ódio e o desprezo a eles, eu conheço intimamente um dos envolvidos e punidos na operação Lava Jato. Para evitar expor o meu conhecido ainda mais –e uma vez que um nome em particular nada altera o que se quer pensar aqui- irei chamá-lo de X.

X é um pai de família, educado, gentil, carinhoso, atencioso e com um bom coração. Quando eu, certa vez, atravessava uma grande dificuldade na vida, X, sem que eu pedisse, e sem exigir nada em troca, salvou-me do apuro. Minha gratidão só não é constante porque eu me esqueço dela no prazer de estar com ele e com sua família em aniversários, natais, réveillons etc. Foi essa particular conjuntura, portanto, que impediu que eu fosse histérico, isto é, cegamente taxativo em relação ao crime de que X foi primeiramente acusado, e pelo qual, atualmente, paga pena.

Novamente, não que a minha intenção seja a de justificar o fato de X estar envolvido nos esquemas de corrupção. Desde o princípio, porém, minha tendência foi a de entender porque cargas d’água uma pessoa com tantas boas qualidades se envolve em procedimentos, hoje em dia, inaceitáveis. Algumas pessoas que conhecem minha relação com X costumam perguntar: “será que ele não se arrepende de ter roubado?”. Ou ainda: “valeu a pena ser preso e sujar o nome da sua família por dinheiro?”

Obviamente, ser preso, afastado da família e estigmatizado nacionalmente é terrível, seja para quem de fato roubou, seja para qualquer um. Só mesmo um psicopata para não se sentir péssimo e extremamente arrependido com tal situação. Mas, como eu sei muito bem, X não sofre de psicopatologia alguma. Muito pelo contrário. Reforço: é uma pessoa bastante sensível, amorosa e gentil. Como, então, entender o envolvimento dele em um universo tão vil e condenável?

Para tal entendimento, o título desse relato, qual seja, “Uma reflexão sobre a banalidade da corrupção”, faz referência à obra de Hannah Arendt chamada “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, na qual a filósofa reflete sobre as responsabilidades individuais no moderno estado burocrático a partir das ações de Adolf Otto Eichmann, político/militar da Alemanha nazista, responsável por organizar o transporte de judeus para os campos de concentração. Em suma, para a morte. E por tentar entender os atos de Eichmann para além do próprio Eichmann, Arendt foi extremamente criticada ao desenvolver a sua tese sobre a “banalidade do mal”.

Eichmann, segundo Arendt, não demonstrou ser um homem violento, rancoroso nem sanguinolento. Em suma, não era nem de perto o monstro que todos esperavam que fosse. E questionado sobre sua consciência, se se arrependia do genocídio com o qual colaborou, o nazista afirmou que, de início, até se sentia inseguro, mas ao perceber que todos os seus pares vivenciavam com honra a construção do extermínio judeu -e isso porque todos acreditavam que se tratava objetivamente da recuperação econômica da Alemanha-, suas dúvidas se dissiparam.

No controverso livro, Arendt evidencia que o mal, uma vez banalizado, pode ser cometido inadvertidamente por pessoas comuns, que nunca optaram por ser más nem fazer mal a alguém, mas que, diante de imperativos circunstanciais, pela necessidade de cumprir certas regras urgentes, agem maleficamente, todavia, sem ter a menor consciência disso. Por isso a filósofa foi criticada, afinal, como é possível entender um genocida afirmando ele não tinha consciência do mal que praticava, mas estava apenas seguindo cumprindo a burocracia?

Assim como Arendt em relação ao suposto mal de Eichmann, eu recebo críticas por tentar entender o meu amigo X diante do crime pelo qual paga. Não obstante, outrossim como a filósofa alemã sabia que o mal genocida de Eichmann precedia e superava o próprio Eichmann, eu sei que o mal da corrupção na qual X esteve envolvido precede e supera em muito X. Isso, aliás, não é mistério para brasileiro algum. Afinal, tanto faria se X fosse ciente do mal que seu envolvimento com a corrupção traria ou a ele ou ao Brasil. Se ele tivesse se recusado desde o princípio a participar do círculo corrompido, certamente teria sido substituído por alguém que não se negasse ao velho modus operandi do real político tupiniquim. O mal da corrupção teria seguido com passos firmes. Suas pegadas, porém, apenas não seriam as de X, mas as de Y, Z, etc.

Demonizar histericamente X pela corrupção estrutural do Brasil que hoje está desmascarada, portanto, é uma dupla injustiça. Em primeiro lugar, contra o próprio X, que, individualmente, não inventou a corrupção generalizada nem tampouco seria capaz de fazer com que ela desaparecesse com virtude individual de consciência alguma. E em segundo lugar, com a própria corrupção sistematizada, pois, uma vez ela disfarçada com a máscara de X, mais facilmente prosseguiria firme e forte, corrupta como sempre, e o que é pior, impune. Entender isso é evitar fazer do boi-de-piranha a voracidade mortífera da piranha ela mesma.

Assim como Arendt, que por ser judia ficou presa em um campo de concentração, viu o mal de perto e pôde observar como ele consegue ser banal, X, por sua vez, porque estava imerso no corrompido campo político brasileiro, também viu o mal da corrupção banalizado, a ponto de sequer percebê-lo como tal, mas, culpa da banalização, como procedimento de rotina. Do mesmo modo como foi assombroso entender que o mal genocida nazista não tinha a intenção da maldade pura e simples, é chocante ter consciência de que o mal da corrupção tupiniquim não tinha, até bem pouco tempo, o propósito da corrupção ela mesma. Antes, era dissumuladamente o modo como as coisas sempre foram.

Sobre o genocídio nazista, as leis eugênicas de Hitler, conta-nos o filósofo Michael Sandels, foram muito elogiadas na época, inclusive pelos EUA. A morte de milhões de judeus pelos nazistas, pasmem, atendia a um objetivo progressista, racionalizado e por isso mesmo banalizado, capaz de ser compreendido e admirado internacionalmente. Tanto que, para Eichmann, cuidar do transporte de milhares de judeus à Auschwitz ou Treblinka era uma simples questão de logística, devendo ser realizado com competência e presteza. Só para termos noção da banalização, Eichmann confessou que ninguém nunca lhe disse que isso era errado ou que poderia ser questionado futuramente.

Disso devemos concluir que, assim como o genocídio não era considerado uma monstruosidade até o extermínio dos judeus pelos nazistas, participar da estrutura corrupta brasileira, até bem pouco tempo, também não era o fim do mundo. Na verdade, culturalmente, até significava espécie de esperteza, de senso oportunidade, muito mais que uma vergonha a ser evitada a qualquer preço. Assim como o monstro genocida como o conhecemos foi inventado após 1945, a monstruosidade escancarada e imperdoável dos políticos corruptos brasileiros é um produto da década de 2010.

Arendt fez questão de frisar que Eichmann não se arrependia do genocídio do qual era cúmplice porque não se considerava culpado. O político-militar alemão via a si mesmo apenas como um soldado patriota cumpridor de seus deveres. Tanto que era chocante ver a frieza e indiferença com que narrava suas cruéis práticas genocidas, como se se tratasse apenas do cumprimento de um cronograma, tamanha a banalização. E independentemente de o meu amigo X ter se arrependido ou não – posição subjetiva de que não tenho como saber verdadeiramente-, chamou-me atenção suas descrições, na delação premiada que fez para reduzir a sua pena, das transações ilegais, seja das quais participou, seja das quais tinha conhecimento, de forma corriqueira, como se se tratasse de procedimentos convencionais. E isso porque eram convencionais até então.

A banalidade do mal de Arendt ensina a entender que quando algo é praticado em larga escala, seja a morte de milhões de judeus, seja o roubo de bilhões de reais, o mal acaba se tornando coisa habitual, e ninguém mais dá a ele a devida atenção. Depois de algumas centenas de judeus mortos na Segunda Guerra, o extermínio do restante dos cinco milhões pelos nazistas foi fruto de uma automaticidade, de uma banalidade. Da mesma forma, depois que a corrupção já era uma velha senhora na terra brasilis, participar dela era banal. Outrossim, depois que meia dúzia de negros pobres são assassinados pela polícia carioca, suportamos sem alterar a nossa rotina o fato de, no Brasil, ocorrem quase 60.000 homicídios por ano. O mal é facilmente banalizável.

Por isso, quando penso no meu amigo X, esse pensamento é e deve ser duplo e distinto. Por um lado, pelo crime particular em função do qual foi condenado, acho ele deve sim pagar a pena devida. Disso resulta o grão mínimo de justiça no nosso país. Por outro lado, porém, não deve ser sobrecarregado com a corrupção sistêmica que o precede e supera em muito. E isso porque, demonizando-o pelo que existe a despeito dele, o grande demônio da corrupção generalizada escapa, pois se disfarça com máscara de X -ou de Y, ou de Z. Essa segunda consideração, por sua vez, traz a possibilidade de uma justiça em nível macro.

A histeria de se mascarar o mal com o rosto de alguém especifico, na verdade, pode ser o desesperado daqueles que não querem ver nesse grande mal os seus próprios rostos. E isso porque, como diz o historiador brasileiro Leandro Karnal, “não existe país com governo corrupto e população honesta”. Também pelo que disse Aristóteles, qual seja, que “a qualidade de um estado é a qualidade de seus cidadãos”. Tal é a patologia envolvida na histeria da maioria da população brasileira em relação à corrupção que, somente para além de suas auras pessoais é aceita que seja “generalizada”. Fazer de X o rosto do mal da corrupção brasileira outra coisa não é que dar prosseguimento ao longevo baile à fantasia da corrupção política tupiniquim.

Exigir que Eichmann soubesse que o genocídio viria a ser considerado um mal absoluto antes dessa maldade absoluta ser histórica e coletivamente construída, é uma injustiça individual. Claro, sua ignorância em relação aos conceitos e valores futuros não deve justificar perdão algum, mas certa compreensão. Puni-lo, exclusiva e espetacularmente, apenas dissimulou a origem e a responsabilidade do mal genocida. Tanto que até hoje vemos grupos nazistas em vários lugares do mundo cometendo, em menor escala todavia, absurdidades como as que Hitler acreditava serem fundamentais.

Aqui lembro de uma polêmica afirmação do filósofo Slavoj Žižek, qual seja, que Hitler não foi mau o suficiente. O que Žižek queria dizer com isso é que se Hitler tivesse sido absolutamente mau, não teríamos até hoje pessoas e instituições achando que a solução de certos problemas é a morte de judeus –ou negros, ou gays, ou muçulmanos. Mas como a persistência do pensamento nazista é algo real, Žižek tem razão: faltou Hitler ser mau a ponto de sua maldade ser universalmente considerada inaceitável. E a demonização particular de Eichmann, de certo modo, é a parcial absolvição de demônios maiores: o próprio espírito nazista.

Mesmo que Eichmann tivesse se recusado às ordens de Hitler, no melhor dos casos ele teria sido substituído, e, com certeza e infelizmente, nenhum dos judeu mortos teria escapado da ignomínia nazista. Igualmente, se meu amigo X tivesse se recusado a participar da velha e corrompidíssima máquina política brasileira, outro faria isso no seu lugar, pois o verdadeiro problema é a estrutura, e não uma ou outra engrenagem sua, todas banalmente substituíveis. Sendo assim, meu amigo X deve pagar o seu quinhão, porém, não mais que isso. Do contrário, estigmatizado pela longeva corrupção brasileira, pagará sozinho por um crime muito maior do que ele. E assim a grande corrupção segue parcialmente ocultada e, consequentemente, parcialmente livre. E enquanto isso, não há justiça, tampouco o fim da corrupção no Brasil.

A pseudomelancolia da intelectualia de esquerda

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“Melancolia de esquerda” é o nome de um ensaio de Walter Benjamin, escrito na década de 1930, a respeito da “poesia de esquerda” do alemão Erich Kästner, mas que, de modo geral, trata da pretensa intelectualidade revolucionária de sua época. Prestes a fazer noventa anos, o texto de Benjamin, no entanto, tem uma juventude assaz pertinente, senão à conjuntura mundial, pelo menos a todos os que são afetados negativamente pela crísica realidade política brasileira.

Vladimir Safatle, filósofo brasileiro, disse recentemente que a melancolia dos brazukas diante do atual Golpe Branco de Estado é mais do que uma simples reação triste e impotente diante de algo que foi perdido. Antes, e estrategicamente, é o afeto mais conveniente aos “Golpeadores Brancos”, pois melancólicos podemos muito menos contra eles. Por isso Safatle coloca que, diante do golpe, “nós precisamos fazer uma crítica dos nossos afetos”, mais especificamente da melancolia, pois sem esse trabalho crítico seguiremos afetados negativamente, isto é, melancólicos e golpeados, e os nossos algozes, realizados e potentes.

As manifestações contrárias ao atual golpe brasileiro que mais chamam a atenção, tais como os virtuais&hashtaguicos #nãovaitergolpe, #foraTemer e #voltaDilma, ou os presenciais-quase-hedonistas shows de artistas consagrados da MPB em prol da democracia por exemplo -sem dizer dos alienantes encontros do tipo Ioga ou pedalada contra o golpe-, por mais entusiasmantes e revolucionários que possam parecer, na verdade, são apenas formas coletivas através das quais a melancolia individual, portanto a impotência, é cultivada inadvertidamente. Em primeiro lugar, porque enquanto nos deliciamos ouvindo juntos boas e clássicas músicas e digitamos hasthtags indignadas nas redes sociais virtuais, os golpistas, na “rede social real”, seguem nos golpeando. E, em segundo, durante essa deliciosa alienação, não exercitamos, muito menos inventamos, formas verdadeiramente revolucionárias e afetos efetivamente potentes capazes de rebater os nossos reais inimigos com a força necessária.

Em uma palestra na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, a filósofa brasileira Marcia Tiburi chamou de “esquerdo-fofos” aqueles que, contrários à adversidade da realidade política brasileira, agem de forma “cool”, puramente estética e subjetivamente gratificante, em vez de agirem coletiva e objetivamente de modo efetivo. A filósofa fala de uma “esquerdo-fofice” que, mutatis mutandi, é a crítica que Benjamin faz à inefetiva literatura da esquerda burguesa alemã de seu tempo, encarnada na obra de Erich Kästner, demasiado comprometida com os interesses hedonistas das classes média e alta e, por isso mesmo, melancólica. Ou seja, impotente. Por isso, a impotência dos brazukas diante do atual golpe pode encontrar na crítica de Benjamin à “esquerdo-fofice” alemã do início do século passado pistas para deixar esse espaço melancólico, melhor dizendo, de impotência contemplativa, no qual nos encontramos.

Assim como para Benjamin a “poesia radical de esquerda” de Kästner era um mero objeto de consumo destinado “à fruição diletante de sujeitos sem a menor capacidade política”, a esquerdo fofice das nossas atuais hashtags e ocoolpações é a mercadoria mais consumida por quem, antes de mudar o mundo, quer primeiramente um ambiente agradável em volta de si, mesmo que essa fronteira alienante não seja maior do que poucos passos, sejam eles reais ou virtuais. Em ambos os casos, o efeito é um só: sob a entusiasmante aparência da atividade, a vil essência da paralisia melancólica. O que a “poesia de esquerda” de  Kästner criticada por Benjamin e a “esquerdo fofice” tupiniquim denunciada por Tiburi trazem é somente a impotência travestida de um falso sentimento de humanidade. Mas para Benjamin, que aqui não se afasta um passo de Marx, a verdadeira humanidade só deve ter um discurso, e este é sobre a luta de classes.

Sem encarnarmos essa questão pungente, somos apenas uma humanidade alienada de si própria. Crentes de que hashtags virtuais e deliciosos shows musicais presenciais são manifestações políticas efetivas, que resolverão “o problema”, somos apenas animais entretidos por um cenário mentiroso que, com efeito e paliativamente, mantém longe dos olhos a única verdadeira cena do espetáculo do mundo de até então, que deveria ser vivenciado por nós se quisermos que seja revolucionado. E essa ópera dantesca que não enxergamos enquanto vestimos a “esquerdo-fofice” é o sempiterno protagonismo dos interesses opressores das elites, que produzem “non stop” uma realidade social cruel e estrategicamente injusta, versus o antagonismo dos interesses populares, outrossim sempiternamente oprimidos e injustiçados.

“Melancolia de esquerda”, de Benjamim é extremamente útil nesse nosso momento crísico para relembrar-nos de que, nas nossas atuais manifestações políticas, hashtaguicas&ocoolpatórias, a própria revolta que proclamamos contra a “burguesia dominante” tem um dissimulado aspecto pequeno-burguês. A pseudoliberdade em postar hashtags nas redes virtuais e em gritar “Fora Temer” nas ocoolpações, embora minta alguma efetividade e prazer, é o meio melancólico mediante o qual permanecemos aprisionados pela classe dominante. Pior ainda é quando essas práticas esquerdo-fofas melancólicas viram rotina, pois, nas palavras de Benjamin, “estar sujeito à rotina significa sacrificar suas idiossincrasias e abrir mão da capacidade de sentir nojo. Isso torna as pessoas melancólicas”. Sobre a rotina virtual da esquerda brazuka, o ativista do movimento 15M espanhol Javier Toret disse que a esquerda brasileira perdeu as ruas porque é ruim na internet. E pela pouca potência das ocoolpações presenciais, podemos dizer que inclusive na rua ela é ruim…

E melancólicos, isto é, envolvidos com a tristeza e a lembrança do que não mais temos, deixamos de enxergar o que temos agora, melhor dizendo, o que nos têm, qual seja, a luta de classe, aquilo de que não deveríamos nos alienar em hipótese alguma. Hashtags e ocoolpações tem pouquíssimo a ver com a luta de classes, ou quase nada. Na verdade, diria Benjamin, “são a mímica proletária da burguesia decadente. Sua função é gerar cliques, e não partidos; sua função literária é gerar modas, e não escolas; sua função econômica é gerar intermediários, e não produtores”. Para o ensaísta alemão, essa “política revolucionária” é apenas a “conversão de reflexos revolucionários em objetos de distração, de divertimento, rapidamente canalizados para o consumo”, isto é, ao modus operandi que fortalece justamente aqueles contra os quais devemos nos revoltar objetivamente.

Quase cem anos antes de Safatle propor que precisamos mais que tudo fazer uma crítica dos nossos afetos melancólicos, Benjamin já nos propunha a seguinte questão: “o que encontra a ‘elite intelectual’ ao confrontar-se com esse inventário dos seus sentimentos?”. O alemão é cruel ao responder que “eles já foram vendidos, a preço de ocasião”. E aqui, reforço, as ocasiões mais escancaradas nas quais nos vendemos ao inimigo são os precisos momentos em que, postando uma “hashtag-de-ordem” a mais, no imenso mar hashtaguico da contemporaneidade-em-rede-social, ou estando nos shows-dos-nossos-artistas-prediletos-contra-o-golpe, achamos que estamos produzindo alguma revolução. Assim deixamos de ver que, na verdade, estamos consumindo, ao modo de lamber os beiços, a nossa própria servidão. E o que é pior, a mercadoria mais conveniente produzida pelos nossos opressores: a impotência, essencialmente melancólica, muito embora travestida de alegria evolucionária.

“Hoje as pessoas afagam estas formas ocas, com gestos distraídos”, relembra-nos Benjamin, mesmo que o seu hoje não seja o mesmo que o nosso. Ou será que ainda não saímos daquele hoje quase centenário? Observando a população brasileira, golpeada antidemocraticamente indo trabalhar todos os dias e pagando subservientemente os altíssimos e injustos impostos que seus inimigos lhe impõem, e, contra o golpe, apenas postando hashtags cantando boas canções, Benjamin é assustadoramente atual: “nunca ninguém se acomodou tão confortavelmente numa situação tão inconfortável”. E essa comodidade é o sacrifício covarde da verdadeira ação política. Benjamim dizia que a esquerda de seu tempo não estava “à esquerda de uma ou outra corrente, mas simplesmente à esquerda do possível. Porque desde o início não tem outra coisa em mente senão sua autofruição”. Autofruímos nossa esquerdo-fofice, não à esquerda, mas de fato aquém de qualquer possibilidade, e, enquanto isso, sem perceber, transformamos aquilo que deveria ser luta política em objeto de prazer. Só que o verdadeiro prazer, não nos enganemos, é daqueles que seguem golpeando-nos cotidianamente: a classe dominante.

Benjamin, em outro ensaio, chamado “O autor como produtor”, fala da esquerdo-fofice dos teóricos revolucionários de esquerda de sua época “para mostrar que essa tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contrarrevolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor”, que em verdade é o que o proletariado oprimido é. Produzir, e não apenas pensar eventualmente sobre a produção e a exploração, não é o que Max quis dizer nas suas “Teses sobre Feuerbach”, qual seja, que “os filósofos até aqui limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo”? Enquanto apenas pensamos, diz Benjamin, o que temos é uma “logocracia”, isto é, “o reinado dos intelectuais”. E como até aqui a intelectualidade ainda é privilégio das elites, o investimento no império solitário do logos é a manutenção do velho império burguês, opressor e vendedor de melancolia e impotência.

Não que pensar não seja fundamental. Porém, só o pensamento não basta. No mínimo ele deve produzir pensamento. E por acaso não é isso o que quis dizer o dramaturgo alemão Bertold Brecht ao afirmar que “o decisivo na política não é o pensamento individual, mas sim a arte de pensar na cabeça dos outros”? Slavoj Žižek, recentemente, desdisse a máxima de Marx, sustentando que, hoje em dia, importante mesmo é pensar, apenas pensar, e não agir. Se esse só pensamento ao menos pensar na cabeça dos outros, Brecht não se revirará na sua tumba, pois sua pax aeterna será mantida conquanto o intelectual não abasteça o aparelho de produção sem modificá-lo num sentido socialista. Todavia, para o ensaísta alemão, “o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo produtivo”. E produção, materialmente falando, é ação, não somente pensamento.

Abastecer um aparelho produtivo sem modificá-lo é a aparência revolucionária por excelência. Quanto mais não seja, porque “o aparelho burguês de produção … pode assimilar uma surpreendente quantidade de temas revolucionários, e até mesmo propagá-los, sem colocar seriamente em risco sua própria existência”, diz Benjamin, para quem “isso será verdade enquanto esse aparelho for abastecido por escritores rotineiros [isto é, melancólicos], ainda que socialistas”. A rotina melancólica das nossa hashtags de protesto e ocupações em forma de festivais culturais é a transformação não só do golpe, mas também das velhas exploração e miséria em objeto de fruição estética. Nas palavras de Benjamin, é “abastecer um aparelho produtivo sem modificá-lo”. Em outras, é ser reacionário, e não revolucionário. Um belo exemplo disso é a obra do grande fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que, sob a superfície hipnotizante de seus preto&branco antologizados, cheios de camponeses e garimpeiros miseráveis, faz da miséria humana a mais refinada mercadoria para o consumo burguês.

Mais ainda, Benjamin diria de Salgado que ele “transformou em objeto de consumo a luta contra a miséria”. E como a roda capitalista exploradora funciona melhor com o consumo ininterrupto e crescente, a manutenção da miséria por meio do seu consumo exige a manutenção da própria miséria, não a sua superação. E Benjamin diria a nós que nossas hashtags e ocoolpações outra coisa não são senão “a metamorfose da luta política … em objeto de prazer contemplativo”, melancólico. Novamente, sua função política é gerar cliques, e não partidos, a única organização capaz de revolucionar verdadeiramente a vil realidade. A esquerdo-fofice tupiniquim diante do golpe é a sensação de liberdade aonde ela não existe. A “produção” de hashtags em favor da democracia e de deliciosos shows contra o golpe, diria Benjamin, “não é um instrumento a serviço do produtor, e sim um instrumento contra o produtor”.

Recusando-nos à imediatidade inócua das nossas hashtags e à espetacularidade disfarçadamente hedonista das nossas ocoolpações haverá mais sobriedade àqueles que verdadeiramente querem mudar alguma coisa. Para Benjamin, deveríamos manifestar a  nossa solidariedade com o proletariado do modo mais sóbrio possível. Ao criticar os intelectuais de esquerda de sua época, o ensaísta traz uma boa resposta, dada pelo advogado e filósofo René Maublanc, à pergunta lançada pelo jornal francês Comune à intelectualidade revolucionária da época, qual seja, “Para quem você escreve?”. Essa resposta seria bom que todos os esquerdo-fofos tupiniquins mantivessem viva enquanto retuítam hashtags e vocalizam com seus artistas prediletos nos recreios que chamam de ocupações. A resposta de Maublanc:

“Escrevo quase que exclusivamente para o público burguês. Em primeiro lugar, porque tenho que fazê-lo e, em segundo lugar, porque sou de origem burguesa, de educação burguesa e venho de um meio burguês, e, por isso, tenho uma tendência natural a dirigir-me à classe a que pertenço, que conheço melhor e que posso entender melhor. Mas isso não significa que escrevo para agradar a essa classe, ou para apoiá-la… O proletariado precisa hoje de aliados no campo da burguesia do mesmo modo que no século XVIII a burguesia precisava de aliados no campo feudal. Gostaria de estar entre esses aliados”.

Dessa resposta podemos tirar a seguinte lição: os esquerdo-fofos precisam jogar fora a ilusão de que são a classe oprimida em luta. Não o são! Tanto que podem se dar ao luxo de seguir postando hashtags e cantando às sextas-feiras à noite com seus artistas de estimação mesmo que esses protestos pretensamente revolucionários não tirem do poder aqueles que, intocáveis, oprimem a verdadeira classe oprimida. Os fofo-revolucionários seriam bem mais úteis, e estariam à esquerda de algo real, se assumissem sem disfarce as suas burguesias e as colocassem, como Maublanc, a serviço consciente e efetivo da luta de classes, a verdadeira e inalienável luta do proletariado. Porém, mais sobriamente, como gostaria Benjamin, para quem “a proletarização do intelectual quase nunca faz dele um proletário”.

Usar o tempo e a força física disponíveis para caminhar com professores em greve; segurar cartazes e gritar ao lado de operários nas portas das fábricas; compartilhar presencialmente conhecimento com os bravos estudantes que ocupam suas escolas para que o inimigo não as ocupe; em suma, não deixar os verdadeiros oprimidos sozinhos e em menor número na “rede real” enquanto postamos hashtags em favor deles nas redes virtuais, isso sim é colocar a intelectualidade a serviço da revolução. Permanecer no gabinete, escrevendo manifestos revolucionários, é tão velho quanto a própria opressão que esse manifestos intelectuais pretendem destruir. E isso porque, diz Benjamin, “a luta revolucionária não é entre capitalismo e inteligência, mas entre o capitalismo e o proletariado”. Esquerdo-fofice-mor é achar que a verdadeira luta é a primeira. Tolice alienante, pois ela é a segunda, a luta de classes, que só não resta clara e absolutamente necessária porque gastamos tempo e atenção com hashtags diárias e protestos-shows nas nossas horas livres.

Melancólicos por perderem os direitos de que necessitariam caso fossem a verdadeira classe oprimida, mas que de fato não necessitam por conta dos privilégios ainda envolvidos no elitismo resistentemente inerente à intelectualidade, os nossos intelectuais de esquerda nada mais são que pseudorevolucionários. Por isso a crítica dos afetos de que fala Safatle, pois só ela mostrará que o que com efeito afeta essa intelectualidade de esquerda não é o medo de seguir sendo explorada, coisa que ela nunca foi, mas, covardemente, a angústia de, de algum modo, ser juntada, contragosto seu, à verdadeira classe oprimida. A melancolia das manifestações políticas esquerdo-fofas é pseudomelancólica: é o sentimento de perda de algo que os esquerdo-fofos nunca perderam.

De qualquer modo, não carece que percam algo para se juntarem à luta dos que realmente perdem e perderam sempre, seja com as velhas exploração e miséria, seja com o jovem golpe brasileiro. A privilegiada intelectualidade revolucionaria de esquerda pode contribuir com os desprivilegiados sim. Em primeiro lugar, socializando com eles o privilégio de que sempre dispôs, e, em segundo e mais desafiador lugar, aceitando “ser socializada” na miséria que eles, contragosto deles próprios, sempre estiveram expostos.

 

Brexit: covardia transparente

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A Primeira Guerra Mundial, antes de acontecer, disse o filósofo Henri Bergson, era “ao mesmo tempo provável e impossível”. Depois de eclodida, entretanto, ela se mostrou absolutamente possível; e a sua probabilidade, apenas a limitação das análise conjunturais prévias. Conforme outro filósofo, Slavoj Žižek, “do ponto de vista retroativo o mesmo processo parece inteiramente determinado e necessário, sem abertura para alternativas”.

Com o Brexit é a mesma coisa, muito embora a saída do Reino Unido da União Europeia tenha sido fruto de uma escolha popular, portanto contingente, com a justíssima vitória de 51,9% dos votos. Porém, como disse Žižek, “essa aparência de escolha não deveria nos enganar, pois trata-se da aparência do seu verdadeiro oposto: da ausência de escolha real quanto à estrutura fundamental da sociedade.” Melhor seria se os britânicos tivessem se recusado à escolha, pois, “hoje, a ameaça não é a passividade, mas a pseudoatividade, a ânsia de ‘ser ativo’, de ‘participar’”, coloca o filósofo. E isso porque a elite que realmente decide a realidade precisa da participação popular. Assim, todos se sentem responsabilizados pelas decisões que ela, a elite, toma vertical e despoticamente em benefício exclusivo de si própria.

Na verdade, os súditos do United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland foram escolhidos para “escolher”, em um teatro espetacular é preciso dizer, o que as elites inglesas sorrateiramente já tinham escolhido para si mesmas diante da crise econômica internacional, dos refugiados, do terrorismo, só para citar alguns dos motivos inegáveis. Quanto mais não seja, nas palavras de Žižek, “é assim que cada vez mais funciona a democracia no primeiro mundo, ‘terceirizando’ seu avesso sórdido para outros países”. Nesse tipo de democracia, segue o filósofo, “uma escolha é sempre uma meta-escolha, uma escolha da modalidade da própria escolha”.

Entretanto, mesmo que os interesses das elites não sejam segredo de estado, o mundo estarrece diante do Brexit. Não só porque a União Europeia pode estar diante do início de sua ruína, durante tantos anos “ao mesmo tempo provável e impossível” para repetir Bergson, como também, e mais objetivamente, porque de um dia para o outro o valor da libra esterlina despencou ao seu menor nível desde 1985, levando consigo as bolsas internacionais. E, pergunta Žižek, “haveria prova melhor do caráter não substancial da realidade além da fortuna gigantesca que pode ruir e desaparecer em poucas horas?”

Sem dizer que o próprio Reino Unido também tem com o que se preocupar, afinal, inicia hoje uma experiência com a qual não tem intimidade há 43 anos: manter-se um Estado-nação forte capaz de sustentar o Estado de bem-estar social dos britânicos sem a ajuda da tecnocracia financeira que, em verdade, a União Europeia sempre foi. Para começar, o Banco da Inglaterra se prepara injetar 250 bilhões de libras na economia para dar conta da decisão do plebiscito de 23 de junho de 2016. As elites locais, que administrarão esse montante, não deram tiro no pé…

O que significa concretamente o Brexit para os britânicos, para a Europa, e inclusive para o mundo? Resposta difícil, uma vez que, conforme o matemático e filósofo inglês Brian Rotman, “o significado é algo sempre emprestado do futuro, que confia num pagamento futuro sempre adiado”. E ainda que arriscássemos em vaticinar um significado ao Brexit, mais difícil ainda seria encontrar um sentido para ele, pois, nas palavras de Žižek, “o capitalismo é a primeira ordem socioeconômica que destotaliza o sentido”. A melhor coisa que temos a fazer, portanto, é esperar para ver no que essa mudança resultará.

Das crises mundiais que já têm significado e sentido conhecidos, reduzir fronteiras vem em solução imediata, todavia covarde e desumana, à incontrolável crise migratória internacional que tanto preocupa os países europeus. As palavras do político holandês Geert Wilders, abertamente anti-imigração, deixam isso claro: “Queremos ser donos de nosso próprio país, de nosso dinheiro, nossas fronteiras e nossa política imigratória.” Para dar mais uma volta no parafuso anti-imigração, uma manchete do El País: “Votação a favor do ‘Brexit’ anima os xenófobos europeus”.

Eis o velho e perigosíssimo populismo nacionalista de direita exibindo sua revigorada força. Aqui é preciso ressaltar que foram os mais velhos os que mais votaram pelo Brexit. Parafraseando Žižek, será que não conseguimos ver o germe de um “nazismo 2.0” somente porque ele ainda é transparente, porque vemos através dele sem vê-lo diante de nós? Aqui é bom atentar ao que disse filósofo alemão Thomas Metzinger, que “o grau de transparência fenomenal é inversamente proporcional ao grau introspectivo da disponibilidade de atenção dos estágios de processamento anteriores”.

Baseados nessa ideia, devemos perguntar se o possível ressurgimento de fascismos de Estado –ainda transparentes na cada vez mais naturalizada xenofobia- só é invisível ainda porque não estamos atentos ao seus “estágios de processamento” atuais. Se no antissemitismo, que teve seu apogeu no nazismo, o medo da crise econômica e da degradação moral foram trocados estrategicamente pelo medo do judeu, é de se questionar se no “antiuniãoeuropeísmo” encarnado no Brexit, cujos medos não são muito diferentes, não está a semente ainda oculta de uma “erva daninha genocida” contra os imigrantes e os pobres.

Lacan já disse que uma coisa é a sua melhor máscara. Com os radicais-nacionalismos não é diferente. É isso que devemos deduzir do twitt de Marine Le Pen, política francesa declaradamente contra os imigrantes, imediatamente ao resultado do plebiscito britânico: “A Liberdade venceu”. A coisa por trás da máscara nesse caso é a velha e paradoxal autonomia kantiana: o estabelecimento de um limite firme (o fechamento das fronteiras europeias), que realmente convence ser libertador, porém, no intuito de dar cabo da angústia que é a falta de limites (a abertura irrestrita aos imigrantes, aos pobres etc.).

Verdadeira liberdade é ter capacidade para ver que, como disse Žižek, “cada campo da ‘realidade’ (cada ‘mundo’) é sempre já emoldurado, visto através de uma moldura invisível”. Essas molduras transparentes são produtora de pseudoliberdades. E o Brexit é apenas mais uma dessas molduras, nem tão invisível é verdade, que no entanto consegue mentir a milhões de britânicos que eles estão mais livres. Só que dos estrangeiros, dos pobres, da austeridade fiscal. Em suma, da crísica realidade mundial que eles mesmos coproduzem cotidianamente.

O Brexit, portanto, é a covardia dos britânicos que querem escapar das crises globais que o seu Estado de bem-estar social particular ajuda a produzir. Coragem seria manter-se envolvido com as tragédias mundiais, não reduzir suas fronteiras até que elas fiquem do lado de fora. Žižek lembra que “a tragédia grega, a experiência trágica da vida, assinala a aceitação da lacuna, do fracasso, da derrota, do não fechamento como horizonte único da vida humana, ao passo que a comédia cristã se baseia na certeza de que Deus transcendente garante o final feliz, a superação da lacuna, a reversão do fracasso em triunfo final. Mas a transcendência sempre foi a estratégia cômica e covarde de quem não consegue lidar com a imanência.

Os invisíveis poderes que levaram os britânicos a votarem pela saída do Reino Unido da União Europeia quiseram, entre outras coisas, esconder do povo uma coisa que o filósofo francês Étienne Balibar deixou bem claro, que “o homem é feito pela cidadania, e não a cidadania pelo homem”. Os cidadãos e cidadãs do United Kingdom não serão homens e mulheres melhores nem mais felizes por não fazerem mais parte da European Union. Podem ser mais ricos? Claro que podem, afinal, essa é uma das metas centrais. Todavia, ao altíssimo preço de serem mais fechados, isolados, xenófobos, retrógrados e desumanos.

Žižek coloca que “o Estado-nação não é o verdadeiro instrumento para confrontar a crise dos refugiados, o aquecimento global e outras questões urgentes que se colocam”. O Brexit, portanto, que é a sede radical por um Estado-nação, outra coisa não é que a invisível decisão de se manter as crises das quais, opacamente, os britânicos disseram que querem se afastar. Mantê-las, sim, porém, imediatamente do lado de fora de suas fronteiras. Afinal, na realidade capitalista a crise é sempre muito lucrativa. Basta saber manter certa distância dela. Na dificuldade, recuar; reduzir fronteiras.

Não obstante, segue Žižek, “nossa única esperança é agir em nível transnacional – só assim teremos a chance de fazer frente ao capitalismo global”. A permanência do Reino Unido na União Europeia manteria essa esperança mais viva? Para o filósofo comunista Alain Badiou, não, pois para ele a esperança reside longe desses conglomerados burgueses. Mais especificamente, pasmem, nas favelas. Nas suas palavras, “as favelas são um dos poucos ‘lugares factuais’ autênticos da sociedade atual; os favelados são, literalmente, uma coleção dos que não fazem ‘parte de parte alguma’”.

Algum velho burguês&xenófobo britânico, apólogo do idealista e insustentável isolacionismo, poderia imaginar que as sementes do futuro estão justamente nas favelas das quais aliás ele quer distância absoluta, e não no seu, hoje, mais restrito e aburguesado condomínio/Estado-nação? Claro que não. Por quê? Ora, porque todo idealismo –e o Brexit é o mais espetacular da atualidade- serve apenas para alienar a realidade. Eis a realidade da qual o Reino Unido se alienou ao se afastar mais um pouco do mundo: que o maior problema é justamente a riqueza e a desumanidade que sobra dentro de suas fronteiras cada vez mais reduzidas.

Tecnobarbárie

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Assistir “Eye in the sky” (olho no céu), de 2015, filme inglês que trata de uma operação militar internacional de captura de terroristas no Quênia, é ter a rara oportunidade de ver os pretensos civilizados ocidentais dizerem a si mesmos que são mais bárbaros do que os bárbaros que costumam atacar em nome da “civilização”.

O filme começa com um general inglês em uma loja chique comprando uma boneca para a sua neta. A segunda cena é a de uma menina muçulmana pobre brincando com um bambolê que seu pai acabara de fazer. Brincadeira todavia secreta, autorizada somente dentro dos muros domésticos, pois para os muçulmanos brincar é pecado. No outro canto do quintal, sua mãe, diante de um forno à lenha, assa pães que em seguida serão vendidos pela menina nas vielas da cidade. Trabalhar publicamente pode, brincar não.

Enquanto isso, um drone inglês que sobrevoa a cidadela da África oriental tem sob mira uma outra casa onde estão cinco muçulmanos se preparando para um ataque terrorista em um shopping center de Nairóbi, capital do país. Do outro lado da câmera e dos mísseis “drônicos”, em escritórios confortáveis e seguros locados em Londres e nos Estados Unidos, estão generais, coronéis, tenentes, secretários de estado, e primeiro ministro, todos prontos para autorizar o bombardeio da residência em questão.

Porém, no momento em que o tenente que opera o drone recebe a ordem de iniciar o bombardeio, a menina da abertura do filme monta uma barraquinha para vender os pães feitos pela mãe justamente do outro lado do muro da casa a ser alvejada. O operador, ciente de que a menina será explodida junto com o alvo, recusa-se a lançar o míssil e pede por nova avaliação de risco, uma vez que, agora, nas baixas constará também uma criança que nada tem a ver com o ataque ao grupo terrorista.

Incrédulos, os seus superiores “worldwide” não entendem o drama de consciência do tenente. Alegam que se não bombardearem os terroristas naquele exato momento o ataque que em seguida praticarão matará cerca de oitenta pessoas no shopping center. Poupar a vida de uma criança, portanto, não justificaria a consequente perda de dezenas de outras vidas segundo a lógica civilizada dos ingleses. Os americanos, como era de se esperar, são mais insensíveis ainda, dizendo que se os ingleses declinassem da operação os Estados Unidos os retalhariam.

Entretanto, a lógica sensível do tenente operador do drone é comprada por uma política inglesa envolvida no caso. Porém, por outra razão. Temendo que a notícia da morte de uma criança inocente mobilize negativamente a opinião pública mundial, a política tenta convencer os grandões do poder internacional de que se eles bombardearem os terroristas e a menina morrer, os terroristas vencem. Para ela, seria mais vantajoso os terroristas explodirem o shopping center lotado, pois assim a sensibilização internacional seria contrária aos terroristas, e não aos ingleses e americanos.

Para resolver a situação, a coronel responsável pela avaliação de risco da operação secretamente forja um risco bem menor do que o real, reinformando a todos que a probabilidade de a garota morrer é de apenas 45%. De posse desse novo e falso dado, a casta político-militar chega à conclusão de que vale a pena seguir com o bombardeio. Então, reordenam ao tenente que controla o drone que prossiga. Com lágrimas nos olhos, e ciente de que a garota morrerá, ele aperta o botão. Nos quarenta segundos entre o disparo pelo drone e a explosão da casa terrorista, não só ele, mas todos os militares e políticos do filme fixam seus olhares exclusivamente na menina diante dos pães.

O alvo é explodido espetacularmente. A menina é arremessada para longe junto com escombros do muro que a separava da casa alvejada. A atenção de todos segue sobre a garota ensanguentada e estirada no meio da rua até que os pais dela chegam correndo, desesperados, e se debruçam sobre ela. Só que os militares “civilizados” percebem que um dos bárbaros terroristas ainda estava vivo. Sem pestanejar, e sem darem espaço de manobra ao operador do drone, ordenam que seja lançado mais um míssil, dessa vez sem avaliação de risco algum.

Nova explosão. A menina, que já estava ferida e inconsciente por conta da primeira explosão é atingida novamente, só que dessa vez seus pais também. Já a cúpula político-militar internacional, preocupa-se em confirmar visualmente apenas as mortes dos terroristas. Fora do quadro filmado pelo drone, os aliados locais dos terroristas mortos esvaziam um jipe cheio de armamento para levarem a garota seriamente ferida a um hospital. Não obstante, a garota morre assim que lá chega. Seus pais, outrossim feridos, só podem chorar sem entender o que aconteceu.

No lado civilizado do mundo, mesmo com a vitória técnica da “civilização” contra a “barbárie”, os europeus e americanos não conseguem olhar nos olhos uns dos outros. Resta silenciosamente no ar “civilizado” e refrigerando que os envolve a desconfortável certeza de que eles são mais bárbaros do que os bárbaros que atacaram. O general da abertura do filme deixa seu escritório com a boneca que comprou e segue cabisbaixo para presentear a neta. Encerrando o longa-metragem, a cena da garota brincando alegremente com o seu bambolê secreto horas antes de morrer. Morrer, pública e espetacularmente, pode. Brincar, não.

A “história para inglês ver”, que deliberadamente inverte a arraigada certeza sobre quem são os verdadeiros e mais cruéis bárbaros, mesmo que não tenha vindo às telas para mudar o mundo, tem ao menos a virtude de denunciar que sob os mantos científico, técnico e burocrático a barbárie ocidental ainda consegue mentir para si mesma, e para quase todo o mundo aliás, que é civilização. De acordo com essa lógica mentirosa, matar à distância segura e covarde de um drone é civilizado. Já na intimidade corajosíssima de um colete-bomba, barbaridade.

Morte cerebral mundial

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Imagem: divulgação CBS

Braindead (morte cerebral) é uma série produzida pela americana CBS que começou a ser exibida há duas semanas. Na ficção, um meteoro cai na Rússia, é recolhido do fundo de um lago e é enviado a um laboratório em Washington para análises. Em uma noite, quando nenhum cientista estava por perto, milhares de “formigas” alienígenas saem da rocha e sorrateiramente invadem a capital norte-americana. Os “insetos” entram nos lares, penetram nos ouvidos das pessoas e dominam seus cérebros, alterando e controlando seus atos. Não escapam dessa dominação os grandes políticos nem seus eleitores. Na verdade, as absurdidades que aqueles passam a realizar são passivamente chanceladas por estes. Caos na terra?

Bem, a humanidade nunca precisou nem de ficção nem de alienígenas para criar o caos. Basta olhar para os lados e perguntar se as absurdidades que nos cercam atualmente já não atenderam desde sempre pelo nome de mundo. Por acaso deveríamos nos alarmar com o as desumanidades que estamos assistindo “worldwide  ou apenas assumir que o “american dream”, internacionalmente “broadcasted”, apenas nos alienou dessa vil&alarmante realidade que nunca deixou de estar “out there”?

Aqui vale lembrar o episódio de outra série mundialmente famosa, House of Cards, no qual um terrorista muçulmano diz que eles explodem e explodirão sistematicamente os americanos porque a missão deles é lembra-los de que a vida não é, nunca foi e nunca será esse sonho dourado livre da dor e da miséria que os americanos experimentam alienadamente e a altos custos mundiais. O radicalismo terrorista pode ser condenado por muitos aspectos, obviamente. No entanto, uma virtude ele carrega: a assunção de que o real não pode e não será ser roteirizado indefinidamente conforme as aspirações burguesas ocidentais.

O ocidente poderia perfeitamente dispensar os terroristas islamitas para encarar seu “american nightmare” como obra sua. As vigorosas ascensões fascista e fundamentalista; a xenofobia explicitada pela crise migratória internacional; a devastação da natureza que o nosso consumismo estrutural produz diariamente; sem dizer, no Brasil, do golpe de estado dado pela corrupta oligarquia financeira e, no México, das atuais mortes e desaparecimentos de professores manifestantes; tudo isso é a nossa realidade/pesadelo, produzida e vivida por nós mesmos, sem máscara ficcional ou estrangeira alguma.

Basta atentar às metralhadoras giratórias intolerantes e reacionárias de Donald Trump, nos EUA, e de Jair Bolsonaro, no Brasil, por exemplo. Ambos os bárbaros-políticos desrespeitam fascistamente a alteridade, e o que é pior, arrecadam para si hordas de indivíduos que compram e levam adiante os seus discursos desumanos, demasiadamente desumanos. E contra tais absurdidades o que temos? Infelizmente, impotentes hashtags e lágrimas virtuais em forma de postagens no Facebook e no Twitter. Trumps e Bolsonaros, agindo barbaramente na vida real, devem adorar a oposição virtual que recebem.

Novamente: chegamos a um ponto crísico onde o “mal” pode ser proposto deslavadamente e assistido passivamente, ou o mundo desde sempre foi essa crise? Fomos atacados por espécie de insetos que nos tornaram mais reacionários e passivos, assim como os personagens de Braindead, ou será que, diferente do seriado, essas formigas caóticas somos nós mesmos? Na ficção americana, isto é, dentro do “american dream”, os humanos são apenas as vítimas do mal, que pode vir tanto em forma alienígena, como muçulmana ou comunista, tanto faz. Fora da ficção, todavia, não há ser externo algum a nos obrigar a produzir e a disseminar o mal que vemos por aí todo o dia. Esse mal, desde sempre, é a própria humanidade em seu caótico devir.

Todavia, para nos alienarmos dessa realidade periclitante, muita ficção. Ou o que é o mesmo, muita mentira para transformar alguns de nós em um “outro” culpado pelos problemas de todos. Aí está o muçulmano, o imigrante, o gay, a mulher, o índio, o negro, o pobre, a esquerda, etc. Todos politicamente roteirizados para representarem os alienígenas problemáticos que descem ao mundo para acordar a elite ocidental do seu delicioso, porém insustentável, “american dream”. Se essa elite acordasse, veria claramente que seu inimigo íntimo é ela própria; o inimigo real que produz seus tantos inimigos ficcionais.

Braindead e suas formigas alienígenas fascistas são apenas mais uma tentativa de, mediante ficção, o ocidente seguir se alienando da verdade cada vez mais tácita, qual seja, que seu maior e mais calamitoso problema é ele mesmo, e não seus outros espetaculares. Em resposta a esse mundo de sonhos, pesadelos reais: terrorismo, crise ambiental, imigrantes clandestinos, miséria, etc. Afinal, a barbárie não desaparece sob os alienantes roteiros hollywoodianos. Como o terrorista islamita de House of Cards disse aos americanos, nós, os seus outros malditos, estamos aqui para não deixá-los esquecer do real.

 

A desafiadora revolução socialista tupiniquim

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Mais uma vez, na história do Brasil, nunca estivemos tão longe da revolução socialista, isto é, do início do fim da exploração da maioria dos indivíduos pela minoria. O mote antissocial da vez, obviamente, é o golpe de estado dado pela oligarquia político-econômica tupiniquim. Antidemocraticamente, medidas reacionárias&austeras estão sendo verticalmente aplicadas contra a população para que a colossal riqueza produzida por ninguém menos que essa mesma população siga sustentando confortavelmente os velhos privilégios das minoritárias classes dominantes.

Será que o povo brasileiro não sabe fazer revolução? Ou será simplesmente porque, conforme diz o historiador, filósofo, sociólogo e economista baiano Edmundo Moniz, “Não há um manual da revolução. A revolução é uma tempestade histórica e as tempestades não se repetem igualmente”? Em uma palavra, o brazuka erra quando tenta revolucionar a sua vil realidade ou não sabe experimentar formas revolucionárias? Ou nem sequer tenta? O que há no “clima” brasileiro que mais facilmente repete os furações reacionários do que precipita a “tempestade” revolucionária de que tanto o povo desse país necessita?

Moniz, corroborando com Marx e Trotsky, entende por “revolução a mudança das estruturas sociais que termina com a exploração do homem pelo homem e cria condições históricas para a passagem da sociedade de classes para a sociedade sem classes”. A teoria marxista, entretanto, baseada na particular evolução histórica do velho continente, enxerga a revolução socialista como um interregno estratégico que procede da escravidão, do feudalismo e do capitalismo, necessariamente nessa ordem, e que precede o comunismo, ou seja, o fim da exploração da maioria pela minoria.

Bela teoria que, não obstante, só não tem como vingar no Brasil porque neste país, que nasceu colônia e que cresceu dependente, as formas econômicas não seguiram a ordem da evolução econômica e social europeia. Usando impertinentemente as palavras de Trotsky, o Brasil é “um amálgama de formas arcaicas e modernas”. Com efeito, temos escravidão, feudalismo e capitalismo convivendo, profunda e desarmoniosamente, na realidade econômica brasileira. Pior ainda, a realidade econômica do Brasil foi construída invertendo-se o processo histórico europeu.

Com efeito, foi o capitalismo, mais evidentemente seu credo econômico mercantilista, que trouxe os portugueses ao Brasil. E uma vez conquistada esta terra, o jovem e vigoroso capitalismo português, anacronicamente, implantou o velho e caduco feudalismo na divisão do território em capitanias e sesmarias, que eram “doadas” a administradores mediante relações pessoais com a realeza portuguesa. E mais anacronicamente ainda, para sustentar seu sistema de relações pessoais, os portugueses encravaram a escravidão no âmago do sistema feudal tropical, em uma tácita inversão do que havia acontecido no velho mundo.

Por isso a revolução socialista tupiniquim não tem como vingar conforme dita o ideário velho-mundista. Se quisermos proceder conforme Marx, são necessárias pelo menos duas revoluções efetivas antes do passo socialista, a feudal, que dá cabo da escravidão, e a capitalista, que por sua vez supera o feudalismo. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), durante muitos anos insistiu nessa lógica, sustentando que primeiro deveríamos superar o feudalismo, depois a democracia burguesa, para só então termos condições históricas para a revolução socialista.

No entanto, dada a particularidade da realidade histórica brasileira, não podemos nos dar ao luxo de priorizarmos uma besta econômica por vez. Lutar frontal e exclusivamente contra o velho e resistente feudalismo, ou contra o maduro e vigoroso capitalismo, separadamente, é dar as costas a um inimigo ou outro. Criticamente, é matar um sistema desigualitário e deixar o terreno livre para o outro. Sinuca de bico! Por isso, na Brasilândia, o fim da exploração das massas pelas elites significa lutar simultânea e frontalmente contra um inimigo múltiplo: a escravidão, o feudalismo e o capitalismo.

Para fazer a revolução socialista no Brasil em um único movimento, temos de esquecer a clássica racionalização estrangeira e inventar formas revolucionárias totalmente nossas, que tenham capacidade para superar de uma só vez os muitos passados e vícios que insistem no mui viciado presente brasileiro, e que impedem a virtuose de um futuro igualitário. Como, então, será possível a revolução socialista no Brasil?

Para, Moniz, isso é possível somente com a organização de um verdadeiro partido de massas, de uma vanguarda consciente que esteja disposta a preparar o povo para a República Democrática Socialista. Entretanto, porventura temos no Brasil um partido que represente plenamente os interesses da maioria explorada? Um partido que assuma a vanguarda das transformações sociais? Infelizmente não.

O PCB, embora dono do melhor ideário, está distante léguas de ter oportunidade de ser pragmático. O pragmatismo do Partido dos Trabalhadores (PT), aventurado nos últimos 13 anos, está longe de ser ideal, visto que engordou tanto as feras exploradoras como as presas exploradas.  Em uma palavra, tornou o lobo mais forte e as lebres mais suculentas. Não temos, no Brasil, portanto, partido ou vanguarda capaz de iniciar a revolução, pois não há força política organizada para efetivamente socializar a terra, os meios de produção, os bancos, a mídia; para romper o monopólio do comércio exterior e implantar a planificação da economia nacional.

Enquanto isso, carentes de um pensamento organizado e vanguardista o suficiente capaz de mobilizar as massas no sentido da prática revolucionária efetiva, e sob as vis égides do desenvolvimento e do crescimento econômico, as velhas estruturas exploratórias dominam o país. E o atual golpe de estado brasileiro é o que senão a dominação do passado sobre o presente? Com efeito, a oligarquia política brasileira ainda encontra terreno livre para, mediante o seu atual golpe, representar os interesses do capital internacional por meio do endividamento do povo local.

Por acaso a atual elite golpista não está repetindo o famigerado “milagre brasileiro” da década de 1970, quando, em nome do desenvolvimento, o Brasil tomou emprestado e enfiou goela-abaixo do povo mais de cem bilhões de dólares? Devíamos três bilhões de dólares em 1964, antes do golpe militar. Duas décadas depois, devíamos cem vezes mais, e em dólares inflacionários! Eis a força reacionária atuando livremente no espaço social que o pensamento e a ação revolucionários ainda não ocupam contundentemente. E como não há força organizada para acabar com a crise, a velha estrutura oligárquica segue administrando o Brasil, sua desigualdade estrutural,  e a crise econômica que, em essência, lhe favorece exclusivamente.

Entretanto, para Moniz, o Brasil tem condições econômicas e materiais para o socialismo. Só não tem ainda condições políticas para tal, pois falta-nos um partido verdadeiramente popular que possa assumir o papel de vanguarda, instituindo conscientemente a república democrática socialista. Esse é o grande impasse do Brasil. Enquanto isso, a oligarquia nacional não resolve as crises social política e econômica do país precisamente porque tais crises lhe engordam e fortalecem.

Uma vez que a prática é o cerne de qualquer revolução, não basta apenas uma ideia revolucionária, por mais perfeita que seja. Aí devemos dispensar, senão toda a teoria marxista, ao menos a parte que não coincide com a evolução histórica brasileira. Do velho mundo, contudo, devemos manter a ideia de que é preciso de uma vanguarda política revolucionária capaz de motivar o povo a finalmente impor seus interesses sobre os das classes dominantes. Aí teremos iniciado a verdadeira revolução socialista, e não só pensado nela. Para tanto, relembra-nos Moniz, é preciso que a teoria coincida com a prática e a prática confirme a teoria”.

Todavia, como dito antes, no Brasil formas econômicas e políticas arcaicas e modernas coexistem desde sua colonização até hoje. Numa metáfora de Trotsky, “os selvagens passaram da flecha ao fuzil de um golpe, sem percorrer o caminho que separa no passado estas duas armas”. Ou seja, os colonizadores portugueses na américa não começaram a história pelo princípio”. Coincidir prática e teoria em terras tupiniquins, portanto, é um desafio sui generis que não pode se pautar por ideários e experiências extrínsecos. Nossas teoria e prática revolucionárias devem ser outras que as do velho mundo, pois a nossa história é outra, muito embora historicamente explorada por aquelas.

Do contrário, em outra metáfora, estaríamos obrigando o índio, nu e oprimido, a usar ou um uniforme soviete, ou a cartola da velha e distante intelectualidade europeia. Ou seja, estaríamos representando uma revolução muito mais do que a praticando. E isso porque, segundo Moniz, “ a essencialidade da revolução encontra-se no conteúdo revolucionário de sua própria essencialidade”. A verdade e a efetividade da revolução socialista tupiniquim, por conseguinte, está na essência da realidade histórica brasileira: a coexistência anacrônica de escravidão, feudalismo e capitalismo em função dos interesses das classes dominantes.

No Brasil, todos esses inimigos históricos do povo devem ser superados de um só golpe. Passo bem maior e hercúleo do que o que Marx profetizou há quase um século e meio para a implantação do socialismo contra um único algoz, o capitalismo. Respeitando-se a essência do que se deu historicamente no Brasil é que encontraremos uma teoria, isto é, um pensamento que ponha as massas a praticar a defesa inarredável dos seus interesses, e em detrimento das velhas elites golpistas, que até hoje roubam a realidade para si. E quando essa teoria de vanguarda coincidir com a prática cotidiana do povo brasileiro, a angusta luta por igualdade será uma coloquial igualdade, não mais na luta, mas na existência.

Uma verdadeira ponte para o futuro

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Diante da atual divulgação de alguns dos muitos e velhos esquemas de corrupção entre o Estado e as grandes empreiteiras tupiniquins, que outra coisa não são senão a estrutura criminosa instituída para distribuir propinas astronômicas –leia-se o dinheiro do povo – a uma porção de políticos e empresários não menos corrompidos, fica cada vez mais difícil engolir a mentira de que o Estado está aí para servir o povo. Aliás, o que vemos hoje com o golpe de estado dado pelo PMDB e pelo PSDB é justamente a proteção e a manutenção espetacular dessa estrutura político-econômica corrompida.

E os golpistas ainda têm a desfaçatez de chamar o golpe que deram na democracia brasileira de “Ponte para o futuro”. Só mesmo muita alienação para não ver que essa “ponte”, na verdade, é um tobogã oligárquico, imposto de modo antidemocrático, para retrazer sistematicamente os vícios do passado ao presente, uma vez que o passado viciado é precisamente o espaço de mobilidade excelente das oligarquias.

Entretanto, nem tudo está perdido. O povo, esse corpo manipulado e vilipendiado pelo Estado e sua corja corrupta, deu um belo exemplo de como a realidade pode funcionar melhor sem a intervenção e a exploração estatais. No Rio de Janeiro, mais especificamente na cidade de Barra Mansa, a população não só idealizou, como também realizou o que devemos chamar de uma verdadeira Ponte para o futuro.

Os moradores barra-mensenses dos bairros de São Luiz e Nova Esperança, há duas décadas solicitando a construção de uma ponte que ligasse os dois bairros, sem no entanto serem atendidos, juntaram dinheiro eles mesmos para que sua ponte finalmente fosse erguida. A imagem que ilustra este texto é a da ponte em questão. Mas o que é realmente impressionante nesse ato popular é que a estrutura, que de acordo com o Estado custaria R$270 mil, nas mãos do povo saiu pela bagatela de R$5 mil.

Importantíssimo aqui é frisar que o custo da ponte orçada pelo Estado ficaria 5.400% mais cara do que a realizada pelos moradores de Barra Mansa. E esse astronômico superfaturamento estatal outra coisa não diz do custo, ao povo, que é a manutenção do velho esquema corrupto entre Estado e empreiteiras. No exemplo fluminense, se a ponte real custou 5 mil, temos que, dos 270 mil orçados pelo Estado, 265 mil servem apenas a interesses não populares. Não precisaríamos nem das atuais crises econômica e política para lançar a seguinte pergunta: não viveríamos melhor sem a descarada exploração do Estado?

Não podemos deixar de lembrar da ciclovia carioca que se projetava sobre o mar da praia de São Conrado e que recentemente desabou, pasmem, três meses depois de sua inauguração. A estrutura em forma de ponte, mesmo tendo custado ao povo R$44 milhões, não atendeu à população. Muito pelo contrário, dois dos cidadãos que pagaram por ela morreram na tragédia. E aplicando o superfaturamento estatal da ponte de Barra Mansa à ciclovia da capital, o custo real da estrutura estaria por volta de 800 mil. O que significaria que mais de 43 milhões seriam tirados do povo para engordar os bolsos oligárquicos de meia dúzia de políticos e empreiteiros.

Só que o caso da ciclovia carioca é mais cruel justamente porque não se trata apenas de superfaturamento, mas de um roubo de estado cuja cereja-podre-do-bolo foi um duplo assassinato. Os moradores barra-mansenses, nas mãos do Estado, ficaram vinte anos sem poder atravessar o córrego que separa os dois bairros. Já os cidadãos cariocas mortos no desabamento da ciclovia, esse nada mais tem a esperar nem receber do Estado. E não é demais dizer que o partido político que administra tanto a capital quanto o Estado do Rio de Janeiro é o mesmo do golpe de estado brasileiro: o PMDB

E é esse o tipo de ponte que os golpistas da “Ponte para o futuro” ou não dão à população -o caso de Barra Mansa -, ou, se dão, o fazem da pior maneira possível –o caso da ciclovia carioca -, isto é, embolsando criminosamente 98% do valor total, jogando no lixo os 2% reais usados na sua construção, e ainda por cima colocando as vidas dos que pagaram pelo montante superfaturado em risco. Novamente, para que precisamos de um Estado como esse?

Contra os crimes e a ineficiência do Estado na administração dos interesses do povo, temos, por exemplo, o Orçamento Participativo (OP), mecanismo governamental de democracia participativa que permite aos cidadãos influenciar ou decidir sobre os orçamentos públicos, retirando-se assim o poder de uma elite burocrática e repassando-o diretamente para a sociedade. Política virtuosa, o OP foi adotado por várias cidades brasileiras. Sua origem, porém, foi em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 1983, com o prefeito Bernardo de Souza, paradoxalmente também do PMDB -que eu tive o estranho prazer de conhecer pessoalmente apenas no seu enterro, em 2010.

Entretanto, a cada vez mais evidenciada corrupção da estrutura política brasileira talvez exija um passo popular mais drástico que o OP. Em vez de a população decidir a partir dos orçamentos estabelecidos pelo Estado, todos tacitamente superfaturados pela ganância oligárquica, melhor seria se cada indivíduo não mais deixasse a riqueza que produz sob administração a priori do Estado para só a posteriori decidir, junto com seus pares, o que fazer com essa riqueza. Algo como não esperar ser assaltado para só então solicitar justiça e ressarcimento, mas, de princípio, não dar o ouro ao ladrão.

Anarquia? Do ponto de vista do Estado, certamente. Mas não nos esqueçamos do que disse Marx, que o Estado moderno não é senão um comitê administrativo dos negócios da classe burguesa. Da perspectiva do povo, o fim do Estado, ou o que é o mesmo, o fim da ditadura das elites, seria a oportunidade de a população gerir-se a si mesma, sem precisar da estrutura política, corrompidíssima, que está em pé unicamente para defender os interesses de um minoria historicamente favorecida.

A ponte barra-mansense porventura não é um monumento anárquico? Em parte sim, mas não totalmente, afinal, aqueles cidadãos ainda seguem pagando os não menos superfaturados impostos cobrados pelo Estado para, entre outras explorações, deixá-los duas décadas sem a ponte de que tanto careciam. Se não mais alimentassem o Estado usurpador com a riqueza que produzem coletiva e cotidianamente, e usassem-na eles mesmos na resolução de suas necessidades imediatas, suas vidas seriam mais prontamente e menos superfaturadamente beneficiadas.

Anarquia virtuosa é o desabamento, não das pontes populares obviamente, como a barra-mansense, que se mostrou mais viável, sólida e barata dos que as produzidas pelo Estado, mas das velhas e oligárquicas “Pontes para o futuro” estatais, que não se levantam contra o povo somente durante os golpes de estado, como o atual  brasileiro, mas, muito mais perniciosamente, no dia-a-dia dessa besta burguesa e corrupta que é o Estado em si mesmo.

 

Defendendo nossos próprios algozes

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A democracia brasileira foi golpeada. O Estado brasileiro foi furtado. E o que é pior, por um bando de oligarcas corruptos que só fazem desgovernar o país. Apesar do calamitoso desgoverno golpista, o povo, golpeado e furtado, segue trabalhando, pagando suas contas, dando aulas nas escolas e universidades, dirigindo ônibus e metrôs, ou seja, tocando o Brasil. Agora, imaginemos que se não houvesse esse deliberado desgoverno golpista, isto é, se essa corja corrupta que só visa seus interesses opressores e minoritários não estivesse no comando do país, quão melhor seria o Brasil nas mãos dos brasileiros? Indo mais longe, se desinvestíssemos completamente da própria democracia e do Estado, quão menos oprimidos estaríamos?

A população brasileira que reclama por “sua democracia” golpeada e por “seu Estado”  assaltado age mais por ignorância do que por conhecimento do que, em essência, são a democracia e o Estado modernos. Se entendesse que ambas as instituições são instrumentos excelentes e históricos da burguesia e para a burguesia, e intempestivamente deixasse de clamar pela restauração dessa democracia e desse Estado, certamente enfraqueceria os seus algozes no que eles têm de mais estratégico.

Como, por conseguinte, tornar tácito que o Estado, na sociedade capitalista, assegura apenas o lucro e a acumulação do capital nas mãos da burguesia? Como entender definitivamente que a democracia é a forma através da qual todos são convencidos a lutar pelos interesses de uma minoria empoderada? Por que ainda fazermos questão de nos alienar do fato de que a burguesia não é democrática altruisticamente; que somente investe na democracia enquanto lhe é conveniente? Porventura o golpe tupiniquim não deixa isso escancaradamente claro a todos?

Parece que ainda não, visto as defesas da democracia e do Estado cada vez mais presentes nas ruas do Brasil depois do golpe. Entretanto, se déssemos ouvido ao que disse Marx, por exemplo, que o Estado moderno não é senão um comitê administrativo dos negócios da classe burguesa, ou mesmo ao que sugeriu Lenin posteriormente, que, para a burguesia, a democracia é apenas a melhor máscara para a sua sempiterna tirania econômica, certamente não teríamos tantos clamores populares em favor desses opressores Estado e democracia burgueses.

Por que então ainda protestamos massivamente em favor de instituições que outra coisa não fazem senão institucionalizar a exploração da maioria em função dos interesses da minoria? Alienação é a melhor resposta. De que outra forma estaríamos tão eficazmente ignorantes do fato de que Estado significa ditadura; de que a democracia representativa que defendemos é a ditadura da burguesia; de que somos tão subjugados aos interesses burgueses quanto as sociedades feudal e escravocrata eram em relação aos interesses dos nobres e dos escravagistas, respectivamente?

A democracia representativa e o Estado moderno, obras primas da burguesia, servem apenas para administrar a crise permanente que é o capitalismo, sua essência. É necessário muita alienação para não ver que, democraticamente e instituído em Estado, o capitalismo primitivo da livre concorrência cresceu em forma de capitalismo monopolista; para então engordar e se tornar capitalismo monopolista de Estado; e, por fim, hoje em dia, viver em um corpo praticamente invencível chamado capitalismo monopolista de Estado transnacional? Ignorando as verdadeiras essências das instituições burguesas, clamando por democracia e defendendo o Estado, o povo só faz vitaminar o seus atuais opressores: a burguesia e o seu capitalismo.

Como agir diferente? Parece-nos radical demais fazer como os anarquistas, isto é, ser contra a existência do Estado, uma vez que, para eles, o Estado é o instrumento de opressão? E se entendêssemos que o Estado surgiu da divisão da sociedade em classes; que só com a extinção do Estado as pessoas não mais estarão cindidas da riqueza que elas mesmas produzem coletivamente; ser anarquista ainda assim pareceria tão impertinente? Um futuro livre da exploração do homem pelo homem, que deixe tanto os passados escravocrata e feudal quanto o presente capitalista para trás, exige que desinvestamos absolutamente das instituições exploratórias desse nosso presente, quais sejam, a democracia e do Estado. Só assim deixaremos de vez a nossa pré-história social.

Quais são, portanto, as nossas melhores armas contra a exploração do homem pelo o homem que até aqui fez a história da humanidade, e que hoje, nas vestes democráticas e no corpo do Estado, segue firme e forte? Pensar e agir, por certo. Todavia, há que se pensar e agir conjuntamente. Do contrário, sem perceber, não mais pensamos e apenas agimos de acordo com a cartilha dos nossos tiranos alienadores. Aqui é inevitável lembrar do que disse Marx nas suas Teses sobre Feuerbach, que “os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo de diversas formas, mas agora o que importa é transformá-lo”. Como pode o pensamento, melhor dizendo, a teoria, colaborar a prática revolucionária?

“A teoria é seca”, dizia Goethe no seu Fausto. O autor parece querer dizer que o pensamento não pode revolucionar a realidade, muito embora seu pensamento tenha sido inegavelmente revolucionário. Marx, entretanto, na sua Introdução à crítica da filosofia de Hegel, abre todos os caminhos revolucionários ao sustentar que “a teoria se converte em poder material logo que se apossa das massas”. Com efeito, para este filósofo, as massas tem poder de agir contra a exploração do homem pelo homem somente quando teoria e prática atuam em conjunto. Melhor dizendo, quando a teoria coincide com a prática e a prática confirma a teoria.

Por isso, diante do golpe brasileiro e do desgoverno que ele institui, pensar em outro regime que não o democrático e em outro corpo social que não o Estado, uma vez que são instrumentos essencialmente burgueses e opressores, é fundamental. São instituições outras –hoje ainda ideais, mas, oxalá, amanhã reais- que nos trarão a possibilidade de ação coletiva contra a exploração e o assalto que são o Estado e a democracia juntos. O povo brasileiro, que produz toda a riqueza do Brasil, mesmo golpeado e com um bando de ladrões incompetentes no governo, toca diariamente o país. De ação entendemos muito bem. Falta aliar essa ação impávida, colossal e cotidiana a um pensamento que lhe guie virtuosamente contra a opressão. E que pensamento é esse? Que democracia representativa e Estado não devem ser defendidos, mas superados.

Salve-nos quem puder ser culpado no nosso lugar

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A corrupção política brasileira cada vez mais se revela estrutural. Entretanto, em vez de assumirmos imanentemente nossa participação nessa vil realidade, a maioria dos cidadãos ainda prefere iludir-se -não sem a parcialíssima “ajuda” da mídia- de que são apenas determinados indivíduos, de um partido político ou outro, os responsáveis pela corrupção generalizada. Necessitamos desesperadamente de um ou uns culpados espetaculares, para que assim a culpa deles nos aliene do fato de que nós, os cidadãos indignados, somos participantes dessa corrupção estrutural que nos indigna. Em respeito ao grave problema, queremos transcendentalizá-lo a qualquer custo, e pouco importa se através das mentiras midiáticas que com sagacidade elegem de bois-de-piranha estratégicos.

Em contrapartida, quando se trata não do que corrompe a sociedade, mas do que a mantém em pé, isto é, o poder, o povo inteiro não se roga em responsabilizar-se por ele. Tanto que a Constituição brasileira é aberta com o seguinte artigo: “Todo poder emana do povo”. Aí é fácil participar imanentemente da estrutura da sociedade! Agora, se a Carta Magna explicitasse outra verdade, qual seja, que “toda corrupção estrutural também emana do povo”, ou seguiríamos ignorando-a, ou a riscaríamos de vez da Constituição.

Cabe aqui atentar ao que disse o filósofo francês Michel Foucault em Microfísica do Poder, qual seja, que o poder circula, que se exerce em rede, sendo que cada um de nós de certa forma e em certa medida é titular desse poder. Daí podemos concluir que o poder dos políticos corruptos, tanto os que seletivamente sacamos da estrutura corrompida para representante no lugar de todos a corrupção estrutural, quanto os que são “deixados em paz”, mesmo sendo tão ou mais corruptos que aqueles, esse poder é dado a eles por nós, o povo, isto é, a origem da qual todo poder emana. Mesmo que não queiramos assumir que a corrupção dos nossos representantes políticos jaz a priori no próprio povo, ao menos deveríamos aceitar o fato de que o poder com que eles corrompem a sociedade é dado a eles pelo povo mesmo, e no caso brasileiro, democraticamente.

Para entender melhor isso, vale lembrar outro francês, o humanista Étienne de La Boétie. Este filósofo dizia que o poder do tirano, seus mil braços e mil olhos, não são seus, visto que é um homem como qualquer outro, com seus dois braços e dois olhos apenas; mas que estes mil braços e mil olhos são deles somente na medida em que seus mil súditos cedem seus braços e olhos a ele. Moral da história: não precisamos ir até o castelo do tirano para matá-lo e para nos livrarmos dos seus mil braços e mil olhos tirânicos; basta que simplesmente não mais demos os nossos para ele. Afinal, segundo Foucault, não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele apartados”.

Da mesma forma, as mil e uma corrupções que espoliam e envergonham os brasileiros não são exclusividade dos seus representantes políticos corruptos. Eles apenas podem praticá-las descaradamente porque seus mil e um representados, nas suas mil e uma corrupções cotidianas -não solicitar ou não fornecer nota fiscal nas compras e vendas; baixar indevidamente músicas e filmes na internet; beber, dirigir e escapar da Lei Seca; estacionar automóvel em vaga para deficientes etc.- já criam os subterrâneos e a priori alicerces corrompidos sem os quais a evidente e a posteriori estrutura da corrupção não teria como sustentar-se. Aplicando aqui a fórmula boétiana, contra a corrupção estrutural bastaria que o povo não mais desse fundamento à corrupção, isto é, que não mais fosse corrupto na parte da estrutura que lhe cabe?

Alguns podem dizer que, mesmo que o povo seja probo, sempre haverá representantes impertinentes corruptos. Abstratamente isso pode até convencer. Porém, se a abstração a posteriori que é a sociedade só existe por conta dos seus indivíduos concretos e a priori, uma sociedade lisa somete existirá se os indivíduos que a compõem forem lisos em primeiro lugar. Do contrário, se os cidadãos já forem corrompidos, a sociedade só será íntegra mediante a argamassa da alienação, o reboco da mentira, o papel-de-parede da manipulação midiática. O “Brasil para todos” de Michel Temer é o exemplo concreto e atual dessa ruína social corrompidíssima disfarçada de nova “Ponte para o Futuro”: presidente, ministros, senadores, deputados, vereadores, e até mesmo o povo, todos profundamente estruturados na corrupção, no entanto, superficialmente tentando fazerem crer o contrário.

É preciso comprometer o Brasil consigo mesmo em função do fim da corrupção estrutural. Não só os políticos que escolhemos para representantes da corrupção que atravessa de cima a baixo e do passado ao presente a torre brasilis, mas também todos os demais. Tampouco devemos deixar-nos, o próprio povo, de fora desse comprometimento. Em primeiro lugar, mantendo o pedacinho do Brasil que ocupamos livre da erva-daninha da corrupção, pois só assim não nascerá nenhum jatobá corrompido insuportável. Em segundo, recusando-nos a separar o joio do trigo somente de quatro em quatro anos, nas urnas, mas participando direta, cotidiana e intempestivamente no governo do país. E em terceiro e mais importante lugar, nunca gritando: “salve-nos quem puder ser culpado no nosso lugar”; afinal, se algum corrupto é punido no lugar de outro, a corrupção segue tendo lugar cativo dentro sociedade.

Cosmonoopolitismo

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Noopolítica é um conceito cunhado pelos cientistas informacionais estadunidenses John Arquilla e David Ronfeldt que junta a palavra grega “nous”, que pode significar tanto inteligência quanto pensamento, mas que para Platão era a faculdade humana capaz de captar verdades fundamentais por uma via intuitiva, à palavra política, que embora bem conhecida de todos, é problematicamente pragmatizada pela maioria.

Noopolítica, portanto, seria uma política inteligente baseada no conhecimento direto, claro e imediato dos indivíduos e de suas questões coletivas. Para ser mais preciso, no reconhecimento intuitivo do que, em verdade, é a sociedade à qual esses indivíduos pertencem. Filha hipercontemporânea e virtuosa da biopolítica foucaultiana, a noopolítica é caminho para se reencontrar a harmonia –alienada pela política tradicional- entre homem, sociedade, natureza e conhecimento. Em particularíssima instância, indivíduo e vida.

Para tanto, a noopolítica se funda na livre comunicação entre os indivíduos, na eleição do conhecimento que melhor serve à coletividade, e no repudio à violência e à arbitrariedade dos interesses supra individuais que negam este melhor conhecimento. Valoriza a expressão individual enquanto “grão de areia” essencial e a priori de uma “duna social” não opressora a ser alcançada. Utopia? Considerando-se que utopia é o que apenas não existe ainda, e não o que não tem como existir de forma alguma –atopia-, a noopolítica é o caminho da verdadeira revolução.

Com efeito, a noopolítica se contrapõe à realpolitik, isto é, à velha e reacionária política cujo objetivo é assegurar o interesse e a estabilidade nacionais, supra individuais, e que muitas vezes exige inclusive a violação dos direitos humanos. Enquanto a realpolítica se fundamenta em uma forma hierárquica de organização encimada pelos interesses imperiosos do Estado, em vertical oposição às instâncias imanentes dos indivíduos que o compõem, a noopolítica, em troca, pretende solapar esse desumano edifício mediante uma organização em rede, horizontal, na qual os indivíduos e suas relações sejam o paradigma social: “a verdade, o caminho e a luz” da sociedade.

E se a realpolítica, que atende prioritariamente aos interesses transcendentes do Estado, em um mundo assaz globalizado exige que seus atores sejam primeiramente cosmopolitas, isto é, cidadãos do mundo antes de serem cidadãos locais, a noopolítica, em contrapartida, por priorizar a vida e as questões que afloram na rede coletiva imediata, solicita de seus atores o cosmonoopolitismo, ou seja, uma cidadania imanente cuja única universalidade válida é aquilo que melhor atende aos interesses de seus próprios atores, a ser conhecido por meio da intuição.

O cosmopolita é impotente no enfrentamento dos desafios mais importantes porque politiza primeiramente com o mundo, com o outro mais distante. Assim, expatria, ainda que inadvertidamente, aqueles que, imediata e imanentemente, estão relacionados em rede com ele. Já o cosmonoopolita, porque se pauta no conhecimento, sobretudo no reconhecimento mútuo, tem por princípio não preterir os terminais individuais imediatos da rede a que pertence. Em primeiro lugar, porque não tem como negá-los, a não ser por força de grande abstração. Em segundo, porque uma relação política é tão melhor quanto mais concreta for. Desse modo, o cosmonoopolismo é a virtude de não se alienar do que mais proximamente importa: as relações concretas e evidentes entre os indivíduos, e a deles todos com a vida.

Se Platão definia o “nous”, ou seja, a inteligência, como a parte racional e imortal da alma, e a política enquanto a arte de saber conduzir os homens, podemos tirar do pai da filosofia que a noopolítica, mistura virtuosa dos dois conceitos, seria a parte racional e imortal do espírito coletivo -que aliás só vem ao mundo em rede-, qual seja, o conhecimento humano, na excelente condução dessa coletividade humana.

O cosmopolita, porque equivale os terminais da rede mais distantes aos mais próximos, não é um bom artesão político. Sem cerimônia ou por inadvertência confunde ecos distantes com vozes próximas, deixando estas sem a devida atenção. O cosmonoopolita, em troca, politiza primeiro com os que imediatamente se relacionam com ele. E ciente de que esse é o conhecimento mais importante, tanto para ele quanto para os demais, encarna a melhor cidadania de todas.

Democracia em desencanto

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Diante do atual golpe de estado, o Brasil clama pela sua democracia furtada. Aparentemente, essa pecha parece ser a mais digna de ser empreendida diante do assalto oligárquico à “cracia do demos”, isto é, ao “governo do povo”. Entretanto, seria a democracia inquestionavelmente a nossa melhor opção? Sem essa resposta, nosso presente clamor corre o risco de ser um tiro no pé. Pior ainda, se a democracia com efeito não for a melhor forma de governo, outra coisa não estamos sendo senão massa de manobra a quem realmente esta forma de governo interessa, senão ao povo, que é a maioria, paradoxalmente às minorias.

Antes de atravessarmos esse aparente paradoxo envolvido na nossa democracia, vale relembrar que Aristóteles, na sua Política, disse que a democracia é, ao mesmo tempo, a pior das formas boas de governo, mas a melhor entre as más. Nossa contemporânea luta por ela parece se fixar somente nessa segunda definição. Agora, se atentássemos à primeira, é tácito que é uma burrice lutar por ela. A Aristóteles, portanto, a melhor pergunta que poderíamos fazer é: quais são então as boas formas de governo em relação às quais a democracia é a pior? Dessa resposta depende uma busca mais inteligente.

Para o filósofo grego, as boas formas de governo são a monarquia (o governo de um só em favor de todos); a aristocracia (o governo dos mais virtuosos em prol de todos); e a “politeia”, a parente virtuosa da democracia (o governo de muitos em benefício de todos). Já as más formas de governo, que na verdade são as degradações destas três, correspondem, respectivamente, a tirania (o governo de um só em função de interesses privados), a oligarquia (o governo de uns poucos em prol de si próprios) e a democracia propriamente dita (o governo do povo em função de si mesmo).

Com efeito, a democracia comparada com as duas outras formas degradadas de governo sustenta um verniz de virtude. Seu vício oculto, entretanto, é esclarecido por Aristóteles: a democracia “surgiu quando, devido ao fato de que todos são iguais em certo sentido, acreditou-se que todos fossem absolutamente iguais entre si”. Aplicando esse vício à realidade tupiniquim, se todos são absolutamente iguais entre si, e portanto todos merecedores de terem seus interesses contemplados, como conciliar, democrática e satisfatoriamente, um povo tão plural quanto antagônico, que em última e trágica instância, diante do golpe de estado, se separa em duas forças inconciliáveis, quais sejam: a liberal-oligárquica-fundamentalista, e a social-democrata-laica?

Não podemos deixar de considerar, portanto, que, democraticamente, uma pode, legitimamente, se impor contra a outra. E porventura não foi exatamente isso que aconteceu no Brasil com a minoritária elite oligárquica-fundamentalista do “PMSDB” (o Frankenstein formado pelo PMDB e o PSDB), que afastou do poder os majoritários 54 milhões de votos legítimos do governo do petista, legados a esse partido por conta dos 12 anos de governo prévio à reeleição Dilma que revolucionaram o conceito de povo, fazendo participar dele não só os homens velhos brancos ricos, mas também as mulheres, os jovens, os negros, os pobres, os LGBT, em suma, os historicamente excluídos sociais em geral?

O atual caso brasileiro é a prova de que a democracia é o meio de uma minoria -novamente, os homens velhos brancos ricos- se impor sobre a maioria. Mas isso não é novidade, pois no seu berço grego a democracia já era exclusivista. Dela participavam apenas indivíduos livres (não-escravos) do sexo masculino. Dos 300.000 habitantes de Atenas, somente 30 mil desfrutavam da democracia. Algo como 10% da população.

Na sua versão moderna-representativa-burguesa, que ainda é a nossa contemporânea, a democracia outrossim é para pouquíssimos, embora minta muito bem que é para a maioria. Considerando que, infelizmente, é o capital que com efeito melhor garante direito de participação ativa no governo de uma sociedade, –vide os astronômicos e lucrativos investimentos empresariais nas campanhas políticas-, e sem deixar de fora o fato de que quem financeiramente comanda o mundo composto por sete bilhões de indivíduos são mais ou menos trinta milhões de pessoas consideradas ricas, algo menos que 0,005% da população mundial, temos que a modernidade transformou a já contraditória democracia da Grécia antiga em algo profundamente mais desigualitário.

É esse o sistema de governo que estamos defendemos com unhas e dentes no Brasil diante do golpe, a democracia, esse ambiente político onde qualquer barbaridade pode ser viabilizada, bastando que uma minoria com potencial financeiro ideologize a maioria em função de seus interesses? Não nos esqueçamos de que foi a democracia que colocou Adolf Hitler no poder! E porque, democraticamente, o genocida alemão ideologizou eficaz e estrategicamente sua nação inteira, o extermínio da raça judaica passou a ser um projeto racional. Pior ainda, “o” projeto perfeito para salvar a Alemanha. A democracia nas mãos da burguesia consegue ser catastroficamente pior do que nas mãos da antiga aristocracia grega.

Agora, se não é pela democracia que devemos lutar, uma vez que ela é a forma de governo que concretamente privilegia a minoria já privilegiada, em qual forma de governo devemos investir coletivamente? Ora, se o PMDB e o PSDB, ambos com a palavra democracia nos seus nomes – o questionável “D” que os antepenultimalizam-, tiraram do poder justamente o governo petista cujo mérito inegável foi ter aproximado mais do que qualquer outro a maioria da população brasileira não só do conceito de povo brasileiro, como também e principalmente do governo do Brasil, ser antidemocrático, nessa conjuntura, é lutar pelo interesse da maioria, do povo de verdade. Tarefa aparentemente paradoxal, contudo, uma vez que até mesmo o PT golpeado defende a democracia.

Entretanto, retomando Aristóteles, e concebendo a democracia enquanto a pior das melhores formas de governo, e isso comparativamente à monarquia e à aristocracia, seria investir em uma dessas duas a coisa mais racional a se fazer no Brasil? O problema é esses conceitos estão viciadíssimos. A monarquia jaz atrelada à moderna ideia de um rei absolutista que prefere construir palácios espetaculares para si mesmo em vez de pensar no bem de seus súditos. E isso porque a confundimos com a tirania. E a aristocracia, o governo dos melhores, soa como se esses “melhores” se referisse à qualidades naturais de certos indivíduos. Outrossim a confundimos com a oligarquia (o governo de poucos). Não sabemos mais diferenciar as formas de governo em suas expressões virtuosas e viciosas.

O governo petista, cujos vícios políticos e econômicos são evidentes, ao menos tem a notória virtude de ter feito o melhor governo desse país, afinal, nenhum outro tirou 36 milhões de pessoas da pobreza extrema, 42 milhões da pobreza dita “normal”, levou saúde a 50 milhões que não a tinham, 7 milhões às universidades, só para citar as mais objetivas inclusões sociais dos últimos 14 anos, se não é democrático, sem a menor sombra de dúvida é aristocrático no que esse conceito tem de mais probo. Não, obviamente, que os “indivíduos petistas” sejam melhores que os dos outros partidos. Inegavelmente melhores, entretanto, são os resultados sociais dos governos do PT. Aí é que entra a virtude do conceito de aristocracia: o governo de um grupo cuja excelência é alcançar o melhor, não para si mesmos, obviamente, mas, senão para todos, ao menos para a maioria absoluta.

No sentido de encontrarmos algo melhor que a democracia que vive na boca da elite golpista brazuka, resta, das boas formas de governo aristotélicas, a monarquia. Lula, por sua vez, não seria o bom governo encarnado em uma única pessoa, uma vez que fez mais e melhor por todos se o compararmos a todos os presidentes que oi precederam? Podemos dizer que sim na medida que tirano ele não foi, isto é, não governou para interesses privados. Afora os assaz classe média tríplex de Guarujá e sítio de Atibaia, que dizem ser as suas “conquistas” pessoais indevidas, mas que até aqui não há prova de que sejam de fato seus, Lula não governou para enriquecer-se, como a maioria dos representantes declaradamente democratas que deram o golpe no Brasil.

Tudo isso para dizer que, baseados, de um lado, nas formas mais virtuosas de governo identificadas por Aristóteles há mais de vinte séculos, e, de outro, na atual conjuntura brasileira, na qual partidos democratas roubaram o poder para si, há formas de governo melhores pelas quais lutar nesse momento crísico que não a democracia. Seja o governo de alguns melhores, uma aristocracia, seja o de um homem só, a monarquia, todavia em suas saúdes aristotélicas plenas, isto é, não corrompidas em tirania e oligarquia, respectivamente, se servirem de fato à maioria, quiçá a todos, são muito mais dignos de serem buscados por nós, o povo, do que a democracia, que, se literalmente significa “governo do povo”, pragmaticamente tem significado o contrário.

Seja na Grécia antiga, naquela democracia direta-oligárquica, seja hoje em dia, na nossa democracia representativa-burguesa, em ambos os casos temos que esta forma de governo é feita para poucos governarem a maioria em função de seus interesses privados. 10% antigamente, 0,005% atualmente, são as parcelas da população beneficiadas pela democracia ao longo do tempo. E se hoje compramos massivamente a pecha da “restauração da democracia brasileira”, outra coisa não estamos fazendo que lutar por uma forma de governo que, historicamente, vem reduzindo a centralidade dessa mesma massa, isto é, do povo, na governança que deveria ser para todos, mas que apenas mentirosamente sobrevive na palavra democracia.

Se, conforme Aristóteles, das melhores formas de governo a democracia é a pior, ainda que das piores seja a melhor, seguir batendo nessa tecla democrática -tecla com a qual aliás a minoria mais bate na maioria do que o contrário-, é ou burrice, ou masoquismo. Inteligência seria lutarmos pelas formas mais virtuosas definidas pelo maior gênio da história da humanidade: a aristocracia ou a monarquia; seja em forma de partidos políticos socialistas, seja em forma de um rei político e carismático ao bom estilo Lula, pois mediante tais governanças certamente o “todos” ao qual as virtuoses políticas aristotélicas necessariamente se referem não será alienado em função de poucos ou de um só.

Para tanto, precisamos desencantar a democracia, superá-la, e finalmente aceitarmos o que a filosofia política de Aristóteles diz há mais de vinte séculos. Senão para nos livrarmos da ambiência próxima da tirania e da oligarquia e nos aproximarmos de formas mais virtuosas tais como a aristocracia e a monarquia, o que já seria um avanço, ao menos, e com sorte, para introduzirmos no presente a velha, porém alienígena para nós, “politeia” grega, a melhor das melhores formas de todos serem governados

Homens são políticos; mulheres, cosmopolíticas.

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Imagem: Rosie Tasman Napurrurla

Lugar de mulher é na política? A resposta a essa pergunta é desafiadoramente afirmativa na contemporaneidade. Entretanto, ao longo da história, a coisa foi bem diferente. Desde o seu surgimento, na Grécia antiga, a política sempre foi coisa de homem. E se hoje a política não mais é exclusividade masculina, temos aí a prova material de que as mulheres tem plena capacidade para revolucionar a realidade. Não à toa, atualmente, metade do governo do Canadá é composto por mulheres. Sem se intimidar com o peso fálico do passado, o primeiro ministro canadense, Justin Trudeau, tem orgulho em dizer que no seu país é assim “porque estamos no século XXI”.

Etimologicamente, política vem de “pólis”, que em grego significa cidade. “Polites”, portanto, era o indivíduo que constituía a “pólis”. Não obstante, naquela época, somente os homens –brancos, livres e gregos- tinham o direito de ser “politikos”. E isso porque, como o poeta Hesíodo (750-650 a.C.) fez entender, o surgimento da política no mundo grego fundamentou-se nos ideais de homens e filósofos (atividade que também era exclusivamente masculina).

Antes da “pólis”, todavia, a vida se dava em núcleos familiares, os “genos” (daí genética), que outrossim eram comandados apenas por homens. Não é preciso dizer que nessa organização social ancestral a condição da mulher era igualmente restrita. A elas restava apenas seguir subservientemente os desígnios despóticos dos “seus homens”, os “despótes” (em grego: senhor, mestre). E ser um déspota significava impor, sem escapatória, suas vontades aos demais, principalmente à mulheres, independentemente da consistência ou da compreensibilidade dessas vontades. Autoritarismo puro que, entretanto, só não deve ser chamado de machismo por conta da extemporaneidade desse conceito –moderno- em relação aos gregos antigos.

A transformação do “despótes” em “polites”, isto é, do déspota em político, não significou a abertura de espaço social efetivo algum às mulheres gregas. Todavia, foi um primeiro passo no sentido de reduzir o abismo que separava os sexos. Como? Ora, mesmo permanecendo despóticos na esfera doméstica, os homens, no exercício político, tinham o desafio de lidar com a alteridade -ainda que esses “outros” fossem somente homens. Com a política, o homem teve de aprender outra maneira de fazer valer as suas vontades que não pela força física nem por misticismo algum, fundamentos do despotismo. E o “polités”, ao regressar ao mundo doméstico no qual era “despótes”, não tinha como evitar trazer consigo a ideia de que sua vontade pessoal não era universal.

Aqui cabe a pergunta: por que os homens investiram em uma organização social, a “pólis”, e em uma maneira de organizá-la, a política, se nessa esfera eles desfrutavam de menor poder do que nos “genos”? Marx diria que foi o preço a ser pago para eles e suas famílias subsistirem materialmente. Idealistas dão outras razões. A indefinição da resposta, contudo, não nos priva de enxergar na política o exercício masculino de redução de seu poder absoluto, despótico. É como se na assembleia política, ainda que inadvertidamente, o homem experimentasse, um pouco que seja, a impotência de qualquer mulher diante de qualquer homem; o gosto amargo de ter de calar diante da força de um outro homem, coisa que o déspota, no seu reino genético, nunca teve de fazer.

Todavia, o fato de a ágora política ser o espaço no qual os homens não mais podiam ser despóticos -para um macho uma ferida- pode muito bem ter convertido essa nova experiência masculina de não-potência absoluta em mais opressão doméstica contra as mulheres. Não à toa, na decadência da política grega, séculos depois de seu surgimento, Aristóteles ainda sustenta que as mulheres estavam mais próximas dos escravos e dos cachorros do que dos homens. A política, no seu nascimento grego, portanto, foi apenas um movimento masculino mediante o qual os próprios homens reconheceram, uns perante os outros, que, na cidade, nenhum deles era nem podia ser despótico.

E a política seguiu como um playground estritamente masculino por séculos. Levou mais de dois mil anos para que as mulheres pudessem fazer política ao lado dos homens, todavia com um poder mais simbólico que efetivo. Não é mistério para ninguém que até hoje em dia -e o Brasil golpeado é um exemplo disso- as maiores decisões políticas ainda são sistematicamente sequestradas pelos homens. Tanto que em pleno século XXI ainda causa certo espanto em muita gente metade de um governo, o do Canadá, ser composto por mulheres.

Dizer que “lugar de mulher é na política” é verdadeiro apenas parcialmente, pois o gene grego da política ainda insiste em fazer dela um exercício masculino de relativização do poder dos próprios homens diante de si mesmos. Se o “lugar da mulher é na política”, o é apenas para revolucioná-la, para fazer a política deixar de ser o que é: um reduto resistentemente masculino. Levando ao extremo, obrigar às mulheres somente ao espaço político criado pelos homens é como querer que a elas tenham um espaço confortável dentro do machismo.

Com efeito, as mulheres têm direito, dever e capacidade para compartilharem o comando da nau da realidade ao lado dos homens. A ideia aqui, entretanto, é justamente a de fazer pensar se na esfera política como a conhecemos –esse ambiente viciado, criado pelos homens e para eles mesmos- as mulheres não permaneceriam lutando ingloriamente em terra inimiga. Ora, se a política de fato foi a “brincadeira” masculina na qual o todo-poderoso déspota doméstico viu o seu poder ser confrontado e reduzido, fazer essa mesma política só levará as mulheres a experimentarem mais do mesmo, isto é, a limitação do seu poder, justamente o contrário do que a atual “jihad” contra o machismo exige.

As mulheres precisam de práticas e ambientes deliberativos que lhes empoderem. O saneamento do abismo entre os sexos, despoticamente criado e encimado pelos homens, não se dará através da velha cartilha política criada por eles e mantida em suas mãos por milênios. À mulher é fundamental um espaço político outro que não o criado pelos homens; um ambiente para além da política no qual nunca entre em discussão a presença e a pertinência da mulher no comando da vida coletiva; um lugar no qual a alteridade que a mulher sempre foi em relação aos homens esteja desde sempre na essência, pois só assim o jogo despótico masculino não terá como excluí-la despoticamente, como aconteceu recentemente com a presidenta Dilma Rousseff.

Qual seria então esse espaço ainda político, mas essencialmente além-político, no qual as mulheres estarão finalmente livres do despotismo masculino? Se a política é o velho e resistente “clubinho dos garotos”, a nova forma de organização social da qual as mulheres serão inalienavelmente partes essenciais merece outro nome, ou ao menos a modificação desse. Ora, se a palavra grega “cosmos” designa o universo em seu conjunto, a estrutura universal em sua totalidade, “o lugar da mulher” deve ser na cosmopolítica, uma política que não deixa nenhuma parte do todo social de fora da manutenção desse todo. Não há dúvida de que a presença efetiva da mulher nas deliberações sociais explode a velha e viciada roda política masculina. Mais ainda, inaugura um círculo virtuoso do tamanho da humanidade. Às mulheres, portanto, a cosmopolítica.

Lógica do golpe / lógica do estupro

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A primeira mulher eleita presidente do Brasil sofreu um golpe branco. Em bom português, um golpe baixo. Afastada do seu cargo devido à práticas financeiras as mais corriqueiras, cometidas fartamente inclusive por aqueles que a afastaram, Dilma Rousseff se diz vítima de violência e injustiça brutais. Como, porém, violência e injustiça contra as mulheres ainda são coisas assaz naturalizadas na nossa brutal sociedade, o país seguiu adiante como se Dilma fosse apenas mais uma histérica a reclamar indevidamente da vida; da vida “como ela é”; e como muitos ainda insistem, como ela deve ser. Não à toa o jornal britânico The Guardian ressaltou em manchete que “Machismo e rancor da direita pesaram em queda de Dilma”.

Metaforicamente podemos dizer que Dilma foi estuprada jurídica e politicamente pelos “falos golpistas” que a cercavam, muito embora a definição estrita de estupro seja: crime que consiste no constrangimento a relações sexuais por meio de violência. Essa definição, todavia, não generaliza quem comete nem quem sofre o estupro. Entretanto, se considerarmos a misoginia institucionalizada que impera no Brasil – e de forma geral no ocidente pelo menos desde a Grécia antiga-, temos que as mulheres sempre foram as maiores vítimas do estupro, e os homens, seus grandes algozes. Tanto que a filósofa Marcia Tiburi, no ensaio “Como conversar com um fascista”, pôde dizer categoricamente que “na lógica perversa do estupro, ‘ser mulher’ é condição ontológica passível de estupro”.

Dilma, ainda que não tenha sido estuprada stricto sensu no golpe político que sofreu, como ela mesma disse, foi “vítima de uma violência brutal”, e ademais cometida por uma cambada de homens para os quais o poder deve ser deles somente. Para pensarmos a violência da qual Dilma não foi poupada, considerando que foi maior pelo fato de ela ser mulher, doravante trataremos o golpe como se estupro fosse. E para penetrarmos mais fundo nessa violência misógino-política que vitimou a presidenta vale atentar à “lógica do estupro” ensaiada por Tiburi, segundo a qual “a vítima – uma mulher – não tem saída: de qualquer modo ela será condenada quando, de antemão e sem análise, ela já foi julgada.”

Dilma foi acusada por “pedaladas fiscais”, algo que seus acusadores – homens – praticam corriqueiramente. Primeira injustiça: homens podem “pedalar” fiscalmente, uma mulher, não. E de nada adiantou Dilma defender-se dizendo que os homens que a acusavam faziam o mesmo; que para eles não era nem nunca foi crime o que para ela estava sendo. Por que, analogicamente, isso representa um estupro? Ora, porque, segundo Tiburi, “o estupro é o ato em que a outra – a estuprada – não tem nenhuma chance de defesa porque a priori está condenada”. Com efeito, Dilma estava condenada ao afastamento independentemente do que dissesse ou provasse. Os “machos golpistas” apenas queriam que ela caísse fora. E conseguiram.

Agora os “golpistas estupradores” estão presidindo despótica e odiosamente o país, e o que é pior, sem nenhuma mulher por perto. Eis o absurdo: um ministério sem nenhuma presença feminina em pleno século XXI. Violência universalizada contra a mulher. Mas não só contra elas. Também de fora do governo golpista estão negros, gays, índios, e qualquer um que não seja homem, branco, rico e evangélico. Tiburi tem toda razão ao afirmar – todavia parafraseando Aristóteles em relação ao ser – que “o ódio ao outro se diz de muitas maneiras” Porém, segue a filósofa, “as mulheres sempre foram vítimas especiais desse ódio”.

Se, na lógica do estupro de Tiburi, “o estuprador é aquele que se vê tendo um estranho ‘direito ao estupro’ … Ele só pode pensar assim porque é uma personalidade autoritária, que, como tal, não tem capacidade de ver o ‘outro’”, na lógica do golpe contra Dilma, os golpistas são os que se veem tendo um estranho “direito ao golpe”. E eles pensam assim porque são personalidades autoritárias, que, outrossim, não tem condições de ver o “outro”. No caso, as mulheres – mas também os negros, os pobres, os gays, os índios etc.

E por que os “golpistas estupradores” de Dilma gozam de tamanhas liberdade e ela não? Segundo Tiburi, na lógica do estupro é a vítima – a mulher – que é sempre questionada. Na lógica do golpe contra Dilma, portanto, foi somente ela que foi questionada, e por uma corja de machos que há muito mais tempo que ela habita a mesma questão, sem, contudo, ser confrontada com ela. E assim podem agir porque “o criminoso [o homem] não é questionado, porque ele é homem e, segundo a lógica do estupro, não se objetifica o homem”, completa a filósofa. Já a mulher é o ser que os homens – mas também a sociedade – primeiramente transformam em objeto útil.

E no Brasil o abismo entre a inquestionabilidade masculina e a a priori suspeição feminina é mais dramático ainda, país subdesenvolvido que ainda somos. Assim como, nas palavras de Tiburi, “o status da mentalidade brasileira relativamente à questão do estupro define a vítima como culpada”, na lógica do atual golpe de estado o status da mentalidade golpista definiu Dilma como culpada por algo que, no entanto, aqueles que a culpam são tão ou mais culpados que ela. E isso porque, diz-nos a filósofa, “pela lógica do estupro pensa-se mais no “erro” da vítima do que no “erro” do criminoso”

Tiburi segue dizendo que na lógica do estupro “é como se a vítima fosse culpada por não ter escapado … por não ter desaparecido antes”. Na lógica do golpe tupiniquim, com efeito, os golpistas, antes de vestirem essa sórdida carapuça, bem que tentaram fazer com que Dilma renunciasse; que desaparecesse da cena política da qual eles pensam serem os donos exclusivos. Mas ela resistiu. E, segundo a lógica golpista, Dilma só fez por merecer ser afastada, “estuprada”, por ter peitado os déspotas da oligarquia política tupiniquiim. “O estuprador, autoritário e irresponsável, reivindica a supremacia masculina na qual ele se compraz. Ainda vivemos na idade Média”, conclui Tiburi.

Os “golpistas estupradores” da presidenta conseguiram culpá-la e afastá-la, para então gozarem de uma anacrônica e inacreditável liberdade, porque já na lógica do golpe/estupro que ainda subjaz na mentalidade machista brasileira o golpista/estuprador projeta sua culpa nas suas vítimas para só então poder gozar. Entretanto, esclarece Tiburi, “um estuprador não consegue isso sozinho. Ele precisa do apoio de muita gente. De uma sociedade inteira” aliás. Aqui é impossível não lembrar das hordas de paneleiros que gritaram “fora Dilma” nas ruas, dos 367 deputados que disseram “tchau querida” na votação na câmara federal, e dos 55 senadores que, um pouco mais sóbrios, mas nem por isso menos machistas, admitiram o processo de impeachment contra Dilma.

Sim, a nossa sociedade é tão culpada pela lógica do estupro que vitima milhares de mulheres brasileiras quanto pela lógica do golpe que injustamente vitimou Dilma, a despeito mesmo de sua honestidade e dos 54.501.118 de cidadãos que a elegeram presidenta. E essas vis lógicas são tão naturalizadas que mesmo depois da tremenda violência imputada contra Dilma o sórdido e imediato gozo do criminoso governo Temer foi governar sem mulher alguma por perto.

Confrontados com esse abominável machismo, os golpistas bem que tentaram se desvencilhar do estupro político que foi não darem espaço algum no governo deles para uma mulher sequer – a não ser, obviamente, para a jovem, “bela, recatada e do lar” esposa de Temer. Porém, como estupro e golpe são crimes sim para além da “macholândia” golpista, os criminosos “estupradores”, bem representados pelo Chefão do DEM, o senador José Agripino Maia, não escaparam de ouvir da jornalista Mariana Godoy a alfinetada: “não tem mulher no governo Temer porque não tem mulher precisando de foro privilegiado”. Contra essa verdade, que talvez só uma mulher pudesse perceber e afirmar, mais violência. Agripino então disse: “boa piada”. Ou seja, mulher, quando fala a verdade para um homem, é chamada de palhaça.

 

Contra o golpe, qual o melhor afeto?

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Tristeza é o sentimento confesso de grande parte dos brasileiros diante do golpe de estado dado pelo “PMSDB” (o Frankenstein antidemocrático formado pelo PMDB e pelo PSDB). Tristeza maior, todavia, é que seja justamente tristeza o afeto mais afirmado em resposta ao golpe. Sentir outra coisa porventura é possível nesse momento? Como não estarmos tristes perante tamanho assalto? Mais ainda, poderia a alegria ser de alguma serventia contra os golpistas? Baruch Spinoza, o filósofo dos afetos, pode mostrar que sim, e como.

Para Spinoza, a tristeza seria um afeto inútil no enfrentamento do golpe tupiniquim porque ela outra coisa não é senão a passagem de um estado de potência maior para um menor. Ou seja, quanto mais tristes estamos, menos potentes somos. A tristeza, portanto, é o afeto que nos fragiliza ainda mais frente ao que já nos fragilizou. Os brazukas que desejam dar cabo dessa até aqui venturosa empreitada da oligarquia política tupiniquim devem cultivar outro afeto, pois, tristes, menos podem contra a besta “peemeessedebista”. Qual seria, entretanto, este outro afeto?

Desprezo? Spinoza diria que não, pois este afeto nos leva a imaginar mais o que a coisa desprezada não tem do que aquilo que ela tem. Quando desprezamos algo, portanto, lidamos mais com inimigos imaginários do que com o verdadeiro e real. Temer e sua tropa golpista agradeceriam que os desprezássemos apenas, pois assim permaneceríamos ocupados com a nossa ignorância, e quanto mais ignorantes, mais vulneráveis.

E o ódio aos golpistas, substituiria melhor a tristeza? Também não, uma vez que para o filósofo dos afetos o ódio outra coisa não é que uma tristeza que aponta uma causa externa. Ao odiar ainda permanecemos tristes, consequentemente menos potentes, e o que é pior, tornamos transcendente, isto é, absolutamente separado de nós a causa da nossa tristeza. E sem poder afetá-la, não temos como vencê-la. O ódio, viciosamente, só aumenta a nossa impotência.

Indignados seriamos mais potentes contra a elite golpista? Infelizmente não. Spinoza diz que a indignação é o ódio por alguém que fez mal a um outro. Aqui temos dois problemas. Primeiro, sendo ódio, a indignação ainda assim é uma tristeza, ou seja, uma forma de impotência. Segundo, em se tratando de um golpe de estado, isto é, de algo que afeta a todos simultaneamente, afetarmo-nos pela ideia de que esse mal foi causado a um outro é ignorar que esse mal nos afeta igualmente. E ignorância definitivamente não é a melhor arma.

Vergonha também não é um afeto que aumenta nossa potência contra os golpistas nem diminui a potência deles, uma vez que, para Spinoza, a vergonha ainda é uma tristeza, e além do mais, acompanhada da ideia de que alguma ação nossa foi desaprovada pelos outros. Ora, o afeto que devemos cultivar diante dos golpistas para que eles não sejam mais potentes que do nós é um que reforce que a ação imprópria, condenável, foi cometida por eles, e desaprovada por nós! Do contrário, culparíamos a nós mesmos, cidadãos golpeados, pelo ato dos golpistas.

A vingança, que por ódio nos leva a fazer mal a quem nos causou algum dano, e a ira, que nos leva a fazer mal a quem odiamos -ambos afetos que parecem cair muito melhor ao revolucionário do que a tristeza-, também não seriam indicados por Spinoza para nos tornarmos mais potentes do que a elite golpista que negativamente nos afeta. Sendo espécies distintas de ódio, vingança e ira ainda assim são formas de tristeza. No fim das contas, de impotência.

Podemos ainda ser afetados pelo temor, pavor, aversão, escárnio, decepção, sevícia etc., porém, são todos formas diversas de tristeza. Nada nos ajudam nesse momento no qual precisamos aumentar a nossa potência contra os golpistas oligarcas. Com efeito, nenhuma espécie de tristeza serve ao brasileiros golpeados

Em oposição à tristeza, Spinoza coloca a alegria: a passagem de um estado de potência menor a um maior. Alegres, portanto, nos fortalecemos. O problema é conseguir ser afetado de alegria diante de um golpe de estado… Dita simplesmente, alegria pode parecer abstrata demais para encontrar lugar na angusta realidade brasileira. Porém, assim como a tristeza é bem mais palpável para nós em forma de desprezo, ódio, indignação, vergonha, vingança, ira etc., a alegria outrossim tem suas expressões mais concretas, tais como: a admiração, a segurança, o reconhecimento, a satisfação etc.

No rol das alegrias spinozanas temos ainda a esperança. Para o filósofo, entretanto, trata-se de uma alegria instável, pois acerca de algo, passado ou futuro, de cuja realização não temos como ter certeza. Pseudo alegria, a esperança, como o desprezo, nos mantém atentos mais à nossa imaginação do que à realidade. Nutrir esperança de que venceremos os golpistas, portanto, é deixar o real para eles enquanto permanecemos no mundo dos nossos sonhos. Categoricamente, Spinoza diz que a esperança é o refúgio da ignorância. Por isso é uma péssima arma na guerra contra o golpe.

Agora, se quisermos ser efetivamente potentes contra os golpistas, devemos ter em mente que, para Spinoza, a mais virtuosa forma de alegria, portanto de potencialização, é o amor. Nas palavras do filósofo, “o amor é uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior”. Dito de outro modo, o amor é a passagem de um estado de potência menor a um maior do qual, no entanto, pensamos não ser os responsáveis. Amando, o aumento de nossa potência parece vir de fora, como se fosse uma dádiva. E como não temos consciência de que somos nós que o produzimos, mas algo externo, tampouco sabemos como parar essa afetação. Eis a virtuose do amor.

De modo algum estamos falando aqui do amor cristão, aquele que se é obrigado a cultivar aqui na terra para que se tenha direito à eternidade celeste. Aos golpistas, obviamente, ninguém deve oferecer a outra face ao tapa. O amor spinozano não visa futuro transcendente algum, mas, ao contrário, recuperar, presentemente, a imanência perdida entre parte e todo. E no caso do golpe brasileiro, o amor deve recuperar a harmonia rompida entre o cidadão e o seu Estado.

Como, então, vencer a adversidade do golpe com o amor? De que causa externa devemos ter ideia para que seja aumentada a nossa própria potência no sentido de não sermos afetados negativamente pela potência dos golpistas? Mais ainda, que ideia deve nos acompanhar para que sejamos mais potentes que os golpistas; para que os vençamos definitivamente? Obviamente não é a ideia do golpe ela mesma, visto que apenas nos causa a pá de tristezas que vimos anteriormente, e que estas apenas nos tornam mais impotentes.

Portanto, se em Spinoza o amor recupera melhor do que qualquer outro afeto a perfeita ordem entre parte e todo, na luta contra o golpe, que é a recuperação da ordem entre o cidadão e o seu Estado, o nosso amor deve ter um objeto definido. Considerando que o Estado brasileiro é composto por 200 milhões de outros cidadãos, e que estes também são vítimas do mesmo golpe, tenham consciência disso ou não, é a eles que devemos amar, isto é, tê-los enquanto a ideia externa que acompanha uma alegria potencializadora em nós mesmos.

Assim, fazendo com que estes outros milhões de cidadãos golpeados sejam a causa, não de uma imensa tristeza, raiva, ódio ou indignação, mas de uma alegria suprema em nós mesmos –como nas vezes nas quais nos alegramos por haver “o povo brasileiro”-, enfim, quando conseguimos amar o todo-povo é que a parte-cidadão que cada um de nós é adquire potência e virtude suficientes para lutar contra o inimigo comum sem se entristecer, ou seja, sem se despotencializar inadvertidamente.

Em suma, não é porque os golpistas afetam negativamente a mim, particularmente, que devo lutar contra eles. Meu desagrado privado é assaz impotente contra inimigos públicos. Em troca, é porque o golpe de estado do “PMSDB” afeta negativamente todas as demais partes-cidadãs do meu país que eu, uma dentre elas, devo lutar contra os oligarcas golpistas. Afinal, só no dia em que todos os cidadãos brasileiros estiverem finalmente livres desse inimigo é que eu também estarei. Virtuose absoluta, obviamente, é quando todas as partes agem assim, e em função da alegria do todo, pois quando o todo está alegre, potente, cada parte não tem como  não estar. Contra o golpe, portanto, amor ao povo golpeado.

 

Dois projetos de sociedade, dois logotipos

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Um governo é um projeto de sociedade. E a “cara” desse governo está em todo e cada ato dele, inclusive na publicidade que o inaugura. O logotipo-lema com o qual um governo se apresenta à sociedade já diz quem ele é e com quem deseja falar. Nesse momento brasileiro de transição de governos, somos apresentados ao logotipo-lema do governo -de exceção, golpista- de Michel Temer, que ilegitimamente afastou o governo Dilma Rousseff, que outrossim iniciou seu governo com seu logotipo-lema próprio. Então, vale analisar a primeira “cara” com que cada um deles se apresentou à sociedade brasileira, suas logo-lemas inaugurais, pois já aí podemos ver o que está e o que não mais está em jogo na mudança de projeto de sociedade que golpe o tupiniquim inaugura.

Como a proposta aqui é analisar o que simbolizam os logotipos de apresentação dos governos Dilma e Temer, estaremos no terreno da semiótica, ciência dupla que estuda os símbolos relacionando a “forma” com o “conteúdo”. Em outras palavras, a relação do “o que é mostrado” com o “o que se quer mostrar”. Para tanto, vale dedicar um instante estético à imagem que ilustra esse texto, que traz os dois logotipos em questão. Na parte superior da imagem, o logo-lema com o qual o governo Dilma se apresentou à sociedade. Na inferior, o do governo Temer. Para simplificar a leitura, doravante serão usadas as expressões “logo Dilma” e “logo Temer” para falar dos logotipos-lemas inaugurais dos dois governos.

Em primeiro lugar, chama a atenção a oposição entre a policromia do logo Dilma e a proposta monocrômica do logo Temer. Ora, do Brasil é dito que é uma país de muitas raças, crenças, credos. Simbolicamente, de muitas cores. Já aqui podemos ver que o logo Dilma se preocupou em contemplar essa diversidade. O logo Temer, por sua vez, elegendo prioritariamente o branco e o azul , não tem intenção alguma de ressaltar a pluralidade que vive na nossa terra. Como não lembrar aqui do velho mito desigualitário do sangue azul dos brancos ricos aristocratas? A palheta de cores através a qual um governo se apresenta, portanto, já é um filtro, crômico, que informa semioticamente com quem e para quem está falando. Dos dois logos, o de Dilma, obviamente, é bem mais democrático.

Em segundo lugar, temos a distância entre a proposta naif do logo Dilma e o tecnicismo “corelDRAW” do logo Temer. Naif, que em francês significa ingênuo, no mundo da arte fala de uma produção alheia ao academicismo tradicional e se caracteriza, digamos assim, pela simplicidade popular. O logo Dilma traz a ideia de que, senão é feito à mão, ao menos poderia sê-lo, e por qualquer um. A irregularidade do desenho da bandeira brasileira no centro do logo Dilma diz que o Brasil também é o que até mesmo uma criança consegue desenhar. Em contraste, o design assaz digitalizado do logo Temer, com sua esfera e estrelas perfeitas e dispostas em função de uma rígida simetria, é coisa que somente um já iniciado e já equipado tem condições de produzir. Agora, infelizmente, o “logotipus brasilis” fala mais de meritocracia do que de democracia.

Em terceiro lugar, se pensarmos em que nível os dois logotipos pressupõem os seus observadores, temos que o logo Dilma, por ser deliberadamente chapado no plano de apresentação, não se coloca nem acima nem abaixo de quem o vê. Tampouco propõe distorção de perspectiva, uma vez que para o “Brasil” ser efetivamente um “País de Todos” o lema não deve parecer outro em função da posição do observador. O logo Temer, em troca, coloca o “Brasil” e o “Governo Federal” vistos de baixo para cima e em dramática perspectiva, fazendo com que o observador nunca esteja à altura deles. E, pior ainda, para se estar em pé de igualdade com o Brasil de Temer a escalada é árdua.

Em quarto lugar, vemos que em oposição à garatuja de bandeira brasileira que “ingenuamente” compõe a letra “A” da palavra Brasil, o logo Temer mutila a bandeira Brasileira, trazendo somente o seu centro, a bola azul e as estrelas brancas, deixando claro que a bandeira nacional, com a riqueza e diversidade que ela representa, não tem mais lugar junto ao “BRASIL” e ao “GOVERNO FEDERAL” golpista. Mais ainda, que esse centro azul estrelado propositalmente alienado de sua periferia verde e amarela se coloca na frente do Brasil, gerando inclusive uma sombra sobre o nome do país. Vale ressaltar também que o logo Dilma dispensa a frase positivista “Ordem e Progresso”, enquanto que o logo Temer, com seus jogo de profundidades, coloca esse questionável positivismo em primeiríssimo plano.

Em quinto e último lugar, todavia deixando o plano semiótico e caindo no linguístico, não poderiam ficar de fora da presente análise os textos dos dois logotipos. Afora a presença de “Brasil” e de “Governo Federal”, comum aos dois, temos no logo Dilma a ideia de “um país de todos”, e no logo Temer, a de “ordem e progresso”. Um país historicamente estruturado na desigualdade -social, econômica, racial, de gênero- é revolucionado ao ser lematizado “de todos”, ao passo que, ressuscitando os velhos ordem e progresso o logo Temer apenas dá, de modo reacionário, continuidade à produção da desigualdade estrutural da qual o logo Dilma já pretendia se ver livre. Que ordem e que progresso são esses do logo Temer? Melhor dizendo, quem dita essa “ordem” e esse “progresso” que se coloca de modo vertical na já “cara” com que esse governo golpista se apresenta?

Em suma, o logo Dilma tem a virtude de contemplar a diversidade étnica e religiosa brasileira com suas muitas cores; o espírito popular livre de qualquer “academicismocentrismo” com a proposta naif; um país de todos com a horizontalidade com que esse lema é apresentado; e a liberdade em relação aos velhos dogmas com a eliminação dos positivistas ordem e progresso. Em contraste, o logo Temer é assaz vicioso ao contemplar os brancos de sangue azul com a eleição quase exclusiva dessas duas cores; o espirito meritocrático-tecnicista que melhor atende os Senhores do Liberalismo; o desnível social com a perspectivação do Brasil e do Governo Federal a ponto de todos estarem bem abaixo deles; e, por fim, a revivificação de velhos dogmas com a, digamos assim, “primeiro-planização” do “Ordem e Progresso”.

Mais triste do que ver o elitista logo Temer substituir o democrático Logo Dilma, no entanto, é saber que, em se tratando de propostas para o Brasil, a de Temer afastou a de Dilma. E com esse afastamento, a alienação, para fora da arena social -assim como para fora do logotipo golpista-, da diversidade étnica, do espírito popular, da horizontalidade social, e da possibilidade de seguirmos adiante livres de um lema importado do velho mundo por uma elite que outra coisa não quer senão que o passado “progrida” futuro adentro, segundo as suas “ordens”, sem pedágios sociais, e carregando consigo velhas desigualdades e privilégios. Mesmo substituído, que a ideia por trás do primeiro logotipo do governo Dilma ao menos permaneça viva como a memória de uma proposta de um novo Brasil, que, em 2016, entretanto, ainda pode ser afastada pelo velho Brasil.

 

O preço de ser mídia golpista

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A grande mídia brasileira é não só o arauto, mas também coprodutora do quase finalizado golpe tupiniquim de 2106. E o jornalismo da Rede Globo merece destaque nesse poderoso, ilegítimo e antidemocrático projeto para o Brasil. O alto preço dessa espécie de vitória dos “jornalistas” Globais, contudo, é que, após ter vendido sistematicamente o golpe, ao vivo em e em cadeia nacional, a emissora fica impossibilitada de voltar, melhor dizendo, de começar a fazer jornalismo de verdade.

Mesmo com Dilma Rousseff e o PT afastados, e os velhos Michel Temer e PMDB ocupando o poder, a Globo não tem como começar a reportar a realidade conforme ela se apresenta. Como falar da absurda ausência feminina no ministério golpista, da inacreditável eliminação do Ministério da Cultura, do impopularíssimo fim da valorização do salário mínimo e da austera redução das aposentadorias sem com isso dizer que foi justamente o golpe que ela ajudou a instalar o produtor dessa angusta distopia?

O que resta para o jornalismo da Rede Globo nessa, digamos assim, saia-justa é seguir sendo parcial, isto é, continuar manipulando o real até que ele se pareça com o ideal desejado. Novamente, isso significa não poder polemizar, quiçá condenar o machismo, o racismo, a homofobia, o elitismo e o vil liberalismo que estão no cerne da “Ponte para o futuro” golpista vendida espetacularmente pela emissora. Ou seja, a impossibilidade de fazer algo a que eles se propõem: jornalismo.

Será que a Rege Globo sabia que não tem como apenas alugar a alma ao diabo pelo tempo que o pecado for conveniente, para, em seguida, recuperá-la incólume? Ou a emissora aprenderá somente agora que ao Mal só se vende definitivamente o espírito; patrimonialista egoísta e irrecuperável que é o Capeta? De qualquer forma, estranha virtude essa a do Diabo de não permitir o fim dos seus contratos.

Não totalmente virtuosa porque a impossibilidade de deixar de produzir uma propaganda ideológica disfarçada de jornalismo outra coisa não é que a permanência da mentira onde poderia começar a haver o ideal objetivo do jornalismo: o aclaramento do real. Não totalmente viciosa, todavia, porquanto é bom que o mentiroso-criminoso não possa se alienar oportuna e estrategicamente de sua vil essência.

Não é mistério para ninguém que alma da Globo está com o Diabo desde o seu princípio, filha da ditadura iniciada em 1964 que é. No século XXI, entretanto, a empresa repactuou fortemente com a Besta. E um dos principais motivos desse bestial estreitamento de relação é que a concessão do Estado que permite à Globo ser o império midiático que é expira em 2018. São, portanto, os interesses imperialistas da empresa que estão em jogo.

Por isso é mister para a empresa que à época de repactuar a sua concessão haja um Estado tão avesso à verdade, à democracia e à descentralização da mídia quanto ela. E se a velha oligarquia derrotada na eleição presidencial de 2014 não for o Estado em 2018, a emissora terá de se curvar, um pouco que seja, ao projeto de Brasil um tanto mais democrático eleito diretamente por 54 milhões de cidadãos naquela mesma eleição. Era agora ou nunca mais o golpe da Globo!

Desde sempre contrária a governos verdadeiramente democráticos, a Globo, desde a redemocratização do Brasil, fez de Lula e do seu Partido dos Trabalhadores os seus espantalhos reacionários espetaculares. Quem não lembra da Global manipulação da realidade nas eleições presidenciais de 1989? Até o então diretor de programação da Globo, o Boni, admitiu publicamente que a emissora armou contra Lula para eleger Collor. Mea culpa que, entretanto, demorou 22 anos para acontecer.

O apoio irrestrito aos vinte anos de ditadura militar no Brasil; a assunção de Boni de que a Globo elegeu o presidente que ela queria em 1989; a atual colaboração no ilegítimo afastamento de uma presidenta democraticamente eleita em 2014 -só para citar os golpes mais espetaculares da emissora nos últimos 50 anos-; de um ponto de vista minimamente democrático são razões mais que suficientes, senão para cancelar, ao menos para rever duramente a concessão dada pelo Estado, diga-se de passagem, à empresa.

Só restava à Globo vender o que restava de sua fétida alma ao Diabo. E o plano parece estar dando certo. A vitoriosa investida da empresa contra Dilma e o PT, que no final das contas visa ninguém outro que o velho Lula e a sua histórica popularidade, é o projeto em curso da emissora para que na renovação de sua concessão, em 2108, o PMDB e PSDB sejam os Diabos com os quais ela renegociará. O Mal cobra fidelidade!

Poderosa, mais forte do que 54 milhões de cidadãos juntos, a Globo mais uma vez coloca no poder quem que mais lhe interessa. Passivo, o povo brasileiro assiste em cadeia nacional à emissora realizando seus desígnios particulares. Tal vitória, entretanto, é um lento tiro-no-pé, pois na mesma telinha poderosa podemos assistir à Globo cada vez mais impossibilitada de tratar do real: “jornalistas” mulheres sem poder criticar o machismo do golpe que ajudaram a construir; “economistas” sem poder avaliar os danos do projeto econômico do governo Temer que viabilizaram; “comentadores” de cultura sem poder dizer do absurdo do fim de um Ministério da Cultura; e por aí vai.

Pelo andar da carroça brasilis, em 2018 a Globo ainda não precisará se confrontar com as cada vez mais tácitas contradições nas quais o seu projeto imperialista a coloca. Contudo, se restar alguma coisa de democracia no Brasil, chegará o dia em que o Estado, melhor dizendo, os cidadãos que o constituem, não renovarão a concessão de uma empresa que trata apenas de si mesma e não da realidade comum. Para isso, todavia, precisamos ao menos manter viva a utopia de um mundo no qual 54 milhões de votos tenham mais poder do que uma dúzia de falsos jornalistas.

Tiraram Dilma para Cristo

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Foto: Lula Marques / Fotos Públicas

“Honesta, Dilma pode ser afastada por criminosos”, dizia o The new York times em 13 de abril de 2016. E foi! Um mês depois da manchete do jornal americano, em 13 de maio, a presidenta democraticamente eleita pelo voto direto de 54.501.118 de cidadãos brasileiros está afastada. Nem foi difícil. Bastaram precisos 422 votos golpistas -367 de deputados federais e 55 de senadores da república- para anular os mais de 54 milhões de votos com os quais Dilma se elegeu. Os vitoriosos votos golpistas são pouquíssimos, porém, temos de reconhecer, têm poder: o poder da velha oligarquia política-econômica tupiniquim.

A estratégia do golpe: ter transformado em crime uma prática corriqueira de governança, muito usada pelos golpistas aliás, seja em governos passados, seja nos atuais. Estamos falando de manobras fiscais, que, entretanto, na linguagem do golpe é chamada de “pedaladas fiscais”. Crime, obviamente, não para todos, muito menos para os próprios golpistas, mas apenas para Dilma. E para quê? Ora, para que eles, e somente eles, possam seguir “pedalando fiscalmente”, contudo, diferente de Dilma, é preciso frisar, contra os interesses populares.

Agora, sejamos sinceros: quem, cotidianamente, não comete espécie de “pedaladas fiscais” com suas finanças pessoais? O crédito, essência do mundo capitalista, é a “pedalada fiscal” legal e institucionalizada por excelência. A mais democrática aliás. E para que não seja crime, basta pagar em tempo o que se tomou a crédito. Para Dilma, entretanto, essa regra universal não deve funcionar. A presidente afastada, em 2015, fez manobras fiscais, isto é, pegou dinheiro de onde tinha, colocou onde não tinha, e, antes da conta vencer, pagou 72,4 bilhões de reais, saldo acumulado até dezembro de 2015. Mas…

Para a primeira mulher a governar o Brasil, contudo, é negado aquilo que nossos cartões de crédito e cheques especiais nos oferecem insidiosamente. Mais grave, a espetacular criminalização das manobras fiscais de Dilma é a magia política que não só oblitera o fato de que os criminosos golpistas que afastaram a presidenta sempre agiram da mesma forma, como também, e principalmente, purifica-os estrategicamente, para que, doravante, eles possam seguir manobrando o fisco brasilis do seu modo antidemocrático de sempre. Só que agora com o privilégio de um Cristo político espetacularizado, Dilma, que passa e incorporar simbolicamente os pecados deles.

Dilma, com efeito, foi transformada em espécie de Cristo. Pagou com a sua carne política os pecados fiscais de todos, não só os dos que vieram antes dela, mas também os de seus contemporâneos “pedaladores”. Assim como Jesus, que na cruz redimiu a humanidade da inobservância às leis e à existência de Deus, a crucificação política de Dilma outrossim redime os golpistas da velha inobservância às leis que os fazem ser quem são. Agora, a corrupta oligarquia política brasileira pode mentir a si mesma e ao povo brasileiro que está limpa, purificada justamente pelo banho de sangue com o qual inundou a arena política do país e mediante o qual afastou Dilma do lugar que a maioria dos cidadãos a colocaram.

Dilma Rousseff, crucificada e destituída, traz uma mensagem universal: pedaladas fiscais, na verdade, nunca foram, não são, nem serão crime. Basta ver os antecessores e os atuais crucificadores da presidenta afastada. Todavia, criptografado nessa antidemocrática mensagem está que tais manobras financeiras serão crimes sim, oportuna e pontualmente, para alguns bois-de-piranha simbólicos, senão para que a manada “pedalante” e golpista siga atravessando ilesa –pela tal “Ponte para o futuro”-  o mar de lama que ela mesma produz e onde se sente em casa.

Entretanto, se há uma verdade duramente aclarada com a “crucificação” de Dilma, é que, a despeito dos nossos ideais democráticos, no fim das contas governa quem tem mais poder, que, com efeito, no mundo capitalista, é quem tem mais dinheiro, e não mais votos. Essa é a intragável verdade à qual devemos atentar se quisermos que, no futuro, 422 votos oligarcas&golpistas não tenham mais poder que 54.501.118 votos cidadãos. Melhor dito, se realmente desejarmos viver em um verdadeira democracia, e não em uma oligarquia plena cujo apelido estratégico, não obstante, calhou de ser “democracia”. Até lá, infelizmente, Dilma e outros iguais a ela serão Cristos funcionais aos novos projetos da velha oligarquia brasileira.

54.501.118 + 1 golpes sob a “Ponte para o futuro”

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Foto: Roberto Stuckert Filho – Fotos Públicas

O novo golpe da velha oligarquia brasileira contra a presidenta democraticamente eleita, que, hoje, 12 de maio de 2016, afasta-a oficialmente do seu cargo por seis  meses, não faz de Dilma Rousseff a maior vítima desse momento farsesco. A atual senhora, que quando jovem foi torturada pela ditadura militar por lutar pela democracia, outro destino não terá senão a absolvição histórica. As maiores vítimas, na verdade, estão antes e depois dela: em uma ponta, os 54.501.118 de cidadãos que votaram em Dilma e no seu projeto de país, e, na outra, a própria democracia. Eu, cidadão brasileiro que votei em Dilma, não tenho como deixar de pensar e sentir que o golpe é contra mim.

Se em 2104 o meu voto nas políticas de distribuição de renda e de inclusão social foi vitorioso, e deveria ser respeitado até 2108, o impedimento desse projeto de país  por golpistas que pretendem fazer justamente o contrário é um atentado pessoal, no entanto nas vestes de uma manobra democrática. O pior de tudo é que, hoje, há no mínimo 54.501.118 vítimas como eu. E os algozes dessa violência são, de um lado, golpistas abstratos, tais como: o capital ele mesmo, a velha oligarquia brasileira, o PMDB, o PSDB; e, por outro, golpistas concretos, quais sejam: Michel Temer, Renan Calheiros, Eduardo Cunha, mais 367 deputados federais e 55 senadores que votaram pelo afastamento de Dilma.

Os oligarcas golpistas, essencialmente reacionários, ilegitimamente deram um golpa porque não mais suportaram a evolução pela qual passou o Brasil nos últimos 13 anos, desde que Lula e o PT chegaram ao poder. Acostumada com privilégios históricos, a elite tupiniquim finalmente conseguiu viciar a democracia a ponto de ela, paradoxalmente, ser capaz de dar cabo de incontestáveis virtuoses sociais, como por exemplo, a valorização do salário mínimo e a universalização do acesso ao ensino superior. O golpe encerra precisamente esse projeto de país: no lugar do melhor para a maioria, o melhor para quem sempre teve mais do que a maioria. Em suma, a retomada e a radicalização da desigualdade social que vinha sendo amenizada pelos governos petistas.

Intrigante é o nome do projeto que a elite reacionária e golpista quer para o Brasil: “Ponte para o futuro”. Só mesmo que não consegue transpor o passado em direção ao futuro com horizontalidade precisa de uma “ponte” entre estes dois. A metáfora da ponte é a assunção de que para os reacionários há um abismo a separá-los do futuro. E para não precisarem trilhar o desafiador presente em toda sua complexidade e diversidade, pulam-no mediante a construção de uma “ponte” que dá acesso privilegiado do passado ao futuro. O problema é que o presente é o chão não só dos quase 55 milhões de eleitores de Dilma, mas de 200 milhões de brasileiros que ficarão debaixo dessa ponte golpista vendo a elite desfilar vitoriosa a manutenção do seu velho modus operandi.

Desde a primavera brasileira de junho de 2013 muito de fala na tal crise de representatividade, que, entretanto, até aqui ainda figurava assaz abstrata. Agora, porém, ela se mostra mais concreta do que nunca, amargamente concreta aliás: centenas de representantes políticos democraticamente eleitos, com nomes, rostos e partidos bem definidos, que descaradamente representam não a manutenção dos interesses populares que os elegeram, mas apenas os seus interesses pessoais e partidários. O golpe representa espetacularmente a péssima qualidade da representatividade dos nossos políticos; um suspeito de tráfico internacional de droga, outro acusado de ser dono de contas ilícitas no exterior, e a maioria deles investigados por receberem propinas milionárias. Destruindo a democracia, os “representantes” golpistas constroem a “ponte” que os aliena da Lei que, não obstante, deveria valer para todos, indiscriminadamente.

“Corruptos querem depor uma presidenta honesta” é frase que corre desde a boca de Dilma às manchetes dos mais renomados jornais internacionais. Oxalá o teor dessa declaração não cesse de repercutir não só nesses seis meses de afastamento ilegítimo que a presidenta enfrenta, mas, principalmente, história adentro, sendo Dilma deposta definitivamente ou não. Que a injustiça que Dilma sofre hoje, que ela tem dignidade suficiente para declarar abertamente em alto e bom tom, de fato faça história. O futuro, que nunca precisou de ponte alguma para se conectar com presente, certamente agradecerá essa memória.

E o que é importante não esquecer é que Dilma está sendo tirada do poder para que a elite reacionária possa levar o passado adiante mediante a sua natimorta  “Ponte do futuro”. Todavia, afastada, Dilma em outro lugar não está que no cru chão do presente, desapoderada, certamente, porém, absolutamente horizontalizada com no mínimo os 54 milhões de cidadãos que a elegeram e que tiveram seus votos jogados no lixo pela farsa jurídico-política de algumas centenas de oligarcas golpistas. A “ponte” deles, mesmo que leve algo ao futuro, não tem como levar todos a esse destino. Ponte alguma permite que todos sigam lado a lado em direção ao outro lado; a estreiteza de qualquer ponte apenas coloca uns na frente dos restantes e outra coisa não faz senão permitir que somente uma minoria chegue primeiro onde todos temos direito de chegar simultaneamente: num futuro mais igualitário.

Novamente, só precisa de uma “Ponte para o futuro” quem não consegue caminhar pelo chão do presente. E só não consegue trilhar o presente quem não tem capacidade conviver com a horizontalidade da realidade, mas só com a verticalidade social que sobreleva uns poucos em relação à maioria. Sem dizer que quem erige uma ponte pode cobrar o pedágio que bem intender para quem quiser cruzá-la. Desse modo, estreitando o acesso ao futuro à largura de sua “ponte elitista”, os golpistas reservam o futuro para si, para que ele seja sempiternamente o velho passado que pretere a maioria das pessoas em benefício de uma minoria. E quando essa “Ponte para o futuro” estiver terminada, e o futuro for tal qual o velho passado oligárquico, aí sim o povo poderá chegar nele, entretanto, para estar subjugado às elites, como sempre. Eis a razão do golpe e dessa ilegítima “Ponte para o futuro”.

 

Hashtagtivismo: preguiça revolucionária?

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arte: Rafael Silva – imagem base: Banksy – publicdomainpicture

 

A experiência da vida-em-rede-social tenta, por todos os links, nos convencer de que tudo o que queremos e precisamos está à distância de um click, inclusive, pasmem, mudar o mundo. Porém, as desventuras éticas, políticas, econômicas, ecológicas, etc. desse mesmo mundo mostram que, em se tratando dele, o buraco é mais em baixo. Sua revolução não está disponível às pontas dos nossos cursores e nas poucas polegadas dos nossos smartphones. O que, entretanto, conseguimos tentando revolucionar a realidade por meio de cliques?

No Facebook, uma postagem que prometia a cassação de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos deputados do Brasil, dizia o seguinte: “Clique aqui para depor Cunha”. Ora, Cunha tem contra si não só a opinião pública, mas também, e há anos!, inúmeros crimes e suspeitas gravíssimas que, entretanto, em nada impediram a sua ascensão e permanência no poder. Pior ainda, ele está depondo Dilma, presidenta democraticamente eleita. Como crer que apenas “clicando aqui” tiraremos o poderoso Cunha de onde ele está? O deputado corrupto, ao contrário, parece se fortalecer com as ofensivas do exército de “clickinimigos” que tem.

Banalíssimo hoje em dia também é o uso das hashtags. Algumas letras e palavras se seguindo de um “jogo-da-velha”, e “tudojunto”, fazem com que anseios e descontentamentos individuais sejam imediatamente coletivizados e pareçam ter algum lugar e potência no mundo. Fala-se aqui de um “hashtagtivismo”, isto é, de um ativismo de hashtag! #occupywallstreet, #vempraruavem, #nãovaitergolpe, são alguns exemplos desse tipo de manifestação-rede-social que, virtualmente, convencem muitas pessoas de que estão engajadas em alguma mudança real.

Para entender melhor o que é o “hashtagtivismo” é preciso conhecer o seu pai, o “clicktivismo”, algo como “ativista de clique”, expressão cunhada para dizer daqueles que usam as redes sociais como forma de organização e protesto. Indo mais fundo, chegamos ao seu avô, o “slacktivismo”, termo criado em 1995 que significa “ativismo preguiçoso” (slack, em inglês, significa folga, preguiça). Compreendendo a “árvore genealógica” do nosso banal “hashtagtivismo” podemos concluir que ele descende da preguiça revolucionária.

Ainda contra o presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, podemos perceber a impotência das hashtags. O memético #ForaCunha que se enfileira nas timelines tupiniquins desde 2015 em nada impediu o corrupto indesejado não só de permanece até agora no seu cargo, como também, na sua empresa para depor uma presidenta democraticamente eleita, desmontar a própria democracia da qual, aliás, depende a pretensa potência do “hashtagtivismo”.

O que estaria por trás desse ativismo virtual em forma de “cliques preguiçosos” que pouco ou nada pode contra a tenacidade de seus inimigos reais? Seria a insuficiência das manifestações tradicionais, aquelas formadas pela presença física de manifestantes munidos de gritos de ordem, cartazes e faixas, nas ruas e praças públicas? Destas, contudo, temos de admitir que não têm mais como alcançarem seus objetivos sem o seu outro virtual, “clickico”, “hashtaguico”, uma vez que virtualidade e realidade cada vez menos se distinguem na contemporaneidade.  O buraco, porém, é mais embaixo do que se pode supor.

A filósofa Marilena Chaui, no Ato pela democracia, realizado em março de 2016 na PUC paulistana em decorrência da tentativa de golpe contra a presidenta Dilma, chega a dizer que sequer a presença física dos manifestantes nas ruas serve de alguma coisa enquanto suas performances políticas se resumirem no repetitivo grito “Não vai ter golpe!”. Podemos dizer inclusive que essa frase-grito é tão inócua contra o real inimigo que simultaneamente golpeia Dilma e a democracia brasileira quanto a sua versão-rede-social, antecedida de uma hashtag e replicada aos milhões.

Sequer as duas formas de protesto juntas, a presencial, com milhares de pessoas nas ruas, e a virtual, com milhões de pessoas clicando e hashtaguiando compulsivamente, estão dando conta do problema. O que Chaui quer evidenciar com o apontamento desse impasse é que, se não queremos que os canalhas e corruptos que ocupam o poder usem-no contra nós, devemos nós mesmos preencher este lugar de poder no qual eles estão. Ora, de nada adianta protestar, seja virtualmente, seja presencialmente, se, antes, permitimos que os canalhas e corruptos ocupem o poder. Uma vez eles lá, e suas canalhices e crimes cometidos, protestar é paliativo; apenas a “slack” liturgia da nossa impotência.

Óbvio é que uma hashtag não faz revolução. Menos claro, todavia, é que sequer milhões delas cumprem essa tarefa. Mais indigesto ainda é perceber que, hoje em dia, no Brasil, o hashtagtivismo virtual e o ativismo presencial juntos não estão conseguindo fazer o “Não vai ter golpe!” funcionar. Cunha, o PMDB, o PSDB, e toda a elite tupiniquim estão surfando, e vitoriosamente, a onda “hashtagtivista” contrária a eles. E pouco importa que as marés anti-golpe, tanto as virtuais quanto as presenciais, tenham extrapolado o território nacional e ganhado o mundo. O golpe segue firme e forte.

Parece que tudo o que entendemos por ativismo político, seja o clássico, presencial, seja o contemporâneo, virtualizado, seja ainda os dois combinados, se mostra ineficiente diante do poder contra o qual temos de lutar atualmente. Gritar nas rua ou lotar as timelines com hashtags, com efeito, ainda hoje faze barulho. O problema, no entanto, é que esse ruído é imediatamente ouvido pelo poder contra o qual se volta e, sem mais, facilmente abafado por este. Muitos dizem inclusive que o formato “protesto”, seja ele presencial, seja virtual, é apenas a performance que aqueles que detêm o poder permitem às pessoas para que nada realmente mude.

Por isso, enquanto chorarmos hashtags nas redes sociais ou gritarmos frases de efeito nas ruas depois do leite derramado, isto é, depois de sermos transformados em massa subserviente de políticos, juízes, delegados e policiais canalhas e corruptos, aquilo que queremos mudar permanecerá onde está, incólume. Marilena Chaui aponta a solução; temos de ouvi-la: os cidadãos que estão insatisfeitos e que se sentem ultrajados pelos desfeitos dos seus representantes devem ocupar esse lugar de representação eles mesmos. Ativismo político virtuoso, para quem não quer corrupção nem impunidade no mundo em que vive, é participar direta e lisamente das esferas do poder.

A ineficiência dos “slacktivismos”, isto é, dos “ativismos preguiçosos” apenas revela uma outra face da já conhecida crise de representatividade política. O “hashtagtivismos”, temporão da preguiça revolucionária, é só mais uma expressão dessa crise: a incapacidade de inclusive os indivíduos se representarem eficientemente. Enfieiramos algumas letras depois de uma hashtag, postamos esse neoativismo no oceano virtual das redes sociais, e esperamos dele o mesmo que dos canalhas corruptos que elegemos nossos representantes: a solução dos nossos problemas.

O “hashtagtivismo” preguiçoso pode render centenas de “likes” e, mais ainda, a bela ilusão de que somos um exército imenso, forte, imbatível até. Porém, lembrando que a hashtag não foi criada para ser arma revolucionária, mas para indexar conteúdo digital existente, podemos concluir que ela, na verdade, é uma ferramenta reacionária: trata verticalmente do que já há. As hashtags por meios das quais cremos agir politicamente, portanto, outra coisa não fazem que nos colocar nos índices contemporâneos da falta de potência e da incapacidade de representarmos a nós mesmos de modo eficiente e revolucionário.

Utopia e revolução

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O ser humano precisa da utopia”, afirma o sociólogo Antônio Ozaí da Silva no seu artigo Ideologia e Utopia. Isso porque o homem é um ser imaginativo, o único capaz de pensar realidades para além da realidade imediata. E quando essas realidades imaginadas passam a ser habitadas por outros que a partir de então começam a sonhar o mesmo sonho, as utopias são passíveis de serem realizadas. Importante é saber que o pensamento utópico que transcende o status quo não pode se efetivar solitariamente, pois utopias estão relacionadas a grupos sociais, e enquanto não forem incorporadas por eles não terão efeito. Qual é, então, o papel da utopia e da coletividade que ela engendra na esperança de construção de um futuro melhor?

Outro sociólogo, Karl Mannheim, autor do clássico Ideologia e utopia, sustenta que “a desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático em que o próprio homem se transforma em coisa”. Ou seja, sem imaginar outras realidades ele apenas é essa coisa chamada realidade. Por isso é fundamental manter aberto um espaço para as utopias, pois elas renovam a possibilidade para os indivíduos insistirem em um outro mundo. Quanto mais não seja, para Mannheim, “A erradicação da utopia só é possível com a sua realização”. Pragmaticamente falando, mesmo que derrotada em suas respectivas épocas, as utopias sobrevivem e são incorporadas pelas gerações vindouras.

Marilena Chaui, nas suas Notas sobre utopia, esclarece que a utopia nasce na renascença como um gênero literário — a narrativa sobre uma sociedade perfeita e feliz — e um discurso político — a exposição sobre a cidade justa. Porém, para vir ao mundo seu percurso foi longo. Chaui conta que, primeiro, teve de haver o colapso do teocentrismo medieval para que o homem tivesse participação no destino do mundo e para que percebesse que é dotado de capacidade e força não só para conhecer a realidade, mas sobretudo para transformá-la. Aqui vale citar o adágio celebrizado por Francis Bacon: “o homem é o arquiteto da Fortuna”. Em segundo lugar, fundamental para o vir-a-ser do pensamento utópico foram as viagens marítimas iniciadas no século XV e a descoberta de novas terras e povos que inspiraram fantasias de sociedades perfeitas vivendo em plena harmonia com a natureza.

E dizendo que, etimologicamente, utopia significa não lugar ou lugar nenhum, Chaui quer reforçar não só que utópico é o lugar que nada tem em comum com o lugar em que vivemos, como também e principalmente que “utopia significa, simultaneamente, lugar nenhum e lugar feliz … Ou seja, o absolutamente outro é perfeito”. Afirmando a perfeição do outro, o utópico outra coisa não faz que propor uma ruptura com a totalidade existente. Para a filósofa, a sociedade imaginada pode ser vista como negação completa da realidade existente ou como visão de uma sociedade futura a partir da supressão dos elementos negativos da sociedade existente. Temos aqui a utopia compreendendo tanto o horizonte revolucionário quanto o reformista? Chaui corrobora com isso dizendo que “o utopista é um revolucionário ou um reformador consciente do caráter prematuro e extemporâneo de suas ideias”.

Mannheim aqui é de grande ajuda, pois, para ele, a mentalidade utópica deve ser compreendida segundo maneiras de pensar, sentir e agir que são coletivamente determinadas no sentido de transformar a realidade dominante de acordo com as aspirações do próprio grupo que deseja transformá-la. O sociólogo compreende essas formas de pensar, sentir e agir no mundo ou como ideológicas, ou como utópicas; Ambas, porém, motivações coletivas que determinam a forma como os indivíduos agem e pensam. A diferença principal, entretanto, é que ideologia identifica-se com conservação, e utopia, com mudança. Fazer de ideologia e de utopia sinônimos é um erro, mais difícil de ser percebido na expressão ideologia revolucionária do que no absurdo utopia conservadora. Utopias são contestatórias por natureza; colocam a revolução diante da ordem estabelecida; apontam a possibilidade do não-lugar justamente no lugar que não dá lugar a ela.

Com efeito, são os grupos dominantes que determinam o que será utópico no ato de criticar as concepções dos grupos que lhe são opostos. Em contrapartida, são os grupos que fazem oposição aos grupos dominantes que determinam como ideológicas as concepções destes. Em suma, as ideologias refletem a ordem social dominante, e as utopias, um futuro almejado que supera essa ordem dominante. Mannheim exemplifica isso relembrando-nos de que no momento histórico em que a burguesia se fortalecia economicamente, suas aspirações eram consideradas utópicas pela aristocracia feudal dominante. Porém, uma vez que a burguesia conquistou o poder, isto é, realizou a sua utopia, a sua concepção de mundo passou a ser dominante, e, doravante, o grupo que passou a ser oprimido por ela, o proletariado, passou determiná-la de ideológica.

Chaui corrobora com Mannheim afirmando que a utopia surge como possibilidade objetiva, inscrita na marcha progressiva da história. A filósofa esclarece, contudo, que nenhuma utopia mudou o curso da história por seu realismo, mas, ao contrário, pela negação radical das fronteiras do real instituído e por oferecer aos agentes sociais a visão de inúmeros possíveis. Segundo a filósofa brasileira, “O utopista desloca a fronteira daquilo que os contemporâneos julgam possível”, e que ao passar do u-tópos ao tópos, isto é, do não-lugar a um lugar na história, a utopia se transforma em ideologia.

A crítica de Engels e Marx ao socialismo utópico não escapa das considerações de Chaui sobre utopia. Segundo ela, para os dois filósofos alemães a utopia socialista “é um pressentimento ou uma prefiguração de um saber sobre a sociedade … Assim como da alquimia se passou à química e da astrologia à astronomia, assim também é possível passar do socialismo utópico ao socialismo científico”. Passagem do afetivo ao racional, do parcial ao totalizante, do pressentimento à revolução, o socialismo utópico é o primeiro movimento contra a opressora ordem estabelecida. O socialismo científico, por sua vez, é o passo derradeiro: o conhecimento racional das causas materiais da humilhação e da opressão, ou seja, o modo de produção capitalista.

O pensamento utópico, seja em que área for, é a assunção da incapacidade de diagnosticar corretamente a realidade na qual pensa. Entretanto, tem a virtude de dirigir a ação coletiva. Utopia não é exatamente um vir-a-ser, mas um não-ser-que-não-obstante-já-é, uma vez que o lugar do não-lugar é justamente a resistência do real em ceder lugar a outra coisa que não ele mesmo. Por mais que as utopias, de certa forma, sejam discursos sobre o não existente, com isso não podemos dizer que são quimeras, delírios de indivíduos incapazes de ver a realidade. O que o utopista pensa é a mudança, a revolução, pois se o pensamento humano permanecesse prisioneiro da realidade as sociedades estariam condenadas a permanecerem estacionadas no que já são.

Vale seguir as principais características de uma utopia feita por Chaui, feita a partir da Utopia de Thomas More. Segundo a filósofa, uma utopia: é normativa na proposição de um mundo tal como deve ser; é sempre totalizante, pois utopia é criação de um mundo completo; é a visão do presente sob o modo da angústia e da crise; busca a liberdade e a felicidade totais graças à reconciliação entre homem e natureza, indivíduo e sociedade, sociedade e Estado, cultura e humanidade; busca combinar o irrealismo com o realismo; não ocultar nem dissimular nenhum de seus mecanismos e nenhuma de suas operações (ou seja, não é ideológica!); é um discurso de fronteiras são móveis, isto é, pode ser literária, arquitetônica, religiosa, política, etc. Mais do que um programa de ação, uma utopia é um exercício de imaginação, permanecendo assim no plano potencial e hipotético.

Na sequência, Chaui enumera o conjunto de aspectos utópicos que passaram a operar como modelo para obras e discursos utópicos posteriores. Quais sejam: a busca pela cidade feliz ou justa se encontra na excelência da legislação, na estabilidade social, política e institucional; a identificação de cada indivíduo com  a lei ou com o Estado, o desaparecimento da família, da propriedade privada, do dinheiro, da desigualdade social e da competição; a escolha de uma locus insular e isolado de todo o restante do mundo, cuja localização, por segurança, permanece secreta; o planejamento geométrico, urbanístico e arquitetônico enquanto produto da razão que organiza o espaço segundo exigências sociais, políticas e econômicas; demarcação do lugar do poder; a beleza e a salubridade da cidade ideal; e, seguindo Platão na sua utópica República, a recusa do isolamento engendrado na escrita e na leitura solitárias em proveito dos encontros, conversar e debates coletivos.

Foram esses aspectos que, a partir do século XVI, fizeram da utopia um jogo intelectual que passou a combinar a nostalgia de um mundo perfeito porém perdido com a imaginação de um mundo novo instituído pela razão. Francis Bacon se vale disso para criar a sua ilha utópica, Nova Atlântida, na qual projeta todas suas expectativas de um futuro baseado em uma nova racionalidade. Sem duvidar um momento sequer de que o homem pode se tornar “ministro e intérprete da natureza”, Bacon descreve uma espécie de utopia da ciência futura. Seu esforço fez dele profeta da sociedade moderna.

Por que nova Atlântida? Bacon faz alusão à civilização Atlântida, formulada por Platão no diálogo Crítias, enaltecida pelo grego pelas belas instituições e feitos de seus habitantes, sobretudo pela valorização da filosofia, da ciência e pela virtude e sabedoria. O inglês buscou no ideal platônico o protótipo de uma sociedade paradisíaca a ser seguida, modelo, segundo ele, capaz de tornar seres humanos perfeitamente virtuosos. A nova Atlântida de Bacon é uma sociedade harmônica, feliz e próspera, na qual o conhecimento e sua aplicação superaram as limitações da condição humana. As virtudes cívicas não são religiosas; a civilidade ideal nasce do conhecimento e não da fé. Ou seja, Nova Atlântida é a utopia da ciência.

Chaui ressalta que depois de Nova Atlântida o racionalismo e o experimentalismo científicos passam a integrar o discurso utópico. A utopia de Bacon exalta as artes liberais e o trabalho manual e técnico. Nova Atlântida é uma civilização do trabalho; antecipa a sociedade racional produtora de sua própria felicidade mediante a instalação de uma ordem social perfeita. E para não esquecer do que coloca Mannheim, qual seja, que as utopias falam da realidade ao negá-la, que propõem justamente o que não tem lugar na realidade imediata, é importante frisar que Bacon transferiu para sua utopia aquelas aspirações suas que a ordem econômica e política de sua época impediam de serem realizadas. Com efeito, a Nova Atlântida de Bacon era uma crítica à sociedade medieval tardia da qual o pensador gostaria de se ver livre. O pensar, sentir e agir contemporâneos a Bacon, senão romperam com o passado, ao menos revelaram a ruptura sócio histórica que estava em curso.

Com efeito, a utopia de Bacon serviu de paradigma para o pensamento utópico posterior. Tanto que, aponta Chaui, a partir do século XIX a utopia deixa de ser apenas um jogo intelectual-imaginativo para se tornar projeto político no qual o possível se insere na história e constrói o futuro. Doravante a utopia passa a ser deduzida de teorias sociais e científicas. É tida como inevitável porque a marcha da história baseada no conhecimento garante sua realização. A utopia deixa de ser apenas literatura contestatória e se torna prática organizada. A cientifização das utopias resultam em um projeto de reforma global como ciência aplicada.

O problema da viabilidade das utopias mediante a racionalidade e a técnica humanas, entretanto, é que elas passam a ser encaradas pelos poderes dominantes reacionários, isto é, ideológicos, como perigo real. Começam a ser censuradas, desacreditadas e abafadas por bombas de gás lacrimogêneo pelo poder que elas ameaçam. Todavia, a virtude subversiva das utopias está em que, conforme destaca o sociólogo Antônio Ozaí da Silva, a sociedade que nega veementemente uma utopia outra coisa não faz senão produzir as condições para a sua realização. Mais ainda, com Mannheim podemos dizer que é a própria ordem existente, absoluta e ideologicamente contrária à sua própria ruptura, que, entretanto, dá vida a utopias que rompem com o real, abrem a história, possibilitam a mudança, seja ela revolucionária, seja reformista. A utopia, portanto, é uma não-ordem que, na marcha da história e por força de uma coletividade, possibilita as ordens seguintes.

 

Tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser

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O ser humano é transição, e, exclusividade sua, consciência disso. Somos a espécie que não só conhece, mas, principalmente, promove a própria evolução. E essa ininterrupta promenade se expressa em todas as dimensões humanas. Economicamente, vemos isso nas transições históricas, por exemplo, do escravismo para o feudalismo; deste para o capitalismo; e deste último para algo que ainda não sabemos o que, mas que até bem pouco tempo se acreditou piamente ser o socialismo. Entretanto, hoje em dia a descrença nas profecias econômicas à lá Marx nos permite chamar o sucessor do capitalismo apenas de pós-capitalismo.

As transições econômicas que fizeram dos escravos servos e dos servos proletários são conhecidas, cognoscíveis, embora sempre abstratas para nós, contemporâneos. Já a transição de igual envergadura na qual estamos compreendidos, essa não nos poupa da angústia concreta em não saber para onde estamos indo. O fato de não conhecermos o que é esse até então tautológico pós-capitalismo, com efeito, é motivo para espécie de angústia histórica. Os conceitos-bengala pós-proletáriado e pós-capitalismo dão conta apenas parcialmente do ainda desconhecido horizonte diante de nós; pouco anestesiam a dúvida do que de fato virão a ser.

Embora não estivesse falando de economia, o filósofo alemão Martin Heidegger expressou o dilema do homem em meio à transição, todavia do realismo ao relativismo, através da seguinte frase: “Chegamos tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser“. O filósofo queria dizer que a sua idade histórica –que ainda é a nossa- perdeu a fé nas verdades absolutas, isto é, nos deuses, mas ainda não sabe lidar com o Ser, ou seja, com a multiplicidade infinita de interpretação do real. Nesse ínterim no qual nem os deuses nem a pluralidade de sentidos do real nos oferece um chão seguro, ou acreditamos que nada é verdadeiro, ou que a única verdade absoluta é o nada. Eis o efeito colateral do niilismo que deu cabo da modernidade e inaugurou a contemporaneidade humana.

Retomando a dúvida e a perplexidade acerca do que será chamado esse pós-capitalismo tautológico-acessório que com efeito capitulará o inconcluso capítulo econômico histórico  do qual somo os protagonistas, a frase do filósofo alemão pode ser de grande ajuda. A transição econômica pela qual passamos não poderia ser expressa assim: chegamos tarde demais para o capitalismo e cedo demais para o ____________? Um marxista, obviamente, completaria a máxima tascando, sem pestanejar, um socialismo. Isso, no entanto, não seria apenas fazer de um fundamento passado a regra para um presente e um futuro outros? Em outras palavras, a reeleição de um velho deus?

Dizer que chegamos tarde demais para o capitalismo significa que, embora ainda estejamos absolutamente imersos nele, não conseguimos mais crer que ele possa dar conta das necessidades econômicas de todos os indivíduos, mas só de uma minoria deles, cada vez mais minoritária aliás. Não há mais dúvida de que a liberdade revolucionária que o capitalismo significou para o servo medieval, hoje em dia, é liberdade apenas para as elites. Nem o jovem deus que prometeu libertar as pessoas das regulações, qual seja, o Neoliberalismo -termo cunhado em 1938 Ludwig von Mises e Friedrich Hayek- consegue mais manter-nos beatos seu.

Quanto mais não seja, porque segundo George Monbiot, no artigot Para compreender o neoliberalismo além dos clichês, a vangloriada liberdade neoliberal resultou na liberdade dos patrões para reduzir os salários e explorar os trabalhadores; a liberdade em relação à regulamentação significou destruição da natureza; e a liberdade para distribuir a riqueza findou como liberdade para não fazê-lo. De fato, conforme aponta Thomas Piketti no seu Capital no século XXI,  hoje em dia a concentração de renda nas mãos de cada vez menos gente é maior do que em qualquer outro período histórico. É de espantar seguir até o final o texto e os gráficos da obra do economista francês!

Muito tarde para o neoliberalismo e muito cedo para o pós-neoliberalismo? Por certo, mas outrossim demasiado tautológico. Muito cedo para que exatamente? Eis a pergunta que não quer calar. Se, entretanto, a difícil transição metafísica de que falava Heidegger era entre os deuses e o Ser, isto é, entra a univocidade e a plurivocidade absolutas do real, a que está sendo abordada aqui deve ser dita entre a univocidade de uma doutrina econômica, cujo vício entretanto é atender cada vez menos indivíduos, e a plurivocidade de um devir econômico no qual o interesse de todos seja contemplado.

Em se tratando de economia, o que seria então o Ser heideggeriano, isto é, a multiplicidade infinita de interpretação do real? Ora, se, como aponta Monbiot, o deus neoliberal elege “a competição como definidora das relações humanas, e os cidadãos como consumidores que decidem democraticamente o seu destino apenas ao comprar e vender“, a pluralidade de sentidos do real pós-neoliberal, por sua vez, deverá no mínimo significar que as relações humanas não sejam pautadas exclusivamente pela competição nem pelo consumo. Não que a plurivocidade do real econômico vindouro deixe de constar dessas práticas, afinal, menos plural o real seria, e, consequentemente, mais próximo dos deuses permaneceria.

Economicamente, pluralidade absoluta, ausência total de deuses e de verdades únicas, portanto, deve ser uma realidade na qual cada indivíduo possa realizar as suas necessidades materiais da forma que melhor lhe convir, sem, contudo, tal liberdade impedir quem quer que seja de realizar o mesmo, da forma que achar melhor. Os críticos da social democracia dirão que tal liberdade repetirá vícios históricos; que atenderá somente os interesses da burguesia; que o neoliberalismo se aproveitará dela para exercer-se imperiosamente sobre todos. E têm certa razão nisso inclusive.

Porém, tal crítica é pertinente até o ponto onde percebemos que o neoliberalismo, encimando imperiosamente a realidade econômica outra coisa não faz senão se colocar como um deus absoluto. O maior problema dessa doutrina econômica é até aqui não ter conseguido compatibilizar-se com a pluralidade absoluta em relação a qual, segundo Heidegger, chegamos cedo demais. Entretanto, como dito antes, a plurivocidade do real à qual chegaremos não será total se a famigerada liberdade neoliberal for excluída desse real. Tarefa difícil conciliar o real todo com suas expressões mais contraditórias! E é justamente essa dificuldade que aponta a nossa precocidade em relação ao Ser!

Nesse sentido, o passo que precisamos dar para, senão estar definitivamente no Ser, ao menos mais próximo dele e mais distantes dos deuses, deve ser fazer com que o neoliberalismo possa não ser absoluto e invencível; impedi-lo de ser um deus ele mesmo. Pensando assim, estar entre o deus capitalista e o Ser pós-capitalista significa que estamos no tempo de furtar do neoliberalismo a sua patológica tendência absolutizante. Os revolucionários radicais, por certo, dirão que se trata de reformismo. Entretanto, até onde podemos garantir que a revolução rápida e violenta do Manifesto Comunista de Marx e Engels, corroborada por Lenin no seu O Estado e a Revolução, seja a melhor saída depois de termos visto que as revoluções russa e cubana em menos de um século ruíram diante dos ditames neoliberais?

Para quem busca o Ser, isto é, a plurivocidade de interpretação do real, insistir na clássica, todavia monológica estratégia que prega que devemos começar com a revolução violenta em função da ditadura do proletariado não seria nos mantermos demasiado próximo dos deuses? A modernidade que levou Marx a escrever tal cartilha, com efeito, estava muito mais próxima das verdades absolutas, ou seja, dos deuses, do que nós, contemporâneos. Embora tenham sido os verdadeiros assassinos de Deus, os modernos ainda estavam com o punhal e com as mãos sujas do sangue divino; demasiado contemporâneos daquilo que nós, contemporâneos, já somos e devemos ser avant garde. Reviver velhas doutrinas apenas nos fará démodés.

Se ainda não conseguimos precisar em relação a que chegamos cedo demais para além das tautologias “pós-capitalismo”, “pós-liberalismo”, se ainda é um enigma que real plural fará com que a competição e o consumo não determinem exclusivamente as relações e a sobrevivência material humanas, é porque ainda não conseguimos nos desvencilhar totalmente dos deuses do passado, das verdades de pretensão absoluta que ainda nos convencem de que devem ser interpretadas univocamente. Aqui podemos parafrasear a máxima heideggeriana novamente para nos encontrarmos na transição histórica em que estamos: chegamos cedo demais para nos desvencilhar totalmente dos deuses e, portanto, muito mais cedo ainda para sermos capazes de encarar o Ser.

A tarefa histórica da nossa particular transição, por conseguinte, deverá ser seguir na cruzada contra as verdades absolutas, aberta todavia antes de nós, justamente porque ela não foi concluída. Isso fica claro quando percebemos que diante do real não vemos muitas alternativas além da permanência do neoliberalismo ou da revolução socialista. Que pobreza imaginativa! Quão pouco plurívocos ainda somos! Ora, duas possibilidades nos afastam quase que diametralmente da pluralidade de interpretações do real que o Ser que deverá se seguir exige. Dois deuses não fazem o Ser. Negam-no duplamente aliás.

Como colocado no início, estarmos livres dos deuses e sermos finalmente contemporâneos do Ser, ou seja, da plurivocidade infinita do real, de forma alguma deve significar sustentar que nada é verdadeiro nem que a única verdade absoluta é o nada. O niilismo é bem mais virtuoso do que isso! Inclusive os monológicos liberalismo e socialismo não devem ser negados, nadificados, mas compreendidos entre muitas outras formas de, economicamente, a humanidade existir no mundo. Só não podemos seguir insistindo somente nessas duas teclas. A história da nossa transição, que dará cabo dos deuses e conta do Ser, exige que usemos todas as teclas disponíveis e que, ademais, inventemos todas as outras que nos faltam. Só então teremos condições de gozar o real em suas infinitas possibilidades.

O socialismo negativo de Lula

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Foto: Rodrigo Stuckr / Instituto Lula

 

O socialismo, essencialmente, é a doutrina política e econômica que prega a coletivização dos meios de produção e de distribuição da riqueza através da supressão da propriedade privada e das classes sociais. Entretanto, muitos dos que tentaram implantá-lo cometeram o pecado de sobrelevar a teoria em detrimento da prática. Em outras palavras, preferiram o ideal ao real. Lula, o maior líder político da história do Brasil, em recente entrevista ao jornalista Glenn Greenwald, deixou bem claro que o seu projeto socialista para o Brasil tem ao menos a virtude de não incorrer nesse pecado.

A certa altura da entrevista, Greenwald afirma que o PT é parecido com os partidos da esquerda da Bolívia, Venezuela, Cuba, Equador, e que Lula e Dilma querem colocar o Brasil no mesmo caminho. Lula então protesta: “não seja injusto com o PT, pelo amor de Deus, porque o PT tem muita ligação com o SPD alemão; com o partido trabalhista inglês; com o partido socialista francês; com o partido socialista espanhol.”

O ex-presidente metalúrgico assim rejeitou a afirmação do jornalista americano para esclarecer que o percurso socialista que ele abriu no Brasil não se deu de modo autoritário como nas demais repúblicas latino-americanas. A diferença que Lula aponta entre o projeto socialista do PT para o Brasil e os dos demais países hermanos fica ainda mais clara quando ele assume que “o PT nem sequer definiu o tipo de socialismo que quer, porque o PT diz que o socialismo será a construção; será construído pelo povo; não será o PT que terá meia dúzia de intelectuais e dirá que tipo de socialismo NÓS queremos. O PT é um partido muito mais aberto do que outros partidos que existem na América Latina”.

Está precisamente aí a virtude esquerdista do partido do presidente proletário: não eleger teorias socialistas abstratas e de pretensão universal como regra para a realidade brasileira concreta e particular. Em outras palavras: não subjugar a construção ao construto; a prática à teoria; em suma, o real ao ideal. Quando diz que não será meia dúzia de intelectuais nem o PT que dirá que tipo de socialismo o Brasil terá, Lula coloca o futuro da sociedade brasileira acima dos interesses do seu partido e dos da intelectualidade em geral.

Proletário durante anos, Lula foi vítima concreta da histórica divisão social que desvaloriza do trabalho braçal diante do trabalho intelectual. E foi contra essa sobrevalorizada intelectualidade que não só no Brasil se confunde com a aristocracia que o metalúrgico teve de lutar para provar que um trabalhador comum não vale nem pode menos do que qualquer doutor? Não foi exatamente isso que ele provou contra seu antecessor de governo, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso?

Recusando-se implantar no Brasil teorias socialistas pré-fabricadas, ademais escritas em língua estrangeira, e ao mesmo tempo assumindo que o PT nem sequer definiu o tipo de socialismo que quer, sem, contudo, deixar o horizonte socialista de lado, o que Lula faz é defender um socialismo negativo. O que seria então esse socialismo negativo?

Ora, se em sua forma positiva o socialismo é a implantação, imediata ou gradual, da doutrina socialista em uma determinada sociedade em função da coletivização dos meios de produção e das riquezas sociais, sua versão negativa há de ser apenas a exclusão sistemática daquilo que em uma sociedade a impede de realizar tal coletivização. O socialismo negativo é mais o esvaziamento de entraves contrários à socialização da riqueza do que o preenchimento da sociedade com novas e impositivas ordens.

O socialismo negativo não é a negação do socialismo, mas a não positivação de teorias socialistas historicamente construídas, a maioria delas eurocêntricas, passadistas. Até mesmo a mais cultuada delas, o socialismo científico/profético de Marx e Engels deve receber a mesma crítica que o filósofo Baruch Spinoza, duzentos anos antes deles, fez às escritura das grandes religiões monoteístas, qual seja: que estes livros são verdadeiros e úteis somente enquanto registros históricos de épocas e povos determinados.

Por mais que a teoria marxista seja uma excelente chave para se pensar a dinâmica do capital em determinada conjuntura histórica, querer que ela valha para além do seu tempo é como querer que a Bíblia, a Torá ou o Alcorão sejam fundamentais ao tempo que lhes sucede. Em outras palavras, é ser fundamentalista. Não é à toa que o marxismo é chamado por muitos de religião.

É para evitar tal fundamentalismo, que também é anacronismo, que Lula não quer enfiar goela abaixo dos brasileiros teorias socialistas que em nada tem a ver com a particular realidade social brasileira nem com as atuais aspirações do povo desse país. Não, obviamente, que o conhecimento pregresso deva ser desconsiderado. Lula não faz apologia à ignorância. Antes, seu projeto socialista sustenta que é o próprio povo brasileiro que, no andar de sua carruagem, descobrirá de que modo quer que se dê a coletivização dos meios de produção e de distribuição da riqueza.

Para tanto, o que Lula fez no Brasil nos seus oito anos de governo foi investir profundamente na inclusão social, aliás, como nunca antes na história desse país, para que mais pessoas, quiçá toda a população tenha oportunidade de participar dessa construção que deve ser coletiva, democrática, e não autoritária, fundamentalista.

Se ao tomar o poder em 2003 Lula tivesse perguntado à sociedade brasileira de que modo ela gostaria de distribuir a sua riqueza, muito menos vozes ouviria, pois a sociedade na época era mais refém das elites do que agora. Hoje, 14 anos depois de iniciado o socialismo negativo de Lula, mesmo que a resposta da sociedade brasileira à mesma pergunta ainda não seja o socialismo, o coro no entanto é muito maior e múltiplo.

Depois do presidente metalúrgico as elites brasileiras já não são mais a única voz. Também os trabalhadores, os nordestinos, os gays, as mulheres, os negros e os pobres têm condição e força para participar coletivamente da construção do futuro do Brasil, pois com grande esforço foi retirado, melhor dizendo, foi negativado muito do que os impedia de ser, de fato e de direito, a sociedade brasileira.

Uma das maiores críticas à Lula se dá porquanto seu governo mais estimulou o consumo do que investiu na formação de uma consciência de classe trabalhadora que, para a teoria socialista clássica, é a chave para a revolução. Mas aqui não reencontramos a questão da impertinência prática do metalúrgico em relação às teorias estrangeiras?

Entretanto, até mesmo a teoria marxiana que diz que o socialismo sucederá o capitalismo no momento que este se tornar insustentável corrobora com o investimento de Lula no consumo. Afora o fato de que ainda há muito ranço feudal a ser erradicado por essas terras, o próprio capitalismo tupiniquim está longe sucumbir diante de suas próprias contradições. Investir todas as fichas numa revolução socialista imediata nessa conjuntura não seria de certa forma repetir os fracassos das revoluções russa e cubana que tentaram tornar economias, se não ainda feudais, ainda jovens capitalistas, em socialistas, isto é, sem, experienciarem o vil ciclo completo do capitalismo?

Por isso o investimento de lula no consumo não merece tamanha crítica, sequer dos marxistas, mas compreensão particular. O que o ex-presidente fez erradicando a pobreza do Brasil e dando condições para a maioria das pessoas consumir foi botar a sociedade brasileira inteira, e não só as classes mais abastadas, a girar a roda capitalista. Investir no consumo de massa como acelerador do esgotamento do sistema econômico que impede a coletivização dos meios de produção e a distribuição da riqueza não deixa de ser socialismo, só que em sua forma negativa.

O socialismo negativo de Lula tem a primeira virtude de não pré-estabelecer verticalmente um tipo de socialismo ao povo brasileiro. Em última instância, significa liberdade não só para esse povo decidir quais são suas atuais necessidades e desejos, como também para construir ele mesmo o futuro que quer para si. E o que é mais importante, a despeito de teorias que apenas nos livros são infalíveis e de teóricos que no passado convenceram muita gente intelectualizada.

Graças ao socialismo negativo de Lula o futuro do povo brasileiro e o modo como se dará a coletivização dos meios de produção e a distribuição da riqueza no Brasil não foram outorgados nem pelo PT nem, nas palavras do metalúrgico, “por meia dúzia de intelectuais”. O socialismo negativo, portanto, é a forma menos autoritária e fundamentalista de socialismo. E é por isso que o ex-presidente pode dizer que “não tem nenhum partido no mundo que seja democrático e aberto como o PT”.

A cidadania da impotência e uma outra cidadania

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Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Os verdadeiros cidadãos brasileiros, aqueles que são contrários ao impeachment de Dilma Rousseff porque sabem que, na verdade, trata-se de um golpe contra o Estado brasileiro, sua jovem democracia e sobretudo contra as políticas sociais implantadas no Brasil a despeito dos interesses da velha oligarquia tupiniquim, estes cidadãos experimentam perplexos a impotência dessa instituição chamada cidadania em uma democracia representativa.

O fato de as discussões acerca do golpe contra Dilma estarem tergiversando mormente sobre a divisão da opinião pública, as crises política e econômica e sobretudo a corrupção generalizada, entretanto, tem o vício de fazer-nos esquecer do cerne da questão, trazido à luz pelas manifestações brasileiras de junho de 2013, mas que parece ter “saído de moda” já em 2016, qual seja: a crise de representatividade política no Brasil.

Para o cidadão revolucionar essa crise, contudo, é fundamental que ele tome responsabilidade na insatisfatória representatividade que recebe dos seus políticos eleitos. Afinal de contas, os péssimos representantes estão onde estão, inclusive votando contra a democracia que os elegeu, por conta do voto direto e secreto dado a eles pelos próprios cidadãos brasileiros. Vitimarmo-nos pela presença deles, portanto, é colocar a culpa bem longe dos verdadeiros culpados.

Para tanto, precisamos, por um lado, responsabilizar-nos pela eleição desses vis representantes, e, por outro, e mais importante, encontrar, em nós mesmos, cada um dos cidadãos brasileiros, “o grão” maldito de uma representatividade ineficiente que, seja nas urnas, seja na atividade política cotidiana de cada um de nós, resulta na “duna” da má representatividade generalizada, muito mais fácil de enxergar no topo do que na base da pirâmide política.

Com efeito, o povo não ser capaz de auto-representar-se politicamente com qualidade e eficiência resulta em representantes políticos que outra coisa não fazem senão repetir essa má qualidade representativa que, é importante manter em mente, nasce no grão-cidadão. Dois exemplos disso, todavia os mais extremados, mas por isso mesmo bastante evidentes, são os Blakc bloc de 2013 e os coxinhas de 2015/2016.

Representando as suas insatisfações em relação a representatividade política brasileira estiveram os radicais de 2013 que negavam a política partidária mediante uma miríade de pautas difusas e em um cenário de quebra-quebra de equipamentos públicos e bancos e lojas privadas. Também os radicais de 2015-2016, batendo panela em função da monocórdica pauta golpista, e outrossim mediante um quebra-quebra, só que da própria democracia, estes também estão reclamando uma representatividade política que não lhes convém.

Agora, falemos sério, quando cidadãos começam manifestar suas insatisfações em respeito à representatividade que recebem de seus governantes representando-as e a si mesmos dessas maneiras, de uma coisa podemos ter certeza: a crise de representatividade não nasce nem oprime os cidadão de cima para baixo, transcendentemente, mas ao contrário, imanentemente, é a crise da própria cidadania como a conhecemos.

Os cidadãos menos radicais outrossim não escapam de representarem a si mesmos de modo lamentável. Os mais de dez milhões de votos em branco que tivemos nas eleições de 2014 atestam isso. Como reclamar dos representantes políticos eleitos quando sequer se participa da eleição deles? Dito de outro modo, como querer ser bem representado politicamente sem no entanto contribuir para a eleição de representantes que possam realizar esse desejo?

Fazendo um virtuoso contraponto a essa representatividade crísica que, disfarçada ou descarada, é a crise político-institucional pela qual o Brasil passa, estão as ocupações das escolas brasileiras feitas por estudantes insatisfeitos tanto com a precárias situação do ensino como sobretudo com os projetos governamentais para suas escolas e para a educação de um modo geral.

Estes estudantes, que ainda não são eleitores, nem, portanto, cidadãos “ipsis litteris”, não fizeram como a maioria dos cidadãos “oficiais” que esperam dos seus representantes políticos soluções para os seus problemas e insatisfações. Em troca, ocupam, com seus corpos e discursos, por semanas e meses até, a ágora crítica que querem ver revolucionada. Não ficam em casa diante da TV ou do Facebook reclamando do sucateamento da educação, mas, em troca, não deixam as escolas, fazendo delas seus bunkers de protesto.

Tais “jovens ocupadores” nos oferecem uma via para se revolucionar a crise de representatividade que assola o nosso país, qual seja: a assunção de que a boa representatividade política não vem de cima para baixo, mas deve nascer precisamente nos grãos cidadãos, para quiçá “contaminar” virtuosamente a estrutura política que se sobrepõe a todos eles. Estes estudantes, sabendo ou não disso, corroboram com a máxima de Aristóteles: “a qualidade de um estado é a qualidade de seus cidadãos”.

Intuitivamente bem fundamentados, os estudantes ocupantes das escolas paulistas tiveram no início de 2016 uma vitória considerável -ainda que não definitiva- contra o monstro peessedebista de Geraldo Alckmin e a sua reorganização escolar. A atual ocupação das escolas no Rio de Janeiro, pelo ativismo e resistência que esses jovens estudantes estão demonstrando, é bem possível que consiga o mesmo ou maior feito contra a besta peemedebista que muito mal os representa.

Não que essa tática de ocupação direta seja inédita. A política dos antigos gregos é reconhecidamente virtuosa justamente porque nela os cidadãos atuavam direta e presentemente nas deliberações coletivas. A vantagem da tática dos ocupantes escolares, todavia, está em que o sistema político atual, demasiado representativo, não sabe mais lidar com cidadãos que representam a si mesmos diretamente.

Nesses casos, o Estado ou bombardeia moral e “lacrimogeneamente” os que se manifestam diretamente contra ele, como manda sua vertical cartilha, ou, em troca, tem de ceder à diretiva manifestante, como pudemos ver em São Paulo. Ora, o Estado sufocar jovens estudantes com bombas de gás seria assumir uma intransigência e uma desumanidade que voltaria toda a opinião pública contra ele.

Eis a vantajosa estratégia que esses jovens ocupantes de suas escolas oferecem como opção aos cidadãos brasileiros que se sentem impotentes diante dos alienados desígnios de seus representantes: manifestar-se de modo que uma ofensiva do Estado contra essa manifestação seja o fim do próprio Estado. Em suma, fazer com que o Estado seja novamente os seus cidadãos, e não os seus representantes políticos que, na verdade, apenas tentam fazer do Estado o meio para realizarem seus interesses particulares.

Os jovens ocupantes de escolas mostram melhor do que ninguém que a democracia representativa com a qual estamos habituados é o espaço onde se cultiva a impotência cidadã e onde os representantes políticos torna-se livres daqueles que os elegem. Mostram também uma outra política na qual a cidadania significa potência, pois substitui a desacreditada esperança depositada na representatividade política pela potência de uma cidadania presente e direta na construção de uma sociedade que é e que deve ser dos cidadãos.

Os cidadãos ocuparem a política toda, desde as câmaras municipais até o Congresso Nacional, seria essa a venturosa ação política que os jovens estudantes de suas escolas tem a nos sugerir? Apesar de radical, essa tática ou garantiria menos insatisfação em relação à representatividade política no Brasil, ou, imanentemente, evidenciaria que a má qualidade da representatividade que vemos somente nos nossos políticos não é outra que a nossa, a de cada um dos cidadãos. Neste último caso, se o problema nunca deixou de estar conosco, tanto mais fácil revolucioná-lo.

PMDB, o Leviatã brasileiro.

Foto José CruzAgência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Etimologicamente, Estado vem do Latim “status”, e significa a condição ou situação do que está, do que fica de pé. E diante da turbulência política e da fragilidade institucional que o Brasil enfrenta, que tem como ícone maldito o golpe do PMDB contra a presidente Dilma Rousseff, é inevitável perguntar: o que “ficará de pé” no Estado brasileiro?

Instituição soberana, o Estado é composto por uma série de outras instituições hierarquizadas em cuja base estão os cidadãos. De uma perspectiva materialista, a cidadania é instituição primeira, pois erigida a partir de indivíduos concretos, em função do quais aliás um indivíduo supremo e abstrato, o Estado, existe.

Todavia, depois de instituído, o Estado se transcendentaliza em um indivíduo primeiro e absolutamente necessário que passa a contingenciar os cidadãos e suas necessidades.  Tal é a força do ser que o teórico político inglês Thomas Hobbes chamou de Leviatã: indivíduo soberano, resultado do contrato social travado por todos os indivíduos que o compõem em busca de segurança e justiça.

O Estado hobbesiano angaria extrema substancialidade, em outras palavras, “fica em pé” porque, embora resultado de um contrato coletivo, não fez trato com ninguém. O Leviatã é absolutamente único, portanto livre. Segundo Hobbes, cria e anula as leis que comandam os cidadãos conforme sua necessidade de “permanecer estando”.

O filósofo inglês coloca inclusive que é burrice os cidadãos tentarem revolucionar o Estado, pois quando este é golpeado são os seus cidadãos, melhor dizendo, o trato que travaram entre si que recebe tal golpe. Ora, se o Estado não mais está, tampouco estão os cidadãos, e o que se tem doravante é uma situação onde não mais há segurança nem justiça.

Pois bem, pensando a partir da teoria de Hobbes, o golpe de Estado que está em curso no Brasil outra coisa não trará aos cidadãos brasileiros senão insegurança e injustiça. Sendo assim, estaríamos chamando os cidadãos brasileiros de espécie de kamikazes ao sustentar que são eles os arquitetos desse golpe.

Dito isso, temos de responder à seguinte pergunta: quem no Brasil não se autodestruiria com o golpe? Solapar o Leviatã tupiniquim só não será considerado burrice, ou melhor, significará inteligência para aqueles que têm certeza de que não padecerão de insegurança e de injustiça.

De grande segurança, pelo menos desde a redemocratização do Brasil em 1985, goza o PMDB, partido político sem o qual nenhum outro chegou ao poder, e, como estamos podendo observar, tampouco se mantém aí sem ele. Então, se há um indivíduo a quem o golpe não afeta, mais ainda, interessa, esse deve ser o PMDB.

Agora, se falarmos de justiça a coisa se complica, pois o golpe que o PMDB tenta dar no Leviatã petista serve justamente para escapar à justiça deste, procedimento que Eduardo Cunha, peemedebista presidente da Câmara dos Deputados em cujas costas pesam muitos crimes e suspeitas criminosas, deixa bem claro. Cada vez mais claro também é que, para o PMDB, escapar à justiça do Estado petista, depondo-a, é a manutenção da injustiça que oferece ao PMDB a segurança de que goza há cinquenta anos.

Todavia, se o PMDB tem poder para depor o Leviatã petista para não estar sujeito à lei deste, o verdadeiro Leviatã é o próprio PMDB, pois, conforme Hobbes, quem cria ou infringe a lei ao seu bel-prazer e necessidade é o poder absoluto. O PMDB é o Leviatã, muito embora o jogo democrático dos últimos 26 anos tenha nos convencido de que foram e de que poderiam ser outros.

Em se efetivando o que Dilma e o PT estão chamando de golpe, resta a eles assumirem que outra coisa não foram nestes últimos 14 anos além de operários convenientes do poderoso Leviatã peemedebista enquanto, e somente enquanto, o trabalho que ideologicamente vinham fazendo não ameaçou a injustiça que dá suprema segurança ao indivíduo mais poderoso do Brasil, o PMDB.

Analfabetismo político: capítulo ou capitulador da era Lula?

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Foto Lula Marques/Agência PT

Senso comum esses dias é que a era Lula chegou ao fim. Concordam com isso a esquerda e a direita brasileiras. Sendo que esta última contribuiu muito com esse ocaso, como atestam os trabalhos iniciados pelo PSDB do perdedor Aécio já nas eleições presidências de 2104 e os quase finalizados trabalhos do PMDB do gangster Cunha no processo de impeachment de Dilma Rousseff. O deputado federal Jean Wyllys, do PSOL, contudo, tenta mostrar a responsabilidade da própria era Lula com a sua alardeada capitulação.

Reconhecendo que a maioria da população brasileira esteve desde sempre “alijada do direito a uma educação de qualidade que lhe faça cidadã com capacidade de pensamento crítico”, Jean esclarece o cenário que Lula encontrou ao tomar o poder, o qual, aliás, o ex-presidente se propôs revolucionar.

Porém, para o deputado, na era Lula a ampliação do acesso ao sistema formal de educação, principalmente ao ensino superior, não resultou em uma educação de qualidade, mas na produção em larga escala de “diplomados analfabetos funcionais”. O mui criticado aumento do consumo, investimento central de Lula para que, com o crescimento econômico, políticas sociais pudessem ser implantadas sem tanta resistência por parte das elites, resultou, no entanto, na educação enquanto mercadoria.

E para Jean essa reificação da educação levou esse contingente de novos estudantes precarizados a aderir mais facilmente a “discursos demagógicos e manipuladores que interpelam preconceitos e sensos comuns históricos e propõe soluções fácies, mas mentirosos e/ou autoritárias para as questões complexas que nos envolvem diariamente.” Ou seja, para o deputado, a era Lula criou analfabeto políticos.

E Jean relembra-nos de que, conforme afirmou Bertold Brecht, “o pior analfabeto é o analfabeto político”. Nas palavras do dramaturgo alemão, esse tipo de analfabeto “é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política”. Porém, ressalta o deputado, o diferencial do “analfabeto político da contemporaneidade” é que este, mesmo odiando a política, participa ativamente dos acontecimentos políticos, sobretudo nas redes sociais digitais, mas sem qualquer cuidado crítico.

O exemplo concreto que Jean oferece do que ele chama de analfabetismo político contemporâneo é um comentário em uma postagem sua no Facebook quando da aprovação do Marco Civil da Internet. Qual seja: “o marco servil [sic] vai acaba [sic]com o Facebook e traze [sic] o comunismo vai manda [sic] mata [sic] todo mundo começando por você seu viado filhodaputa  [sic]”.

Com efeito, o exemplo dado por Jean leva-nos a pensar que a alienação orgulhosa do analfabeto político da época de Brecht produziria uma realidade muito menos miserável do que o impertinente “ativismo” dos “analfabetos políticos contemporâneos”. Entretanto, são com estes que temos de lidar em vias de uma educação política de qualidade superior.

Agora, lidar com o analfabetismo político contemporâneo passa necessariamente por entender as suas causas. E, como apontou Jean, uma delas, a mais contemporânea e universal aliás, foi justamente a universalização a qualquer custo de uma educação-mercadoria de baixa qualidade que criou cidadãos-embalagens em cujo interior qualquer conteúdo pode ser acriticamente inserido.

E a elite brasileira, afrontada não só por essa universalização da educação, mas também e principalmente pela todavia tímida distribuição de renda garatujada pela era Lula, se aproveitou desse “analfabetismo político contemporâneo” produzido pela própria era Lula para capitulá-la. Os elitistas-oligárquicos PSDB de Aécio e PMDB de Cunha sequer precisaram produzir a massa de analfabetos-invólucros acríticos nos quais incutir as suas ideologias golpistas que, massificadas, estão dando cabo da era Lula.

Justiça seja feita, os atuais analfabetos políticos tupiniquins são apenas massa de manobra nas mãos da reacionária elite brasileira. Mais ainda, Jean não nos deixa esquecer de que “o analfabeto político é uma vítima daquele Brecht considera o pior de todos os bandidos: o político vigarista, desonesto intelectualmente, corrupto e lacaio das grandes corporações”.

Os peessedebistas e peemedebistas todos –mas não só estes, obviamente- parecem se encaixar perfeitamente nesse perfil corrupto, vigarista e pelego das grandes corporações traçado por Brecht que tanto vitima os analfabetos políticos. Até mesmo Lula e o seu PT encontram dificuldade em demonstrar que não participam dessa vitimização, uma vez que a corrupção e a subserviência à grandes corporações também brilhou forte desde que o poder esteve com a estrela vermelha petista.

Entretanto, uma diferença deve ser feita entre o “modus operandi” elitista e o petista. Quando Jean sustenta que  “é preciso ter alguma compaixão pelo analfabeto político: insistir na luta para que ele tenha acesso a educação de qualidade”, ainda temos que foi na era Lula que essa “compaixão”, melhor dizendo, essa consideração com os analfabetos, sejam eles políticos ou não, se deu de maneira mais efetiva, ainda que a realidade esteja distante da idealidade. Realidade e ou projeto que, é importante frisar, nunca foi nem será pauta da elite.

A tão criticada produção lulista do que Jean chamou de “diplomados analfabetos funcionais” que hoje são um exército de analfabetos políticos, entretanto, participa ativamente da rendição do que resta do lulismo mais pela manipulação golpista da elite reacionária do que pelo próprio projeto iniciado por Lula. Até onde podemos sustentar que a falência da era Lula não é precisamente a interrupção a qualquer custo, pelas elites, do projeto do presidente metalúrgico?

As palavras de Jean Wyllys sobre do que deve ser feito com os analfabetos políticos, quais sejam, “é preciso ter alguma compaixão pelo analfabeto … insistir na luta para que ele tenha acesso à educação de qualidade”, mutatis mutandi, não cabem perfeitamente na boca e nos feitos de Lula? Só é possível negar isso, contudo, estabelecendo-se para essa desafiadora revolução histórica um prazo menor do que 14 anos – o tempo de vida do projeto de Lula- e, ao mesmo tempo, esquecendo-se do “Brasil, Pátria Educadora” de Dilma.

Não fosse a apressada sede golpista das elites em retomar o poder e a exclusividade no acesso à educação de qualidade no Brasil, do projeto educacional de Lula poderia ser dito apenas que está longe de ser concluído. Transformar milhões de analfabetos em cidadãos alfabetizados que, no entanto, ainda são analfabetos políticos, mas que, compreendidos em um processo histórico-geracional contínuo, futuramente formará uma população mais educada, inclusive politicamente. Eis o caminho que a era Lula abriu no Brasil.

Essa senda só não pode ser considerada utópica porque a própria vida de Lula é um exemplo concreto dessa revolução. Nordestino pobre e analfabeto, Lula alfabetizou-se minimamente para exercer sua profissão de torneiro mecânico em São Paulo. Essa parca e funcional alfabetização, em meio à exploração da indústria paulista que ele e os seus iguais sofriam, mas que ele ansiava reduzir, levou-o a perceber seu analfabetismo político e a desejar saná-lo. E a virtuosidade desse processo pessoal fez com que ele se tornasse não só presidente do Brasil como também Doutor Honoris Causa em 27 universidades ao redor do mundo.

Em se tratando de alfabetização política, como então acreditar mais no vil projeto histórico e desigualitário das elites, hoje mascarado de impeachment e que de forma alguma pretende democratizar o acesso à educação, do que no revolucionário, todavia inconcluso projeto educacional da era Lula, que segue insistente com Dilma no seu “Brasil, Pátria Educadora”? À boa crítica de Jean Wyllys à educação da era Lula, a seguinte pergunta: em se tratando de educação, a pressa não é inimiga da perfeição?

 

“Cidadãos em branco” e o impeachment

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Ilustração: Rafael Silva

Dado que cidadania é a participação ativa de um indivíduo na vida e no Governo que tem em comum com os demais, eleger representantes políticos, isto é, votar, é condição para se ser cidadão. No Brasil essa participação é obrigatória inclusive. Muitos brasileiros, entretanto, por opção política votam em branco. Esses, digamos assim, “cidadãos em branco” argumentam, por exemplo, que o sistema eleitoral é uma farsa, um jogo de cartas marcadas, da qual, portanto, melhor é não participar.

Quando criticados, dizem de pronto que se mais da metade das pessoas fizessem como eles, isto é, votassem em branco, uma eleição seria seria cancelada. Acreditam que assim os políticos seriam confrontados com a insatisfação popular e, mais ainda, com seus próprios desgovernos.

A anulação de uma eleição devido a uma maioria de votos brancos, por um lado, não existe, é apenas um boato. Por outro, há formas mais efetivas de demonstrar descontentamento aos políticos do que deixar que menos pessoas os escolham. Sem dizer que é muita ingenuidade esperar que mais da metade dos eleitores abram mão desse direito que constitui não só a cidadania, mas também a própria democracia na qual vivemos.

Mais ainda, o voto em branco, por mais que se tergiverse, nada pode contra os votos efetivos dados aos candidatos que não se quer ver eleitos. Muito pelo contrário, deixam os demais eleitores sozinhos na decisão do futuro que, com efeito, será comum a todos. E, por fim, votar em branco é um “tiro no pé”, pois de forma alguma dispensa os “eleitores em branco” de estarem sujeitos aos resultados das eleições.

Dito isso, os “eleitores em branco”, por coerência, não deveriam se importar nem com os representantes efetivamente escolhidos, nem com a performance deles no poder. Um voto em branco é uma mensagem em branco que não tem como ser preenchida posteriormente. Todavia, não é isso o que acontece.

O mais recente exemplo da incoerência que os “cidadãos em branco” cometem pôde ser visto em seguida da votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff dia 17 de abril de 2016. Depois de 367 deputados federais votarem a favor do impeachment com discursos e justificativas absurdas e vergonhosas, muitos dos que votaram em branco na eleição deles, em 2014, criticaram-nos, e, o que é pior, aos que os elegeram.

Aqui é preciso colocar que no Brasil foram mais de 10 milhões de votos em branco em 2014. Só no Rio de Janeiro foram 1.701.650 votos para ninguém. Considerando-se que Jair Bolsonaro recebeu 464.572 votos, Clarissa Garotinho 335.061, Eduardo Cunha 232.708, Felipe Bornier 105.517, só para citar os que mais precisavam não ter sido eleitos, os “cidadãos em branco” e seus votos imprestáveis poderiam sim ter feito uma gigante diferença. E a certeza é matemática!

A tática dos “cidadãos em branco, portanto, foi um “tiro no pé”, mas não só no deles. Também no de milhões de “cidadãos válidos” e lúcidos que usaram seus preciosos votos para eleger Jeans Willys, Chicos Alencares e Jandiras Feghalis que na mesma vergonhosa sessão do impeachment foram um farol de esperança ética e política na escuridão em meio ao mar de lama comandado por Cunha.

De modo que a péssima qualidade da Câmara do Deputados que a todos envergonhou em abril de 2016 também é responsabilidade dos que se abstiveram de escolher deputados federais decentes em 2014. E a péssima qualidade dos deputados que foram eleitos porque dez milhões de votos foram desperdiçados se refletiu diretamente na péssima qualidade dos discursos pró-impeachment e no absurdo antidemocrático que foi a abertura impeachment de Dilma.

Para aqueles que votaram válida e inteligentemente nas eleições de 2014, mas que estão tendo seus votos impeachmados juntamente com o impeachment de Dilma, os “cidadãos em branco” devem ser os alvos de crítica preferenciais. Mais do que os que votaram em Bolsonaros e Cunhas da vida até, pois são justamente os que poderiam ter contribuído para uma Câmara dos Deputados mais representativa, mas que nada fizeram além de reclamar, primeiro, que não havia candidatos a altura de suas expectativas nas eleições passadas, e, agora, dos que foram eleitos e que votaram antidemocraticamente na sessão do impeachment.

Oxalá Jaires Bolsonaros e Eduardos Cunhas da vida, eleitos e empoderados por quem vota, possam convencer os “cidadãos em branco” de que mais produtivo do que seus inúteis votos brancos é não ter a preguiça de escolher, se não ótimos representantes, que nem sempre há, pelo menos os menos piores. Espero que a revoltante sessão do impeachment tenha podido convencer os “cidadãos em branco” dessa necessidade, pois diante da miséria representativa que todos vimos na sessão mais longa e polêmica da história da Câmara dos deputados o menos pior é o novo melhor. Se é que, politicamente, não foi sempre assim.

 

O atual Leviatã brasileiro

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Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O filósofo Thomas Hobbes, autor de o Leviatã, uma das obras mais importantes sobre o pensamento político, fala da sociedade enquanto um contrato social travado por todos os cidadãos com o objetivo de dar cabo da “eterna luta de todos contra todos”. Para Hobbes, essa tarefa só pode ser realizada pelo governo de um soberano absoluto: o Leviatã.

Dono das leis e do destino de seus súditos, o Leviatã, criado e empoderado por estes, representa uma força invencível à qual todos os súditos devem se curvar obrigatoriamente. Já o Leviatã, ao contrário, por não ter feito trato algum com quem quer que seja, mas ser o resultado desse trato, não deve nada a ninguém. O Leviatã, portanto, é absolutamente livre, seja para criar leis, seja para desrespeitá-las quando achar necessário.

Novamente: o Leviatã é invencível! Quando é vencido, entretanto, é porque o verdadeiro Leviatã é outro: justamente o vencedor.

Algum paralelo com que aconteceu na Câmara dos Deputados da República Federativa do Brasil em 17 de abril de 2016 na aprovação do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, até então a figura soberana do Estado, ou seja, “A” Leviatã? A vitória do presidente da Câmara e articulador central do golpe, Eduardo Cunha, cujo poder iniciou a subjugação de Dilma, não o coloca como o verdadeiro Leviatã Tupiniquim?

Dilma, a soberana oficial, está sendo acusada, acuada, e já começou a ser punida pela lei por um crime que muitos dizem sequer existir. Cunha, o Leviatã intempestivo em cujas costas pesam muitas suspeitas e investigações, que, diga-se de passagem, em nada diminuem seu poder, parece não ser tocado pela lei, mas, em troca, toca-a ao seu bel-prazer e interesses particulares. Como em Hobbes não há dois Leviatãs, mas um só, quem então é o verdadeiro Leviatã tupiniquim esses dias?

Considerando a teoria de Hobbes, não é que Cunha tenha saído do meio do povo e, por força e poder próprios, tenha se colocado acima da lei e contra os interesses do povo. Na teoria hobbesiana, é sempre o próprio povo que erige seus Leviatãs. Cunha, portanto, é o soberano que, ainda que indiretamente, foi posto lá por todos os cidadãos brasileiros. Não aceitar o poder e a liberdade política de Cunha é uma coisa. Outra bem diferente, todavia, é não se colocar como responsável por tal empoderamento e liberdade.

Com efeito, a escolha democrática que cada um de nós cidadãos faz nas urnas tem a perigosa capacidade de mentir que aqueles que ocupam o poder mas que não receberam o nosso voto não são produtos nossos. Isso, porém, é “o” ledo engano no ambiente democrático. Na verdade, todos os que votam, não importando em quem, constituem o contrato único que coloca alguns no poder. Por mais amargo que seja essa engolir essa verdade, todos nós fizemos de Cunha o Leviatã que ele goza ser.

Menos difícil de enxergar, contudo, é que fomos nós, o povo brasileiro, que elegemos, com nossos votos, os 367 deputados que, ao votarem em favor do impeachment de Dilma, outra coisa não fizeram que corroborar o poder de Cunha. Entretanto, o processo que colocou os 367 golpistas no poder é o mesmo que fez de Cunha o detentor de um poder leviatãnico capaz de depor a Leviatã Dilma.

Para os que não votaram nesses 367 deputados golpistas nem em Cunha não é difícil restar a sensação de traição, de tristeza. Tais sentimentos, no entanto, são infrutíferos, covardes até, pois além de nublarem o fato de que a eleição dos golpistas e de Cunha foi uma produção coletiva, alienam-nos do verdadeiro inimigo: nós mesmos, o povo, os eleitores dos nossos próprios algozes.

Essa indigesta verdade está muito bem contemplada pela frase de Plauto, escrita em 200 a.C., que Hobbes tornou célebre no século XVII: “O homem é o lobo do homem”, que significa que o homem é o maior inimigo do próprio homem. Para adequá-la ao “momentum brasilis”, entretanto, o célebre lema fica melhor assim: o eleitor brasileiro é o lobo do próprio eleitor brasileiro. Depois da votação do dia 17 quem não iria concordar com isso?

Atentar para a filosofia de Thomas Hobbes, portanto, é o difícil exercício de não transcendentalizarmos os revezes da sociedade que nós, imanentemente, constituímos. Enquanto culparmos Cunha, os 367 deputados golpistas e os seu eleitores apenas, e nos colocarmos como vítimas deles todos, cometemos um duplo erro. O primeiro é esquecer de que o nosso inimigo é também produção nossa. O segundo, e mais importante, é deixar de considerar que se o inimigo é produto nosso, sua deposição outrossim permanece nas nossas mãos.

Embora Cunha seja o maior candidato a Leviatã tupiniquim, mais poderoso que a própria Leviatã eleita democraticamente, uma vez que a está depondo, ele só goza de tanto poder porque fomos nós, o povo, que demos, pelos longos e tortuosos caminhos da nossa democracia representativa, tal poder a ele. Sem esse poder, contudo, Cunha é só mais um de nós, tão impotente quanto os que se frustram por nada poderem contra o golpe que o próprio Cunha comanda soberanamente.

O golpe de Cunha contra Dilma, na verdade, é um golpe contra a democracia, e, portanto, contra o poder que os cidadãos historicamente conquistaram para não estarem absolutamente sujeitados a um poder supremo e invencível que Hobbes chamou de Leviatã. E Eduardo Cunha é esse projeto em curso de Leviatã tirânico. Dilma, em troca, por estar se sujeitando à lei brasileira e aos seus procedimentos, é uma melhor encarnação do poder soberano, pois veste a toga do Leviatã sem com isso se esquecer de que essa veste é apenas seu uniforme de trabalho. Dilma, portanto, é uma Leviatã democrática.

Agora, por que o Leviatã tirânico Cunha está vencendo a Leviatã democrática Dilma? Ora, se atentarmos ao princípio que institui o Leviatã apontado por Hobbes: “a eterna luta de todos contra todos”, e ao lema que o filósofo celebrou: “Homo homini lúpus” (o homem é o lobo do homem), o Leviatã Cunha, enquanto encarnação do “Lúpus Máximus”, aliena mais eficazmente os seus súditos da verdade mais difícil de suportar, qual seja: que eles mesmos são os seus próprios e únicos inimigos, afinal, Cunha permanece o Grande Lobo espetacular!

Já Dilma, mediante a democracia que há décadas defende, que inclusive lhe custou sessões de tortura na ditadura militar, faz questão de não esconder essa sempiterna guerra de todos contra todos. Suas políticas sociais, tais como, o Bolsa Família, o Minha Casa Minha vida,  o PROUNI que universaliza o acesso à universidade pública, só para citar alguns, tudo isso, apesar de extremamente necessário e venturoso, é a impertinência de não esconder que, sim, há fortes e históricos lobos sociais que abocanham lobos mais fracos e que é preciso aclará-los e encará-los se quisermos exterminá-los.

A tirania leviatãnica de Cunha, por seu lado, visa justamente esconder essa guerra. Não, obviamente, para que ela seja amenizada, mas, ao contrário, para que os lobos fortes como ele se fortaleçam mais ainda e para que os fracos se tornem mais inofensivos, e, portanto, mais facilmente abocanháveis. Fazer de Cunha o Leviatã é coisa de quem tem medo de aceitar a verdade hobbesiana da guerra de todos contra todos. Manter Dilma no lugar da figura mítica e poderosa, em troca, é enfrentar essa guerra corajosamente. Não é à toa que ela é chamada de coração valente. Oxalá o Leviatã democrático vença o tirânico!

A democracia brasileira e seus novos inimigos

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Neste domingo 17 de abril de 2016, durante a votação para aprovação do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, estarão finalmente sendo preenchidas as vagas para inimigos políticos da democracia brasileira abertas há pouco mais de um ano pelos perdedores das últimas eleições presidenciais.

Com efeito, ainda que compor o golpe possa imediatamente render muito a muito poucos, estratégia que sempre foi o projeto histórico das elites, a verdadeira História, que não permanecerá dando destaque apenas para os interesses antidemocráticos atuais, não permitirá que a posteridade se esqueça destes criminosos ou defensores de criminosos que pretender incriminar uma presidente democraticamente eleita, contra quem, até aqui, nenhum crime foi comprovado.

Assim como muitos dos militares que compuseram o golpe de 64, que até recentemente nomearam ilustremente ruas, praças, hospitais e escolas brasileiras, mas que com o andar da carruagem histórica foram desmascarados como assassinos e torturadores, e que tiveram seus nomes retirados de espaços públicos, estes que votarão para o impeachment não deverão tem destino diferente.

Ainda que Temer, Cunha e Aécio ganhem a antiética batalha que travam contra a democracia e a legalidade, a guerra da História eles não tem como ganhar. A frase de Abraham Lincoln é pertinente aqui: “pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo”.

O intrigante na atual situação tupiniquim é que os golpistas candidatos a inimigos históricos da democracia brasileira sequer enganam todos por algum tempo nem alguns por todo o tempo. São, tacitamente, muito menos críveis do que a vítima do golpe que montam a qualquer preço. Apesar disso seguem na farsa que pretende  chamar ilegalidade de legalidade, corrupção de solução à corrupção, tirania de democracia.

Do outro lado, Dilma, que durante a ditadura militar aberta pelo golpe contra a democracia brasileira no recente milênio passado, foi presa e torturada por lutar justamente contra a ditadura e em favor da democracia. Ela, ainda que seja deposta e imediatamente estigmatizada pela irracionalidade golpista, em troca, é a figura da atual distopia tupiniquim que mais tem chances de ser absolvida pela imperiosa História e ser inclusive considerada a vítima deste conturbado período.

Inevitavelmente, à desumanidade e à tirania sofridas por Dilma na ditadura militar serão somadas a ilegalidade e a antiética que ela sofrerá caso os poderosos golpistas que tentam depô-la tenham sucesso. Talvez o único “pecado” histórico de que Dilma não consiga e nem deva ser “perdoada” seja não ter conseguido manter o Brasil na ascensão econômica aberta por Lula e desejada por todos.

Entretanto, um governo problemático nunca motivo para um presidente ser estigmatizado eternamente, tampouco deposto. Maus governos, até Lula, foram a realidade do nosso país. Seja o oligarca maranhense do PMDB, seja o sociólogo paulista do PSDB, só para falar dos mais recentes, sucatear um pouco mais a histórica “sucata brasilis” nunca fez deles inimigos da democracia no Brasil. Dilma, portanto, simplesmente por ser a atual protagonista da crise econômica, nunca será inimiga histórica do povo nem da democracia brasileira.

Já aqueles que votarem em favor do impeachment dela, ainda que não sejam vitoriosos, jazerão estigmatizados enquanto inimigos da democracia. Sem dizer que votar pública e abertamente em favor do golpe é defender interesses elitistas, os verdadeiros produtores da corrupção sistêmica do nosso país. Desse modo, os golpistas são duplamente antidemocráticos.

Que o estigma de inimigo da democracia que doravante estará com todo aquele que votar a favor do impeachment de uma presidenta que não cometeu o polêmico e pouco claro “crime de responsabilidade” tenha o peso dessa postura duplamente antidemocrática. De pronto, serão duplamente inimigos da democracia e do futuro sócio igualitário que a maioria absoluta dos brasileiros mais precisa, e que somente há pouco tempo começaram a ser afetivamente realizados.

Depressão pré-golpe

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Quem prima pela democracia não pode estar tranquilo esses dias no Brasil. Muito pelo contrário! O golpe parlamentar que está sendo montado há mais de um ano por grupos oligárquicos que, é importante frisar, não conquistaram democraticamente o direito de comandar o país, está chegando ao seu clímax neste domingo 17 de abril de 2016 com a votação da câmara deputados para que, finalmente, seja enviado ao senado a proposta de impeachment contra Dilma Rousseff.

 

E o fantasma golpista é ainda mais assombroso porque sobre as costas daqueles que o encenam pesam crimes e suspeitas criminosas gravíssimas. A falta de tranquilidade, melhor dizendo, a depressão pré-golpe pela qual muitos de nós está passando esses dias, portanto, advém desse horizonte distópico no qual o golpe que está para ser votado não é outro que o golpe da corrupção, o golpe da velha, mui corrompida e arraigada elite brasileira contra a igualdade social que finalmente começou a ser construída no Brasil desde que o PT assumiu a presidência do Brasil há 14 anos.

 

Para dramatizar ainda mais a depressão democrática pela qual o Brasil passa, a vítima espetacular do golpe, em primeiro lugar, é uma cidadã e política brasileira contra quem nenhum crime foi provado, que não enriqueceu ilícita nem suspeitamente, e que não apareceu em nenhuma das muitas e longas listas de propina que elencam os verdadeiros nomes da corrupção tupiniquim. E, em segundo e mais importante lugar, o golpe é justamente contra a presidenta que investiu como nenhum outro líder nacional na investigação e na punição da corrupção que, mais do que ter feito história “no” Brasil, fez “a” história deste país.

 

Como não estar deprimido diante de tamanho absurdo? Porém, o que realmente deprime os espíritos democráticos no golpe que está nesse horizonte próximo? Em primeiro lugar, a perda da nossa jovem democracia, como muito se fala hoje em dia. Entretanto, algo mais angustiante se evidencia nesse processo golpista. Todos aqueles que se indignam profundamente com o possível golpe forjado pelo PSDB de Aécio e levado adiante pelo PMDB de Cunha –estes sim nomes constantes em muitas das listas de propina- são golpeados na intempestiva crença de que a ação política precisa ser também ética.

 

Se há algo que o presente momento político brasileiro tem para cruelmente relembrar a todos é que, como bem esclareceu Maquiavel lá na renascença da humanidade, o poder político não é e não deve ser ético se de fato visar o poder efetivo. Tanto lá e antes como aqui e agora, trata-se somente da vil luta pelo poder, na qual quaisquer valores éticos que porventura venham moderar esta luta devem ser, como de fato são, descartados sistematicamente.

 

Talvez a não eticidade intrínseca do jogo político pelo poder há muito evidenciada pelo autor de O Príncipe e atualmente escancarada pelos golpistas tupiniquins seja o maior golpe contra os jovens e utópicos ideais democráticos contemporâneos, pois sujeita-os verticalmente ao velho e distópico jogo-a-qualquer-custo pelo poder que atravessa incólume os tempos e as aventuras de cunho socialista.

 

Realmente, para muitos é bastante difícil aceitar que uma presidenta (até aqui) honesta e democraticamente eleita pelo povo seja deposta por indivíduos e grupos políticos e midiáticos corruptos que querem tomar o poder e presidir o brasil ilegitimamente. Entretanto, o que vemos é justamente isso: a luta pelo poder completamente alienada da ética.

 

Diante dos fatos, devemos nós, que estamos sofrendo de depressão pré-golpe, abandonar a utopia na qual a política deve se pautar eticamente para, finalmente e a contragosto, aceitarmos a insanável alienação da política em relação a ética? Para os democratas angustiados resta somente a distopia da luta a qualquer preço pelo poder?

 

É preciso, contudo, esclarecer que custo é este. A aventura política-antiética-golpista brasileira começa cobrando o seu alto preço da própria democracia, fazendo-a valer muito menos, quase nada, para findar exigindo não menos da igualdade social que com muito esforço, mas também com muita ventura, começou a ser construída no Brasil nos últimos quatorze anos. O preço do golpe, portanto, é o fim do projeto sócio igualitário e da democracia que, somente ela, pode realizar maximamente.

 

Estar deprimido pela possibilidade de um golpe no Brasil, por mais alienado que seja em relação ao que esclareceu Maquiavel, não é insanidade nem ignorância. Ao contrário, é o sentimento lúcido de quem não aceita que as coisas devam ser eternamente como já foram. Desacreditar do teórico político medieval que mostrou a cisão irreconciliável entre política e ética, portanto, é acreditar na revolução. Cultivar a depressão pré-golpe é insistir que a política deve sim estar sujeita a princípios éticos.

 

E que essa depressão pré-golpe de tantos, no pior cenário, isto é, no sucesso do golpe, torne-se a depressão pós-golpe de muitos, quiçá de todos, pois mesmo que o presente projeto sócio igualitário brasileiro seja golpeado inoportuna e injustamente, pelo menos o futuro tupiniquim não estará totalmente escravizado pelo passado. Maquiavel está certo e é absolutamente manualesco para os golpistas, mas não para todos aqueles que querem igualdade social e uma verdadeira democracia para si.

 

 

A miserável saída de cena do PMDB

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O presentíssimo espetáculo político brasileiro, ao contrário do que as telas de TV golpistas mentem, não terá um final feliz com um golpe, mesmo que “branco”, isto é, político-jurídico. Em primeiro lugar, porque o que teremos em seguida será algo que atenderá ainda menos pelo nome de democracia, e, em segundo, porque a “morte” em cena aberta dos seus protagonistas, quais sejam, Dilma Rousseff e o PT, apenas deixará o palco livre para atores muito menos virtuosos e muito mais descompromissados com o bem-estar da plateia-povo-brasileira, tais como, Michel Temer e Eduardo Cunha, do PMDB.

Entretanto, não é outro o triste “working process” que o PMDB está produzindo para reestrear centralmente na Broadway política tupiniquim. Tão triste que nem um dos seus maiores roteiristas teve coragem de estar presente na cena-ensaio na qual o partido anunciou que estava abandonando o governo. Temer foi  o charlatão-mor que, de um lado, articulou diretamente o abandono do Planalto para chegar enviesadamente à presidência, mas que, de outro, não compareceu ao ato do abandono para não escancarar o fato de que, na verdade, quer nada mais nada menos que a presidência da república, enviesadamente mesmo.

Porém, à plateia que permanece atenta, não é difícil observar o que quer o espetáculo peemedebista com os gritos de “Fora PT”  e “Brasil pra frente, Temer presidente” que ecoaram rapidamente na sessão de três minutos realizada na Câmara dos Deputados, dia 29 de abril de 2016, na qual o partido, por aclamação, decidiu abandonar o governo Dilma. Tampouco as palavras de Eliseu Padilha, quais sejam, “temos de ter o partido fora da base do Governo para nos tornarmos um player em 2018” afastam a certeza de que não é o distante 2018 que visa o PMDB, mas esse mesmo 2016 crísico&agonístico.

E o patrocínio intensivo e apressado do PMDB a esse ato crísico&agonístico da “ópera brasilis” outra coisa não busca senão nublar o que disse o líder do PSOL, Ivan Valente, que “não podemos aceitar um impeachment sem argumentos jurídicos da forma como está ocorrendo”. Isso porque, embora o processo de impeachment exista na legislação brasileira, ele não foi concebido para funcionar como arma política. Nas palavras da própria Dilma: “nós estamos discutindo impeachment concreto sem crime de responsabilidade. E impeachment sem crime de responsabilidade é golpe”.

A declaração da controversa Marina Silva em relação ao desembarque do PMDB do governo tem ao menos a pertinência de relembrar-nos de que o PMDB é o mesmo partido de sempre, que decide romper com o Governo sem dar satisfação à sociedade nem pedir desculpas por ter sido um dos responsáveis pela atual crise. A política em cima do muro de Marina é virtuosa ao menos em sustentar que o PMDB quer apenas “se descolar da crise política e reinventar-se como solução. Continua o mesmo e velho PMDB tentando renascer das cinzas da fogueira que ele ajudou a atear”.

Não obstante, o tiro já saiu pela culatra peemedebista. A ordem do partido para que todos os cargos públicos, inclusive os ministérios da Ciências e Tecnologia, Aviação Civil, Minas e Energia, Agricultura, Saúde e Portos, sejam entregues não foi, nem tem como ser cumprida. Os seis ministros peemedebistas estão dispostos a continuar em seus respectivos cargos no governo de Dilma. Sem dizer que Temer, o articulador do desembarque, não desembarcou nem desembarcará de sua vice-presidência tacitamente acessória.

E para que as contradições peemedebistas não parem por aí, basta dizer que 24 horas depois do espetacular teatro de três minutos do PMDB, o senador Roberto Requião, do mesmo partido!, disse que Temer, na verdade, estava aplicando um golpe no próprio PMDB, pois, segundo o senador, não havia quórum para deliberar a saída do governo Dilma. Sugeriu ainda que era “só conferir nos vídeos”. Talvez por isso tenham escolhido nada claro sistema de aclamação, onde não se apura voto a voto a decisão da maioria. Um grito basta para fazer “democracia” para esse partido.

O PMDB, portanto, está aplicando um duplo golpe: o primeiro, na democracia que outrora ajudou a construir, e o segundo, em si mesmo, rachando-se em peemedebistas que concordam e peemedebistas que discordam do próprio PMDB. Dilma, a protagonista do primeiro golpe, acaba se beneficiando com o segundo. Rousseff, em vez de renunciar, como quer desesperadamente o PMDB, se aferra ainda mais às suas obrigações. Como ela não fez questão de esconder, não renuncia, “não desembarca” em hipótese alguma.

Dilma cancelou inclusive a sua viagem para os Estados Unidos na próxima quinta-feira para não passar temporariamente o comando do país ao seu vice, mentirosamente desembarcado, Temer. Como deixar seu objeto mais precioso, isto é, a nação que governa, nas mãos de um “companheiro” tão vil e tão pouco democrático?

E o tiro que já saiu pela culatra peemedebista findará como um legítimo tiro no pé se, como falou Marco Aurélio Mello, ministro do STF, não houver fato jurídico que respalde o processo de impedimento da presidenta Dilma, pois, nesse caso, “esse processo não se enquadra em figurino legal e transparece como golpe”. O problema, entretanto, é que esse tiro no pé atinge o povo brasileiro, visto que uma das estratégias golpistas é fazer com que a economia nacional, que afeta a todos, acompanhe os mesmos acordes sombrios da crise política que conta com a colaboração espetacular do PMDB.

O conselho de Mello, de que “agora precisamos aguardar o funcionamento das instituições … precisamos nessa hora de temperança”, parece não fazer parte do contemporâneo ideário peemedebista, que em parcos três minutos, e por razões que nem mesmo dentro do próprio partido encontram eco universal, saiu da cena que ocupa há trinta anos. Cena esta aliás que só está tão desagradável por conta da “coadjuvância” do próprio PMDB.

E agora o partido, esquecendo-se estrategicamente de sua velha e cada vez menos crível fala democrática, covardemente acusa a parceira de cena, Dilma, de ter errado a sua. Mas ela, como bem disse, jamais desembarcará deliberadamente da complexa e nem sempre agradável ópera histórica que no momento protagoniza, qual seja, o governo do Brasil. Bem diferente do PMDB…

Esquerdas brazukas

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Quando se afirma que um partido político não é “mais” de esquerda, de onde exatamente é proferida essa crítica? Do mesmo chão material e contraditório a partir do qual esse tal partido atuou e atua, ou, em vez disso, do topo de algum ideal abstrato que não muito valentemente preestabelece o que é e o que deve ser “a esquerda”, independente das contingencias da realidade?

No primeiro caso, a crítica é pertinente pois não exige do criticado conhecimento nem performance alguns que já não sejam conhecidos nem tenham sido “performados” por quem critica. No segundo caso, entretanto, a crítica é vazia porque solicita do criticado conhecimento e performance que quem o crítica ou não exigiu de si, ou não teve oportunidade de conhecer nem “performar” antes de criticar.

Muitos são os “esquerdistas” que sustentam que “o PT não é mais um partido de esquerda”. Assim falam pois pensam que os governos de Lula e Dilma foram demasiadamente permissivos com o liberalismo econômico, que não investiram na construção de uma consciência de classe àqueles que dão nome ao partido, quais sejam, os trabalhadores, e que não conseguiram escapar ilesos do mar de lama da corrupção brasileira.

Quem critica o PT do belvedere teórico de Marx e Engels ou de algum parlatório moralista não tem papas na língua para afirmar que o PT não é “mais” um partido de esquerda. Agora, quem acha que a prática vale mais que a teoria, certamente terá dificuldade em sustentar que o PT deixou de ser de esquerda ao considerar a aventura igualitária inédita que este partido trouxe e ainda está tentando trazer ao Brasil.

Considerando-se, por exemplo, a exclusão do Brasil do mapa mundial da fome, o revolucionário acesso ao ensino superior desde que o ENEM foi instituído, a energia elétrica e a água potável que finalmente chegaram aos confins do historicamente desassistido nordeste brasileiro, e, recentemente, a lei que aumenta o imposto sobre ganhos de capital, sancionada em 18 de abril pela presidenta Dilma Rousseff, de que lado da régua política esquerda-direita o PT deve ser locado?

Mesmo levando-se à risca a teoria marxista, do PT ainda não pode ser dito que não é “mais” de esquerda. Se, por um lado, o Partido dos Trabalhadores não realizou a revolução rápida e violenta que lemos no Manifesto Comunista, por outro, a revolução lenta e histórica que pode ser lida n’O Capital ainda mantém o PT dentro do necessário horizonte revolucionário.

A revolução rápida e violenta, que muitos consideram “a” utopia do sistema marxista, tem o vício de não contar com as contradições do inimigo para dar cabo dele. Pretende pulá-las. Entretanto, ao não serem levadas em conta, o revolucionário tampouco leva em conta as suas próprias contradições, que, estas sim, devem ser conhecidas e superadas antes de se atacar as do adversário.

Já a revolução histórica, que trabalha árdua e ininterruptamente sobre e contra as contradições do inimigo, que, não obstante, pode ser acusada de “reformista”, essa tem ao menos a virtude de poder conhecer as suas próprias contradições nesse processo, de reformá-las, melhor dizendo, superá-las, paralelamente ao conhecimento e à superação das contradições do inimigo.

E se a abertura liberal do PT nos seus três governos e meio, o não investimento imediato numa consciência de classe total, até mesmo a vulnerabilidade à corrupção, forem justamente as contradições desse jovem partido que, primeiro, devem ser conhecidas, não teoricamente, mas na prática concreta, para só então poderem ser verdadeiramente superadas?

Um partido de esquerda deve nascer pronto e nunca dispor do direito de evoluir? Não é isso que estão exigindo do PT?

O Partido Comunista Brasileiro, com efeito, é o que mais pode criticar a “não esquerdice” do PT. No entanto, o forte e íntegro idealismo do PCB nem de perto produziu as mudanças materiais concretas que o seu alvo de crítica implantou. É muito fácil permanecer íntegro longe da realidade. Bem mais difícil, corajoso, e por que não dizer verdadeiramente revolucionário é construir essa integridade com as mãos sujas do sujo barro da realidade.

Da segurança de um ideal de esquerda é fácil dizer que o PT não é “mais” um partido de esquerda. Agora, e se o verdadeiro esquerdismo só ganhar sentido a partir do chão material sobre o qual ele é tentado, chão esse que em momento algum está livre de contradições, sejam as da realidade que se deseja revolucionar, sejam ainda as do próprio exercício de um diretiva de esquerda?

O próprio Lula é um exemplo concreto desse esquerdismo material. Entre escapar da miséria nordestina e ser explorado pela indústria metalúrgica paulista, o ex-presidente “analfabeto” elegeu o pragmatismo como via revolucionária. Se tivesse se aferrado apenas a ideias revolucionários anacrônicos e eurocêntricos provavelmente não teria tirado tantos milhões de pessoas da miséria nem colocado outros milhões na universidade pública, coisas que nenhum idealista de esquerda fez no lugar dele.

Idealismos à parte, Lula e o seu PT são as forças de esquerda mais efetivas da história do nosso país, apesar da intimidade que tiveram –e ainda têm- com o liberalismo, da consciência de classe trabalhadora até aqui não investida como prega a cartilha marxista, e da corruptividade com a qual se veem envolvidos uma vez imersos na não menos corrupta estrutura política que faz a história do Brasil.

E se a verdadeira revolução for nada além de processo histórico de tentativas e erros em busca de um futuro menos errático?

Portanto, se é de um ideal de esquerda que muitos insistem que o PT não é “mais” um partido de esquerda, essa crítica, digamos assim, platônica, que acha que a mudança material concreta realizada pelo PT no Brasil deveria ter se dado de outra forma, esses críticos deveriam, em primeiro lugar, experimentar o gosto amargo que é conduzir um país cercado de velhas oligarquias. Em segundo lugar, realizar uma mudança material tão ou mais efetiva que a que o PT construiu. Só assim teriam o direito de dizer que o PT é “menos” de esquerda do que eles.

Utopias e distopias tupiniquins, de 2013 à 2016

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No calor utópico do junho de 2013 tupiniquim, a multidão das ruas tinha uma agridoce certeza de que produzia o começo de uma mudança ético-política virtuosa na sociedade brasileira. Porém, a vitória dos 20 centavos nas tarifas de ônibus, a promessa de reforma política arrancada de Dilma em cadeia nacional, os gritos-desabafos coletivos contra o fundamentalismo religioso de Marco Feliciano e os seus e contra a perniciosidade midiática da Rede Globo e afins, não tardaram, em 2016, a se transformarem em passagens de ônibus ainda mais caras, em um parlamento mais à direita e mais fundamentalista do que se poderia imaginar, e no agigantamento antidemocrático e claramente vingativo da Rede Globo.

O que em 2013 era uma promissora utopia para aqueles manifestantes, em 2016 revelou-se a mais indigesta distopia, ou seja, um lugar mais opressivo do que se esperava e, mais importante, do que se queria. Hoje, não é difícil enxergar que até a democracia e a justiça estão perdendo os seus “topos”, isto é, os seus lugares na terra brasilis. Já aqueles para quem as demandas de 2013 e os seus espetaculares “vândalos” eram augúrios distópicos, 2016, de certa forma, é uma utopia quase realizada.

Três anos depois do junho de 2013, é difícil não concluir que foi ingenuidade das “flores” da chamada primavera brasileira acharem que cutucar a velha onça oligárquica com a vara curta das insatisfações populares não traria uma mordida muito mais violenta da fera do que as incontáveis bombas de gás lacrimogênio semeadas pelas polícias nos asfaltos urbanos e do que a desclassificação peremptória do movimento pela mídia tradicional em nome dos famigerados “cidadãos de bem”.

A isenção de impostos para tempos religiosos aprovada pelo senado em 16 de março de 2016, a lei antiterrorismo sancionada por Dilma um dia depois, a inacreditável permanência de Eduardo Cunha na presidência da Câmara dos Deputados apesar de seus crimes, a absurda presença do criminoso internacional Paulo Maluf na comissão de impeachment contra Dilma, a vigorosa ópera golpista da Rede Globo, tudo isso só reforça, por um lado, a face distópica oculta da utopia dos manifestantes de 2013, e, por outro lado, o potencial utópico da distopia que 2013 representou para a direita radical e fundamentalista.

Para reforçar ainda mais essa ideia, não precisamos nem justificá-la nas respostas transcendentes e opressivas das estruturas política, jurídica, econômica e midiática que os manifestantes de 2013 estão recebendo agora. Basta considerar a imanente contra-resposta outrossim popular que ocupa as ruas do Brasil desde 2015, com verde, amarelo, panelas, ódio, homofobia e odes à Bolsonaro. Sem dizer do inacreditável clamor por intervenção militar, monarquia e impeachment, e todos para já!

Agora, do ponto de vista dos ideias de 2013, seria possível sustentar uma nova utopia a partir da nossa tácita e atual ágora distópica? Claro que sim, visto que nada melhor que o vislumbre de uma distopia para que seja gerado novos e melhores horizontes a serem alcançados, construídos. A utopia mais necessária no momento seria uma que apontasse para um futuro no qual a tendência fascista, fundamentalista e opressora que 2013 recebeu como resposta de 2016 fosse seguida de uma contra-resposta democrática, laica e libertária. Algo como um novo 2013 depois de 2016.

Tal pretensão utópica porventura seria atópica, isto é, sem lugar na realidade, ou ainda podemos confiar em alguma dialética político-histórica, que aponte não para o fim da história, mas para o seu eterno prosseguimento? Há os que defendem que não há tal dialética, que o real não responde velhas perguntas, que apenas segue tagarelando, descontrolada e surdamente, do presente e para o próprio presente.

Porém, o antagonismo quase que perfeito entre, por exemplo, o radicalismo dos black bloc e o dos “coxinhas” é assaz intrigante. É difícil sustentar que estes ignoram aqueles, que apenas dialogam consigo mesmos e com o absoluto presente. Mais ainda, que a força que hoje a direita experimenta, mais elitista e antidemocrática do que até mesmo ela seria capaz de imaginar ser capaz há três anos, não replica a força social e democrática que a esquerda demonstrou no Brasil nos últimos treze anos e, espetacularmente, nas manifestações de 2013.

Negar a dialética histórica é pertinente até onde a sua consideração indiscriminada faz com que a voz do presente seja asfixiada pelos ecos do passado e pelos sussurros do futuro. Todavia, se não há o mínimo diálogo entre o que se diz agora e o que foi dito antes, e se essa dialógica por sua vez não resulta em uma espécie de “deixa” para os “bifes” futuros, as utopias não existiriam. Mas… não há nada numa utopia que impeça a sua existência. Essa impossibilidade existencial é chamada atopia. Utopias são coisas que não existem, porém, ainda.

Além do mais, “utopizar” que algo como 2013 possa ou deva se seguir de 2016 não quer dizer que o fim último da sociedade brasileira seja um sempiterno estado democrático, laico e livre, por mais que seja isso que muitos de nós deseja. Antes, aponta para o absurdo que é imaginar que um estado fascista, fundamentalista e opressor preencha essa finalidade. E mais, que entre eles não dialoguem também os “cinquenta tons de cinza” que os distanciam.

Pode ser que a resposta antagônica ao poderoso e antidemocrático discurso que ocupa o proscênio do teatro político brasileiro tenha de esperar mais tempo do que os mais otimistas “utopizam”. Não obstante, é justamente a presença ostensiva de um vil discurso fascista, golpista e antidemocrático, aqui, que, ali, estimula um contradiscurso mais virtuoso; que por sua vez provoca um novo contradiscurso vilão que impertinentemente busca equilibrar tamanha virtude; e assim por diante.

O primaveril 2013 e o invernal 2016, ao contrário do que queriam aqueles e do que querem estes, não tem como serem hipostáticos. O verde e amarelo fascista de 2016 -utópico para os coxinhas e distópico para os black bloc- sucedeu o vermelho e o preto libertário de 2013 -utópico para os black bloc e distópico para os coxinhas. O que sucederá 2016 outrossim será utópico para uns e distópico para outros, tem jeito não.

O topos brasilis também se desenrola no tenso diálogo entre estes dois personagens-horizontes: utopia e distopia. Quanto mais não seja, porque em menos de uma semana esse tête-à-tête pôde ser visto nas ruas brasileiras: a multidão que ocupou as ruas no dia 13 de março, para quem a atual democracia é distópica, e o fascismo, utópico, outra coisa não fez que dar uma inevitável deixa para outra multidão ocupar as mesmas ruas, cinco dias depois. Para estes, entretanto, o fascismo é que é distópico, e a democracia, porque aparentemente atópica, deseperadamente utópica.

Por que duvidar do prosseguimento e da radicalização desse diálogo entre os que querem “Brasis” tão diferentes? O plurívoco março de 2016 não deve deixar dúvida a respeito dos futuros que são tentados para o Brasil nesse presente crísico: um horizontal-democrático e outro vertical-oligárquico. E a discussão só é tão presente e vigorosa porque seus componentes dialéticos são irredutíveis: para a utopia democrática de 2013, a oligarquia é distópica; e para a utopia oligárquica de 2016, é a democracia que é distópica.

Como não está escrito em nenhum céu platônico que a democracia é a regra para a sociedade brasileira, pois isso é apenas letra –tomara que não morta- do livro que essa mesma sociedade escreveu para si, e à qual chama de Constituição, é do diálogo entre as presentes forças que resultará não a norma não para o futuro eterno, mas, digamos assim, os indícios para os “presentes” tupiniquins imediatamente subsequentes. A democracia é uma construção, porém frágil e instável, pelo menos muito mais vulnerável que os velhos bunkers da oligarquia.

Agora, quaisquer virtudes de 2013 somente terão “topos” em 2016 e no futuro próximo se não houver a vitória absoluta da antidemocracia que vemos garatujada em 2016. Por isso a insistência nas utopias de 2013 é mais que necessário ao resumo midiático-fascista da ópera que 2016 tenta fazer. Insistir virtuosamente nisso, entretanto, é saber que a luta é composta. Há “lutas” dentro da luta: a da utopia de 2013 versus sua própria distopia, aclarada 2016, contra a luta da distopia de 2013 a favor de sua própria utopia, quase dona do “topos brasilis” em 2016.

Os que querem algo da utopia de 2013 tendo lugar no presente, quiçá no futuro, antes de gastarem toda munição contra com a distopia que receberam de 2016, devem se ocupar com a distopia que seus próprios ideias tinham escondidos em si, lá em 2013, que não foram apreciados devidamente por conta do calor e da emergência daquelas manifestações juninas. Só assim, ciente de suas próprias contradições, é que a energia ética e democrática de 2103 poderá apontar devidamente as contradições de 2016 e ter algum rendimento contra a antiética e a antidemocracia que busca ocupar o topo do agora.

Dilma Rousseff, grampeada e prostituída

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Injustamente chamada nas ruas de quenga, regionalismo nordestino que significa prostituta, por manifestantes pró-impeachment que, entre outras coisas, pedem por justiça, e outrossim injustamente grampeada pela pretensa justiça do juiz de primeira instância Sérgio Moro, que, ao que tudo indica, também quer depô-la, a presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, parece, está sofrendo injustiças por todos os lados. Entretanto, quando é um juiz que age injustamente em nome da justiça, como saber se os ataques à Dilma são justos ou injusto?

Aos que a chamaram de prostituta, coisa que sabidamente ela não é, a presidenta teve a nobreza democrática de dizer que todos os seus cidadãos têm o direito de se manifestarem livremente. Já a respeito de ter sido grampeada por Moro, e, o que é gravíssimo em se tratando de uma líder de estado, conteúdos de conversas telefônicas suas terem sido divulgadas publicamente a partir da arbitrariedade do juiz, Dilma dispensa a nobreza e se aguerri à justiça, tanto para investigar a responsabilidade dessas ações criminosamente inconstitucionais, quanto para puni-los.

Agora, por que Dilma solicita a mesma justiça brasileira que, ao grampeá-la inconstitucionalmente, foi tacitamente injusta com ela? Dizer que “presidente do Brasil, presidente de qualquer país democrático do mundo não pode ser grampeado. Em muitos países do mundo, quem grampear um presidente, vai preso”, como ela fez em dois discursos recentes, nos dias 17 e 18 de março, por acaso não é assumir publicamente que não há justiça no Brasil, uma vez que ela de fato foi grampeada e que até aqui ninguém foi preso por isso, e, pelo andar da carruagem tupiniquim, ninguém será?

Não só Dilma, mas todos nós que concordamos que houve injustiça com ela talvez devamos rever o nosso conceito de justiça, pois pelo jeito nossa teoria não está correspondendo à prática. O filósofo Baruch Spinoza, no seu Tratado Político, nos diz que cada cidadão, por não estar sob a jurisdição de si próprio, mas do estado, não tem direito algum de decidir o que é justo e o que é injusto, uma vez que determinar essas coisas é poder do estado. Dilma, eu, você, e Moro, individualmente, portanto, não podemos dizer o que é justo e o que não é.

Para dificultar ainda mais a definição de tais objetos, Spinoza explica que na natureza não há essas coisas chamadas justiça e injustiça, mas só no estado, de forma que a existência deste é a própria existência daquelas. Porém, se o estado são os seus cidadãos, justiça e injustiça devem ser o que, para eles, elas são. Como então sair desse círculo que, por um lado, impõe que cada cidadão não tem o direito de hipostasiar o que é justo e injusto, e, por outro, diz que são os próprios cidadãos que, ao constituírem o estado, constituem automaticamente o que é justiça e injustiça?

Onde justiça e injustiça, no Brasil, estão pretensamente hipostasiadas é na Constituição. Entretanto, não foi em nome da justiça que seu suposto guardião de primeira instância, Sergio Moro, rasgou a Constituição e grampeou Dilma? Para não deixar a questão sobre o que é justo e injusto somente entre os indivíduos Moro e Dilma, devemos considerar que milhões de brasileiros acham que o juiz foi justo, e outros milhões, injusto. Quem tem razão?

Afora o que consta claramente na nossa constituição, ou seja, que ninguém, nem mesmo Moro pode grampear a líder soberana, temos a sabedoria ético-política de Spinoza a nos lembrar que “usurpa um estado o súdito que, por seu exclusivo arbítrio … lança mão de algum assunto público, mesmo que creia que aquilo que tentou fazer seria o melhor”. Temos aqui a nossa Constituição e a filosofia spinozana dizendo que o juiz Moro, ao arbitrariamente usurpar o estado, foi injusto não só com Dilma, mas também com todos os cidadãos brasileiros.

No entanto, por ele não estar preso, e, mais ainda, estar sendo defendido ferrenhamente por milhões de concidadãos, nossa Constituição e o nosso filósofo parecem falar de uma quimera. Só que em Spinoza encontramos uma razão para a ação de Moro e os muitos que acham que ele age justamente, pois o filósofo diz também que “as leis pelas quais a multidão transfere o seu direito para um só conselho ou para um só homem devem, sem dúvida, ser violadas quando interessa o bem comum violá-las”.

Em uma democracia, o bem comum é o que o bem é para maioria. Moro e os seus por acaso são essa maioria para rasgarem a Constituição em nome do que para eles é o bem comum? Um sufrágio popular, nesse momento, responderia inquestionavelmente quem é e o que pensa a maioria, e consequentemente, o que é justiça e injustiça para esse caso. Todavia, vivemos em uma democracia demasiadamente representativa, e assuntos como este ficam a cargo exclusivo ou dos nossos representantes eleitos, ou, mais alienados de nós ainda, sob a cátedra daqueles escolhidos por nossos representantes.

Se não temos como ter certeza democrática se a maioria efetiva dos cidadãos acha que o grampo de Mouro contra a presidenta é justo ou injusto, uma vez que a Constituição parece não estar fazendo a menor diferença, essa querela, como estamos vendo diariamente, está se resolvendo por via de uma guerra de forças alheia à Lei, portanto, ao estado. Na falta de uma medida democrática concreta que legitime ou reforme a letra aparentemente morta da nossa Constituição, resta mesmo a guerra de uns contra outros. Não é à toa que Spinoza disse que a virtude do estado democrático serve muito bem na paz, mas não na guerra.

E a guerra tupiniquim que se desenrola alheia à democracia é entre Moro e os que concordam com ele, uma vez que não querem ser cidadãos inertes em um estado, que, para eles, está sendo usurpado por Dilma, e a própria Dilma e os que concordam com ela, que, por suas vezes, não querem ser cidadãos usurpados por aqueles. Dilma e os seus tem a seu favor a legalidade democrática, embora, como estamos vendo, ela nada esteja valendo no momento. Já Moro e os seus, declarando guerra aberta, dispensam-se automaticamente da democracia.

O que temos então é a guerra do estado presente, porém agonizante porque divididíssimo, que compreende Dilma, Moro e todos os brasileiros, contrários e favoráveis a ela, com o “estado” que Moro e a sua corja querem fazer do Brasil. A vantagem destes fica evidente quando atentarmos ao que coloca Spinoza, qual seja, que um estado corre sempre mais perigos por causa dos cidadãos que dos inimigos externos, pois o estado de Dilma, apesar de ter a Constituição do seu lado, é muito mais frágil porque, nele, seus inimigos são também cidadãos.

Já o “estado” que Moro tenta instituir –não obstante, como se trata de uma iniciativa da direita é mais coerente dizermos reinstituir-, esse “estado” não tem inimigos internos. É ilegal, sem dúvida, porém puríussimo na sua ilegalidade. O pior de tudo é que cada vez mais, ilegalmente e com a ajuda do estratégico espetáculo da mídia golpista, sequestra os cidadãos do estado que Dilma representa e quer seguir representando. Infelizmente, estamos muito próximos de ver inclusive Dilma se tornar cidadã -todavia ingrata- do “estado” que Moro representa.

Entretanto, se nos afastarmos um pouco que seja da presente polêmica envolvendo a possibilidade de Dilma ser impedida ou não, e considerarmos que desde que reeleita há quase dois anos ela não consegue governar, dada a constante ofensiva da oposição, não fica difícil enxergar que, na realidade, ela já está impedida a muito tempo. Como disse Spinoza, “tem um outro sob seu poder quem o detém amarrado, ou quem lhe tirou as armas e os meios de se defender” .O que se desenrola entre ela e Moro, portanto, é só uma das paralelas retóricas espetaculares que, aos poucos e a posteriori, vão contando aos brasileiros o que já aconteceu de fato.

O crescente isolamento em que Dilma se encontra, produzido pela voraz oposição que tem em Moro a régua de sua Lei, faz com que ela sirva cada vez menos ao estado que ela mesmo quer representar, pois, citando Spinoza: “um rei sozinho … não pode saber o que é útil ao estado”. Nesse vazio deixado por Dilma, Moro cresce, aparece e é ovacionado nas ruas por milhões de brasileiros. Entrementes, ainda conforme Spinoza, “as condecorações e outros incentivos à virtude são sinais de servidão, mais do que de liberdade”.

Os servos que aplaudem Moro e batem panela contra Dilma acreditam piamente que com essa performance receberão como recompensa um estado novo, livre daquilo que não gostam no estado que Dilma, com muito esforço, vem tentando representar. Esquecem-se, todavia, de que esse seu “estado prometido” já é corrompido desde a semente. Talvez devessem considerar o que diz Spinoza, que “quando se depõe um monarca não se faz uma mudança de estado, mas só de tirano”. Mas disso parecem não querer saber.

Dilma, por sua vez, cada vez mais vulnerável na sua presidência, acaba tendo de se vender paulatinamente aos interesses da oposição. Nesse movimento, ela acaba parecendo, ainda que metaforicamente, a prostituta de que a própria oposição a chama nas ruas. Cada vez mais frágil, precisa se expor publicamente explicando até as conversas privadas que teve ao telefone, que foram grampeadas e liberadas à imprensa por Moro, como se o grampo ilegal do juiz de primeira instância estivesse lhe perseguindo em todas as demais instâncias de sua vida política. Dilma Rousseff está grampeada e prostituída por aqueles que não a querem como presidenta. Historicamente, isso findará sendo considerado justo ou injusto?

O index Petralha de Constantino

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Em pleno século XXI, o liberalíssimo Rodrigo Constantino, um economista e colunista brasileiro, publicou no seu blog uma lista com 767 nomes de artistas e intelectuais brasileiros que devem ser boicotados, pois, segundo o próprio Constantino, “querem transformar o Brasil numa Venezuela, num Cubão”. O blogueiro coxíssimo outra coisa não faz que ressuscitar as práticas medievo-católica e moderno-nazistas que impunham aos seus seguidores o que e quem eles não podiam ler, ver, fazer, ou seja, conhecer. Do contrário, excomunhão, fogueira, fuzilamento ou câmara de gás.

Pelo menos até aqui, Constantino não tem tanto poder, e isso graças ao que resta de democracia no Brasil. No entanto, mesmo assim ele não tem “papas no blog” ao vociferar: “Boicote nos vagabundos, gente! Sem dó nem piedade … Não comprem nada deles! Não leiam suas colunas! Não frequentem seus shows e peças. É boicote geral a petralha!”.

Ao contrário do que gostaria de fazer parecer, Constantino não tem o privilégio de ter inventado o “ódio coxista” ao PT e à esquerda. Não criou a fogueira das vaidades liberal anti-petista que pretende carbonizar a democracia para que de suas cinzas renasça o velho paraíso oligarco-aristocrata, lar-doce-lar da elite. Sua demiurgia miserável apenas atiça esse fogo antidemocrático com livros e espetáculos artísticos que, para a aridez de sua patológica ideologia, devem ser realmente infernais

Entretanto, para quem sabe que em uma democracia o único index a ser seguido para que não se seja súdito de alguma ditadura ideológica é o “index sui”, ou seja, o índice de si mesmo, a abjeta (re)iniciativa do outrossim abjeto blogueiro liberal acaba sendo -perdoem-me a redundância- o mais indicado indício do que se deve consumir para não se ser tão abjeto quanto o próprio Constantino. É como dizer para uma criança: “não faça isso”; e, pronto, não temos dúvida do que a criança fará na primeira oportunidade.

Na história asfixiante dos index restritivos há uma passagem que, para mim, é muito simbólica, atentada contra o “filósofo dos afetos”, o ibero-holandês-judeu Baruch Spinoza, cujo controverso nome, para alguns, significa “bendita esperança”. É muito sintomático que, com esse nome, e, mais ainda, com seus imanentes objetos filosóficos, quais sejam, os afetos, Spinoza tenha sido excomungado pela Igreja Católica, pela comunidade judaica e proibidíssimo de ser lido em todas as universidades europeias no século XVII.

Para não nos esquecermos de que Rodrigo Constantino apenas dá novo fôlego à velha asfixia ideológica das grandes religiões monoteístas, todavia com uma miséria discursiva que envergonharia os escrivães medievais, vale a pena ler a publicação que indexou Spinoza na lista de autores malditos publicada pela Sinagoga de Amsterdã em 1656, intitulada “Maldito seja Baruch de Espinosa”:

“Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa… Maldito seja de dia e maldito seja de noite; maldito seja quando se deita e maldito seja quando se levanta; maldito seja quando sai, maldito seja quando regressa… Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor algum, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele.”

Depois disso, foi necessário mais de um século para que voltasse a ser permitido ler a obra do filósofo que, doravante, inspirou as filosofias de Diderot, Hegel, Marx, Nietzsche, Bergson, e muitos outros mais, inclusive a minha, assumidamente incipiente, que, de qualquer forma, para desgosto meu, não foi indexada por Constantino.

A “decisão dos anjos e o julgamento dos santos” de excomungar, expulsar, execrar e maldizer Spinoza, não obstante, coloca inevitavelmente a seguinte questão: qual a potência da filosofia desse judeu para que tenha sido tão proibida? Assim como a criança é mais curiosa justamente com a parte da vida que os adultos lhe proíbem, qualquer um que seja verdadeiramente amante do saber, ou seja, filósofo, mais que tudo deseja saber “a parte do saber” que lhe tentam furtar.

Nesse sentido, indexações restritivas como as da Igreja Católica e da comunidade judaica são, como se diz, um tiro no pé. O idiota do Constantino, que tem toda a História disponível para ser lida no mesmo terminal de computador no qual escreveu o seu natimorto index, teve oportunidade de saber que tentar impedir o acesso a determinado conhecimento ou produção humana apenas os marcam espetacular e distintivamente para que, na primeira oportunidade, eles sejam lidos, assistidos, consumidos, e ademais, com muito mais voracidade.

No entanto, a falta de sagacidade de Constantino é apenas o index de sua própria patologia intelectual, que só aumenta à medida que a sua longa lista de obras a serem boicotadas e autores a serem amaldiçoados cresce. Para concluir, duas perguntas interligadas e uma única resposta. Será que o coxinha leu todos livros e artigos e assistiu a todos os espetáculos dos 767 intelectuais e artistas que indexou restritivamente, uma vez que isso é o mínimo que se espera de um crítico, ainda mais um tão radical? Em caso afirmativo, como ainda conseguiu escrever tamanha abjeção? Resposta: quando alguém quer proibir os outros de “lerem” o mundo livremente, é porque esse alguém já não é livre, e o que é pior, já não sabe ler o mundo.

A elite sabe ser povo?

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Pelo quinto dia seguido vejo da minha janela, doze andares acima da avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, passeatas com centenas de cidadãos usando verde, amarelo, panelas e indignação, gritando histericamente “impeachment já” à presidente Dilma Rousseff, “fora PT”, “intervenção militar já”, e, o que para mim é mais grave, mais ainda que a intervenção militar, “Bolsonaro para presidente!” Abstraindo a discordância que tenho em relação a tais demandas, uma coisa eu não consigo deixar de achar lindo: o povo unido em função de uma causa comum. Minha aprovação, entretanto, para por aí, pois um olhar um pouco mais demorado mostra que não se trata exatamente de povo, mas de elite.

O que mais anda me intrigando nessa gente manifestante majoritariamente branca e abastada que finge ser povo debaixo da minha janela é se eles terão capacidade para aceitar não terem as suas demandas atendidas, como tantos professores, garis, caminhoneiros, servidores públicos, etc., que há muito mais tempo saem às ruas, igualmente unidos e com clamores bem mais dignos, mas que, no mais das vezes, voltam para casa de mãos vazias e pernas e línguas exaustas. A minha dúvida, na verdade, é se a elite sabe ser povo até o fim, ou, antes, só finge sê-lo, porém, secretamente, permanece a pequena leviatã mimada de sempre.

Todavia, pela alienação que vejo neles, como por exemplo: pedir democraticamente por uma intervenção militar que automaticamente cessaria a liberdade deles para pedirem qualquer coisa; bater panela feito idiotas em vez de ouvir o discurso do “inimigo”; chamar qualquer pessoa de roupa vermelha que cruze o caminho deles de puta ou vagabundo; tirar fotos com moradores de rua para mentirem nas redes sociais que nunca houve divisão na sociedade brasileira; por tudo isso é bem capaz que eles estejam pensando que basta sair às ruas, fazer alguma cena de efeito ou um ruído mais alto que o do trânsito para se conseguir o que se quer.

Será que a elite sabe que participar política e ativamente da construção de um país não é como entrar em um shopping center com um cartão de crédito no bolso e sair de lá com as mercadorias que se deseja? Sabe ela que não pode mandar em um presidente da república da mesma forma como mandam em suas empregadas (eletro)domésticas? Ou, como se vê nas praças mais gentrificadas onde a elite se agrupa e manifesta seus anseios antidemocráticos, sabe somente estourar algumas Moët & Chandon entre um vômito retórico e um tilintar de Le Creuset?

E quando dizem: “Fora PT! Queremos a nossa democracia de volta”, porventura acham que a democracia um dia pertenceu só a eles, e que os mais de 50 milhões de brasileiros que votaram em Dilma mais ela os tiranizam deliberadamente? Consegue a elite compreender que só há democracia de verdade enquanto aqueles que elegeram um representante tiverem o direito serem governados por ele, e que a própria elite, por sua vez, tem o dever de respeitar essa decisão majoritária, gostando ou não dela? Ou será que é preciso fazer um “power point” explicando o que é democracia para que a elite entenda o que é o governo da maioria?

Agora, falando sério, quando a elite pede a “democracia de volta”, outra coisa não está querendo que o regime político que constitui a sua essência, isto é, a velha e intransponível oligarquia, ou seja, “o governo de poucos”. Este regime exclusivista sim sempre foi deles. Ah, elite carente! Não obstante, o paradoxo de sua demanda pretensamente democrática logo se revela: quer a oligarquia de volta, todavia chamando-a de democracia, mas é justamente a democracia pela qual clama que tira o espaço de sua velha e exclusiva oligarquia. Só batendo panelas mesmo para que essa confusão faça algum sentido para eles.

E para piorar ainda mais a mixórdia de suas ideias e de suas manifestações públicas, a elite, sem se dar conta de que é apenas uma oligarquia carente, age como uma aristocracia injustiçada, cujo algoz é a verdadeira democracia, que, para a própria elite, parece tirania. Asfixiados pelo governo da maioria, e querendo esquecer o fato de que é apenas a minoria vencida democraticamente, a elite tupiniquim mente para si mesma que é melhor do que os que a venceram, e que a aristocracia, ou seja, “o governo dos melhores”, é democracia.

Uma vez reclamando por “sua democracia” roubada -na verdade gritando desesperadamente por sua oligarquia perdida- a elite se sente tiranizada justamente pela verdadeira democracia que, essencialmente, não dá espaço nem à sua verdadeira oligarquia, nem à sua pretensa aristocracia. Então, “impeachmados” por suas próprias contradições, a elite pede por um tirano, por um ditador militar, que em sua pessoa simbolizará radicalmente a exclusividade da oligarquia e da aristocracia juntas. A cereja do bolo seria se pedissem que o tirano ditador fosse o próprio Bolsonaro.

Talvez pelo fato de a elite tupiniquim perceber que a vertical oligarquia de que sente tanta falta não mais terá espaço na horizontalidade democrática que, esta sim, acolhe melhor a maioria do povo brasileiro, é que esta minoria historicamente acostumada com privilégios esteja agindo de forma tão radical e, no extremo, pedindo por um tirano. É como se dissesse: se eu não posso ter a minha oligarquia travestida de democracia de volta, a maioria também não terá a sua verdadeira democracia; seremos todos carentes do que mais precisamos; todos súditos igualmente desapoderados. Só assim, sem que haja desigualdade alguma entre ela e o restante dos indivíduos, e sem que haja também democracia, é que a elite sabe ser povo.

Companheirismo intempestivo

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Não subestimemos a força e a virtude intempestivas do companheirismo entre militantes de esquerda. Principalmente entre um homem que escapou da fome nordestina justamente na exploração da indústria metalúrgica paulista e uma mulher que foi torturada por ter lutado contra a ditadura militar antes de se tornar economista, e que, além de tudo, têm em comum a presidência da República Federativa do Brasil.

Tal companheirismo é para poucos! Tão raro que fácil de ser imediatamente criticado. Ainda mais pela direita, para quem o companheirismo de esquerda sempre foi a maior ameaça. Por isso, nesse momento no qual o companheirismo político entre Lula e Dilma é oficial novamente, cabe pensar se a crítica que recebe não é só a velha estratégia da direita de enfraquecer a esquerda, ou o que sobrou dela na “brasilândia”.

Para milhões de brasileiros e para direita golpista, Lula ministro no atual governo Dilma não visa interesse algum do Brasil, mas apenas evitar que ele seja preso pela investigação da Lava Jato. Tal lógica não deve ser desconsiderada, afinal, é típico do ser humano –e não só dos petistas- fazer esse tipo de coisa. Já para outros milhões de brasileiros e para a presidenta Dilma, Lula se junta ao governo para ajudar o país nas dificuldades que enfrenta, que não são poucas aliás. A lógica dela também faz sentido, uma vez que Lula é um gigante na política, com uma obra concreta internacionalmente reconhecida. Quem em sua são consciência sócio igualitária não gostaria de ter um Lula trabalhando consigo em um momento crísico?

Porém, o senador ex-peessedebista e atual líder do PV, Alvaro Dias, fez questão de ser absolutamente monológico ao afirmar à Globo News que “com a nomeação de Lula como ministro a presidente Dilma renunciou”, concluindo peremptoriamente que “não há outra leitura possível”. Não obstante, um passo além do discurso estrategicamente alienante do senador vira-casaca, podemos ler o fato de outra forma. Do contrário, a realidade terá sido determinada por um oligarca investigado por R$ 37 milhões em propina da Petrobras. Portanto, sanidade e lisura mental é contrariar Dias e, sim, fazermos outras leituras da realidade.

Sobre a afirmação de que Lula aceitou o ministério somente para escapar das investigações da Lava Jato comandadas por Sérgio Moro, isso não quer dizer que o ex-presidente tenha se livrado de ser investigado, muito menos que tenha assumido algum crime. Seu novo cargo apenas transfere a investigação sobre ele para outra instância jurídica. Como declarou a presidente Dilma, incrédula com as especulações da oposição, achar que isso é ruim é dizer que um juiz de primeira instância é melhor e mais competente que a suprema instância legislativa do país, o STF, o que, obviamente, é um absurdo. “É uma inversão de hierarquia”, conclui a presidenta.

Ademais, uma boa leitura da realidade não pode deixar de considerar a possibilidade de que Moro esteja de fato sendo o braço com força legal da direita golpista e corrupta. Se isso porventura for verdade, o que não é impossível em se tratando de Brasil, uma vez que o simples folhear de um livro de história mostra que a direita sempre usou a justiça para cometer suas injustiças, Lula outra coisa não fez que encontrar um meio de escapar dessa resistente estrutura produtora de injustiça para ser julgado, pasmem, com justiça, e não por um juiz possivelmente comprado pela oposição.

Outra coisa sobre a qual devemos fazer mais leituras do que a única que Alvaro Dias nos impõe é a previsão de que Lula, na equipe de governo, não contribuirá para a resolução das crises política, pela qual o seu partido e a sua companheira Dilma passam, e econômica, pela qual passa o Brasil inteiro. Ora, é preciso uma dose elevadíssima ou de ignorância, ou de má vontade para desconsiderar que Lula é um gênio político, talvez o maior da nossa história, que em oito anos de governo demonstrou sobejamente que sabe enfrentar situações adversas e vencê-las sem deixar de fora, como se diz, o lado mais fraco da corda, o que é realmente revolucionário.

Ter diminuído a histórica desigualdade social do Brasil, “marolado” o tsunami mundial de 2008 e instituído o ENEM, a mais democrática e revolucionária forma de acesso ao ensino superior, são só alguns exemplos do que este metalúrgico e ex-presidente foi capaz de realizar pela nação. Portanto, declarar que Lula nada tem a ajudar na crísica conjuntura brasileira só pode ser discurso estrategicamente profético da oposição golpista que não suporta alguém mais competente do que ela. Melhor dizendo, alguém realmente competente. Já para quem é capaz de observar a realidade para além dos espetáculos da Rede Globo, como deixar de ler que Lula na equipe do governo pode sim ser uma grande oportunidade para se sanar alguns dos graves problemas tupiniquins?

Quem, como Dias, acha que a entrada de Lula no governo é o fim de Dilma realmente não sabe porque, na esquerda, as pessoas se chamam de companheiros. O próprio Dias não foi companheiro do seu ex-partido, o PSDB, ao fugir para o PV para tentar ser presidente ele mesmo. É obvio que a direita inteira queria que Dilma e Lula não fossem companheiros um do outro, que ela, de um lado, deixasse ele ser investigado injustamente pelo juiz curitibano que mais parece agir como pau-mandado do PSDB e da Globo, e, por outro, que Lula deixasse o governo de Dilma ser destruído pela oposição sem nada fazer. Mas não! Lula e Dilma mantém viva a força do companheirismo político mesmo nas situações mais adversas.

E ao contrário do que prega o pessimismo travestido de realismo produzido pelos políticos golpistas e divulgado maciçamente pela mídia não menos golpista que infelizmente já contaminou milhões de brasileiros, nesse companheirismo intempestivo de Lula e Dilma não está contido necessariamente o fim do governo Dilma, da justiça, da democracia nem a derrocada econômica do Brasil. Pode até ser que eles não consigam resolver as atuais crises, que as agravem mais ainda até. Para saber disso, entretanto, temos de esperar para ver. Agora, sustentar, no presente, que eles não conseguirão, desculpe-me, é apenas fazer como a Mãe Diná, ou seja, pretender prever o futuro, coisa que, sabemos, ninguém pode.

Sobre a insistência de Dilma em não renunciar, podemos ler no Manifesto Comunista de Engels e Marx que para um revolucionário não existe essa de esperar pela tomada do poder ou de aguardar o momento oportuno para tal. O radicalismo dessa ideia se desfaz quando se entende que quanto antes o poder estiver nas mãos dos que querem governar para a maioria, tanto melhor. Mesmo que o revolucionário não tenha condições de realizar imediata e idealmente seu nobre objetivo, é melhor que a sociedade já seja governada por ele do que por aqueles que se preocupam somente consigo mesmos e com a manutenção de suas desiguais superioridades.

Por isso essa ideia que corre solta em boca de Matilde midiática e golpista, qual seja, que Dilma deve renunciar por causa das adversidades políticas e econômicas pelas quais país passa, nunca ecoará em uma militante de esquerda como a nossa atual presidenta. Dilma deixou isso bem claro aos jornalistas: “olhem bem para mim e vejam que eu não tenho cara de quem vai renunciar”. Muita gente que bate panela contra ela não dá bola, mas Dilma não se esquece de que se for deposta o Brasil volta todinho para os oligarcas do PMDB, abutres políticos dos quais foi muito difícil tomar um pouco do poder que seja. Apesar das adversidades, Dilma não esconde de ninguém que não tem dúvida de que seu governo ainda é o melhor para o Brasil, ainda que não seja ideal, pois mais distante da perfeição estariam governos de PMDBs e PSDBs da vida.

E no momento mais crítico, quando os partidos golpistas da oposição se utilizam não só da mídia, mas também da justiça e da economia brasileiras, mobilizando milhões de ignorantes úteis para que saiam às ruas vestidos de verde e amarelo e panelas para defenderem o golpe e a desigualdade social de que a direita sempre precisou para ser quem é, por que é absurdo Dilma buscar a ajuda de um velho e competentíssimo companheiro de luta? E Lula, quando percebe que a investigação de Moro sobre ele não tem nada a ver com justiça, mas com o plano golpista da direita, iria procurar companheirismo em quem senão na sua velha e burocrata companheira Dilma?

Por mais que seja dito que quase nada resta de esquerda no PT, quiçá no Brasil, o companheirismo intempestivo de Dilma e Lula tem ao menos a virtude de manter alguma coisa da esquerda viva. Não sem muita, mas muita crítica. Todavia, alguém da esquerda ser criticado, ainda mais pela direita, é algo tão normal quanto chover para baixo. Da minha perspectiva esquerdista, ainda acredito que o companheirismo de Lula e Dilma renderá bons frutos, e novamente, pois basta reler a história recente do Brasil para saber que estes dois formam um grande time. Claro, Alvaro Dias não recomenda tal leitura. Porém, ele é de direita, não é companheiro de ninguém além dele mesmo.

Aceito a crítica de que a minha visão sobre a virtude do companheirismo político entre Lula e Dilma é utópica. Com efeito, a coragem dos dois em não esconder tal companheirismo, mais ainda, em restaurá-lo publicamente na hora que para muitos seria a mais inapropriada, mantém acesa em mim a fé nas estratégias da esquerda, principalmente nesse momento no qual a vigorosa fogueira das vaidades da direita ofusca a sempiterna, porém frágil, chama revolucionária da esquerda. Se sou utópico por ainda pensar assim é porque utopia não é atopia nem distopia, pelo menos até que o tempo prove o contrário. Aos companheiros Lula e Dilma, no presente, boa ventura!

Socialistas ainda utópicos?

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Por que ainda causa surpresa em muitos que se consideram de esquerda ver a atual “jihad” da direita brasileira no sentido de reconquistar o Leviatã tupiniquim a qualquer preço, inclusive ao custo altíssimo da democracia? Está certo que as ações e os discursos da direita brasilis desde a última disputa presidencial de 2014 estão de espantar. Ética, política, jurídica e economicamente eles realmente estão “botando para quebrar”. E quebrando justamente o Brasil menos desigual aventurado desde a eleição democrática de Lula, há treze anos.

Entretanto, é ingenuidade se surpreender com tal movimento da direita, pois é exatamente isso que ela sempre fez, seja no Brasil, seja em qualquer outro lugar. A esquerda, por sua vez, também não está sofrendo nenhum ataque novo. Desde que o mundo é mundo, ou seja, desde que há desigualdade social entre as pessoas, há os que querem reduzi-la, quiçá eliminá-la -e destes é dito que são de esquerda. E há também os que querem ou produzir, ou radicalizar, ou simplesmente manter a desigualdade social, e a qualquer custo – e destes é dito que são de direita.

Então, por que o espanto em ver mais do mesmo, isto é, mais do jogo sujo da direita, não só contra a esquerda, mas contra qualquer um que deseje a igualdade social? A falta de ética, escrúpulos e justiça da direita, como pudemos ver na gigantesca manifestação contra o governo PT ocorrida em 13 de março de 2016, deveria nos surpreender? O que esperávamos? Que em determinado momento -e justamente agora- a direita deixaria de ser o que sempre foi, que pensaria como a esquerda, ou, no mínimo, não se importaria mais com a construção da igualdade social no Brasil? Que utopia é essa?

Antes de Engels e Marx criarem o socialismo científico, cujo escopo era o de compreender a real dinâmica do capitalismo e, principalmente, as suas contradições, por meio das quais aliás esse sistema econômico produtor de desigualdade sucumbiria, pensadores da “Primavera dos Povos” de 1848, tais como Saint-Simon, Fourier, Owen e Proudhon, sustentavam que o socialismo teria lugar certo no mundo, de forma pacífica, e, ademais, por meio da boa vontade da burguesia. Estes foram chamados por aqueles de socialista utópicos.

Não estaríamos nós, socialistas tupiniquins contemporâneos, sendo tão utópicos quanto os do século XIX por acharmos que há algo de impróprio na “jihad” da direita brasileira, na sua tentativa de tirar do poder o que resta da esquerda? Pela indignação de muitos “brazucas” de esquerda diante das ações da direita, parece que sim. Agora, por que é utopia em crer que a direita tomaria alguma consciência e deixaria de seguir produzindo e mantendo a mui antiga desigualdade que a faz ser quem sempre foi?

É preciso salientar todavia que utopia não é algo que não existe e que não tem como existir. O que não existe porque não tem como existir é atópico, sem “topos”, sem lugar. Utópico, na verdade, é o que não existe apenas por motivos circunstanciais, mas que pode vir a ser, pois não há nada de absurdo que impeça a sua existência. O feudalismo era utópico enquanto as sociedades humanas eram estruturadas pela escravidão da antiguidade assim como o capitalismo era nada além de uma utopia durante a longeva vida do feudalismo. Porém, como a história não nos deixa ignorar, todas estas utopias encontraram horizonte para ser, e foram.

Embora o socialismo utópico tenha sido muito criticado por idealizar a realidade, ou, em outras palavras, por realizar apenas ideias, essa crítica se esquece de que habitar uma utopia é flertar, dentro da realidade presente -uma vez que é impossível abandoná-la-, com ideias que podem, e até mesmo devem ter lugar dentro dessa realidade. Dizer apenas que os socialistas utópicos partiam do ideal ao real, portanto, é só metade da história, pois, por outro lado, é por causa do real concreto que ideias outras acerca dele surgem entre os homens e, historicamente, viram realidade.

Ideal mesmo seria se tivéssemos em comum com os socialistas utópicos apenas a defesa da igualdade entre as pessoas e a crença de que a propriedade privada é a origem de toda a desigualdade. Entretanto, na prática, todos os que estamos surpresos com as jogadas da direita brasileira temos em comum com aqueles socialistas anteriores à Marx a utopia de que a direita e o seu voraz capitalismo gerador de desigualdade, em algum momento, por alguma sã razão e espontaneamente, darão espaço à esquerda e ao seu socialismo produtor de igualdade.

Por isso, mesmo que a utopia não seja uma patologia intelectual, seria muito saudável e produtivo que os muitos esquerdistas que até aqui seguem surpresos com a barbárie da direita brasileira contra o projeto sócio igualitário nacional se colocassem deliberadamente sob a crítica de Engels e Marx aos socialistas utópicos, qual seja, que o modelo socialista deles não tinha como ser implementado porque que não atentava para as conexões reais entre proletariado e burguesia.

Aceitar tal crítica pode fazer com que vejamos de modo mais realista as conexões entre esquerda e direita, para assim compreendermos que o que ocorre hoje no Brasil não é um erro crasso da realidade, mas a realidade ela mesma, nua e crua, sem nada para ser desacreditado, mas tudo compreendido. Enxergar as estratégias da direita com naturalidade é manter-se mais próximo da revolução, pois a revolução só é necessária por conta do sempiterno modus operandi da direita.

A revolução, ou seja, a vitória da esquerda, não é nem nunca foi a ausência da direita nem alguma permissão, educação ou consciência dela no sentido de a esquerda colocar seu programa em prática. A revolução, com efeito, é a vitória da esquerda sobre a direita presentíssima, e ademais contraríssima a qualquer projeto de igualdade social. Esse é o real da dimensão política de que não devemos nos esquecer para que a utopia da igualdade tenha lugar no mundo. Não se espantar com quaisquer práticas da direita, normalizá-las dentro da realidade, talvez seja o primeiro passo histórico e material para converter a utopia socialista em realidade.

Não se chocar com quaisquer movimentos da direita, como por exemplo a arquitetura e os discursos da manifestação contra o PT do dia 13 de março é fortalecer-se, pois a direita e suas estratégias são muito menos os entraves à revolução do que os parceiros dialéticos da esquerda, insuportáveis e irredutíveis, porém, necessários não só à construção da ideia de revolução, como, principalmente, os que a justificam.

Ao contrário dos socialistas utópicos, Marx e Engels não se preocuparam em pensar como seria uma sociedade ideal. Ocuparam-se, em primeiro lugar, com compreender a dinâmica do capitalismo, estudando a fundo suas origens e, mais importante, suas contradições. Da mesma forma, os companheiros de esquerda não devem perder tempo imaginando que a direita deva parar de agir desigualmente, mas, em troca, conhecer proximamente sua dinâmica, reificá-la, e, mais importante, compreender suas contradições, pois é baseado nelas que a verdadeira revolução se fará.

Ao contrário do que se pode pensar, não é a bondade ou a verdade da esquerda que faz com que a revolução seja necessária, mas a ruindade e a mentira da própria direita. Surpreender-se com os estratagemas da direita é negar-lhes o devido lugar na realidade, é idealizá-la, e, consequentemente, enfraquecer o motivo pelo qual ela deve ser superada. Espantar-se com a vilania do inimigo é ocupar-se com um outro inimigo, todavia imaginário, e, o pior de tudo, desocupar-se do inimigo real, que em nenhum momento vê erro algum em seus próprios atos nem nos de que quem quer que seja.

Se a direita está vencendo no Brasil, a virtude desse processo de vitória talvez esteja no fato de ela não se surpreender nem se espantar com as tentativas da esquerda. Com efeito, odeia mais que tudo qualquer projeto igualitário. Porém, de forma alguma os toma como errados, pois para a direita não há certo nem errado. Para ela, há somente a manutenção do seu projeto de criar e manter uma vertical desigualdade social, sem a qual aliás não há topo privilegiado a ser conquistado e mantido por ninguém menos que ela.

A direita não desacredita nem se espanta com a horizontalidade socialista. Apenas não a quer. Por isso luta sem limites contra ela, não se importando inclusive em ser antiética, injusta e antidemocrática. Sua força vem da crença de que nada há para se espantar com as estratégias da esquerda. Já a esquerda, mantendo essa dimensão pretensamente utópica na qual, por exemplo, a tentativa da direita de depor uma presidenta até aqui lisa figura como um absurdo, apenas distancia-se do real, e, consequentemente, enfraquece-se.

Uma vez que utopia é apenas o que ainda não tem lugar na realidade, mas que pode ter, pode ser considerada utópica, ou seja, realizável, a ideia de que a direita não mais jogue baixo em função dos seus objetivos históricos? Se sim, infelizmente, a revolução terá de esperar, pelo menos até tal utopia se mostrar impossível. Afinal, é somente porque a direita nunca agirá dessa forma que a esquerda e a revolução são necessárias.

No caso atual do Brasil, a cada vez mais presente derrota da esquerda está em ela ainda esperar que partidos políticos e instituições direito-oligarcas tais como o PSDB, o PMDB, o Democratas e a Rege Globo ajam ética e democraticamente. Isso, porém, não é utopia, mas tolice. Já a vitória em curso da direita tupiniquim decorre de ela não se surpreender nem com os ideias da esquerda, nem tampouco com as suas próprias vilanias. Para ela, tudo é normal, tudo é obvio, inclusive o jogo absolutamente baixo. Portanto, na utopia socialista da esquerda, para que seja efetivamente realizável, deve constar que nada há para se espantar com as ações da direita. Em relação a elas, apenas a revolução, pragmaticamente.

Ágora paradoxal

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Em 13 de março de 2016, mais uma vez, foi rasgado no coração da democracia brasileira  um espaço pretensamente político arquitetado por corruptos, pasmem, contra a corrupção. Os arquitetos desse domingo paradoxal não são outros que partidos políticos atolados em ilícitos até o pescoço e a Rede Globo, gigante da mídia e reconhecida filha da ditadura que, entre outros desserviços sociais, até o final desse mesmo domingo estava devendo 1 bilhão de reais em impostos aos cofres públicos.

E para que o evento fosse mais paradoxal ainda, ele teve lugar nas avenidas mais gentrificadas do país. E, detalhe, o uniforme oficial era a camiseta verde e amarela da CBF, outra organização comprovadamente criminosa. Traje de gala da ignorância! Arquitetura da corrupção com uniforme da corrupção: que bem poderia resultar dessa abjeta manifestação coletiva?

Como os corruptos que arquitetaram a manifestação anticorrupção são justamente aqueles que produzem e mantém a corrupção no Brasil, o grande evento dominical estava fadado ao fracasso antes mesmo de começar. Porém, só não foi um fracasso porque o real fim da corrupção nunca esteve entre seus objetivos. Antes, o que a multidão de ignorantes úteis e bem manipulados produzia era um espaço onde o despotismo político pudesse respirar eventualmente, sufocado que está nestes últimos doze anos nos quais o Brasil se aventurou a ser socialmente mais justo.

Cidadãos reunidos em espaço público, com a intenção, ainda que torpe, de produzir um Estado melhor, leva-nos diretamente ao conceito grego de ágora: o espaço público por excelência, no qual não só os cidadãos se reuniam, mas, principalmente, onde cultura, economia e política se entrecruzavam dialogicamente em vista do bem geral. Os manifestantes desse 13 de março tentaram, mas será que conseguiram fazer de sua manipulada reunião pública dominical uma ágora de verdade?

Para o bem do antigo conceito grego, fundamental àquela democracia, e não menos para a virtude do futuro democrático brasileiro, temos de dizer gravemente que não. Ora, se os manifestantes desse domingo queriam, entre outros absurdos, a deposição de uma presidenta democraticamente eleita, contra quem, até aqui, não há crime algum comprovado, a reunião deles, e o espaço paradoxal que criaram, de forma alguma merece ser chamado de ágora.

Para cidadãos que prezam a democracia, não porque este sistema de governo seja essencialmente ideal, mas, como dizia Aristóteles, pois, pragmaticamente, é o menos pior de todos, o espaço político que os manifestantes desse domingo criaram certamente causou pavor. Com efeito, a intenção agorística golpista não se privou de mais uma vez gerar espécie de agorafobia nas mentes verdadeiramente democráticas.

Só que, na verdade, são os próprios manifestantes golpistas que sofrem de agorafobia crônica, pois são eles que não suportam, na ágora política brasileira, o livre devir democrático. E para resolverem apressadamente tal patologia própria, querem acabar com o espaço público, acabando com democracia que o produz. Sem uma verdadeira democracia, o espaço que era para ser público passa a ser somente deles, seus velhos e históricos possuidores.

Analogicamente, é como se a única solução para o medo do outro fosse o assassínio desse outro, e não a tentativa civilizada de diálogo com ele na construção de um espaço melhor para ambos. Solução irracional que, se tem um sítio específico, é a própria barbárie, mas de forma alguma a ágora, que há 2500 anos é o lugar excelente para a civilidade e para a democracia.

A agorafobia golpista precisa não de uma ágora, mas de uma praça de guerra, ou melhor, de uma trincheira belicosa, tão estreita e restrita que só caibam nela os 10% da população que detêm 90% da riqueza do país, e onde de forma algum possa ter lugar os 50% de brasileiros que têm de se satisfazer com apenas 2% da riqueza nacional. Para tal, a arquitetura da desigualdade, construindo impertinentemente, na horizontalidade da ágora política brasileira, a mais indesejada verticalidade antidemocrática.

Barbárie paradoxalmente travestida de civilidade. Vil espetáculo público no qual os atores, todos fantasiados de verde e amarelo e ódio, outra coisa não eram que marionetes úteis, realizando com esmero o roteiro golpista arquitetado por partidos políticos e por veículos de comunicação absolutamente corrompidos e corrompedores. Ágora paradoxal cujo objetivo é destruir a democracia.

O homem de nove dedos e seus nove milagres

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No discurso que o ex-presidente Lula fez na sede nacional do Partido dos Trabalhadores em resposta à condução coercitiva da Polícia Federal de Sérgio Moro em 4 de março de 2016, estavam lá os velhos –mas nem por isso mentirosos- ideais do torneiro mecânico que conseguiu tornar utopias inclusivas, distantes um horizonte, em realidade próxima e concreta para milhões de brasileiros historicamente vitimados pela exclusão social. Há quem concorde e, obviamente, quem discorde disso. Porém, uma das ideias de Lula é muito intrigante: a sua fé nos milagres e, mais ainda, que foram eles que o fizeram.

Isso ficou bem claro no seu último discurso. Primeiro, querendo justificar o fato de ter se tornado um conferencista mundialmente importante, o metalúrgico disse: “As pessoas queriam que o Lula falasse das coisas que foram feitas no Brasil. Que milagre vocês fizeram para aprovar as cotas? Que milagre vocês fizeram para aprovar o PROUNI? Que milagre vocês fizeram para aprovar o FIES? Que milagre vocês fizeram para levar energia à quinze milhões de pobres nesse país? Era isso que as pessoas queriam saber”. Só aqui, quatro milagres, que, no entanto, para o mundo que o convidou a palestrar devem ser apenas práticas absolutamente mundanas, ainda que de grandes efeitos.

Mais adiante na sua fala, o ex-presidente emenda uma outra sequências de fatos que ele classifica milagrosos: “antes dos cinco anos de vida eu escapei de morrer de fome. Esse foi o primeiro milagre da minha vida. O segundo milagre: eu tive um diploma de torneiro mecânico. Aconteceu um terceiro milagre comigo: eu ter tomado consciência política e ter criado um partido. Aconteceu um quarto milagre comigo: meus companheiros me levaram à presidência da república. Aconteceu um quinto milagre comigo: eu fui melhor do que todos eles que governaram esse país”. Na eleição desses outros cinco milagres fica ainda mais claro que a realidade para Lula não se explica por si mesma, mas se finaliza mediante intervenções milagrosas.

Ora, não morrer de fome na infância, tornar-se torneiro mecânico na juventude, criar um partido político na maturidade, ser presidente da república na idade do lobo, e até mesmo ser o melhor de todos na velhice, nada disso deve ser considerado milagre. Importante aqui é perceber que o que para Lula são milagres trata-se apenas de vida, de sua vida, que, como a de todos nós, não precisa da suspensão das leis da natureza ou da realidade para se dar. Muito pelo contrário aliás. É porque não há suspensão do real que ele quase morreu de fome; que foi torneiro mecânico e não engenheiro, que fundou um partido político e foi melhor presidente da república em vez de ter aberto um empresa de sucesso e ter sido um Eike Batista (nas sua melhor fase, obviamente)

Para a filosofia de Baruch Spinoza, um milagre, se fosse possível algo assim, seria a suspensão das leis da natureza por Deus em vista de algum fim que o próprio Deus não havia previsto quando institui as suas leis eternas. Milagres são impossíveis para Spinoza justamente porque com eles Deus afirma que não planejou bem a realidade. Em outras palavras, se em algum momento Deus precisou suspender alguma Lei sua para que um nordestino pobre não morresse de fome, pudesse se tornar metalúrgico, fundar um partido político e ser o melhor presidente de um país latino-americano, é porque, antes, ele devia ter instituído que os nordestinos pobres devem morrer de fome, não podem sem metalúrgicos, não devem fundar partidos políticos nem serem presidentes da república, muito menos o melhor de todos. Aqui fica claro que a ideia de milagre é absurda.

Então, por que Lula insiste tanto na existência e na interferência de milagres em sua vida uma vez que, de fato, quem criou e sustenta Leis que impedem os desfavorecidas como ele de se realizarem na vida não pode ter sido Deus, mas os próprios homens? Se Deus não errou, porque alteraria a sua “constituição”? E se o erro é somente humano, porque Ele teria de suspender as suas regras eternas? Para que um homem ou outro fosse dispensado do real? Deus porventura seria bom privilegiando milagrosamente apenas alguns de seus filhos enquanto outros sucumbem sem escapatória das vicissitudes da realidade?

Milagres, portanto, além de fazerem de Deus um ser injusto e de dizerem que Ele é um péssimo arquiteto, ainda fazem com que Ele pareça humano, demasiado humano, isto é, um ser incompetente que no meio do caminho descobre que falhou e que precisa corrigir seus erros. Só que, no caso dEle, milagrosamente. Antes, o que até poderíamos chamar de milagroso -mesmo que Spinoza diga que não se trata disso – é o fato de todos os seres compartilharem indiscriminadamente da obra divina que, para o filósofo, é a natureza, pois só isso mostraria que Deus não errou ao conceber a realidade nem que prefere umas criaturas suas a outras por via de milagres.

Todavia, não é o fato de Deus ter distribuído igualitariamente alguma coisa aos homens que Lula chama de milagre. Antes, o metalúrgico toma por milagroso o fato de ter escapado da desigualdade que ele mesmo vê na realidade. Apesar de, com isso, Lula dizer que Deus errou até a hora de ser milagroso com ele -e com pessoas como ele-, esse absurdo manifesto esconde uma percepção latente bastante verdadeira: a realidade humana é desigual por natureza. Só isso explica o fato de alguém não morrer de fome, tornar-se um profissional, ascender politicamente e realizar uma grande obra ser considerado milagre.

Entretanto, é precisamente nessa crença que Lula tem nos milagres que reside a sua mais pragmática percepção da realidade: ela é desigual sim; privilegia uns em detrimento de outros; e que só revolucionando-a radicalmente é que se realiza a utopia da igualdade. O crente diria que se trata de reconstruir a igualdade natural arruinada pelo homem. Porém, para o proletário nordestino que virou o maior presidente do Brasil, trata-se mais de produzir laboriosamente a igualdade que, para ele, nunca existiu no mundo, mas que deve existir.

Embora esteja sempre com a palavra milagre na boca, não pode ser dito que Lula é crente, pois não crê que Deus tenha feito o mundo perfeito, muito pelo contrário. Antes, o Deus de Lula deixou um mundo de coisas a serem feitas. Que Deus é esse? O que o metalúrgico chama de milagre, na verdade, é a superação humana dentro do mundo humano, sem intervenção divina alguma. Mais ainda, Lula acredita que a realidade precisa dele, de Lula, para se tornar um pouco mais perfeita, um pouco menos desigual.

Complexo de Deus? Um pouco, mas quem nunca? Sem dúvida, Lula é uma espécie de Deus para muitos brasileiros com os quais até então só era compartilhado desigualdade. Para estes, quando as coisas começam a ir bem, só pode ser milagre mesmo, tamanha a dificuldade que experimentam em suas vidas. Isso, entretanto, é mais velho do que Lula. Quem não lembra que no início dos anos 1970 a bonança econômica oriunda do petróleo foi chamada de Milagre Brasileiro?

Em um país tão desigual como o Brasil, um passo no sentido da igualdade social parece uma dádiva tão grande que poucos creem que isso possa se dar por intervenção humana apenas. Antes, é preciso de um Deus boníssimo e milagroso para que a dura realidade não siga ordinariamente desigual. Daí a construção de uma espécie de silogismo popular que, erroneamente, conclui que Lula é um Deus: Deus é brasileiro e só quer um mundo perfeito; Lula é brasileiro e só quer um mundo perfeito. Portanto, Lula é Deus.

O problema é se o próprio Lula acredita nessa ilógica. Os milagres com que o ex-presidente se diz constantemente agraciado não dizem exatamente isso, embora sugiram que ele está mais próximo de Deus do que todos os nordestinos que morreram de fome na infância, todos os homens que não conseguiram se profissionalizar, e todos os políticos brasileiros que não conseguiram ser o melhor presidente do Brasil. Agora, se houvesse mesmo um Deus extremamente bom e justo, ele confirmaria isso? Obviamente que não.

Portanto, o único jeito de Lula acreditar em Deus e não fazer dEle um ser incompetente e injusto, que vai resolvendo Suas incompetência e injustiça aos poucos por meio de milagres, é acreditar que ele mesmo, Lula, é Deus. Ainda mais tendo sido um garoto humilde do sertão nordestino que, por meio de muito trabalho, mas, segundo ele, por causa de nove milagres, findou como o maior presidente do seu país, compartilhando com milhões de brasileiros a superação das misérias da fome e da exclusão social. Talvez somente a falta de um dedo nas mãos, perdido nesse “processo milagroso”, lembre Lula de que ele não é Deus, pois, se fosse, teria feito um milagrezinho a mais para não tê-lo perdido.

“Esse metalúrgico de merda” e a pirotecnia golpista

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Há muito eu sei que a TV serve mais para fazer boi dormir do que para informar. Por isso, na madrugada do dia quatro de março de 2016, adormeci com a televisão ligada. Só que, na manhã do mesmo dia, fui acordado por uma notícia que sequer o meu inconsciente conseguia acreditar: “o ex-presidente lula foi coagido a depor em Curitiba”. Desperto, acreditei menos ainda nos fatos ao ver que Lula estava sendo coagido em função de uma suposta delação premiada não legitimada dada por Delcídio do Amaral, senador envolvido em escândalos que, estes sim, mereciam prisão. Entretanto, Delcídio há pouco foi liberto e liberado para voltar às suas atividades parlamentares.

Porém, a minha incredulidade máxima foi mesmo com o espetáculo midiático em torno da indevida coação contra Lula. Sem dúvida,  suspeitas sobre quem quer que seja devem ser investigadas e divulgadas pela imprensa, pois disso dependem a democracia e a justiça. Agora, não podemos nos alienar do fato de que a atuação da mídia era um espetáculo à parte, muito particular aliás. Sem medo de errar posso dizer que, para a mídia, tanto fazia a verdade, mas somente a sua própria ficção. O show golpista da Rede Globo em momento nenhum se preocupou em investigar se estava havendo injustiça por parte da justiça brasileira. Isso sim seria uma pauta com dignidade inquestionável.  “Mas não”, disse Lula em resposta, “hoje, quem condena as pessoas são as manchetes. Hoje, amedrontam o poder judiciário. Hoje, amedrontam o ministério público. Hoje, amedrontam os políticos com essa pirotecnia midiática”.

Por isso,  no dia 4, a minha televisão ficou ligada o tempo inteiro, e justamente na Rede Globo, o canal inimigo, pois mais importante que o teor do depoimento coagido de Lula, era não deixar de conhecer um pouco melhor, e ao vivo, o modus operandi  do poder golpista. Há quem diga, todavia: “desligue a TV que a crise acaba”. Eu, porém, creio que, estrategicamente, a maior burrice é se privar da oportunidade de ouvir e de conhecer as táticas do inimigo. Apenas se fortalece o opositor enquanto se presta atenção somente no próprio umbigo. A ciência sobre o umbigo do inimigo é a outra metade do caminho em direção à vitória. Por isso, ainda que ideologicamente insuportável, eu taticamente suportei a Rede Globo e a sua bélica e poderosa pirotecnia golpista.

Minha incredulidade e angústia com o estado de exceção aventurado no Brasil nesse início de março de 2016 eram tamanhas que me senti como se estivesse diante dos fatídicos ataques às torres gêmeas de onze de setembro de 2001. Algo que certamente mudaria o mundo no qual vivo. Só que, para mim, os aviões kamikazes eram pilotados pela rege Globo e o seu rol de revistas dedicadas à oligarquia brasileira, e as torres que precisaram ser derrubadas eram o próprio Lula. A feliz diferença do terrorismo político que fez seu grande dia da terra tupiniquim foi que, aqui, as torres gêmeas puderam se manifestar depois do ataque. No final do dia, o ex-presidente deu um discurso vigoroso aos seus companheiros, à mídia toda, e também aos brasileiros, para deixar bem claro quem são os terroristas, quais são suas táticas, e não menos suas sórdidas ambições.

Sobre a coação assaz antidemocrática que Sérgio Mouro, juiz federal que comanda o julgamento dos crimes da Operação Lava Jato, imputou-lhe, o ex-presidente metalúrgico disse: “antes dele nós já éramos democratas. Antes dele, nós já fazíamos as coisas corretas nesse país. Porque enquanto muitos deles não estavam fazendo nada, nós já estávamos lutando para que nesse país se conquistasse o direito de liberdade de expressão”. Mais adiante, Lula colocou que, “enquanto nenhum destes que foram na minha casa trabalhavam, com onze anos a Marisa (sua esposa) já era empregada doméstica. E eu acho que ela merecia respeito”. E mais: “não há nenhuma explicação para eles terem ido atrás dos meus filhos além do fato de eles serem meus filhos”.

“Mas não”, segue o ex-presidente indignado, “antes mesmo de os advogados saberem que seus clientes serão chamados para depor, a imprensa já sabe”. Por quê? Ora, porque, nas palavras do próprio Lula, “é preciso incriminar o PT, é preciso incriminar o Lula, porque estes caras podem querer continuar no governo. Pois não há outra coisa para incomodá-los a não ser a gente ter trabalhado durante todos esses anos para fazer com que as pessoas do andar de baixo subissem um degrau na perspectiva de chegar no andar de cima”.

Sua indignação disse mais e melhor: “há tempos eu sei que a elite brasileira é muito conservadora. Ela tem complexo de vira-lata e não vai permitir que vocês cresçam. Mas nós crescemos. Chegamos à presidência. E nós provamos que os pobres, que eram a desculpa deles para não fazerem nada nesse país, não são o problema, mas que os pobres viraram a solução desse país”. Prossegue dizendo que os das elites “partem do pressuposto que pobre nasceu para comer em coxo. Mas eu aprendi que não”.

Só que, confessa Lula, “eu me senti prisioneiro hoje de manhã. Prisioneiro”. Uma das perguntas que lula disse ter tido de responder no dia em que “esteve preso” foi sobre os presentes que recebeu ao longo de seus dois mandatos presidenciais estocados no midiatizadíssimo sítio de Atibaia, em São Paulo, que a imprensa diz ser dele, coisa que documento algum há para provar. O maior líder político brasileiro depois de Getúlio Vargas não conseguia crer que a polícia federal e a mídia estivessem “se preocupando porque eu usei a chácara de um amigo”. Porém, como o grande líder é aquele que não perde a espirituosidade nem nas piores situações, foi capaz de fazer troça contra seus inimigos: “eu usei de um amigo porque os inimigos não me oferecem. Bem que a Globo podia me emprestar o tríplex de Parati”, alfineta Lula com um sorriso que se repetiu em todos, tanto nos seus companheiros presentes na sede nacional do partido dos trabalhadores, quanto nos cidadãos que o assistiam pela tv ou internet .

Sobre a coação para esclarecer a origem dos presentes guardados em Atibaia, Lula não teve papas na língua para dizer que “se juntar todos os presidentes desse país desde Floriano Peixoto, eu fui o que mais ganhei presentes. Porque viajei mais, porque trabalhei mais”. O ex-presidente explode contra os ataques seletivos e explosivos que recebe: “isso é puro preconceito, isto é, todo mundo pode, menos essa merda de metalúrgico que um dia resolveu desafiar esses capitães”.

Sobre o vil tratamento que está recebendo, que não é diferente do que o que sempre recebeu dos capitães, Lula disse corajosíssimo: “eles precisam aprender que eu aprendi a andar de cabeça erguida nesse país. Eu aprendi acordando às três horas da manhã para fazer assembleia em porta de fábrica. Eu aprendi fazendo comício em ponto de ônibus. E quero dizer que eu não vou abaixar a cabeça.

Emendando sua fala ás suspeitas sobre seus ganhos com palestras ao redor do mundo, o ex-presidente disse mais altivamente do que nunca: “eu virei um conferencista importante … As pessoas queriam que o Lula falasse das coisas que foram feitas no Brasil. Que milagre vocês fizeram para aprovar as cotas? Que milagre vocês fizeram para aprovar o PROUNI? Que milagre vocês fizeram para levar energia à quinze milhões de pobres nesse país?. Era isso que as pessoas queriam saber”. Eleva-se mais ainda: “e por isso eu me transformei no conferencista mais caro do mundo junto com o Bill Clinton. Aliás, ele foi meu paradigma. Quem é que cobra mais, é o Clinton? Então vai ser igual ao Clinton. Paga quem quiser, contrata quem quiser. Eu não tenho complexo de vira-lata. Eu sei o que eu fiz nesse país”, arremata.

Abrindo seu coração aos companheiros petistas, ele disse com muito orgulho: “antes dos cinco anos de vida eu escapei de morrer de fome (no sertão nordestino, é preciso frisar). Esse foi o primeiro milagre da minha vida. O segundo milagre: eu tive um diploma de torneiro mecânico (o que para a elite pouco deve valer). Aconteceu um terceiro milagre comigo: eu ter tomado consciência política e ter criado um partido (de trabalhadores, contrário aos interesses elitistas). Aconteceu um quarto milagre comigo: meus companheiros me levaram à presidência da república (o que para a elite obviamente sequer poderia ter se dado). Aconteceu um quinto milagre comigo: eu fui melhor do que todos eles que governaram esse país (Samba Lula na cara de seus opositores elitistas)”.

Por isso, segue o “metalúrgico de merda”, “o que aconteceu hoje era o que precisava para o PT levantar a cabeça”. Humilde, disposto ao trabalho e atento à realidade como poucos, Lula declara: “não sei se serei candidato em 2018, não sei. A natureza às vezes é implacável com a gente que ultrapassa os 70. Mas essas coisas que eu faço aumentam a minha tesão de participar das coisas nesse país. Eu percebi agora que nem tudo está acabado como eu pensei que estava… É preciso recomeçar. E portanto nós vamos recomeçar de novo … O que eles fizeram com o ato de hoje foi fazer que, a partir da semana que vem, me convidem que eu estarei disposto a andar esse país”.

Acredito que a frase mui banalizada e desacreditada depois das manifestações de junho de 2013, qual seja, “o gigante acordou”, ainda encontra concretude e invulgaridade justamente em Lula. Por isso ele pôde dizer do topo de suas grandes realizações ao longo de sua governança: “eu quero que vocês saibam que o que me aconteceu hoje, embora tenha me ofendido, embora tenha magoado a minha história (e bate no próprio peito), eu quero dizer: se quiseram matar a jararaca, não bateram na cabeça. Bateram no rabo. E a jararaca tá viva como sempre esteve”.

Portanto, não é nem o caso de o gigante ter acordado, pois um verdadeiro gigante nunca dorme! Além do que, gigante é aquele que sabe usar as balas dos inimigos contra eles mesmos. O gigantismo desse “metalúrgico de merda” não surpreenderá se ele usar a tábua de suicídio midiática, colocada na proa golpista da nau brasilis, como trampolim para se catapultar ainda mais alto e com muito mais força contra a histórica força oligárquica que sempre esteve contra ele e que não suporta ter de competir democraticamente pela berlinda política, muito menos com metalúrgicos. Só que Lula fez questão de relembrar que o “metalúrgico de merda” é uma jararaca, e que está mais vivo e com muito mais “tesão” do que nunca.

A minha pulsão petista

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Diante dos fatos, por que eu ainda defendo o Partido dos Trabalhadores? A minha resposta imediata é que, desde Lula, o PT transformou o até então abstrato e eleitoreiro discurso político sobre igualdade social em realidade concreta para milhões de desfavorecidos históricos, objeto de extremo valor para  mim.

Entretanto, as ineficientes estratégias tentadas pelo partido diante das crises econômica e política, e, ademais, a corrupção interna que não se rogou de fazer lugar dentro do partido, e que faz dele o mesmo que tantos outros que eu desaprovo veementemente, tudo isso faz a minha defesa querer se calar. 

Agora, se, como disse Søren Kierkegaard, o pensamento objetivo traduz tudo em resultados, mas o  pensamento subjetivo coloca tudo em processo, omitindo o resultado, a minha reprovação em relação ao PT, objetivamente, é baseada nas más performances do atual governo, mas a minha insistente aprovação ao PT se dá por eu, subjetivamente desconsiderar tais resultados, omiti-los, e, em troca, valorizar apenas o processo, ou seja, o “modo” como ele governa.

Qual seria, entretanto, a justa equação entre a minha subjetiva concordância com o modo petista de governar e a minha objetiva discordância em relação aos fracassados resultados do partido?

Ora, quando a realidade vai contra as nossas mais profundas convicções, ou a reprovamos objetivamente, ou, em vez disso, subjetivamente a sublimamos, isto é, seguimos crendo que há uma verdade mais nobre e profunda escondida nos fatos aparentemente vis. Desse modo, eu só sigo defendo o PT porque, sublimando sua adversa realidade, acredito que ainda há nele uma virtude, ainda que oculta, ou o que é pior, golpisticamente ocultada.

A minha relação com o Partido dos Trabalhadores me remete à frase de Jacques Lacan: “amo-te, mas há algo em ti que amo mais do que tu”. Não obstante, o que é essa coisa que eu amo no PT mais do que ele mesmo? Ora, a igualdade social que o partido aventurou no Brasil e a tentativa de reduzir o poder das elites locais, feitos que, objetivamente, ninguém encampou no nosso país de modo mais efetivo.

Entretanto, como sustentar racionalmente esse estranho amor pelo PT diante dos seus atuais fracassos e vulnerabilidade à corrupção? Considerando o que disse Lacan, qual seja, que a pulsão transforma o fracasso em triunfo, meu insistente amor pelo PT é fruto de uma pulsão

E se, ainda conforme o psicanalista, a razão da pulsão não é atingir a sua meta, mas girar compulsivamente em torno dela sem, no entanto, alcançá-la, as minhas fantasias fundamentais, quais sejam, que as elites caiam do cavalo para sempre e que a igualdade social se estabeleça, se em forma de pulsão estão protegidas das vicissitudes da realidade.

Considerando o que disse o filósofo Slavoj Žižek, que “nosso senso de realidade se desintegra no momento que a realidade chega muito perto de nossa fantasia fundamental”, consigo entender que, para o meu sonho igualitário permanecer íntegro, algo da realidade petista deve ser desintegrado, pois, conforme o filósofo, quando sonho e realidade se encontram, um dos dois deve morrer.

Entretanto, Lacan está aí para não me deixar esquecer de que a pulsão é o modo subversivo dos sonhos permanecerem vivos e íntegros dentro da realidade, mais precisamente, em torno dela, girando sem parar, sem nunca tocá-la, pois só assim eles nunca serão desintegrados por ela. A minha permanência pulsional em torno do PT, portanto, é o modo subversivo mediante o qual preservo vivo o meu sonho de igualdade social no Brasil justamente num momento onde tal realização parece mais distante.

Se eu fosse uma máquina, ou seja, absolutamente objetivo, haveria um limite a partir do qual eu deixaria de defender o PT e o abandonaria. Da mesma forma, se eu fosse um animal puramente instintivo haveria outrossim um limite, pois, como disse Žižek, “quando se vê diante de um objeto que está fora de seu alcance, o macaco desiste de alcançá-lo depois de algumas tentativas frustradas e concentra-se em um objeto mais modesto; já o ser humano persiste no esforço e permanece fixado no objeto impossível”.

Então, é por que eu sou algo entre a máquina e a besta, melhor dizendo, porque sou humano demasiado humano que ainda insisto no PT, pois através das realizações concretas ao longo de sua curta história no poder eu permaneço na órbita desse impossível objeto de desejo chamado igualdade social. Ao PT, atualmente, pelo menos a minha pulsão!

Trump. Politicamente incorreto ou despoticamente correto?

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Donald Trump é politicamente incorreto? Ou dizer isso dele seria um elogio que ele sequer merece? O filósofo Slavoj Žižek, no texto “Trump e o retorno do politicamente incorreto”, usa o patético bilionário candidato à candidato à presidência dos EUA para exemplificar a “tendência de aviltamento de nossa vida pública”. Realmente, ninguém melhor –ou pior- do que Trump para, publicamente, fazer com que os aviltamentos envolvidos no racismo, na xenofobia e no machismo, só para citar alguns, tomem novo fôlego e ameacem a sociedade americana e, por consequência, espreitem o resto do mundo. Para Žižek, no entanto, os “estouros vulgares” de Trump servem apenas para “mascarar a incontornável ordinariedade de seu programa”. Só que a vulgaridade explosiva de Trump não para por aí.

O problema do texto de Žižek é dizer que Trump é politicamente incorreto, pois isso pressupõe que o bilionário de fato age politicamente, para só então, a posteriori, sua atuação política poder ser considerada incorreta. Ao assumirmos peremptoriamente que Trump é politicamente incorreto podemos estar nos alienando de uma verdade muito mais profunda e radical, qual seja, que Trump não age politicamente, muito embora esteja agindo na ágora política. Para não sermos enganados pelos jargões de efeito, é melhor esclarecer a diferença entre agir politicamente e agir não-politicamente, ou o que é o mesmo, despoticamente.

Aqui é preciso lembrar, todavia com a ajuda de outro filósofo, Baruch Spinoza, que na natureza não há certo nem errado, bem nem mal, mas só coisas e ações que em si mesmas são somente verdadeiras porque reais, e que certo e errado, bom e ruim, são apenas atribuições posteriores, dadas de acordo com os valores de cada um. Essa lembrança spinozana deve servir para esclarecer-nos de que a ação não-política não é má nem errada por natureza, assim como o acerto ou o bem não estão necessariamente presentes na ação política.

É fundamental também lembrarmos que a política foi uma invenção grega do século VI a.C. alternativa às relações despóticas entre os homens. O homem político, isto é, o “polites”, era aquele que não mais resolvia os seus problemas valendo-se da força bruta. O “polites”, isto é, o político substitui o “despotes”, ou seja o déspota. Discurso no lugar de violência, ou, em outras palavras, civilidade no lugar de barbárie, eis o movimento que fez surgir a política na antiguidade mediterrânea. Infelizmente, aqueles virtuosos políticos gregos não deixaram de ser viciosamente despóticos na esfera doméstica, com seus escravos ou com os estrangeiros, coisa que, infelizmente, tampouco a nossa contemporaneidade conseguiu transformar em passado.

Para a pergunta que Žižek, no seu texto, coloca na boca dos politicamente incorretos, qual seja, “mas por que falar de educação, polidez e modos em público hoje, num momento em que estaríamos diante de problemas muito mais urgentes e ‘reais’?”, os gregos antigos já tinham a resposta certa que o filósofo contemporâneo faz parecer ser nova e sua, qual seja: “bem, porque os modos importam sim – em situações tensas, são uma questão de vida ou morte, uma linha tênue que separa a barbárie da civilização”. Agora, se a polidez e os bons modos são sempre necessários à civilização, é porque as suas ausências são sempiterna e resistentemente presentes: é porque não conseguimos deixar de ser bárbaros, despóticos e grosseiros que precisamos tanto exercitar civilidade, política e polidez. É uma questão de vida ou morte!, dizem-nos os políticos antigos e o filósofo contemporâneo.

A relembrança da gênese da política deve ajudar na recolocação da pergunta: Trump age politicamente –para então poder fazê-lo de modo incorreto? Agora podemos responder com mais propriedade se ele age politicamente, ou, em troca, apenas age despoticamente. Entretanto, no caso de ser genuinamente despótico, faz sentido perguntar se tal despotismo é correta ou incorreto? Ou, antes, quando um déspota age incorretamente, isto é, da perspectiva do despotismo não é absolutamente despótico, e a sua natureza bruta deixa de se impor sobre os demais, não estaria ele automaticamente sendo político? Os gregos pré-políticos não teriam sido déspotas incompetentes pelo fato de terem começado a resolver as suas diferenças mediante o verbo e não mais por meio da violência? Se sim, bendita incompetência!

Trump, mediante os seus racismo, xenofobia e machismo outra coisa não faz que agir violentamente e sem polidez alguma contra hispânicos, negros, muçulmanos, gays e mulheres. Não é o caso, portanto, de dizer que o bilionário americano é politicamente incorreto, visto que sequer é político, mas totalmente despótico. É de sua grande e brutal força econômica e midiática que ele se vale para tentar impor, despótica e verticalmente, os seus anacrônicos valores individuais sobre os valores que, contemporânea e horizontalmente, a sociedade americana –mas não só ela- tenta construir para si mesma.

Desculpe-me, Žižek, mas Donald Trump é politicamente incorreto apenas metaforicamente, pois, literalmente, é absolutamente despótico. Melhor dizendo, corretamente despótico ao forçar seus propósitos pessoais contra uma sociedade inteira, ignorando deliberadamente os contradiscursos mais racionais. Chamar Trump de politicamente incorreto é impróprio em se tratando de alguém que sequer consegue ser político. Na verdade, ele é um déspota corretíssimo que, hoje, usucapia o parlatório político para, ao contrário dos gregos “politikos”, afirmar a violência, a estupidez e a miséria retórica no lugar da civilidade, da polidez e da virtude do diálogo político.

Panelas, vergonha alheia e Spinoza

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Da minha janela para a avenida Nossa Senhora de Copacabana, assisti a mais um estridente “panelaço” contra o atual governo, contra o Partido dos Trabalhadores e, como não podia deixar de ser, contra o ex-presidente Lula. Na noite de 23 de fevereiro de 2016, novamente, os elementos predominantes do maravilhoso cenário da Princesinha do Mar eram os patéticos e histéricos cidadãos que faziam do ruido de suas panelas os seus melhores discursos políticos. Diante de tamanha miséria retórica, pensei sentir vergonha alheia de todos eles.

No entanto, não podia ser vergonha o que me passava, afinal, este é um sentimento que nos afeta por reprovarmos algo que nós mesmos fazemos. Ou ainda, segundo o filósofo Baruch Spinoza, “a vergonha é uma tristeza acompanhada da ideia de alguma ação nossa que imaginamos ser desaprovada pelos outros”. Sendo assim, se a ação da qual eu parecia estar me envergonhando, embora alheiamente, não era produzida por mim, nem a minha reflexão silenciosa parecia ser desaprovada pelos outros, vergonha é o que eu não deveria sentir.

Na verdade, o que eu sentia era uma espécie de orgulho -orgulho próprio!- por descrer piamente que bater em uma panela pudesse resolver, em qualquer instância, seja a atual crise brasileira, seja ainda  patologias históricas, tais como a mui antiga e democratizada corrupção política tupiniquin e os vis movimentos de uma economia completamente refém do capitalismo global.

Por que então essa vergonha alheia pareceu me afetar? Como foi a partir da minha janela física que cheguei a essa questão, para esclarecê-la é conveniente debruçar-me sobre uma janela metafísica. E se a vergonha é um afeto, a metafísica de Spinoza, o filósofo dos afetos, é a melhor janela para eu ver à distância a minha vergonha alheia, que, no entanto, tilintava silenciosamente um forte orgulho próprio por eu não ser um reles paneleiro político. Para raciocinar melhor, eu deveria me afastar dessa vergonha intrusa, pois, como diz o filósofo, “a vergonha é uma espécie de tristeza, não diz respeito ao uso da razão”.

Spinoza afirma que a vergonha, embora não seja uma virtude, é boa à medida que indica um desejo de viver lealmente. A minha pretensa vergonha alheia, portanto, era apenas o sinal de que eu desejava ser mais leal ao meu país do que aqueles desavergonhados que batiam panelas. Da minha perspectiva, lealdade seria protestar, argumentativa e racionalmente, em um diálogo político civilizado e maduro, sem o qual não um Brasil melhor não será construído.

A minha maior lealdade cidadã em relação aos histéricos paneleiros pode se justificar no que diz Spinoza: “quem sente vergonha é mais perfeito do que o desavergonhado, pois este não tem qualquer desejo de viver lealmente”. Entretanto, se, como coloca o filósofo, “o pudor é o medo da vergonha”, a vergonha alheia que eu inicialmente senti pelos tilintadores de plantão, na verdade, era meu pudor de não ser desleal ao meu país. Não era orgulho, portanto, o sentimento que barrou a minha vergonha alheia, mas pudor! Era esse o afeto que eu tilintava reflexivamente da minha janela silenciosa .

Sem dizer que aderir à vergonha alheia seria um tremendo desserviço político. Em primeiro lugar, porque é aquele age vergonhosamente que deve se envergonhar dos seus atos. E em segundo lugar, porque sentir vergonha pelos atos de outrem dispensá-lo de ser afetado por aquilo de que ele mais precisa para ser um pouco mais virtuoso. Com efeito, quem sente vergonha no lugar de alguém age, gratuita e espontaneamente, como um “personal-vergonha” dele, enquanto ele, tendo esse afeto, digamos, terceirizado, pode até sentir-se orgulhoso de si, o que é um absurdo -muito embora aqueles que deixavam a avenida Nossa Senhora de Copacabana mais ruidosa do que já é evidenciassem um inacreditável orgulho próprio.

Sinceramente, o que eu mais desejei durante o panelaço foi que os paneleiros histéricos pudessem se confrontar com suas vergonhosas manifestações políticas. Agora, mesmo que eles não se envergonhem disso, sequer se entristeçam com a pobreza de suas estratégias políticas pessoais, pois caso o fizessem certamente se tornariam cidadãos mais leais ao seu país, a melhor coisa que eu tenho a fazer é pensar como Spinoza, ou seja, nunca esquecer de que “a vergonha é uma tristeza acompanhada da ideia de uma causa interior”, nunca causada por outra pessoa. Eles não podem e não devem me causar vergonha, mesmo que alheia.

Não foi nem felicidade nem orgulho o sentimento que os tilintadores de Copacabana me causaram sob a máscara da vergonha alheia, mas, em troca, pudor. Pudor de não agir como eles!  E se tal pudor, causado por mim mesmo, causava-me espécie de orgulho e felicidade próprios, esses sentimentos eram a minha própria glória, pois, conforme Spinoza, “a glória é a alegria acompanhada da ideia de uma causa interior”, ou seja, causada por quem a sente.

Se, como diz o filósofo dos afetos, “a vergonha é uma tristeza acompanhada da ideia de uma causa interior”, e provém do fato de alguém se julgar reprovado pelos outros, a minha glória, melhor dizendo, o meu silencioso pudor em não ser desleal ao meu país, diante do monótono e ineficiente ruído de centenas de panelas, era o mais virtuoso protesto que eu poderia fazer.

Entretanto, ainda que a minha silenciosa virtude não conduza os paneleiros histéricos à vergonha nem à tristeza, que, do meu ponto de vista, é o que eles deveriam sentir por suas barulhentas deslealdades cidadãs -e que, se sentissem, mostrariam a intenção de serem um tanto mais leais ao Brasil-, pelo menos de me sentir envergonhado por eles eu me sinto dispensado! Sou alheio a histeria deles. Essa é a minha glória. Glória cidadã.

Bernie Sanders, o Al Gore da vez?

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Será o discurso ascendente do democrata Bernie Sanders, candidato à candidato às próximas eleições presidenciais americanas, “An inconvenient truth”, isto é, “Uma verdade inconveniente”, nome do documentário sobre alterações climáticas vencedor do Oscar de 2007, estrelado pelo também democrata Al Gore, que, em 2000, foi escolhido pela maioria da população na disputa presidencial, mas que, por conta da obscura estrutura eleitoral daquele país –em bom português: maracutaia- não foi eleito? Sim e não. A plataforma de Sanders, assim como a de Gore, é inconveniente aos interesses imperialistas. Aos anseios populares, entretanto, é absolutamente conveniente.

Entretanto, assim como Gore, cujo ativismo ecológico imporia limites crescentes ao voraz capitalismo americano, mas que, por isso mesmo, foi deposto peremptoriamente de sua vitória, não estará Sanders outrossim condenado à derrota, ainda que angarie a maioria dos votos populares, uma vez que seus ativismo político-econômico de espectro socialista ameaça com análoga intensidade as ambições capitalistas? Não nos esqueçamos de que Sanders, em 1981 quando eleito prefeito de Burlington, cidade do pequeno Estado de Vermont, foi chamado pelos jornais de “O primeiro prefeito socialista da América”.

Seja em 1981, seja em 2016, Sanders não faz questão alguma de se descolar desse rótulo socialista, muito embora sua plataforma seja tipicamente social-democrata. Além do mais, atualmente dividindo palanques com figuras como Donald Trump e Hillary Clinton, Sanders surfa na sua fama socialista a ponto de fazer as vezes de o Robin Hood norte-americano. No entanto, essa poderosa e revolucionária característica pode ser o seu maior calcanhar de Aquiles. Afinal, em se tratando da presidência da maior potência econômica do planeta, nada que seja verdadeiramente inconveniente aos ditames do capital, como por exemplo a frase de Sanders na sua vitória na primária de New Hampshire, qual seja, “o governo pertence ao povo, não a um punhado de bilionários”, é conveniente, a não ser em forma de utopia.

Porém, como os votos dos americanos a Gore em 2000 e as intenções de voto à Sanders em 2016 deixam bem claro, utopias são fundamentais! Embora o significado comezinho de utopia aponte para fantasia, devaneio, ilusão -o que não lhe atribui potencial revolucionário algum-, desde o século XVI, quando Thomas Moore juntou os termos gregos “Ou” (não) e “Topos” (lugar), utopia passou a dizer “em lugar nenhum”. Por isso, o que é utópico não é necessariamente inexistente, fantasioso, ilusório, mas pode ser também algo real, factível, que, entretanto, só não encontrou ainda lugar para ser. A utopia ecológica de Gore, infelizmente, não deixou de ser uma ilusão até hoje, como a marcha da destruição da natureza deixa bem claro. Já a utopia socialista de Sanders ainda é fiel à definição de Moore, e, quem sabe, pode encontrar lugar no mundo. Aliás, já não está encontrando?

Ora, se o real da política norte-americana –mas não só o dela- é o lugar de doações empresariais milionárias às campanhas políticas, a recusa à essa vil fonte atuada por Sanders, que só aceita doações de cidadãos, e no valor máximo de US$ 3, outra coisa não é que uma utopia que encontrou lugar para existir. Outras propostas de Sanders, que a princípio soam utópicas, mas que, oxalá, podem encontrar lugar na realidade, são: resgatar a democracia das mãos dos milionárias e lobistas; aumentar impostos para os mais ricos; fazer Wall Street bancar o ensino gratuito nas universidades públicas; quebrar os grandes bancos em instituições menores; criar imposto à especulação financeira; instituir um sistema público universal e gratuito de saúde; legalizar imigrantes; combater o preconceito e a discriminação às mulheres, aos negros e às pessoas LGBT; só para citar algumas ideias que, para o $istema, é melhor que sejam utopias no sentido corriqueiro do termo.

Entretanto, ainda que a utopia de Sanders pareça um devaneio, é exatamente ela que a população americana mais está querendo que encontre lugar de existência. Nessa onda utópica, Sanders catalisa como nenhum outro candidato a insatisfação popular, dando novo fôlego à velha luta pelos direitos civis que brilhou nos anos 1960, mas que hoje está tão ofuscada, obesa e sedentária quanto o capitalismo precisa que ela esteja. Para animar essa apatia cética, Sanders tenta fazer um novo movimento de massa com o povo americano para produzir uma revolução política que dê cabo da $órdida $ituação que $itua centralmente os interesses capitalistas e que $itia perifericamente os interesses populares.

Agora, não deverá nos surpreender se Sanders tiver a maioria dos votos populares e ainda assim não assumir a presidência dos EUA, uma vez que, como Gore exemplifica melhor que ninguém, a escolha do presidente dos Estados Unidos, na verdade, se dá nas secretas reuniões dos colegiados eleitorais americanos, que outra coisa não devem ser que “lounges” absolutamente gentrificados nos quais petrolíferas e bancos privados decidem verticalmente o que e quem é mais conveniente para eles. Assim como ativismo ecológico de Gore não era conveniente para os peixe$ grande$ de 2000, o ativismo social de Sanders não deve ser menos inconveniente para os lobo$ voraze$ de 2016. Há 16 anos, a virtude ecológica de Gore “foi deposta” pelo vício bélico-imperialista de Bush filho, o idiota. E hoje, a virtude socialista de Sanders sucumbirá diante do vício xenófobo-liberal de Trump, o palhaço?

Foi porque Al Gore tinha em mãos a mais pura verdade –a necessidade da preservação da natureza a despeito dos interesses econômicos- que ele foi considerado absolutamente inconveniente pelo $istema de há década e meia. O fato de não ter sido empossado apesar da maioria de votos populares é a prova cabal e antiecológica disso. Sanders, por sua vez, e a sua popularíssima verdade social-democrata, são outrossim inconvenientes ao $istema, cuja sordidez nos leva a crer inclusive que se o atual Robin Hood americano findar realmente com a faixa presidencial no peito, é porque ele não é tão verdadeiro nem tão Robin Hood assim. Se Bernie Sanders, em troca, findar como Gore, isto é, nas próprias palavras de Gore, como o “ex-futuro presidente dos Estados Unidos da América”, então teremos certeza de que ele “era” absolutamente verdadeiro e conveniente.

 

Realeza X realidade

Real se diz tanto daquilo que existe, que é, como também daquilo que envolve os reis. Estes, intrigantemente, são os dois reais ao mesmo tempo: primeiro, porque existem, e, segundo, devido às suas respectivas realezas. Por isso os reis eram considerados sobre-humanos pelos seus súditos, afinal, duplamente mais reais do que eles. Entretanto, essa sobre realidade régia é uma construção assaz contraditória, portanto, insustentável.
 
A realidade física que os reis compartilham com seus súditos faz deles seres tão ordinários quanto estes. Tal é a natureza. Porém, os reis escapam dessa ordinariedade existencial por via de suas realezas, que, metafisicamente, fazem com que eles, e somente eles, tenham uma outra realidade que a dos súditos, uma sobrenatural, por meio da qual jazem acima da existência banal, primeira.
 
Deparei-me concretamente com a dupla realidade da realeza no Palácio de Versalhes, construído por e para Luís XIV, rei da França. Na materialidade do palácio, nas suas formas assaz requintadas, reconheci o original de que muitos cenários de filmes e óperas, e também os pastiches arquitetônicos, são cópias. Que Versalhes é real porque existe, não há dúvida. Que é real por ser a residência de Reis, também. Todavia, aqui vimos que é real também por ser o original de onde suas muitas cópias/imitações provieram.
 
Primeiramente, fiquei intrigado com a imensidão e o luxo do palácio de Versalhes. Seus setecentos aposentos, todos revestidos com mármores raríssimos e brocados caríssimos, os magníficos candelabros de cristal, a mobília extravagante, chamada de Estilo Luís XIV em homenagem ao rei que construiu e decorou o palácio para si, e, sobretudo, o estonteante Salão dos Espelhos, tudo isso me dizia uma única coisa: sofisticação!
 
Vulgarmente, falamos que uma coisa é sofisticada quando queremos dizer que ela é chique, requintada. Não obstante, “sofisticar” deriva de “sofismar”, ou seja, de falsificar. Platão deixou bem claro nos seus diálogos: um sofisma é um argumento falso. Então, afirmar que a realidade exclusiva dos reis precisa de sofisticação para existir acima da realidade dos súditos, outra coisa não é que dizer que os reis precisam de falsidade para serem reis.
 
Por que, então, tal falsidade, tal sofisticação, é chamada de “real”, se a falsidade, que é oposta à verdade, também o é em relação à realidade? Ora, o que não existe, não é real, tampouco verdadeiro. A realidade sofisticada dos reis, portanto, precisa envolver uma contradição, visto que não é possível algo falso, sofisticado, ser real. Todavia, é justamente essa “realidade contraditória” que faz com que o reis sejam duplamente reais.
 
Aqui é preciso perguntar: é o rei que gera a contradição, ou, antes, é esta que gera aquele. Bem, nem sempre houve reis, e, nessa época, uma única realidade era compartilhada por todos. Porém, historicamente, a concentração de poder nas mãos de alguns fez com que a realidade destes parecesse ou devesse parecer diversa da realidade dos desapoderados. E, no limite do poder, os reis, aqueles cujas sobre realidades falsificadas, produzidas estrategicamente em função do poder, são mais importantes que a realidade ordinária, primeira, natural.
 
A contradição intrínseca da realidade exclusiva dos monarcas produz uma “realidade” mais real que a própria realidade. No entanto, como vimos, sofisticada, portanto falsa. O problema dessa falsidade, é tornar menos real justamente a realidade primeira e inalienável que lhe tornou possível. Desse modo, a realidade régia, diminuindo a realidade ordinária sobre a qual se fundamenta, apenas reduz a estabilidade dessa sua realidade forjada. Por isso insustentável;
 
Talvez por isso a realidade sobrenatural de reis, como por exemplo a de Luís XIV, que construiu o Palácio de Versalhes precisamente para estimular tal sobrenaturalidade, venha desaparecendo ao longo da história. Não que a república, forma de governo que superou a monarquia absoluta, deixe de prescindir de uma realidade ligeiramente outra que a dos cidadãos. A diferença, entretanto, está em que a realidade republicana não está aí para reduzir a realidade comum dos cidadãos, mas, ao contrário, fazer com que ela seja, de fato, “o” real, sem nenhum real ulterior.
 
Portanto, se “real” se diz daquilo que existe e daquilo que envolve os reis, mas esta última realidade, a da realeza, é falsa, sofisticada, essa última significação não possui um objeto real por natureza. Em segundo lugar, pelo fato de a sofisticação do real intrínseca à monarquia estrategicamente reduzir a realidade do real primeiro, visto que só assim pode ser mais real do que ele, outra coisa não faz senão tentar eliminar o único objeto verdadeiramente real, qual seja, a realidade ordinária da natureza compartilhada por todas as pessoas.
 
A república foi resposta história para esse problema. Entretanto, a superação da monarquia não eliminou a possibilidade de alguns poucos produzirem e vivenciarem realidades exclusivas, superiores, que, entre outras coisas, permite-lhes ir contra a lei comum. A diferença entre o cidadão e o súdito, entretanto, está em que o real mais elevado, para aquele, é res pública, enquanto que, para este, é res exclusiva do rei. Portanto, a sofisticação de templos do poder, como Versalhes, é a falsidade de uma realidade imprópria minando e solapando a realidade propriamente dita, inalienável: o real ele mesmo.
 
 

O átomo do problema brasileiro

A proposta de Luciana Genro, fundadora do PSOL, de, em 2016, serem feitas eleições gerais que substituam toda a corrompida classe política brasileira que aí está, é virtuosa apenas por atinar à lógica de que não é o caso que há algo de errado na estrutura política brasileira que a comprometa e que por isso deva ser reformado, mas, antes, e essencialmente, que a estrutura em si mesma seja errada. A estrutura é próprio erro aliás, em relação ao qual nenhuma reforma significaria realmente evolução.

Agora, a substituição total da atual estrutura essencialmente corrompida-corruptora que aí está não significa que a próxima, a ser construída democraticamente pelos próprios brasileiros no promissor vazio deixado pela atual, será mais virtuosa. Como falou Aristóteles lá atrás, a qualidade de um estado “é” a qualidade dos seus cidadãos (não há universal, somente particulares!).

Se Luciana Genro fosse mais ousada, e dissesse que além da atual classe política corrompida precisamos também esvaziar o Brasil de brasileiros coruptos, melhor dizendo, da corrupção que jaz em cada um de nós, para então um povo não corrupto-corruptível ter oportunidade de propor-construir uma nova estrutura livre de corrupção desde sua base, seria possível levá-la a sério. Entretanto, o aparente radicalismo da proposta de Genro vai só até metade do caminho. É reformista ainda assim. Portanto frágil e vulnerável aos mesmos males dos quais quer se ver livre.

A máscara transcendente do imanente Leviatã hobbesiano faz-nos crer que podemos ser, e que de fato somos melhores que nosso Estado; que temos escondido em nós, como se se tratasse de um plano B, a fórmula de um Estado melhor do que o que nos desagrada. Porém, isso outra coisa não é senão a abstração da nossa corrupção intrínseca concreta, em relação à qual, infelizmente, não nos revoltamos. Porventura tudo o que queremos ver deposto na política brasileira já não esteve desde sempre naquilo que chamamos de “jeitinho brasileiro” democraticamente espalhado pelo nosso país?

Ora, depondo uma presidenta, um único partido, ou todos eles juntos até, nos alienamos covardemente do fato de que o mal que nos aflige não nasceu neles nem a partir deles. Em ordem crescente, os políticos, os partidos, as figuras soberanas e, por fim, o próprio Leviatã são apenas expressões mais universais, e portanto mais abstratas do que, na verdade, existe particular e concretamente nos próprios cidadãos.

Sendo assim, se tivéssemos a bravura de vestir, cada um de nós, brasileiros, a veste rota da corrupção que mentimos a nós mesmos só os políticos vestem, ou seja, se imanentizássemos absolutamente a vil realidade éticopolítica brasileira, talvez aí a estrutura pudesse sofrer ou expressar alguma espécie de revolução virtuosa. Agora, enquanto formos vulgares e não resistirmos ao maniqueísmo que nos protege indevidamente no “lado bom” do problema que é de todos, seguiremos sendo esse problema que covardemente se auto ignora e que por isso mesmo permanece intocado.

E se é assim, ou seja, se permanecemos acreditando que a corrupção vem de cima para baixo, e nos recusarmos em ver justamente o contrário, é melhor partir para uma “política de redução de danos”, como acontece com usuários de drogas. Nesse sentido, é preferível a estrutura corrupta colocando cisternas nas casas áridas dos nordestinos, exigindo a construção de milhares de casa populares em troca de “favores mensaleiros”, e filhos de empregadas domésticas e de pedreiros na universidade pública, só para citar alguns, a estrutura corrupta que só proporciona a manutenção dos privilégios da velha e arraigada oligarquia.

A corrupção que nasce nos cidadãos, mas que é tão difícil de encarar, insuportável até, é essa que queremos ver somente em abstrações “transcentalizadas” tais como determinados partidos, representantes políticos, no Leviatã mesmo, porém, para que estes “outros transcendentes” carreguem uma culpa que na verdade é imanentemente de todos, e para que, obviamente, eles sejam punidos espetacularmente no nosso lugar. Essa corrupção que alienamos no outro realmente é mais fácil de ser deposta por nós. Entretanto, depor a corrupção que jaz no núcleo dos átomos brasileiros, ou seja, nos cidadãos, essa é bem mais difícil de ser tirada do poder.

A própria Luciana Genro, que defende veementemente o fim do financiamento empresarial a campanha de partidos políticos, não se privou de receber dinheiro de corporações oligárquicas tais como a Gerdau e a Zaffari. Contudo, antes de afirmar que ela prega moral “de cuecas”, cabe perguntar seriamente se há possibilidade de haver alguma pregação de moral sem ser “de cuecas”. Talvez o único moralismo que não seja contraditório nem vergonhoso seja aquele que não é pregado, mas atuado mudamente, sem propagandeamento prévio e estratégico.

Tire a Dilma do seu cargo, o PT do governo, os demais partidos, todos até, ainda assim restará um povo com as mesmas contradições no papel de operário de um outro Estado que, feito pelas mesmas mãos, em coisa não muito diferente resultará. Com efeito, o Brasil corrupto será concretamente deposto quando “impitimarmos” sistematicamente a nós mesmos sempre que baixamos filmes piratas da internet, aceitamos que os estabelecimentos comerciais nos quais consumimos não nos forneçam a devida e necessária nota fiscal, ou, como disse o historiador Fernando Karnal, quando colamos de um colega, ou damos cola a ele em uma prova sobre a Ética de Spinosa.

Retirando a soberana e transcendente máscara do Leviatã, tudo que veremos será uma relação absolutamente imanente entre aquilo que concretamente fazemos e aquilo que não queremos que seja feito. Entretanto, aqui, colocamos essa máscara abstrata como nossa representante soberana justamente para, ali, não mais nos reconheçamos como responsáveis naquilo que nos aflige. Porém, o problema estrutural aí permanecerá enquanto as peças essenciais dessa estrutura, os átomos brasileiros, quais sejam, nós, os cidadãos em geral, permanecermos nos iludindo de que o nosso problema é um outro que não nós mesmos.

Rafael Silva

Democracia e ocupação

Cidadãos, nas democracias modernas, são indivíduos cujos interesses são representados não por eles mesmos, mas por representantes democraticamente eleitos que, não é difícil observar, sem cerimônia preterem os interesses dos seus representados em função dos seus próprios. Não é exatamente isso que experimentam os cidadãos paulistas que elegeram Alckmin e o PSDB, para também terem uma educação de qualidade para seus filhos, mas que, no andar da carroça representativa, estão prestes a receber a “reorganização escolar” que, na verdade, é o pretexto para o fechamento de quase cem escolas?
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Com efeito, a representatividade política da atual democracia torna os cidadãos demasiados impotentes sempre que seus interesses não são levados a cabo pelos seus representantes. Resta reclamar inocuamente até a próxima eleição, na esperança de que os próximos representantes façam o que os atuais não estão fazendo. Em relação à contraditória reorganização das escolas paulistas, os cidadãos (pais e mães dos estudantes) gostando ou não da reforma tentada por Alckmin, pouco podem contra ela, a não ser sofrê-la até que um dia, representados por outro político ou partido, possam ter o que desejam para si e para seus filhos.
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Entretanto, ligeiramente externos a esse esquema democrático-representativo estão justamente os jovens estudantes que, por não serem eleitores, não são propriamente cidadãos, e por isso não precisam se submeter a esse sórdido esquema representativo, pelo menos não como seus pais-e-mães-cidadãos-oficiais. Uma vez que não elegeram representantes alguns, os estudantes não têm por que esperar deles que representem os seus interesses.
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Então, sem se valerem da tal representatividade democrática com a qual estamos habituados, e através da qual somos facilmente preteridos, os alunos-pré-cidadãos ocuparam duzentas escolas paulistas na representação direta de seus interesses. A cidadania não-plena deles talvez os tenha mantido virtuosamente alienados da crença cega nessa fábula chamada representatividade política que mais pretere que prefere os cidadãos propriamente ditos.
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Essa ação de ocupação dos estudantes paulistas, no sentido de seus interesses não serem postergados, remonta à democracia direta dos antigos gregos, na qual cada cidadão “ocupava” a representação dos seus próprios interesses diante dos demais cidadãos. Para os criadores da democracia, um cidadão colocar outro para representar seus interesses era um absurdo, uma burrice até. Então, todos os assuntos que dissessem respeito à vida dos cidadãos eram debatidos e deliberados diretamente por eles. Esse era o modo mais seguro de não serem mal representados.
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E, sob a pressão da ocupação das escolas paulistas, direta e presencialmente atuada pelos estudantes, Alckmin teve de ceder e suspender, ainda que temporariamente, a tal reorganização que os alunos não queriam. Agora, se estes mesmos alunos tivessem agido conforme seus pais e mães, isto é, acreditado desde o princípio que somente através dos seus representantes políticos poderiam barrar a reorganização escolar alckminiana, o projeto peessedebista teria seguido incólume. Porém, felizmente e subversivamente, os alunos mandaram um “beijinho-no-ombro” para a falácia da representatividade política e protagonizaram diretamente a defesa dos seus interesses.
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Ética de chocolate – uma dietética

Os chocólatras me perdoem, mas não é exatamente de chocolate que falaremos, mas daquilo que parece ser o mais importante, e sobretudo necessário para o nosso mundo: ética, o conjunto de hábitos e ações que visam o bem comum de uma sociedade. Para os gregos antigos, “ethos”, que originou a palavra “ética”, significava a morada do homem, ou seja, a natureza com o homem dentro dela, vivendo, evoluindo, ao modo de ser um homem melhor, senão para que a natureza e a humanidade juntas sejam ainda melhores. Porém, a situação crítica na qual a humanidade está colocando a natureza, e a si mesmo por tabela, mostra que ética é o que mais anda faltando. Como restaurá-la?

A destruição da natureza e a contemporânea dependência humana por aparelhos eletrônicos, só para citar dois males generalizados, por não trazerem o bem comum, pelo contrário, resultarem em males particulares generalizados, outra coisa não são senão formas de sermos antiéticos sem nos darmos conta disso, uma vez que nos desvirtuam de nossa inalienável morada e de nossa humanidade, as destroem até. E, se o homem, como se diz, colhe o que planta, é importante prestarmos atenção ao que hoje semeamos, principalmente nas nossas crianças, pois disso depende a lavoura ética futura.

Os filmes de bangue-bangue, que levavam multidões aos cinemas no século passado, deixaram para as crianças não só o gosto pelo cinema, mas também por armas de fogo. Qual menino já não desejou “brincar de revolver”? Todavia, depois que passou a ser politicamente incorreto dar revolveres de brinquedo às crianças, seguiu se desenrolando subterraneamente dentro delas o gosto por matar, ainda que se trate apenas de brincadeira. E não só as crianças! Atualmente, os EUA, e inclusive o Brasil não conseguem se livrar dessa dependência em relação às armas de fogo, como se as vidas das pessoas dependessem de uma arma, como se a “morada do homem” se tornasse inabitável sem um revolver por perto. E por acaso os justiceiros-linchadores que vemos nas nossas cidades atualmente não são adultos que brincam de “justiça” ao modo “Faroeste”, como provavelmente faziam quando eram crianças?

Há pelo menos três décadas, fumar cigarros era considerado chique, virtuoso, sendo uma atividade tão aceita, socializadora, quanto hoje ainda é consumir bebidas alcoólicas nas interações sociais cotidianas. Entretanto, essa mania tabagista não ficava restrita aos adultos. Muitos pais compravam para as suas crianças os famigerados cigarrinhos de chocolate, cujas embalagens imitavam tal qual os cigarros de verdade, com filtro amarelo inclusive, para que elas também pudessem brincar de “ser pessoa chique, virtuosa”.O preço dessa brincadeira, contudo, foi o inadvertido plantio, nessas crianças, de uma semente cujo fruto posterior foi senão uma forte afetividade e dependência em relação ao fumo, da qual essa geração, que cresceu inocentemente brincando com cigarros – e vendo os adultos brincarem -, dificilmente consegue se livrar.

Outro exemplo parecido foram os insuportáveis, e por que não dizer desnecessários “Tamagotchi”, que, na metade dos anos 1990, fizeram com que uma geração inteira de crianças desenvolvesse uma inédita e intensa afetividade por aparelhos eletrônicos. Hoje em dia, vendo a centralidade dos “smartphones” e “tablets” nas vidas das pessoas, a angústia que elas sofrem quando os seus iPhones são roubados, caem no chão, ou ficam alguns minutos se conexão com a internet, podemos ter certeza de que, há duas décadas, os adultos por trás dos “Tamagotchi” plantaram a semente certa para que hoje fôssemos demasiados apaixonados por quinquilharias à base de silício e código binário, e consequentemente, assaz obesos e sedentários.

Então, se, de fato, aquilo que os adultos dão para as suas crianças brincarem, além de um inocente passatempo, são germes que crescem e que amadurecem alienados de qualquer controle permanecendo com elas vida afora, mantendo-as, pulsional e inconscientemente, dentro da mesma brincadeira, não seria interessante tornarmos brinquedo justamente coisas de que a humanidade desde sempre precisou, e que portanto nunca deixará de precisar, isto é, de uma forma virtuosa de habitar a sua morada inalienável, qual seja, a natureza? Se sim, estamos no caminho certo em manter proibidos os cigarros de chocolate e as armas de brinquedo. Entretanto, em respeito aos eletrônicos não há proibição, muito pelo contrário, cada vez mais ensinamos às crianças que eles são “a luz, o caminho e a salvação”. E diante dessa inadvertida docência digital padece a natureza, e também nós dentro dela.

Porém, para que a morada do homem seja habitável, não basta proibir a semeadura de coisas que não queremos ver germinadas futuramente. Somente isso é paliativo. Em troca, é necessário o plantio daquilo de que a humanidade mais precisa colher futuramente. Novamente: um conjunto de hábitos e ações que visem o bem comum da sociedade humana. Isto é: ética! Portanto, em vez de armas de brinquedo, de cigarros de chocolate, ou de Tamagotchi-iPhones, deveríamos dar ética para as nossas crianças brincarem. Se, com efeito, elas não deixam as suas brincadeiras para trás, mas, em troca, as levam consigo vida afora, que brinquedo sublimado seria melhor que um que tornasse a única morada do homem um lugar mais apropriado para se morar?

Não obstante, o desafio é encontrar uma forma de fazer com que a mui necessária ética não seja coisa de adulto apenas. A ética, para ser carregada pelas crianças ao longo de suas vidas, deve poder ser brincável, passível de ser dada a qualquer um, de qualquer idade, sem contraindicação. Melhor ainda se conseguíssemos fazê-la de chocolate, como os cigarrinhos de brinquedo. Uma dietética! Com uma “ética de chocolate”, ao mesmo tempo instruiríamos e entreteríamos as nossas crianças; faríamos com que elas consumissem ética desde cedo, se nutrissem dela.

Claro, pode ser dito que chocolate engorda, que “hipertensiona” a morada imediata do homem, isto é, o seu corpo, que então seria melhor uma ética de chocolate diet – uma ‘diet-ética’? Mas isso é tão absurdo quanto a absurdidade da qual devemos nos livrar. Todavia, em resposta, o conceito grego de “pharmakon”: veneno é remédio são a mesma coisa, o que importa é a dose.Portanto, uma ética de chocolate, ou qualquer outra que fosse irresistível às crianças, seria o melhor brinquedo que poderíamos dar a elas. Passariam o tempo e gastariam a inesgotável energia que têm justamente com aquilo que faria da morada delas, hoje em dia poluída, violenta e individualista, uma morada futura um tanto melhor.

Ora, não dá para seguir “plantando antiética” nos quatro cantos do mundo e esperar que desse chão lixiviado e desrespeitado nasça uma verdejante hera milagrosa, de onde a indústria farmacêutica extrairá uma essência ética puríssima, concentrada e para ser vendida em forma de comprimidos -obviamente a preços nada acessíveis. Como, então, fazer com que a ética seja objeto para as crianças, para que, brincando desde cedo com ela, elas tenham uma melhor morada futura, com a humanidade e a natureza existindo harmoniosamente e, consequentemente, resultando em uma morada melhor para todos? Bom mesmo é se conseguíssemos fazer com que a ética tivesse gosto de chocolate, aí ninguém resistiria a ela!

PMDB way of life

O PMDB dispensa apresentações, entretanto, não repreensões. Não que os demais partidos políticos estejam livres de serem repreendidos, corrigidos, melhorados. Afinal, representar o povo e o seu dinâmico universo de necessidades exige de todos os partidos políticos aperfeiçoamento contínuo, trabalho ininterrupto. Porém, no mais das vezes, é justamente o contrário que vemos na ópera política brasileira. Eduardo Cunha, o peemedebista de maior evidência do momento, e sem dúvida o que mais merece repreensão, representa senão os interesses do seu partido, deixando claro a todos os brasileiros, os quais apenas dissimula representar, o velho jeito de ser do PMDB.

Ao falarmos de PMDB não podemos deixar de falar de José Sarney. O oligarca-mor, desde que foi eleito governador do Maranhão, em 1966, articulou praticamente todos os últimos governos do Brasil. Foi presidente do Senado durante a ditadura militar, presidente do partido governista ARENA, vice-presidente de Tancredo Neves, presidente da república, apoiou os governos de FHC, Lula e Dilma, presidindo novamente o senado nestes períodos. Afora isso, José Sarney é latifundiário, proprietário de seis afiliadas da TV Globo, de emissoras de rádio e de jornais. Com essa presença política e midiática, Sarney, permanece há quase 50 anos com as suas mãos sujas no poder.

Oligarca eficaz que é, Sarney colocou sua filha no poder, Roseana Sarney, que começou como deputada federal, foi duas vezes governadora do Maranhão – o curral do clã -, senadora da república, e, em 2010, novamente governadora do Maranhão. Obviamente, não foi por ter bem representado o povo que a princesa da oligarquia maranhense mereceu por tanto tempo, e por várias vezes, a dianteira política. Em 2014, a respeito da crise penitenciária do seu estado, evidenciada tragicamente pelas dezenas de decapitações de presos no presídio de Pedrinhas, ela disse ao Observatório da Imprensa que as coisas por lá iam muito bem, e que a violência só acontecia por que o Maranhão estava rico. Exclusivamente para ela isso era verdade, dado que, um dia antes dessa infame declaração, ela havia autorizado licitações para a compra de camarões gigantes e sorvetes importados para o Palácio dos Leões, sede do “seu governo”.

Hoje temos Eduardo Cunha, deputado federal pelo PMDB do Rio de Janeiro e desde 1º de fevereiro de 2015 presidente da Câmara dos Deputados, representando sublimemente o sempiterno devir peemedebista. Acusado de vários ilícitos, Cunha segue como que inatingível. Tacitamente envolvido em vários crimes, dentre eles contas ilegais no exterior, o político sequer finge uma performance, digamos, mais democrática. Porém, Cunha lidera pautas e votações que fazem justamente o contrário, esforçando-se diariamente para reduzir ainda mais a construção de um pais mais igualitário onde as mulheres, os homossexuais e os índios, só para citar alguns, tem cada vez menos espaço. O espaço excelente, claro, deve ser para o PMDB.

Com o PMDB de Sarney, Roseana e Cunha o coronelismo desafia os tempos e sobrevive impertinentemente, todavia ao modo zumbi, sugando “a vida” do povo em função se sua insaciável fome por mais poder. Para um futuro livre de tal cabresto oligárquico, não devemos deixar de sabatinar todo peemedebista para sabermos se ele não é mais um apólogo do “PMDB way of life”, esse jeito antidemocrático de ser cujo objetivo é apenas o monopólio do poder, todavia sob uma fantasia democrática, que, entretanto, só convence porque aqueles que não se convencem estão sendo ou excluídos da ágora social (as mulheres, os homossexuais, os índios), ou decapitados nos presídios nos quais são estocados (as dezenas de mortos de Pedrinhas). Até aqui, podemos dizer que não há futuro com o PMDB, somente mais do mesmo, isto é, mais do sórdido passado brasileiro, em função do qual, aliás, um futuro realmente novo e descontaminado do velho coronelismo oligárquico se faz tão necessário.

Coronelismo contemporâneo

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O coronelismo, ironicamente considerado um “brasileirismo”, surge com a hipertrofia da figura de um detentor do poder, no caso o coronel, sobre o poder público, através de fraudes eleitorais e da desorganização da coisa pública. Pode-se dizer que Eduardo Cunha, presidente da câmara dos deputados, sobrevive o coronelismo ao tentar deslegitimar o poder democraticamente constituído, por meio da articulação de um golpe político – midiaticamente chamado de impeachment – contra a presidente Dilma que, até então, não tem  crime algum comprovado contra si.

Cunha abusa da sua figura de detentor de poder a despeito das graves suspeitas que recaem sobre ele, quais sejam: sonegação de imposto; fraudes em contratos celebrados, em movimentações financeiras e na declaração de rendimentos; improbidade administrativa; captação ilícita de sufrágio; abuso de poder econômico, só para citar os que estão mais aclarados no momento. Porém, o bom coronel é aquele que segue agindo como se a lei nada valesse dentro do seu latifúndio.

E o despotismo de Cunha não para por aí. Diante de da ameaça de ser deposto do seu cargo de poder, Cunha diz: “Esquece, eu não vou renunciar”, e “se me derrubarem, eu derrubo todo mundo também”. Muito sinceramente o presidente da Câmara comunica à população brasileira que permanecerá no poder e, mais ainda, como fará isso: mediante a ciência dos “podres” de outras pessoas e o podre poder que esta vil ciência lhe confere.

Todavia, por mais vergonhosas que sejam as regras do jogo do atual presidente da câmara, pelo menos uma virtude elas têm. Qual seja, Cunha fala a verdade. A pior, no entanto, mais crua verdade. Seria muito pior se ele sustentasse a sua permanência no poder dizendo que é para o bem da população, como a cartilha político-demagógica indica no mais dos casos. Mas não! Ao menos Cunha deixa bem claro a sordidez na qual está atolado até o pescoço.

Historicamente, os coronéis tomam e mantêm o poder de duas formas: ou por meio da violência, ou mediante troca de favores. Bem, tentando um impeachment infundado, Cunha outra coisa não faz além de violentar a democracia, ou seja, todos os brasileiros. E “fazendo o favor” de não denunciar os seus companheiros na condição de eles “fazerem o favor” de não denunciá-lo, Cunha mantém viva a sórdida roda dos favores que sustenta o coronelismo.

O altíssimo preço do coronelismo, não só o de Cunha, é a abstração da democracia e da justiça na concretização de uma espécie de liberdade política e econômica tirânico-despótica, que, estratégica e infelizmente, abstrai ainda mais a democracia e a justiça, e assim por diante, viciosamente.

Falando de coronéis, não podemos deixar de lembrar de José Sarney, do mesmo partido de Cunha. O coronel-oligarca-mor que, desde que foi eleito governador do Maranhão em 1966, articulou praticamente todos os últimos governos do Brasil, foi presidente do Senado durante a ditadura militar, presidente do partido governista ARENA, vice-presidente de Tancredo Neves, presidente da república, apoiou os governos de FHC, Lula e Dilma, presidindo novamente o senado nestes períodos.

Afora isso, José Sarney é latifundiário, proprietário de seis afiliadas da TV Globo, de emissoras de rádio e de jornais. Com essa presença econômica, política e midiática, Sarney, permanece há quase 50 anos com as suas mãos no poder, concretizando cada vez mais uma liberdade política e econômica que aponta não para os interesses do povo que ele sempre disse representar, mas para interesses seus, de seus familiares e de seu partido.

Bom coronel que é, Sarney colocou sua filha no poder, Roseana, que começou como deputada federal, foi duas vezes governadora do Maranhão – o curral do clã -, senadora da república, e, em 2010, novamente governadora do Maranhão. Obviamente, não foi por ter bem representado o povo que a princesa da oligarquia maranhense mereceu por tanto tempo, e por várias vezes, a dianteira política.

Em 2014, a respeito da crise penitenciária do seu estado, evidenciada tragicamente pelas dezenas de decapitações de presos no presídio de Pedrinhas, Roseana disse ao Observatório da Imprensa que as coisas por lá iam muito bem, e que a violência só acontecia por que o Maranhão estava rico. Exclusivamente para ela a riqueza maranhense era verdadeira, dado que um dia antes da infame declaração ela havia autorizado licitações para a compra de camarões gigantes e sorvetes importados para o Palácio dos Leões, sede do governo.

Hoje, é Eduardo Cunha a figura descarada do coronel que não se priva de desorganizar a “res” pública para, com isso, organizar as suas e as do seu partido. Assim (sobre)vive o coronel; assim marcha o coronelismo: um erro que, pela força de seu vício intrínseco, sobrevive mentindo para todos que é um acerto. E tanto faz que o poder de Cunha seja deslegitimado ética, política e economicamente, pois para um coronel não existe coisas tais como lei, ética ou povo, apenas os seus imperiosos interesses particulares.

O coronelismo clássico que dominou o Brasil até o início do século passado foi reduzido quando, a partir da década de 1930, grande parte da população migrou para os centros urbanos, acessando com isso à educação e aos meios de comunicação, e por isso se tornando politicamente mais consciente e crítica. Não seria o caso então de efetuarmos algum tipo de migração, ainda que não geográfica, no sentido de esvaziarmos o curral onde as leis dos coronéis contemporâneos vigem verticalmente?

Todavia, qual é o “lugar” no qual estamos cativos do coronelismo de Cunha que, abandonado por nós, deixaria o coronel sozinho e sem poder sobre ninguém? Seria a democracia esse lugar? Oxalá não seja, pois, concordando com Aristóteles, a democracia ainda é o menos pior de todos os regimes de governo. Talvez o angusto sítio que devamos deixar de ocupar seja o minifúndio, nada cidadão aliás, onde apenas nos indignamos passivamente com as absurdidades dos coronéis.

Ora, qualquer indignação passiva da população apenas vai de encontro aos propósitos ativos do coronel. Devemos, portanto, migrar não “de” nossas indignações para um lugar onde elas não nos aflijam, mas, antes, migrar com as nossas indignações para um lugar onde elas surtam efeito contra aquilo que nos indigna. Do contrário, o poder dos coronéis só crescerá, mais nu e vergonhoso do que nunca.

Se o coronelismo atual, diferente do da era pré-Vargas, não se restringe mais apenas aos maranhões rurais brasileiros, mas ocupa despudoradamente o centro iluminado do poder, é esse centro que devemos abandonar. Porém, não para deixá-lo livre para os coronéis. Antes, “abandonar o centro” deve significar habitar capciosamente sua periferia, a ponto de fazer dela uma trincheira de onde possamos espreitar todas as facetas e estratégias dos coronéis que roubam, dos “observadores periféricos entrincheirados”, o centro para si.

Migrar para a periferia política, ao contrário do que pode parecer, não é desertar o campo de batalha, mas, paradoxalmente, tocá-lo de modo ainda mais direto, isto é: estar asfixiantemente em torno do problema central que nos aflige. Por isso os nossos cinquenta tons de indignação contra o coronel Cunha não serão efetivos enquanto, dentro do latifúndio dele, nos indignarmos apenas nas nossas solitárias navegações no Facebook, leituras de jornais e audiências televisivas. O fim de Cunha, como ele deixou bem claro, não partira dele, e, pelo teor de suas ameaças, tampouco dos que dividem o palácio central com ele.

Já nós, que até aqui apenas nos indignamos passivamente com os desfeitos do coronel Cunha, temos de abandonar esse parlatório inócuo e ocuparmos um lugar bem mais crítico, sabendo, contudo, que a construção de mais um limite aos coronéis, a exemplo do século passado, será lenta, histórica, e sobretudo exigirá movimento ativo do povo, melhor dizendo, sua evolução. Do contrário, Sarneys, Roseanas, Cunhas e demais coronéis sobreviverão impertinentemente, ao melhor modo zumbi, apodrecendo vivos, porém, sugando a vida do povo em função se sua insaciável fome de mais-poder.

Para um futuro livre do cabresto coronelístico, devemos espreitar, seja nas efemeridade das urnas, seja no longo período entre elas, todo e qualquer representante político para sabermos se seus objetivos giram apenas em torno do mais-poder ou se, antes, há alguma verdade sob as togas brancas-democráticas por meio das quais se elegem. Isso porque não há futuro com coronéis no poder, somente mais do mesmo, isto é, mais do sórdido passado brasileiro, em função do qual, aliás, um futuro realmente novo e descontaminado do velho “brasileirismo” chamado coronelismo se faz tão necessário.

Igualdade social, ceticismo e “fossa-cética”.

Os céticos, ao contrário dos niilistas, creem que há “a verdade”, porém, que é impossível para o homem alcançá-la. Sendo assim, seja lá o que for “a verdade”, o cético é aquele que, de antemão, coloca-se absolutamente separado dela. E se a verdade, por um feliz capricho social, for a igualdade entre as pessoas? Um cético, obviamente, diria que nunca a alcançaremos. Entretanto, afrouxando essa vertical exigência cética, não seria possível pelo menos nos aproximarmos horizontalmente da igualdade social?

O PT, reduzindo a histórica desigualdade social no Brasil, aproximou-nos bastante dessa pretensa verdade. Como ser cético diante disso? Há quem diga que outros partidos políticos que rondam o poder, e que no menos golpista dos casos podem democraticamente retomá-lo, fariam o mesmo, ou até mais. Entretanto, a nossa realidade parlamentar esfrega na cara do povo que, em matéria de igualdade social, tais partidos só tocam em “verdades menores”, isto é, verdades úteis apenas para menos pessoas, ou o que é pior, para a velha minoria historicamente privilegiada: a elite brasileira. Como nos prevenir dessas verdades menores? Como tratá-las?

Acreditar no PT, todavia, não significa ser dogmático a ponto de crer ele é um partido perfeito, ideal. Tal quimera não existe, nunca existiu, nem nunca existirá. Se os partidos políticos são feitos por pessoas – e agora, mais do que nunca, por empresas! -, e não há uma pessoa sequer – muito menos uma empresa – que seja perfeita e ideal, deduz-se que… Agora, como a realidade é o anverso concreto dessa abstração que é a idealidade, as opções políticas mais realistas para tentarmos um país melhor para todos, infelizmente ou não, são o PT, o PSDB e o PMDB. Há outras siglas, é claro, mas elas, contudo, tão cedo não terão vez nessa luta de gigantes.

Então, em qual das opções factíveis investir? Como é a destruição de privilégios elitistas “na” construção de uma maior igualdade entre as pessoas o mais universal dos bens que se pode imaginar, temos que o PT foi o partido que mais fez isso na história do nosso país. O PMDB oligárquico de Sarney e Cunha e o PSDB aristocrático de Alckmin e Aécio, coitados, apenas reforçam a virtuosa dianteira petista – ainda que o PT, a exemplo de todos os demais partidos, não seja imune aos vícios da corrupção e à necessidade de superação de suas próprias contradições. É importante não esquecer: aquilo contra o que protestam as histéricas panelas brasileiras deve tilintar revolucionariamente nos ouvidos de todos os nossos partidos políticos!

Por definição, o cético é aquele que não consegue ter certeza a respeito da verdade, todavia porque assume que é incapaz de compreender o real. Agora, mesmo que nos digam que não podemos compreender “o real”, apostaríamos em que senão que a melhor de todas as verdade imagináveis é a igualdade entre as pessoas? Embora tal aposta tenha sido histórica e aristocraticamente desestimulada, ela é a única que partilha o bilhete premiado com todos os jogadores, indistintamente. Desse modo, é melhor ser anticético em relação ao PT, pois somente ele tornou um tanto mais real a velha utopia da igualdade social.

E é por que “antisséptico” se refere a tudo o que inibe a proliferação de bactérias ou germes, que proponho aqui – ainda que estimulado por um trocadilho – a postura “anticética” em relação ao PT que, mais do que os outros, acreditou na melhor verdade de todas: a igualdade social, independentemente de suas contas bancárias e sobrenomes. Seguindo na analogia, se “fossa séptica” é uma unidade para o tratamento primário de esgoto, e se o esgoto social brasileiro é justamente a nossa elite histórica, logo…

Proponho, então, que todos aqueles que não acreditam na igualdade social – melhor dizendo: não querem que ela seja uma verdade – sejam jogados numa “fossa-cética” para serem “tratados” dessa estratégica incapacidade de crer que a igualdade social é uma verdade a que podemos bravamente chegar. E, como o PT mostrou concretamente na última década, alcançável. Mesmo que o niilista mais radical comprove que não há verdade alguma, e que a igualdade social é só mais uma ficção, ainda assim podemos construir as “nossas verdades”. E tanto melhor se elas forem melhores para todos, não apenas para poucos. Não importa se a igualdade social é uma verdade “de verdade”, mas, com certeza, é a ficção que a maioria das pessoas nunca tentará desmentir.

PT: o Judeu do monstro político brasileiro.

Se é pela corrupção política ou pela crise econômica que alguns acham que o PT deve sofrer um impeachment – palavra que atualmente corre solta em boca de Matilde midiática, mas que mascara estrategicamente a gravidade que é a deposição de um presidente da república – é porque tratam esse partido político da mesma forma que os alemães trataram os judeus no holocausto nazista, ou seja: trazendo à tona características universalmente indesejadas, e, por um curto-circuito ideológico, afirmar que o PT – ou os judeus – é a causa dessas características.

A irracionalidade do antipetismo decreta uma correspondência entre características gerais e históricas da política brasileira (a corrupção, a luta desmedida pela permanência no poder, a vulnerabilidade econômica etc.) e características hipotéticas de um suposto “caráter petista” (os petistas são corruptos, lutam desmedidamente pelo poder, fragilizaram a economia do país etc.), para chegar à ilógica conclusão de que o PT é a causa definitiva dessas características indesejadas e perturbadoras em nossa sociedade.

Obviamente, afirmar de um petista corrupto que ele é corrupto não faz de alguém um antipetista. O verdadeiro antipetista, em vez disso, diz que fulano de tal é corrupto “porque” é petista. Como a corrupção no Brasil não é, nem nunca foi característica exclusiva do PT, a ilógica lógica antipetista prega que há na essência do PT “alguma coisa que queremos depor imediatamente” que faz com que haja corrupção, manipulação e crises econômicas no Brasil.

O antipetismo, portanto, introduz uma pseudocausa misteriosa que faz do PT o local do surgimento e da permanência da corrupção. A partir desse despautério, o PT é identificado como fonte de todos os nossos problemas. O amargo preço disso, contudo, é que toda a corrupção que preexistiu ao PT, e que existe pujante a despeito dele, é colateralmente alienada das demais siglas partidárias. Só assim mesmo para um PSDB da vida convencer alguém de que luta contra a corrupção sistêmica. Essa realmente é muito boa!

A injustiça verdadeira, seja a dos antipetistas contra o PT, seja a dos alemães nazistas contra os judeus, é começar colocando os nomes “PT” e “judeu” entre fatos universais indesejados, tais como a corrupção e a crise econômica, e, em seguida, achar que esses mesmos fatos são produzidos exclusivamente pelo PT ou pelos judeus. Uma vez que se é vítima dessa irracionalidade, parece lógico bater histericamente panela para depor uma presidenta petista, e, no caso nazista, exterminar mais de seis milhões de judeus.

Para quê? Ora, em terras tupiniquins, para que um PSDB, por exemplo, possa seguir plenamente corrupto sem, no entanto, parecer vestir o estigma da corrupção injustamente gasto apenas contra o PT. E em terras nazistas, para que a monstruosidade de Hitler mentisse alguma espécie de esforço evolutivo; para que o mal absoluto reluzisse algum bem estratégico; para que o capital burguês parecesse mais limpo apenas porque estava “limpo” de determinada etnia histórica.

Agora, assim como a ignominia nazista se revela plenamente quando assumimos que o mal não reside no judaísmo, muito embora alguns judeus sejam pervertidos e corruptos, também o antipetismo não se sustenta pelo fato de alguns petistas serem corruptos. O antipetismo não só é absolutamente injusto com os muitos petistas honestos (a própria Dilma, contra quem nenhum crime foi provado), como também, e principalmente!, é permissivo em relação à corrupção histórica no Brasil, mal que nunca se deu ao luxo de se restringir a uma única sigla partidária. O antipetismo, embora nas manchetes midiáticas pareça revolucionário, é tão reacionário quanto o fascismo de Hitler, e, historicamente, pode ser tão vergonhoso quanto ele.

Admirável Mundo Povo

“AME O POVO. FODA-SE A PÁTRIA”, assim mesmo, em histérica caixa-alta, dizia uma postagem no Facebook, no dia da pátria, sete de setembro. Acima e abaixo do “textículo”, duas imagens, uma dos Black Bloc de 2103, outra dos Coxinhas de 2015, ambos ateando fogo à bandeira brasileira. Fações aparentemente tão antagônicas de uma mesma sociedade protestando de forma idêntica, com efeito, chama atenção. Serão mesmo tão opostos os Black Bloc e os Coxinhas, ou, hoje em dia, a oposição é tão antagônica em si mesma que, para ser, precisa se emparelhar justamente àqueles em relação aos quais deveria ser e agir de modo oposto?

Porém, o que parece escapar tanto aos radicais mascarados quanto aos de cara limpa – tão limpa que nem um cisco de vergonha na cara lhes resta -, é a ideia de que a pátria “se fodendo” o seu povo subsista. Ora, “povo” é justamente o que as pessoas são quando há uma pátria. Afora ela, as pessoas são apenas multidão. Portanto, é ilógico mandar a pátria “se foder” e ainda assim querer ser povo. Se a frase infame pelo menos dissesse “AME A MULTIDÃO”, histericamente ou não, seria igualmente radical, contudo, coerente.

Creio que “PÁTRIA”, na frase, pretendia significar, radicalmente, “O Estado”, cujo conceito assaz abstrato – pelo menos para quem está histérico em relação a ele – não funciona de forma tão efetiva, afetiva e concreta. Por definição, o Estado é a razão abstrata daquilo que a pátria é afeto concreto. Pátria, por conseguinte, entrou na frase como um golpe retórico baixo, senão para pegar os leitores pelo coração, a parte mais vulnerável de todos nós. Ainda assim, persiste a contradição em querer que exista um “povo” sem que haja um pátria ou um Estado.

Se é a inexistência do Estado o que os dois grupos de radicais querem, espero que peçam minimamente pelo anarquismo. Sim, pois somente a anarquia pode unir as pessoas – não mais em forma de povo, obviamente, mas enquanto multidão absolutamente livre – sem ser através de um Estado vertical. Os Black Bloc certamente não teriam nada a objetar quanto a isso, muito pelo contrário. Entretanto, para os Coxinhas, a anarquia que resta da combustão da sua bandeira pátria não só é mais contraditória, quanto declaradamente indesejada. Se estes já não suportam a ideia de socialismo, menos ainda a de comunismo, imagine a de anarquia! No entanto, isso é a melhor coisa que ambos ganham ao mandar a pátria – portanto o Estado – “se foder”.

Agora, o que significa essa ideia-desejo comum de partes tão antagônicas da nossa sociedade de ser um povo sem pátria? Bem, ou 1) não mais ser povo de um Estado que lhe parece absurdo, ou, radicalmente, 2) ser um povo tão absurdo quanto essa sua pátria lhe parece. Sim, pois nada mais coerente do que um povo incoerente a uma pátria outrossim incoerente. A opção 2 pelo menos é lógica, ainda que radicalmente lógica, beirando a irracionalidade. Entretanto, somente os radicalismos dos Black Bloc e dos Coxinhas mesmo para surfarem no limite da razão social e bradarem discursos tão absurdos quando esse que afirma o fim da pátria e a permanência do povo.

Se os nossos radicais pudessem incendiar a própria pátria, e não só a sua bandeira, e se dessa combustão não restasse alguma mínima organização anárquica que desse forma a essa multidão então auto expatriada, sob as inevitáveis cinzas pátrias eles veriam senão o crítico território pré-Estado hobbesiano cuja Lei única rima com a velha frase do dramaturgo romano Plauto, “Homo homini lúpus”, posteriormente popularizada pelo filósofo político Thomas Hobbes na conhecida máxima “O homem é o lobo do homem”. Aposto que, nesse nível, sequer os Black Bloc estariam satisfeitos, quiçá os Coxinhas.

Agora, se contra Plauto e Hobbes, o que os radicais brasileiros, sejam os de 2103, sejam os de 2015, desejam é mesmo aquele estado de natureza de antes do Estado Civil, querem senão a barbárie do olho por olho, dente por dente que, entretanto, expõe todos à vulnerabilidade da morte injusta e violenta com a qual Hobbes justifica a necessidade de um Estado Civil que a evite de todas as formas. Para este filósofo, é justamente o medo da morte violenta e sem punição que faz com que a multidão firme entre si o contrato social que institui o Estado Civil, onde todos são proibidos de matarem-se uns aos outros, ou, se o fizerem, pagam o preço da justiça.

Se é isso que os nossos “Neros” apátridas realmente querem, eles são muito mais radicais do que se poderia imaginar. Selvagens saudosos? Todavia, talvez a virtude deles esteja precisamente em evidenciar, ao modo de uma encarnação sintomática, e da forma mais contraditória à civilização, a barbárie a que a própria civilização pode levar os seus indivíduos. Em outras palavras, esses que queimam a pátria e ainda assim insistem em permanecer povo expressam senão o limite disso que chamamos de pátria, ou de Estado. Nesse ponto, esse radicalismo é uma forma de saúde, ou pelo menos o primeiro sintoma de que o corpo está gravemente doente.

Para mim, é como se o subtexto da postagem facebookiana em questão fosse: você, PÁTRIA, que nos criou, e sem a qual não podemos ser o que somos, isto é, POVO, não está mais à altura da sua criatura. Queimamos-te sim em praça pública para vermos se te comportas como a Fênix, e se de tuas cinzas renasce uma pátria que faça jus ao povo que você inevitavelmente cria. Um renascimento-povo do renascimento-pátria. Sendo assim, por mais que seja uma aberração uma multidão imaginar que possa ser povo sem uma pátria afetiva e sem um Estado racional que faça a conversão da selvageria em civilização, tal imaginação tem ao menos virtude de nos lembrar de que a “criatura povo” pode pretender não ser mais escrava do seu “criador pátria”.

É como se Frankenstein o monstro se autonomizasse a tal ponto que, colocando Frankenstein o médico na fogueira, impedisse irremediavelmente a produção de novos “Frankenstein” monstros. Sim, a criatura pode se voltar contra o criador. Se não de forma civilizada e lógica, pelo menos por meio de radicalismos paradoxais. Ainda não consigo pensar um povo sem pátria, porém, estes que simbolicamente incendiaram a pátria e ainda assim acreditam que são mais povo que nunca aventam a possibilidade, ou pelo menos o desejo de um “povo” poder ser muito mais do que aquilo que a pátria faz de uma multidão. Questionar radicalmente as razões e os afetos que fazem da multidão um povo talvez seja a bárbara civilidade desse Admirável Mundo Povo.

Um tête-à-tête entre a Economia e a Política

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-Economia? É você mesma? Que milagre te ver assim, em carne e osso! Quer dizer… hoje em dia, mais osso do que carne, não é mesmo?

-Sim, sou eu. Mas, por favor, Política, fale baixo meu nome. Não quero ser reconhecida em público.

-Ué, Economia, você está com vergonha? Já sei! É por que você está em crise…

-Não é isso, sua intrigueira. É que eu não posso ser reconhecida pelas pessoas.

-Como assim, Economia? Você está metida na vida de todo mundo, da ventura à ruína delas. As pessoas estão carecas de te conhecer.

-É verdade, Política, elas me conhecem muito bem, mas não euzinha toda. Somente aquela parte minha que as toca, como as suas economias pessoais concretas, entende? Agora, se encontram com o meu lado abstrato, universal, dá problema.

-Explica isso melhor para mim, Economia.

-Lembra que você disse que estava surpresa em me ver “em carne e osso”?

-Sim, Economia, mas eu estava brincando…

-Ahan, Política, sei… De qualquer forma, vou usar a sua “brincadeira” como metáfora para te explicar as minhas duas caras. Pois então, é como se a minha personalidade concreta, aquela que as pessoas conhecem muito bem, fosse minha carne, que está ora mais gorda, ora mais magra, como você mesma falou. Já a minha personalidade abstrata, aquela que não diz respeito a ninguém em particular, é como se fosse os meus ossos. Melhor dizendo, o meu esqueleto, a estrutura a partir da qual a minha carne pode faltar ou abundar, dependendo dos movimentos do mercado, das variáveis climáticas, etc.

-Ah, Economia, estou entendo. Tenho de confessar que sei muito bem o que é sofrer de síndrome de dupla personalidade!

-No seu caso, Política, devemos falar de síndrome de múltiplas personalidades, não?

-Ha ha ha! É isso mesmo, Economia! Eu tenho de ter tantas caras quantos são os cidadãos que represento. Nossa, isso dá um cansaço! No final do mandato estou acabada! Sem dizer que todo mundo fica achando que eu sou falsa, que só me preocupo comigo mesma. E para convencer meus eleitores novamente, preciso de muito dinheiro privado nas veias para, nas minhas campanhas eleitorais, convencê-los de que posso representá-los como eles precisam.

-A diferença entre nós duas, Política, é que todos eles me acham verdadeira demais. Cruelmente verdadeira.

-Ah, então é por isso que você não gosta ser reconhecida em público, Economia?

-Não exatamente, Política. Não tem problema algum as pessoas encontrarem com a minha carne concreta, nas suas vidas, nas suas dificuldades cotidianas, nem com o meu esqueleto abstrato, seja nos telejornais, seja nos relatórios dos meus especialistas, os economistas. Separadamente, eu convenço e envolvo as pessoas sem maiores problemas, sigo economizando todo mundo. Agora, aqueles que me encontram “em carne E osso”, ah!, esses piram!

-Por que isso, Economia?

-Ah, Política, por que, em geral, as pessoas acham que o meu esqueleto abstrato tem de ser o cabide das carnes delas, de suas economias pessoais, que na verdade são minhas carnes e minha economias particulares, mas que por ser a parte minha que elas podem tocar, isto é, economizar ou não, acham que é delas. Só que se enganam. Na verdade, devo confessar, eu as engano… Sabe, fico constrangida em dizer que o que realmente importa é o meu esqueleto abstrato, que ele é a minha verdadeira estrutura, e não as minhas pelancas, essas contingências que os cidadãos conseguem tocar.

-Nossa! E como você faz para que o povo não descubra a sua verdadeira essência, Economia?

-Você está se fazendo de burra, Política, ou é burra mesmo?

-Calma, Economia, não precisa ser grosseira. Eu só queria saber como você faz para o povo não perceber que você, “A Economia”, não está nem aí para eles…

-Ora, Política, sua dissimulada… Vai dizer que você não sabe que para ninguém desconfiar dos meus segredos e contradições eu ponho você a trabalhar para mim?

-Sem essa, Economia! Eu, trabalho para o povo, só para ele. Sou a representante legítima dele aliás.

-Sim, Política, você até trabalha para o povo quando não está envolvida com seus próprios interesses. Porém, para convencê-lo de que eu, a Economia, funciono em função deles. Mentira que eu, sozinha, confesso, jamais conseguiria contar de forma tão convincente. Entretanto, sem euzinha aqui, não haveria necessidade alguma de você, Política.

-Essa é boa! Desde quando, Economia?

-Acho que você é burra mesmo, Política… Desde a Grécia Antiga, sua tonta! Muito antes de você sequer existir eu já estruturava a vida das pessoas. Talvez você não tenha se dado conta porque naquela época eu me chamava “oikonomos”, isto é, administração doméstica, e então…

-Oico o quê?

-Oikonomos, sua estúpida. Então, Política, como eu ia dizendo, foi só por conta das minhas dificuldades domésticas que os gregos da época começaram a fazer política. Por minha causa inventaram a “pólis”, isto é, a cidade, e chamaram a si mesmo de “polités”, ou seja, políticos.

-Quer dizer, Economia, que eu surgi para resolver os teus problemas domésticos?

-Exatamente! E até hoje, 2500 anos depois, segue sujando as mãos por mim, Política parceira. E é assim porque você é muito boa com as palavras, cria discursos maravilhosos, engana todo mundo com eles. O problema, Politica, é que no fim das contas você acaba acreditando nas próprias mentiras e se esquecendo de que, na verdade, você só veio ao mundo para costurar as minhas carnes concretas ao meu esqueleto abstrato com a sua emaranhada linha retórica.

-Então, Economia, Lenin estava falando sério quando disse que, embora tudo seja decidido na luta política, o que me deixava muito feliz e segura de mim, toda luta política é determinada, por você, a Economia?

-Bravo, Política. Prometo que não te chamarei mais de burra. Você finalmente parece ter entendido a hierarquia que nos separa. Isso está bem claro para você ou quer que eu desenhe?

-Não, Economia, não precisa desenhar. Você é melhor fazendo gráficos e planilhas de excell…

-Tampouco você sabe desenhar, não é mesmo, Política? Seu talento é com as palavras. Aliás, foi justamente por causa delas que eu te botei a remendar as minhas partes antagônicas, para que eu pareça sempre absoluta, e assim poder lucrar melhor às custas das pessoas.

-Nós não valemos nada, Economia. Não existimos sem fazer os outros de idiotas. Isso me lembra de quando você…

-Agora chega de gastar teu verbo comigo, Política, pois, como você mesma disse, eu estou em crise. E quando eu tenho problemas é você que deve trabalhar. Então, vá discursar para o povo que assim eu saio mais rápido do buraco. E da próxima vez que você encontrar comigo toda, por favor, seja discreta. Melhor: troque de calçada, pois se o povo nos ver juntas demais vão desconfiar da nossa estreita relação, e aí já viu, né, é ruim para mim. Todavia, tanto pior para você, não é amiga?

Dispensando Cunha “salvador”

A todos aqueles que gritaram e gritam que Eduardo Cunha, apesar dos seus ilícitos cada vez mais tácitos, é o “Salvador do povo”, começo dizendo a célebre frase de Bertolt Brecht: “O que é o assalto de um banco comparado à fundação de um novo banco?”, para, contudo, terminar perguntando a eles o que é ser assaltado por um corrupto senão a refundação de uma velha corrupção? Concidadãos, o que aconteceu com o sábio e econômico dito popular “dos males o menor”?

Quem, apesar de tudo, ainda prefere Cunha, escolhe, de fato, dos males o maior. Obviamente, o mal maior que preferem é algum bem menor para si mesmos; algum privilégio que, entretanto, pelo fato de ter Cunha como figura salvadora, é de imediato incompatível com a lisura e, portanto, com a democracia. Entretanto, “o sujeito que quer reduzir o Estado a um guardião de sua segurança privada e de seu bem-estar, tem de ser esmagado pelo Terror do Estado revolucionário, que pode aniquilá-lo a qualquer momento”, coloca Zizek, em Menos que Nada, discorrendo sobre o que é o Terror de Estado para Hegel.

Sim, chamam Cunha de “salvador” porque estão aterrorizados diante de um Estado que revolucionariamente ensaia – há pelo menos doze anos – ser bastião do bem-estar e da segurança da maioria, e não apenas dos da minoria historicamente favorecida pelo Estado reacionário que ensaia a sua própria morte. Os pretensos “protégé” de Cunha são, portanto, absolutamente negativos à evolução social brasileira. Com um salvador como este, o que estes “fiéis” querem é ser reconduzidos ao velho&obscuro Brasil que até bem pouco tempo só iluminava oligarquicamente.

No entanto, em respeito ao terror que leva alguém a desejar ser salvo por Eduardo Cunha, Zizek diria o mesmo que Hegel disse ao seu cidadão aterrorizado, isto é, que “o sujeito deveria reconhecer no terror externo, nessa negatividade que ameaça constantemente aniquilá-lo, o próprio cerne de sua subjetividade, deveria identificar-se diretamente com ele”, pois, só assim, dizem os dois filósofos, “o Senhor externo é substituído pelo interno”. Veria, portanto, primeiro, que o mal que teme está dentro de si, e, em segundo lugar, que não é o salvador diante do qual se ajoelha quem o salvará, mas somente a virtuosidade da sua relação individual com aquilo que o aterroriza, sem intermediários.

Por isso, quando Zizek diz que “o sujeito tem de se identificar plenamente com a força que ameaça exterminá-lo”, devemos ouvir que, em relação à grave graça de Cunha, é melhor que os brasileiros aterrorizados se identifiquem e se reconciliem com o problema que os aterroriza, e não com a velha&oligárquica máscara com a qual Cunha finge ser um salvador. Não, o evangélico Cunha de forma alguma possui ou sequer conhece a solução para a nossa realidade, assim como, para Zizek, nem a própria Igreja possui algum conhecimento superior; “ela é como uma carteiro que entrega a correspondência sem ter ideia do que ela diz”.

Por conseguinte, enquanto alguns crerem que alguém como Cunha os salvará do problema que os aterroriza, estão somente revivificando, em torno de si mesmos, tais problema e terror. Se fossem galinhas, seria como se escolhessem a raposa como salvadora. Por isso Zizek tem razão em dizer que o horror do homem é que, nele, o Mal torna-se radical, deixa de ser o simples mal egoísta, como o dos animais, e passa a ser o Mal mascarado, como acontece no totalitarismo, em que um agente político particular apresenta-se como salvador da humanidade. O problema, contudo, é que a máscara total não deixa ver quem a usa. Só assim as galinhas creem que uma raposa mascarada pode protege-las das raposas em geral. E, portanto, só assim, alguém pode querer um Cunha mascarado como salvador.

É por que o terror aponta senão para algo real que ele nos horroriza. Então, se é da verdade nua e crua que os que adoram Cunha têm medo, quanto mais mentirosa for a máscara dele, mais ela os alienará do aterrorizante real, todavia mentindo uma reconciliação com tal realidade. Entretanto, relembra Zizek, “para Hegel, para passarmos da alienação à reconciliação, não devemos mudar a realidade, mas o modo como a percebemos e [principalmente] nos relacionamos com ela”, pois, segue o filósofo, “a única coisa que muda na reconciliação é o ponto de vista do sujeito”.

Ok, nem tudo está perdido para os fiéis de Cunha, pois há salvação em relação à danosa “salvação” que ele oferece. A verdadeira salvação está em que, conforme Hegel, somente o gesto errado cria as condições que possibilitam que o sujeito realmente veja por que o gesto é errado. Portanto, apesar de a fidelidade a Cunha ser realmente errada – pois ser fiel à raposa é o erro máximo da galinha – tais crentes, no entanto, só podem partir dela para então chegarem a ver que estão errados. Como dizem vários filósofos, “todas as coisas, retroativamente, terão sido necessárias”, inclusive o absurdo de ver em Cunha espécie de salvação.

Ora, galinhas de Cunha, o salvador de vocês não é solução para os seus problemas, quiçá para os dele próprio, que, aliás, estão cada vez maiores. O problema de vocês é o mesmo que o de todo cidadão, e não só os brasileiros. Para Hegel, conta-nos Zizek, o Estado em geral é que é o problema. As soluções que se busca para tal problema algumas delas até se parecem com o que Cunha representa, mas transcendem a miséria que ele oferta. Com efeito, o Estado tenta resolver o problema insolúvel que ele mesmo é em forma ora de tirania, ora de oligarquia, ora de aristocracia, ora de democracia. No entanto, cada uma destas tentativas de solução apenas mantém o problema sempre vivo.

Um passo adiante, uma elevação em relação a esse problema sempiterno que é o Estado, portanto, dizem Hegel e Zizek, “ocorre exatamente quando, em vez de continuar procurando uma solução, nós problematizamos o problema em si”. Sendo assim, não só os fiéis de Cunha, mas todos nós, em vez de nos apegarmos à soluções fáceis, que geralmente são máscaras paliativas, deveríamos encarnar, encenar, protagonizar ao máximo o problema do Estado que somos, sem elencarmos, estratégica ou covardemente, atores-representantes que atuem transitivamente os fantasmas que qualquer Estado emana. Só desse modo o nosso galinheiro “brasilis” estará não só livre de Cunhas, mas, principalmente, apto a dispensar tais raposas.

Radicalismos: 2013 e 2015

Tanto as manifestações de 2013 quanto as de 2015 contaram com seus próprios vândalos de plantão. As primeiras tinham os Black Bloc que, pilhando latas de lixo, paradas de ônibus e bancos Itaú, espantaram a opinião pública e forneceram à mídia reacionária o material com o qual ela desqualificou o macro movimento. Já as de 2015 também contam com seus vândalos imediatamente objetáveis, apelidados de “coxinhas”, apólogos da ditadura militar, da monarquia, e cujo vandalismo destrói não o banco Itaú, muito pelo contrário, mas própria democracia. Assim como os arruaceiros mascarados de há dois anos, os atuais desordeiros verde&amarelo expressaram a mais reprovável face do que poderia ser manifestado em prol de um Brasil melhor.

2013 e 2015, embora antagônicos, têm em comum o monocórdico grito contra a corrupção política e o polifônico clamor por um Estado eficiente. Todavia, a pertinência destas demandas foi largamente ofuscada: em 2013, pela garatuja de guerra civil que os Black Bloc e a polícia ofereceram à opinião pública, e em 2015, pelo vômito elitista que pretere a democracia à ditadura militar – não obstante, com o agravante de se servir da própria democracia para tal. Ora, não há grito popular por vinte centavos, saúde e educação padrão FIFA, reforma política ou terceiro turno, pleitos em si civilizados, que resista ao intenso ruído da barbárie, seja a “molotóvica” Black Bloc, seja a “panelosa” coxinha.

Agora, se o revolucionário 2013 e o reacionário 2015 têm seus vândalos inerentes, é por que cada cidadão brasileiro tem dentro de si essa mesma dicotomia, entretanto, em menor grau. Porventura o manifestante pacífico, seja de que ano for, não reflete e sustenta as contradições dos radicais ao lado dos quais se manifestou? Em outras palavras, não seria o radicalismo, impertinentemente representado pelos Black Bloc e pelos coxinhas, a sintomática erupção, na arena social, da barbárie resistente que subjaz em cada cidadão, todavia civilizadamente reprimida? Cabe a cada brasileiro fazer esse “Mea culpa” individual e encontrar o radical fundamentalista solapador de ideais harmônicos escondido dentro de si mesmo, pelo menos antes de exigir que a figura da presidenta faça isso no lugar de todos.

Só então o cidadão, a partir da ínfima parcela que ele representa na opinião pública, deixará de propagandear o radicalismo como um erro condenável, para então entendê-lo como o inexorável outro lado da única moeda com que se negocia a mudança, seja ela para trás, seja para frente. Ter participado do Junho de 2013 e condenar os Black Bloc, ou ter desfilado no março de 2015 sem aceitar os coxinhas, é fingir que se está acima deles. Ademais, é não se unir verdadeiramente à massa a qual se diz pertencer. É, sobretudo, enfraquecê-la, não como os seus respectivos vândalos o fazem, mas de outro modo, silenciosa e covardemente.

Entretanto, levando essa lógica ao limite, o cidadão brasileiro, para fazer parte efetiva do “corpus brasilis”, não deve se iludir de que não produz cotidianamente tanto a pacificidade da maioria, quanto a radicalidade das minorias, cuja virtude, contudo, é gritar barbaramente, em alto e bom tom, aquilo que a civilização têm vergonha de expressar publicamente. Dessa forma, ser brasileiro seria querer, ao mesmo tempo vinte centavos, um Brasil padrão FIFA, a ruína do banco Itaú, o impeachment, a ditadura militar, a monarquia, e todo as demandas que não cabem num único discurso sem que ele soe absurdamente radical.

Seria ideal se a cidadania fosse algo simples e coerente. Porém, a realidade nada mais faz do que frustrar esse sedutor desejo, afrontando-nos com a sua complexidade imanente, cuja pertença, no entanto, exige que não nos coloquemos acima dela, como estrangeiros, burgueses ou “cidadãos de bem” que a julgam como se se tratasse de uma republiqueta indesejada nalgum (outro) terceiro mundo distante. 2013 fez do caos uma nova ordem, todavia temporária. 2015, por sua vez, fez da ordem o pretexto para apologizar o caos. Por fim, o vetor entre as forças revolucionárias e reacionárias destes dois anos aponta senão para o exato agora, mas também para todos nós brasileiros, que guardamos internamente não só a pacificidade que pouco pode contra um grande inimigo, mas também o radicalismo que melhor encarna e atua o desejo de mudança.

O acerto de um erro petista

Realmente, o Partido dos Trabalhadores cometeu um grande erro na esteira da crise internacional de 2008: preservar os trabalhadores brasileiros. Decerto que é um erro gravíssimo para o capital, pois, embora o capitalismo precise de um exército de mão de obra que produza a sua riqueza, carece mais ainda de hordas de trabalhadores desempregados, desvalorizados, disponíveis e, sobretudo, compráveis por qualquer migalha. É com este último time que o capitalismo limita, mas também rouba, o valor do primeiro, pois havendo muita mão-de-obra ociosa no mercado o valor do trabalhado não faz frente ao valor do capital.

Se o governo brasileiro dos últimos sete anos fosse radicalmente liberal, na iminência da crise ele teria não só permitido, mas também articulado o aumento estratégico do desemprego, pois assim o valor dos salários cairia forçosamente – de acordo com a lei da oferta e da procura. Assim os empresários novamente fariam dos trabalhadores a sua vil moeda de negociação com a crise para manterem seus lucros, transferindo os custos senão aos próprios trabalhadores, que teriam ou de se vender por menos, ou produzir mais pelo mesmo salário – apenas para não serem exilados ao estado do desemprego. Isso porque o capitalismo mente muito bem que riqueza significa a grande riqueza de poucos, e não a ausência de miséria da maioria.

Entretanto, depois de 2008 o governo brasileiro fez diferente. Colocou o Estado inteiro na manutenção dos altos níveis de emprego. Isso, por conseguinte, manteve o valor do salário diante o valor do capital, o que afrontou, mas também desvalorizou este último. Sem uma massa desempregada de manobra, o capitalismo tupiniquim, não podendo trocar o valor do trabalho por bônus crísicos, teve de ir beber nos seus próprios lucros, coisa que, historicamente, está desacostumado.

Com efeito, as duas últimas vezes em que, no mundo, o capital foi sistematicamente comprometido no reerguimento e na manutenção social – e, para Thomas Piketty, as duas únicas! – foi durante as grandes guerras e na sequência delas. Do contrário, as sociedades envolvidas nos embates solapariam. Todavia, no mais das vezes, como na crise de 2008, em muitos países o trabalhador é que foi comprometido no salvamento do capital. A dívida que os Estados Unidos, mas não só eles, legou aos seus cidadãos para que os bancos – veja bem, os bancos! – não quebrassem, é o procedimento cotidiano do globalizado sistema econômico.

O “erro” petista em não seguir a vil&pragmática cartilha capitalista, contudo, tem o grande acerto de fazer com que não só os trabalhadores fossem afetados e comprometidos pela crise, mas também os empresários, ou o que é o mesmo, o próprio capital. Se tivesse sido diferente, o vilipêndio dos trabalhadores, tão naturalizado e facilmente “abstraível”, sequer teria sido manchete enquanto os lucros dos capitalistas permanecessem altos. Agora, no momento em que o capital também paga a conta da crise, as manchetes e as ruas com altos IPTUs gritam histericamente o fim dos tempos – ou o impedimento do governo que não os deixou de fora da tempestade.

As manifestações “coxistas” de 2015 expressam sobretudo o descontentamento dos representantes do capital diante da insistência do governo em não desvalorizar os trabalhadores sem antes dispor da riqueza nacional, objeto do desejo dos capitalistas. Como assim gastar com os não-ricos aquilo de que os ricos precisam para serem o que são? Os mais insatisfeitos com o governo petista repetem, sem saber, uma ideia de Aristóteles que, entretanto, faz com que uma democracia seja, de fato, uma oligarquia: “seria ainda mais sábio não obrigá-los [os ricos] a grandes despesas e até mesmo proibir-lhes serem úteis para o povo”

Entretanto, a estratégia de não lançar primeiro os trabalhadores aos leões da crise, para com isso evitar que o capital fosse devorado, mas, em troca, iniciar saciando a voracidade da crise econômica com a própria carne capitalista sempre excedente, para só depois alistar o trabalhador no exército contra a crise, não pode ser visto como erro, principalmente por parte dos próprios trabalhadores. Talvez seja a primeira vez na história brasileira que a classe trabalhadora tenha sido economicamente priorizada em detrimento do capital. Quanto mais não seja porque é obra do Partido dos Trabalhadores.

É natural que a ameaçada oligarquia capitalista bata panela, manifeste incredulidade e insatisfação, afinal, um governo ousou não lhe preferir. Além do que, e a contragosto deles próprios, o país permanece democrático e permeável à manifestações, mas não só às suas. Se desde o início da crise – nascida internacional em 2008, mas só agora naturalizada brasileira – as coisas tivessem ocorrido de acordo com os preceitos capitalistas, como nos EUA, onde os trabalhadores ficaram sem casa e sem emprego para que os banqueiros mantivessem seus bônus estratosféricos, a nossa elite estaria tão preservada quanto satisfeita&silenciosa.

Porém, enquanto a crise mundial desempregava e despejava trabalhadores de vários países, os brasileiros, ao contrário, tiveram seus empregos e salários preservados. Isso, com efeito, afronta qualquer elite! Agora, contudo, como assumiu a nossa presidenta, a coisa mudou. Chegou a hora de todos lutarmos juntos para sairmos da crise, não só os capitalistas, mas também os trabalhadores. Obviamente, não se trata de uma boa notícia, mas nela subjaz uma virtude que não deve passar em branco: a crise está mais democratizada do que nunca, e não são mais os trabalhadores que pagam sozinhos a conta. Se o governo do Brasil errou em não agir de acordo com o “jeitinho capitalista”, essa falha não tem preço! Porém, como há um custo social sempre expresso em cifrões, é melhor que, em uma democracia, ele seja dividido democraticamente.

Dilma punida, mas não vigiada.

Se olhássemos a situação política na qual se encontra Dilma Rousseff através das lentes que Foucault nos oferece em Vigiar e Punir, obra que conta a história da manutenção do poder soberano através da observância e do castigo àqueles que o desafiam e reivindicam para si, veríamos que, pelo menos no Brasil, a vigilância e a punição do soberano sobre os súditos de que fala o filósofo trocou de lugar com a vigilância e a punição dos cidadãos brasileiros contra a sua presidenta.

Com efeito, hoje é a representante soberana que é punida por seus súditos, justamente os que, em tempos idos, seriam punidos por ela caso desafiassem a legitimidade do seu poder. Porém, pelo fato de Dilma estar sendo punida sem, no entanto, ter sido devidamente vigiada, isto é, investigada e comprovado algum crime contra ela, o que temos é uma tirania invertida na qual o povo, considerando-a tirana, é que a tiraniza ostensivamente.

Ao contrário de um soberano medieval, que punia em praça pública os súditos que o desrespeitavam, pois a punição espetacular de alguns era a melhor vigilância sobre os demais, hoje, são os cidadãos que, outrossim em praça pública, punem espetacularmente a representante soberana, como se a punição absoluta que tentam contra ela, qual seja, o impeachment, fosse a prática mais adequada para se ser política e cotidianamente vigilante.

Para um bárbaro que vive de extremos, vá lá tamanho radicalismo. Todavia, para nós, pós-modernos civilizados e democráticos, começar agindo politicamente já no limite da suspensão da civilidade e da própria democracia significa apenas que muito deixou de ser feito antes desse ato radical. De fato, quem começou a clamar por um país melhor pedindo a renúncia da presidenta dá provas de que nada além de um radicalismo ultrapassado tem para contribuir com o Brasil.

Além do que, o efeito colateral radical dessa forte punição do povo contra a sua presidenta é a fraca vigilância e a não punição desse mesmo povo em relação a súditos como eles, metidos a soberanos, tais como “Eduardos”, “Aécios” e “Fernandos”. Ora, se, aqui, o equilíbrio entre vigilância e punição é alterado poer alguns, ali esse desequilíbrio se expressa e se reflete contra estes mesmos.

De modo que é somente quando um povo e o seu soberano acordam sobre o que é vigiar, o que é punir, e qual a relação entre estes dois, que todos estaremos livres de sermos punidos sem termos sido devida e democraticamente vigiados uns pelos outros. Um povo que não vigia, prévia e adequadamente, aqueles a quem pune acaba por ser punido justamente pela sua incapacidade de vigilância. O preço, por conseguinte, é toda sorte de “Cunhas” e “Collors” deixarem de ser devidamente vigiados e, a partir de tal inobservância, galgarem para si uma soberania que não lhes cabe.

Com efeito, punir a presidenta antes de vigiá-la propriamente é agir como um príncipe medieval que, alheio às práticas cotidianas dos seus súditos, conhece-os apenas no curto trajeto entre o crime e o cadafalso mortal. Aí, nada mais há para ser feito. Não há, portanto, possibilidade de evolução. Agora, se quisermos agir em quanto partícipes de um Estado Moderno, temos de nos valer da miríade de instâncias que ele introduz entre os atos capitais de vigiar e punir.

Se o súdito medieval era imediatamente punido com a morte espetacular pelo príncipe que, entretanto, não o vigiava previamente, o cidadão moderno, em troca, conta-nos Foucault, é absolutamente vigiado desde que nasce: na maternidade, na escola, no condomínio, na fábrica, no manicômio, no tribunal, e, em caso de ser considerado realmente criminoso, na prisão. A imediata punição medieval se transformou, desde a modernidade, em uma extensiva e democrática vigilância de uns sobre os outros.

Portanto, punir alguém em praça pública sem sequer tê-lo vigiado minimamente, seja ele súdito, príncipe, cidadão ou presidente, reacende uma barbárie que não deve mais ter espaço no atual estágio histórico. Sendo assim, aqueles que não conseguem vigiar antes de punir devem fazer – ou refazer – a “Via Crúcis” da modernidade e aprender o que é vigiar e ser vigiado – na maternidade, na escola, na fábrica, no manicômio, no tribunal – e, em caso de seguir punindo indevidamente, aprender o que é punição, todavia na prisão.

A velha democracia dos coxinhas contemporâneos

Por mais difícil que seja enxergar, os coxinhas querem uma democracia. Obviamente, não essa que temos hoje, cuja universalidade os afronta e pretere, mas uma bem mais antiga do que qualquer um desses acéfalos paneleiros pode imaginar. Com efeito, mesmo sem saber, o “coxismo” contemporâneo remonta à primeira democracia que o mundo conheceu, aquela inventada em Atenas, 500 a.C., na qual somente cidadãos homens&ricos decidiam o presente e o futuro da cidade-estado. Portanto, de imediato podemos concluir que estes reacionários contemporâneos são muito mais retrógrados do que se poderia supor.

Já Aristóteles, na sua Política, dizia que numa democracia “deve-se ser prudente com os bens dos ricos e não submeter nem suas propriedades nem suas rendas à partilha”. “Seria ainda mais sábio não obrigá-los a grandes despesas e até mesmo proibir-lhes serem úteis para o povo”, completa o filósofo. Podemos muito bem imaginar o que um aristocrata grego diria de um Bolsa família ou de um Minha Casa Minha Vida! Do repúdio à distribuição de renda tornada real na última década brasileira pelo governo petista, portanto, pode ser dito que é democrático apenas enquanto reencarnação da democracia mais primitiva de que se tem notícia: a aristocrata grega.

Dos 400 mil habitantes daquela Atenas de há 2500 anos, somente 30 mil tinham direitos políticos. Mulheres, escravos, e não proprietários de terras estavam desde sempre excluídos. Agora, porventura não é algo nestes mesmos moldes o que a democracia coxinha tenta reavivar ao solicitar a anulação do sufrágio universal por intervenção militar? Entretanto, e infelizmente, em vez da poderosa e estilosa retórica grega que polida e politicamente conquistava votos na assembleia, os “aristocoxinhas” de hoje têm o melhor de seus discursos no máximo de ruído que conseguem extrair de suas panelas, as únicas de que ainda podem ser ditas serem “polidas”.

Se “democracia”, em grego, significava o “governo do povo”, mas de fato ela era propriedade de menos de 8% da população de Atenas, era porque as ideias de povo e de população não coincidiam. Tampouco deveriam coincidir, pois só assim a riqueza do povo ateniense não seria confundida nem ameaçada pelos pobres atenienses. Por isso, desde lá, já era contraditório sustentar uma democracia enquanto apenas os melhores, os “aristoi”, ou poucos, os “oligoi”, governavam. De tal contradição, entretanto, os “oligocoxinhas” poderiam estar livres se atinassem para o que disse Aristóteles: que “a oligarquia é para a utilidade dos ricos; a democracia, para a utilidade dos pobres”.

Ora, se democracia é mesmo o governo dos pobres, como apontou o filósofo, nunca houve democracia na Grécia antiga, quiçá depois dela. E se hoje a aristocracia brasileira, preterida em função da remediação da pobreza histórica do nosso país, quer a berlinda de volta para si, busca a mesma coisa que os gregos chamavam de democracia, embora se trate, lá e aqui, de uma oligarquia, ou seja, do governo de poucos, ou o que é o mesmo, dos mais ricos. Por isso os nossos coxinhas contemporâneos acreditam realmente defender a democracia quando pedem a deposição de um governante democraticamente eleito pela maioria e a subjugação da vontade destes à tirania de uma ditadura militar que outra coisa não torna lei senão a vontade da minoria

A democracia grega, da qual a brasileira é filha tardia e transgênica, guarda um significado virtuoso, mas apenas no seu significado etimológico, pois, na prática, sempre carregou consigo os vícios aristocratas e oligarcas. Por conseguinte, ao se defender a democracia, como acontece no Brasil hoje em dia, fala-se, com efeito, de duas coisas bastante distintas: de um lado, a maioria, ou o “demos”, fazendo alusão a uma antiga utopia, que já era utópica na antiga Grécia, e, do outro lado, a minoria, os “aristoi” ou os “oligoi”, reclamando por uma realidade concreta, sempre renovada e renovável, que privilegia senão a eles mesmos.

Tal dominação histórica das minorias se dá, entre tantos e sórdidos motivos, também porque as oligarquias e as aristocracias conseguem muito bem mentir ao demos, isto é, ao povo, que são democracias. Os nossos atuais coxinhas, portanto, são ou democratas ancestrais ou oligarcas-aristocratas contemporâneos. Pior ainda, são estes insistindo em serem chamados daqueles.

O complexo de Édipo do coxinha

É bem difícil encontrar um território não paradoxal aos desejos manifestados pelos brasileiros que, democraticamente, pedem a volta da monarquia e da ditadura militar. Com efeito, agem como crianças mimadas que desejam mais do que é razoável, ou seja, coisas que se autodestroem: por um lado, precisam da democracia para poderem desejar livremente outras formas de governo, e, por outro, desejam justamente formas de governo que automaticamente suspenderiam a democracia que lhes deu o direito de desejá-las livremente.

Se tal infantilidade política se deitasse num divã, para então conhecer as causas da insustentabilidade dos seus desejos, o infeliz psicanalista provavelmente começaria complexificando-a edipianamente. Claro, não sem o protesto de Gilles Deleuze, para quem a fácil forma “papai, mamãe e eu” é mais um vício $i$temático do que uma virtude libertária. Entretanto, a “esquizoanálise” proposta pelo filósofo em substituição à psicanálise seria demasiado agorafóbica ao coxinha; ele sequer voltaria para a segunda sessão. Então, se, como é fácil observar nas avenidas brasileiras, o coxinha é aquele que prefere a claustrofobia do $i$tema, façamos como o psicanalista e o prensemos entre seu papai ideal e sua mamãe problemática.

Os paradoxais coxinhas, obviamente, fariam o papel do bebê pleno de desejos ainda impossíveis de serem expressos de modo pertinente ou sequer atinentes às possibilidades do real. Abaixo deles, a mãe-material, Dilma Rousseff, que de forma alguma poderia deixar de saciar, imediata e imanentemente, os seus muitos e conflituosos desejos. Finalmente, acima dele, o pai-ideal, monarca ou ditador, que, por conta da sua natural transcendência em relação a unidade primeira “mamãe e eu”, poderia, com seu falo despótico, ou impor à mamãe a realização dos desejos não atendidos do bebê, ou puni-la caso não o faça. Isso porque o falo do pai faz o papel de um ídolo salvador.

Como bem observou Deleuze, é nessa fase fálica edipiana que uma nítida diferenciação dos dois pais começa. Subterraneamente, a mãe é aquela incapaz de fazer o bebê absolutamente feliz, e, nas alturas, o pai é aquele que pode introduzir o seu falo na jogada e tornar Lei vertical a realização dos desejos do neonato. O complexo de édipo é o mesmo que o complexo dos coxinhas enquanto a incapacidade de Dilma-mãe, que frustra materialmente os seus elevados ideais, tiver de ser corrigida senão pela pretensa capacidade de um ditador-monarca-pai, que idealmente promete lhe a realização material das suas necessidades.

Com efeito, para o bebê-coxinha, o falo ideal do pai-monarca é o instrumento perfeito destinado a reparar a incapacidade da mãe-Dilma de suprir materialmente a sua voraz sede por uma cidadania conjunturalmente irrealizável. Não sabe, contudo, que a realidade para além da crísica bolha <Dilma-mamãe e eu-coxinha> será tão plena de privações quanto essa mãe mesma já expressa através da sua impossibilidade de saciar plenamente os desejos do seu rebento-cidadão. Ignora, outrossim, que em relação à realidade concreta que o circunda, e que o circundará até o fim de sua vida, esse falo idealizado em forma de um pai-tirano tampouco abstrairá as vicissitudes da vida, muito pelo contrário.

Entretanto, enquanto o falo salvador do papai-monarca for a única punição à mamãe-Dilma, e isso tudo em função dos desejos frustrados dos bebês-coxinha dela, estes estão tão presos a um complexo político quanto Édipo está ao seu. Isso porque, parafraseando Deleuze, todo Édipo-coxinha conjura a potência infernal das profundidades impossíveis de sua mamãe-Dilma à potência celeste das alturas prometida pelo falo despótico de um papai-ditador idealizado. Esse coxinha, assim como Édipo, reivindica para si um terceiro império, a superfície ideal entre mamãe e papai. O preço dessa superficialidade, contudo, é a mesma cegueira auto imposta da qual o personagem mitológico não se viu livre.

Se, conforme Deleuze, no complexo de Édipo “jamais a criança teve melhores intenções na sua confiança narcísica”, mediante a atual complexidade política brasileira, jamais o bebê-coxinha teve melhores intenções na sua confiança egoística. Com efeito, o seu ego só será “super” se o corpo incapaz da mamãe-Dilma for corrigido pelo falo poderoso do papai-rei-general. Todavia, de um só golpe, o coxinha se aliena de sua realidade material imediata e se refugia na idealidade de um salvador transcendente, que, entretanto, imanentemente, é igualmente incapaz de satisfazê-lo absolutamente.

Essa fé cega em um pai-ditador ideal, por conseguinte, é apenas a antessala na qual qualquer pai-ditador real inevitavelmente comprovará que é tão ou mais ineficaz do que a mãe-Dilma contra a qual o Édipo-coxinha se vinga. Desse modo, o coxinha, a exemplo do que Deleuze disse de Édipo, é um “Eventum tantum”, cuja superficial complexidade se resume em castrar a mãe, matar o pai, ser castrado e morrer. Ou pelo menos permanecer cego em relação à realidade que ele mesmo não suporta, como Édipo depois de furar os seus olhos com uma flecha, que, aliás, bem pode simbolizar o falo ideal que não o salvou, mas, muito antes disso, já havia lhe cegado.

Coleira de pérolas coléricas

Pior do que as atuais crises política e econômica brasileiras juntas é a crise humana que marcha em “mani-infestações” como a deste domingo, repleta de gentes e discursos desumanos e antidemocráticos. Alguns minutos assistindo aos absurdos que desfilavam orgulhosamente pela orla de Copacabana foram suficientes para juntar pérolas não menos absurdas para montar não um colar, mas uma coleira de pérolas de ignorância que outra coisa não faz senão agrilhoar as ostras políticas que as produzem às suas próprias ignorâncias.

Pedir por um país mais democrático destruindo a democracia; lutar por um país menos corrupto desmerecendo um governo que combateu a corrupção mais do que qualquer outro; clamar livremente por uma intervenção militar que, como a história recente do Brasil pode mostrar, suprimiria justamente tal liberdade; foram apenas algumas das bijuterias contraditórias com as quais os mani-infestantes verde&amarelos adornaram as suas livres, todavia absurdas, expressões.

Tais pérolas malogradas, no entanto, parecem mais as simbólicas bolas de ferro com as quais os condenados eram impedidos de escapar da servidão forçada. Só não desejo que as bestas políticas sejam aprisionadas às joias impróprias pelas quais clamam colérica e contraditoriamente porque, como se diz, têm coisas que não se deseja nem para o seu pior inimigo. Além do que, se, ali, eles perdessem as suas liberdades e direitos democráticos, como a “intervenção militar já” pela qual pedem fatalmente traria, aqui, infelizmente, todos os demais cidadãos estariam sujeitos à mesma privação.

As crises fazem parte das vidas política e econômica de qualquer país. Entretanto, embora repitam o vício de não poupar aqueles que já vêm afetados política e economicamente desde antes das crises, elas têm ao menos a virtude de colocar os que acham que a realidade é insuportável apenas sazonalmente no mesmo país daqueles. A diferença é que para uns as dificuldades conjunturais são estrangeiras intoleráveis que dificilmente adentram nos seus condomínios murados, enquanto que para outros, ou melhor, para a maioria, as dificuldades são vizinhas conhecidas e próximas que a qualquer momento podem bater palmas no portão de casa.

Agora, quando os mais privilegiados são abordados pelas mesmas vulnerabilidades, velhas conhecidas dos desprivilegiados, e isso pela crise da sórdida ordem que estrategicamente faz com que os problemas sociais passem ao largo das suas torres de marfim burguesas, estes, ao contrário daqueles, não sabem o que fazer. Então, batem panelas que nunca estiveram vazias e gritam histericamente pelo fim da democracia que lhes permite gritar democraticamente. Isso porque eles não suportam estar expostos às vicissitudes da realidade como a maioria das pessoas cotidianamente está.

Preferem, portanto, trocar a liberdade democrática e a dignidade humana que têm em comum com os desprivilegiados pelas privações de uma ditadura militar qualquer conquanto esta lhes garanta seus velhos e insustentáveis privilégios. Só mesmo um grande absurdo para sustentar outro! Não enxergam, contudo, que as pérolas impróprias com as quais montaram o cordão que mente isolá-los da realidade com a qual não estão acostumados são os elos de uma coleira colérica que os prende, como cães sarnentos e raivosos, a uma realidade ainda mais vil do que aquela contra a qual protestam.

Dante, um reacionário.

Dante Alighieri, considerado o maior poeta italiano, por volta de 1300 inaugurou oficialmente o Dolce Stil nuovo (doce estilo novo), isto é, um novo movimento poético que se contrapunha ao tradicional estilo trovadoresco. Desse ponto de vista, o ilustre escritor foi um revolucionário. Porém, das leituras de A Divina Comédia e da Monarquia, a impressão que tive foi a de que Dante foi um reacionário a reintroduzir velhos valores ao seu novo tempo.

Em A Divina Comédia, sua obra mais conhecida, Dante inventou o inferno. Durante os mil anos de cristianismo que antecederam o autor, as almas que desejassem ir para o céu deveriam, obviamente, evitar cometer qualquer um dos sete pecados capitais. Entretanto, para quem pecasse, não havia uma ideia clara do que lhe aconteceria, ou para onde iria. Na ausência de um contraponto ao paraíso desejado permanecia aberta uma opção não infernal aos pecadores. Ora, o Império Cristão não podia aceitar tal liberdade!

Então, descrevendo detalhada&sadicamente o seu inferno, Dante ofereceu às pessoas uma ideia muito precisa, contudo insuportável, daquilo que aconteceria elas caso pecassem Doravante, o cristianismo pôde encurralar mais eficientemente as pessoas no seu plano absoluto. Nesse sentido, Dante foi reacionário por munir o milenar sistema de dominação – a Igreja Católica – com novas armas que ameaçavam eternamente aqueles que não seguissem a sua Lei.

Já na sua Monarquia, Dante, apresentou ao feudalismo tardio, que subterranea&secretamente gestava o capitalismo e o Estado burguês moderno, uma ode aos ancestrais valores do Império Romano. Ou seja, novamente, o autor propunha que as forças e as configurações do passado eram mais adequadas ao presente do que as do próprio presente. Ora, a uma Florença que rascunhava o futuro, a velha figura de um imperador absoluto era um convite ao retrocesso.

Principalmente aos imperadores de que Dante desejava ser súdito o seu Inferno deveria ser o totem insuportável a guiá-los pelo estreito caminho da virtude. Embora o autor tenha afastado Deus do comando do reino mundano, o que dava poder absoluto aos monarcas, o reino divino, cujo imperador eterno é Deus, estaria sempre no fim daquele para julgá-los. Diferente dos imperadores romanos anteriores à palavra divina, os novos, para Dante, estariam tão sujeitos às desgraças do inferno quanto qualquer pessoa caso não seguissem a palavra dEle.

Entretanto, a meu ver, o ícone do reacionarismo dantiano jaz na sua poesia amorosa, na qual o autor, valendo-se do seu estilo nuovo, coloca-se diante de sua amada, Beatrice Portinari, como um servo diante de sua senhora. Ora, em um mundo no qual o feudalismo apresentava as suas primeiras e irrecuperáveis rachaduras, o fato de o autor não só repopularizar a relação de suserania e vassalagem que a Sua Florença desconstruía florescentemente, mas também introduzí-la nas relações privadas e afetivas, é o quê senão uma barreira à evolução?

Em suma, Dante Alighieri é reacionário por trabalhar no sentido de as pessoas seguirem servas de Deus, dos monarcas, e, o que é mais absurdo, daqueles iguais a elas a quem amam. O fantasma que as obrigava a tal servidão era o seu epopeico inferno, composto de tantos círculos insuportáveis quantos fossem os tipos de pecados cometidos. Aos súditos, um círculo para cada pecado capital. Porém, no pior de todos, o último círculo do inferno, que é absolutamente gelado, o diabo, de três cabeças e aprisionado da cintura para baixo num lago congelado, mastigaria eternamente os imperadores hereges.

Como não tachar de reacionário alguém que coloca no portão do seu inferno a frase: deixe para trás toda esperança os que aqui entrarem? Roubar a esperança das almas que trilharam caminhos alternativos à palavra de Deus, todavia aqui no reino mundano, é a reação de Dante à revolução histórica assistida por ninguém menos que ele, na qual esse seu Deus imperador onisciente via o seu império ser subjugado pelo o império burguês, o incontestável&infernal vitorioso histórico.

Feminista machista

Conversando sobre feminismo com uma mulher feminista, ouvi dela que eu, pelo fato de ser homem, não poderia falar da condição da mulher e do feminismo. Então, perguntei se ela realmente achava que havia coisas das quais somente as mulheres sabiam, mas não os homens. Pois, se assim fosse, ela teria de admitir, junto com isso, que há coisas das quais somente os homens sabem e têm direito de tratar. Entretanto, não é justamente esse fantasma que mente que algumas coisas são assuntos exclusivos de homens, e que outras são assuntos apenas de mulher, o inimigo contra o qual ela, uma feminista, deveria estar lutando?

Em vez de considerar a contradição que estava me propondo, e então assumir que o feminismo não deveria ser um latifúndio monocultor exclusivo das mulheres, a feminista com que eu dialogava sustentou que, embora os homens discorram sobre o feminismo, as opiniões deles deveriam estar subordinadas às das mulheres. Lembrei-me imediatamente de um conhecido meu, assaz machista aliás, que certa vez disse: “mulher até pode discutir futebol comigo e com meus amigos, mas somos nós [os homens] que entendemos do assunto”. Perguntei se era algo do gênero o que ela estava querendo em relação ao feminismo.

Ela bradou! Ofendeu-me até, dizendo que eu não sabia o que estava falando, que deveria me calar. A infeliz postura dela estabeleceu entre nós uma verticalidade bastante machista, porém, desta vez, com ela no lugar do machão dono da verdade, e eu, do meu lado, representando a mulher que nada sabe direito e que, por isso, deveria calar. A única virtude da atuação viciosa dessa feminista radical foi relembrar-me da “torturabília” com que muitos homens, historicamente, trataram as mulheres. Apenas nesse ponto eu sou grato a ela. Entretanto, em todos os outros, ela repetia o erro sexista contra o qual dizia lutar.

A história do feminismo pode ser dividida em três “ondas”: a primeira, no final do século XIX ; a segunda, na década de 1960; e a terceira, inciada nos anos 1990 e que segue em crista no presente momento. O primeiro feminismo, infelizmente, figurou às suas contemporâneas mais como uma excentricidade da já excêntrica Belle Époque do que uma realidade concreta e cotidiana em substituição à histórica sujeição da mulher ao homem. O feminismo dos anos 1960, entretanto, foi mais surfado. As mulheres banhadas por esta onda, sem embargo, passaram a se separar dos seus maridos, a trabalhar fora, a estudar livremente e a reconectar os seus desejos às suas práticas ordinárias.

Já as feministas da presente onda, herdeiras das conquistas das suas antecessoras, e usuárias da maior igualdade em relação aos homens em, no mínimo, trinta séculos de História – sem com isso dizer que hoje há uma igualdade satisfatória entre homens e mulheres – estas feministas são mais belicosas no trato com os homens do que as do passado. Em vez de seguir na luta pela igualdade, a única universalmente válida, as presentes feministas, em especial aquela que rebaixou as minhas opiniões pelo fato de eu ser homem, parecem tentar inverter a imprópria hierarquia histórica entre homens e mulheres, como se agora fossem elas a fonte da verdade.

Contra estas feministas eu lanço a pergunta: aderir ao movimento feminista significa ser agraciado necessariamente pela verdade? Ou, ao contrário, as feministas e as suas convicções seriam tão passíveis de erros quanto os machistas e as suas? Se alguma feminista sustentar que as mulheres detêm alguma verdade negada aos homens, estará apenas sendo fundamentalista, isto é, pretendendo fazer dos seus dogmas particulares a verdade universal, coisa bem machista inclusive. É exatamente disso que não precisamos mais! Quanto mais não seja, porque essa é a triste hierarquia legada pelo passado, verticalidade que sempre subjugou, não só as mulheres, mas também os negros, os gays, e todos aqueles oprimidos pelos valores socioculturais dominantes.

A socióloga Vanessa Sander apontou que as mulheres negras, por exemplo, se sentem invisíveis dentro dos discursos feministas, pois as reivindicações pautadas pela categoria “mulher”, que se pretendem universais, na verdade, atendem apenas aos anseios das mulheres brancas. Sander relembra que as feministas brancas, quando batalhavam para a trabalhar fora, sequer consideraram as mulheres negras, que sempre trabalharam fora, desde o passado escravocrata. Em relação aos transexuais e travestis acontece o mesmo. As feministas mais radicais também são contrárias à participação, no movimento feminista, de quaisquer pessoas que não nasceram com vagina.

Burramente, como se fossem machos reacionários, estas feministas radicais pretendem manter a condição sexual natural dos indivíduo enquanto a chancela às suas interações sociais futuras. Se ter uma vagina é a condição para ser feminista, então abre-se aí um mundo inteiro de coisas e atividades que pessoas que têm essa genitália devem estar condicionadas, coisa que feminista alguma deve aceitar. Para não serem tão limitadas, estas fundamentalistas deveriam considerar, como colocou Sander, que o termo “mulher” denota experiências universais, e não apenas experiências de quem nasceu com uma buceta. Ou, porventura, a jornalista Rachel Sheherazade seria mais apropriada ao feminismo do que a cartunista e chargista Laerte Coutinho, que recentemente assumiu a sua identificação com sexo feminino?

Se as mulheres precisam do feminismo para lutar contra o machismo que historicamente as oprime, outrossim os homens precisam do feminismo para libertarem-se da opressão que o próprio machismo, sintomaticamente, também imputa a eles. Afinal, quando um homem nasce em uma conjuntura machista, também ele é obrigado a encarnar um papel universal predeterminado que dificilmente concorda com os seus desejos particulares e sempre dinâmicos. O machismo, portanto, é um inimigo contra o qual homens e mulheres devem lutar. Muito melhor se essa luta for conjunta, pois quanto mais forte e numeroso o exército, mais facilmente se vence a batalha.

Desse modo, quando aquela feminista com quem eu conversava disse que eu, por ser homem – por não ter nascido com uma vagina -, não poderia falar de feminismo e da condição da mulher, estava, com efeito, dispensando contingente à sua própria batalha, que, no caso, é a mesma que a minha, isto é, a busca pela liberdade definitiva do falocentrismo histórico. Entretanto, diferente dela, eu não acredito que devemos instituir um “vulvacentrismo” no seu lugar, pois seria trocar seis por meia-dúzia. A mim, parece muita tolice, ou talvez fruto uma histeria colateral, essa recusa das feministas radicais em sustentarem as suas identidades femininas precisamente em meio à diversidade absoluta em relação à qual, aliás, elas querem igualdade.

Inteligência, ao contrário, seria receber quaisquer pessoas e opiniões que encorpem a luta e a discussão das mulheres contra o machismo. Eu, mesmo não tendo uma buceta, acredito e apologizo que a posse de uma não deve significar subjugação social, cultural, econômica, política alguma. Não obstante, depois de ter a minha opinião masculina acerca do feminismo reduzida pela visão feminina e fundamentalista sobre o feminismo da minha interlocutora radical, a minha batalha pessoal contra o machismo se desdobrou em duas. De um lado, sigo lutando para que homens e mulheres estejam em pé de igualdade, mas, de outro, encampo a batalha na qual a minha vitória é ser bem-vindo, mesmo sem possuir uma vagina, no front feminista contra o machismo.

Restou claro que a feminista radical que tentou me calar com a sua verdade não quer que eu, ser despossuído de buceta, lute ao seu lado, ou sequer tenha direito à voz. Essa sua posição particular, entretanto, outra coisa não é senão um machismo às avessas, que eu, aliás, repudio, pois dizer que certas verdades só são acessíveis às mulheres apenas substitui o pênis do falocentrismo pela vagina. Sim, a vagina pode ser falocêntrica desde que Freud esclareceu a independência entre o falo e o pênis: falo é uma condição de poder, homens e mulheres podem usufruir dele, enquanto o pênis é apenas o órgão sexual dos homens.

Para a virtude do feminismo, portanto, aliados deveriam ser todos aqueles que têm capacidade para se colocarem, nem que seja reflexivamente, no lugar das mulheres. Desse modo, qualquer histeria fálica de mulheres dogmáticas&fundamentalistas, que recusam abraçar os “desvaginados” que solidariamente abraçam a causa das mulheres, deve ser tão condenada e combatida quanto o machismo. Afinal, é machista aquela feminista que, ao aderir ao seu “ismo”, acredita que aderiu automaticamente à verdade. Em contrapartida, é verdadeiramente feminista aquela mulher, homem, travesti, transexual, gay, seja lá quem for, que crê que a igualdade entre homens e mulheres não deve ser construída a partir da contraditória construção de diferenças entre eles.

Eu enquanto Blissett

Apesar de ter lançado vários livros, dentre eles Guerrilha Psíquica, e também assinado várias intervenções performáticas “worldwide”, Luther Blissett não é uma pessoa. É, generosamente, um espaço, vazio e universal, no qual qualquer um de nós pode atuar aquilo que, sob os nossos nomes batismais, não encontra espaço de atuação. Toda aparição de Blissett é a aparição de alguém qualquer. Porém, tudo o que alguém qualquer quer que apareça quando aparece em forma de Luther Blissett é aquilo que não aparece enquanto o si$tema funciona conforme o e$perado.

A primeira aparição de Blissett foi na Bolonha de 1994, assinando a notícia de que muitos animais haviam sido esquartejados e suas partes espalhadas pelos parques da cidade. A imediata repercussão da mídia deixou os italianos em polvorosa. Porém, um dia depois, esclarecido que nenhum animal havia sido morto, restou tácito que a mídia sabia muito mais ser sensacionalista do que verídica. Verdade alguma revelaria tal realidade; pessoa determinada nenhuma tornaria as ‘desnotícias’ da mídia em uma notícia tão palpável. Luther Blissett nessa causa!

Inspirado por essa tática de guerrilha psíquica, em 2002 a pessoa qualquer que eu sou foi Luther Blissett. Na época, eu era um estudante de arquitetura revoltado com os ditames do mercado imobiliário que, impertinente, constrangiam-me desde o início da minha formação. “Não, você não pode projetar um prédio dessa forma pois o mercado nunca o pagará”, diziam-me os meus professores, representando o si$tema em sala de aula. De nada adiantava eu contra argumentar dizendo, por exemplo, que era justamente a faculdade o lugar para se experimentar aquilo que no mercado de trabalho não encontraria parceiro$. Eu estava condenado a aprender aquilo que a mais vil das medidas, isto é, o capital, precisava que eu aprende$$e.

Então, secretamente, no meio de uma madrugada gélida do Sul, montei uma instalação no Departamento Acadêmico da Arquitetura da UFRGS. Em um monolito imitando um bloco de concreto, crucifiquei, numa cruz de sangue, uma galinha depenada devidamente identificada por um crachá que dizia: L. Blissett CREA n° 171 (CREA é o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura). Do ventre do animal dilacerado escorria sangue e caiam vísceras – simbolicamente, as mesmas que eu sentia arrancadas de mim, diariamente, nas aula que me tornavam um arquiteto devidamente si$tematizado. Deixei o local ainda na escuridão, sem que ninguém me visse, para retornar à paisana horas depois para às aulas.

Na minha ausência estratégica, quando os alunos abriram o D.A. e se depararam com a instalação, pelo fato de não saberem do que se tratava, nem como aquela coisa havia aparecido ali, não sabiam o que fazer nem como reagir. Restou-lhes polemizar acerca daquilo que não compreendiam. Quando, às 9hs da manhã, eu retornei à faculdade, aproximei-me do burburinho que se formou em volta da galinha arquiteta estripada, e um colega, muito indignado, disse, não só a mim, mas a quem estava perto dele: “eu acho um absurdo alguém querer se expressar e não assumir o que faz”. Outro disse: “eu não acredito em manifestação sem assinatura real”.

Como ninguém sabia que era eu o autor da obra, eu nada precisava dizer em minha defesa. Em troca, pude dar espaço para eles darem vazão às suas críticas ao até então não criticado nem imaginado por eles; expressões que sem um intervenção como aquela ficariam escondidas inclusive deles mesmos. Se a instalação tivesse sido anunciada previamente, lançada num verni$$age si$tematizado, e assinada por alguém que se responsabilizasse por ela, os meus colegas poderiam apenas gostar ou não do que viam, mas não se sentiriam comprometidos a esclarecer a eles mesmos o que viam e o que sentiam. Como a bola estava com ninguém mais além deles, as suas contribuições, de certa forma, eram as muitas assinaturas da obra.

Uma hora depois, decidiram tirar a galinha, pois alguns alunos estavam enjoando como cheiro. Deixaram, contudo, a estrutura ensanguentada e o crachá. Seria a carne morta a mais angustiante crítica? Pelo jeito sim. A minha instalação contra a arquitetura escravizada pelo mercado imobiliário, que tinha justamente na galinha crucificada no concreto a sua expressão mais pungente, findou sem a galinha, ou seja, sem o escravo da relação de escravidão. Em pé e à mostra, apenas o concreto e o crachá arquitetônicos, isto é, apenas os escravizadores.

O anonimato lutherblissettiano não só me permitiu atuar mais livremente, como também apreciar as opiniões dos meus colegas, sem filtro algum, em relação àquela atuação. Agora, se eu tivesse assinado a obra, conforme muitos deles queriam, jamais teria conhecido o que eles realmente pensaram dela, mas apenas aquilo de sistemático que todos tinham a oferecer, como ocorre com tudo aquilo que vemos a partir dos nossos olhos batizados com os nossos nomes.

Quais foram as minhas conclusões? Ora, primeiramente, que as pessoas não gostam de lidar com algo cuja autoria elas não podem atribuir a alguém. A ideia de Deus, aliás, é a prova máxima disso, pois não basta a natureza existir por si só, tem de ser obra de um criador determinado. Em segundo lugar, que ficar intrigado com alguma coisa que ao mesmo tempo causa repulsa – a carne morta e em putrefação – é angustiante para a maioria. Porém, tirando isso, o resto é suportável – o concreto ensanguentado e o crachá de nº 171.

Entretanto, em terceiro lugar, comprovei que a ação-putrefação e$tratégica do mercado imobiliário dentro da universidade que tanto me angustiava não era compartilhada pelos meus colegas. Em vez disso, eles faziam consigo mesmos aquilo que fizeram com a minha galinha dilacerada, isto é, suprimiam os seus próprios dilaceramentos acadêmicos para que o concreto e a carteirinha de arquitetos deles pudesse seguir expostos no hall nobre da arquitetura.

Obviamente, eu não mudei o mundo nem os meus colegas. Nesse sentido, Luther Blissett parece deixar a desejar. Todavia, por outro lado, somente através desse famoso anonimato eu pude expressar, da forma como me vinha, o modo como eu sentia a realidade ao meu redor. Nesse outro sentido, Blissett não só dá o que desejar, como também é a forma psiquicamente guerrilheira para fazer das nossas impressões balas impertinentes&inimagináveis contra os nosso inimigos, mesmo quando eles estão vencendo a batalha.

Há tempos eu não apareço como Luther Blissett, entretanto, nunca deixei de sê-lo, pois ser Luther Blissett é saber que algo inimaginável&incompreensível precisa ser feito sempre que houver um psiquismo sem livre espaço para se expressar. Contra o latifúndio do si$tema que só cria espaço para a sua própria expressão, guerrilha psíquica! Luther Blissett, eternamente.

Grécia descalça sobre espinhos europeus*

A Grécia a.C. levou democracia, arte, arquitetura, ciência e filosofia aos confins do mundo antigo numa empresa epopeica&histórica chamada de Helenismo, que quer dizer “viver como os gregos”, concretizando assim o ideal do seu grande invasor, Alexandre, o Grande. A difusão da cultura Grega, entretanto, não ficou restrita àquela época e região, mas fez carreira exitosa, mundo e futuro afora, merecendo o longevo título “o berço da civilização”. Dois mil anos depois, a Hélade agoniza, não naquele berço esplêndido, mas num leito crísico&econômico atualíssimo, por cujo pernoite, aliás, ela não pode pagar.

Em um mundo no qual a economia faz es vezes da democracia, da arte, da arquitetura, da ciência e da filosofia juntas, a Grécia é novamente invadida, só que agora o Alex da vez é o Capital, o Grande. Diferente de há 2300 anos, os atuais dominadores-credores que se assenhoram da Grécia não querem saber de peculiaridades suas algumas, para então disseminá-las “Worldwide”, mas sim de levarem o seu “World Very Wild” econômico-globalizado para lá, para então legarem os parcos Euros gregos à ‘liberabília’ mundial.

O mesmo mundo que, na antiguidade, ganhou dos gregos a civilização, na contemporaneidade, não se importa em assassinar essa mãe civilizadora para saciar a sua sede, contudo insaciável, de cifrões. O império do capital, portanto, outra coisa não representa senão a mais abjeta barbárie – cujos bandos partem dos bancos – marchando à passos econômicos na ágora globalizada do exato agora. Hoje em dia, basta fazer do dinheiro um Deus para que a barbárie reluza palidamente um verniz de civilidade. Todavia, como diz um velho provérbio grego, “As vestes não fazem o sacerdote.”

O bárbaro-mor da vez é o perverso Banco Central Europeu, para quem não é problema algum devassar uma nação inteira, precisamente porque ele é o primeiro banco central do mundo cuja sagaz centralidade dispensa um território e uma soberania nacional, ou seja, uma nação. Ora, por que um banco que não representa nenhum país determinado se privaria de arruinar um país historicamente determinado como a Grécia? Ademais, uma vez vitorioso no ‘economicídio’ da moeda mais antiga do mundo, o Dracma grego, o euro, essa vil moeda sem país, só precisa seguir ‘eurobarbarizando’.

Agora, se no passado a Grécia legou ao mundo a sua cultura, de valor inédito&inestimável, no presente, ao contrário, é o mundo que leva a ela a sua cultura, de valor liberal&globalizado, cuja arquitetura, arte, ciência e filosofia trata sobretudo do capital. Entretanto, o que pode a Grécia novamente legar ao mundo a partir desse angusto legado que a atualidade lhe impõe? Pobreza não é, pois com isso o mundo já convive há muito tempo. Calote tampouco, afinal, esse também já é um fantasma demasiado internacionalizado.

Ora, se lembrarmos que a polis grega antiga foi o berço da política, cujo lastro democrático acolhia os cidadãos e os seus problemas, para, mediante a palavra, resolvê-los diretamente, o que a metrópole grega contemporânea pode voltar a disseminar sobre o mundo é a arte, assaz ausente hoje aliás, de solucionar enigmas globais com o verbo local. O Eurobanco, obviamente, não quer cambiar capital por discurso nenhum. Porém, ao repetirem impertinentemente que não irão pagar conforme quer o Bárbaro Central Europeu, os gregos, retórica&civilizadamente, fazem da Europa inteira a sua nova assembleia política. Os gregos contemporâneos parecem não ter esquecido de um provérbio ancestral: “É preferível ser dono de uma moeda a ser escravo de duas”.

Na acrópole ateniense, mulheres-colunas-gregas chamadas de cariátides sustentam em suas cabeças, há 2500 anos, o peso do templo de Erecteion, consagrado a Palas Atena, deusa da civilização, da guerra, da sabedoria, da artes, da justiça e da estratégia. Para Atena, a recente pressão do BCE sobre a Grécia é apenas um vento invernal. Já as cariátides, d o topo mais nobre da Hélade eterna, simbolizam perenemente que os gregos e as gregas têm dentro de si um ‘daimon’, isto é, um espírito-guardião, capaz de suportar, não só o peso do tempo, mas também o peso dos templos, sejam eles às divindades, sejam os do capital, afinal, como diz outro provérbio grego, “São os cães maus que morrem dolorosamente”.

*do provérbio grego “Como você vai andar descalço sob os espinhos?”

Rainbow Blocs

A paleta de cores do já clássico&histórico junho de 2103 tupiniquim variava em cinquenta tons de black, cujo matiz mais radical era o bloc. Essa mono tonalidade massiva, contudo, não realçou uma vitória assaz colorida dada naquele mesmo ano, qual seja, o reconhecimento legal dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. Já o colorido 26º dia de junho de 2105, cuja paleta popularíssima é o arco-íris gay gratuitamente oferecido pelo Facebook, comemora aquela vitória, entretanto, na festa da aprovação do casamento igualitário nos EUA.

Se junho de 2013 levou multidões das redes sociais às ruas, junho de 2015, por sua vez, traz as pessoas das ruas – das encruzilhadas de um congresso retrógrado, das vias de mão única do evangelismo malafáico, dos becos sem saída do preconceito bolsonárico – ao Facebook. Porém, a peculiaridade da manifestação-comemoração atual é trocar os coquetéis molotov caseiros de 2013 por bombas arco-íris em forma de filtro instagrâmico. Os manifestantes atuais protestam em cores! O jornalista Vitor Angelo, no seu Blogay, sacou sagazmente que “os avatares coloridos são um repúdio ao estado das coisas no Brasil”.

Poucas horas depois de anunciada a nova lei americana, os murais do Facebook eram um ‘bloc’ massivo de seis cores arco-íricas, borealmente solidário à igualdade, por um lado, e cromoterapicamente crítico à desigualdade, por outro. Entretanto, nem tudo são cores! Muitas pessoas estão criticando opacamente a colorização facebookiana, dizendo que se trata de mais uma onda colonizadora&imperialista, porém, desta vez, surfada por ninguém menos que Mark Zuckerberg, dono do Facebook.

No entanto, assim como na Natureza é a luz que brilha, mas não as trevas, as cores – que são brilhantes expressões da luz! -, juntas, em número de seis, e adotadas por milhares de usuários do Facebook, filtraram, reluzentemente, os cinquenta tons de cinza dos seus críticos de plantão, cujos matizes extremos são, de um lado, a densa escuridão do preconceito arraigado, e, de outro, o pálido lusco-fusco da indiferença em relação àquele.

Se a maré alta das seis cores mais populares no Facebook desse final de junho de 2105 ainda não inundou&pintou as ideias de determinadas pessoas, paciência imediata, mas resistência eterna! Afinal, é justamente contra estas telas-avatares fundamentalistas&antiaderentes, que não recebem o vermelho-vida, o laranja-poder, o amarelo-luz, o verde-natureza, o azul-arte e o violeta-espírito, que os pincéis-manifestantes da onda colorida devem insistir. Ora, se não fosse o breu do preconceito historicamente construído contra o amor livre, as cores da igualdade não seriam apenas as do arco-íris, mas as dos diversos tons-de-pele humanos.

No entanto, a luz e os seus espectros coloridos há muito se digladiam com a escuridão. Na Alemanha do século XVI, durante a guerra dos camponeses contra a aristocracia, a bandeira arco-íris foi empunhada pelo sacerdote Thomas Muentzer como sinal de esperança de uma nova era. Nos anos 1960, a bandeira colorida era usada como símbolo pacifista pelos italianos. Porém, foi Gilbert Baker, na San Francisco de 1978, que, reduzindo as cores da antiga bandeira de oito para seis, deu ao mundo o ícone do movimento LGBT que, hoje, matiza irreverentemente as ‘timelines’ facebookianas numa cruzada virtual para libertar o amor-livre-camponês do preconceito-homofóbico-aristocrata e anunciar a esperança de uma nova era de paz.

Por que, então, resistir ao poder das cores? Como não aderir, sem preconceitos adoecidos e com uma salutar esperança epocal, à força revolucionária que historicamente resiste nas faixas do arco-íris? Desculpem-me, mas, resistir a elas, hoje, é ser um vândalo destruidor da construção de uma igualdade mui necessária. É fazer como o Black Bloc de 2013 que, investindo mormente contra paradas de ônibus e Bancos Itaús, teve, contudo, de pagar o amargo preço de um congresso ainda mais reacionário, que, por conseguinte, legou-nos uma indigesta escalada religiosa-homofóbica a qual ninguém esperava nem desejava. Porém, não foram só os Black Blocs que pagaram esse preço, mas toda a sociedade.

Sendo assim, para que esse junho de 2015 possa reduzir, quiçá encerrar a conta evangélica-homofóbica aberta na sequência daquele junho de 2013, adesão irrestrita às cores, venham elas do arco-íris da Natureza, do antiaristocratismo camponês-alemão do século XVI, do pacifismo ítalo-hippie dos 1960, do LGBTismo californiano dos 1980, ou ainda dos filtros digitais facebookianos de Zuckerberg. Quanto mais não seja, porque, por uma ironia do destino nada gay, o uniforme de guerra histórico contra o preconceito ainda é o mesmo que a roupa de festa da comemoração da igualdade entre os amantes, sejam eles os brasileiros desde 2013, sejam os americanos desde 2015. Que possamos ser, todos&irrestritamente, Rainbow Blocs!

Dialética do grevista e do kamikaze

Não pude deixar de fazer uma dialética grevista-kamikaze depois de ouvir, de um companheiro de luta, que “grevista tem de estar disposto a arriscar tudo”. Concordaria, entretanto, se ele tivesse dito que grevista tem de arriscar muito. Porém, “tudo”, penso eu, ultrapassa o limite do conceito de grevista. Se os proletários porventura arriscassem tudo, e, por algum revés, tudo perdessem, perderiam, por conseguinte, não só suas vidas, mas inclusive a sua classe. Sendo assim, posso concordar apenas que um grevista tem de estar disposto a arriscar seja lá o que for, porém, até o limite de não arriscar a sua vida, a sua capacidade de estratégia, a resistência que só existe dentro de si, o seu amanhã – revolucionado ou revolucionário.

Se tentássemos ser kamikazes verdadeiros, aqueles cujas vidas são destruídas para que as dos inimigos também o sejam, talvez esse “arriscar tudo” fizesse sentido e fosse eficiente. Vale notar que, na Segunda Grande Guerra, 2500 kamikazes mataram 5000 soldados aliados. O que podemos calcular disso? Que eles tiveram um rendimento de 200%? Entretanto, se ainda para os japoneses suicidas arriscar tudo não fez com que eles ganhassem a guerra, imagine para nós, que não participamos das profundidades aliciantes da cultura oriental, mas sim do individualismo demasiado hedonista da cultura burguesa ocidental?

O grevista, por sua vez, não arriscando tudo, tem a oportunidade de se valer, na hora de dificuldade, pelo menos daquilo que não colocou em risco, sejam forças e estratégias em potencial, seja a própria vida, sem a qual, aliás, nem a luta nem a vitória são possíveis, tampouco fazem sentido sem ela. Aceitar a derrota, e vivê-la, é a ocasião aprender com ela. Todavia, isso é uma coisa que só o grevista vivo tem oportunidade de fazer, mas não o kamikaze morto.

O kamikaze é uma espécie de fundamentalista radical. Aprende uma única lição, para, em seguida, morrer em função dela, mas, infelizmente, somente com ela. Um kamikaze, portanto, não evolui, mas apenas repete o ato radical de sua própria destruição na destruição do oponente – ou de dois deles. Já o grevista deve ter em seu devir o aprendizado de novas lições que só a permanência na vida e na luta pode oferecer. Tais novas lições, entretanto, não podem advir somente de suas vitórias, mas, como a vida em geral não cansa de ensinar, também das derrotas.

Sendo assim, não morrer, ou melhor, não arriscar tudo, é o primeiro passo, e talvez o mais inteligente, para se poder seguir arriscando algo mais. Ademais, a construção histórica de uma classe social, como por exemplo a dos trabalhadores – os grevistas mais legitimados da história -, não se daria caso os seus componentes não tivessem preservado, em primeiro lugar, a si mesmos e, em segundo, algo de suas forças, esperanças, estratégias e potencialidades. Os kamikazes, por suas vezes, nunca evoluíram desse modo porque as suas ações de risco total lhes impediram de aprender o que lhes faltava, qual seja, as fundamentais lições da derrota.

A cegueira fundamentalista de um kamikaze o impede de vislumbrar uma guerra enquanto uma composição de batalhas que, algumas pedidas, algumas ganhas, constroem o resultado final. Perder uma batalha e ainda assim não ter a guerra como perdida é uma ventura possível ao grevista, mas de modo algum ao kamikaze, para quem a guerra – na qual ele se suicida – é composta de uma única batalha, entretanto, e infelizmente, sempre derradeira. O kamikaze, seja ele o clássico japonês da segunda guerra, seja o islamita-bomba, arrisca realmente tudo pela sua causa, mas, com efeito, a deixa, irremediavelmente, na sua primeira e única ação.

Agora, numa guerra, ou numa greve, nas quais cada um precisa sobretudo dos outros, para todos, juntos, vencerem um inimigo em comum, perder companheiros outra coisa não é senão enfraquecer o fronte. Eu, de minha parte, prefiro os meus companheiros de luta vivos, e, ainda que derrotados, com alguma munição guardada, pois, só assim, poderemos, sempre juntos&vivos&parcialmente munidos, sermos capazes de novas batalhas. Se todos eles arriscarem tudo, e perderem a aposta, eu, por minha vez, estaria sozinho diante do inimigo, sem a maior munição da qual dispunha, isto é, dos meus companheiros de luta.

Por isso não posso concordar com a ideia de que que grevista tem de arriscar tudo. Ora, sequer lutamos, quando lutamos, por tudo, mas apenas por algumas coisas. Arriscar tudo, inclusive a própria vida, por algo que constitui somente parte dela, não me parece uma jogada muito inteligente. Porém, de tal inteligência o kamikaze da última grande guerra, que matava duas vidas com a sua, estava privado. Em primeiro lugar, porque esse fundamentalista radical é, juntamente com as suas duas outras vítimas, mais uma vítima fatal de sua única verdade. E, em segundo, porque a sua inteligência, na verdade, é a burrice de arriscar tudo por uma verdade que muito bem pode, logo ali, depois da curva da derrota, ou simplesmente depois da curva da história mesmo, revelar-se absolutamente mentirosa.

O que um soldado aliado faria numa batalha na qual estivesse perdendo? Mataria a si mesmo ou, ao contrário, assumindo o insucesso do embate, recuaria estrategicamente, buscaria reestruturar-se coletivamente, estudaria melhor e novamente o inimigo, descobrindo tanto as fraquezas dele quanto forças suas para embatê-lo mais eficientemente das próximas vezes? Bem, os aliados – vivos – da Segunda Guerra – que não se suicidaram em batalhas – venceram a guerra. Em contrapartida, o que pode um kamikaze morto? Como podem, por conseguinte, os seus companheiros vivos serem reforçados por alguém que arriscou tudo e nem pode mais lutar com eles?

Por isso um grevista deve estabelecer limites diversos, e bem aquém, dos de um kamikaze, ou, do contrário, será um grevista de uma única batalha, sempre desertando, todavia de forma espetacularmente heroica, a luta a qual pertence. Se o kamikaze tem uma inteligência, ela é uma só, e, ademais, finda no seu primeiro ato. Já a inteligência de um grevista pode, e inclusive deve, ser muitas outras, contrárias entre si até, pois, ao permanecer vivo, o indivíduo que eventualmente encarna um grevista pode, atravessando historicamente todas essas inteligências acumuladas, evoluir, e quem sabe, vencer.

Greve de estudantes contra as más lições

Eu participo, há alguns dias, de uma greve nacional de estudantes que luta sobretudo contra o sucateamento das universidades públicas em face dos atuais ajustes econômicos que tanto o governo brasileiro, quanto o desgoverno do capital, tentam impor ao sistema de educação. Dentre os objetivos deste movimento estudantil, dois deles me parecem os mais nevrálgicos: o primeiro, a não aceitação do corte orçamentário de 9.4 bilhões de reais à educação brasileira, e o segundo, a não instauração da terceirização na contratação de professores para as universidades federais, cujo efeito – ou defeito – imediato é o fim dos concursos para docentes, e a consequente perda, por parte das universidades, do controle sobre esse processo de seleção.

Um corte de verbas na educação já é inadmissível antes mesmo de ser pensado, pois, do analfabeto ao doutor, todos sabemos que a educação no Brasil carece, e historicamente, de investimento, não de mais limitação. Ainda mais num momento em que os bancos estão tendo lucratividades recordes, mesmo nesse momento de crise econômica. O banco Itaú, por exemplo, o alvo preferido de dez entre dez Black Blocs, só no primeiro trimestre de 2015 lucrou 5.3 bilhões de reais. O banco Santander também não tem do que reclamar! Ora, pelo visto, dinheiro há, e muito! Portanto, é inadmissível aceitar, sem protestar, essa redução da verba destinada às universidades enquanto banqueiros expandem seus paraí$o$.

Já a terceirização, que afeta diretamente o futuro daqueles que, como eu, pretendem ser professores-pesquisadores nalguma universidade pública, o problema é que, com o fim dos concursos para docentes, serão privilegiados aqueles que já está no mercado de trabalho, e não os recém pós-graduados que, pelas suas primeiras vezes, buscarão, futuramente, trabalho nas universidades. Além disso, como, e por quem serão selecionados os docentes com as universidades alienadas desse processo? Abre-se, no mínimo, uma via àquela velha forma de negociação, velha conhecida nossa, plena de “jeitinhos”, que, certamente, não se privará de valer-se da mais abjeta politicagem marrom.

Entretanto, quando oficialmente informamos aos nossos professores que os alunos estavam em greve, solicitando, com isso, a adesão deles à nossa causa, quão decepcionante não foi ouvir deles, em tácito desestímulo, que “aluno não faz greve”. Porém, como bem disse o amigo-colega-companheiro Filipe Fortuna, se as pessoas podem fazer greve de fome, de sexo, e até de silêncio, greve de estudante, portanto, tem de poder também! Além do que, os estudantes são a imensa maioria em uma universidade, cerca de 95%, além de serem o fim desta instituição. Sendo assim, os alunos são aqueles a quem deve ser garantido mais direitos, inclusive o de greve.

Disseram-nos ainda que as nossas demandas eram utópicas, que não as alcançaríamos com uma paralisação, e que, portanto, deveríamos desistir da greve. Tal ensinamento, vindo de professores universitários, sobretudo filósofos, descortina mais um grande fracasso da educação no Brasil. A infeliz lição que tais mestres tentaram nos passam é a de que seria melhor para todos, inclusive para o calendário acadêmico, que desistíssemos, enquanto estudantes, das nossas reivindicações. Querem, portanto, que voltemos às aulas, confortavelmente derrotados, antes mesmo de tentar a justa vitória. Será que estes professores, diferente de nós, alunos, acreditam que será o banco Itaú ou a Rede Globo que se mobilizarão e lutarão por nós todos? Os lucros destes mostram exatamente o oposto disso.

Ao contrário do que nos foi dito, nossas demandas não são utópicas. Seriam, caso estivéssemos exigindo a paz mundial, o comunismo já, ou a legalização das drogas. E olha que muita gente pé no chão investe em objetivos como estes de forma bastante concreta! Agora, pedir que a verba à educação não seja reduzida, que as contratações dos nossos professores não sejam terceirizadas, que as bolsas acadêmicas dos graduandos valham, no mínimo, um salário mínimo, só para citar algumas, são demandas absolutamente viáveis, mas que só parecem utópicas porque alienadas de nós pelos ímpetos de um capital e de uma política que preferem muito mais os bancos privados às carteiras escolares públicas. Desse modo, incluo entre as minhas demandas a total rejeição ao conceito de utopia dos meus professores filósofos.

Outro mestre, com o qual recentemente vínhamos lendo sobre o Maio de 1968 e suas greves estudantis, sem pestanejar deslegitimou a nossa paralisação. Abriu, com isso, um infrutífero abismo entre a teoria estimulante que ele mesmo nos apresenta e a possibilidade de nós a praticarmos, diária e concretamente, na nossa realidade. Por um lado, ensina-nos sobre revolução, mas, por outro, diz-nos que, se formos revolucionários, reprovaremos no seu curso. Esquizofrenia também se aprende na universidade! Outro mestre, ainda, ouvindo que a decisão pela greve havia sido tomada por uma assembleia soberana, feita pelos os alunos, disse-nos, não apenas jocosamente: fiquem com a “soberaniazinha” de vocês que eu fico com a minha. O que aprendemos com ele? Que, de um lado, ou muito acima, estão os deuses doutores-universitários, e de outro, ou muito abaixo, os anjos-estudantes caídos.

A decisão dos professores da Faculdade de Filosofia da Unirio de não apoiarem nem aderirem à greve estudantil, mas, pelo contrário, muitos deles ameaçarem com a reprovação aqueles que insistirem na paralisação, mostra, contudo, que aquilo que para muitos estudantes é insuportável, para eles, professores, pelo jeito, não está tão ruim assim. Ou, talvez, só estejam querendo nos ensinar algo que eles mesmos aprenderam, nas muitas greves pelas quais já passaram, e das quais, aliás, na grande maioria das vezes saíram derrotados: não adianta reclamar, não adianta se organizar e lutar; afinal, até os módicos aumentos de salários que eles sempre pediram, ou nunca chegaram, ou foram convertidos em migalhas antes mesmo de caírem nos seus bolsos. Se querem nos ensinar essa triste história, parabéns!, os meus professores estão fazendo um excelente trabalho.

Felizmente, a universidade, ainda que tão carente de investimento, e inclusive correndo o risco de ter seus doutores contratados como se fossem entregadores de pizza, tem mais a ensinar do que só aquilo que os professores tem a doutrinar. Se nós, alunos, permanecêssemos somente em aula aprenderíamos dos nossos mestres inclusive as suas derrotas, o que não nos interessa. Vale, então, descartar todos os ensinamentos derrotistas que eles porventura tenham a nos passar.

Uma greve estudantil, portanto, precisa nascer livre de quaisquer derrotas prévias. Não porque os estudantes não devam se deparar com elas, mas porque este não é o caminho para encontrarem as suas próprias derrotas, com as quais aprender, e não as dos seuss professores, derrotados catedráticos. Ainda que, finalmente, nos seja negado o que quer que seja que tenhamos a pedir, de modo algum os nossos mestres devem começar ensinando que não temos o direito de pedir o que nos falta e o que acreditamos nos ser de direito.

Pecha sofística-filosófica

Os sofistas, mestres mambembes que viajavam o mundo antigo vendendo práticos saberes, discursos políticos e estratégias argumentativas, ganharam já de Sócrates e de Platão o famigerado estigma charlatanesco que dura até hoje. Tachada por estes filósofos como a arte da prestidigitação com as palavras, a sofística passou a ser mal vista porque entendia o conhecimento pelo seu viés pragmático e particular. Ora, essa postura afrontava os filósofos que buscavam sobretudo as verdades de validade universal. Porém, é absolutamente parcial, quiçá injusto, procurar pela pertinência da sofística apenas no seu produto final, isto é, nos seus efeitos, esquecendo-se das causas que a trouxeram à vida. Então, contornando o malicioso anacronismo filosófico que peitou os sofistas pela frente, vale acompanhar estes malogrados técnicos do discurso desde antes do encontro que tiveram com os amantes da sabedoria.

Voltemos, então, ao período compreendido entre o abandono da vida nômade e a instituição da polis grega, no qual o homem ainda carregava consigo, na agora civilizada, reminiscências de sua selvageria, tais como a escravidão e a subjugação das mulheres aos homens. Com efeito, para os virtuosos polités atenienses, os escravos, as mulheres, e obviamente os estrangeiros, não eram cidadãos, mas seres com os quais eles podiam – e inclusive deviam – lidar despoticamente. Entretanto, para permanecerem convencidos de suas pretensas civilidades, e, mais importante, alienarem-se da barbárie que ainda sustentavam em pleno seio político, aqueles déspotas precisavam se relacionar com a verdade de um modo que ela não se revelasse completamente. Ou, do contrário, eles seriam informados por ela, a contragosto, que eram ainda bárbaros, entretanto, envoltos em togas de fino linho e tagarelando na assembleia.

Se foi a capacidade de transpor em palavras aquilo que antes só se resolvia através da força física o carro chefe da polis grega, pois só se chega à civilização pensando e dialogando sobre a barbárie resistente, a arte de bem falar, em seu estado nascente, a outra coisa não atendia senão a bestialidade de homens que, sobretudo, desejavam garantir a posse de suas terras, de seus escravos, bem como de seus despotismos arraigados. Portanto, a retórica, de imediato, foi uma forma civilizada, aplicada, todavia, sobre a função bárbara que ainda errava pela cidade; embora, posteriormente, ela tenha se aliado à verdades mais nobres, virtuosas, inclusive científicas. Porém, antes disso tudo, a retórica teve de lidar com os objetos mais baixos de uma recente e instável civilidade em construção.

Tomemos a justiça, esse pilar da civilização, como exemplo: fazê-la com as próprias mãos – selvageria -, é uma coisa; outra bem diferente é cunhar para ela um conceito de validade universal – filosofia. Há um longo, porém nem sempre retraçado, caminho entre estes dois extremos. Um conceito universal de justiça, por mais belo e justo que pareça, é vazio, portanto desnecessário, se não for antecedido e preenchido por uma miríade de fatos particulares nos quais as muitas ideias de justiça se entrecruzem. Sob um posto de vista, todas as particularidade acerca da justiça são a substância priori do conceito universal, e a posteriori, de justiça. Tratando-se, então, de qualquer coisa, inclusive de justiça, podemos começar abordando ou suas particularidades, ou sua universalidade, porém, atentando para o fato de que esta só é possível a partir daquelas.

A busca pelos universais era a arte própria dos filósofos. Os sofistas, inversamente, não acreditavam em tal universalidade, pois, oriundos do estrangeiro e viajados pelo mundo antigo, percebiam claramente que não existia essa coisa chamada verdade universal; que aquilo que os homens acreditavam, cultuavam, e pelo que lutavam até a morte era apenas convenção; que a verdade para um povo era tão diversa da verdade para outro quanto estes povos eram diferentes entre si. Sequer uma ideia absoluta sobre os deuses havia. Portanto, não tendo encontrado objetos universais, os sofistas não tinham motivos para investigá-los nem se ocuparem deles. Antes, investiam naquilo de que nenhum homem conseguia se alhear, isto é, das suas experiências e necessidades particulares.

Cientes do pragmatismo de todos os saberes, os sofistas passaram a vender desde discursos políticos aos cidadãos que desejassem vencer na assembleia, até técnicas de argumentação aos que quisessem se sobressair nas discussões cotidianas. Entretanto, dos sofistas não pode ser dito que comercializavam mentiras conquanto não acreditavam que existisse verdades incondicionais, senão aquelas convencionadas para fins absolutamente práticos. Com efeito, a sofística foi uma pedra no meio do caminho filosófico aberto por Sócrates e Platão. O caráter utilitarista e particular das verdades sofísticas era incompatível com o universalismo contemplativo desejado pela filosofia grega. Porém, a verdade filosófica de certo modo já estava contemplada nas verdades sofísticas, pois, se esta diz que as verdades são criações humanas, para fins não menos humanos, a filosofia de Sócrates e Platão era somente mais uma delas.

Sócrates, dialogando com Hípias Maior, no diálogo platônico de mesmo nome, procurava pelo belo absoluto que, entretanto, nem ele conseguia encontrar. Recusava, por conseguinte, todos as coisas belas que seu interlocutor sofista lhe oferecia: uma mulher bela, uma panela bela, as belezas do ouro, da riqueza, da utilidade etc. Hípias, certo de que só existiam coisas belas, mas não o belo em si – afinal, assim como a verdade, o belo é apenas uma convenção arbitrária -, não teve como saciar a impossível fome filosófica de Sócrates, tendo sido tachado, por este, de charlatão. Outrossim, Platão, insistindo que as ideias de todas as coisas jazem em Deus, e não nas cabeças humanas, tampouco nas coisas do mundo, deu o golpe de misericórdia nos sofistas, impedindo-os definitivamente de falarem em nome da verdade mediante particularidades mundanas. Para o pai da filosofia, a verdade existia alhures, na ideal esfera celeste, e de forma alguma na realidade imediata vendida pelos sofistas.

Ora, Sócrates, procurando pelos universais, e Platão, pelos ideias, findavam sempre com as mãos vazias de algo concreto. O preço da filosofia platônica, portanto, foi a assunção colateral da mais pragmática verdade sofística: de fato, só há as verdades convencionadas pelos homens, nada mais. O resto era apenas elucubração de certos aristocratas ociosos, na manutenção de uma estratégica distância em relação à verdade, para assim se manterem alienados da barbárie que resistia sub-repticiamente nas suas civilidades até então despóticas. Para tanto, os sofistas deveriam ser banidos da República imaginada por Platão e dita por Sócrates, pois, assumindo-se que a verdade é uma convenção, ninguém seria obrigado a subjugar-se eternamente a ela. Ora, se fosse assumido que a verdade era de fato uma deliberação humana, a ancestral verdade acerca da aristocracia de certos homens cairia por terra. Aqui podemos ver a ameaça sofística à barbárie despótica disfarçada de cidadania democrática que regia a Magna Grécia na época do nascimento oficial da Filosofia.

O entrevero entre os diferentes conceitos de verdade para filosofia e para a sofística encontra-se nalgum lugar entre a barbárie e a civilização. A filosofia, desenvolvendo anacronicamente sua promenade, isto é, da civilização à barbárie, não pôde evitar de condenar a verdade pragmática, tácita e necessária a qualquer selvagem. A sofística, fazendo o caminho inverso, partindo da barbárie à ágora civilizada, trouxe consigo a verdade, não menos selvagem, que diz ser nenhuma verdade universal ou ideal. Entretanto, como a pecha entre filósofos e sofistas era também a de gregos aristocratas contra estrangeiros proletários – cujas mercadorias eram seus discursos -, o relativismo sofístico sucumbiu diante da intransigência universalista de Sócrates e do absolutismo idealista de Platão.

Desde então, os sofistas e a sua arte com as palavras são taxados de charlatanismo. Porém, ainda hoje, se eu tentar impor a qualquer contemporâneo meu um conceito universal, por exemplo, de amor, serei tão improdutivo quanto Sócrates. Meu interlocutor, por sua vez, reacenderá a velha chama sofística e me dirá, sem hesitar, que conceito universal algum é mais útil ou válido do que aquele, particular, que ele mesmo tem do amor.

Adão, do paraíso à sociedade civil 

Deus proibia Adão de comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal para preveni-lo, sobretudo, do medo da morte. Enquanto eram apenas Deus e Adão, este, por saber que a natureza divina era infinitamente mais perfeita e providente que a sua, não tinha motivos para desobedecer àquele. Porém, quando Eva desembarcou no paraíso, Adão apaixonou-se, não só por ela, mas também pela própria natureza humana em si, preterindo, por conseguinte, Deus, a Sua sobrenaturalidade, e principalmente a Sua única proibição: não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.

Adão inebriou-se com Eva, e depois, com tudo aquilo cuja natureza aproximava-se da sua, até ceder à sedução da serpente que o levou para longe de Deus e de Sua Lei. Pecou, comeu a fruta proibida, soube da própria morte, e foi expulso, juntamente com Eva e a serpente, do paraíso. Por ter se alimentado do bem e do mal, Adão, doravante, teria de, solitária e individualmente, decidir o que era bom e o que era mau, a cada novo passo, assombrado pelo novo e inexorável fantasma que Deus, até então, havia escondido dele: a consciência e o medo da morte.

Uma vez caído no mundo, coube a Adão fazer o possível e o impossível para preservar a si mesmo, e isso, claro, sem a ajuda de Deus. Essa orfandade foi batizada de estado natural, conquanto, sem Deus, restou somente o homem e os limites de sua própria natureza. Diferente do estado paradisíaco, o estado natural, contudo, não estipula previamente o que é bom ou mau. Antes, bem e mal devem ser decisões arbitrárias e individuais que o homem, em cada momento da vida, deve tomar, todavia, sem certeza alguma de que suas escolhas afastam ou aproximam a temida morte.

No estado natural, portanto, não mais é pecado escolher entre o bem e o mal, mas uma obrigação mundana que, não obstante, significa castigo divino. Ora, não havendo bem nem mal absolutos, cada um podia, e sobretudo devia, decidi-los por si, e a partir disso fazer o que pudesse para evitar o derradeiro, inclusive, caso necessário, matar outro homem. No entanto, quando os homens podem tudo para evitar a própria morte, uns correm o risco de serem mortos pelos outros. Diante dos riscos inerentes ao estado natural, portanto, se fez necessária uma nova Lei, todavia humana e não mais divina, que impedisse uns de matar os outros.

Então, emigrando do estado natural, o homem se estabeleceu no estado civil, cuja lei primeira exige que todos cedam parte do seu direito natural, principalmente aquele que os autoriza a matar outros homens. Abdicando do direito natural de decidir, individualmente, o que é bom e o que é mau, e de agir exclusivamente conforme suas paixões, o homem confiou sua preservação ao estado civil que obrigava todos a cumprirem uma mesma Lei, e, mais importante, punia severamente aqueles que a desobedeciam.

Ora, para que houvesse paz entre os homens era preciso que todos renunciassem do seu direito natural e investissem em abstrações tais como justiça, equidade, lealdade, obediência, etc. Tais ideias outra coisa não são que o próprio estado civil, dentro de cujas fronteiras há um arbítrio absoluto acerca do que é o bem, o mal, a justiça e a injustiça, numa espécie de arremedo desesperado de Lei divina. Saudoso da proteção de Deus que o alienava da morte, e preocupado com a sua, o homem passou a cultivar o estado civil como se se tratasse daquele estado paradisíaco perdido em cujo solo vicejava a divina árvore do conhecimento do bem e do mal da qual ele nunca deveria ter experimentado.

Portanto, comer o fruto dessa árvore da civilização, que só nasce no solo do estado civil, e escolher, individual e arbitrariamente, o que é o bem e o que é o mal, deve ser tão proibido ao homem como outrora, no paraíso, era consumir da árvore divina. Abandonados por Deus e ameaçados por sua própria natureza, os homens criaram um paraíso artificial para si mesmos, isto é, um estado civil, um Leviatã que, com suas Leis, promete amenizar o medo da morte.

O paraíso humano durou até quando Adão respeitou a natureza divina. Infringida a Lei dEle, o homem tornou-se um cidadão selvagem no seu próprio estado natural, cujo usufruto lhe obrigava a decidir, de acordo com a necessidade, o que era bom e o que era mau. Porém, como no mais da vezes o mau lhe parecia bom, o homem percebeu que não estaria seguro junto aos seus. Precisou, portanto, reeditar a proibição divina de não desfrutar livremente do conhecimento do bem e do mal, o que resultou na sociedade civil, ou seja, na tentativa de restaurar a ordem paradisíaca perdida na qual a morte, mas também a natureza humana, são males menores.

Ignorância libertária

Um sábio professor da Faculdade de Filosofia me levou ao livro O Mestre Ignorante, do filósofo Jacques Rancière, obra que trata, politicamente, da liberdade. Da leitura resta claro dois tipos de mestre: o “explicador”, com cuja performance estamos bastante habituados, mas que, no entanto, por ser a única fonte a partir da qual emana o saber, merece o adjetivo “embrutecedor”; e outro, o “mestre ignorante”, que, sem ter o que, nem como explicar, conta somente com a vontade dos alunos em aprender, merecendo, com isso, o título de “libertador”, pois assume que o saber não está nele, mas algures. Não pude evitar classificar os meus professores a partir destas duas posturas. Entretanto, mesmo aderindo imediatamente à ideologia libertária do mestre ignorante, reconheci, a contragosto, a sedução oculta dos mestres embrutecedores. Qual seria, então, a resistente vantagem do embrutecimento diante do horizonte da liberdade?

Rancière conta a experiência do professor francês Jacotot que, sem falar a língua dos seus alunos holandeses, e estes, por sua vez, sem falar a dele, mesmo assim alcançou um resultado de aprendizagem muito acima do esperado, ameaçando, dessa forma, a estrutura de ensino sobre a qual a sua sociedade – mas também a nossa – é erigida. Ora, sem falar a língua dos seus alunos, Jacotot nada podia lhes explicar. Restava, então, deixá-los a sós com o conteúdo a ser aprendido. Para a surpresa do mestre isso foi mais que suficiente. Entretanto, tal performance permaneceria oculta caso tivesse sido mantida a tradicional metodologia de ensino que hierarquiza mestre e aluno de acordo com a posse do saber.

Se Jacotot tivesse apenas explicado aos seus alunos o que eles não sabiam, o mestre teria, de antemão, se colocado acima e adiante deles. Esta dianteira, contudo, nunca seria alcançada, pois todo o mestre explicador sempre guarda para si um saber que o aluno não sabe. Só assim este tipo de mestre permanece indefinidamente necessário, porém, ao preço do eterno subjugo do aluno a ele. Por isso não poderíamos chamá-lo de libertador, mas de embrutecedor, uma vez que, sob o pretexto de ensinar, ensinaria, na verdade, que aluno algum jamais saberá mais do que seu mestre.

Agora, pelo fato de não ter explicado nada aos seus alunos, e isso por incapacidade sua, Jacotot assumiu de imediato a sua própria ignorância diante deles, destruindo, com isso, qualquer hierarquia dentro da sala de aula. Não havendo mais o latifúndio do saber, tradicional propriedade do mestre, a ser paulatinamente “usucapiado” pela ignorância passiva dos alunos, restou apenas pessoas em pé de igualdade diante do que elas poderiam ou não aprender, dependendo, contudo, da vontade de cada uma delas. Antes mesmo de os alunos aprenderem algo, para só então galgarem alguma liberdade positiva, eles já foram considerados livres por Jacotot; o que não aconteceria sustentando-se que é somente o aprendizado já dado a carta de alforria.

A ignorância de Jacotot dizia que o saber estava alhures, a ser conquistado livremente, e não homeopaticamente concedido pela superioridade de um mestre qualquer. Rancière nos faz ver que a liberdade é a melhor professora, e a ignorância, sua melhor aluna. Ora, diz o filósofo, uma criança aprende a falar simplesmente ouvindo a língua que é falada em torno de si, sem a obrigação de aprendê-la, mas experimentando-a livremente, a seu bel-prazer e necessidade. Abusando dessa liberdade, como sabemos, todas as crianças dão saltos de aprendizagem dignos de nota. Agora, na escola tradicional, quando à mesma criança é explicada a língua que ela já vinha aprendendo sozinha, sua performance se reduz drasticamente. Há inclusive notas de 1 à 10 para medir o embrutecimento a que o aluno está sujeito mediante a inexorável pressuposição de que só o mestre pode ensiná-lo.

Passando em revista os meus professores, quase só encontrei os do tipo explicador, portanto embrutecedor, pois pouquíssimos são aqueles que fazem de suas próprias ignorâncias a alavanca para libertar os alunos das suas. Antes, do topo da torre de marfim de seus saberes, tais mestres explicam que sempre estaremos presos, não só a eles, mas também ao saber que nos falta. Entretanto, dentre estes docentes embrutecedores, há, contudo, explicadores maravilhosos pelos quais tenho não só grande admiração, mas também gratidão. Ora, uma vez ciente da diferença que Jacotot estabeleceu entre o mestre explicador e o mestre ignorante, como podem os meus mestres embrutecedores ainda parecerem, a mim, libertadores?

É precisamente nessa contradição que reside a histórica supremacia da sabedoria privada, propriedade virtuosa dos mestres, em relação à ignorância pública, espólio maldito dos alunos. Não é somente pelo fato de sistematicamente embrutecer que os mestres explicadores dominam as salas de aula, mas também porque tal embrutecimento aliena confortavelmente os alunos do fato de que somente a vontade individual de aprender é a verdadeira mestra. Há, por conseguinte, um o gozo, no entanto passivo, em se esquecer da solidão e da intransferível vontade pessoal que qualquer aprendizado verdadeiro engendra. Uma vez acorrentado voluntariamente aos desígnios do mestre explicador, o aluno pode mentir a si mesmo um algoz que não a sua própria falta de vontade e de empenho como responsável pelos fracassos de sua busca individual por saber.

Avesso da liberdade, porém, filho do embrutecimento que emana do mestre explicador, é o imediato conforto de uma tutela externa, segura e certificada. No entanto, o mestre ignorante de Rancière afronta essa preguiça sustentada pelo mestre explicador ensinando a todos que somente a vontade e o empenho individuais libertam o indivíduo de sua própria ignorância. Isso porque, para Jacotot, o saber é professor menos virtuoso do que a ignorância, pois esta, por sua natureza, põe todas as inteligências em pé de igualdade. Assumindo que todos são igualmente inteligentes, o professor francês somente precisou retirar o primeiro obstáculo à plena performance dessas inteligências potenciais: o mestre explicador.

Ora, se pelo método do embrutecimento uns sempre findam sabendo mais do que outros, espelhando com isso a arraigada desigualdade social, é porque este processo educacional reproduz, basilarmente, a pressuposta hierarquia entre mestre e aluno, entre rico e pobre, entre capaz e incapaz. Infelizmente, a verdadeira igualdade, seja ela entre os cidadãos, seja entre suas inteligências, vive apenas na vil retórica política de um poder que deseja sobretudo manter a assimetria social que o justifica. Se todos forem considerados igualmente inteligentes, e portanto capazes de galgar qualquer sabedoria, como justificar que uns saibam, e por conseguinte tenham, mais do que outros, a não ser na assunção de que é justamente o modo como se ensina o carrasco da igualdade primeira?

Porém, a liberdade gratuitamente oferecida pelos mestres ignorantes não está morta. Segue viva, contudo, no horizonte revolucionário de quem se recusa em aceitar que o bruto saber, por si só, valha mais do que as inteligências que livremente o conquistam e por suas vontades o possuem. Contra a ideologia explicadora-embrutecedora, que faz da quantidade de peixes pescados, e não da capacidade da rede que os pesca, o valor com que se compra uma distintiva posição social, temos a resistente e libertária ideia do mestre ignorante que não divide as pessoas pelo que elas sabem a partir dos seus mestres explicadores, mas exclusivamente pelo que podem saber por si mesmas, a partir da inteligência de suas ignorâncias.

Em respeito aos meus professores-embrutecedores, devo buscar não por suas sabedorias, ou por mais explicação, porquanto não é aí que, segundo Rancière, reside a libertação, mas justamente por suas ignorâncias, isto é, por todas e quaisquer dificuldades que eles próprios enfrentam ao lidar com o mesmo saber que a minha inteligência, por outro lado, pretende alcançar. Só fazendo da vertical explicação que meus mestres declamam à minha pressuposta inteligência vazia aquilo que eles mesmos carecem para saber o que me ensinam chegarei à ignorância deles. Dessa forma, nossas inteligências se emparelham. Então, se, mediante suas próprias ignorâncias, as inteligências dos meus mestres ainda apontarem para o saber que eu, por minha vez, desejo aprender, terei substituído, subversivamente, meus mestres explicadores pelos libertários mestres ignorantes de Rancière e Jacotot.

O radicalismo colateral da cidadania pacífica

Tanto as manifestações de junho de 2013 quanto a de março de 2015 contaram com seus próprios vândalos de plantão. As primeiras tinham os Black Bloc que, pilhando latas de lixo, paradas de ônibus e bancos Itaú, espantaram a opinião pública e forneceram à mídia reacionária o precioso material com o qual ela desqualificou estrategicamente o grande movimento. Já a de 2015 também contou com seus radicais imediatamente objetáveis, apelidados de Yellow Bloc e apólogos da ditadura militar, cujo vandalismo, por sua vez, destrói a própria democracia. Assim como os arruaceiros mascarados, os desordeiros verde&amarelo expressaram a pior e mais reprovável face do que estava sendo manifestado democraticamente nas ruas de março.

É importante frisar que os Black e os Yellow Bloc eram minorias absolutas dentro de suas respectivas massas. No entanto, a presença de ambos protagonizou a performance da “multidão de bem”, matizando com cores tirânicas e inaceitáveis as bandeiras e as demandas sociais levadas às ruas pelos dois macro movimentos. Conquanto a maioria dos cidadãos brasileiros reprovou o vandalismo Black Bloc, as manifestações das quais eles participaram não escaparam de tal escrutínio. Outrossim, o jihadismo amarelinho, gritando “intervenção militar já”, imediatamente se ofereceu como pretexto ao desmerecimento do protesto global que, no entanto, lhes deu voz.

Ambas as manifestações, as de junho e as de março, embora antagônicas, também têm em comum o monocórdico grito contra a corrupção política e o polifônico clamor por um Estado eficiente. Todavia, a pertinência destas demandas foi largamente ofuscada: em 2013, pela garatuja de guerra civil que os Black Bloc e a polícia ofereceram à opinião pública, e em 2015, pelo vômito elitista que pretere a democracia à ditadura militar, não obstante, com o agravante de se servir da própria democracia para tal. Não há grito popular por vinte centavos, saúde e educação padrão FIFA, reforma política ou terceiro turno, pleitos absolutamente civilizados, que resista ao intenso ruído da barbárie, seja a performática destrutiva dos Black Bloc, seja a retórica anacrônica dos Yellow Bloc.

2013, apesar de sua pretensão revolucionária, teve de se curvar à reação do velho Brasil que venceu as eleições de 2014. A política maciçamente reeleita nos estados e municípios foi justamente a criticada naquele junho: o “fora PMDB” carioca e o “fora PSDB” paulistano, por exemplo, ecoaram, no ano seguinte, como um irônico “permaneçam”. Isso sem falar do recente crescimento do conservadorismo religioso na nossa política. Diante do quadro atual, é de se perguntar se o movimento de junho, por fim, não acabou produzindo um desserviço a si mesmo. Já o protesto de 2015, que pedia não só o impedimento da presidenta, mas também da democracia, recebeu dela, em apenas dois dias, um pacote anticorrupção e uma sessão televisionada de “Mea culpa”.

Claro, tal pacote também atende aos revoltosos de junho, no entanto, dois longos anos depois. Ora, sob este aspecto, os reacionários de 2015 mostraram um poder revolucionário mais intenso do que os declarados revolucionários de 2013. Diria que a História é irônica, porém, mestre nessa arte é o poder: todos podem democraticamente desfilar nas ruas as suas insatisfações, sejam os pró, sejam os contra o poder, mas somente um dos dois será priorizado.

Agora, se o revolucionário junho e o reacionário março tinham seus vândalos inerentes, cabe aventar se cada cidadão brasileiro também não esconde dentro de si uma dicotomia de mesma espécie e grau. Porventura o manifestante pacífico, seja de que ano for, não refletiria internamente as contradições da multidão a qual se agrega? Inversamente, não seria o radicalismo, impertinentemente representado pelos Black ou Yellow Bloc, a sintomática erupção, na arena social, da barbárie resistente que subjaz na secreta subjetividade de cada cidadão, todavia civilizadamente reprimido? Cabe a cada brasileiro fazer esse “Mea culpa” individual e encontrar o radical fundamentalista solapador de ideais escondido dentro de si mesmo, muito antes de pedir que a figura da presidenta faça isso por todos.

Só então, o cidadão, a partir da ínfima parcela que ele representa na opinião pública, deixará de propagandear o radicalismo como um erro condenável, para então entendê-lo como o inexorável outro lado da única moeda com que se negocia a mudança, seja ela para trás, seja para frente. Ter participado de Junho de 2013 e reprovar os Black Bloc, ou ter desfilado em março de 2015 sem aceitar os Yellow Bloc, é não se unir à massa a qual se diz pertencer; é, sobretudo, enfraquecê-la, não como os seus respectivos vândalos fizeram, mas de outro modo, covardemente.

Entretanto, levando essa lógica ao limite, o cidadão brasileiro, para fazer parte definitiva do “corpus brasilis”, não deve pensar a si mesmo como se não fizesse parte e ao mesmo tempo não produzisse cotidianamente tanto a pacificidade da maioria, quanto a radicalidade das minorias, seja ela Black ou Yellow Bloc, cuja virtude, contudo, é gritar barbaramente, em alto e bom tom, aquilo que a civilização têm vergonha de expressar publicamente. Dessa forma, ser brasileiro é querer, ao mesmo tempo vinte centavos, um Brasil padrão FIFA, a ruína do banco Itaú, o impeachment, a ditadura militar, e todo o resto que não cabe num único discurso pessoal.

Seria ideal se a cidadania fosse algo simples, porém, a realidade nada mais faz do que frustrar esse desejo, afrontando-nos com sua complexidade imanente, cuja pertença, no entanto, exige que não nos coloquemos acima dela, como estrangeiros burgueses que a julgam como se se tratasse de uma republiqueta nalgum terceiro mundo distante. 2013 fez do caos uma nova ordem, todavia temporária. 2015, por sua vez, fez da ordem o pretexto para apologizar o caos. Por fim, o vetor entre as forças revolucionárias e reacionárias aponta para o exato agora, mas também para todos nós, brasileiros que guardam dentro de si o radicalismo que todo desejo de mudança expressa, ainda que colateralmente.

Um acertado erro petista

Um acertado erro petista

O Partido dos Trabalhadores cometeu um grande erro na esteira da crise internacional de 2008: manter e aumentar os níveis de emprego no Brasil. Mas essa falha, longe de ser contra o povo – aliás, o priorizou -, foi contra o próprio sistema econômico. Ora, o capital precisa de um exército de mão de obra para produzir o seu valor. Entretanto, carece também, senão mais, de hordas de trabalhadores desempregados, disponíveis e, sobretudo, desesperados por trabalho. É com este último time que o capitalismo limita, mas também rouba, o valor do primeiro, pois havendo muita mão-de-obra ociosa no mercado o valor do trabalho não faz frente ao valor do capital.

Se o governo brasileiro dos últimos sete anos fosse radicalmente liberal, na iminência da crise ele teria não só permitido, mas também articulado, o aumento estratégico do desemprego, pois assim o valor dos salários cairia forçosamente – de acordo com a lei da oferta e da procura. Assim os empresários novamente fariam dos trabalhadores a sua vil moeda de negociação com a crise para manterem seus lucros, transferindo os custos aos próprios trabalhadores, que teriam ou de se vender por menos, ou produzir mais pelo mesmo salário – apenas para não serem exilados ao estado do desemprego. Isso porque o capitalismo mente muito bem que riqueza significa a grande riqueza de poucos, e não a ausência de miséria da maioria.

Entretanto, depois de 2008 o governo brasileiro fez diferente. Colocou o Estado inteiro na manutenção dos altos níveis de emprego. Isso, por conseguinte, manteve o valor do salário diante o valor do capital, o que sobremaneira afrontou, mas também desvalorizou este último. Sem uma massa desempregada de manobra, o capitalismo tupiniquim, não podendo trocar o valor do trabalho por bônus crísicos, teve de ir beber nos seus próprios lucros, coisa que, historicamente, está desacostumado. Aí a velha vaca tossiu.

Com efeito, as duas últimas vezes em que o capital foi comprometido, sem escapatória, no reerguimento e na manutenção social – e, para Thomas Piketty, as duas únicas – foram nas grandes guerras. Do contrário aquelas sociedades solapariam. Todavia, no mais das vezes, como na crise de 2008, em muitos países o trabalhador é que foi comprometido no salvamento do capital. A dívida que os Estados Unidos, mas não só eles, legou aos seus cidadãos para que os bancos – veja bem, os bancos! – não quebrassem, é o procedimento cotidiano do atual sistema econômico.

A falha petista em não seguir a pragmática cartilha capitalista, contudo, tem o grande acerto de fazer com que não só os trabalhadores fossem os afetados e comprometidos pela crise, mas também os empresários, ou seja, o próprio capital. Claro, o vilipêndio do proletariado é tão naturalizado que sequer seria manchete caso estivesse mais uma vez sozinho, afinal, conquanto os lucros permaneçam altos apenas à minoria histórica nada há com que se preocupar. Agora, no momento em que o capital também é cobrado pela crise as manchetes gritam histericamente o fim dos tempos – ou o impedimento do governo que não o deixou de fora da tempestade.

As manifestações “coxistas” de 2015 expressam o descontentamento dos representantes do capital diante da insistência do governo em não desvalorizar os trabalhadores sem antes dispor da riqueza nacional, objeto do desejo dos capitalistas. Como assim gastar com os não ricos aquilo de que os ricos precisam para serem o que são? O instituto de pesquisa Index apontou que 70% dos descontentes com o atual governo têm ensino superior, 40% deles ganham mais de dez salários mínimos, e 80% são brancos. Faltou verificar a porcentagem de cristãos coxinhas, mas podemos afirmar de imediato que se trata da classe que historicamente detém o capital.

Entretanto, a estratégia de não lançar primeiro os trabalhadores aos leões do desemprego, para com isso evitar que o capital fosse devorado, mas iniciar saciando a voracidade da crise econômica com a própria carne capitalista “excedente”, e só por último alistar o trabalhador no exército contra a crise, não pode ser visto como erro por parte dos próprios trabalhadores; muito pelo contrário. Talvez seja a primeira vez na história brasileira que a classe trabalhadora tenha sido economicamente priorizada em detrimento do capital. Quanto mais não seja porque é obra do Partido dos Trabalhadores.

É natural que a ameaçada aristocracia capitalista bata panela, manifeste incredulidade e insatisfação, afinal, um governo ousou não lhe preferir. Além do que, e a contragosto deles próprios, o país permanece democrático e permeável à manifestações, mas não só às suas. Se desde o início da crise – que nasceu internacional, mas que não demorou a se naturalizar brasileira – as coisas tivessem ocorrido de acordo com os preceitos capitalistas, como nos EUA, onde os trabalhadores ficaram sem casa e sem emprego para que os banqueiros mantivessem seus bônus estratosféricos, a nossa elite estaria tão preservada quanto satisfeita.

Porém, os trabalhadores brasileiros – ao contrário dos americanos, e a despeito da crise econômica e da assassina bolha imobiliária mundiais – não viram seus empregos minguarem; tiveram investidas “suas casas suas vidas”; e experimentaram um inédito poder de compra – o que afrontou a elite acostumada com a exclusividade de tal poder. Agora, contudo, como assumiu a nossa presidenta, é a inevitável hora de todos lutarmos juntos para sair do buraco. Obviamente, não se trata de uma boa notícia, mas nela subjaz uma virtude que não deve passar em branco: a crise está mais democratizada do que nunca, e não são mais os trabalhadores que pagam sozinhos o pato. Se o governo do Brasil não agiu de acordo com o “jeitinho capitalista”, essa falha não tem preço. Porém, como há um custo expresso em cifrões, é melhor que ele seja dividido democraticamente.

Democracia ancestral ou oligarquia contemporânea?

Sim, os coxinhas também querem uma democracia. Claro, não essa que temos hoje, cuja universalidade os afronta, mas uma bem mais antiga do que qualquer um desses acéfalos paneleiros pode imaginar. Com efeito, o “coxismo” contemporâneo remonta à primeira democracia que o mundo conheceu, inventada na em Atenas em 500 a.C., na qual somente homens ricos comandavam a cidade-Estado. De imediato se conclui que estes reacionários de 2015 são muito mais retrógrados do que se pode supor.

Aristóteles, na sua Política, dizia que numa democracia “deve-se ser prudente com os bens dos ricos e não submeter nem suas propriedades nem suas rendas à partilha. Seria ainda mais sábio não obrigá-los a grandes despesas e até mesmo proibir-lhes serem úteis para o povo”. Podemos muito bem imaginar o que um aristocrata grego diria de um Bolsa família. O repúdio à distribuição de renda, como a experimentada na última década brasileira, é democrática, sem dúvida, mas na sua mais primitiva expressão.

Dos 400 mil habitantes daquela Atenas, somente 30 mil tinham direitos políticos – mulheres, escravos, e não proprietários de terras eram excluídos. Porventura não é algo nestes moldes o que a democracia coxinha quer ao solicitar a anulação do sufrágio universal por intervenção militar? Entretanto, e infelizmente, em vez da poderosa retórica grega que conquistava votos na ágora, os aristocratas de hoje tem o melhor de seus discursos no máximo de ruído que conseguem extrair de suas panelas.

Se democracia, em grego, significava o “governo do povo”, mas de fato ela era propriedade de menos de 8% da população, era porque as ideias de povo e de população não coincidiam. Tampouco deveriam coincidir, pois só assim o povo estaria liberto dos pobres. Essa ideia, todavia, encerrava uma contradição da qual nem Aristóteles escapou ao afirmar que “se são os ricos que comandam, será sempre a oligarquia; se são os pobres, a democracia”; ou que “a oligarquia é para a utilidade dos ricos; a democracia, para a utilidade dos pobres”.

Ora, se democracia é mesmo o governo dos pobres, como apontou o filósofo, nunca houve democracia na Grécia antiga, quiçá depois dela. Se hoje a aristocracia brasileira, preterida em função da pobreza histórica, quer a berlinda de volta para si, busca a mesma coisa que os gregos chamavam de democracia, embora se trate, lá e aqui, de uma oligarquia, ou seja, do governo de poucos. Por isso os nossos coxinhas contemporâneos acreditam realmente defender a democracia quando pedem a deposição de um governante democraticamente eleito e a subjugação da vontade da maioria à tirania militar.

A democracia grega, da qual a brasileira é filha tardia, transmite um ideia virtuosa, mas apenas no seu significado literal, pois na prática sempre carregou consigo os vícios da oligarquia. Por conseguinte, quando todos defendem a democracia, como acontece no Brasil hoje em dia, fala-se, na verdade, de duas coisas bastante distintas: a maioria, de uma velha utopia; e a minoria, de uma realidade, contudo sempre renovada, que a privilegia conquanto use um nome utópico. Os coxinhas, portanto, são ou democratas ancestrais confessos ou oligarcas contemporâneos disfarçados.

Revolução, reação e o vetor histórico.

De junho de 2013 a março de 2015 duas forças antagônicas encarnaram no povo brasileiro. A primeira, chamada por muitos de vândala, protestava contra tudo o que lá estava e sempre esteve, clamando por um novo Brasil. As máscaras dos black bloc simbolizavam nada mais nada menos do que a face ainda ausente do país a ser inventado futuramente. A segunda e mais recente força, cujo símbolo é a panela ruidosa – que, entretanto, quem nela bate não a lava – também vai contra o que aí está, mas não contra o que até aqui esteve, pois tal levante simpatiza com um velho e traumático passado no qual a democracia foi suspensa por força maior, qual seja, a militar.

Ora, revolução e reação são movimentos diametralmente distintos, cada um apontando para um lado da linha histórica. O primeiro, explodindo do agora em direção ao desconhecido futuro, e o segundo, ao contrário, fugindo tanto do presente quanto do futuro, passado adentro. A pecha que se desenrola pelas avenidas e pelas timelines brasileiras entre tendências revolucionárias e reacionárias pressupõe um resultado vetorial, até aqui desconhecido, porém de máximo valor, que, por conseguinte, empurrará o Brasil ou um tanto para o futuro ou um tanto para o passado.

Claro, resta ainda a possibilidade de tais forças terem o mesmo valor, o que sobremaneira as anularia, não gerando assim movimento final algum. Esse seria o horizonte mais crítico à democracia: a ausência de uma maioria na presença irredutível de duas metades de mesmo peso. O quase empate no resultado final da última disputa presidencial é o melhor exemplo de como a maioria e a minoria podem se emparelhar numericamente, instigando assim a própria democracia.

Entretanto, quando não é o poder da maioria o desígnio absoluto outros poderes entram no concurso, e a força do capital, adaptável a qualquer rinha, é a primeira a fortalecer um dos lados empatados. Bem, na adversidade o capital é absolutamente reacionário; na ventura, apenas finge revolucionar. Então, quando o sonho da horizontalidade começa ganhar substantivas pinceladas de materialidade – e o quadro da última década tupiniquim foi esse “work in process” -, o capital abandona imediatamente os apólogos do “agora em diante” para se enfileirar verticalmente aos demagogos do grande ontem.

A força revolucionária ensaiada em 2013 começou tímida, pedindo seus vinte centavos de volta, mas não tardou a engrossar sua demanda, a ponto de ser necessário todo um novo Brasil para atendê-la. Já a força reacionária em performance nesse 2015 crísico irrompe impetuosa, indignada, com demandas que também extrapolam um punhado de centavos, porém, com a diferença de não almejar um país novo, mas clamar pela velharia política passada que desmerece a democracia e sobreleva a tirânica presença militar. Porém, nem tudo está perdido, pois ainda que a reação conte com generoso patrocínio do capital, a revolução tem como aliado inexorável o próprio sentido da história que aponta apenas para o futuro. Felizmente, o capital é só uma página, e recente, dessa história.

Fundamentalismo tupiniquim

É muito mais fácil se escandalizar com as barbáries do Estado Islâmico, cujo objetivo radical é retornar o Islã aos seus primórdios, do que se aterrorizar com os ventos reacionários que assoviam uma re-intervenção militar no Brasil. Porém, o que significa almejar a anulação de uma eleição democraticamente dada e o retorno da ditadura militar senão fazer como os fundamentalistas jihadistas, ou seja, querer impertinentemente o retrocesso? Em que medida o radicalismo tupiniquim é mais bárbaro do que o islamita?

O que está sendo “panelado” nas varandas mais abastadas da Terra Brasilis é a insatisfação de uma velha aristocracia com o fato de ser somente a nova classe alta, em um mundo democrático que, por um lado, faz de um proletário o presidente da república e, por outro, doutores os filhos dos proletários. O atual “basta reacionário”, fantasiado de indignação em relação a uma filha sua, isto é, a mui arraigada corrupção brasileira, tem em sua nudez o deflagrado vício de repetir a maquiavélica virtude de fazer dos príncipes fins, e do povo, apenas meios.

É um novo velho mundo no qual a elite reencena seu papel histórico que está por trás dos gritos de “impítimam” e de “Intervenção Militar Já”. Enganam-se aquele que acreditam que tais anseios visem alguém que não os tradicionais detentores do poder – intrigantemente, os mesmos que detêm o capital. Aliás, esse clamor retrógrado tomou seu maior fôlego na recente ascensão das classes mais pobres à média e, também estas, deterem um tanto do capital acostumado a jazer em poucas e mesmas mãos.

Da mesma forma como a jornalista-socialite-coxíssima Danuza Leão, no pleno florescimento econômico brasileiro de 2012, disse que Nova York perdera seu glamour quando soube que até o porteiro do seu prédio estava indo para lá, a elite tupiniquim também não vê mais graça nenhuma em viver num país onde os outros também podem ser doutores, turistas internacionais e, sobretudo, decidir democraticamente os governantes do país.

O fundamentalismo reacionário brasileiro tem muito mais em comum com o islâmico do que revelam os recrutadores memes das redes sociais. Aliás, a banalização do retrocesso se disfarça muito bem de evolução na superfície do mundo virtual. Entretanto, sob essa pele digital se escondem tanto o desprezo pela democracia como também o louvor ao vertical horizonte que toda ditadura encerra; e tanto faz se esse lobo sob pele de cordeiro é latino-americano ou árabe, ambos querem o ontem o califa do amanhã, quiçá do hoje.

O impítimam, seguido de intervenção militar, pretere o pobre ao rico, os gays aos heterossexuais, a mulher ao homem, o indivíduo à família, e, principalmente, o presente ao passado. Essa empresa do retrocesso tem a única vantagem de não ser utópica, pois baseia-se numa realidade histórica empírica, contudo abjeta, dos mais de vinte anos de ditadura militar no Brasil. Todavia, imediatamente revela uma covardia tremenda diante da imprevisibilidade do agora, principalmente porque ele é democrático, ou seja, produzido pela maioria.

Deve-se especular sobre esse projeto de Brasil no qual a validade do voto democrático cede espaço à pretensa validade do não-voto oligárquico cujo valor é historicamente lastreado no capital. Portanto, abandonar a aventura do presente só porque ela é nauseante e incerta, para se refugiar no estático, entretanto conhecido solo do passado, é coisa que tanto os bárbaros jihadistas quanto os fundamentalistas políticos brasileiros encampam.

Aqueles, entretanto, têm ao menos a dignidade de não esconder seus verdadeiros objetivos sob fabulações mentirosas. Por menos civilizado que seja, os bárbaros jihadistas assumem no Youtube que são assassinos do progresso e promotores do regresso. Já os radicais reacionários brasileiros mentem, primeiramente aos outros, porém, também a si mesmos, que a luta deles é por um novo futuro ao país quando na verdade a guerra é pela vitória de um passado cuja “cracia” era patrimônio exclusivo da minoria.

Os paneleiros aristocratas brasileiros não arremessam gays vendados de suas varandas nem destroem sítios arqueológicos patrimoniais da humanidade para retornarem ao passado. Entretanto, nem por isso os nossos radicais deixam de ser tão bárbaros quanto os do Estado Islâmico. Ora, vendar uma população inteira para que ela não veja a presente crise da nossa economia sobre o pano de fundo da economia global, histérica e necessariamente crísica, para então atirá-la da cobertura do novo edifício democrático brasileiro, e isso em nome de velhos valores, é em nada menos terrorista.

Os fundamentalistas brasileiros se perdem na babel democrática porque ela não fala apenas a língua deles. Por isso precisam solapar essa torre pública que comporta todos os discursos para que o velho texto da desigualdade possa ser declamado sem ruídos paralelos. Não são as milenares ruínas assírias que os bárbaros tupiniquins destroem, mas o jovem templo da democracia brasileira. Entretanto, e felizmente, apenas a virtualidade desse vandalismo engana, não os escombros materiais dessa destruição, cujo objetivo estratégico é soterrar a recente igualdade aventada contra o velho e oligárquico Brasil.

Impítimam à preguiça cidadã.

Toda dissonância pressupõe uma harmonia fundamental, disse Henri Bergson, e essa verdade também tem expressão política. Se ecoa um acorde forte desse desafinado fantasma de impítiman que assombra o castelo mal administrado do Brasil é o fato de povo estar se ocupando da política vigente, questionando-a, em rede, para muito além do sazonal jardim das eleições. Sempre muito criticado por exercer sua cidadania apenas na urna, hoje o brasileiro ensaia revolucionar esse rótulo de alienação. Seria porventura herança das manifestações de junho de 2013, cujas máscaras também expressavam-escondiam uma latente insatisfação com a representatividade democrática no Brasil?

Ora, é muito pertinente que os representantes eleitos pelo povo após àquelas manifestações estejam sob um novo jugo, ou do contrário elas teriam sido tão inócuas quanto queria o patrimônio público vandalizado. E pouco importa se este novo julgamento tem o radicalismo histérico de uma direita mimada, porém contrariada, ou o cinismo daqueles que optaram por não votar em ninguém além de suas próprias convicções particulares. Com efeito, a representatividade que o cidadão brasileiro passou a desejar desde aquele junho só se realizará sob a árdua e presente intervenção popular mesmo, e não enquanto se compartilha esse desejo frustrado apenas com aqueles que assistem à novela e ao Jornal Nacional conosco.

É inaudito, no entanto extremamente virtuoso, o descontentamento em relação ao governo do Brasil. Uma pena que ele não se estenda com a mesma intensidade aos governadores, aos prefeitos, aos vereadores e, em última instância, a nós mesmos. Afinal, a representatividade degradada que tanto nos incomoda performa através de todos. Entretanto, é melhor que essa atividade inquisidora do cidadão pós junho de 2013 comece por algum lugar. Hoje é a própria presidente da república o boi-de-piranha desse novo exercício. Oxalá isso se institua e seja democratizado sobre todos os demais representantes do povo.

Porém, quando a insatisfação popular, traumatizada por anos de má representatividade política, chega à arena pública já em seu modo extremo, ou seja, na forma de impítimam, essa manifestação esconde um vício terrível, e também histórico, qual seja, aquele que prefere a imediata substituição da dissonância por uma harmonia qualquer, mesmo que fantasmática, em função da qual não seja preciso envolvimento e trabalho político algum por parte dos cidadãos. Substituir um presidente em pleno desafino mente muito bem que os cidadãos estão plenamente consonantes ao Estado harmônico que eles mesmos imaginam. Só que não!

O presente desejo de impítimam contra a atual presidenta reencena a comodidade do cidadão brasileiro perante aquilo que o desagrada. Ora, tirar a Dilma e colocar outro no seu lugar não nos ensina nada de novo; não faz com que saibamos, coletivamente, botar para trabalhar, a nosso favor, aqueles que escolhemos para isso. Se um impítiman fosse uma ferramenta eficaz, depois de Collor o Brasil teria se tornado um país um tanto menos corrupto. Todavia, não foi isso que aconteceu. Ora, exigir do governo que ele cumpra com os compromissos que estabeleceu conosco é o cerne de uma vida política saudável, e é só no presente, com os políticos presentes, que isso pode ser exercitado.

A bandeira do impítimam, portanto, balouça uma desistência: o desejo de não mais ter de lutar, mas de substituir a dissonância presente por uma consonância futura, entretanto improvável. A verdadeira luta deveria ser pelo direito de lutar, diária e imediatamente, e não para que tal luta seja desnecessária ou realocada nalgum amanhã: porque ela não é, nunca, dispensável.

Tirar Dilma do seu cargo rouba a imediata possibilidade de aprendermos a lidar, presentemente, com os nossos governantes a ponto de fazê-los, sem escapatória, responder e agir de acordo com nossos anseios. Ora, o tabagista não resolve o risco de câncer extirpando seus pulmões intoxicados, mas mantendo-os e aceitando que ambos são um mesmo organismo. Tampouco um transplante de pulmão resolveria conquanto não se parasse de fumar. Sendo assim, mais vale uma a presença de uma Dilma desacreditada, no entanto encurralada pelo povo, do que mais um presidente da república, aparentemente descontaminado das vicissitudes políticas atuais, cuja verdade, no entanto, conheceremos, e também protestaremos contra, só na próxima esquina política.

O momento para desnudar a paraplégica representatividade política brasileira é agora. Todavia, não é com o próximo representante do poder que aprenderemos a assediar politicamente senão com aqueles que agora vestem a sofisticada fantasia que pretende representar o uniforme roto do povo. Portanto, tirar uma Dilma e permitir que um Michel Temer ocupe o lugar dela nada mais é que reagendar para amanhã a revista que devemos e podemos fazer hoje. Tudo isso, claro, em nome de uma arraigada preguiça política, esquecida de uma antiga, porém pertinente, afirmação de Aristóteles que diz: “a qualidade de um Estado é a qualidade dos seus cidadãos”, e não o contrário.

A banalização do impítimam reflete o desejo histérico do cidadão de ser qualificado a partir do Estado, e não o fato de serem as mínimas e ininterruptas ações individuais, incluso nisso o voto, que, por fim, somadas, instituem esse Estado. Como admitir que o problema do brasil nasce dos próprios brasileiros? Por conseguinte, culpar Dilma isoladamente, ou qualquer outro indivíduo, é uma forma de o cidadão se alienar do fato de que ele também é responsável pelas desventuras brasileiras.

Encarar e questionar os nossos governantes quadrienalmente, somente em época de eleições, era até aqui a generalizada, porém ineficaz, performance política do brasileiro. Porém, cada vez mais isso se mostra insuficiente para nos trazer o Estado que merecemos. Essa emergência, entretanto, gera também o desejo de trocar, imediatamente, a oculta virtuosidade de qualquer dissonância concreta pelo vício de uma nova e promissora harmonia, todavia abstrata.

Isso é preguiça cidadã. Por isso essa ideia de impítimam é reacionária na medida em que crê na existência de um governante em relação ao qual o povo possa seguir confiante e, sobretudo, alienado. Ora, nenhum representante poderá ser onisciente como Deus, atento a todos, incondicionalmente. Tampouco Ele cumpriu tal tarefa! Essa coisa da qual estamos tão carentes, isto é, uma representatividade política de qualidade, expressa tanto nas manifestações daquele junho quanto no atual grito de impítimam desse março, não vem de graça. Antes, deve ser solicitada, por mais paradoxal que pareça lutar arduamente pelo que nós é de direito.

Revolucionário mesmo seria o cidadão lutar pela possibilidade de lutar, diária e ininterruptamente, contra qualquer politicagem que o represente mal, inclusive, e principalmente, contra a política em vigência. Tirá-la da jogada para seguir o jogo não qualifica o cidadão, apenas transfere a batalha para amanhã. Michel Temer, ou até o próprio Aécio, porventura saciariam a nossa inquietude em relação a uma representatividade política consoante às nossas necessidades? Provavelmente não.

A única vantagem, contudo paliativa, de um novo e imediato presidente da república seria a projeção no abstrato amanhã da luta fundamental que, entretanto, se desenrola na concretude do agora. Peitar a atual presidente, insistindo que ela ocupe o lugar a que se propôs, é o aprendizado que impítimam algum pode ensinar ao politicamente mal-educado cidadão brasileiro. Desistir do presente é uma utopia sempre disponível que seduz primeiramente os mais fracos. Ao contrário, tomar responsabilidade pela realidade, sem destruí-la na adversidade, somente os fortes encampam. Que a presidente Dilma fique por mais quatro anos e que nós, o povo, cobremo-la insistentemente até que ela faça jus à responsabilidade a que se propôs.

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Príncipe of Cards

O que o seriado House of Cards, da Netflix, o de maior sucesso da atualidade, tem em comum com O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, obra que inaugurou o pensamento político moderno? Ora, ambos tratam de política, mas o que eles ressaltam é o pragmatismo de um fazer político que se dá a despeito da ética. A frase ícone do maquiavelismo “os fins justificam os meios” deixa isso bem claro.

A grande realização do escritor e diplomata renascentista foi esclarecer que, ao contrário do que se pensava até o ocaso da Idade Média, o verdadeiro poder político não se exercia consoante aos preceitos religiosos e morais; que isso era só uma aparência. Maquiavel foi revolucionário ao destruir uma arraigada e estratégica ilusão. Entretanto, foi reacionário na medida em que, despindo o poder de sua fantasia medieval, legitimou a velha nudez do exercício do poder político escondida sob elas. Doravante os príncipes podiam agir como sempre, só que livres do pesado manto divino e da longa capa de suas próprias decisões.

Beau Willimon, criador de House of Cards, também encena a crueza do exercício do poder político alienado dos valores éticos, bem como de quaisquer valores que se interponham em seu caminho. Frank Underwood, o príncipe do seriado, enxerga o poder em sua forma pura, desnudado de qualquer costume. Portanto, traições, assassínios e, sobretudo, o alheamento absoluto em relação aos cidadãos que ele governa não representam mal algum, mas procedimentos disponíveis e valiosos à conquista e à manutenção do que para ele é o bem maior: o puro poder.

Assim como Maquiavel, Willimon também encerra uma dialética entre revolução e reação. Por um lado, colocando seus telespectadores em contato com uma sordidez política cujo disfarce revelado ora é o devaneio da democracia, ora a quimera da justiça. Há um quê de revolucionário em arrancar o pomposo figurino da diva em cena aberta, pois sem tantos artifícios se pode analisar a verdade de sua atuação. Porém, por outro lado, House of Cards não propõe solução à abjeção que veicula, apenas ressalta suas vantagens. Underwood é um reacionário que faz dos hábitos passados os melhores uniformes para se conquistar o futuro.

Maquiavel escreveu sobre a ventura do poder a um dos donos do poder de sua época, Lorenzo II de Medici, e não ao povo. Já Willimon, inversamente, transmite a sua visão de poder corrompido justamente ao povo, isto é, aos seus milhões de seguidores “worldwide”, muito mais que a presidentes da república – embora House of Cards seja o seriado preferido de Barack Obama. Entretanto, ao democratizar o vislumbre sobre a avidez do poder, ainda que ficcionalmente, estaria porventura o americano prestando um serviço a que o florentino não se propôs ao tratar exclusivamente com o seu soberano?

É de se aventar que os absurdos que Underwood leva a cabo, que sobremaneira desvestem a tradicional ideia que se tem de um político, sejam somente as novas e mais apropriadas fantasias com que o poder em exercício dissimula absurdidades ainda maiores, aberrações que de forma alguma poderiam ser mostradas, sequer ditas. Por conseguinte, cabe perguntar se também Maquiavel, ao despir o poder do manto ético-religioso medieval, com isso não coseu para ele um novo e mais eficiente disfarce.

Considerando a clara fronteira entre verdade e entretenimento, o florentino teve ao menos a dignidade de colocar em cena os protagonistas da cena sociopolítica de seu tempo vestindo uma secreta, entretanto real, nudez. Nisso o renascentista foi absolutamente pós-moderno! Já House of Cards, por se tratar de uma mercadoria, não pode contar com os poucos e finitos cifrões que a verdade tem a oferecer. Portanto, pelar o poder nada mais deve ser que vesti-lo com subsequentes, oportunas e mentirosas nudezes. Aqui, o pós-modernismo reencena a mais tradicional pantomima medieval.

A máxima maquiavélica “Os fins justificam os meios” interrompeu o pensamento ético de uma Idade histórica na qual, sem opção, era a qualidade das ações particulares que resultavam na qualidade da ação absoluta. O maquiavelismo de Underwood da mesma forma solapa a ideia de que os passos devam ser bons para que a caminhada finde próspera. Os autores de O Príncipe e de House of Cards concordam que os meios já são fins em si mesmos, e que qualquer rococó ético só atrapalha a performance do poder.

A Netflix, entretanto, extrapola o maquiavelismo, pois além de o seu príncipe Underwood justificar seus próprios meios com o poder que deles deriva, criador e criatura, juntos, justificam um meio maior, isto é, os meios de comunicação, que investidos adquirem o poder de fazer com o mundo aplauda, quiçá eleja, em cadeia internacional, inclusive o mais vil dos políticos.