A promissora contramão brasileira

É absurdo e ilógico o Brasil ter elegido o PT e não PSDB considerando a lógica do movimento econômico mundial de concentração cada maior de riquezas nas mãos de cada vez menos famílias-conglomerados. O mundo em que vivemos está feito para que as fortunas aumentem e coagulem-se, pois quem é rico não encontra limites para a sua riqueza; entretanto, essa conta que não fecha é parcelada em árduas prestações à-perder-de-vista na conta do povo. O não-comunista Thomas Piketty, no seu polêmico “O Capital no Século XXI”, comprova cientificamente esse desequilibrado e desequilibrador quadro pintado pelas crescentes fortunas em cuja centralidade apenas elas devem figurar.

Porém, com a vitória do Partido dos Trabalhadores, atribuída por muitos exclusivamente ao benefício bolsa-família, o Brasil vai à contramão do sórdido movimento capitalista mundial que prioriza a riqueza de poucos em relação à pobreza da maioria. A sobreposição – indigesta para as elites – dos mapas brasileiros de votos presidenciais e de distribuição de benefícios sociais é uma afronta ao maquiavélico modelo macroeconômico global. Todavia, esse mapa é a rota de fuga escolhida pela justa maioria dos nossos cidadãos para longe das desventuras do capital que insiste em usar a todos para concentra-se nas mão de poucos.

Intrigante é quase cinquenta por cento dos brasileiros defenderem o insustentável modo liberal-oligárquico encarnado atualmente pelo PSDB, dado que essa gorda fatia da população não é, de modo algum, a minoria rica que se beneficiaria caso Aécio encabeçasse os desígnios desse país. Antes, é uma maioria não-rica enganada por uma minoria rica no sentido de viabilizá-la à manutenção histórica e ao aumento vindouro da sua fortuna privada. Ou, por ventura, o professorzinho municipal pindamonhangabense, por exemplo, seria beneficiado através do acorde brasileiro com o movimento econômico internacional evidenciado por Piketty e defendido por Aécio?

Portanto, a contramão que o PT e Dilma representam em relação ao PSDB e Aécio é bem-vinda! E isso por conta da inédita distribuição da densa renda Sul-Sudestina na ascensão, socialização, urbanização e saneamento do Norte-Nordeste historicamente preterido no jogo político nacional. Dilma é bem-vinda sim, pois a riqueza de um país é a riqueza individual de cada cidadão, e não a alta riqueza de uns poucos – coisa que a direita mantém escondida sob a promessa liberal de felicidade atrelada à desigualdade econômica e social. A diminuição da desigualdade em curso no Brasil é dissonante da melodia mercadológica mundial, por isso ameaça e inquieta toda e qualquer fortuna privada. Porém, esse “jazz impertinente”, que destina-se mais ao povo que à elites, foi o jingle vencedor que manteve o PT no poder.

Acredito que o “estarrecimento” das elites a respeito da distribuição de renda aventurada nos doze anos de PT resida no fato dela ser, estratégica, temporária e subversivamente desigual. Entretanto, devemos entender a virtude que uma desigualdade funcional pode ter no saneamento de uma desigualdade histórica. Por acaso seria mais justo ou, ou sequer lógico, dividirmos igualmente a riqueza da nação entre ricos e pobres? Ou pelo contrário, justiça seria os que têm menos receberem mais, ao passo que os que já têm muito recebam menos, até o ponto em que haja igualdade, para aí sim iniciar-se uma distribuição igualitária da fortuna nacional?

Quem acha que já há igualdade dentro das nossas fronteiras, ou sequer dá bola para isso, certamente não vê cabimento em benefícios reestruturantes como o bolsa-família; inclusive sente-se injustiçado. Entrementes, os que acreditam que para o Brasil ser um país mais igualitário é necessário afrontar subversivamente a desigualdade com uma desigualdade do seu tamanho, desde que estrategicamente, e em benefício da maioria – algo como um maquiavelismo invertido, isto é, popular -, o bolsa-família é o princípio inédito da justiça em terras tupiniquim.

Solidão offline

Fui assistir ao último debate entre os presidenciáveis com meus amigos. Socializávamos tradicional e despojadamente, regados a um bom vinho tinto, quando nos colocamos diante da televisão. Logo no primeiro diálogo entre os candidatos as pessoas com as quais eu desejava compartilhar presencialmente aquele momento já estavam mergulhadas no intenso mundo que se estende entre o ‘twitter’ e o ‘Facebook’ através das suas telas ‘smartphonadas’. Doravante o interesse deles pela ‘virtuália’ foi maior que pela ‘reália’ imediata.

Eu olhava solitariamente para a televisão enquanto os demais, com um ouvido no que era dito pelos candidatos digladiadores, permaneciam com a cabeça baixa – portanto cabisbaixos -, com seus olhos atentos aos ‘tweets’ e às postagens ‘facebookianas’ e com os dedos deslizantes sobre as ‘touchscreens’ luminosas. Eles ignoravam não só a mim, que estava “desconectado”, mas também a si mesmos. Lembrei-me do que a mitológica Penélope disse ao seu amado, o aventureiro Ulisses: “você me destrói com a sua vontade de ausência”.

No entanto, “a tão chorada ameaça de perda de Ulisses”, psicanalisada por Guattari, “era a ameaça de perda de si” que Penélope temia. Portanto, para não denunciar a minha insegurança existencial, evitei solicitar as atenções dos meus amigos ao espaço físico que compartilhávamos. Tive medo de ouvir deles o que Penélope ouviu do seu amado aventureiro: “você me destrói com essa sua vontade de presença”. Pensei que no intervalo comercial poderíamos conversar sobre o debate; pois, recordando-me do que disse Penélope à Ulisses, “cada volta tua há de apagar o que essa ausência tua me causou”.

Nada! Quando o primeiro intervalo chegou, aí sim que a ‘virtuália’ solicitou-os mais ainda. Assim foi ao longo de todo o debate. Cheguei a desejar ter o meu celular em mãos para poder trocar com eles, ou apenas para saber o que estavam pensando e dizendo aos seus “followers”, apesar de estarmos fisicamente na mesma sala, à distância de uma fala. Foram raros os momentos em que olhávamos para o mesmo ponto e falávamos sobre a mesma coisa. No mais das vezes todos estavam nos seus buracos virtuais, entretidos com os seus mundos sociais privados; seguros, como Ulisses, de que em cada ausência deles eles existiam na minha espera chorosa por eles, que constatariam e reconstatariam a cada volta.

Apesar de aquela solidão “offline” ser surpreendentemente desconfortante, somente a partir dela é que pude observar, à distância, a distância dos meus amigos em relação ao que presencialmente encenavam. Do outro lado das “touchscreens” que roubavam os meus amigos do nosso encontro estavam outras milhões, roubando simultaneamente a atenção das pessoas de outras milhões de salas. A ágora virtual que reunia todos os conectados era, sem comparação, mais intensa e esquizofrênica do que a ambiência contingente, temporal e muitas vezes silenciosa daquela sala com meia-dúzia de pessoas. Em relação a isso eu nada poderia fazer.

O modo de os meus amigos experienciarem a realidade daquele debate era através do espetacular curto-circuito entre o ‘twitter’ e o ‘Facebook’, fazendo, por conseguinte, da própria realidade imediata algo a não ser genuinamente experienciado, mas sim o pretexto para experienciar o próprio curto-circuito virtual. Então, acrescentando gravidade à situação, Guattari sussurrou-me: “sem território fixo, as maquinas celibatárias erram pelo mundo, […] nascem de cada estado fugaz que consomem”.

Por conseguinte, tanto fazia o que acontecia “no” debate entre os candidatos à presidência. Mais importante era a reflexão imediata das milhares de opiniões que acotovelavam-se nos “feeds” escravizadores. A realidade material, portanto, era só o trampolim para o mergulho no espetacular mar virtual de suficiência instantânea. Já no mundo presencial havia menos pessoas e menos opiniões entretendo-os, e neste, seriam obrigados a encarnar, imediata e temporalmente, mais as suas próprias opiniões e ideias que as dos outros.

A torrente prolixa que jorrava do ‘twitter’ e do ‘Facebook’ era, por certo, um entretenimento sem igual. Entretanto, mediante essa tagarelice toda, que para Guattari significa “uma situação de alienação que funciona como obstáculo aos verdadeiros processos analíticos”, ninguém se deparava mais com os silêncios essenciais dos diálogos autênticos em cuja suspensão retórica reside a verdade do andamento do diálogo mesmo. Os silêncios, isto é, os ecos vazios que ressoam quando não se têm o que falar nem o que ouvir, são, sobremaneira, os raros momentos de verdade, precisamente porque neles opiniões não são colocadas, portanto, receptáculo impossível ao erro e à mentira.

Já o barulho virtual não ajuda a separar o joio do trigo nem a vivenciar o solitário existencialismo das ideias, apenas atiça a babilônia informacional que sobeja sobre elas. Nesse alarde virtual, afirma Guattari, “os indivíduos são reduzidos a nada mais do que engrenagens concentradas sobre o valor de seus atos”. Estando cá e lá, ou melhor, mais lá do que cá, meus amigos dividiam-se entre “duas cenas, dois perigos, um só dano”, advertiu-me o filósofo, pois, segundo ele, desse modo “quem sai perdendo é o amor”. Recoloco-me a pergunta de Guattari: “então o amor anda impossível?” Ele responde imediatamente que “nem tanto”. Eu, todavia, tive de esperar o debate, as postagens e os ‘tweets’ acabarem para poder concordar com ele e voltar a estar e a amar estar com meus amigos.

O desejo de Adão

Apesar do movimento incessante das pessoas no sentido de evoluírem, será que é mudança mesmo o que elas querem em suas vidas? Mudança é o que urge quando algo não vai bem, dado que quando estamos felizes queremos tudo menos que esse estado mude. Ora, se ninguém aventa mudança sem ter um ideal seguro, e se este éden é tão concreto a ponto de se tornar objeto de desejo, é porque sua concretude já foi experimentada empiricamente e por garantir a felicidade desejada. Ademais, a ideia de um “melhor do que agora” não se sustenta diante de um “depois desconhecido”, mas apenas contraposta à situações concretas – e concreto, em relação ao presente, só mesmo o passado. Portanto, se há algo subsistente por trás de uma mudança almejada, trata-se da ideia um restauro no sentido de um paraíso perdido qualquer – mais do que uma aventura a um novo desconhecido.

Entretanto, dado que o homem não escapa de desejar, e que este desejo esteja sempre atado ao nome “mudança” – ainda que tal desejo vise um retorno a uma circunstância venturosa concretamente sabida – que paraíso perdido seria este que leva as pessoas a desejarem algo melhor do que o agora? Algo de primordialmente comum entre os humanos – talvez o que há de mais comum entre todos nós – é o fato de nascermos; de abandonarmos o útero materno para habitarmos o chão árido do mundo. É somente neste último que as particularidades tornam-se vestes, diferenciando-nos e caracterizando de forma exclusiva os nossos desejos. Porém, a vida intrauterina é a coisa mais parecida com o paraíso que experimentamos na vida.

A força dessa experiência pré-mundana, aonde toda falta é acompanhada se sua satisfação imediata, por mais inconsciente que se perpetue, pode muito bem ser o motor subconsciente a gerar os nossos desejos por uma situação na qual as coisas que nos faltam sejam-nos dadas ao toque do seu aparecer. No útero paradisíaco não há fome sem alimentação, cansaço sem repouso nem solidão sem companhia constante. De certo modo, no ventre materno inexiste a ideia de necessidade; ou antes, ela significa a mesma coisa que sua supressão. Logo, entre todas as ideias que temos ao longo da vida acerca de uma satisfação gratuita e constante, não há outra cujo conteúdo, ainda que inconsciente, seja mais promissor.

Esse imanente paraíso primordial encontrou transcendência mitológica entre os pagãos e entre os cristãos. O ancestral mito de Prometeu, e a entrega por ele da chama da sabedoria de Zeus aos homens, cujo castigo imputado a nós, humanos, foi a condenação à sobrevivência através do esforço individual; bem como o posterior mito de Adão caindo do paraíso por ter consumido o fruto da sabedoria divina de que foi advertido a não provar, doravante recebendo tanto a mortalidade quanto o esforço ingrato de cuidar de sua sobrevivência; ambos os mitos falam, de modos alegóricos distintos, porém análogos, da epopeia a que todos nós nos submetemos ao deixar o paraíso uterino para cairmos no mundo da contingência.

A humanidade, seja ela pagã ou cristã, encarnou a angústia de viver atada à roda da necessidade e envolta a desejos que, não obstante, apontam no sentido maior do paraíso primordial perdido. É aqui que a ideia de restauro sobrepõe-se absolutamente sobre a de mudança, visto que não há situação melhor a desejar que aquela mítica aonde nossas necessidades de mudança sequer existiam. Não que não mudássemos no ventre materno, porém, éramos a mudança desacompanhada do desejo.

Queremos que o Brasil mude, por exemplo, através da escolha do novo presidente. Entretanto, quem viveu o suficiente sabe muito bem que qualquer situação mundana alcançada é tudo menos o paraíso, pois a população de novas contingências que todas elas trazem em si são a maternidade de novos desejos de mudança. Ou seja, nenhum estado do homem no mundo encontra a perfeição daquele estado pré-mundano aonde ele mesmo e a perfeição eram uma coisa só. Sendo assim, a remissão ao infinito de todos os desejos humanos, e por conseguinte todas as necessidades de mudança, são maximamente a necessidade de restauro do, e retorno ao, paraíso concretamente experienciado por todos nós na incontingência inconsciente de antes de cairmos no mundo.

Procurando o motivo que levou-nos todos a abandonar tal paraíso materno nos mitos prometeico e adâmico encontramos a questão do desejo irrefreável pela sabedoria. Afinal, ainda que pareça paradoxal, foi ela que causou a expulsão humana da perfeição divina. Desse modo, essa sabedoria de que falam os mitos deve ser o objeto, concreto e imperioso, que todo pré-nato toma posse para fazer a trasladação ao mundo dos homens natos. Hobbes disse-nos que “saber é poder”, portanto, uma vez donos da mínima sabedoria podemos tudo, inclusive nascer, ainda que esta sabedoria leve-nos apenas ao mundo da contingência no qual desejaremos eterna e inadvertidamente a mudança que, entretanto, significa nada mais que o restauro daquele paraíso perdido.

Em relação à posse dessa sabedoria indevida que nos torna impróprios ao paraíso primordial, o mito cristão conta-nos que foram dois seres femininos, quais sejam, a serpente e a mulher Eva, os que colocaram na virgem cabeça de Adão o desejo por tascar o fruto do saber. Possivelmente tenham sido representados dois seres femininos como os promotores de tal expulsão edênica por conta de ser sempre uma mulher que pari, ou seja, pelo fato de ser a mãe que expulsa todo adão do útero primordial. Caso o próprio adão tivesse desejado mudar-se do éden para o mundo, seu desejo seria genuinamente de mudança. Todavia, por ser uma mulher que desejou e causou tal migração, a primeira coisa que adão soube, de fato, foi que estava sendo expulso definitivamente do seu paraíso perfeito.

Em Adão, portanto, restou o único desejo de retornar ao mundo ideal aonde não havia morte nem necessidade. Esse desejo, de realização impossível, é conscientemente representado no palco do mundo, por atores e cenários mundanos. Entretanto, o drama é sempre o mesmo, isto é, o imperioso e inconsciente desejo de restaurar a perfeição perdida; muito mais que mudá-la; visto que não há por que mudar o que é sabidamente bom, apenas retornar a esse bem. Por conseguinte, a sabedoria que primeiro recebemos, e que é contemporânea ao nosso abandono do paraíso, é a sabedoria da perda desse paraíso mesmo – saber primordial que vive miticamente no cerne de cada homem nascido, porém, representado historicamente enquanto a sucessão de desejos de mudança que, não obstante, são nada mais que a permanência mítica do desejo universal de restauro da situação mais favorável que experimentamos na nossa finita existência.

Tempo mítico. Tempo histórico.

A ideia de tempo linear, ou seja, a linha que leva irreversivelmente do passado ao futuro, é demasiado recente em relação ao tempo cíclico-mítico, chão humano por mais de setenta mil anos. Porém, há exatos dois mil e quatorze anos, perambulou peripatético pelo mundo um sujeito, de apelido cristo, cuja boa nova era a viagem linear que começa aqui no mundo e segue em direção ao céu eterno. Devido a isso o cristianismo é dito o responsável pela quebra do tempo mítico e pela instauração do tempo histórico que nos acompanha até hoje.

Aristóteles, trezentos anos antes de cristo, afirmava ser o tempo cíclico, e que até a mais evoluída sociedade estava condenada a ruir e a retornar ao seu primórdio, para então recomeçar a sua ventura, “ad aeternum”. Entretanto, aquele mesmo Aristóteles que enxergava o tempo como inescapavelmente cíclico, por conta de uma invenção sua, pode ter sido o responsável pela bancarrota da temporalidade que ele mesmo via reinar absoluta no mundo sublunar. Ora, trata-se da sua lógica, eternizada no clássico tratado “Organon”, que visava fazer das argumentações científicas o percurso inescapável em direção à verdade.

A lógica aristotélica buscava encontrar e produzir um encadeamento inequívoco entre as afirmações e as conclusões decorrentes delas, eliminando, portanto, o devir errante das ideias humanas e viabilizando à errância uma correção em direção à eternidade superior e verdadeira. Ao colocar a premissa maior “Todo homem é mortal”, e a premissa menor “Sócrates é homem”, o filósofo fez decorrer, logica e irrefutavelmente, que “Sócrates é mortal”. Diante dessa silogística excelente não havia mais necessidade de retornar às premissas para sustentar a conclusão.

A ciência, estruturada logicamente por Aristóteles, tinha como inimigo diametral o mito. Este, pois, legava verdades aos homens sem justificá-las através de lógica alguma, dado que, para o mito, as suas justificações eram sempre imemoriais e inespeculáveis. A forma mítica, portanto, obrigava os homens a circularem – miticamente – em torno de verdades que se justificavam precisamente na sua impossibilidade de justificação. Já a forma lógica fazia da verdade e de suas causas um Big Bang arquetípico cuja precedência inexistente não interferia no seu próprio devir em direção ao futuro.

Diante da lógica introduzida por Aristóteles, ou seja, da essencialidade de concluir apenas a partir de premissas verdadeiras, o mito – e o tempo que é só seu – não mais se sustentou. Doravante, apenas a linearidade lógica e a sua temporalidade própria foram caminhos às ideias humanas, porquanto no mito se está atado a um circuito repetitivo em torno de uma pretensa verdade sem nunca alcançá-la. Desse modo o tempo mítico perdeu a hora e foi substituído pelo lógico tempo histórico. Inclusive o ciclo inescapável que o filósofo atribuiu às mais evoluídas sociedades deixou de ‘ser’ mítico para ‘devir’ cronológico. Nada, nunca mais, retornou ao seu princípio.

O tempo cronológico – positivo por excelência – lida com a existência ao modo de enfileirá-la temporalmente em um curso irreversível que a afasta historicamente do seu princípio. O que era tradição tornou-se evolução. Entretanto, se o tempo histórico não passar de uma ficcional tragédia lógica aristotélica – tornada ópera pelo cristianismo – estamos apenas brincamos de evolução dentro na roda gigante do mito. Não seria, por ventura, a crise ecológica atual, e a possibilidade do fim do nosso mundo a certeza primeira de Aristóteles de que o tempo é, de fato, um mito inescapável? E não seriam, por conseguinte, os próprios conceitos de História e evolução os erros lógicos responsáveis pela decadência que vemos anunciada na natureza, vítima deste empreendimento lógico-histórico-evolutivo?

A lógica encarnou “cronos” de imediato para afastar-se do seu princípio, pois a verdade de suas conclusões – necessariamente dependentes da verdade das suas premissas – se especulada cientificamente, é tão verdadeira quanto um princípio mítico. Aliás, o mito ainda é mais verdadeiro porque, embora utilizando-se de entretenimentos alegóricos extemporâneos, conta sempre do exato agora; do agora que foi sempre e sempre será, ou seja, do que é incontestável. Já o linear tempo histórico, na séria empresa de não esquecer-se de nada, esquece-se do nada que lhe antecede, padecendo assim de sustentabilidade. Pode ser que a linha histórica criada pelo homem seja apenas a reta fictícia projetada por ele mesmo no perfeito, gigante e inabarcável ciclo mítico da existência.

Aristóteles, ao afirmar que em verdade tudo volta miticamente ao seu início, e ao mesmo tempo introduzir a verdade enquanto expressão lógica, não escapa de entrar em contradição: ou a errância mítica é a verdade, ou a verdade é lógica-histórica. Talvez os sintomas dessa contradição tenham sido desbarates tais como o cristianismo e o fim da natureza. Entretanto, em um universal ciclo mítico tudo tem lugar, inclusive as narrativas históricas e as suas míticas decadências. Aristóteles, sobre o mito, provavelmente estava certo; todavia, o fim do mundo pode ser a história lógica do seu erro.

Do niilismo ao ceticismo em um laboratório

Este Laboratório Filosófico chamava-se “Sensacioniilista” devido à intuição de não haver verdade ou sentido último algum a ser descoberto ou conhecido, princípio fundamental do niilismo. Porém, na vida deste “blog”, e nos muitos textos que iam sendo escritos, tornou-se claro que a visão desta filosofia acerca da verdade era outra: ela existe sim, só não é alcançável. Ora, a doutrina que afirma essa relação de incerteza absoluta em relação à verdade é o ceticismo. Portanto, é a partir da consciente impossibilidade de ter certeza acerca dos objetos aqui investigados que esta filosofia vem laborando. Entretanto, a que preço?

Caso esta filosofia tivesse permanecido niilista, ou seja, descrente de qualquer verdade e crente de que só há o nada (nihil, em latim), os seus produtos seriam, inescapavelmente, apenas invenções a partir do vazio. Desse ponto de vista, o resultado de todas as filosofias, bem como o de todas as ciências, seria, por conseguinte, nada além de quimeras com as quais o mundo é criado e preenchido. O lado positivo no niilismo é a extrema liberdade que ele abre à mente humana, porquanto não havendo verdade a ser encontrada, tampouco há erros espreitando-nos. Logo, a partir do nada inconteste tudo é obra; tudo é criação; todos somos artistas a inventar mundos.

Todavia, uma vez em terreno cético, esta filosofia é cônscia de uma verdade subjacente, porém inalcançável, em torno da qual centrifuga sem nunca tocá-la. No ceticismo os movimentos filosóficos e científicos permanecem sem conquistar a verdade, tal como no niilismo. Entretanto, para um cético, a verdade existe, só que como um objeto impossível, cuja indisponibilidade, não obstante, pode tanto desestimular qualquer investigação, tal como ocorreu ao cético Pirro, quanto ser uma mola propulsora no sentido de uma aproximação em relação à verdade. Apesar de as certezas absolutas permanecem alhures tanto no niilismo como no ceticismo, neste ao menos há a verdade, portanto um universo válido e verdadeiro.

As duas posturas filosóficas, contudo, padecem de contradição intrínseca. Ao afirmar que não há verdade alguma, o niilista afirma uma verdade pretensamente válida. Ora, como pode uma verdade existir àquele que diz que verdades não existem? Dessa forma, o niilista só pode sustentar-se afirmando nada, caso contrário será um dogmático de uma única verdade insustentável. Da mesma maneira o cético, ao dizer que as verdades existem, porém que elas são inacessíveis, confessa ter acesso a uma verdade no mesmo discurso que pressupõe a impossibilidade desse acesso. Por conseguinte, o ceticismo e o niilismo só podem ser se não colocarem os seus fundamentos, pois caso o façam, autodestruir-se-ão.

Podemos ver que há horizontes de impossibilidade tanto no niilismo como no ceticismo. Para fugir dessas contradições a opção imediata é ser dogmático, ou seja, tomar como verdade incontestável aquilo em que se acredita desde que o conteúdo dessa crença nunca seja questionado. O problema do dogmatismo é que ele é fundamentalista a ponto de sustentar as religiões e Papais-noéis; logo, pretere a verdade em prol da mentira que coloca em seu lugar. Uma filosofia que se preze deve fugir do dogmatismo assim como a sabedoria foge da ignorância, porquanto em relação à verdade, mais vale a sua inexistência niilista ou a sua inalcançabilidade cética que a presença dogmática de uma quimera intocável no seu lugar.

Caso exista a verdade, como pensam os céticos, ela é tão resistente quanto “o real”, ou seja, aquilo que sempre escapa, e sempre escapará, a todas tentativas de apreensão. Todos os investimentos contra o real fracassam, resultando nos distanciamentos em relação a ele chamados de realidades, isto é, versões pessoais cuja função sintomática é mentir um real provável sobre um impossível. Todavia, as realidades são a nossa forma de existir dentro do real, ainda que elas não sejam a verdade, mas apenas as nossas aproximações frustradas em relação a ele. Dessa forma, o ceticismo está para a verdade assim como as nossas realidades estão para o real: aqueles sempre aquém destes, porém relacionados em função de uma impossibilidade.

Mas se a verdade de fato não existir, como afirmam os niilistas, sequer o real existe, ou do contrário ele teria de ser falso. No entanto, o real falso não é outra coisa que o irreal, isto é, o que não existe verdadeiramente. O niilismo, ao forçar a barra para que só exista o nada, colateralmente impede a existência de qualquer coisa, inclusive a sua própria. Já a garantia cética da subjacência da verdade não nega chão à sua busca, ainda que não o revele. Logo, a migração desta filosofia desde o niilismo até o ceticismo foi do nada em direção a algo, ainda que esse algo esteja tão distante dela quanto prega o próprio ceticismo. De inventora, esta filosofia passou a errante. Porém, é errando que se acerta! E essa crença, apesar de dogmática, é o combustível mínimo ao atual ceticismo advindo neste laboratório.

Latifúndios intelectuais

Qual a diferença entre patrimônio intelectual e patrimônio material? Antes, é importante atentar para o significado da palavra “patrimônio” que, juntando “pai” (patri) e “recebido” (monium), diz daquilo que é herdado do pai, uma das formas primitivas de direito. Quando falamos de propriedade material, um pedaço de terra, por exemplo, quando herdado, configura legitimamente um patrimônio inalienável. Outrossim, o indivíduo que herda uma obra intelectual de seu pai ou de sua família a tem como patrimônio seu. Portanto, a princípio, as duas propriedades não apresentam diferenças além da posse ser material ou imaterial.

Em quase todos os países o patrimônio intelectual é resguardado ao seu autor até algumas décadas após a sua morte, para só então cair em “domínio público”, ou seja, tornar-se patrimônio da humanidade, ainda que não tenha sido pai algum a legá-la tal material. No Brasil, depois de setenta anos da morte do autor a obra é de todos. O país que por mais tempo resguarda o direito sobre a intelectualidade é o México: cem anos de posse exclusiva depois da morte do seu autor. Já no Irã e no Nepal, por exemplo, não há regulação nesse sentido, o que faz com que o patrimônio intelectual possa ser mantido indefinidamente.

Ainda que exista um hiato separando a posse individual sobre os produtos intelectuais do domínio público, maior ou menor dependendo da legislação de cada país, cabe perguntar qual é a substancialidade posse temporária. Seria ele um “gap” capitalizador? O patrimônio material, até hoje, permanece inalienável dos seus herdeiros futuro adentro. O intelectual, contudo, é tratado de outro modo, visto que em quase todos os lugares ele tem prazo de validade. Seria essa diferença a evidência de que o patrimônio material é sobrevalorizado em relação ao intelectual ou, antes, seria a previsão da socialização do patrimônio intelectual o indício de que ele é mais importante que o material a ponto de dever ser socializado, ainda que dentro de algumas décadas?

No caso do patrimônio material ser o objeto mais valioso à humanidade, e por isso inalienável de seus possuidores, a socialização da produção intelectual significa nada mais que a distribuição de migalhas de menor importância, porquanto o que de fato move o mundo segue sempre nas mesmas nas mãos. Essa pressuposição confere vitória ao privado e não ao público. Todavia, se tal socialização acontece por conta de uma percepção de que a produção intelectual humana, devido à sua relevância, deve ser de todos – e não de poucos, apesar de décadas distanciarem esse “todos” do que lhes é importante -, podemos deduzir que há uma vitória do público sobre o privado. Dessa forma, o resguardo do patrimônio material seguiria indefinidamente legítimo porquanto algo de menor importância em relação aos feitos intelectuais, estes sim essências à humanidade.

Porém, atentando para a tensão histórica entre público e privado, não podemos nos iludir de que haja passividade d’algum dos dois lados desse embate. O mais provável é que, em se tratando de patrimônio intelectual, o público e o privado lutem ferrenhamente em função do seu domínio, e que a previsão de sua socialização seja, contudo, apenas uma vitória do público – parcial, paliativa e sintomática – em relação à sua inconteste derrota diante da perene materialidade privada. Desse modo, as migalhas do patrimônio privado jogadas ao público são, ao mesmo tempo, o ouro possível arrancado do privado pelo público. Por conseguinte, essa socialização intelectual é a contragosto cedida pelo privado mediante a luta do público, visto que, de acordo com o modo com que o privado busca preservar o seu patrimônio, este não daria de graça suas posses ao público.

Todavia, mesmo após a obra intelectual tornar-se de domínio público ela emana espectros de privação, e isso porque, ao usarmos livremente o seu conteúdo, essa liberdade deve render-se aos sentidos e contextos originais da obra em questão. Podemos ver que, referente à socialização do produto intelectual, há a advertência para que restrinjamos a nossa liberdade ao usá-lo. Uma frase de Marx, por exemplo, “As ideias dominantes numa época nunca passaram das ideias da classe dominante”, se usada em sentido diverso daquele que moveu o filósofo a escrevê-la, receberá críticas ferrenhas da comunidade marxista, como se o material de Marx, de domínio público, fosse patrimônio dela.

Imaginemos Marx vendo a frase supracitada, ou parte dela, abusada livremente em um contexto não imaginado por ele. Será que o filósofo negaria o uso do seu apanhado de letras se usado em função de fins diversos dos seus? Se sim, Marx estaria tratando o seu continente intelectual como um latifúndio em cujos metros quadrados só se permite a manutenção da monocultura oficial. Por outro lado, aceitando o livre e indiscriminado uso de suas ideias, o alemão compartilharia o seu terreno com as itinerâncias aventureiras, permitindo o livre trânsito sobre as trilhas intelectuais abertas por ele. Usar livremente um material intelectual é também poder sobrescrever-lhe rotas alternativas e impensadas, ainda desconfigure, parcial ou completamente, o material sobre o qual essa liberdade se aventura.

Os objetos autorais não indicam somente a linha à qual pertencem; sugerem também a possibilidade de desvio e de cruzamento oblíquo em relação a essa linha. A riqueza de uma ideia de Marx será maior à medida que ela for objeto de apropriação livre pela pluralidade de sentidos e propósitos de uma humanidade não menos livre; e não na manutenção de uma fidelidade à primordial lacuna preenchida por essa ideia. Caso você, leitor, visse um trecho de um texto ou de uma música de autoria sua sendo usado de modo avesso e em contexto diverso daquele concebido originalmente, porventura agarrar-se-ia à propriedade atribuída por você a esse material ou colocar-se-ia admirado diante da multitude de sentidos possíveis das suas ideias que, entretanto, permaneceram ocultos até então? É a resposta a essa pergunta que define o teor da liberdade dada ao público quando este toma posse da obra intelectual humana.

Portanto, os latifúndios intelectuais, uma vez convertidos em solo comum e de domínio do público, devem ser o chão de todas as itinerâncias possíveis, pertinentes ou não, caso se queira destituí-los da aura de propriedade privada que neles subsiste rançosamente. O respeito obrigatório à propriedade dos sentidos originais das obras intelectuais é, paradoxalmente, um desrespeito e uma negação de liberdade àqueles que intuem livremente quaisquer outros sentidos e escopos a partir dessas obras. Permitamos à errância transitar livremente sobre o terreno instituído pela intelectualidade humana, outrora latifúndio de uns, porém, sempre em breve, chão de todos. Ou, do contrário, a posse desse continente seguirá de mãos de poucos em mãos de poucos, e nunca em domínio do público.

Tempo fílmico. Tempo seriado.

Os quarenta minutos de um episódio ,dos muitos seriados que populam os nossos écrans residenciais, apropriam-se bem mais à pressa e à atribulação da vida contemporânea que as tradicionais duas horas de duração de um filme. Hoje, a demanda por consumo e por realização exige, histericamente, que façamos acontecer muito mais coisas em um par de horas do que apenas um único filme. O que significa, contudo, a redução do tempo dedicado ao lazer ficcional que pretere o tempo fílmico em benefício do tempo seriado?

Se “o cinema trata a Ideia à maneira de uma visitação ou de uma passagem”, como apontou Alain Badiou, nesse quesito os seriados o superam substancialmente, pois a ficção em série pressupõe, além da visita apontada pelo filósofo, a constante revisita, geralmente semanal, ao longo de meses e de anos até. Em vez da delongada relação com um filme que não obstante finda, no mais tardar, em duas horas, temos a frivolidade de uma relação seriada com a ficção, episodicamente reduzida e entregue em domicílio; todavia, ao preço de uma fidelidade em longo prazo. Badiou disse que, em relação ao cinema, “eis o homem doravante entregue ao capricho de um encontro”; porém, essa afirmação realiza-se maximamente na relação de reencontros que o homem tem com as suas séries.

O que, por conseguinte, encontramos no episódio de um seriado que não em um filme? Ora, no filme há um encontro com o desconhecido, por certo, porém único e fechado. Da mesma forma, no seriado há o encontro com o desconhecido, só que, além disso, há o reencontro com um universo já conhecido; e é isso que o seriado oferece mais que o filme. No entanto, se o seriado ganha do filme por oferecer simultaneamente um encontro e um reencontro, por outro lado o filme ganha por ser um encontro inédito, dado que no seriado tudo o que se dá a conhecer é sobremaneira predeterminado pelo já conhecido.

Os seriados, portanto, por mais que introduzam algo novo dentro da série, não escapam de certa imitação de si mesmos; enquanto o cinema, segundo Badiou, “é a arte menos mimética” de todas, justamente por não ter relação extrínseca fora o seu acontecimento. O ser do filme é absolutamente contemporâneo à sua exibição; já o do seriado é ao mesmo tempo contemporâneo e necessariamente extemporâneo à sua: deve ser, de uma só vez, um acontecimento inédito, uma subsequência do que já aconteceu e também algo que deverá “re-acontecer” para que se trate de uma série. A extemporaneidade e a abertura são essenciais aos seriados, porém, o seu calcanhar de Aquiles.

Na série norte-americana “The Newsroom”, da HBO, um fictício canal de notícias encaminhava-se à comprovação e à divulgação do uso de gás sarin em civis paquistaneses por parte da marinha americana. Naqueles mesmos dias de agosto de 2013, na “vida real”, a ONU denunciava a morte massiva de cidadãos sírios, nos arredores de Damasco, pelo uso do mesmo gás, de autoria ainda desconhecida. “The Newsroom” foi interrompida imediatamente, por três semanas. Quando retornou ao ar, aqueles jornalistas, e o editor chefe do canal de notícias, estavam sendo demitidos e processados, na ficção, pela falsificação de provas e de testemunhos acerca da marinha americana.

O que se vê a partir de “The Newsroom” é que os seriados, intercalando o curto tempo de suas exibições episódicas com sete dias de afastamento, e isso ao longo de meses, estão sujeitos às externalidades mais do que os filmes. Por mais que “Independence Day” fosse uma das pré-visualizações do ataque às Torres Gêmeas, o filme não poderia ser modificado ou interditado. Isso porque, conforme intuiu Badiou, “o filme já arranca o romanesco de si mesmo por uma antecipação teatral”. Já o seriado, inversamente, na prorrogação teatral que é, tende à ópera em cuja música coexistem os movimentos que levaram a ela, a sua atualidade e o fantasma do seu além. Nesse “gap” substancial dos seriados, portanto, podem ser incluídas, e até mesmo inventadas, quaisquer inconveniências.

Badiou disse que “falar de um filme é sempre falar de uma reminiscência”, ou seja, de uma memória. Já de um seriado, falar de memória não é tudo, pois os episódios vindouros são tão imemoriais quanto o futuro. Nas séries podemos nos dar ao luxo do esquecimento, pois elas sempre retrazem à tona o que é necessário que nos lembremos. Essa memória de que o seriado se utiliza, por conseguinte, é temporária, como a RAM dos computadores, ou seja, sem conteúdo cativo. Os filmes, por outro lado, apesar de também “performarem-se” por duas horas em modo RAM, repousam ditosamente no HD das nossas lembranças. No entanto, a obsolescência programada da contemporaneidade prioriza o temporário em detrimento do perene a partir da “maneira RAM” com que estamos nos colocamos diante do lazer ficcional.

De acordo com Claude Lévi-Strauss, “a repetição é essencial para a expressão simbólica [pois] coincide intuitivamente com seu objeto sem jamais confundir-se com ele”. Essa colocação do antropólogo parece fazer dos seriados uma fábrica simbólica bem mais potente que os filmes, dado que aqueles repetem-se muito mais do que estes. Essa “repetição”, parte fundamental dos seriados, contudo, reconduz-nos à obsolescência programada cujo propósito é fazer com que consumamos muitas vezes a mesma coisa, porém, como se ela fosse outra, diferente e com novas tonalidades a cada “reconsumo”. Apesar de ser o devir desconhecido da série que nos conduz ao episódio, é também um universo dado que nos reconduz a ele.

De certa forma, o que acontece em cada um dos episódios de uma série é completamente dispensável, aliás, é feito para que seja assim, porquanto o produto deve seguir sendo consumido mesmo na falta de uma de suas partes. Oposto a isso, o filme guarda uma essencialidade inalienável em cada uma de suas partes, podendo ser ontologicamente visto enquanto o “ser” se comparado ao necessário “devir” do seriado. As partes do filme são absolutamente necessárias a ele, já as do seriado, não. Logo, ao migrarmos do tempo fílmico ao tempo seriado passamos a habitar em um solo constituído de frívolas efemeridades. Os seriados de que mais gostamos são-nos gostáveis por algo nada específico, isto é, por um gostar que se relaciona superficial e descompromissadamente com o seu objeto.

A força de um filme, para Badiou, está justamente em “imaginar, no intervalo de tempo de uma passagem, a impureza de qualquer ideia”. A partir dessa colocação podemos inferir que, no filme, as impurezas da sua ideia são extrínsecas a ele; e mais, intrínsecas a quem o assiste, ou seja, àquele que emenda subjetivamente as suas passagens. O ser do filme, apesar de espraiar-se em duas horas de pleno devir, não se corrompe por este, nem pelo espaço que abre entre as suas passagens a toda sorte de imaginação. No seriado, os “intervalos de tempos de uma passagem” funcionam, por um lado, como os de um filme, porém, por outro, o modo intervalar de seu devir episódico guarda não alguma impureza substancial a ser imaginada, mas a pura essência do espirito do seriado. É como se a pureza do seriado estivesse na sua natureza intervalar, onde nada há a ser imaginado; e a sua impureza, ao contrário, no acidente que cada episódio é em relação ao o corpo maior da trama.

Sendo assim, no filme, os impuros somos nós, e não ele; e no seriado, o impuro é ele mesmo, não nós. O despojamento oferecido pelos quarenta minutos seriados, contraposto ao engajamento com as duas horas fílmicas, serve melhor à fluidez atribulada da contemporaneidade. Todavia, “a duração fílmica […] é a visitação de uma imobilidade subjetiva”, diz Badiou, sugerindo para que pensemos as ficções não como “lugares objetivos” a serem visitados, por determinado período de tempo, mas enquanto a viagem ao intrinsecamente subjetivo em nós, ao extemporâneo, àquilo que permanece imóvel mesmo na velocidade contemporânea, qual seja, a vontade de escapar da realidade ficção-adentro.

A técnica em Heráclito e a ciência em Parmênides a partir de Aristóteles.

Diferente dos demais animais, o homem cria as condições de sua própria existência através de uma técnica manipulatória sobre natureza. A clareira humana aberta vitoriosamente em meio à “Physis” chamou-se “nomos”, ser cujos atributos essenciais são o próprio homem, a sua capacidade de modificar a natureza, e a natureza modificada por ele. Conquanto dispusesse ativamente das técnicas necessárias à sobrevivência, bem como da capacidade praticá-las, o homem habitaria o “nomos”; seria ele mesmo a “norma”.

Todavia, o “nomos”, laicizado, reificado e relativizado na “polis”, cindiu-se internamente aos moldes da cisão que outrora ele mesmo significou em relação à “Physis”. Praticar a “técnica da sobrevivência”, paradoxalmente, passou a representar certa baixeza, tal qual a do animal sobrevivendo em meio às contingências da natureza. A partir dessa sofisticada percepção, a superioridade humana passou a residir não mais na capacidade técnica de consumir a chama da sabedoria roubada de Zeus, mas na contemplação científica que preserva-lhe eternamente o ser.

A ciência representava uma dupla vitória do homem: sobre a natureza e sobre o próprio “nomos”. Ao sobrelevar-se teoricamente em relação à sobrelevação técnica que o sacou da nudez primordial, o homem experimenta, inteligivelmente, o distanciamento máximo em relação à “Physis”; e parcial em relação ao “nomos”. A teoria igualou os homens aos seus deuses, ou seja, àqueles que sabem e podem contemplar o eterno e o perfeito a despeito absoluto de qualquer imperfeição ou contingência. Entrementes, longe de ser a devolução da chama furtada de Zeus à esfera divina, a teoria é, antes, o modo humano de não consumi-la contingentemente e de redimir-se de sua manipulação vitoriosa sobre a natureza.

A diferença entre técnica e teoria foi cientificamente estabelecida por Aristóteles. Para ele, a técnica tem como objeto essencial o contingente e o transitório, ou seja, aquilo que não é, mas que deve ser de determinado modo para atender aos vis fins humanos. Já a teoria, segundo o filósofo, volta-se exclusiva e substancialmente ao que é, ao que sempre foi e sempre será, pela necessidade intrínseca de ser. Segundo Aristóteles, o objeto da ciência é mais elevado porquanto eterno e universalmente válido, enquanto o da técnica é mais baixo porque em função do particular, do transitório e do contingentemente humano.

É possível relacionar a categorização aristotélica com o pensamento de dois pensadores pré-socráticos: Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eleia. Heráclito filosofou no sentido de evidencia o devir constituinte da realidade, afirmando que tudo é movimento e fluxo constante, sendo seu “ser” o devir “devindo-se” eternamente. Já Parmênides afirma o contrário, que só há o “ser”, que ele é Uno, imutável e eterno, e qualquer particularização sua e é apenas um erro, uma “doxa”, isto é, uma falta de ciência acerca dele. Logo, contrapondo os conceitos de técnica e ciência aristotélicos às teorias do efésio e do eleata, podemos ver que a técnica, em sua móvel contingência essencial, tem como objeto o devir heraclíteo cujo ser permanece alhures e eternamente inconcluso; e a ciência, na sua contemplação da substancial verdade imóvel, trata, na realidade, do ser parmenídico, ou seja, daquilo que é; que sempre foi e sempre será; do que é estático porque perfeito.

Heráclito, ao dizer que o ser é o devir, ou seja, que só há o movimento, nega a possibilidade de uma ciência aos moldes da descrita por Aristóteles, visto que, para aquele, não há o eterno a ser contemplado em imobilidade alguma. Ainda que o efésio afirme a existência de um ser – qual seja, o devir – este não pode ser tomado contemplativamente porquanto apenas um espectro impossível do que de fato se dá à contemplação, isto é, a eterna mudança. Se em Heráclito a ciência aristotélica é carente de objeto, através do pensador adentramos na agitada oficina do devir, cujo produto técnico é o universo em mutação.

Contrariado, Parmênides afirma que só há o uno, o eterno e o imóvel. O eleata, portanto, faz do universo inteiro “o” objeto da ciência aristotélica. Pois se há apenas o ser, conquanto para o pensador de Eléia qualquer transitoriedade e mobilidade é já um erro, só há lugar para a ciência. De acordo com “telos” universal pressuposto pelo eleata a técnica aristotélica é imprópria e desnecessária, visto que atada ao particular e ao transitório. Por outro lado, a imobilidade e a eternidade do ser parmenídico é a antevisão daquilo que Aristóteles apropriou categoricamente como o objeto essencial da teoria e da ciência.

O homem iniciou nu a sua jornada na natureza. Em seguida “tecnicizou-se”, vestindo-se “poiética” e culturalmente com o linho do “nomos”. Então, com a ajuda de Aristóteles, despiu-se dessa toga técnica para melhor contemplá-la, livre e teoricamente, fazendo dela um objeto científico livre de contingências. A sobrelevação aristotélica do modo teórico-científico em relação ao pratico-técnico, longe de alienar materialmente o homem da “Physis”, foi, contudo, a forma intelectual dessa alienação. Fugindo da caótica natureza, passando pela oficina técnica do devir heraclíteo, e finalmente repousando no macroscópico e eterno ser científico parmenídico, o homem, por conseguinte, busca uma redenção em relação ao logro prometeico que, de partida, legou à humanidade uma dívida insanável para com Zeus.

Linguagem dessentida

Você começou lendo uma letra capital que, somada a outras três, formou a primeira palavra desta frase, que está em pleno andamento, entretanto, findando no seu ponto final. Agora outra frase inicia-se depois daquela, afinal, é exatamente assim que um texto toma corpo. Porém, já na terceira, mais longa e última frase “desta introdução” – justamente onde deveria esclarecer-se o propósito que se desenrolará no texto abaixo – apenas a narrativa desse evento linguístico preenche “estas linhas”, a despeito de algo acerca do qual você deve estar se perguntando agora, qual seja: afinal, qual sentido disso?

Ora, o sentido é a substância da linguagem, ou seja, a única coisa sem a qual ela não é o que é. Portanto, por mais que este texto se esforce em escapar da proposição de um sentido, sucumbe a cada instante precisamente pelo fato de ser linguagem. Você mesmo deve estar à procura de um sentido que dê sentido a esta leitura, não é mesmo? Todavia, o escopo aqui é o de desafiar a linguagem no sentido da sua necessidade de sentido. Para tanto, a frase que concluirá este bloco de texto será propositalmente “nonsense”: é inacreditável que Aécio Neves receba demasiada cobertura da Rede Globo!

“Este texto” intenta fugir do seu próprio sentido como que para observá-lo melhor à distância, não obstante sendo alcançado por ele a cada instante. Por conseguinte, é no sentido de uma distância especulativa entre o necessário sentido “deste texto”, que, aliás, já deveria estar “por aqui”, mas que permanece algures, sendo a sua evidência possível apenas “a partir daqui”, que estas letras e palavras dessentidas mantêm “esta arena linguística” esvaziada. Na verdade, o sentido está sendo empurrado para longe, a contragosto da própria linguagem, a fim de que, instigado, revolte-se e exploda em assalto, pois é essa a sua natureza, inclusive nas expressões mais tautológicas.

Juntamos algumas letras, conectamos um punhado de palavras e, de repente, boom: um sentido. Há uma distância, uma temporalidade imanente nesse processo, sempre. Ainda que se espere certa imediatez de sentido em um texto filosófico ou jornalístico, por exemplo; ou no caso da poesia, onde o sentido é mais livre para aterrissar quando bem entender na pista das belas palavras sob as quais se esgueira; o sentido, ele mesmo, chega apenas no final. Sua natureza é o fim de outra, como se o sentido fosse um Ser, essencial e novo, a dispensar a instrumentalidade linguística através da qual deveio.

Depois de captado o sentido, só ele é; e inclusive as palavras e as frases que o devieram, tomadas separadamente, passam a mostrar algo de contraditório em relação a ele. Tomemos o universo de sentidos possível da própria palavra “sentido”: um que é aqui, subliminarmente, ainda que parcialmente misterioso, dado que “esta ideia” ainda não terminou de colocar-se; outro sentido que se pluraliza em cinco, quais sejam: visão, tato, olfato, audição e paladar; ou ainda aquela posição militar diante dos superiores hierárquicos.

Os livres sentidos da palavra “sentido” são a sua potencia até que um sentido geral seja oficialmente outorgado à frase ou ao texto de origem. O sentido, portanto, é um ato; um fato; uma obra-prima que, para ser contemplada, deve necessariamente dispensar o laborioso artesanato através do qual ascendeu ao mundo. Nesse sentido, o sentido sugere-se como algo primeiro, arcaico, fruto de uma arqueologia sob as camadas e mais camadas de palavras e frases que o ocultam. Todavia, é como imaginar que o Davi de Michelangelo já estivesse aguardando impacientemente pela posteridade gloriosa dentro do bloco de mármore.

O que ocorre é que o sentido, ao colocar os pés no pensamento, agiganta-se sobremaneira, sendo maior que tudo porquanto no lugar de tudo que o trouxe à tona. Por esse motivo é que o sentido foi preterido “neste texto”, pois ele não tardará em ser o senhor absoluto “destas palavras aqui”, que, em breves instantes, serão escravas abstratas suas. Apenas enquanto “este texto” não se conclui é que “esta frase” pode gozar de alguma liberdade dentro da experiência linguística que se encerrará no parágrafo abaixo.

Paradoxalmente, ao pretender fugir do sentido através da linguagem, “este texto” esteve preso a ele, não obstante iluminando-o enquanto conceito para escurecê-lo, temporariamente, em sua subsistência linguística inerente. Um sentido oficial está inevitável e subversivamente assenhorando-se “nesta antepenúltima linha do texto”. Diante do derradeiro, a estratégia das palavras contra o assenhoramento do sentido é a de permanecerem “nonsense” até o fim. Por isso, “nesta última frase”, é um absurdo que, às quatorze horas e dez minutos do dia quatorze de outubro de dois mil e quatorze, a avenida Nossa Senhora de Copacabana já esteja congestionada!

“Grande Outro” laboratorial

Quem adentra voluntariamente em um livro de filosofia já é, de certa forma, algo filosófico, ainda que em sua forma negativa, ou seja, em sua carência. Propor-se à leitura de um filósofo é colocar-se nessa relação através de um acorde de sentidos que harmoniza as disparidades que “po-pulam” no mundo. Já aquele que, de repente, é interpelado pela filosofia tem mais motivos para questionar o seu cabimento. A filosofia, portanto, encontra seu desafio máximo diante dos que não a querem, dos que não a buscam nem lhe atribuem propósito.

Tomemos, então, como o atalho filosófico máximo a leitura de um filósofo por outro; e como desvio absoluto, ainda que pareça absurdo, o não-filósofo que não é lido pelos outros não-filósofos. Todavia, desta última relação poderia sobrevir alguma filosofia? Nesta incerta experiência este “blog” encontra o seu propósito, pois, aqui, um não-filósofo – ainda que filosofando – busca fazer dos múltiplos seres da vida objetos a serem revistos, filosoficamente, em suas efemeridades perenes; e isso justamente em uma plataforma imediatamente superficial não-filosófica.

Filosofando no Facebook a impropriedade possível da minha filosofia confronta-se não com a rigidez acadêmica necessária aos verdadeiros filósofos, o que a acachaparia, mas com a impropriedade própria do meio na qual ela se propõe; pois, talvez, esta filosofia seja própria, no mais das vezes, justamente pelo fato de não ser lida por ninguém. Entretanto, mesmo que não seja lida por filósofos nem por não-filósofos, todos estes são o “grande Outro” abstrato para quem “essa filosofia” se escreve.

Lacan cunhou o conceito “grande Outro” para abarcar, teoricamente, tudo aquilo que não o indivíduo que o determina sobremaneira. Para o psicanalista, o país desse “Outro” tem suas fronteiras na Cultura e no discurso familiar, e cuja população são os entes da linguagem e os seus desdobramentos; porquanto a linguagem tanto nos antecede através do nome próprio que recebemos do mundo, quanto nos sucede nas percepções que imediatamente receberemos desse, ou expressaremos a esse mesmo mundo.

O “grande Outro”, a princípio, apresenta-se coercitivamente determinante, e a própria advertência wittgensteiniana de que “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo” corrobora com essa asfixiante determinação. Porém, esse “Outro” capital pode – e deve – ser encarado de outras formas. Se para Aristóteles “o ser se diz de várias maneiras”, o ser do “grande Outro” também deve, necessariamente, colocar-se de vários modos, inclusive uns que contradigam esse primeiro escopo condicionante.

Por conseguinte, no extremo oposto da limitação linguística wittgensteiniana está a absoluta liberdade que, não obstante, só a linguagem concede, dado que só através dela eu posso dizer desse “grande Outro” os desbarates que bem desejar. O “grande Outro”, portanto, é ao mesmo tempo um buraco-negro cuja gravidade dispõem em torno de si o mundo todo para melhor engoli-lo, como também um tabu eficiente no sentido de interditar o mundo que nos afronta, gerando assim um espaço sagrado, livre do pecado, no qual o “pequeno Eu” encontra liberdade e propriedade.

Então, enquanto eu digito “estas palavras”, esse “grande Outro” – encarnado por você que lê “isso aqui” – está, abstrata e instrumentalmente, apropriando-as. Todavia, não no sentido de que elas sejam apropriadas especificamente a você, pois, caso isso fosse tentado, fatalmente essa filosofia erraria o alvo. O que o “grande Outro” deste Laboratório Filosófico na verdade produz – ao colocar-se imediatamente atrás da minha nuca – é fazer com que esta filosofia não se dirija a alguém determinado nem a todas as pessoas, mas aos acidentes de leitura que decorrem do acidente que esta leitura mesma já é.

Logo, se você está lendo “estas palavras”, é tanto o “grande Outro” abstrato da vez quanto a máxima aproximação em relação ao “pequeno Eu” concreto que busca a sua validade universal. É precisamente por eu não saber quem você é; nem quando ou onde você lê esta filosofia; ainda que você não a leia; que “esta filosofia” é desta forma. Ou seja, é baseado na indeterminação máxima acerca de quem por ventura adentre nesse Laboratório Filosófico que ele se autodetermina.

O fato de “isto” não estar sendo escrito especificamente para você, persistente e generoso leitor, é o mesmo motivo que faz “disto” outra coisa que não uma carta pessoal. E, conquanto este texto não seja o meu diário, tampouco se dirige, ou serve só a mim. Estariam “estas letras” fatidicamente órfãs por destinarem-se não a mim nem a você, especificamente, mas a um interstício impessoal e universal propositalmente fantasiado de um tal “grande Outro” absolutamente abstrato? Eu permaneço aqui, concretamente, portanto, ao menos, há um pai solteiro. Você leu “isto aqui”? Se sim, somos dois; por conseguinte, muito brigado.

Se somos dois aqui, eu e você, isto é, o que escreve e o que lê, e se isto está funcionando conforme esperado, juntos damos concretude à abstração desse “grande Outro” que primeiramente possibilitou a este “pequeno Eu” estender o braço em direção ao “pequeno Eu” que é você. Revolucionamos assim, aqui e agora, o conceito lacaniano, pois o “grande Outro” do psicanalista se diz em um único, vertical e inescapável sentido. Por conseguinte, se você lê “estas três palavras”, e concorda com elas, apesar delas três nada dizerem de específico, somos nós que determinamos e limitamos o “grande Outro” que, entretanto, deveria nos condicionar e limitar.

Aceitando que o ser se diz conforme Aristóteles, isto é, de várias maneiras, o ser do “grande Outro” também deve ser múltiplo. Não por ser constituído de múltiplas partes, mas pelo fato de poder ser tomado de tantas “maneiras” quantas forem as suas partes. Por consequência, o “grande Outro” que autoriza este laboratório é, decididamente, ao mesmo tempo eu, você, nós dois, nenhum de nós, todos os outros, e inclusive ninguém. Caso se endereçasse especificamente, essa pretensa filosofia deveria jogar no lixo as suas próprias pretensões, porquanto esquecida da universalidade pressuposta à própria Filosofia.

Então, o “grande Outro”, para não ser tão culturalmente condicionante como queria Lacan, nem tão linguisticamente delimitante como sugeria Wittgenstein, deve ser colocado a serviço, vez ou outra, do “pequeno Eu” escravo seu. Neste Laboratório Filosófico o “grande Outro” trabalha junto deste “pequeno Eu” que filosofa. Porém, não no sentido de restringi-lo verticalmente, mas na medida em que sussurra advertências extremas, tais como: “Isso é demasiadamente pessoal” ou “Isso é impalpavelmente genérico”. À frente desse funcional e abstrato “Outro” coloca-se o concreto “Eu” a quem pertence o absoluto poder do “sim” sobre todas as palavras e ideias que se aventuram filosóficas neste laboratório.

Macacos confusos

No Sci-fi “Autómata”, dirigido por Gabe Ibáñes e estrelado por Antonio Banderas, os robôs são a base produtiva de uma nada surpreendente insustentável sociedade humana devassada pela poluição e pelas adversidades da Natureza. Alguns desses autômatos misteriosamente passam a não mais atender às ordens humanas e, doravante, migram para um oásis às avessas nos confins de um deserto criticamente radioativo à biologia.

A princípio, a ideia do filme remete à comumente chamada “inteligência artificial”, porém, ao longo do mesmo, as máquinas deixam claro que esse “algo” específico delas é outra coisa que não inteligência, pois, segundo elas, inteligência é animal, biológica, em cuja contingência se coloca maximamente o homem. Quando Banderas pergunta o motivo da fuga autômata do mundo humanos, um deles responde: “Você não compreenderia”. Banderas não entende o que para a máquina é claro, ou seja, que não havia linguagem compatível entre eles que desse conta do que se passava no além-humano.

A relação entre homem e máquina, no filme, se dá em duplo sentido: o humano sendo interpretado crua e eticamente pelos robôs, e estes interpretados simbólica e esteticamente pelos humanos. Quando perguntado por Banderas sobre o que havia acontecido para que ignorassem os comandos humanos, o autômato sucintamente responde que “isso simplesmente aconteceu”, da mesma forma como outrora ocorreu ao macaco deixar de ser ele mesmo e passar a autodenominar-se homem.

Uma passagem memorável do filme é quando um miliciano pós-apocalíptico, ameaçando um robô com a sua espingarda, solicita-lhe obediência. O autômato retruca dizendo que, segundo essa lógica, o homem deveria subjugar-se ao macaco que lhe deu origem. A perplexidade humana puxou o gatilho contra o “mainframe” rebelde, ouvindo dele, em meio aos tiros: “Você é apenas um macaco” – Bang! – “Um macaco agressivo” – Bang! – “Um macaco violento” – Bang! “Um macaco confuso” – Bang! Bang! Bang! Bang! A confusão humana calou definitivamente a clareza autômata.

Entretanto, o clímax existencial do filme é quando Banderas, ciente de que não sobreviverá à radioatividade assassina daquele confim desértico, ouve do seu interlocutor quântico: “você, humano, foi feito para morrer, é a lógica de vossa existência; por que não aceita o seu próprio ciclo?” Banderas emudece; o autômato prossegue: “importante é existir, não sobreviver; nós existimos, é tudo”. A máquina era mais grata e fascinada pela existência que experimentava que o homem em relação à sua.

A imperiosa necessidade da personagem humana em sobreviver a alienava sobremaneira da graça e da qualidade excepcional do simples fato de existir e do inacreditável universo subsistente entre os palpáveis “ter sido” e “ainda ser”. Ironicamente, foi o robô o herdeiro dessa satisfação descompromissada em relação à existência há muito corrompida pelo modo humano de existir. O problema do homem – não compartilhado pela máquina nem pelo animal – é que apenas ele sabe, sempre, que morrerá. Disso decorre uma angústia em torno de um “quando” que, não obstante, nunca deve ter seu lugar no agora.

A morte animal e a passagem à inexistência autômata são nada mais que possibilidades constituintes do agora vividas não enquanto a negação da vida, mas como sua gratuita mola propulsora. Deixar de ser, para eles, não é o erro da existência, mas o seu acerto maior, ainda que inconsciente, e isso fica claro na não deliberação animal-autômata acerca da morte. Diferente deles, o homem, histórica e impertinentemente, delibera sobre o seu derradeiro de maneira antinatural – comparado aos animais – e ilógica – em relação à superior lógica autômata -, como se a morte invalidasse a vida em vez de chancelá-la categoricamente.

Estamos entre a natureza do macaco que nos criou e a da máquina que criamos, e disso “Autómata” relembra-nos provocativamente a ponto de sugerir que estes três devires espacializados no tempo são apenas os dois horizontes avistáveis de um único devir, maior e inescapável. Por conseguinte, a inconveniência humana parece residir precisamente na sua exclusiva recusa em encaixar-se fatidicamente na macro esfera existencial do universo; a única que há e que necessariamente deve haver. O homem é o ser através do qual surge no universo a consciente recusa à capitulação mediante os inerentes capítulos desse próprio universo. Para isso, a crua e lógica percepção autômata: “vocês são macacos confusos”!

Represente o Estado!

Aristóteles dizia ser a qualidade do Estado a qualidade do estado individual de cada um dos seus cidadãos. A nossa visão atual de Estado vai à contramão da do filósofo, pois, hoje, exigimos primeiramente do Estado que ele tenha as qualidades de que seus indivíduos carecem para, posteriormente, agraciá-los com o que os falta. É como se os grãos exigissem do castelo-de-areia a condição de suas existências enquanto grãos. Todavia, abstraindo a forma do “castelo”, há somente os grãos eles mesmos; e, por conseguinte, abstraindo essa coisa chamada de Estado, há somente pessoas em suas qualidades individuais.

O Estado é menos isso de grande que vemos sobre todos e mais o chão imediato pisoteado por todos. No ônibus, o Estado é o condutor; no hospital, o médico; na escola, o professor; na estrada, o motorista; e por aí vai. Para o cego que deseja atravessar a rua, a qualidade do Estado é a ajuda que ele recebe ou não dos que estão imediatamente à sua volta. Portanto, a qualidade do Estado é, sobremaneira, a qualidades das nossas ações dentro dele, muito menos que o inverso disso.

Entretanto, fazemos do Estado a tela na qual projetamos tanto os nossos desejos quanto a nossa incapacidade de atendê-los e, inclusive, a responsabilidade por tais desejos desatendidos. Psicanaliticamente, os conceitos de “transferência” e “projeção” dizem respeito ao transferir a outro aquilo de si de que o sujeito deseja alienar-se. Logo, o cidadão, ao projetar no Estado a responsabilidade pela sua ventura individual, não faz outra coisa que covardemente exigir que outrem seja e faça aquilo que ele mesmo não consegue ser nem fazer.

O preço de uma projeção, ou seja, o seu sintoma, contudo, é a não revolução da situação do sujeito projetor, pois, uma vez suas questões alhures, não está mais ao seu alcance resolvê-las. Da mesma forma, ao esperar que o Estado resolva as necessidades nascidas no indivíduo, este se aliena do controle de si próprio. Doravante há a sobrelevação do sujeito cidadão e dos seus desejos insatisfeitos em relação a um Estado necessariamente insatisfatório, pois enquanto os grãos não se bastarem a si mesmos, tampouco o castelo de areia o fará. Resta, por fim, a perversa representação de um Estado absolutamente responsável pelo destino dos seus cidadãos.

Hoje, o Brasil está dividido entre dois presidenciáveis, e essa divisão reforça justamente o caráter representativo da nossa democracia tão criticado pelas ruas manifestantes do histórico junho retrasado. Os gritos de “ninguém me representa” que ecoaram através daquelas nuvens lacrimogêneas encontram seu devir derradeiro no crédito que os cidadãos recolocam nos seus candidatos escolhidos, nos pretensos futuros representantes.

Porém, antes de dizer que, a contragosto, somos obrigados a ser representados, há de se aventar a hipótese de que, imediatamente, sermos nós os que mais precisam da representatividade que tanto criticamos. Sequer enxergamos o Estado como a obra imediata da qualidade dos seus cidadãos; logo, não assumimos a responsabilidade por ele. Assim, o Estado permanece sintomaticamente representado como o responsável-mor pela bem-aventurança de suas partes conquanto elas permaneçam alienadas das responsabilidades que são suas.

No final das contas, o jogo político brasileiro segue como o empurra-empurra no qual a regra egoísta é algo do tipo: você, Estado, é o responsável pela nossa felicidade; ou, você, Estado, é o responsável pela nossa miséria. O que faríamos se não tivéssemos uma instituição a quem atribuir a responsabilidade pela nossa condição? Acabaríamos tendo de responsabilizarmo-nos por isso. Entretanto, desse modo, seríamos nós os corruptos, os mal-investidores, os que criam e mantém a desigualdade, etc.

Teríamos culhão para tal? Certamente não, visto que estamos nos digladiando em torno de um novo representante pelo Brasil. Seja a Dilma ou o Aécio, um dos dois representará e será responsável pelas venturas de cada um dos duzentos milhões de brasileiros. Chega a ser injusto, porquanto nenhum deles dará conta de fazer um país de qualidade melhor que as qualidades de suas partes. Entrementes, a pertinência da representatividade encontra seu ser na possibilidade de sempre responsabilizarmos alguém que não nós mesmos pelos acidentes de percurso que somos.

Enquanto não vestirmos o Estado na sua imediatez, isto é, no evento essencialmente contemporâneo que ele é através de nós todos, precisaremos de representantes que o vista. Diante da sobrevivente representatividade, o alardeado “ninguém me representa” do junho histórico parece menos um grito revolucionário desejoso do fim da representatividade e mais um lamento reacionário que, para assumir-se propriamente, deveria ser dado da seguinte forma: “ninguém me representa, por quê?”; ou, “represente-me já! Preciso de alguém em quem projetar a minha incapacidade de fazer um país melhor”.

Maquiavel e Marx contra a muralha do poder

Uma leitura transversal de “O Príncipe”, de Maquiavel, mostra que a obra dirige-se àqueles que pretendem conquistar e manter o poder. Entretanto, o filósofo não teorizou no sentido de trazer à luz do mundo receitas utópicas através das quais os príncipes podeiam, a partir da leitura, galgar algum poder ainda não alcançado. “O Príncipe” é muito mais a reificação das velhas formas com as quais os soberanos capitalizavam o poder para si. Esse caráter técnico – e não teórico – da obra redefine sobremaneira a sua pertinência.

“O Príncipe” maquiavélico não traz nada de novo àqueles que atendem pelo nobre título, apenas “manualiza” suas realidades incontestes. Há que se perguntar a quem toda essa informação estratégica serve. Antonio Gramsci, na sua leitura de “O Príncipe”, revelou o caráter revolucionário da obra, dizendo que ela se dirigia ao povo, aos moldes de um manifesto invertido, e não àqueles que intentam subjugá-lo. De que modo um texto remetido aos soberanos endereçar-se-ia, em verdade, ao povo, visto que este é a massa de manipulação daqueles?

A propriedade da interpretação gramsciana de “O Príncipe” reside na inutilidade que o teor da obra tem àqueles que já são esse teor – essa teoria – na prática. O que fica claro através da visão de Gramsci é que as realidades dos príncipes, e os seus ardis modos de ser, são levados pela primeira vez ao conhecimento do povo, justamente os que estiveram alienados desse “modus operandi” soberano. Sendo assim, o ouro da realidade descrito por Maquiavel, de acordo com Gramsci, é útil exclusivamente ao povo, porquanto é este a vítima primeira da inadvertência acerca da forma com a qual é dominado.

Abrindo ao mundo a realidade crua com que o poder é conquistado e mantido pelos príncipes, Maquiavel revela o escopo laico e pragmático das suas práticas. É aí que “O Príncipe” serve melhor ao povo que aos soberanos, pois, uma vez esclarecido o modo com o qual estes manipulam aqueles, a soberania do príncipe é ameaçada, não por algum inimigo externo, mas justamente pela verdade intrínseca do seu ser. Logo, uma vez revelada a mística com a qual o poder historicamente se camuflava para melhor inscrever-se sobre o povo, este tinha em mãos a chave para revolucionar as tradicionais estruturas do edifício do poder.

Outra obra histórica que, sob o título do vilão, dirige-se às suas vítimas, é “O Capital”, de Karl Marx. Nesta obra, o filósofo, ao falar da sordidez eficiente do capital em conquistar e manter o seu poder, não teoriza no sentido dos capitalistas, visto que estes são o teor vivo e consciente da realidade d’O Capital. Antes, a obra de Marx revela aos inadvertidos o agir do capital em seus secretos modos de ser. A diferença entre “O Príncipe” e “O Capital” é que aquele não se assume revolucionário; ao contrário, é imediatamente reacionário em benefício do poder estabelecido, porém, de acordo com Gramsci, absolutamente subversivo sub-repticiamente; enquanto “O Capital” é uma chave declarada à revolução, desde o início desnudo, direto e escrito ao proletariado.

O contexto histórico de cada um dos dois autores determinou sobremaneira a apresentação do teor revolucionário de suas obras. Maquiavel escreveu em um mundo no qual homens eram punidos severamente pelo que diziam, como seus contemporâneos Giordano Bruno, queimado vivo, e Galileu Galilei, declarado herege. Portanto, caso Maquiavel quisesse comunicar a revolução que Gramsci viu nos seus escritos, não poderia fazê-lo abertamente, apenas subversivamente. Já Marx experienciou um momento histórico que só não pode ser chamado de totalmente laico por conta do abstrato Deus Capital. Todavia, o poder capitalista contemporâneo de Marx não ameaçava a sua vida por que desnudado por ele.

Tomando o escopo revolucionários de “O Príncipe” e o de “O Capital” – aquele maquiavelicamente subversivo, e este marxianamente revolucionário -, ambos revelaram as faces sórdidas subjacentes às suas realidades históricas. No entanto, os súditos dos príncipes e os proletários do capital, ainda que conscientizados das astúcias de seus carrascos, não puderam revolucionar a realidade em benefício próprio. Tanto o poder dos príncipes, como o do capital, souberam cooptar com maestria a sua evidenciação pública, usando seu ser desnudo como combustível de sua manutenção, dado que o povo seguiu sujeito ao poder. A diferença é que hoje sabemos cientificamente como o poder nos coopta.

Seria a evidenciação da realidade suficiente para revolucioná-la, ou essa assunção, ao contrário, seria a forma, doravante laica, de a realidade perpetrar-se? Se atentarmos ao devir histórico no qual Maquiavel e Marx se atravessaram, perceberemos que as verdades incontestes dos dois filósofos serviram muito mais ao arvoramento do poder estabelecido que ao seu solapamento. Portanto, sobrevém a pergunta: seria mais revolucionário deixar o poder dos príncipes e o poder do capital mistificados, ocultos em si mesmos, a fim de que suas ruínas pudessem lhes pegar de surpresa?

Marx dizia que o capitalismo tem o seu ponto de saturação máxima a partir do qual solapará irreversivelmente. Difícil é estabelecer esse limite e o início desse processo… Porém, Marx, ao abrir o ser do capital ao mundo, abriu-o também ao próprio capital, ou pelo menos à sua face inconsciente de si. A partir daí o monstro pode psicanalisar-se e encontrar formar de permanecer sendo. Caso o alemão não tivesse revelado o ser do capitalismo tão objetivamente, estaria o capitalismo mais vulnerável a si mesmo e, portanto, mais suscetível ao destino que o próprio Marx previu para ele?

Desde a antiguidade o homem investe na crença de que é a verdade o caminho a ser seguido por ele, e a ciência desenvolvida desde lá é o edifício absoluto dessa crença. Estaria, contudo, essa fé na verdade, fazendo o desserviço em relação àquilo promete? Se a verdade maquiavélica e a marxiana serviram muito mais ao fortalecimento e à manutenção das sórdidas realidades estabelecidas, antes ocultadas das pessoas por suas místicas abstratas, é de concluir que a fantasia com a qual o poder se reveste é o seu primeiro e maior inimigo, e não a verdade que brinca de desnudar o seu ser. Nu, o poder é ele mesmo, tem menos a perder e menos franjas suas nas quais tropeçar.

Portanto, a melhor estratégia para vencer o inimigo é muito menos conhecê-lo pormenorizadamente, pois assim o conhecedor, no ato do conhecimento, entende o ser investigado e torna-se, inadvertidamente, aquilo que conhece, aumentando-lhe o ser. Por ventura não foi assim que o poder soberano esmiuçado por Maquiavel encontrou forças para sobreviver até hoje? E não foi a ciência que o capitalismo pode ter de si próprio a sua maior mola propulsora? De que modo o povo, vítima constante do poder, poderia revolucionar a sua crítica realidade a despeito das verdades dos poder que o domina? Marx, no Manifesto comunista, disse que violenta e repentinamente, sem procurar negociar com o poder estabelecido nem entendê-lo, pois esse diálogo enfraqueceria a voz revolucionária e manteria vivo algo do inimigo.

Então, buscar conhecer o poder que nos oprime é um dos modos de ele ganhar nova vida, porquanto essa verdade é apenas o funcional deslocamento do poder do plano ininteligível e místico do real, passando pela semi-inteligibilidade manipulável da realidade, e cristalizando-se eternamente no busto de seu próprio conceito científico. Seria o poder menor se menos tematizado? Ou, caso permanecesse alienado dos despoderados, envolto nos seus próprios misticismos primordiais, sucumbiria ele mais rapidamente às suas próprias contradições? Entrementes, a verdade do poder, a exemplo das verdades maquiavélicas e marxianas que não mataram o poder de uns sobre todos, é melhor que permaneça mística, pois, reificada, acaba se tornando tijolos novos na velha muralha com a qual o poder resiste ao tempo.

Uma semínima no desacorde político

Na segunda-feira pós primeiro turno das eleições, afirmei, jocosamente, que eu estava sofrendo de “depressão pós-voto” diante do resultado das urnas. Engolindo a seco os Bolsonaros, Alckmins e Romários, dado que vontades de maiorias, portanto, legítimos; e entaladas na garganta as opções fluminenses ao governo do estado, a saber, Pezão e Crivella – O.M.G.! -, voltei-me para o único horizonte no qual residia ainda alguma possibilidade menos funesta: a disputa presidencial entre Dilma e Aécio.

Minha tendência política forçou-me, inicialmente, a ver as opções presidenciáveis através de uma lente maniqueísta, infelizmente, sendo-me uma opção boa e a outra má. Lancei-me à defesa da minha escolha, tentando fazer com que os meus interlocutores peessedebistas vissem a histórica performance oligárquica do partido pelo qual optaram e, ao mesmo tempo, dizendo-os dos benefícios trazidos à “terra brasilis” pelos doze anos de governo petista.

Porém, depois de três dias de troca de dados com os meus adversários concidadãos – que no final das contas era um embate de crenças -, comigo colocando os desfeitos peessedebistas e os feitos petistas contra aqueles que votarão no Aécio e, democraticamente, dando ouvidos aos discursos avessos ao meu, não obstante plenos de desfeitos petistas e feitos peessedebistas dignos de nota, cheguei a um empasse frustrante: não adiantava debater. Pois, nem eu nem eles, por mais dados que trocássemos, arredávamos o pé das nossas escolhas; inclusive agarrando-nos, eu e eles, cada vez mais às nossas ideias à medida que éramos confrontados com suas opostas.

Cheguei ao meu limite retórico quando um parente que teve a sua empresa, travada nos anos FHC, exitosamente expandida no governo Lula-Dilma, sendo ele, hoje, rico, sustentando o seu “Fora PT”. As minhas contrapartidas argumentativas eram-lhe combustíveis, a ponto de eu perceber que, quanto menos lhe opusesse, menos aguerrido ao “Fora PT” ele estaria. Cheguei à conclusão de que a melhor coisa a ser feita, nesse e em outros casos similares, era deixar os meus oponentes silenciosamente com suas verdades; e eu, por conseguinte, com as minhas; pois a tentativa de equilibrar tais verdades apenas as polarizava mais.

Metodicamente deprimi meu ímpeto repressor e, deixando de exprimir as minhas verdades contra às dos outros, encarnei a impossibilidade retórica de conciliar tal oposição. Ademais, a tentativa de harmonizá-los acabava por gerar um contraste cada vez mais irremediável. Portanto, hoje, o meu esforço é o de colocar as minhas convicções pessoais e as dos meus oponentes a digladiarem-se não em arena pública, mas no solipsismo do grão cidadão que eu sou. Assim, internalizando a guerra que estava travando externamente, intento diminuir tanto os radicalismos em torno das minhas convicções quanto os dos outros em função das suas.

Silenciar o alarde das minhas ideias é modo mais eficiente para visualizar a sua condizência com a realidade – melhor do que repetidas histericamente diante do espelho invertido dos interlocutores oponentes. Da mesma forma, creio ser o silêncio dos meus oponentes o melhor lugar para eles estarem a sós com as suas convicções. De fato, eles merecem ter o governo que desejam, pois, assim, não só conjecturariam acerca de suas verdades como as viveriam na carne.

Melhor do que adverte-los acerca de um novo governo do PSDB, porquanto tanto a verdade quanto a previsão do futuro me escapam definitivamente, é possibilitá-los à realidade que desejam e defendem, pois, talvez, em quatro anos poderiam concordar comigo. Inversamente, não posso deixar de assumir que eu precisaria viver os quatro anos de seguimento petista que defendo para recolocar-me diante dos meus oponentes com a propriedade à qual me aferro no presente.

Entretanto, mesmo intuindo que a melhor coisa aos peessedebistas seria viverem o seu PSDB até percebê-lo da mesma forma que eu o percebo, o silêncio é o máximo que posso oferecer-lhes. Já a voz do meu desejo, a ser politicamente expressa no meu voto, encaminha-me, inalienavelmente, a uma experiência oposta, porém, de mesmo caráter, em cuja conclusão futura reside a verdade das ideias presentemente sustentadas tanto pelos petistas quanto pelos peessedebistas.

Os dois lados dessa disputa adorariam ser os donos da verdade, por conseguinte do futuro. Por isso, impertinentemente, tentam antecipá-los retoricamente – e só retoricamente isso é possível –, já que no diálogo toda previsão cai por terra, reforçando apenas as contradições intransponíveis da realidade. Dizer que “o futuro à Deus pertence” é a forma macia de dizer que o futuro não pertence a nenhum indivíduo, nem mesmo à maioria, mas a todos – Teos.

Todavia, o futuro estará disponível não agora, no calor do debate que o antecipa ansiosa e preventivamente, mas adiante disso tudo, onde todas as crenças atuais terão se tornado verdades incontestes. O que permanece paradoxal nessa afirmação é que mesmo os fatos incontestes tornam-se as alavancas de suas próprias contestações, como exemplo do meu parente que diz “Fora” à situação que viabilizou a sua fortuna pessoal.

A política é o campo genuíno para as realidades confrontam-se contemporânea e contraditoriamente. Porém, esse ringue político só será saudável se houver um treino prévio na solitária consciência do indivíduo cidadão. Sobremaneira, é nesta esfera individual que as questões políticas precisam ser primeiramente resolvidas, pois, somente depois de entendidas as contradições do indivíduo consigo mesmo é que as demais contradições, sejam elas entre eu e você ou entra a maioria a e a minoria, é que saberemos encená-las proficuamente na arena público-política.

Os tantos mundos das frases

Há adversão para que citemos correta e oportunamente os grandes autores nos textos e discursos a fim de que sejam respeitadas as integridades das suas obras e ideias. Quanto a isso não há questão a ser discutida. Porém, A obra clássica é um livro que todo mundo admira, mas que ninguém lê (HEMINGWAY).

Do lado de lá da fronteira das nossas regras contextuais estão os trechos, as frases, e palavras, todos deles um universo em si, universalmente válidos e, principalmente, desejosos de serem relidos, reditos e relembrados, a despeito do resto do livro que as mantêm sob cabresto. Mas, Conquistar o campo está na ordem do dia! (MARX, Manifesto Comunista).

Sob um aspecto cada frase é escrava da sua obra senhora. Porém, guarda em si um momento único de soberania absoluta, qual seja, o momento em que estava se escrevendo. Pensáveis que vos criamos em vão e que não voltaríeis para Nós? Nunca raciocinais? (MAOMÉ, Alcorão) Assim, cada frase é um precioso solipsismo em cujo cerne habitam a história do seu acerto, o espectro dos seus erros e o instante inteligível essente do autor

Cada frase já escrita teve o seu momento único e substancialmente contemporâneo. Inclusive os parágrafos nos quais elas se encontram já são distanciamentos excessivos que as desfavorece – vedetes da ideia essas frases! Olhei de um lado para o outro no bar: não havia nenhuma mulher. E fiz o que só me restava fazer: peguei o copo e esvaziei todo num trago (BUKOWSKI, Crônica de um Amor Louco)

Se dermos liberdade para as frases dos autores, elas virão a todo instante, plenas de vida e querendo ser tudo aquilo que o texto pai as constrange e proíbe. Ela será a frase “da hora”, à toda hora em que for trazida à vida, inclusive nas citações mais incompetentes e/ou impertinentes. Ela tem uma significação, uma relação a algo diferente dela; é um substituto (SARTRE, A Imaginação).

Ouçamos o que as frases têm a dizer, pois nem mesmo o seu ponto final conclui o seu ser. O ser da frase é colocar-se no lugar de uma ideia, de um pensamento, indiferente ao contexto desde que nele se encaixe perfeitamente. A concepção do poeta nada mais é do que justamente aquela imagem luminosa que a natureza nos apresenta após termos lançado um olhar para o abismo (NIETZSCHE, O Nascimento da tragédia)

A sempiterna boa frase entristece-se diante da seriedade com que é tomada usualmente, pois o seu desejo é o de ser livre, ou seja, o de comunicar ao mundo muito mais do que aquilo que outrora comunicou através do escritor que a escreveu. Portanto, a diferença, que se exprime como diferença essente, consiste justamente em ser uma diferença indiferente (HEGEL, fenomenologia do Espírito). Frase é mais!

Ainda que tomássemos uma única palavra das linhas de um livro qualquer, por exemplo, hortelão (REI MARDUCK, Código de Hamurábi), quantos desvios significativos seriam possíveis a partir dela uma vez em outros contextos? Na verdade, o significado oficial de uma frase é sua face mais pobre, pois uma só. O restante do universo está na sua meta significação, ou seja, a maior parte do seu ser. Frases como estas, soltas em meio às oficinas me fazem crer que as transformações são possíveis (BALBINO, Traficando conhecimento).

Todas as frases foram erros crassos em potencial enquanto ato de escrever-se, Logo, deixar que a frase seja novamente toda a sua improbabilidade potencial, como no momento em que foi escrita, é devolvê-la o ser. Caso ela seja respeitada demais, e colocada sempre em sua propriedade original, ai que tédio!, disse ela. E onde o leão cai, juntam-se os corvos (BRADLEY, Brumas de Avalon).

Respeitemos mais às frases que às regras, pois aquelas são mais do que estas. E as frases só não são mais por causa das malditas regras! Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens (PESSOA, Alguma Prosa).

A sempiterna pertinência da esquerda

O debate em termos de esquerda e direita tornou-se abstrato para polarizar uma dialética política produtiva no nosso país. Contudo, isso não quer dizer que não existam mais. A tradicional esquerda, para figurar no cenário nacional, e intervi-lo, teve de deixar o seu radicalismo em suspensão, migrando funcionalmente em direção ao centro, ao preço de confundir-se com ele. Por isso fica difícil pensar em “esquerda” e “situação” ao mesmo tempo.

Antes de dizer que se trata de falta de caráter esquerdista, pensemos um pouco. Por acaso, há 13 anos, não era alardeado nacionalmente o fantasma de que a esquerda de Lula, quando no comando do país, daria o “calote na dívida externa”, envergonhando e comprometendo o Brasil diante do monetarismo internacional? Caso a esquerda tivesse correspondido a essa expectativa, seria a velha e tradicional esquerda que queriam fazer-nos acreditar. Porém, o que há de menos revolucionário e menos de esquerda que respeitar e suster a tradição?

Ao transcender os estigmas radicais através dos quais era vista, a esquerda petista não só tornou-se mais adequada à realidade brasileira como, surpreendentemente, foi ela que pagou, finalmente, a dívida externa! Isso sim foi revolucionário, pois o a tradição até então era de aumentá-la! O preço dessa pertinência histórica foi um desbotamento do vermelho radical da esquerda, mas não só isso, pois a abertura da esquerda petista também resolveu o problema da fome, da educação, do desemprego e da economia que, esperneiem-se em os opositores, vai muito bem obrigado em um cenário econômico internacional instável e “crísico”.

No entanto, a movimentação “à direita” que a esquerda possibilitou-se foi acompanhada por uma polarização ainda mais acentuada da direita, como se esta quisesse manter a distância de sempre em relação ao pensamento oposto ao seu. O resultado é que a direita polarizou-se à direita de si mesma a ponto de, hoje, ser confundida com o fundamentalismo religioso; evangélico, diga-se de passagem. Isso para dizer que o abismo entre direita e esquerda não desapareceu, apenas migrou, todo ele, um tanto à direita.

Há sim direita e de esquerda no nosso país: aquela governando no sentido de colocar o povo na manutenção do grande capital “oligo-nômico”, enquanto a esquerda luta para inverter o quadro, pondo o capital – sem estigmatizá-lo, e isso é revolucionário tratando-se de esquerda – a serviço do povo, que é o verdadeiro laborador dessa riqueza. Haverá esquerda e direita enquanto houver gentes com privilégios e outras gentes desprivilegiadas. Enquanto houver um Sarney ou um Maluf vivo na face desse país haverá necessidade de uma esquerda para lhe fazer frente. Caso contrário, oligarquias como as maranhense e a paulista farão, sordidamente, todas as frentes.

Outra dialética que perdeu força nos últimos doze anos foi a entre ricos e pobres, mas isso devido à migração de ambos no sentido da riqueza, visto que, hoje, os outrora pobres também viajam, entram na universidade pública, possuem “mais médicos” e compartilham das mesmas tecnologias que, antes, eram privilégios apenas dos ricos. Talvez por isso a direita tenha se polarizado tanto à sua própria direita, pois o que a constitui e sustenta é nada mais que a artificial distância que a separa dos desprivilegiados. Dessa forma, a direita ainda é a manutenção da desigualdade, pois é esta a justificadora do seu ser.

Em tempos em que direita e esquerda, e ricos e pobres, não são os melhores opostos em um diálogo profícuo, pois atual e temporariamente abstraídos – e isso devido às mudanças concretas dos velhos parâmetros -, o embate se polariza em torno de partidos políticos. É como se os extensivos conceitos de esquerda e direita tivessem de adequarem-se às estreitas fronteiras partidárias, e não mais o contrário, onde os partidos se colocavam majestosamente ou no continente da direita ou no da esquerda.

Hoje, precisamente, há o PT e PSDB, e ambos têm de dar conta de ser “toda” a esquerda e “toda” a direita, respectivamente, de uma só vez. Tarefa menos ingrata à esquerda do que à direita, por certo! Resta-nos, portanto, um devir maniqueísta no diálogo político nacional, onde os partidos devem ser ou bons ou maus; predicados que, em verdade, subsistem em cada um deles. Não é difícil listar as venturas e desventuras tanto da direita como da esquerda. Aliás, é o pacote contraditório de predicações que cada indivíduo agrega a cada uma delas que o faz “de esquerda” ou “de direita”.

Entretanto, se a direita e a esquerda são o que as pessoas pensam e fazem delas, o valor e a pertinência de cada uma residem, democraticamente, no valor defendido pela maioria. E, no caso do Brasil, a maioria não é de ricos, mas daqueles que precisam ao menos de uma fatia dessa riqueza pessimamente dividida. Sendo assim, a necessidade de quebrar o modo oligárquico de Estado é imperiosa, pois ele não existe em favor da maioria. Quanto a isso, não há direita que se adeque à realidade atual. Por conseguinte, não há caminho que não em direção à esquerda que nos afastaste da persistente desigualdade que logra a maioria.

Depressão pós-voto

Como se não bastasse o estigma de uma segunda-feira, hoje é o dia em que vários crápulas oligarcas corruptos comemoram a ignorância manipulável da plebe que os sustenta. Alckmins, Bolsonaros, Felicianos, Lasieres, e tantos outros políticos impossíveis, porém politicamente possibilitados, foram reconduzidos à manutenção de suas aristocracias à custa do vilipêndio da população.

Em três semanas essa elite escrota galgará novamente mais poder, fazendo com que o futuro do Brasil seja, novamente, o seu passado mais injusto. Já podemos visualizar a necessária taxação dos riquíssimos, a liberdade para casar e fazer família com quem quer que se ame, e o foco nas necessidades básicas do povo esfacelar-se diante do podre poder que impertinentemente é retransformado em Estado.

Eu sou um dos que se sentem deprimidos pelo real funcionamento $i$tema, um utopista frustrado por acreditar que o destino imediato do Brasil seria um tiquinho melhor do que o seu passado não menos imediato. Porém, o nosso Estado está mais uma vez alienando-se das necessidades reais do povo em cuja assistência deveria estar a centralidade nevrálgica do poder distribuído nas urnas. Ainda mais sendo esse disputado e concreto poder algo laborado por cada grão cidadão, na injusta fábrica brasileira que, entrementes, acaba capitalizado nas mãos de meia-dúzia de super-ricos oligarcas.

Não me sinto deprimido pela realidade das minhas ideias ser diversa da ideia de realidade da maioria da população, mas por ser, de carne, osso e ideias, parte desse corpo sócio-político que privilegia mais o Estado dos ricos do que o próprio estado – desprivilegiado – desse corpo. CARALHO! Eu sou o povo brasileiro, e nós seguimos, todos juntos, errando feio. O que povo brasileiro produziu ontem nas urnas, novamente, foi uma mercadoria que não será consumida por ele, mas estocada na dispensa burguesa dos riquíssimos PSDB, PMDB, PR, PSC, PRB, etc.

Não acredito que o povo brasileiro seja “kamikaze”, ou pelo menos não conscientemente, porquanto todos querem e precisam alimentar-se, estudar, ter saúde, lazer, e uma pá de coisas concretas que sobrevivem imperiosamente em cada um de nós. Todavia, nas parcas oportunidades de agir nesse sentido, a população elege aqueles que já têm em demasia aquilo de que ela, a população mesma, tanto necessita. Será que escapa totalmente ao povo brasileiro que as oligarquias estão aí somente em função delas mesmas, ou esse povo é tão escroto quanto elas, sendo o seu real desejo o de, talvez um dia, com uma sorte improvável, ser um dos oligarcas?

De uma forma ou de outra, a realidade é sintomática; sem esquecermos de que um sintoma é o erro da tentativa de acerto. Já a realidade desta segunda-feira de cinzas – na qual Alckmin, Maluf, Bolsonaro e Lasier riem da cara, e na cara do povo – é o sintoma direto da tentativa de um povo em acertar uma vida melhor para si. No entanto, o problema é que a abstração total de um erro sintomático transforma-se em perversão a fim de que esse erro gere algum gozo. A perversão converte o erro sintomático em meta principal, isto é, em regra, ainda que inconscientemente.

A partir daí o povo, pervertidamente, passa a verter fora de si a sua desejada bem-aventurança, e justamente naqueles que já a usufruem, ou seja, nas elites. Pois são os riquíssimos, reelegendo-se “ad aeternum”, permanentemente em êxito, que mantêm um horizonte de possibilidade utópico e pervertido, porém concreto, sobre o qual o povo projeta os seus anseios ainda não concretizados. O novo sintoma decorrente de tal perversão, por conseguinte, é a abstração das necessidades reais desse mesmo povo que se dá em sustento da concretude dos afortunados.

Ora, não é reinvestindo no erro que ele se converterá em acerto. Tampouco mantendo no poder aqueles que já o furtam solucionaremos a falta de poder do povo para resolver as suas necessidades. Mas sim na assunção de que os riquíssimos reeleitos são “o” erro sintomático da maioria na busca da bem-aventurança. A cura para tal perversão está mais próxima do reconhecimento de que o real desejo do povo é o de não ser paupérrimo nem esquecido pelos seus governantes do que em desejar ser privilegiado como os que já o são. Essa consciência possivelmente tiraria da monológica dianteira política nacional a corja de oligarcas que, psicopatologicamente, são a causa da depressão pós-voto de hoje.

Magna Brasília

“Polités” era o grego capaz de posicionar-se diante dos seus iguais a respeito dos assuntos da “pólis”, ou seja, da cidade-estado. A “politéia”, isto é, a política, era a arte através da qual o cidadão podia ou não, dependendo da força de persuasão do seu discurso público, fazer valer o seu ponto de vista sobre os demais. A grande revolução trazida ao mundo pela democracia grega foi a transformação do embate físico pela sobrevivência – a lei do fisicamente mais forte, lei bárbara – em disputa linguística – a lei das ideias. Doravante, os helenos digladiavam-se em arena pública, porém, através da sofisticação de artes até então somente suas, quais sejam, a política e a retórica.

Pelo caminho do discurso os gregos pressupunham-se iguais, entretanto, aqueles que melhor o trilhava, diferenciava-se e, por conseguinte, liderava os de menor extensão retórica, pelo menos até que um discurso melhor o subjugasse. Todavia, mesmo ocupando a berlinda política, o cidadão discursivamente vitorioso de forma alguma se tornava melhor do que os outros, pois tal liderança era tão temporária quanto fruto de uma “arte-ficialidade” dada, de modo algum evidenciando uma superioridade natural, apenas artificial. A “politéia”, ou a política, portanto, era o modo dos iguais permanecerem iguais, bem-aventurando-se através da sofisticação de suas novas instituições.

No último debate entre os presidenciáveis da atual eleição brasileira, realizado na telinha da Globo, os candidatos digladiavam-se ferina e tragicomicamente a ponto de estabelecerem entre si distâncias intransponíveis, como se fossem seres absolutamente distintos uns dos outros na disputa da liderança do “mundus brasilis”. Entrementes, nos intervalos comerciais do debate televisivo eram postadas nas redes sociais virtuais fotos descontraídas nas quais eles dialogavam amigavelmente, como se se tratasse de outra arena que não aquela onde eles inimizavam-se publicamente. Era paradoxal a diferença entre a cena aberta e aquela que se desenrolava nos bastidores do debate político.

De certo modo, os nossos candidatos atuais não fizeram nada diferente daqueles antigos “polités” gregos, pois, mesmo embatendo-se retórica e violentamente diante da massa, eram nada além de iguais tentando convencer os demais de suas ideias “adequadas”. Fora do ringue, sabiam-se farinha do mesmo saco, cidadãos da mesma nação, por isso as suas relações pessoais permaneciam ilesas das farpas trocadas no relacionamento político oficial – ainda que aos olhos do espectador essa relação amigável entre eles chegasse a ser ofensiva, dado que pareciam, todos eles, duas caras descaradas.

No entanto, por mais difícil que seja colocar a cena da guerra política e a da sociabilidade amigável no mesmo palco, na verdade trata-se do fundamento trazido ao mundo pela arte política, pois, mesmo donos de ideias inclusive opostas, todos os candidatos são nada além de “polités” da mesma “pólis”. Caso a inimizade retoricamente encenada no púlpito fosse levada para o chão social, aproximar-se-iam da barbárie que um dia a “politéia” deu cabo. Democracia é assim mesmo: disputar a berlinda política diferenciando-se exitosamente no púlpito, porém, fora dele, os disputantes não estão acima uns dos outros. É por isso que a democracia sobrevive através dos tempos, pois a manutenção dessa pretensa igualdade entre os poderosos mente muito bem aos despoderados que aqueles não estão acima destes.

A grande diferença entre a democracia grega e a nossa, sabendo os gregos veriam a nossa como uma aristo-oligarquia deslavada, é que aquela era direta, acontecendo somente na presença ativa e constante dos cidadãos, enquanto que a nossa é demasiada indireta e estruturalmente representativa, alienando, por conseguinte, a massa do trabalho deliberativo acerca dos seus interesses. A nossa democracia só é ao estilo grego entre os que a representam, pois somente eles expõem publicamente os seus ideais, monopolizando constantemente o futuro da “pólis”. No outro extremo, nós, os atuais representados políticos, assistimos passivamente à performance da “politéia” aristo-oligárquica de apelido democrático como as mulheres, escravos e estrangeiros da antiga Grécia, ou seja, sem direito à participação efetiva na construção do comum.

O Brasil, portanto, é um anacrônico herdeiro da melhor democracia da Magna Grécia cuja manutenção ficava exclusivamente nas mãos dos cidadãos homens e ricos. Inovação é o fato de as mulheres, hoje, serem permitidas nessa arte. Mas isso não muda o quadro aristocrático dessa forma de governo. Se não podemos reclamar de ausência de democracia no Brasil, podemos fazê-lo em relação à sobrevivência do seu aristocrático formato originário, isto é, aquele que deixa de fora do “demos” todos os que não são iguais aos ricos e poderosos. Entretanto, somente hoje podemos palpar a diferença entre a dita democracia e uma utópica “povocracia”, ousadia impensável a um escravo ou mulher grega. Há sim democracia na Magna Brasília!, sem dúvida; mas ela segue enquanto coisa de poucos, pois a massa de brasileiros, infelizmente, ainda não revolucionou-se em “demos”, por isso, até então, de fora da democracia.

A nudez da nudez

O homem não é nu. Entretanto, quando veste o animal que subsiste inquieto em sua pele – e isso maximamente no sexo – apenas está nu. O inverso disso é o animal cuja nudez natural de forma alguma faz dele algo outro, pois, de acordo com Derrida, “o próprio dos animais, e aquilo que os distingue em última instância dos homens, é estarem nus sem o saber”. Logo, algo muito próprio do homem, qual seja, a sabedoria, parece ter papel fundamental da invenção da nudez no cerne da natureza desde sempre nua. Para o homem, excluído ele mesmo, tudo mais deve estar nu, exposto em sua verdade, sendo a ciência a eficiente técnica humana para desnudar absolutamente o corpo do universo.

Adão e Eva eram nus sem o saber. Aí souberam demais. Uma vez sabedores, tinham tudo a esconder. Sintomaticamente cobriram o corpo, a única coisa que restava a ser coberta quando tudo mais estava revelado. Da mesma forma, Caim, quando matou Abel, envergonhou-se irremediavelmente, e fugiu para esconder sobremaneira seu ser assassino desnudado, porquanto, para esse fratricida, nem o linho esconderia a sua animalidade eclodida. Ainda nos mitos, a Arca de Noé foi a épica tentativa humana de vestir a natureza – e os animais – contra ela mesma, e isso para o homem contar a si mesmo a história de como ele vestiu-se contra a natureza.

Há nudez apenas no pensamento, não na natureza. E como o pensamento é algo humano, só há nudez humana. Entretanto, o que há, para nós, nessa nudez exclusiva, que demanda constante cobertura? Seria a nudez vergonhosa por natureza? “Vergonha de que?”, pergunta-nos Derrida; “Vergonha de estar nu como um animal”, responde o filósofo. A nudez do animal é seu nome, sobrenome e sobretudo o seu ser. Já para o homem, nome e o sobrenome são as primeiras vestimentas com as quais o seu ser naturalmente despido é definitivamente encoberto. Essa primeira fantasia nominal, por sua vez, é customizada a partir dos andrajos da cultura, e, uma vez em tais hábitos abstratos, as demais vestes concretas são apenas as efêmeras películas com que o homem impermeabiliza-se ainda mais contra a natureza.

Entretanto, figurinada a nossa existência natural sufoca. Precisamos, por conseguinte, expressá-la, deixá-la respirar. Para isso inventamos filosofia, arte, consumismo, e todo o resto a fim de que possamos ser sem sermos exatamente aquilo que, por natureza, somos, isto é, nus de tudo isso. O homem é o único animal que inventou uma vestimenta para esconder o seu sexo; o único que inventou a cultura para esconder de si a sua vestimenta; o único que inventou a moda para vestir sazonalmente a sua cultura. A humanidade converteu o desconforto com a sua nudez em vitimização em relação à moda, fingindo assim que se veste simplesmente por haver o que vestir, escondendo de si que a humanidade ela mesma é desde sempre nua.

Alain Badiou diz que “jamais há nudez no teatro, tampouco, mas trajes obrigatórios, a nudez sendo ela própria um traje, e dos mais vistosos”. Podemos intuir, então, através das palavras do filósofo, que o figurino do ator, bem como a veste do humano, é a roupa invertida com a qual o homem melhor se despe do imponente traje com o qual a natureza primordialmente o vestiu. Doravante, “é necessário uma psique, um espelho que [o] reflita nu dos pés a cabeça”, alerta-nos Derrida.

Os animais não estão nus porque eles são nus sem o saber, mas nós, em troca, estamos nus porque o sabemos. Diante deste saber, fazenda alguma cobre essa estranha sabedoria. Derrida condicionou a vontade de vestir-se a “um sentimento de pudor ligado ao [fato de] estar em pé”, à ser ereto. A ereção estrutural do macaco-homem evidenciou outra: a ereção do sexo do homem-macaco: a intumescência espontânea de sua natureza selvagem.

Enquanto o ventre do bicho que somos esteve voltado para o chão, os olhos e o sexo de um indivíduo não se enquadravam, ao mesmo tempo, no olhar de outro indivíduo. Porém, uma vez em pé, ambos passaram a estar disponíveis  aos olhos – e também aos sexos – dos outros. É aí que o homem e a folha-de-videira encontrou um lugar fora da natureza, tornando-se, ainda que miticamente, o objeto que comprovou a nudez da nudez.

Cidadão-em-branco

O grande motivo que está levando muitos cidadãos a votarem em branco nas próximas, e a retirarem-se da importante escolha de quem os governará, é a mui alardeada inexistência de bons candidatos à altura dos seus anseios. Basta ser brasileiro para entender esse sentimento, afinal, a maioria das opções disponíveis não são lá essas coisas. Mas quando foram? Possivelmente, a maioria povo pensa vez ou outra, diante dos candidatos atuais, em jogar tudo para o alto; ou em mandá-los para “aquele lugar”. Entretanto, noventa por cento das pessoas ultrapassam essa desilusão, recolocando-se no angusto jogo político que, com ou sem os dez-por-cento-em-branco, segue nas muitas mãos que restam.

Quando alguns se negam a validarem os seus votos, a escolha fica totalmente nas mãos do resto. É paradoxal o fato de esse resto ser nove vezes maior que a parte que o faz restar, inclusive por ser desse resto majoritário o árduo e fundamental trabalho de escolher, politicamente, o futuro comum a todos. O que os dez-por-cento-em-branco fazem – e cientes disso – é deixar o trabalho sujo e ingrato para a massa restante dos noventa-por-centro-válidos; ao molde das elites que deixam a produção concreta do país aos proletários-trabalhadores. Por ventura não é a proporção de 10/90 de cidadãos-em-branco e votantes-válidos apontado pelas atuais pesquisas pré-eleitorais a mesma entre ricos e pobres no Brasil? Portanto, quem vota em branco é muito menos revolucionário que reacionário, pois repinta no quadro político a triste realidade econômica vigente.

Por mais contrariado que esteja o eleitor, a ponto de dizer que nenhum candidato merece o seu voto, será mesmo que este sujeito é, ou está, tão acima da realidade brasileira, cuja completude só se dá, de fato, com a sua presença, mas que, entretanto, é piorada justamente pela sua ausência intencional, fruto de uma pretensa superioridade em relação à realidade política percebida? Não é difícil concordar com a afirmação de que o quadro político atual não é dos mais belos. Todavia, desertar de sua figuração é ser agente ativo de sua feiura. Ademais, é fazer do ruim algo muito pior, pois mais degradante do que meia dúzia de políticos indignos disponíveis à nossa escolha é ter vinte milhões de brasileiros indisponíveis no momento em que o país mais precisa de todos, inclusive para mudar o quadro que a muitos desagrada.

Parece infantil aquele que se recusar a votar por não estar plenamente satisfeito, ou revolucionariamente apaixonado, por um ou mais candidatos, pois é justamente em circunstâncias como esta que se deve ser adulto e presente, habitando maduramente não em um mundo ideal, mas no real, do qual não se escapa deixando de votar. É como a criança birrenta que recusa o jantar por ele não acompanhar batatas fritas. Contudo, caso os pais não cedam à sua manha, ela passará fome! Em situação análoga se encontra o cidadão-em-branco, pois, ao recusar a salada-de-candidatos servida a todos, por não haver nela suas frutas prediletas, o corpo sócio-político do qual ele faz parte também padece. Ora, há sempre a possibilidade de escolher no “menu” aquilo que não é o pior; como quando afastamos para o canto do prato os picles que não agradam.

O cidadão-em-branco que acha a política atual indigna de si, e por conta disso não participa dela, é o que há de mais indigno nessa política que, ele mesmo, tanto desqualifica. Essa política, entretanto, por insuficiente que pareça, ainda é o meio através do qual ela mesma pode ser melhorada, e isso somente pela ação de cidadãos válidos. Pois, sempre que um cidadão invalida-se, a situação política fica mais frágil, atendendo, por conseguinte, ainda a menos cidadãos. A única alienação compreensível, apesar de absolutamente e cruel e cínica, é a dos muito ricos, porquanto somente eles podem prescindir de participarem na construção de um futuro comum, pois, independente de como seja o amanhã, eles permanecerão ricos e acima da maioria mundana do país. Porém, paradoxalmente, as elites estão sempre presentes nas urnas, pois sabem que só politicamente manterão e aumentarão suas bem-aventuranças; e esse é apenas mais um motivo para o cidadão deixar de ser em-branco e passar a ser colorido e válido.

À vulgaridade, a dança.

Quem consegue parar o balé de suas próprias ideias? Quem consegue deixar a interminável “coreografia-in-process” dos seus próprios pensamentos no linóleo da existência? Percebendo que nossos pensamentos movimentam-se o tempo todo, preenchendo todo espaço disponível, temos de admitir que eles são-nos irresistíveis. Colocando aqui a afirmação de Nietzsche de que “toda vulgaridade vem da incapacidade de resistir a uma solicitação”, temos de assumir que, diante do que pensamos, somos absolutamente vulgares.

Pensamos! Não conseguimos deixar de fazê-lo, inclusive quando desejamos não pensar. A “cabeça vazia”, meta da cabeça atribulada, é impossível porquanto o vazio não é, e nunca será, um atributo do pensamento. Alain Badiou adverte-nos de que “o vazio é o ser do lugar”, não o nosso. Portanto, nós só podemos “estar” nos lugares, nunca “sê-los”. Uma vez em algum lugar, somos e pensamos, isto é, acontecemos. Se realmente “o acontecimento revela o vazio da situação”, como disse Badiou, no sentido contrário desse movimento, o vazio prova o acontecimento vulgar que somos, pois não resistimos diante do vazio sem vulgarmente preenchê-lo com nossas ideias.

Logo, se no pensamento somos incontornavelmente vulgares, é no espaço que essa vulgaridade posteriormente se apresenta; sendo a criatividade o seu polo positivo, e a inapropriação, o negativo. Destarte, quem melhor que o bailarino para resistir, no espaço, à expressão da vulgaridade constitutiva do pensamento? “Coreografando” a afirmação nietzscheana acerca da vulgaridade, Badiou diz que “a dança é o movimento do corpo subtraído de qualquer vulgaridade”. O que o filósofo quer dizer é que somente o bailarino pode resistir incólume ao caótico turbilhão cognitivo interior no exterior espaço vazio – se assim desejar -; pois, para ele, “a dança é o pensamento como refinamento”.

“A dança é a única das artes que é obrigada ao espaço”, completa Badiou, pois “a partir do momento que há texto [ou pensamento], a exigência é do tempo, e não do espaço”. Mallarmé corrobora com essa afirmação dizendo que “a dança é o poema liberto de todo o aparato de escriba”. Então, só a dança liberta o homem do pensamento, portanto da vulgaridade, e isso fica claro nas palavras de Badiou: “a dançarina é o esquecimento milagroso de todo seu saber [inclusive do] de dançarina”. Logo, somente o mestre do movimento, isto é, o maestro do espaço, no disciplinar esquecimento dessa maestria, é que pode resistir, se assim desejar, à temporalidade vulgar de seus próprios pensamentos no “lugar-espaço” aonde estes pensamentos lhe ocorrem.

“Existe, portanto, na dança, algo de antes do tempo, de pré-temporal. E esse elemento pré-temporal será representado no espaço”, propõe-nos Badiou. Ora, o que há de mais temporal – e contemporâneo – que o próprio pensamento, dado que a discussão acerca do tempo é tão antiga quanto o pensamento, a ponto de confundir-se com ele? Sendo o tempo o pensamento em movimento, a dança, enquanto pré-temporalidade, “suspende o tempo no espaço“, conclui Badiou. Por conseguinte, na suspensão do tempo que a dança retraz ao mundo, o pensamento é igualmente suspenso e elevado a um espaço esvaziado da sua cotidianidade vulgar.

Diante da bailarina não sabemos mais o que o tempo fará no espaço! A coreografia do balé rouba-nos aqueles pensamentos que pensam já saber o que um corpo pode fazer no espaço e num determinado tempo. Logo, “se alguém assiste à dança, é inevitavelmente seu ‘voyeur”, aponta-nos Badiou; pois, diante dela, estamos tão distantes da realidade ordinária, tão afastados da vulgaridade das conclusões, que o pensamento não serve mais a si mesmo. Doravante, melhor ao pensamento é suspender-se e servir “voyeristicamente” à suspensão temporal dançada no espaço criado e desvirginado, simultaneamente, pela dança e pelo bailarino.

Se, como fala o filósofo, a dança é o modo de resistir a toda a vulgaridade, é por que ela controla, exitosa e belamente, o acesso de tudo o que é humano ao espaço ocupado por ele. Só ela é no vazio, enquanto nós só somos em meio à contemporânea população dos nossos pensamentos. A dança é o vazio plenamente ocupado sem com isso deixar de ser vazio. “O cenário é do teatro, e não da dança. A dança é o sítio tal qual, sem ornamentos figurativos. Exige o espaço, o espaçamento, nada além disso”, reitera-nos Badiou.

A dança dos nossos pensamentos mostra-nos que não sabemos dançar, e isso no tempo do baile da vida. Erramos a coreografia da existência por não resistirmos a ela, e aí somos vulgares! Já o bailarino, o proprietário absoluto do espaço, dispõe do tempo ao seu bel-prazer e, dominando-o, domina também os seus pensamentos, roubando-lhes o palco ideal, qual seja, o tempo. No corpo que dança, o tempo é escravo do espaço, e o espaço, escravo do corpo; e isso devido à vontade e à capacidade do corpo em resistir às solicitações – inclusive as da gravidade. Nós, os não-dançantes, temos a vontade cativa do tempo e do pensamento, vulgares como só nós! Só estaremos libertos de tal vulgaridade conquanto aprendamos com Nietzsche algo que o bailarino já sabe, “que a vontade deve aprender é a ser lenta”.