Linchamento em planta-baixa

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De repente, ouço uma gritaria vinda da av. Nossa Senhora de Copacabana. Vou à minha janela, do décimo segundo andar, para ver o que se passava. Lá embaixo, cerca de dez homens corriam atrás de um garoto sem camisa e descalço, que ziguezagueava entre os carros de um congestionamento.

Nas calçadas, a massa que antes caminhava, somada a que estava dentro de bares e lojas, alinhavam-se junto aos meios-fio, como se estivessem em um camarote. Também devidamente camarotados, eu e dezenas de pessoas nas janelas dos prédios ao redor.

O burburinho, que a princípio não dizia nada claramente, na verdade, era uma centena ou mais de descompassados gritos de “pega ladrão”. Ao mesmo tempo, outras frases eram ouvidas: “arrebenta com ele”; “tem que matar”; “mostra para ele o que ladrão merece”, e por aí vai. Eu não era o único calado nesse Coliseu contemporâneo urbano, mas nós que apenas observávamos éramos certamente minoria.

Então o garoto leva um soco na nuca de um dos que corria atrás dele, e cai, literalmente, na sarjeta da Nossa Senhora. Os gritos de “pega ladrão” perdem lugar para os de “arrebenta”. Não só os cerca de dez homens que perseguiam o garoto começaram a chutá-lo, como receberam reforço de transeuntes/espectadores. Acho que, no final das contas, devia ter quase trinta pessoas em torno do garoto.

Da vista da rua nem devia mais ser possível enxergá-lo. Como, porém, eu estava doze andares acima do espontâneo linchamento, ainda podia ver, em planta-baixa, o corpo magrelo descamisado, encolhido qual feto, protegendo-se do útero violento que o envolvia. E os gritos não paravam. Nem os de ódio, da massa, nem tampouco os de dor, do garoto.

Preocupado com a vida do linchado, foi inevitável lembrar de Foucault, em “Vigiar e Punir”, dizendo que, antigamente, havia uma intensidade de suplício para cada delito, sendo o pior de todos aquele imputado contra o crime de regicídio, ou seja, o assassinato de um rei. Isso serviu para confirmar que a punição que o garoto estava recebendo já estaria sendo excessiva até mesmo para os padrões de mil anos atrás. Seja lá o que o garoto tivesse roubado, o suplício público extenuante que sofria, com certeza, é infinitamente mais criminoso.

Sem pestanejar, eu gritei para pararem; para chamarem a polícia… Então, alguns dos gritos de ódio contra o moleque, tanto os da rua, quanto os das janelas à minha frente, voltaram-se contra mim. Se eu estivesse lá, no nível da rua, certamente não seria somente ofensas verbais que eu receberia por criticar a excessividade da agressão.

Experiência triplamente traumática. Em primeiro lugar, em função da desmedida da agressão contra garoto. Em segundo lugar, por conta da impessoalidade do foco desse ódio, conduzido facilmente a quem quer que fosse contra ele. E, em terceiro lugar, por causa do fascismo explosivo dos meus vizinhos de bairro. Copacabana, a Princesinha do Mar, de uma hora para outra, forma uma turba de linchadores orquestrada por um coro odiento.

Afastei-me da janela para pararem de me ofender. Não mais via o bolo de linchadores em torno do garoto, só os ouvia. O que eu pude observar, no entanto, logo ali, do outro lado da rua, eram quatro soldados do exército – que agora fazem a segurança civil da cidade, devidamente armados com suas metralhadoras -, parados, olhado tudo aquilo acontecer, sem nada fazerem além de balançarem afirmativamente suas cabeças em reposta aos comentários da plateia insana que os cercava.

A polícia não mais funciona na cidade. Por isso os militares vieram fazer o serviço deles. No entanto, estes também nada fizeram além de fingir que estão fazendo o serviço da polícia que nada faz. O que ambos deveria estrar fazendo? Oferecendo segurança aos cidadãos. Mas, pelo jeito, o garoto não cai nessa gentrificada categoria chamada “cidadão”.

No vácuo da segurança pública carioca, são os cidadãos, sem treinamento nem escrúpulo algum, do jeito que podem e movidos por afetos barbarescos, que se arrogam o dever de fazer o trabalho que a polícia e o exército deveriam estar fazendo juntos. Justiça com as próprias mãos, ou, para ser literal, com os próprios pés. Que Leviatã que nada. No caos tupiniquim, é a guerra de todos contra todos.

Se a civilização é um projeto, e aquilo que eu estava vendo doze andares acima era uma planta-baixa desse “working process”, a conclusão, infelizmente nada surpreendente, é que aquelas pessoas, plenas de ódio e de falta de compreensão, não estão construindo outra coisa além da ruína da nossa sociedade. Na verdade, trata-se de um projeto público de demolição.

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