O perverso amor ao amor

Quem diz “eu amo a Filosofia” é vítima de uma perversão inadvertida que aliena algures o que deveria estar no centro desse amor. Atentando ao significado da palavra “filosofia”, isto é, “amor à sabedoria”, percebe-se a distância em relação à sabedoria em que se coloca aquele que ama não a sabedoria, mas o amor a ela. Se amar a filosofia, isto é, amar o amor à sabedoria, é uma perversão, o é enquanto amor sem foco objetivo – ou objetivamente sem foco! -, obra de uma subjetividade que sustenta amor a algo outro que não aquilo que ama de fato. O amor à filosofia, e não à sabedoria ela mesma, deixa órfã a sabedoria justamente pela interposição e pela celebração de uma afeição que deveria focar na sabedoria, não auto-focar a si mesma.

Pensemos no amor que temos por determinadas pessoas. Este é para elas e por causa delas, mesmo que desconhecidas as suas razões. A maior declaração de amor é espinozista: “há uma grande alegria em mim; e a causa da minha alegria é a ideia de que você existe”. Entretanto, a partir do momento que passamos a amar o amor às coisas, e não a elas mesmas, sacamos o amado da meta do nosso mais nobre sentimento, substituindo-o por nós mesmos. Temos aí um amor ligado não ao amado, mas voltado a si próprio; amor narcísico que ama a si mesmo através de um sentimento que deveria apontar para fora, para outrem. “Narciso acha feio o que não é espelho” não por amor ao espelho – esse amor seria mais fetichista que pervertido -, mas por amor a si.

Uma vez vítima desse amor, Narciso perde tudo: o mundo, o espelho e a si. Doravante, há somente a pervertida relação de amor entre uma subjetividade alienada do mundo e um objeto espectral, tão esvaziado de humanidade quando de merecimento de tão nobre sentimento. Contudo, aquilo que demanda amor, assim o faz por nunca ter sido amado e por sequer merecer esse amor, pois se o fosse, ou se o merecesse, não o demandaria. Tudo o que solicita nosso amor não é digno desse sentimento porquanto o amor verdadeiro é um assalto, um “sequestro-relâmpago” que nos mantém cativos precisamente daquilo que nos cativa prazerosa e subversivamente. O amor é uma afronta incontornável, sorrateira e gratuita, e qualquer esforço no sentido de cultivá-lo já é um desrespeito a tudo o que é digno de amor.

O que o amor à Filosofia – esse amor que ama o amor à sabedoria e não a sabedoria em si – ama verdadeiramente, ou é a ignorância, dado que não tem a sabedoria como o objeto último desse amor, ou a si mesmo, visto que amar o amor que se tem por alguma coisa é amar ao próprio sentimento, portanto a si. Logo, se algo precisa fantasiar-se de sabedoria para sustentar um amor, sabedoria não é; caso fosse, poderia apresentar-se nu. O objeto de amor que se mimetiza de sabedoria só pode ser a ignorância, pois qual disfarce seria melhor? Veste-se a ignorância com sabedoria pois, por um lado, a ignorância e aviltante, e por outro, a sabedoria, muitas vezes, é insuportável. Quantas vezes desejamos não saber de algo?

O famoso “Só sei que nada sei” socrático foi a postura “sui generis” que preservou a integridade da sabedoria justamente por aliená-la absolutamente de si, fazendo dela qualquer coisa que não o próprio Sócrates; não obstante condenando o filósofo à morte. Talvez por insistir que não sabia do que se tratava aquilo para que o saber se volta é que Sócrates tenha amado verdadeiramente a sabedoria, pois uma vez clarificada essa ímpia questão, não haveria mais a necessidade de amor, apenas de deliberação. O simples filosofar, portanto, é o mais sustentável modo de relacionar-se com a sabedoria porque exclui terceiros dessa relação, restando de um lado a ignorância confessa, o amante, e de outro a sabedoria absoluta, o objeto inalcançável desse amor.

Amar a Filosofia, ou seja, amar o amor à sabedoria é, portanto, colocar um amado intruso no meio da relação mais genuína que se pode ter com a verdade. Com a sabedoria há que se ter uma relação de fidelidade e sinceridade absolutas, dado que qualquer mentira recai sempre no lado mais fraco – no humano -, não no da verdade que é incorruptível. Portanto, amar a sabedoria é amá-la diretamente, com o peito aberto e com o amor de Espinoza: “o amor é uma alegria que a ideia de sua causa acompanha”. E esta causa pode muito bem ser a clássica aristotélica, ou seja, a causa que sempre contém em si o seu meio e seu fim.

Amar o amor, e não a alguma coisa é manter-se eternamente em um “Como eu seria feliz se…” sem que nada mais acompanhasse esse desejo. Woody Allen transcendeu essa indefinição dizendo “Como eu seria feliz se fosse feliz!” Perfeito! Em relação ao perverso amor ao amor – à sabedoria – Allen diria: como eu seria sábio se fosse sábio! Todavia, essa frase só pode ser dita por quem não é sábio, pois quem já o é não precisa de sabedoria para ser feliz, tem-na em fruição presente. Quando Aristóteles disse que “Amar é regozijar-se” falava de um “regozijar-se com”, não de um auto-regozijo narcísico, pois este não tem outro objeto de adoração que não ele próprio; e é perverso por mentir-se que esse objeto é outro.

Sempre que amamos a sabedoria é por que ela nos falta, no melhor estilo platônico, pois quando dizemos “eu te amo” o subtexto real é “você me falta, portanto te quero”. Os espanhóis tem uma relação mais direta com o amor – por isso considerados tão dramáticos -, pois, em vez de dizerem um “eu te amo” tendenciosamente abstrato, encarnam plenamente a falta que sentem dizendo: “Te quiero!” Em espanhol não se deixa de saber de onde vem a falta, por conseguinte, o que é que falta. Se amar a sabedoria é assumir que ela nos falta, amar o amor a ela é o modo perverso de escapar dessa angusta carência: mantém-se externamente a validade do objeto desejado sem com isso esse objeto ser o fim verdadeiro dos princípios internos.

Portanto, não amemos à Filosofia. Apenas filosofemos! Já há amor suficiente na simples relação com a sabedoria que nos falta, e Platão não nos deixa esquecer de que essa falta já é a maior declaração de amor. Em relação à sabedoria, ela reside sempre além do desejo que a deseja e nunca é ultrapassada por ele. Sendo assim, nunca seremos sábios, nunca donos da sabedoria, mas sempre amantes seus – saudáveis amantes nunca donos do amado. Quem ama o amor, por conseguinte, não se relaciona com os objetos amáveis, apenas consigo mesmo, pervertendo e aniquilando inadvertidamente tanto a falta quanto aquilo que falta. Quem permanece fiel a um amor perverso está fadado a permanecer sem qualquer objeto real para amar e, infelizmente, sem receber amor algum de volta.

O meu destino é “substar”

A única forma de estar no mundo é através das coisas que o compõe. Sendo assim, sou homem, cenógrafo, filosofando, filho, amigo, e toda a sorte de coisas sem as quais minha estância não é conscientemente concebida – seja por mim, seja pelos outros. Entretanto, há algo antes disso tudo sobre o que estas predicações são acrescidas; mas em essência eu não sou nenhuma delas. O “eu” que insiste em existir através das qualidades ele que atrai para si existe a despeito de quaisquer qualidades, visto que, retirando-se algumas delas, ou todas, esse “eu” não desaparece. O que resta desse “eu” na ausência dos substantivos e ideias que me representam no mundo é a substância desse “eu”.

A substância, de acordo com Aristóteles, é o que não é predicado de nada; ao contrário, é aquilo de recebe as demais predicações, qual seja, o que permanece na ausência de suas muitas qualidades acessórias. Esse ser livre do desnecessário é a substância – o real que se sustém desde antes do excesso qualitativo a ele acrescido. Por conseguinte, como o real é aquilo que escapa e resiste a qualquer abordagem, a substância real é aquela que se esconde terminantemente por trás das coisas-qualidades que sempre mentem a seu respeito.

Em Descartes a substância deixa de ser aquele substrato aristotélico cabide das predicações alienadamente sobrepostas a ela para ser o puro subsistir da sua essência. Para esse filósofo, dizer “a substância da cadeira” ou é uma contradição ou é uma tremenda redundância. Contraditório por que a cadeira que necessita de uma substância vindoura não é nem cadeira nem substância alguma, pois o essencial já lhe falta. Visto que é a substância que atraí para si as predicações, e que essas predicações são tudo menos a substância, a redundância mencionada evidencia-se no fato de algo necessitar, para ser, daquilo que ele já é.

Sendo assim, enquanto estivermos dizendo algo de uma substância, não estamos dizendo dela, porquanto o que nos aliena da substância é precisamente qualquer coisa que possa ser dita a seu respeito ou colocada em seu lugar. Quando digo “eu sou cenógrafo e moro no Rio de Janeiro”, por exemplo, não digo da essência desse “eu”, apenas de qualidades acidentais cujas ausências não eliminariam sobremaneira esse “eu” que as sustém acidentalmente. Indo ao extremo, mesmo que dissesse “eu sou vivo”, não estaria falando da essência desse “eu”, pois não é por ser vivo que sou “eu”. Algo do “eu”, na morte, permanece substancial.

O “eu” pode ser consciente de tudo menos da sua própria substância, visto que a consciência é apenas a forma com a qual a essência do “eu” toma consciência não dela mesma, mas de todo o resto, isto é, do mundo. O destino do “eu” é projetar-se na tela impredicável do real em vias de angariar as predicações que constitutivamente devem lhe faltar. Por conseguinte, o “eu” mais substancial nunca está no mundo. Nele, apenas sub-está; impredicável e persistente; aventurando-se no universo das qualidades ainda que, ele mesmo, deva ser a ausência delas.

De que modo o “eu” poderia dizer de sua essência substancial sem se utilizar das coisas do mundo, ou seja, sem usar predicações tais como profissão, características físicas, ou estados efêmeros como bengala? Descartes, através do “Penso, logo existo”, conseguiu isso. Porém, rapidamente concluiu que qualquer conteúdo desse pensamento-substância já não era mais a sua substância essencial. Descartes, portanto, era o seu pensamento, e somente enquanto pensamento de nada; pois, uma vez pensando em algo do mundo, essa substância não era mais ela mesma, mas algo híbrido e transubstancial.

Acercando a substância numa dialética metafísica poderíamos sintetizar o “eu” substancial como o efêmero silêncio intervalar entre os impertinentes e insustentáveis gritos de protesto do não-ser contra o confortável, intransigente e arraigado discurso do ser. Isso porque o “eu” não consegue permanecer aquém do mundo das qualidades determinadas, isto é, não consegue ser senão as coisas do mundo. Também é impossível ao “eu” enxergar-se enquanto o seu mínimo, ou seja, como o que subsiste, sem erro, na total ausência de definição. Essa substância que é o “eu” não consegue ser-estar na sua essencial ausência de predicação sem com isso pensar que não-é. Entretanto, uma vez predicando-se, seu destino é perceber estes predicados como alheios a si, pois desde sempre alhures.

Por mais que o “eu” deseje ser e estar no mundo, e que isso só se dê vestindo qualidades e definições mundanas, o “eu” é essencialmente aquilo de incólume que resta quando despido do mundo todo. Somente quando o mundo está absolutamente ausente é que o “eu” alcança sua condição substancial e reencontra sua essência. Portanto, a ausência absoluta do mundo oportuniza um estranho espaço entre a ausência total de qualidade e a qualificação inconteste onde o “eu” pode estar. Entrementes, uma localização já é predicação excessiva para uma substância. Logo, o único predicado pertinente a uma substância incorre em irredutível redundância. Da mesma forma, o “eu” só é ele mesmo quando nada além desse “eu”. Seu destino é “substar”.

A jocosidade do Absoluto

A primeira frase da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel, livro considerado por muitos como o mais difícil da história da filosofia, fala da busca da filosofia pelo Absoluto, ou seja, pela verdade. Sendo assim, nas palavras do filósofo, “o conhecimento efetivo do que é, em verdade, […] necessita primeiro pôr-se de acordo sobre o conhecer”. Doravante, Hegel afirma ser oconhecer ou “um instrumento com que se domina o Absoluto, ou um meio através do qual o Absoluto é contemplado”. Desta afirmação duas posições podem ser evidenciadas, quais sejam: uma ativa, na qual o conhecimento é uma ferramenta de dominação do Todo, e uma passiva, aonde o conhecer se coloca como plateia diante do espetáculo da verdade.

Porém, em se tratando de tamanho Ser, o Absoluto pode ainda relacionar-se com o conhecer – portanto conosco que o desejamos por conhecido – de uma terceira forma na qual se é mais passivo que na sua simples contemplação. A premissa aqui é a de que o ‘conhecer’ investigado por Hegel é, na verdade, o modo através do qual o Absoluto jocosamente contempla suas próprias particularidades. Hegel não considerou esta possibilidade porque, ele mesmo, afirmou tê-lo alcançado, dizendo inclusive que o Absoluto era ele, provocando a humanidade curiosa ao alegar que ele era o fim da História. No entanto, afora o próprio Hegel, seguimos na imperiosa empresa do conhecimento, pois o Absoluto resiste sempre à dominação e contemplação plena.

Psicanaliticamente, o Absoluto traduz-se em “real”, ou seja, naquilo que escapa – e que sempre escapará – das apreensões que dele intentamos. Então, se o Absoluto-real está sempre além do conhecer que o enfrenta, é ele o senhor dessa relação. Logo, tanto a dominação e a contemplação do Absoluto, disponíveis ao conhecer hegeliano, mostram-se incapazes de cumprir com o que prometem, visto que não é o escravo que domina o senhor, mas o contrário; e quando o dominado contempla o dominador, contempla só a face senhorial que se dá à contemplação, não ela toda. Dessa forma a integridade do Absoluto é restaurada diante da contingência da parte que impertinentemente pretende conhecer o Todo do qual faz parte ela mesma.

A discussão entre parte e Todo é sempre presente em Hegel, e para ele a parte pode fazer às vezes do todo através do conhecimento que ela, laboriosamente, pode ter do Todo ao qual pertence. Entretanto, uma contradição decorre desta postura, pois a parte já é o Todo enquanto inconsciência de si mesmo. Conscientizando-se de sua particularidade, e aventurando-se no conhecimento daquilo que resta que não ela, ou seja, o Todo mesmo ela, a parte corrompe o todo, e a partir dai não há mais Todo a ser conhecido. De modo que a parte só pode saber o que é o Todo não particularizando-se e não desejando conhecê-lo, isto é, sendo conscientemente parte desse Todo inconsciente do qual ela faz parte. Uma vez desgarrada, a particularidade corrompe não só o Absoluto como também a possibilidade de conhecê-lo.

Descartes, na sua solipsista busca pela verdade inquestionável dentro da possibilidade de erro que persiste na, e constitui a complexidade do real, foi reduzindo esse real à medida que ele se mostrava incognoscível. Restou somente sua particular existência e o vazio pensamento que a comprovava. No ataque à verdade absoluta restou a solitária parte cartesiana que, alheia ao Todo, sequer pôde predicar-se com algo do Todo alienado. Um dos erros de Descartes foi ter permanecido, ele e o seu pensamento, fora da verdade absoluta que pretendia conhecer, pois, assim, havia duas verdades, o “eu” pensante e o Todo a ser pensado. Portanto, foi essa cisão insistente entre a parte e o todo – imposta pela parte – que afastou o Absoluto de sua verdadeira completude. Doravante o filósofo precisou de Deus para coser a tessitura partida do seu real colocado em questão.

Dois mil e duzentos anos antes de Descartes, Anaximandro de Mileto havia empreendido uma aventura mais profícua na apreensão do Absoluto instituindo um “lugar-não-lugar” aonde o Absoluto poderia ser sem ser particularizado, chamando-o de ápeiron. Lá, o Todo era a atualização indeterminada de si mesmo, ou seja, a soma indecifrável aos humanos de todas as suas predicações; o que, no final das contas, era a indeterminação absoluta, tal qual o Absoluto é quando não há partes suas questionando-o. Para Anaximandro, o ser absoluto, isto é, a verdade universal, só era nestas condições, e inclusive a presença simples do seu pensamento – predicativo, inescapavelmente -, solaparia o ápeiron. Por conseguinte, a metódica presença cartesiana mínima ainda é excessiva diante da diva do real.

Retornando à jocosidade com a qual o real-absoluto nos contempla enquanto pretensos conhecedores seus, e que decorreu da impossibilidade da dominação ou da contemplação plena do Absoluto – os caminhos possíveis para Hegel -, visto que a parte nunca pode dominar o todo, nem contemplá-lo absolutamente enquanto estiver à parte dele, o absoluto-real só é enquanto permanecer ele todo, sempre o senhor de todas as partes escravas. Cabe a ele relacionar-se com o conhecimento de si próprio, inclusive negando-se em se deixar conhecer. Aquilo que dele nos escapa à predicação não são partes suas, mas espelhos seus colocados diante delas para que se reconheçam em suas contingentes particularidades. A jocosidade do Absoluto reside numa questão que ele bem poderia colocar-nos: queres tu conhecer-me e para isso me abandonas? Tá bom!

A verdade encontra no homem, e na empresa cognoscente que ele é, a sua própria impossibilidade, pois o desejo de conhecer é o mesmo que precisa do desconhecido para ser, ou seja, o desejo da verdade precisa da ausência dela. Tomemos outro animal qualquer que, diante de um predador, não procura saber se é verdade ou não que será devorado. É verdade, absolutamente! Caso ele se coloque na busca dessa verdade, tentando conhecê-la, a resposta não será mais necessária. Da mesma forma, quando o cãozinho de estimação enxerga seu dono com a coleira na mão, é verdade que ele vai passear. Não delibera acerca disso, afinal esse é o Absoluto naquele, ou daquele momento. Se o dono estiver de jocosidade, e não levá-lo à rua, não há outra verdade a conhecer além dessa nova forma através da qual o Absoluto é dado.

Os demais animais encarnam o Absoluto por nunca questioná-lo, e embora compartilhando conosco o desejo de conhecer, isto é, a curiosidade, eles vivem o conhecimento que já são, isto é, conhecem o Absoluto na harmoniosa permanência dentro dele; por isso o real não se lhes esconde. Já nós, humanos, na busca de conhecermos o desconhecido, desejamos não a verdade, mas a sua ausência, e esse vazio parece ser o histérico motor da nossa existência dentro do Todo. Portanto, a pretensão humana de conhecer o Absoluto – embora sejam as suas partes os objetos desse desejo – figura-se a esse Todo como a impertinência mais patética da Natureza, digna da jocosidade com a qual o Absoluto nos entretém, a mesma como que brincamos com nossos animaizinhos de estimação.

O nosso conhecer deseja a verdade, a verdade que falta. Todavia, a verdade absoluta já é antes mesmo – e somente enquanto – a assunção de sua inquestionabilidade. De que modo o Absoluto seria ele mesmo se questionado de dentro por alguma parte sua? Se ainda falta alguma verdade acerca de si, havendo a necessidade de que ela seja conhecida, a fim de que ele enfim seja, já não é mais o Absoluto, mas algo menor e corrompido. No entanto, o Absoluto, ou o real, não é diminuído, nunca. Antes, segue como o senhor absoluto, brincando de esconde-esconde – ou de conhece-conhece – com suas impertinentes partes humanas. De modo que o questionamento e a particularização do Absoluto são apenas brincadeiras suas, encenadas pelas suas partes desejosas de predicação, no “playground” de Anaximandro. Portanto, assim como uma criança somente é ela mesma nas suas fantasiosas brincadeiras, é só no ápeiron que o Absoluto é Todo, sempre, sem restar dúvida alguma acerca de si a ser esclarecida – e isso a despeito da seriedade com a qual os homens buscam suas verdades.

Preconceito contra o preconceito

Nossa época “politicamente correta” gera uma histeria sistêmica cuja retroalimentação converte, inadvertidamente, inclusive o complementar lado bom das coisas no seu oposto a fim de que a mania de correção não se deprima diante da complexidade contraditória dos fatos. (Quase) todos nós somos contra o preconceito, e cada vez mais induzidos a sê-lo, dado que seu lado pernicioso permanece desumano e digno de desprezo. Entretanto, é importante separar o joio do trigo para que essa arroba inteira não seja jogada fora. Em relação ao preconceito, da mesma forma ele se compõe de opostos, e não são os dois inescusáveis.

Mesmo sendo contra certos preconceitos – e inclusive sendo vítima de alguns -, percebo que tenho os meus; alguns deles a serem corrigidos e outros que merecem lugar no mundo. Digo isso porque muitas vezes sou preconceituoso em relação aos gays, por exemplo, pois, mesmo antes de conhecê-los, acredito que eles são divertidos, não preconceituosos, inteligentes e sagazmente conectados com o mundo – o que me parece bastante interessante. Outras tantas, preconceituo as mulheres como seres de muita sensibilidade e donas de um altruísmo maior que o dos homens, assim como creio serem os artistas seres iluminados e cheios de graça. Isso se enquadra como preconceito, pois muitas vezes, depois de conhecê-los melhor, descubro que errei no julgamento prévio.

Entretanto, é só a partir desse tipo de preconceito que pressupõe o desconhecido como bom ou interessante que visualiza-se o lado positivo e humano da preconcepção humana. Há preconceitos ruins, por certo. Entretanto, há os bons e louváveis, e são estes os injustiçados pela histeria cega do “politicamente correto”. Logo, não há problema em manter, e inclusive louvar, aqueles que, a despeito das decepções que podem provocar, valorizam positivamente o desconhecido. Quando alguém é positivamente preconceituoso, ou seja, quando acha que tal e tal pessoa é boa mesmo antes de comprovar essa crença, uma expressão positiva da humanidade ganha lugar no mundo, embora de caráter idealista.

Somente algo que permanece graciosamente aberto no ser humano pode dispensar a empiria que procura refutar aquilo que ainda não se mostrou indigno de apreço. Inversamente, é o lado mais fechado e dogmático das pessoas que lega à experiência a legitimação absoluta das certezas em relação aos outros. Ao dizermos que todo preconceito é ruim, instituímos, colateralmente, que só há joio na saca híbrida das nossas percepções acerca do mundo. Desse modo, somos vítimas de um preconceito pervertido, muito mais pernicioso, que rouba de antemão daquilo que é bom a pressuposição de sua bondade. Assim, o bom só passa a ser bom depois de provar o contrário, e desse modo, ainda que temporariamente, o positivo ideal é tratado como negativo potencial – o que acaba por espraiar negatividade no real.

São os conceitos – as aparências da irrefutabilidade das nossas crenças – que matizam negativamente o preconceito, pois diante daquele não há necessidade alguma de suas preconcepções. Entretanto, como se chega a ele? Porventura não é somente através dos preconceitos que o antecedem? Visto que não há um Deus “downloadando-nos” conceitos fechados a fim de que não tomemos as pessoas e as coisas pelo que elas não são, o caminho que leva ao conceito começa inescapavelmente na distância em relação a ele. Todavia, mesmo os conceitos estabelecidos podem carregar imprecisões injustas em relação à realidade. Hegel refutaria esta afirmação, pois, segundo ele, o conceito é a verdade absoluta que resta da trilhagem sobre todos os erros que o antecedem ao modo de distanciá-lo. Para este filósofo, o conceito só é quando universal – e o universo nunca está errado, só nós somos dignos dessa caída façanha.

Já os nossos conceitos mundanos, aqueles que, uma vez estabelecidos dispensam e desqualificam presunçosamente os seus “pré’s”, são, contudo, nada além de refúgios artificiais, tão frágeis e passíveis de refutação quanto qualquer preconceito. Se a decepção é um dos horizontes possíveis do preconceito, a tristeza o é do conceito, porquanto nossas maiores mágoas advêm da inacreditável quebra da verdade das nossas mais fortes certezas, ou seja, do solapamento dos nossos mais arraigados conceitos a partir dos quais nos relacionamos seguramente com as pessoas e com as coisas. Neste patamar, conceito e preconceito são um mesmo ser, diferenciando-se um do outro apenas pelo que decorre do seu devir.

Portanto, o preconceito contra o preconceito é um sobre-preconceito, e este sim é extremamente desumano, pois não contempla o polo positivo fundamental a todo negativo. Aqui, a única cruzada legitimamente boa, humana e válida – a despeito da aversão “politicamente correta” que nossos dias atribui indiscriminadamente a toda forma de preconceito – é aquela que vai contra o mau preconceito. Só o mau preconceito é condenável, e não devido ao seu teor preconceituoso, mas por não se assumir como preconceito e sim como um conceito em si; coisa que ele não é, pois sempre pode estar errado.

O bom preconceito é bom pois é a assunção declarada da antevisão não acabada daquilo que ainda não se deu plenamente à visão; é bom porquanto o “desejar” de que as coisas sejam de determinado modo, essência humana inalienável, mola do mundo. O preconceito positivo, por idealista e insustentável que possa parecer depois de decepcionado, ainda é um baluarte do bem no solo do real. Já o negativo, aquele que só legitima a realidade depois de sua comprovação empírica, é a semeadura da miséria humana para aquém dela mesma, ou seja, a maior das injustiças. Logo, o preconceito é bom quando assumido, pois é uma autodeclararão de sua distância em relação à realidade; e mau quando disfarçado de conceito, pois aí pretende-se como verdade universal. Não obstante, cada um deles é um dos lados da mesma moeda com a qual a incerteza humana paga o preço da verdade.

Filoanálise & Psicosofia

A filosofia e a psicanálise, juntas, contam uma história demasiado humana que se inicia na curiosidade inútil acerca do macrocosmos e que finda em um micro, em cujo interior cabe nada além de um imperioso “eu”; ironicamente o mesmo que lançou aquelas macro questões filosóficas primordiais. O drama contado é trágico porque mostra o homem observador do universo sendo colocado na observância de si próprio enquanto observador do universo. No primeiro ato a filosofia diz ser o universo o homem projetado sobre a indecifrável tela do real; já no segundo, a psicanálise substitui esse “homem” genérico pelo absolutamente “eu”. Conjuntamente elas dizem do parto da realidade dentro e contra o real, e separadamente fazem com que a mesma história pareça duas.

Em uma confraternização informal entre graduandos de filosofia e de psicanálise que se deu na minha faculdade – de Filosofia – confessávamos uns aos outros a resistência dos professores-mestres-doutores de ambos os cursos em aceitarem a pertinência de uma área dentro da outra. O resultado disso era a presente distância entre os pré-filósofos e os pré-psicanalistas enquanto falavam das mesmas coisas. Apesar do recente e frutífero casamento que a contemporaneidade intenta entre elas, visto em pensadores como Deleuze, Badiou e Zizek, a filosofia e a psicanálise mantém, ainda, algo institucional que as aliena uma da outra.

As eventuais relações que um filosofando faz entre Freud e Lacan, por exemplo, e as essenciais questões filosóficas, geralmente são desestimuladas, pois, nos dizem os mestres filósofos, são mais evasivas que acertivas no embate com suas questões. Quando falamos a palavra “inconsciente”, na Filosofia, os professores nos olham como se estivéssemos falando em outra língua, ou de espíritos místicos. Já a psicanálise, ao menos em teoria, é menos dogmática-restritiva em relação aos sábios que não os seus. No entanto, na prática, sua limitação em relação à filosofia se dá na permanência dos psicanalisandos na superfície das teorias dos seus, sem com isso vasculharem as fundamentais presenças de Sócrates, Platão, Wittgenstein, Hegel, Marx, entre tantos, nas belas e posteriores sistematizações de Freud e Lacan.

Nesse sentido a Filosofia é mais científica que a psicanálise, pois o conhecimento da verdade anterior a qualquer verdade é a condição necessária à verdade em si, seja para corroborá-la seja para refutá-la. Diferente desse método filosófico, a psicanálise se dá por satisfeita com a síntese que seus sábios fizeram dos demais, dispensando o conhecimento concreto, específico e diferencial de cada pensador que alimentou tanto Freud quanto Lacan. O sintoma dessa prática é jocosamente apontado por Deleuze e Guattari, apólogos da esquizoanálise, em “O Anti-Édipo”: quando o paciente não se enquadra no “Complexo de Édipo” dogmaticamente sustentado pelo psicanalista, o problema é sempre o paciente; nunca o “Complexo” forçado contra ele.

Diante do Moderno assassínio da questão filosófica primordial, a saber, “o que é o ser”, um pré-psicanalista perguntou se esse “ser” morto seria, porventura, o “sujeito”, justamente o assassino confesso do “ser” na visão dos estudantes filósofos. Já estes, velam o cadáver metafísico ao lado do assassino sem com isso interessarem-se pela dicotômica e desejosa inconsciência que o levou a tal crime. Por que a filosófica questão do “ser” é tão alheia à psicanálise se seu objeto central é o mais justo “ser”, isto é, o “ser” “eu”? Da mesma forma, o estudante de filosofia permanece de costas ao mundo da inconsciência que, ainda que não guarde as respostas às graves questões filosóficas, diz a verdade daquele homem-filósofo que só “é” através das suas perguntas insolúveis.

Quanta teoria psicanalítica no mundo das ideias platônico e na Fenomenologia do Espírito hegeliana; quanta prática filosófica nas análises freudianas e nos seminários lacanianos! E quanta distância entre elas! A morte de Deus vociferada por Nietzsche tem um sentido filosófico bem determinado, não obstante passível de resignificação quando a partir da psique do filho de um pastor luterano. Um camponês matando Deus diz uma coisa; o filho de um crente urbano, outra bem diferente. Seria irresistível a um psicanalista pensar que o Édipo-Nietzsche queria mesmo era matar o próprio pai. Contudo, como o sintoma é o erro da tentativa de acerto, o filósofo, sintomaticamente, matou o Deus de todos, pois, uma vez a humanidade sem Pai, ele estaria, finalmente, órfão do seu.

Caso os desejos incestuosos e inconscientes daquele Nietzsche fossem um tanto menos obscuros a ele mesmo poderiam ter sido descontados do resultado final das suas experiências filosóficas, pois, a fim de preservar a pureza dos objetos investigados, suas verdades estariam menos contaminadas se ilesas do erro-sintoma que ele mesmo era. Entretanto, através do véu opaco que persiste em qualquer psique não analisada, portanto desconhecida, o mundo nietzschiano era próximo, demasiado próximo dele mesmo, muito mais que da verdade que ele buscava. Não psicanalisando-se, a filosofia de Nietzsche, em certo sentido, foi uma inadvertida autoanálise pública.

O “Penso, logo existo”, fruto do solipsismo que excluiu do mundo de Descartes o mundo todo em função de uma dúvida absoluta, só pôde ser dito por que a suspensão do mundo do filósofo deu-se no conforto de suas pantufas, em frente a uma lareira alimentada, e regada por um bom vinho. Suspender o mundo sem com isso suspendê-lo de fato levou o filósofo a perceber que “ele pensa” e que “ele existe”, o que, antes, já era uma certeza sua. Sem desconsiderar o feito para humanidade que esse “Penso, logo existo” representou, apesar de muitos dizerem que seus efeitos resultaram nas maiores mazelas da atualidade, uma “psicanalisezinha” básica mostraria que não era “a certeza absoluta” que Descartes desejava, mas sim a ele próprio; a absoluta certeza de si.

Nesse sentido, a psicanálise pode ser fundamental ao renascimento de uma grande Filosofia depois da Moderna morte da metafísica, pois, somente cientes das suas próprias inconsciências – o oposto complementar de qualquer consciência – os filósofos podem evitar que seus objetos, trazidos à luz do mundo, não sejam obscurecidos pelos seus “eus” obscuros. Dessa forma o “eu” é assumido como ferramenta-processo em direção ao universo em suas verdades, e não aquilo que ofusca e contamina a verdade universal. Em sentido complementar, a substancial profundidade existencial, comum tanto aos “eus” quanto às demais coisas do universo, ou seja, o “ser” filosófico em si, deve ser escopo presente à psicanálise, dado que o “eu” só “é” porque existe algo de anterior a ele mesmo, e esse alicerce fundamental é o “ser” filosófico-universal sobre o qual o “eu” psicanalítico-particular se funda, se apoia e se justifica. Logo, entendê-lo é entender-se.

No entanto, a cisão entre a filosofia e a psicanálise se mantém até hoje porque o rígido e sintomático plano-erro cartesiano coloca cada uma delas em um solipsismo intransponível que condiciona a existência de uma à desistência da outra. Não obstante as duas estando tão presentes – lado-a-lado – quanto a lareira e o divã da “bourgeoise” sala de pensamentos de Descartes. A filosofia já entendeu que “aquele que pergunta”, “a pergunta em si”, e “as respostas encontradas” são uma única e mesma coisa, isto é, o homem, o “ser” humano. Do outro lado a psicanálise sabe-se como a arena aonde o “eu”, inclusive o filosófico, melhor se apresenta em suas contradições fundamentais. Talvez o que ainda escape a tanto à filosofia quanto à psicanálise seja o fato de que as contradições que cindem o “eu” , cindindo assim o homem de si, são mais bem visualizadas psicanaliticamente e melhor reunidas filosoficamente. “Ser” “eu”, portanto, carece das duas.

Black Bloc Jesus

Acreditamos na existência da História enquanto reta temporal que separa irremediavelmente passado de futuro. Entretanto, a despeito das nossas crenças medievo-moderno-contemporâneas, foi a ideia de tempo cíclico que regeu o mundo dos homens por muitos milênios a mais que sua recente versão linear. Aristóteles, na trágica visão grega acerca da existência, disse que inclusive a mais desenvolvida das sociedades estava condenada a ruir e a retornar às suas origens, para recomeçar, do zero, a sua particular epopeia. Talvez tenha sido o inescapável e sensível ciclo percebido na Natureza, cujo final sempre coincide com e reconduz ao início – igual, ainda que outro – o mestre dessa lição aos antigos.

Porém, foi o advento do cristianismo, esse sistema gordo de seus próprios propósitos, que inventou a linearidade histórica com o fim de alienar definitivamente o homem das suas origens e conduzi-lo, sem passagem de volta, às mãos do seu líder divino supremo, que a todos aguarda no ponto final – e elevado – que encerra a linha do tempo de cada um de nós. Importante é ter em mente que foi o cristianismo esse alienador, não seu ícone fundamental, Cristo. Jesus, o homem-símbolo do fim do mundo antigo e garoto propaganda do cristianismo, tomado enquanto fim de um longo processo histórico, reiterou a natureza cíclica da existência humana no cosmos, seguindo a cartilha aristotélica e solapando todas as instituições interpostas entre o sofisticado cidadão romano tardio e o primitivo camponês hesiódico.

Logo depois do “Verbo” primordial, o homem era apenas ele mesmo em sua isolada família-tribo, sem lenço nem documento, sem urbes nem deuses coletivos. Ser humano, portanto, era ser o tanto de terra necessário à subsistência e o culto aos imediatamente mortos que compartilhavam do mesmo chão plantado e habitado pelos vivos. De acordo com o historiador Fustel de Coulanges, estes “idos” familiares foram os primeiros seres divinizados-cultuados pelos homens. Aqui reencontramos a definição do surgimento da Cultura, cujo início se deu a partir do sepultamento e do subsequente culto mantido em memória desses mortos. As oferendas aos antepassados eram absolutamente funcionais aos vivos, visto que eram aqueles que intermediavam com o “todo” a fecundidade da Natureza necessária à vida destes.

Assim, essas divindades familiares mortas e cultuadas eram o maior tesouro de cada grupamento humano, portanto, particulares e secretas. Caso contrário, a fortuna dos vivos estaria irremediavelmente comprometida, pois as divindades eram ciumentas e exigentes, tal qual os vivos. Por isso o culto que elas solicitavam de forma alguma poderia ser visto ou compartilhado com quem fosse de fora da família-tribo. Logo, foi no culto particular aos mortos que nasceu o conceito de “privado”. O “Lar” era o local absolutamente privado e resguardado do mundo, dentro das residências, aonde o culto aos mortos se dava através de um fogo mantido sempre aceso que só podia ser visto pelos vivos daqueles mortos.

Tomemos essa unidade fundamental composta de uma família-tribo, suas terras-plantações e seus mortos-divindades como a instituição social básica e primitiva do ser humano; para onde, com o final histórico chamado Jesus, as imperiosas instituições romanas foram obrigadas a retornar. A formação da cidade enquanto o novo local que prometia resolver as desventuras humanas que não encontravam solução na esfera doméstica exigia, necessariamente, algo de divino para legitimar-se. Por conseguinte, as diferentes tribos tiveram de encontrar mortos em comum – que não os seus familiares sagrados-secretos – para tal. Em função da bem-aventurança coletiva, os proto-cidadãos erigiram altares públicos, ao modo dos Lares domésticos privados, em torno dos quais a congregação humana não estaria desprovida de proteção.

Eram as divindades privadas que fronteirizavam as famílias; e as coletivas, as cidades. Porém, estas últimas coadunavam uma contradição interessante, porquanto embora coletivas, essas divindades deviam ser absolutamente privadas às outras coletividades-cidades. Logo, cidadãos eram os que compartilhavam de uma mesma divindade, e estrangeiros aqueles que de forma alguma podiam cultuá-la. Essa era a nova e intransponível fronteira humana instituída. Circulando entre duas esferas distintas, a doméstica e a pública, e por conta disso tendo divindades diversas a cultuar, o homem, inadvertidamente, desabsolutizou as suas divindades privadas, dividindo o seu espaço transcendente com as públicas. Essa foi a primeira laicização que as divindades humanas primordiais sofreram.

Da mesma forma, as posteriores ligas entre diferentes cidades exigiam sempre novas divindades em comum, e os ritos que outrora eram privados, depois coletivos, findaram cosmopolitas. Inclusive as refeições sagradas que cada família ofertava aos seus mortos, em sua forma coletiva, instituíram os festivais aonde todos os cidadãos faziam o mesmo com as divindades públicas. O Império Romano, a cosmópolis absoluta, reuniu tantas famílias-tribos-cidades que, neste estágio, cada homem encontrava-se imerso em um panteão de deuses, cada um com sua esfera de atuação e de culto. As divindades foram sendo criadas e hierarquizadas de acordo com as necessidades mundanas e, inescapavelmente, relativizadas; por fim, reificadas.

Justamente por Roma ter sido o império que não matou as divindades dos locais que dominava, respeitando-lhes o culto e ao mesmo tempo doando-lhes os seus, essa divina colcha de retalhos deixou patente aos homens que suas instituições podiam prescindir de divindades para sustentarem-se. Neste momento laico máximo a cidade passa a ser chamar“urbe” que, significando órbita, era nada mais que o circunvagar humano em torno daquilo que lhe era fundamental, ou seja, as suas relações diretas com todos os outros homens e os frutos que essa interação proporcionava-lhes. Por conseguinte, ficou claro que o centro gravitacional que articulava todas as órbitas humanas era o próprio homem, não mais os seus deuses.

Doravante, sem a proteção das suas divindades, o homem experimenta toda a sorte de problemas urbanos, e por fim a urbe revelou-se a negação daquilo a que ela mesma se propunha, isto é, a superação das dificuldades insolúveis no plano doméstico. O homem cosmopolita, portanto, era aquele órfão dos seus deuses lares, desterritorializado do seu campo de subsistência e com sua família-tribo partida pelos impérios da urbe romana. Distante dos seus primórdios campesinos e imerso das mazelas urbanas, o homem confrontou-se com a ineficiência de sua própria empresa cultural-urbana. Seus deuses lares esquecidos eram-lhes mais dadivosos, mas, uma vez profanados, não o receberia novamente.

Então, bem no centro desse sofisticado caos romano, chega Jesus de Nazaré, um vilipendiado como a maioria, porém, encarnando em si a crítica ao mundo instituído. Jesus trouxe a oportuna nova: homens, embora vocês tenham profanado as suas divindades antepassadas e rendido culto ao mundo caído, há uma divindade suprema que a todos ama e a todos aceita. Para tanto, o homem devia abrir mão daquele mundo caído e voltar-se ao culto à Deus e à sua simples sobrevivência, o que, soterrado sob a secularidade, era a sua vida de outrora.

Corroborando com a afirmação de Aristóteles de que até o maior império retorna ciclicamente ao seu início, Roma, com Cristo, ruiu e reencontrou o seu primórdio pré-urbano. O mundo medieval, o futuro imediato dessa decadência, foi o regresso desiludido do homem ao seu solitário quinhão de terra e aos secretos lares familiares. No entanto, a diferença foi que o deus que doravante ele prestaria culto não era mais aquele enterrado sob o seu Lar, e nem seria privado, mas vivia publicamente sobre todos, para todos, no céu. A urbe, de certa forma, ao colocar todos os deuses em praça pública, pôde sintetizá-los em uma única ideia, telepaticamente captada por um homem – provavelmente neurótico esquizofrênico – chamado de Cristo. Por trás deste nome há a significação de cruz, de cruzamento e do ponto onde as perpendicularidades contraditórias se encontram.

Jesus foi o Black Bloc que, com a máscara de Cristo, quebrou todas as vidraças do Império Romano, levando ao coração do poder instituído a seguinte mensagem: o que nós, homens, mais precisamos é de tudo aquilo que você, Cultura, roubou de nós! Esse reacionário “vem-pra-rua-vem” nazareno era tão necessário quanto verdadeiro, dado que, depois de ressoar pelas Vias Apias, inclusive enfrentando a opressão militar dos chicotes lacrimogênios, levou a humanidade de volta aos seus esquecidos e perdidos nucléolos ancestrais. Jesus, de certa forma, fez a História voltar a ser mito, ciclando-a ao seu primórdio. Depois dele, contudo, o cristianismo reconverteu a certeza mítica em abertura História: uma que principia no nascimento, passa pela total subserviência a Deus e conduz ao ponto máximo e último simbolizado pelo paraíso eterno.

A Idade Antiga, sob certo ponto de vista, apresenta-se historicamente, porém, seu início e o seu fim tocam-se na macro assunção de que, na verdade, tratou-se de um movimento cíclico, isto é, mítico. O medievo foi outra volta desse mesmo ciclo, não obstante insinuando-se historicamente outra vez. Portanto, parece ser a História a tentativa épica do homem de escapar da natureza mítica da sua existência na Natureza. A natureza da História é a história da natureza do mito. Porém aquela, menor e funcional, é a visada máxima com a qual nós, homens, conseguimos vislumbrar o gigante mito da existência, apropriando-o à nossa mundanidade contingente.

É como se tomássemos quaisquer dois pontos dos infinitos que formam a circunferência do tempo e entre eles traçássemos uma reta a nosso bel-prazer, a despeito do arco verdadeiro que escapa a essa reta mesma. A História não tangencia o mito ao modo da linha que, depois de tocar a curva em um único ponto, afasta-se para nunca mais reencontrá-lo. Antes, a História é uma reta que finge interceptar o mito em dois pontos, numa tentativa demasiado humana de atalho. Não obstante, a distância entre essa reta histórica e a corda roubada do ciclo mítico é medida dupla: em um sentido a mentira da História, e no outro, a verdade do mito.  reta histórica e a corda roubada do ciclo mítico é medida dupla: em um sentido a mentira da História, e no outro, a verdade do mito.

Voto válido ou cinismo

O Cinismo foi uma corrente da filosofia grega, contemporânea de Sócrates, e, de certa forma, foi um dos primeiros reflexos da decadência da fase de ouro dessa sociedade no pensamento dos seus cidadãos. Cínicos eram aqueles que não acreditavam mais nas instituições humanas, principalmente na política, instituição dourada para um grego. Se historicamente o cinismo esteve atrelado à apatia política, é pertinente perguntarmo-nos se a descrença política que percebemos às portas das nossas atuais eleições não seria a sobrevivência inadvertida daquela forma antiga de pensar no núcleo duro da contemporaneidade. Seria o cinismo causa ou consequência imediata do fim da idade de ouro da sociedade ocidental?

A sentença de morte imputada a Sócrates devido às suas ideias ameaçadoras à forte tradição, bem como a posterior capitulação grega da diante de Alexandre, o Grande, da Macedônia, que roubou dos cidadãos da Pólis o poder de deliberação política, foram os horizontes de possibilidades icônicos para que o pensamento cínico se tornasse pertinente ao mundo. De acordo com o historiador Fustel de Coulanges, “por desgosto ou desdém, os filósofos afastavam-se cada vez mais dos negócios públicos. […] A escola cínica vai mais longe. Nega a própria pátria”.

Havia, portanto, uma contradição necessária e imediata entre cidadania e cinismo, dado que este era ou a negação daquela ou a expressão da impossibilidade de a cidadania seguir aos moldes da Era de ouro pregressa. No entanto, sub-repticiamente, o cinismo era sintoma de um sentimento coletivo de frustração em relação à cidadania perdida. E um sintoma é nada mais que um erro auto-evidenciando-se na ausência do acerto – e certo, para os gregos, era a posse da condução de suas vidas. Na perda da cidadania, conta-nos Coulanges, “os cínicos repetiam a verdade, então bastante recente, de que o homem é cidadão do universo, e que a pátria não é o acanhado recinto da urbe”.

Se por um lado os cínicos negavam a pátria que os negava, como crianças birrentas que, desconfiadas do desamor dos seus amados, teimam ódio na tentativa pervertida de restaurarem suas certezas abaladas, por outro, nessa negação, os cínicos assumem coautoria na tragédia que encenou o fim do apogeu grego. O cínico “Crates dizia que, para ele, a sua pátria era o desprezo pela opinião dos outros”, aponta Coulanges, justamente no momento em que as opiniões dos outros, a saber, a dos gregos, não importava mais na vida deles próprios, visto que era a opinião e o desejo de Alexandre a que, mesmo a contragosto, passaram a valer.

Os cínicos inventaram um preconceito em relação à política no momento em que a política deixou de ser um conceito imediato, ou seja, algo vivo, sensível e presente, mas sim a pálida representação de algo perdido, que, nessa distância mesma, tornou-se passível de ressignificações que nada apontavam ao propósitos essenciais da política. Diante da impossibilidade da Pólis, restou-lhes a “apatheia”, isto é, a apatia total, inclusive a política, porquanto “os cínicos não queriam sequer ser cidadãos”, afirma Coulanges. Passaram, então, a viver às margens da sociedade, cuidando de seus próprios assuntos, como cães sem dono; e, curiosamente, em grego, “cão” significa “cínico”.

Hoje, na distância que estamos de auto-representarmo-nos diretamente diante do Estado, o que antagoniza absolutamente com a essência de democracia para os gregos, a ponto de, sob um anacrônico ponto de vista a partir deles, o nosso sistema de governo figurar como uma plena oligarquia, a efetividade da nossa ação política foi confinada à pressão de botões em quiçá duas ocasiões bienais. Tão alienados da participação direta nos desígnios da nossa própria sociedade como estavam os frustrados cínicos gregos, muitos cidadãos brasileiros, reduzindo ainda mais as suas presenças na constituição desse país, ao votarem em branco acreditam que com isso revolucionarão a angusta realidade.

Porém, tal ação política – que por outro prisma é uma inação apática – é tão velha quanto a própria decadência das sociedades, sendo tão revolucionariamente inócua quanto foi sua origem helênica. Os frutos daquela antiga apatia política foram as posteriores subjugações diante dos Impérios Romano e Cristão. Portanto, podemos ver que deixar voluntariamente de sujar as mãos com os assuntos da própria sociedade não a conduz a um lugar melhor. Ao contrário, a apatia política abre espaço para as vicissitudes mais ignóbeis que só não têm vez havendo a atua-ação viva e virtuosa da política.

Impérios e fundamentalismos tão ou mais perniciosos que aqueles que capitularam a Magna Grécia espreitam-nos sorrateiramente por trás das muitas intenções de votos em branco que pressionarão os botões de mesma cor das nossas urnas eletrônicas. O liberalismo econômico vilipendiador e o anacrônico fundamentalismo evangélico, portanto, ambos representados pelos mais ignotos candidatos dos debates atuais, são os que se mais se beneficiarão da evasão do voto válido.  Ainda que representante direto da indireta representação que nos restou, o voto válido é a única possibilidade para, se não na escolha do “menos pior”, dizermos ao pior que não o queremos na Pólis.

Embora votar em branco não seja um crime, tanto que essa inútil liberdade política é legalmente representada pelo cínico botãozinho branco do “display” eleitoral, um assassínio digno de expiação decorre dessa ação. Não foi em torno do cadáver da representatividade que velaram as manifestações de junho de 2013? Não seria aquele audível “Ninguém me representa” a expressão cínica-coletiva de uma massa desejosa, antes de tudo, de uma digna representação? Porém, o voto em branco é um “sobrecinismo”, pois transforma o “ninguém me representa” em “nem eu mesmo me represento”; ou pior, num “eu não me importo com quem vai me representar”. A única coisa que é válida em um voto inválido é a transformação do cidadão em um cínico, ou seja, em um cão! Só que os cães ainda são menos cínicos que o cidadão desertor, dado que eles não dispõem de política para revolucionarem o seu mundo. Já nós, sim.

O inescapável ciclo mítico

Na impossibilidade de saber do seu próprio primórdio – que é melhor dito em inglês: “the very beginning” -, e na incerteza de que o que há tenha começado nalgum dia, ou ainda se sempre houve, o homem tratou de inventar histórias que, aproximando-se ou não da verdade, eram-lhe suficientes. Daí os mitos, isto é, as narrativas que explicam ao homem o início do cosmos, do mundo, das coisas e inclusive dele mesmo. Abundando símbolos e imagens que roubavam a necessidade da verdade – pois sempre mais coerentes e recreativos que ela -, as ficções mitológicas circundavam a verdade de tal modo que o centro real em torno do qual os mitos piruetavam perdia, de fato, o foco.

Os mitos não podiam ser descartados pelos antigos, porquanto mais angustiante que sustentarem suas realidades sobre quimeras era o suspense das verdades ocultas. Os mitos, portanto, diziam dos começos sem irem de fato até eles, contando o passado imemorial através de letras presentes e indubitáveis, usando como estrutura dramatúrgica fundamental eventos de intrínseca contemporaneidade, com um estratégico teor extemporâneo que, não obstante, projetava sorrateiramente essa contemporaneidade atávica para muito antes de si. Para dizer o que foi, o mito simplesmente diz o que é; o que é agora; o que sempre foi e sempre será; substancialmente, o que é o homem no cosmos; pois a única coisa que satisfaz a curiosidade do homem é ele mesmo.

Por isso não faz sentido perguntar de um “quando” em relação aos mitos, visto que não há uma data específica aonde tenham se dado; antes, é o que sempre está acontecendo, sem nunca ter deixado de sê-lo. Nesse sentido o mito alude ao ‘ser’ parmenídico que só ‘é’ porque sempre ‘foi’ e sempre ‘será’; se tivesse não ‘sido’ nalgum momento, ou se porventura deixasse de ‘ser’, é porque nunca ‘foi’, portanto, não ‘é’, tendo ‘sido’ somente uma ilusão dos homens. No entanto, o mito dá a volta em Parmênides pelo fato dele ‘ser’ uma ‘ilusão’, ou seja, o seu ser ‘é’ uma ‘ilusão’. O mito, por conseguinte, é a vingança vitoriosa do não-ser no seletivo campo de batalha do ser.

A contemporaneidade secreta do mito se aproveita do motor ininteligível do real, por isso mente uma extemporaneidade que resolve o desejo humano pelo primordial. O mito de Prometeu, por exemplo, só nos conta a história da sabedoria incendiária roubada de Zeus para que nós, homens, pudéssemos viver caídos na natureza, porque, todos nós, de certo modo, só somos porque desde sempre já ladrões desse fogo, isto é, das essenciais sabedorias furtadas daqueles sábios que as detêm, em vias de sobrevivermos no mundo. Prometeu não roubou o fogo de Zeus nalgum tempo, e uma única vez. Ele o rouba a cada instante! Melhor dizendo, somos nós esses larápios, porém, projetando-nos extemporaneamente naquele. Portanto, todo mito, falando do que foi, diz apenas o que é, porém sempre escorregando de sua re-apresentação em direção a um primórdio inquestionável.

Desse modo, através dos seus mitos, a antiguidade humana encontrou a ordem desejada no caos sensível das suas próprias dúvidas; mitificando-se através dos seus mitos; colorindo o passado imemorial com as tintas do seu presente inconteste. Uma vez em solo grego, os mitos receberam as características desse povo: de um lado incorporando as verdades filosóficas que brotavam daquele chão pedregoso e, de outro, tornando-se tão trágico quanto o modo grego de perceber a existência. Na tragédia grega, que atualiza o poder mítico ao helenizá-lo, o mito deixa de se referir exclusivamente aos princípios cosmológicos e assume, enquanto narrativa, o homem como princípio; o princípio de que, metafisicamente, falou Aristóteles, ou seja, o princípio enquanto causa – o princípio eternamente contemporâneo e fundamental a cada estágio do desenvolvimento, e inclusive ao fim. Esse filósofo afirmou serem os princípios os fins das coisas.

A tragédia, portanto, foi o passo que o homem deu para fora da roda do mito no sentido de enxergar e encarnar o mito enquanto coisa que o homem mesmo é, isto é, a causa de todas as suas causas. Todavia, um pé seu permaneceu cativo da esfera mítica, embora, logo ali, ela tivesse se tornado trágica, As tragédias que doravante passaram a ser encenadas mantiveram a estratégica extemporaneidade do imediatamente contemporâneo, pois só a certa distância o homem pode vislumbrar, sem padecer, aquilo que ele é. O trágico Édipo Rei é um belo exemplo disso, porquanto só acertou os homens em cheio, dizendo-lhes dos desejos incestuosos que todos eles tinham em relação aos seus próprios progenitores, à distância de uma plateia e sob o pretexto de um texto. A história dessa capacidade de assistir civilizadamente ao insuportável é contada, não obstante, por outro mito, o de Ulisses e as sereias, que, nas palavras de Adorno, é a história da invenção da plateia.

Entrementes, como o mito é só uma forma de representar a verdade enquanto ela não vem, ou enquanto o homem não é capaz de suportá-la, ele sempre padecerá de sustentabilidade. Se o primeiro passo do homem para fora do mundo mítico foi trágico, o último, ou seja, aquele que definitivamente negou o mito como o representante da verdade, foi a ciência. Cientificamente, a verdade é a sua única representante, sendo, inclusive, dispensada de representar-se, pois, uma vez sendo universal e extemporânea, é a única que pode prescindir de contemporaneidade. A verdade pode ficar guardada, e até ser esquecida, pois não se corromperá longe da audiência humana. A própria existência do mito é a prova de que as verdades estiveram imemorialmente alhures, incólumes, e nem um pouco ansiosas por serem sacadas da ordenação caótica do cosmos.

Porém, assim como a tragédia perpetrou o mito no mesmo movimento de revolucioná-lo, é de desconfiar que a ciência, por distante que se pressuponha das ilusões míticas, também tenha preservado em si algo delas. Até os físicos pós-modernos, na fronteira universal última do Bóson de Higgs, não escapam de pequenos e múltiplos mitos para dar sustentação às suas teorias. Caso aquilo que esteja além da partícula de Deus última esconda verdades que a negue, ou seja, a verdade – o que é bem provável – todo esse edifício cairá. Por conseguinte, a grandiosa narrativa de mais essa queda será nada mais que a reassunção, agora no coração da ciência, de que os mitos estão aí para lembrar-nos da trajetória incerta, trágica e repetitiva do homem no cosmos.

Se o mito é a primeira e última forma através da qual o homem conta-se a si próprio, sustentando-se justamente em sua insustentabilidade, dado que, por antiquíssimo que seja o homem, é mais fácil acreditar que a chama de Prometeu é uma bela ficção funcional que uma verdade inquestionável, sem com isso Prometeu em si ser questionado, é porque o homem é um mito ele mesmo. Logo, todos os passos para longe de si, e em direção à verdade, isto é, a História, são apenas os estágios humanos nesse percurso – trágico filosófico científico – que gera, ao trilhá-los, os infinitos pontos da circunferência mítica que é o homem. Circunferência essa que precisa nunca ter o seu centro alcançado, pois, caso o mito, enquanto periferia da verdade que é, seja quebrado de vez, perde-se definitivamente esse centro aonde a suposta verdade foi projetada.

O mito, portanto, é o modo humano de inventar verdades através do circunvagar em torno de pontos que nada representam além de duvidas insolúveis. A única verdade é esse movimento orbital mesmo, o movimento verdadeiro dos seres no universo. Deixá-lo, na fé de encontrar causas e princípios que não o próprio homem, centripetando-se em direção ao seu centro ou centrifugando-se para longe dele, é desertar o moto-contínuo da existência humana. Entretanto, a mudança de órbita só se dá, de acordo com as leis físicas e míticas, quando outro centro, de força gravitacional maior, impõe nova órbita. Estamos condenados a vagar em torno das nossas próprias questões – e elas são muitas -, projetando em todas elas centros a serem alcançados a partir do perímetro das nossas possibilidades. O mito é a primeira e última, verdadeira e única, e também a mais bela dança, sempre contemporânea, na qual piruetamos em torno – e em fuga – das extemporaneidades que ameaçam a estabilidade de todos os “agoras”.

Uma mítica experiência antidepressiva

Depois de 40 anos usando somente antidepressivos orgânicos e culturais, tais como marijuana, amor, arte e filosofia, deparei-me com uma situação aonde nem eles funcionaram mais. Em janeiro do corrente ano perdi a minha irmã, Graziela, e, junto com minha família, entrei na inescapável sensação de luto que acompanha uma perda irreparável. Porém, ao contrário da melhora que a purgação do luto promete, minha tristeza cresceu e se debruçou sobre todas as outras coisas da minha vida, chegando, por fim, a matizá-la negativamente por completo. Apesar do suporte da psicanálise, cuja presença é mais antiga que a morte da minha irmã; da filosofia, que me saca deste mundo, sobrelevando-me acima das suas contingências; da presença dos amigos, com quem divido as minhas dificuldades e, melhor, com quem esqueço prazerosamente delas; eu senti que precisava de ajuda extra, isto é, química.

Minha analista achou uma “boa ideia” eu ir a um psiquiatra que me receitasse um antidepressivo adequado. Embora eu tenha desconfiado de início da sua sugestão, pois parecia-me haver algo de errado no fato de um psico me “enviar” a outro – da mesma forma que desconfiaria do marceneiro que dissesse que eu preciso de um carpinteiro, ou de um ferreiro que indicasse um serralheiro -, fui ter com o neuropsiquiatra. Este, depois de ter perguntado qual era o meu problema, fez uma série de perguntas de ordem pragmática, entre elas, se eu estava me alimentando adequadamente, asseando-me normalmente, cuidando da aparência, tendo com amigos e familiares, e se havia coisas que me estimulavam cotidianamente. Minhas respostas foram todas verdadeiramente afirmativas. Diagnóstico do neuropsiquiatra: “você não está sofrendo de depressão, mas sim de pessimismo”.

Meu viés filosófico-niilista-cético intrigou-se com esta definição que, de fato, surpreendeu-me. No entanto, foi a dogmática pessoa romântica-barroca, de sentimento&osso, que se alegrou por não estar, clinicamente, deprimida. Mesmo assim me receitou um remédio que, segundo ele, melhoraria a minha situação. De posse dos simultâneos tratamentos psicanalítico, psiquiátrico, filosófico e químico, entreguei minhas angústias não nas mãos de Deus – quisera eu acreditar na sua onipotência -, mas sim nas de um panteão intelectual eclético, pupulado por Freuds, Lacans, Platãos, Aristóteles, Coens, Allens, Skrillex e Mozarts. Fui-me antideprimir, portanto, em boas companhias.

Na fase inicial do tratamento químico, que durou umas três semanas, era esperado somente alterações físicas, não psicológicas. Meu primeiro sintoma foi uma constante dor de cabeça que não cedia sob analgésico algum. Era uma cefaleia atípica, não localizada; parecia que a minha cabeça estava sendo insuflada contra o limite rígido e último do meu crânio. Essa pressão interna se espalhou para os membros e, em poucos dias, tinha a forte sensação de que o meu interior desejava explodir para fora da superfície corpórea que o continha. Era como se não houvesse espaço algum entre a minha alma (sem conotação transcendente alguma – alma ou espírito apenas enquanto “ânima”) e a minha pele. Faltava-me espaço entre eu e eu mesmo. Uma intensa e descontrolada sonolência também se fez presente nessa adaptação química, alterando meus regulares horários de sono e vigília. Passei a precisar, nalguns dias, de ir dormir às cinco da tarde; em outros, às onze da manhã. Em cada um daqueles dias as “noites” tinham os seus próprios horários.

Depois de um mês, esses efeitos desapareceram – ou acostumei-me a eles -, e, imediatamente liberto da angústia que vinha me assombrando, a vida se mostrava positiva novamente. Tão positiva que, depois de três meses de comprimidos matinais, percebi, longinquamente, algo estrando, para não dizer paradoxal, acontecendo. Sob a velha sensação de bem-estar com a vida que o antidepressivo trouxe de volta, sintomas fortemente depressivos se arraigavam sorrateiramente no meu dia-a-dia. Embora me sentindo ótimo, percebi que eu não estava me alimentando bem nem regularmente, passava dois ou três dias sem tomar banho nem trocar de roupa – cuja função passou a ser a de roupa-pijama -, havia deixado de socializar com meus amigos, e minha casa deixou de ser limpa e organizada. Espanto!

O paradoxo estava no fato de que, antes, quando estava me sentindo deprimido internamente, minha vida não apresentava sintomas depressivos externos. Porém, uma vez liberto da sensação de depressão, por efeito do remédio, e em paz comigo mesmo, os sintomas indicadores de depressão apontados pelo neuropsiquiatra naquela consulta se faziam materialmente presentes ao meu redor. Consciente disso, eu não pude deixar de me questionar, filosoficamente, sobre o que era melhor – ou, platonicamente, o que era o bem: se sentir-me deprimido sem sê-lo de fato, ou ótimo, porém, sobre um chão imundo de sintomas depressivos. A resposta a essa questão foi a decisão de parar com tratamento químico sob a advertência médica de que isso deveria se dar de forma gradual. Então, passei a reduzir paulatinamente a dosagem do antidepressivo a fim de deixá-lo.

Entretanto, os sintomas físicos decorrentes desse “detox” foram contrários aos do “intox”. Aquela dor de cabeça de antes, isto é, a forte pressão interna em direção ao exterior, se inverteu. Passei a sentir um espaço vazio sob a pele, uma espécie de interstício preenchido de nada entre as duas coisas que chamo de “eu”, isto é, o meu espírito e o meu corpo. Esse “descolamento” de mim percebido logo abaixo da minha pele era incomodamente presente quando eu, de repente, virava a minha cabeça ou movimentava os meus braços, pois, só depois de alguns segundos é que a minha alma parecia seguir, num tempo só seu, a coreografia dos movimentos ordinários. Minha cabeça voltava-se sozinha para algo do mundo e, anacrônica e preguiçosamente, o meu interior a acompanhava. Já aquela impossibilidade de vencer o sono na fase inicial do antidepressivo transformou-se, na final, em uma insônia constante na qual, mesmo exausto, eu não conseguia dormir.

Restaram-me inquietos no pensamento os extremos dessa experiência antidepressiva, tais como a inicial sensação de pressão explosiva, e a final, a de um vazio implosivo. Com a intoxicação química a minha alma insistia em ser maior que o meu corpo, forçando-lhe os limites. Na desintoxicação, não obstante, a alma parecia encolher-se em fuga do mundo e, inclusive, de mim mesmo. Inicialmente, uma certeza de que o espírito e o corpo estavam sendo obrigados a serem um só, e finalmente, a certeza de que eles eram duas coisas claramente distintas, distanciadas por um sensível espaço físico. A presença imperiosa do sono, primeira, e a sua presente ausência derradeira, também dicotomizaram essa experiência antidepressiva. Antideprimindo eu tinha os momentos de paz, e afora estes, o sono absoluto. Já “desantideprimido”, uma vigília ininterrupta que me obrigava a contemplar tanto a paz quanto a guerra, num exercício exaustivo de assunção de que ambas eram, inalienavelmente, uma coisa só.

Após tudo isso, completamente “desantideprimido”, sem mais perceber guerra ou deserção em demasia entre corpo e alma – como as quimicamente dramatizadas na arena do meu ser -, percebo as figuras pelas quais passei nessa experiência como etapas necessárias à vida, tanto a do corpo quanto a da alma. Ser a um só tempo corpo e alma, sem intervalo algum entre eles, até a negação sensível dessa separação; ver a alma sucumbir às necessidades do corpo e cair de sono em pleno meio-dia; usar o tempo apenas em função das coisas prazerosas, a despeito absoluto das tarefas cotidianas; encarnar e habitar o vazio impreenchível que nós, humanos, inventamos e percebemos entre corpo e alma; permanecer acordado indefinidamente, não só para fruir os prazeres, mas também para cumprir com as tarefas mundanas; voltar a cuidar de si e a assear a casa após uma bagunça emergente; tudo isso deve fazer parte da vida simplesmente porque já faz parte dela.

Os “comprimidos” antidepressivos, de certa forma, “descomprimiram” essas múltiplas e contraditórias experiências que, a cada instante, são a vida em sua expressão genuína. Foi quando me escapou a coabitação necessária dessas dimensões da existência, e algumas delas passaram a figurar como impróprias, que fiquei doente. Deprimido porque reprimindo a pluralidade sensível da vida. Os “comprimidos” serviram para mostrar o nível de compressão – e de incompreensão – à qual, eu mesmo, havia me sujeitado diante dos fatos. A química antidepressiva descomprimiu a vida da vida diante dos meus olhos obtusos que outrora passaram a ver, impertinentemente, falta de vida nela mesma. Quimicamente, a vida foi espraiada, e seus momentos foram delongados para além de suas próprias pertinências até que aquele pessimista-deprimido pudesse percebê-los de corpo e alma, sem negá-los; reconduzindo-os harmoniosamente em direção à pequena guerra existencial que reside em cada mínimo instante vivido.

O ciclo de eventos experimentados através dos antidepressivos ao longo de alguns meses restaurou, ao meu corpo e à minha alma, a sã consciência de quão mítica a vida é e deve ser: repetindo-se ao repetir eternamente o melhor e o pior de si, em qualquer fatia de tempo que tomemos. O restauro da minha saúde psíquica passou pela apercepção de que a felicidade é um mito, isto é, um movimento cíclico que, no seu reciclo eterno, não me privaria de todos os seus infinitos pontos. Já a doença, ou no meu caso o pessimismo, era a tentativa de linearizar-me historicamente a partir de um passado idílico que desejava um atalho direto a um futuro utópico, transformando o presente – através dessa projeção linear mesma – numa promenade impossível a separar-me da paz. Historicizando-me, agi como o historiador que comprime a inabarcável miríade de eventos vívidos e concretos em fatos icônicos, abstratos e insuficientes. Para essa compressão absurda, comprimidos antidepressivos! Entretanto, mitificando-me, reinseri na vida a certeza de que tudo passa e fui, não em direção a um desconhecido angustiante, mas às figuras evidentes da vida, que, por piores que sejam algumas delas, desaparecem na eterna curva que é o ciclo da existência, dando, sempre, lugar a outras, inclusive às suas opostas complementares.

A trágica consciência da inconsciência

O homem é muito mais que uma consciência, é a consciência de sua consciência. Todavia, o que o diferencia irremediavelmente de todos os outros animais – e isto é revolucionário – e a consciência de sua própria inconsciência. Somos o que conhecemos e, mais importante, aquilo de que não temos conhecimento, sendo a inconsciência a estrutura principal dos indivíduos enquanto indivíduos. O que eu sei provavelmente é sabido pelos demais, visto que o saber é contingente e cultural. No entanto, é precisamente aquilo que me escapa totalmente o que me diferencia de todos os outros e me torna único, conquanto esse conhecimento permaneça velado inclusive para mim. É por estar sujeito a uma ignorância totalmente ignorada pelo mundo que eu sou um sujeito inquestionável para mim mesmo.

Outra característica da consciência humana é a invenção da felicidade e da tristeza enquanto objetos outros que não ela mesma, doravante estando, essa consciência, completamente sujeita a tais objetos seus. Porém, a falta, e consequentemente a tristeza, são os objeto de trabalho da consciência, podendo-se dizer que são a própria consciência em si, dado que presenças incontestes porque insuportáveis: plenamente conscientes. Já a felicidade, que é plena justamente quando não objetificada, ou seja, não condicionada às externalidades que vão e vêm ao sabor do real, relaciona-se com a inconsciência ao modo de fundá-la e sustentá-la. A consciência da felicidade é, antes, a consciência daquilo que pode privá-la de tal felicidade; ou, depois, daquilo que pode solapá-la; de forma que a consciência da felicidade é a consciência do seu oposto absoluto, isto é da tristeza de não ser, ou de não mais ser feliz.

A felicidade, para existir, deve ser inconsciente de suas causas; esquecida dos desígnios mundanos que a principiaram; pois, uma vez conscientes disso tudo, está irremediavelmente consciente da presença daquilo que não é a felicidade. Logo, felizes estamos quando inconscientes da miríade de eventos reais que nos conduziram até essa experiência que ficciona um ideal no cerne do real. A felicidade, portanto, exige a alienação, ainda que momentânea, do caminho que conduz até ela, ou, do contrário, por memorial, não se diferenciaria da tristeza. Quando felicidade e tristeza são uma coisa só, isto é, não são opostos digladiadores a se diferenciarem, temos a vida como ela é, absolutamente universal, animal; de forma alguma aquela que nós, enquanto sujeitos, percebemos e instituímos.

A invenção humana da tristeza e da felicidade objetivas são o reflexo das realidades da consciência e da inconsciência no real, ou seja, os espaços subjetivos de existência daquelas. Essa obra humana, no entanto, pode ser vista como um grande erro: sintoma da primordial tomada de consciência acerca dos atavismos da vida; e, em função disso, a salvaguarda inconsciente daquilo que os soluciona: a temporária inconscientização daquela consciência primeira da qual não se escapa. Entrementes, esse erro resultou em nós, humanos, seres que só são porque entre felicidade e tristeza, entre consciência e inconsciência. Exilados destes sofisticados opostos, voltamos a ser os animais de outrora. Entretanto, apesar dos demais animais serem, como nós, um universo fechado em suas próprias necessidades e soluções, eles assumem essa imanência de tal modo que, ao contrário de nós, não chegam a tomar consciência disso tudo.

Não havendo consciência, tampouco há inconsciência, visto que esta decorre necessariamente daquela. É por sermos conscientes do que nos falta, e por essa falta faltar à sua própria auto-apresentação, que é fundado um lugar chamado de inconsciente, aonde essa falta existe em sua plena ininteligibilidade. O inconsciente, dessa forma, funciona como um útero que, a partir da consciência do real contingente, gera, a despeito desta, a vida que lhe falta conscientemente, isto é, realidades. Tomando esse movimento metafisicamente, a consciência seria o ser, enquanto a inconsciência, o não-ser-em-vias-de-ser-já-sendo. Logo, a inconsciência labora os mundos negados pela consciência, contra esta, funcionando, sintomaticamente, em função e em conjunto com a consciência. Consciência e inconsciência são-nos uma coisa só conquanto nos tomemos por animais. Porém, uma vez humanos, elas devem ser cindidas e afastadas uma da outra pelo estranho distanciamento chamado de sujeito.

A inconsciência da consciência é animal ou divina. Entrementes, as consciências tanto da consciência quanto da inconsciência são exclusivamente humanas; essa é a condição à qual estamos sujeitos – e desse sofisticado conceito não conseguimos nos alienar. A própria dialética obtusa e secreta que são os nossos pensamentos revelam o interminável diálogo interno daquilo que é – a consciência – contestando o que não é – a inconsciência -, na mesma discussão em que o não-ser reivindica ser. Porém, aqui, a felicidade pergunta-nos se, ela mesma, não seria o quieto silêncio que encerra esse ardente diálogo, e se sua inimiga complementar, a tristeza, não seria o próprio debate em seu vívido discurso. O animal, se pudesse, responderia que sim, que a felicidade está certa em pensar-se dessa forma. Mas, para ele, a felicidade está certa justamente porque não é outra coisa que não ele mesmo.

A quietude interna – a inconsciência da consciência – é a natureza que o animal não deixou. Logo, só ele pode ser conscientemente feliz, pois não há inconsciência subversiva alguma em seu ser; e talvez isso se dê, precisamente, porque ele não dá nomes aos seus próprios bois: encarna silenciosamente todos eles. Já o homem, permanentemente sujeito ao intervalo inventado por ele mesmo entre a tristeza e a felicidade – e em sentido paralelo, entre o que lhe é consciente e o que não –, através da consciência de sua inconsciência é impelido a nomear inclusive os seus fantasmas, e uma vez denominado o que lhe falta, é inventada a distância real entre ele e a sua própria felicidade. De modo que só se está feliz quando não se sabe pelo que se está passando sem que haja a menor necessidade de saber os porquês dessa experiência. Uma vez trazida à consciência, essa felicidade é convertida naquilo que a privava, ou naquilo que a ameaça.

A consciência, portanto, ilumina a infelicidade obscurecida pela dialética interna do sujeito, infelicidade essa que havia se calado diante da sobrenatural retórica do inconsciente; e isso em benefício do próprio sujeito cuja unidade só se dá a partir dessa cisão entre suas duas esferas de consciência que se reúnem exclusivamente no diálogo. O silêncio interno, como aquele observado nos animais depois de satisfeitas as suas necessidades naturais, não obstante é chamado de tédio por nós humanos, em nada se parecendo com o nosso ideal de felicidade. Essa felicidade quieta que ressoa do acorde harmonioso entre consciência e inconsciência, nas mãos daquela transforma-se em infelicidade; e quando aportada na inconsciência, inconscientiza-se de a tal ponto que, a inconsciência da própria inconsciência, erradica o humano em prol do animal que um dia ele deixou de ser. Logo, ser plenamente feliz é deixar de ser humano, é resgatar o acordo quebrado com o universo e esquecer-se, ainda que por breves instantes, de todas as determinidades do mundo – ainda que, sob esse nome, a felicidade insista em se dizer humana. Uma vez consciente de qualquer particularidade, há a trágica consciência de todas as outras, inclusive daquelas que nos causam tristeza.

Apesar de o homem ter inventado e batizado a felicidade, somente os animais podem ser plenamente felizes. Isto porque não são conscientes, mas plenamente inconscientes disso. Os animais são felizes sem saber, já o homem não o é justamente por ter a felicidade em consciência. Trazendo à natureza a inconsciência da consciência os animais inventaram aquilo que, posteriormente, nós invejamos tanto neles, e cuja inveja, traduzida em linguagem humana, foi chamada de felicidade. O homem, pioneiro da consciência da inconsciência no cosmos, inventa, portanto, a assunção da falta, a infelicidade estacionária e a tristeza transcendente; todas elas coisas suas, dado que conscientes. Somos animais todas as vezes em que somos realmente felizes, pois isso que chamamos de felicidade – que em cada época nossa é investido de conotações históricas-culturais diversas – para além da sofistaria oculta sob dessa palavra, pertence inconscientemente ao universo enquanto inconsciência de si próprio.

Somente o ser inconsciente da inconsciência universal pode ser inconsciente de sua própria consciência, e, sem distanciamento algum, ser absolutamente o que é no momento em que é. Só aí a felicidade pode ser, mas somente se não for consciente nem de seu próprio nome. Isso é tudo menos humano. Nós, conscientes da nossa própria inconsciência, fizemos da inconsciência algo humano, não universal; e da consciência, aquilo que separa-nos do universo. A consciência dessa separação é a falta consciente, e sua alienação, o re-acordo com a inconsciência universal, que, por ser inconsciente, é feliz em si mesma. Os deuses gregos eram absolutamente bem-aventurados, e nada lhes faltava, porque se mantinham totalmente alienados das necessidades dos homens. Estivessem eles conscientes das faltas terrenas, e até das suas, deixariam de ser divinos e decairiam em humanos: aqueles conscientes inclusive daquilo de que são inconscientes. Foi o homem que inventou a infelicidade ao traslar a felicidade para o mundo da consciência. Portanto, não há paz no mundo dos homens, só além e aquém dele, isto é, no chão animal ou no céu divino; lugares que a consciência e a inconsciência intentam representar, tragicamente.

Humanidade alienígena

O ser humano, produtor e produto de sua autocultura, não se priva de criar mundos e deuses à sua imagem e semelhança. Talvez a bíblia traga essa verdade de forma invertida para dissimular tal natureza nossa. A projeção de si próprio sobre o universo desconhecido, e cujo empreendimento é o próprio homem, encontrou na imaginação do que viria a ser o “alienígena” dificuldades maiores que na imaginação das suas próprias divindades. Tanto os aliens quanto os deuses demandam nossa fé, isso devido suas insuficiências empíricas. Entrementes, Deus não é mais esperado que coloque seus etéreos pés na superfície terrena, enquanto os alienígenas gozam, ainda que nas nossas imaginações, de um horizonte de possibilidade.

O homem é o ser através do qual quimeras ascendem ao cosmos. Estas criações, por se tratarem do humano em sua expressão mais elevada, sintomaticamente apresentam-se como que algo exterior e independente dessa criatividade originária. Durante séculos se investigou de onde vinham as ideias de fadas, duendes e unicórnios. Porém, foram Locke e Hume que, empiricamente, mostraram que todas elas eram nada além de um “pout-pourri” das imagens com as quais os homens já representavam a natureza. Era precisamente a impossibilidade da coexistência das asas dos pássaros nos corpos das ninfas que mentiam a autenticidade das fadas; a mesma coisa com os unicórnios, ou com qualquer outra quimera de múltiplas cabeças, pois basta conhecer uma única cabeça para que seja possível multiplicá-la animicamente a despeito das contingências da natureza.

As HQs e o cinema foram as artes que mais idealizaram o extraterreno à real curiosidade terrena acerca de outros mundos. No entanto, estas representações artísticas sempre padeceram de realidade justamente pela proximidade que tinham com quem as idealizava. De todas as possibilidades formais do universo, inclusive as múltiplas existentes nosso minúsculo planeta, nossos aliens insistiram em aportarem por estas bandas demasiado antropomorfizados. Se nos filmes a vida no universo se mostrou tão sem criatividade, a culpa não é dos filmes, muito menos do universo. Falta-nos, portanto, a capacidade de imaginarmos o inimaginável sem que ele seja representado por algo já imaginado. Deus é sempre o melhor exemplo disso, pois, embora pensado enquanto “tudo”, sua forma e suas paixões são tão particulares quanto as nossas; melhores somente no tanto que desejamos que as nossas o fossem.

Na ficção científica “O Limite do Amanhã”, estrelado recentemente por Tom Cruise, a projeção alienígena humana avança para longe do homem como nunca antes. Neste filme, vemos seres com características que escapam às caracterizações com que usualmente ilustramos o desconhecido extraterrestre. Os aliens que atormentam Cruise são-nos amorfos apesar de terem uma forma própria; são materiais embora não se tenha ideia de que matéria poderiam ser feitos; movem-se diante dos nossos olhos em um movimento impossível de ser decodificado; preservam-se destruindo-se violentamente contra tudo que encontram pela frente. Vê-los é precisar seguir os vendo, ainda que olhá-los não nos revele o que e como são. Essa nova geração de ETs cinematográficos, por conseguinte, proporciona a experiência mais próxima daquela que teremos quando nos depararmos pela primeira vez com ETs reais, se de fato eles existirem, ou seja, a da suspensão do juízo por incapacidade absoluta deste em ajuizar o inajuizável.

Porém, como o homem não se ausenta totalmente das suas criações, as únicas coisas que se pode perceber de comum entre ele e aqueles aliens “do amanhã” é o fato de ambos matarem e morrerem. Isso, contudo, diz muito mais do humano que do alienígena, dado que não se tem prova alguma de que os extraterrestres possuam o ímpeto de matar ou o fardo de morrer. Entretanto, por mais que neguem semelhança conosco, os aliens de Cruise ainda são nós mesmos em nossa expressão mais transcendente. Logo, cabe indagar “o que” do homem está expresso nessa surpreendente quimera hollywoodiana.

O ET de Spielberg era a singela encarnação daquilo que o homem desejava que estivesse mais distante de si naqueles 1980, ou seja, carência, desconjuntura, estranheza, sobrepeso, baixa-estatura, ingenuidade, a-nacionalidade, etc. Já o ET de Cruise em sua proposital inapreensibilidade provavelmente seja o último artificio humano no sentido de alienar o homem da sua contemporânea incapacidade de auto-apreender-se. Michelangelo pediu para o seu Davi “parlar” não porque o mármore esculpido parecia-lhe mudo, mas justamente por dizer-lhe muito. As criaturas finalmente conversam com seus criadores! Da mesma forma, o ininteligível alienígena que pasmou Cruise – enquanto obra última do imaginário humano – deve ser solicitado a dizer-nos aquilo que nele mesmo nunca se calará, isto é, o que eu, homem, desejo através das minhas criações.

Os aliens, até hoje, não vieram ao nosso mundo, portanto, nunca tiveram nada a nos dizer. Somos nós, por conseguinte, que em uma inversão narcísica tagarelamos de nós mesmos através deles. Não há uma ideia única e perene de alienígena nas nossas ficções, mas muitas – todas elas absolutamente históricas -, porque temos sempre coisas novas a dizer e a alienar de nós mesmos. Logo, nossas quimeras – as figuras ferramentais da alienação – devem ser muitas e extensíveis. Imaginemos o que aconteceria com a nossa ficção alienígena, e com a autoanálise que ela proporciona à consciência humana, após o contato com extraterrestres reais. Estaríamos doravante privados de projetar livremente o terreno no extraterreno e impedidos de expressarmo-nos, tautológica e solitariamente, na lousa virgem do universo; ou seja, obrigados a enxergar no universo um universo que não nós mesmos.

A estratégica subversão demagógica

A demagogia, técnica antiga forjada na Grécia, significa, positivamente, “a arte de conduzir o povo”. Entretanto, tonaliza-se negativamente quando seu escopo tende à manipulação das massas. Aristóteles bem colocou que a demagogia é a forma através da qual a democracia é corrompida em favor daqueles que, doravante, conduzem e manipulam os demais. Porém, essa ferramenta sócio-política, tão antiga quanto os grupamentos humanos, não pode ser alienada da vida das sociedades, dado que a sua presença histórica, ainda que de matizes anti-sociais, atende à certas necessidades dos homens nos momentos em que desgovernam-se, eles mesmos, na busca de suas necessidades essenciais.

Lula foi um presidente democrático, sem dúvida. No entanto, em certa medida, foi demagogo, mas não de todo. O presidente operário conduziu as massas, sim, uma vez que elas tinham perdido a capacidade de se autoconduzirem na engessada e elitista estrutura legada pela longa era militar brasileira. Felizmente, o coquetel político – platonicamente nato – presenta na figura de Lula – figura essa, friso, parcialmente demagógica – conduziu as massas para uma condição melhor. Claro, fosse este governante apenas, ou demasiado demagógico, ele não teria se mantido no poder por dois mandatos fortemente aprovados pela população nem teria elegido uma sucessora sua, esta, em vias de reeleição.

É importante reconhecermos a função estratégica, e inclusive salutar, que certa dose de demagogia pode ter no nosso devir sócio-político; da mesma forma que a tirania, a despeito das conotações que nós, modernos-pós-modernos, atribuímos a ela, em determinadas ocasiões e por determinado período foi positiva. Os antigos gregos e etruscos, de acordo com Fustel de Coulanges, na translação do poder sacerdotal para o político, chamaram, sem receio, esses novos líderes urbanos de “tiranos”, porquanto “Reis” eram aqueles que, desde sempre, intermediavam com o divino. Os primeiros tiranos, portanto, foram os que libertaram os sedentos assuntos sociais humanos dos acachapantes desígnios divinos; e os tiranos só ascenderam ao poder porque fortemente aliados às mais imperiosas necessidades populares, tais como o cancelamento das dívidas públicas, a reforma agrária e o fim da escravidão. Só um tirano para ir contra o poder estabelecido!

O problema da tirania, entrementes, é a sua permanência para além da revolução que representa. E isso vale para todas as formas de governo, pois o mal da demasia é imanente às instituições humanas – o mal da Cultura é cultuar-se! Logo, a permanência insistente não é predicado exclusivo da tirania, nem da demagogia; visto que nem o amor, a mais sublime das invenções dos homens, dura tanto quanto a presença daquele que é amado O problema, na verdade, não são as figuras com as quais o poder se representa no incessante devir político, mas sim a insistência delas uma vez caducas em relação às sempre renovadas necessidades populares. Essencial, hoje, é perceber quando a demagogia ultrapassa o limite positivo da condução e age no negativo sentido da manipulação, dado que a demagogia, mais-valendo-se livremente, e abstraída dos anseios populares, deságua não na tirania, mas sim na oligarquia, isto é, no governo de poucos.

De todas as formas demagógicas, as mais danosas são as religiosas, porquanto manipula no sentido de engodos transcendentes, ou seja, o final merecimento do reino dos céus. A atual candidata religiosa à presidência, Marina Silva, junta o pior dos dois mundos demagógicos na equação política que é. Essa candidata nada laica é uma duplicação demagógica: promete conduzir a população em um caminho mundano-político evolutivo no mesmo discurso em que prega um manipulado criacionismo divino-moral que, não obstante, contradiz qualquer evolução. Marina e sua corja evangélica entram em uma contradição que eleva a demagogia a uma potência tão perigosa quanto insustentável. Ela é sobredemagógica: suas palavras mentem condução, quem as fala evidencia manipulação, e a acolhida destas palavras gera, infelizmente, uma massa engodada e alienada.

Todavia, não é o caso de injuriarmos a demagogia e de bani-la imediatamente. Sua distância se dá a partir de grandes movimentos históricos. Melhor seria aceitarmos o tanto de demagogia que esse nosso momento expressa e, sobremaneira, carece, pois só assim poderemos lidar com essa arte sócio-política num sentido positivo. O que chamamos, hoje, de democracia, para Aristóteles, é a demagogia em sua presença plena, pois, diferente da democracia grega, cujo pressuposto básico era a participação política direta de todos os cidadãos nas decisões coletivas, a nossa é demasiado representativa, entregue às mãos de poucos eleitos para nos conduzirem em nossos interesses. Logo, sob o nosso ideal democrático esconde-se sorrateiramente um real demagógico, e essa democracia cenográfica só se sustenta devido à força do texto demagógico que conduz a trama social atual.

Portanto, não é o caso de, nestas próximas eleições, escolhermos candidatos que não sejam demagógicos, visto que não há política não-demagógica disponível na contemporaneidade. Muito menos o voto em branco nos serve, porquanto o valor desse ato político – fantasiado de apolítico, ou mesmo de antipolítico – valoriza diretamente o tipo de demagogia mais perniciosa, a sobredemagogia, ou seja, aquela cujo real interesse é o de manipular e ludibriar a massa, não o de conduzi-la. Embora estejamos momentaneamente impossibilitados de representarmo-nos diretamente na arena política brasileira, e isso devido à representatividade demagógica que mantemos eleita, podemos e devemos agir, ainda que indiretamente, conta os piores tipos de demagogia que nos espreitam.

Se a nossa democracia é aristotelicamente demagógica, tal é a nossa política. Logo, a ação política mais apropriada ao cidadão atual não deve ser a inocente democrática, mas sim a cínica demagógica. Pois somente apropriando-nos subversivamente desta “arte de conduzir”, e invertendo-lhe o foco, isto é, tornado artificial o próprio artifício, é que poderemos manipular os diferentes modos demagógicos que nos manipulam a fim de conduzir ao poder aquele que conduzirá as nossas necessidades cidadãs à luz da ação. Se nós, conjunturalmente, precisamos ser conduzidos, que essa condução não nos escape completamente, ou então estaremos entregues às manipulações demagógicas mais abjetas e vazias que, no caso brasileiro atual, vêm das mãos dadas da crente Marina e do inacreditável Malafaia; mãos evangélicas ansiosas para manipularem demagogicamente a massa para além e em absoluto detrimento das reais e contingentes necessidades desta.

 

Bege Pantone-7×1

Deixamos de ser – ao vivo, em cores e em HD, para o mundo todo e, principalmente, para nós mesmos – o país do futebol. Agora, somos apenas um entre tantos outros onde simplesmente se pratica esse esporte. Acordamos no Brasil que restou: aquele pobre, caótico e atrasado que se quer rico, em ordem e em progresso. Oxalá essa vigília dolorida e indesejada – em quatro anos afastada de uma possível recuperação do histórico título perdido – possibilite ao Brasil ser tantos outros quanto precisam os seus brasileiros.

Merecemos um país melhor em muitas outras coisas que não somente no seu próprio ópio; sem com isso desdenhar da importância da nossa cachaça, é claro. Hume já dizia que é “feliz aquele com cujo caráter as circunstâncias estão em acordo; porém, mais excelente é aquele que pode levar seu caráter a entrar em acordo com não importa qual circunstância”. Por conseguinte, é com essa dura realidade padrão Brasil, que estaria reluzentemente alienada sob os quilos de ouro da taça que não é ser nossa, que devemos levar nossos caráteres a entrarem em acordo. Afinal, o que nos resta?

Todo um Brasil precisa ser inventado fora das arenas padrão FIFA e sobre o nosso verde&amarelo desbotado. Ainda bem que “o homem é uma espécie inventiva”, afirmou Deleuze. Entretanto, esse “todo” é apenas a coleção abstrata de suas partes, já estas, concretas, são cada um dos milhões de brasileiros em suas reais necessidades. E já que “a necessidade é natural, mas a satisfação da necessidade só pode ser artificial, industrial e cultural”, como nos advertiu Hume, cabe-nos agora fazer do Brasil uma máquina azeitada que funcione em benefício das suas centenas de milhões de engrenagens.

Manteremos com o futebol a velha paixão de sempre? É bem provável que sim, mas devemos tirar dessa derrota semifinal uma lição mais importante: a de sermos apaixonados inclusive por aquilo que nos envergonha! Tal relação, seria bom que trouxéssemos a outro campo, o da política, que tanta decepção nos causa, e que por isso mesmo dele nos alienamos vergonhosamente. Todavia, aponta Deleuze, “não basta que a paixão se imagine; é preciso que a imaginação se apaixone ao mesmo tempo”. Logo, mais do que só desejarmos um país melhor, devemos nos apaixonar por tal imagem, como certamente faremos por uma seleção melhor; só assim não desinvestiremos da imagem desejada.

Não somos habituados a amar o que não paga esse sentimento na mesma moeda; vide a raiva e a incredulidade sobrevindas após o apito final no Mineirão, bem como as muitas intenções de votos em branco nas próximas eleições. Porém, como escreveu Bergson, “os hábitos não são da natureza, mas o que é da natureza é o hábito de contrair hábitos”. Portanto, não há nada de sobrenatural em nos habituarmos ao envolvimento político mesmo quando os nossos políticos não se envolvem verdadeiramente conosco; da mesma forma como há um século somos habituados a permanecer fiéis ao futebol mesmo nas – muitas – vezes em que perdemos.

Da midiática disputa entre as seleções na Copa à construção política e social do nosso país, “quantos conflitos menores não é necessário resolver quando se passa do devaneio erradio ao vocabulário racional?”, pergunta-nos Gaston Bachelard. Exigir assertividade tática de onze solitários brasileiros em campo certamente é mais fácil do que exigi-la de nós mesmos, os duzentos milhões no campo de batalha subsistente sob o calendário da FIFA. O que fazer nesse vazio deixado pela nossa seleção que, não obstante, é pleno de um país inteiro? Respondemos com Deleuze: “crer e inventar, eis o que faz o sujeito como sujeito”.

O nosso carnaval fora de época chegou à sua angusta “Quarta-feira de Cinzas”, e estejamos todos “bege pantone-7×1”. Isso por que, de acordo com Hume, “nosso sentido do dever segue sempre o curso habitual e natural de nossas paixões”. Entretanto, se invertermos a afirmação do filósofo, e nos colocarmos apaixonadamente no sentido do nosso dever, seremos menos derrotados na partida que é nossa e à qual estamos inalienavelmente sujeitos. Afinal, concluindo com Deleuze “o sujeito é essa instância que, sob o efeito de um princípio de utilidade, persegue um alvo, uma intenção, organiza meios em vista de um fim”. E que fim melhor ao Brasil que um Brasil melhor?

>>>>> Texto vendido para a chamada criativa da Its.noon na campanha: “QUE MUDANÇA POSITIVA UM 7X1 DESPERTA EM VC?”

“Casaltmosfera”

O que mais pode inspirar na relação entre um casal que a troca do que há de melhor entre estas duas pessoas, ou seja, do amor, do querer bem, da paixão e do desejo, já que essa é a maravilhosa troca na qual ninguém perde o que dá, aliás, ganha mais? Um casal é um sistema em equilíbrio dinâmico; um universo fechado em si mesmo, porém completamente aberto ao que há de mail pleno, livre e gracioso na natureza humana, isto é, ao amor!

Um casal é a troca leal daquilo que ambos mais abundam e ao mesmo tempo mais necessitam: do amor que sentem um pelo outro e do amor que carecem um do outro. Quando um par se ama, cada um recebe o que tem para dar e dá aquilo que recebe – e quanto mais, mais! Não há capitalismo que explore o amor entre duas pessoas! Não há comunismo maior que a comunhão entre um casal que se quer. Não há anarquia que destrua a lei do amor que reina no castelo de dois seres apaixonados.

O universo é feito de caos, e a vida no mundo não cansa de nos mostrar isso. Entretanto, é o amor entre um casal que desafia o cosmos e traz a estes dois que se amam a ordem que ambos mais desejam para dentro dos limites dessa relação. Amar, e ao mesmo tempo ser amado, é a atmosfera perfeita que dá cada vez mais fôlego aos amantes. Trocar amor com quem se ama é a suprema ecologia do coração humano, cuja vida somente brota plenamente quando regada pelo mais sublime dos sentimentos, ou seja, o amor.

Mesmo sozinho se é um casal! Quando desencontrados da nossa cara metade, somos casados com quem nos falta, e nosso desejo de amar e ser amado existe mesmo que esse parceiro ou parceira ainda não tenha rosto nem nome. Assim como a criança solitária tem os seus amiguinhos imaginários, o homem e a mulher, em suas solidões, também têm os seus amores imaginários. Porém, esse parceiro ou parceira ausente que todo coração solitário sustenta e insiste é um modo de sobrevivência enquanto o amor de carne, coração, osso e fluídos não chega para lhe abrir propriamente a vida que só brilha no amor entre duas pessoas.

A plenitude da existência só encontra voz, toque, troca e compreensão na relação entre um casal que se ama verdadeiramente. Se o amor inspira o ser humano, um casal é o próprio amor inspirado e expirado constantemente; é a suprema respiração de duas pessoas transformada no sublime suspiro de um ser duplo&único que só existe dentro das fronteiras de um casal.

>>>>> Texto vendido para a chamada criativa da Rede Globo na campanha: “O que te inspira na relação de amor entre um casal?”

O limite das palavras

Humano e linguagem são uma coisa só, inextricáveis, pois, separados, há novamente o velho animal em sua solipsista instintividade. No entanto, sendo a linguagem a própria existência humana, por que, no final das contas, cindiu-se em palavras diversas? De certa forma, podemos ver a linguagem como a expressão genuína da imprecisão incontornável da condição humana. O mundo é a caixa de ressonância das palavras que dizemos e pensamos, e inclusive o menor “gesto físico não é uma forma de contornar a linguagem, visto que só no âmbito da linguagem é que ele conta como gesto”, afirma Terry Eagleton. Logo, a liberdade que a linguagem nos proporcionou em relação à natureza nos aprisionou em outra, a nossa própria, a humana. Esse movimento, de certa forma, não nos afastou da velha imprecisão-ambiente das savanas ancestrais, pois, para Eagleton, “a linguagem ajuda-nos a libertar-nos da casa-prisão dos nossos sentidos, ao mesmo tempo que nos abstrai prejudicialmente deles”.

Essa abstração em relação aos nossos sentidos de que fala o filósofo – fruto da linguagem, ou, a mesma coisa, da humanidade –, outrossim, é a abstração irreconciliável dos sentidos universais que nos prometem as palavras que usamos para nomear nossos sentidos individuais. As palavras se oferecem como atalhos que, não obstante, revelam-se desvios, porquanto, de acordo com Hume, “somos obrigados a reconhecer em palavras aquela necessidade que já temos reconhecido em todas as deliberações de nossa vida e em todos os passos de nossa conduta e de nossas ações”. Portanto, não somos livres para ser até que essa alforria seja dada pela linguagem. Submetida ao senhor linguístico, essa liberdade é eternamente escrava, e a subjetividade cativa é obrigada a pastar dentro dos limites do campo semântico daquele. O “Black Bloc” Guatari grita da senzala: “não são os fatos de linguagem nem os de comunicação que produzem a subjetividade. Ela e manufaturada como o são a energia, a eletricidade ou o alumínio”!. Todavia, o filósofo teve de se submeter às letras capatazes no manifesto de sua subjetividade linguisticamente oprimida.

As palavras são, por conseguinte, as donas dos nossos sentidos; melhor, são esses sentidos mesmos. Era exatamente isso que disse Wittgenstein ao limitar o mundo do homem aos limites de sua linguagem. Somos tão escravos da nossa natureza humana-linguística quanto os animais caídos na natureza muda de outrora, e essa impossibilidade de liberdade se dá, de acordo com Eagleton, porque “as bases da própria linguagem são porosas, de contornos difusos, indeterminadas, intrinsecamente inconsistentes, nunca exatamente idênticas a si próprias”. Linguisticamente temos acesso a um universo inteiro de sentidos, no entanto, em meio a essa abundância semântica, temos de trabalhar arduamente na escolha de termos que expressem, com certa precisão, os nossos sentidos particulares. Só que, uma vez feita a delimitação léxica máxima, ou seja, a escolha da palavra perfeita, ainda assim ela é absolutamente livre do sentido particular que orientou-nos na sua escolha dentro do mar revolto de sentidos e palavras. Nossas palavras têm tantos sentidos quantas forem as vezes que forem tomadas; inclusive para nós mesmos as nossas precisas palavras insistem em dizem sempre coisas novas, muitas delas negando as que já foram ditas sob esse mesmo nome.

A própria filosofia é alimentada pela abertura inerente das palavras. Sócrates já perguntava ao Estrangeiro de O Sofista: “Já que nos encontramos em dificuldades, compete-vos esclarecer o que quereis indicar, quando pronunciais a palavra Ser”. Hume, consoando com o filósofo grego, afirma categoricamente que “até agora toda a controvérsia tem girado em torno de meras palavras”, visto que cada uma delas comporta uma multidão de sentidos que, não obstante, roubam sua objetividade pressuposta. Entrementes, a própria busca filosófica pelo ser uno que supostamente se esconde por trás das palavras, através do ferramental linguístico, acaba abstraindo ainda mais este já plurívoco ser. Isso ficou claro à Freud quando ele afirmou que “os filósofos expandem o sentido das palavras até que estas mal conservem algo de seu sentido original; chamam de “Deus” qualquer abstração nebulosa que criaram […], embora o seu deus seja apenas uma sombra sem substância”. Os ontólogos, contudo, “discordam somente em palavras e não em seu sentimento real”, contrapõe Hume. Mas, não estaria esse “sentimento real”, com o qual os filósofos deveriam concordar, impossibilitado justamente pela representação que os nomes prometem aos sentimentos individuais desejosos de expressão?

“É raro que as palavras não impliquem intenções e armadilhas”, adverte Deleuze, já que, para esse filósofo, a linguagem “tem como propriedade ser sempre deslocada com relação a si mesma”. Disso decorre o sentimento de realização quando conseguimos, final e arduamente, nos aproximar, através das palavras, daquilo que gostaríamos de dizer; ou quando outrem entende, sem muito distanciamento, um pensamento nosso. Isso porque, segundo o linguista Le Baphomet, “nos lembramos das palavras, mas seu sentido permanece obscuro; ou então o sentido aparece, quando desaparece a memoria das palavras”. Estamos, de certa forma, envolvidos com a linguagem através de um feitiço ao estilo do de Áquila, ou seja, quando precisamos da linguagem para ser, dado que sem ela não somos, ela é potencialmente perfeita. Entretanto, no exato instante que a tocamos ela não é mais, e, órfãos do desejado significado essencial, somos sem ela novamente. Foi nesse sentido que Deleuze disse que até os mestres das palavras, isto é, até “o escritor se serve de palavras, mas criando uma sintaxe que as introduz na sensação, e que faz gaguejar a língua corrente”.

No cruzamento das paralelas – e superpostas – subjetividade e linguagem, Sócrates chamou a atenção de Górgias: “se pusesses em dúvida minhas palavras e eu te mostrasse o punhal, decerto me observarias”. O grego, ali, queria dizer que, apesar das palavras serem o modo humano estabelecido de compartilhamento das coisas reais, estas não têm, devido sua natureza pré-linguística, a forma dos nomes que as carregam, carecendo, sempre, de significação extra quando conduzidas linguisticamente. Na sequência do diálogo platônico, Górgias, o sofista que usa a retórica como via excelente de realização, a contragosto corrobora com a intuição de Sócrates de que, no solo da linguagem, nada sabemos. O sofista perde a fala quando o filósofo lhe pergunta: “Não percebes que só estás empregando palavras e que nada esclareces?”. As palavras, portanto, são as formas através das quais inventamos o abandono do real, construindo, com elas, as presentes ficções das nossas realidades. Remontando ao animal pré-linguístico que desejava se elevar em relação às vicissitudes da natureza, o homem, através da linguagem, afastou-se do real ao preço de ser inalienavelmente um nômade linguístico que tagarela no vazio outrora preenchido pela natureza.

Por conseguinte, simples questões filosóficas, como quando nos perguntamos o que significa, por exemplo, “justiça”, ou “amor”, tornam-se digressões infindáveis que precisam de cada vez mais palavras além daquelas que, singularmente, deveriam traduzir inequivocamente seus conceitos essenciais. Na realidade, existem infinitas coisas completamente diferente umas das outras que são encurraladas em uma mesma sequência de letras, e esse é o grande problema das palavras. Houvesse nomes próprios para cada um dos muitos diferentes sentidos que insistem em brotar das insuficientes palavras “justiça”, “amor”, e principalmente da palavra “ser”, a filosofia provavelmente nem teria surgido. No entanto, uma vez que as coisas são sempre mais que os singelos grafismos que as alicerçam no mundo, a filosofia é fundamental. Já que a linguagem não é, de fato, o terreno do real, mas sim a forma humana de escapar dele, a filosofia é a ciência-mor através da qual reencontramos o chão perdido. Através da linguagem deixamos, sem dúvida, de ser animais. Logo, somos essencialmente linguagem. Porém, de posse dessa nova modalidade de existência, não nos rogamos em, impetuosamente, autonomearmo-nos “humanos”, embora a própria filosofia não tenha conseguido, em mais de vinte e cinco séculos de árduo exercício, encontrar palavras para descrever essa coisa.

Ironicamente, “coisa” é a palavra mais inequívoca de todas, ou seja, a que menos carece de definição justamente por ser a evasiva linguística mais genuína que não erra em apontar a evasão que a própria linguagem é em si. Provavelmente o primeiro corpúsculo linguística veio atender a essa sensação de “coisa”, isto é, de um “algo” que o homem mesmo era enquanto não era um nome só seu. Deleuze deixou claro que nós “começamos sempre na ordem da palavra, mas não na da linguagem”. Antes da universal “coisa”, nenhuma palavra particular havia, porém, uma vez existindo, todos os outros nomes se fizeram necessários; então, a linguagem. Citando corretamente Wittgenstein, “os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo”, percebe-se o limite ao qual estamos sujeitos desde que deixamos aquela natureza animal em direção à humanidade. Entrementes, emigrando dessa fronteira significativa-linguística, e evadindo do sentido da máxima do filósofo, podemos concluir que é somente para além dos limites da linguagem que deixa-se de ser limitado pelo mundo, pois só assim pode-se ser, sem contradição alguma, todas as antagônicas significações que digladiam eternamente sob o nome “humano”, bem como sob qualquer outro.

Sofistaria Avant-garde

Embora historicamente estigmatizados, os sofistas foram homens que produziram a primeira grande revolução na nossa antiguidade social, iniciando o desvínculo entre as primitivas instituições humanas e o sagrado. Os sofistas foram, de certa forma, absolutamente modernos em pleno coração da antiguidade, iniciando uma globalização laica das práticas humanas, colocando-as “em rede” e as tornando acessíveis a qualquer terminal humano que pudesse pagar por elas. Podemos, inclusive, enxergá-los como os “Black Bloc” que enfrentaram o poder – sagrado –  estabelecido, botando-o abaixo. Até 300a.C. não havia diferença entre um sofista, isto é, um sábio, e um filósofo, a saber, um amante da sabedoria. Até o grande Sócrates era, muitas vezes, tomado por um sofista. Entretanto, foi Platão que inventou a diferença entre estes dois modos de relacionamento com o conhecimento, dizendo que aquilo que os sofistas faziam era diferente, e menor, do que aquilo que ele e seu mestre Sócrates faziam.

O estrangeirismo doravante ressaltado nos sofistas foi a rasteira clássica com que os gregos os desqualificaram irremediavelmente, visto que, para os antigos helenos, o maior e mais legítimo valor era o de ser um cidadão reconhecido. Entretanto, os sofistas se insistiram presentes. A arte destes sábios injustamente periferizados agiu sobre as primordiais instituições humanas, transformando-as, inclusive para que fosse possível o apogeu platônico da metafísica que os desqualificou retrospectivamente. Nos primórdios da humanidade, o conhecimento era individualizado e com validade estritamente familiar, a ponto de ser ao mesmo tempo sagrado e secreto. Embora estas duas palavras não tenham o mesmo significado, há um sentido comum entre elas, aqui significativo: “inviolável”. Os sofistas, portanto, foram esses forasteiros, ditos ímpios, que violaram esses saberes familiares sagrados e secretos, derramando-os no profano solo social.

De certa forma, a sociedade humana global não aconteceria caso os saberes seguissem particulares e secretos, escondidos na sacralidade dos desconexos núcleos familiares. Logo, os sofistas fizeram as primeiras relativizações epistemológicas ao descobrirem e confrontarem os desencontrados grãos de conhecimento espalhados pelos chãos do mundo. O estrangeirismo errante destes sábios ajudou muito nessa empresa, pois, viajando o mundo, encontravam verdades absolutas locais e nucleares, totalmente diversas e incompatíveis entre si; o que, no final, evidenciava a não existência de verdade universal alguma. Estes apátridas relativizadores trataram de contar – mercadologicamente, de fato – essa que poderia ser a única verdade universal, ou seja, a inexistência de verdades universais. Essa foi a grande afronta sofística ao secreto e sagrado conhecimento que estruturava e individualizava cada família, gen ou fratria antiga, porquanto solapava as sacralidades invioláveis, revelando suas funcionalidades terrenas.

De posse desse novo e universal saber, os sofistas foram os que, laicizando as práticas humanas, primeiramente deixaram de sustentar o populoso panteão divino antigo, legitimador sagrado daquela sociedade, o que foi eternizado na máxima de Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas” – sabedoria que só seria desenterrada no iluminismo, vinte séculos depois! Como assim, perguntaram-se os gregos, é o homem a medida? Até então, e indubitavelmente, eram os nossos deuses ancestrais! Platão, o filósofo que degradou os sofistas, via na sabedoria secular destes o impedimento à sua própria teoria do mundo das ideias eternas e verdadeiras, superior e independente dos homens. Portanto, esses sábios que lidavam com o saber de forma desapaixonada e laica, ao contrário dos envolvidos amantes filósofos, sofreram, a partir de Platão, um injusto ostracismo da história epistemológica. Na sequência, somente Aristóteles manteve-se com os pés cravados no mundo físico material, entretanto, depois dele, a caminhada humana foi em direção ao apogeu cristão que, vitoriosamente, alienou a medida universal do homem, coagulando-a num mundo deveras platônico, entrementes,  reinado por um Deus absoluto e onipotente.

Caso a força sofista tivesse sido positivamente reconhecida pelos antigos gregos, o absurdo mundo das ideias ideais platônico, e o seu fruto legítimo, o céu cristão habitado por um deus ideal, teria pervertido menos a terrena história da humanidade. Foi preciso uma Idade das Trevas inteira para que a insustentável negação da medida protagórica caísse por terra e o homem se assumisse, profanamente, como a medida de todas as coisas. A fantasia divina, apesar de ter sido o princípio estruturador da humanidade, foi um conjunto de saberes temporários que, todavia, não se sustentaram quando frente-a-frente na agora. Havia uma verdade mais baixa e simples, portanto mais universal, a de que a verdade absoluta era o próprio homem em sua ignorância em relação ao cosmos, verdade essa que os sofistas descobriram primeiro. A própria evolução histórica lineariza isso, dado que cada época, e suas verdades inerentes, não obstante desvanecem diante das outras, da mesma forma como a verdade sagrada de uma antiga família era negada e solapada pela de outra.

Os sofistas formam chamados de vis mercadores de sabedoria pelos cidadãos gregos que sobrevalorizavam o ócio em detrimento do trabalho. Porém, o calcanhar de Aquiles daquela sociedade grega era a estabelecida escravidão que sustentava o modo contemplativo e vagabundo da tradicional aristocracia política. Trabalhar era indigno para um cidadão-homem-rico-grego, era coisa de escravo. Por conseguinte, os sofistas, ao venderem profissionalmente suas ideias, foram rebaixados ao nível da inessencialidade. Entretanto, da modernidade até hoje, estes artífices do saber que conseguiram transformar em produtos vendáveis as suas visões de mundo não merecem mais tal estigma. Ao contrário, deveríamos prestar homenagem e gratidão a esses aventureiros que, séculos antes de Nietzsche, mataram os deuses e fizeram o primordial parto de uma humanidade prisioneira de um útero tomado, inadvertidamente, como o local sagrado, secreto e familiar das sabedorias essenciais.

Se os muitos deuses familiares, bem como os fálicos&machistas “pater família” primordiais, foram questionados nos fictícios dogmas que sustentavam – e com os quais mantinham cativos os seus -, sendo historicamente derrotados, devemos isso aos sofistas, pois foram eles que, primeiramente, viram o logro do divino-sagrado-secreto sobre o humano. Hoje, para o bem e para o mal, ou para além deles, somos resplandecentemente a medida sofística inquestionável de todas as coisas, pois  sabemos, cientificamente!, que as nossas venturas e revezes não são frutos de desígnio divino algum, mas sim das nossas próprias desmedidas. As verdades humanas são históricas, contingentes e efêmeras, e subsistem pontual e nuclearmente conquanto não sejam questionadas. Porém, uma vez relativizadas, essas verdades particulares padecem precisamente daquilo que deveria ser sua essência substancial, ou seja, de sua validade universal, revelando-se, sempre, ferramentas caídas nas mãos da atávica ignorância humana. Esta foi a desagradável verdade que os sofistas introduziram no fantasioso mundo dos homens, revolucionando humanamente os dogmáticos bancos dos saberes privados.

 

 

O fogo prometeico em Hesíodo, Ésquilo e Platão.

O mito de Prometeu, que conta a chegada do fogo divino-cria-ativo aos homens, encontrou em Hesíodo e Ésquilo sentidos distintos e, inclusive, antagônicos. Platão, por sua vez, fez uma interpretação do mito prometeico que, não obstante, integrou as visões daqueles dois no seu sistema filosófico. O incandescente tesouro roubado de Zeus incendiou demiurgicamente os mortais humanos através da “techné” (arte técnica) necessária à lida com a materialidade imperiosa da natureza. O produtos genuíno dessa técnica, não obstante, foi a cultura humana, ou seja, a transformação da natureza em mundo. Por fim, a razão humana em chamas, alimentada pela fogueira cultural, “tecnicizou-se” cientificamente e alcançou a contemplação de um saber universal totalmente independente da natureza, em um processo que nasceu mitológico e findou histórico. Hesíodo, Ésquilo e Platão, respectivamente, fazem esse percurso.

Para Hesíodo, o homem, herdeiro do fogo prometeico, estava condenado a espiar eternamente tal espólio, porquanto, uma vez órfão de sua imortalidade devido a posse dessa herança, precisava sobreviver em meio a uma natureza hostil e atávica, plena de decadência e vicissitude. O antigo camponês-poeta via o humano enquanto aquele que precisava laborar por sua sobrevivência, tarefa cuja liberdade o homem nunca veria. Conquanto dispusesse de técnicas adequadas às suas necessidades esse ser mortal poderia contornar, apenas temporariamente, as adversidades naturais que desafiavam essa indesejada mortalidade. Em Hesíodo vemos uma negatividade inexorável em relação à condição humana, visto que, embora com técnica e conhecimento, a humanidade nunca se livraria da mágoa divina. O Zeus hesiódico, roubado, assemelha-se, em certa medida, ao Deus cristão onisciente e onipotente em relação ao pecado original. Na visão de Hesíodo, o laborar-sobreviver humano através da técnica, apesar de contornar em certa medida a natureza, de forma alguma institui uma libertação cultural.

Já em Ésquilo o fogo prometeico arde de forma mais positiva, pois, apesar de sua mortalidade e falibilidade, o homem, através da chama divina roubada que mantém dentro de si, desdobrada em técnica, pode aliviar-se da contingência natural e, inclusive, instituir um mundo ao seu redor que nada tenha a ver com os deuses nem com a própria natureza. Para o dramaturgo grego, ou o crime de Prometeu era menos grave, visto que o homem podia escapar da penitência divina nas suas instituições culturais, ou seu Zeus furtado assemelhava-se às divindades descritas por Epicuro ao seu pupilo Meneceu; isto é, entretidas em suas bem-aventuranças eternas e desatentas em relação à carente existência humana. Logo, o deus esquiliano é bem mais grego que o hesiódico, dado que absorto em sua própria esfera imortal e perfeita. Na alienação divina em relação ao mundano, o homem, para Ésquilo, contudo, tem na posse dessa flama indevida o combustível para pagar seus pecados e, nessa empresa, encontrar um paraíso só seu entre a esfera divina e a animal, ou seja, o próprio mundo.

De sua excelência metafísica, Platão, da mesma forma que sintetizou as antagônicas teorias de Heráclito de Éfeso e de Parmênides de Eléia, colocando o incessante devir do efésio no sensível, mundano e terreno, e a imobilidade una e perfeita do eleata no ideal, superior e etéreo – o mundo platônico das ideias -, o aluno de Sócrates, ao interpretar o mito de Prometeu, contemplou, similar e inclusivamente, as visões de Hesíodo e de Ésquilo. A partir de Platão é possível enxergar a expiação prometeica da angusta sobrevivência na natureza sinalizada por Hesíodo enquanto o mundo da técnica, isto é, o lugar dos saberes e de suas aplicações em função das contingências materiais. Este seria o mundo hesiódico-heraclíteo, o mais baixo, estruturado pelo devir, sustentado na impermanência e sujeito a toda sorte de imperfeição e corrupção. Num sentido oposto, no entanto complementar, o mundo ideal platônico se alinha à interpretação esquiliana do mito de Prometeu, aonde, depois de a técnica laborar vitoriosamente sobre as demandas naturais materiais, surgem os produtos humanos de caráter divino, isto é, ideais, desvinculados da realidade material e capazes de entreter os homens em suas próprias humanidades – da mesma maneira como os deuses epicureus estavam em relação às suas bem-aventuranças eternas.

Em Platão, por conseguinte, encontra-se dimensão tanto para a técnica quanto para o saber em relação a ela desvinculado dela mesma, ou seja, a ciência pura . O conhecimento sobre a técnica, o saber sobre seus princípios e fins, para o filósofo, é superior à técnica em si, dado que esta visa a heraclítea-hesiódica realidade sublunar plena de imperfeição e mudança; enquanto aquele, isto é, a ciência, contempla as ideias perfeitas e imóveis – o ser -, apropriadamente parmedídico-esquiliano. Conhecer a substância desse mundo das ideias, para Platão, é alcançar o conhecimento absoluto, universal, superior e eterno; outrossim, reencontrar a imortalidade perdida pela posse da chama prometeica. Esse elevado saber paradisíaco, aprumado sobre a histórica laicização das techné – ainda que fruto e adubo da técnica -, é a ciência em sua universalidade máxima. Platonicamente, técnica e ciência precisam, necessariamente, habitar em mundos separados para poderem coexistir harmoniosamente, embora, tragicamente hierarquizados. Portanto, para Platão, é somente na contemplação desse conhecimento ideal e superior, livre de qualquer materialidade corruptível, que se aplaca a ira de Zeus pelo seu fogo vilipendiado.

As três interpretações do mito de Prometeu, a saber, a de Hesíodo, Ésquilo e Platão, podem ser frutiferamente confrontadas com a diferenciação entre labor e trabalho feita por Hanna Arendt na sua “A Condição Humana”. Segundo a filósofa, o labor se caracteriza pelo tipo de atividade cujos produtos atendem às necessidades constantes e mundanas em função da sobrevivência imediata, não obstante, evanescentes. Laboramos ao plantar e colher o trigo em vias do pão que, apesar de fundamental, é consumido, precisando ser laborado novamente, ad aeternum. Contraposto ao labor, Arendt coloca o trabalho que traz ao mundo a permanência, e que visa essencialmente não à natureza, mas sim a própria cultura humana. Trabalhamos descobrindo as verdades secretas e eternas do cosmos, refletindo sobre elas, contemplando-as, compartilhando-as. Apertando o parafuso arendtiano, o trabalho seria, unicamente, a própria ciência, ou, para Platão, a filosofia.

Portanto, de acordo com a diferença com que Arendt separou trabalho de Labor, Hesíodo transformou a culpa pelo fogo prometeico num interminável labor técnico que submetia inescapavelmente o mundo humano à natureza e ao divino; Ésquilo, em um trabalho que produz cultura e liberdade, ou seja, um afastamento possível tanto da natureza quanto dos deuses; já Platão, na ascensão que parte da funcionalidade das “techné” no que diz respeito às contingências materiais da natureza, galgando os muitos degraus dos saberes oriundos dessa performance técnica, alcança, finalmente, a esfera etérea, superior e eterna da ciência que pode, e deve, prescindir necessariamente dessas aplicações técnicas inferiores. O ideal platônico, por conseguinte, devolve a Zeus Olimpo o fogo que outrora lhe foi roubado por Prometeu para que a humanidade pague sua dívida e reencontre sua imortalidade negada, deixe a caverna e viva à luz de sua própria natureza.