Quem diz “eu amo a Filosofia” é vítima de uma perversão inadvertida que aliena algures o que deveria estar no centro desse amor. Atentando ao significado da palavra “filosofia”, isto é, “amor à sabedoria”, percebe-se a distância em relação à sabedoria em que se coloca aquele que ama não a sabedoria, mas o amor a ela. Se amar a filosofia, isto é, amar o amor à sabedoria, é uma perversão, o é enquanto amor sem foco objetivo – ou objetivamente sem foco! -, obra de uma subjetividade que sustenta amor a algo outro que não aquilo que ama de fato. O amor à filosofia, e não à sabedoria ela mesma, deixa órfã a sabedoria justamente pela interposição e pela celebração de uma afeição que deveria focar na sabedoria, não auto-focar a si mesma.
Pensemos no amor que temos por determinadas pessoas. Este é para elas e por causa delas, mesmo que desconhecidas as suas razões. A maior declaração de amor é espinozista: “há uma grande alegria em mim; e a causa da minha alegria é a ideia de que você existe”. Entretanto, a partir do momento que passamos a amar o amor às coisas, e não a elas mesmas, sacamos o amado da meta do nosso mais nobre sentimento, substituindo-o por nós mesmos. Temos aí um amor ligado não ao amado, mas voltado a si próprio; amor narcísico que ama a si mesmo através de um sentimento que deveria apontar para fora, para outrem. “Narciso acha feio o que não é espelho” não por amor ao espelho – esse amor seria mais fetichista que pervertido -, mas por amor a si.
Uma vez vítima desse amor, Narciso perde tudo: o mundo, o espelho e a si. Doravante, há somente a pervertida relação de amor entre uma subjetividade alienada do mundo e um objeto espectral, tão esvaziado de humanidade quando de merecimento de tão nobre sentimento. Contudo, aquilo que demanda amor, assim o faz por nunca ter sido amado e por sequer merecer esse amor, pois se o fosse, ou se o merecesse, não o demandaria. Tudo o que solicita nosso amor não é digno desse sentimento porquanto o amor verdadeiro é um assalto, um “sequestro-relâmpago” que nos mantém cativos precisamente daquilo que nos cativa prazerosa e subversivamente. O amor é uma afronta incontornável, sorrateira e gratuita, e qualquer esforço no sentido de cultivá-lo já é um desrespeito a tudo o que é digno de amor.
O que o amor à Filosofia – esse amor que ama o amor à sabedoria e não a sabedoria em si – ama verdadeiramente, ou é a ignorância, dado que não tem a sabedoria como o objeto último desse amor, ou a si mesmo, visto que amar o amor que se tem por alguma coisa é amar ao próprio sentimento, portanto a si. Logo, se algo precisa fantasiar-se de sabedoria para sustentar um amor, sabedoria não é; caso fosse, poderia apresentar-se nu. O objeto de amor que se mimetiza de sabedoria só pode ser a ignorância, pois qual disfarce seria melhor? Veste-se a ignorância com sabedoria pois, por um lado, a ignorância e aviltante, e por outro, a sabedoria, muitas vezes, é insuportável. Quantas vezes desejamos não saber de algo?
O famoso “Só sei que nada sei” socrático foi a postura “sui generis” que preservou a integridade da sabedoria justamente por aliená-la absolutamente de si, fazendo dela qualquer coisa que não o próprio Sócrates; não obstante condenando o filósofo à morte. Talvez por insistir que não sabia do que se tratava aquilo para que o saber se volta é que Sócrates tenha amado verdadeiramente a sabedoria, pois uma vez clarificada essa ímpia questão, não haveria mais a necessidade de amor, apenas de deliberação. O simples filosofar, portanto, é o mais sustentável modo de relacionar-se com a sabedoria porque exclui terceiros dessa relação, restando de um lado a ignorância confessa, o amante, e de outro a sabedoria absoluta, o objeto inalcançável desse amor.
Amar a Filosofia, ou seja, amar o amor à sabedoria é, portanto, colocar um amado intruso no meio da relação mais genuína que se pode ter com a verdade. Com a sabedoria há que se ter uma relação de fidelidade e sinceridade absolutas, dado que qualquer mentira recai sempre no lado mais fraco – no humano -, não no da verdade que é incorruptível. Portanto, amar a sabedoria é amá-la diretamente, com o peito aberto e com o amor de Espinoza: “o amor é uma alegria que a ideia de sua causa acompanha”. E esta causa pode muito bem ser a clássica aristotélica, ou seja, a causa que sempre contém em si o seu meio e seu fim.
Amar o amor, e não a alguma coisa é manter-se eternamente em um “Como eu seria feliz se…” sem que nada mais acompanhasse esse desejo. Woody Allen transcendeu essa indefinição dizendo “Como eu seria feliz se fosse feliz!” Perfeito! Em relação ao perverso amor ao amor – à sabedoria – Allen diria: como eu seria sábio se fosse sábio! Todavia, essa frase só pode ser dita por quem não é sábio, pois quem já o é não precisa de sabedoria para ser feliz, tem-na em fruição presente. Quando Aristóteles disse que “Amar é regozijar-se” falava de um “regozijar-se com”, não de um auto-regozijo narcísico, pois este não tem outro objeto de adoração que não ele próprio; e é perverso por mentir-se que esse objeto é outro.
Sempre que amamos a sabedoria é por que ela nos falta, no melhor estilo platônico, pois quando dizemos “eu te amo” o subtexto real é “você me falta, portanto te quero”. Os espanhóis tem uma relação mais direta com o amor – por isso considerados tão dramáticos -, pois, em vez de dizerem um “eu te amo” tendenciosamente abstrato, encarnam plenamente a falta que sentem dizendo: “Te quiero!” Em espanhol não se deixa de saber de onde vem a falta, por conseguinte, o que é que falta. Se amar a sabedoria é assumir que ela nos falta, amar o amor a ela é o modo perverso de escapar dessa angusta carência: mantém-se externamente a validade do objeto desejado sem com isso esse objeto ser o fim verdadeiro dos princípios internos.
Portanto, não amemos à Filosofia. Apenas filosofemos! Já há amor suficiente na simples relação com a sabedoria que nos falta, e Platão não nos deixa esquecer de que essa falta já é a maior declaração de amor. Em relação à sabedoria, ela reside sempre além do desejo que a deseja e nunca é ultrapassada por ele. Sendo assim, nunca seremos sábios, nunca donos da sabedoria, mas sempre amantes seus – saudáveis amantes nunca donos do amado. Quem ama o amor, por conseguinte, não se relaciona com os objetos amáveis, apenas consigo mesmo, pervertendo e aniquilando inadvertidamente tanto a falta quanto aquilo que falta. Quem permanece fiel a um amor perverso está fadado a permanecer sem qualquer objeto real para amar e, infelizmente, sem receber amor algum de volta.