Estupro coletivo ou criminalização da ninfomania?

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Depois de o Brasil ter se sensibilizado coletivamente com a jovem carioca de 16 anos estuprada por 30, 33 ou 36 homens em uma favela do Rio de Janeiro, e se apavorado com as centenas de comentários misóginos pró-estupro que pipocaram nas redes sociais –espécie de sobre estupro contra as mulheres em geral-, relatos de alguns dos envolvidos no estupro coletivo e de amigos da vítima põe em cheque a veracidade do fato. Não que o estupro em si mesmo deva ser relativizado, barbárie machista e extrema que é e sempre será. Porém, a sensibilização imediata e massiva da sociedade brasileira ao estupro que pode nem ter ocorrido revela uma ferida machista viva e exposta em torno desse assunto que, ao menor toque, dói muito, e coletivamente.

Um áudio que circulou na internet depois da manchete do “estupro coletivo”, no qual um dos supostos estupradores diz que a garota em questão não foi estuprada, mas deliberadamente quis transar com o ainda não definido contingente masculino, desafia nossa compreensão. Segundo o suposto estuprador, mas também depoimentos de conhecidos da garota, e inclusive postagens que a própria jovem costumava fazer nas redes sociais, ela gostava de fazer sexo com um grande número de homens, ademais, envolvidos no tráfico de drogas. Afirmam que ela trocava sexo por drogas, ou seja, espécie de prostituição. No entanto, que o suposto estuprador queria dizer no seu depoimento, mesmo sem dar o nome certo ao boi, é que a garota era uma ninfomaníaca –como a personagem do filme de Lars von Tries que o mundo não se privou de prestigiar massivamente.

Para evitar confusão, contudo, é preciso já esclarecer que tal preferência sexual, bem como qualquer outra, de forma alguma justifica um estupro, como muitos dos comentários perversos que se seguiram nas redes sociais tentavam dizer. Com efeito, não é porque a garota gostava de fazer sexo com muitos homens – tampouco porque não estava em casa, na igreja, na escola; nem porque usa drogas ou por ter engravidado aos 13 anos- que podia ser estuprada. Nada justifica tamanha barbárie. É preciso sustentar isso absolutamente.

Não obstante, pelo menos três informações devem ser avaliadas para não deixarmos nossos sentimentos e opiniões denominarem de estupro o que pode ter sido um ato de liberdade sexual plena de uma mulher. A primeira delas, disseram o suposto estuprador delator e alguns conhecidos da garota, é que ela costumava fazer sexo, e com certa frequência, com muitos homens ao mesmo tempo. Postagens no Facebook da própria menina deixam isso claro. Quais sejam: “hoje vou dar geral”, “se eu der pra três hoje vai ser pouco”. Novamente, tais atitudes de forma nenhuma justificam estupro, mas devem nos levar a considerar que o que ocorreu foi sexo coletivo consensual.

A segunda informação, dada pelo suposto estuprador, e que é bem plausível, é que, nas palavras dele, “não rola estupro na favela”. Com efeito, e felizmente, estupro é uma barbaridade imperdoável não só no “asfalto”, mas também na “favela”. Qualquer sujeito acusado de estupro nas comunidades é torturado e morto pelas milícias –assim como os estupradores presos são espancados e sodomizados até a morte nos presídios. Então, é muito improvável que alguns dos 30, 33 ou 36 supostos estupradores tenham postado vídeos e fotos da garota após o ato sexual coletivo se se tratasse de estupro. Ao contrário do que a opinião pública imediatamente pensou, que os vídeos, fotos e comentários eram troféus fálicos e perversíssimos dos estupradores, tais publicações, em caso de estupro, seriam, para o modus operandi das milícias, espécie de carta de morte.

A terceira informação a qual vale atentar é que, segundo relatos, o sexo grupal e consensual só foi chamado de estupro coletivo pela garota e por sua família porque os tais vídeos e fotos se tornaram públicos. Amigos dela dizem que os pais da menina sabiam da preferência ninfomaníaca da filha, embora desaprovassem, mas que, no momento em que todos estavam sabendo disso, por vergonha e para preservarem a imagem da garota e da família, mudaram o nome do que de fato ocorreu. Já não devia ser fácil para estes pais conviverem privadamente com a sexualidade excêntrica da filha, Imagina então terem de fazer o mesmo publicamente. Para restaurarem a reputação da filha diante da opinião pública, não é absurdo conceber que tenham dito que ela foi forçada ao que deliberadamente costumava fazer. Apesar de mentirosa, tal estratégia é humana, demasiado humana.

Porém, antes dessas informações, a ideia de estupro coletivo chocou a sociedade imediata e violentamente. Inclusive resiste em deixar de ser chocante mesmo depois de aclarado que a garota desejava e procurava experiências de sexo com muitos homens. Essa possível tática dos pais da garota de 16 anos de chamarem de estupro a consequência concreta da ninfomania da filha seja talvez a expressão particular de um tabu universal da nossa sociedade: negar às mulheres em geral a liberdade total em relação aos seus próprios desejos. Para a tacanhice machista da nossa sociedade, se se tratasse de um garoto de 16 anos que deliberadamente tivesse transado com 30, 33 ou 36 mulheres, de modo algum dele seria dito que padece de satiríase –o correlato masculino da ninfomania- nem que foi estuprado, mas que é um sortudo, ou o que é pior, homem de verdade. E por acaso o harém não é a instituição criada especialmente para os mais poderosos satiríacos?

É preciso considerar que, assim como os pais da garota se alienam da manifesta e radical ninfomania da filha ao dizerem publicamente que ela foi violentada, o restante da sociedade, que se chocou instantaneamente com o dito “estupro coletivo”, também prefere ver estupro – crime- onde há, na verdade, o exercício irrestrito da liberdade de um mulher em relação aos seus desejos. Como a nossa sociedade machista dormiria em paz se o que foi chamado de “estupro coletivo” de uma menina de 16 anos fosse de fato apenas mais uma e corriqueira experiência sexual de uma jovem mulher? “Não” -grita a fálica opinião pública- “isso é estupro. Afinal de contas, mulher alguma pode desejar isso para si”. Fica escondido aí, contudo, que é a própria sociedade machista que não quer isso para as mulheres.

Não podemos esquecer de que, atualmente e por conta da intercomunicação virtual, a sociedade brasileira se sensibiliza e se expressa coletivamente em relação a tudo que lhe desagrada e choca – e as polêmicas nas redes sociais acerca da crise política e da corrupção tupiniquins são provas concretas disso. Das duas possibilidades do real envolvendo a menina carioca de 16 anos, quais sejam, a) ela foi estuprada por 36 homens; e, b) desejou sexo com 36 homens, a primeira certamente congrega melhor essa sociedade machista, todavia traumaticamente, em função da manutenção de um tabu que visa justamente proibir e ocultar a segunda.

Estabelecer peremptoriamente que a menina de 16 anos foi estuprada por 36 homens, e não que ela quis transar com todos eles, portanto, é a histeria coletiva que melhor mantém a sociedade machista estupradora como ela é. Infelizmente, até aqui, a nossa sociedade sabe lidar melhor com a barbaridade do estupro de uma mulher e com a satiríase do que com a liberdade feminina radical envolvida na ninfomania. A realidade, bem como os sentimentos e opiniões comuns que ela gera, ainda seguem a cartilha machista-satiríaca. Aos sátiros toda liberdade e honra. Das ninfas, em contrapartida, quando praticam a mesma liberdade e honram seus desejos com a mesma desmedida, delas é dito que foram violentadas, estupradas. Por que? Ora, porque o macho-satiríaco também é um sádico narcisista: se a fêmea goza tanto ou mais que ele, é por causa de sua macheza e violência, e não porque ela é capaz disso.

Apesar das diferentes versões, não se tem certeza se a menina foi de fato estuprada ou se, como em outras vezes, propôs-se ao sexo coletivo apenas. Particularmente, prefiro que seja a segunda opção, e isso por dois motivos. Em primeiro lugar, porque a garota em questão deixa de ser uma vítima da barbárie do estupro para ser dona de suas escolhas sexuais, inclusive a de transar com dezenas de homens de uma só vez. Nada deve haver que prive as mulheres de realizarem seus desejos sexuais, por excêntricos sejam -se é que este conceito tem alguma realidade. Sem dizer que já é uma violência nominar a realização sexual plena de um mulher de violência. E em segundo lugar, é melhor que ela seja uma ninfomaníaca porque a sociedade tem de se habituar que a mulher pode ser, como muitas vezes é, tão ou mais livre, desejosa e ativa sexualmente do que um homem. Mas isso a nossa sociedade machista não pode aceitar, apenas criminalizar. Remédio perverso que nunca cicatrizará a ferida social aberta pelo machismo.

Homens são políticos; mulheres, cosmopolíticas.

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Imagem: Rosie Tasman Napurrurla

Lugar de mulher é na política? A resposta a essa pergunta é desafiadoramente afirmativa na contemporaneidade. Entretanto, ao longo da história, a coisa foi bem diferente. Desde o seu surgimento, na Grécia antiga, a política sempre foi coisa de homem. E se hoje a política não mais é exclusividade masculina, temos aí a prova material de que as mulheres tem plena capacidade para revolucionar a realidade. Não à toa, atualmente, metade do governo do Canadá é composto por mulheres. Sem se intimidar com o peso fálico do passado, o primeiro ministro canadense, Justin Trudeau, tem orgulho em dizer que no seu país é assim “porque estamos no século XXI”.

Etimologicamente, política vem de “pólis”, que em grego significa cidade. “Polites”, portanto, era o indivíduo que constituía a “pólis”. Não obstante, naquela época, somente os homens –brancos, livres e gregos- tinham o direito de ser “politikos”. E isso porque, como o poeta Hesíodo (750-650 a.C.) fez entender, o surgimento da política no mundo grego fundamentou-se nos ideais de homens e filósofos (atividade que também era exclusivamente masculina).

Antes da “pólis”, todavia, a vida se dava em núcleos familiares, os “genos” (daí genética), que outrossim eram comandados apenas por homens. Não é preciso dizer que nessa organização social ancestral a condição da mulher era igualmente restrita. A elas restava apenas seguir subservientemente os desígnios despóticos dos “seus homens”, os “despótes” (em grego: senhor, mestre). E ser um déspota significava impor, sem escapatória, suas vontades aos demais, principalmente à mulheres, independentemente da consistência ou da compreensibilidade dessas vontades. Autoritarismo puro que, entretanto, só não deve ser chamado de machismo por conta da extemporaneidade desse conceito –moderno- em relação aos gregos antigos.

A transformação do “despótes” em “polites”, isto é, do déspota em político, não significou a abertura de espaço social efetivo algum às mulheres gregas. Todavia, foi um primeiro passo no sentido de reduzir o abismo que separava os sexos. Como? Ora, mesmo permanecendo despóticos na esfera doméstica, os homens, no exercício político, tinham o desafio de lidar com a alteridade -ainda que esses “outros” fossem somente homens. Com a política, o homem teve de aprender outra maneira de fazer valer as suas vontades que não pela força física nem por misticismo algum, fundamentos do despotismo. E o “polités”, ao regressar ao mundo doméstico no qual era “despótes”, não tinha como evitar trazer consigo a ideia de que sua vontade pessoal não era universal.

Aqui cabe a pergunta: por que os homens investiram em uma organização social, a “pólis”, e em uma maneira de organizá-la, a política, se nessa esfera eles desfrutavam de menor poder do que nos “genos”? Marx diria que foi o preço a ser pago para eles e suas famílias subsistirem materialmente. Idealistas dão outras razões. A indefinição da resposta, contudo, não nos priva de enxergar na política o exercício masculino de redução de seu poder absoluto, despótico. É como se na assembleia política, ainda que inadvertidamente, o homem experimentasse, um pouco que seja, a impotência de qualquer mulher diante de qualquer homem; o gosto amargo de ter de calar diante da força de um outro homem, coisa que o déspota, no seu reino genético, nunca teve de fazer.

Todavia, o fato de a ágora política ser o espaço no qual os homens não mais podiam ser despóticos -para um macho uma ferida- pode muito bem ter convertido essa nova experiência masculina de não-potência absoluta em mais opressão doméstica contra as mulheres. Não à toa, na decadência da política grega, séculos depois de seu surgimento, Aristóteles ainda sustenta que as mulheres estavam mais próximas dos escravos e dos cachorros do que dos homens. A política, no seu nascimento grego, portanto, foi apenas um movimento masculino mediante o qual os próprios homens reconheceram, uns perante os outros, que, na cidade, nenhum deles era nem podia ser despótico.

E a política seguiu como um playground estritamente masculino por séculos. Levou mais de dois mil anos para que as mulheres pudessem fazer política ao lado dos homens, todavia com um poder mais simbólico que efetivo. Não é mistério para ninguém que até hoje em dia -e o Brasil golpeado é um exemplo disso- as maiores decisões políticas ainda são sistematicamente sequestradas pelos homens. Tanto que em pleno século XXI ainda causa certo espanto em muita gente metade de um governo, o do Canadá, ser composto por mulheres.

Dizer que “lugar de mulher é na política” é verdadeiro apenas parcialmente, pois o gene grego da política ainda insiste em fazer dela um exercício masculino de relativização do poder dos próprios homens diante de si mesmos. Se o “lugar da mulher é na política”, o é apenas para revolucioná-la, para fazer a política deixar de ser o que é: um reduto resistentemente masculino. Levando ao extremo, obrigar às mulheres somente ao espaço político criado pelos homens é como querer que a elas tenham um espaço confortável dentro do machismo.

Com efeito, as mulheres têm direito, dever e capacidade para compartilharem o comando da nau da realidade ao lado dos homens. A ideia aqui, entretanto, é justamente a de fazer pensar se na esfera política como a conhecemos –esse ambiente viciado, criado pelos homens e para eles mesmos- as mulheres não permaneceriam lutando ingloriamente em terra inimiga. Ora, se a política de fato foi a “brincadeira” masculina na qual o todo-poderoso déspota doméstico viu o seu poder ser confrontado e reduzido, fazer essa mesma política só levará as mulheres a experimentarem mais do mesmo, isto é, a limitação do seu poder, justamente o contrário do que a atual “jihad” contra o machismo exige.

As mulheres precisam de práticas e ambientes deliberativos que lhes empoderem. O saneamento do abismo entre os sexos, despoticamente criado e encimado pelos homens, não se dará através da velha cartilha política criada por eles e mantida em suas mãos por milênios. À mulher é fundamental um espaço político outro que não o criado pelos homens; um ambiente para além da política no qual nunca entre em discussão a presença e a pertinência da mulher no comando da vida coletiva; um lugar no qual a alteridade que a mulher sempre foi em relação aos homens esteja desde sempre na essência, pois só assim o jogo despótico masculino não terá como excluí-la despoticamente, como aconteceu recentemente com a presidenta Dilma Rousseff.

Qual seria então esse espaço ainda político, mas essencialmente além-político, no qual as mulheres estarão finalmente livres do despotismo masculino? Se a política é o velho e resistente “clubinho dos garotos”, a nova forma de organização social da qual as mulheres serão inalienavelmente partes essenciais merece outro nome, ou ao menos a modificação desse. Ora, se a palavra grega “cosmos” designa o universo em seu conjunto, a estrutura universal em sua totalidade, “o lugar da mulher” deve ser na cosmopolítica, uma política que não deixa nenhuma parte do todo social de fora da manutenção desse todo. Não há dúvida de que a presença efetiva da mulher nas deliberações sociais explode a velha e viciada roda política masculina. Mais ainda, inaugura um círculo virtuoso do tamanho da humanidade. Às mulheres, portanto, a cosmopolítica.

Machismo extremo: estupro

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Foto: Piotr Ciuchta – br.freepic.com

Uma menina brasileira de 16 anos foi à casa do namorado que havia conhecido na escola fazia três anos. Era sábado. Ela lembra de estar à sós com o garoto e de, de repente, acordar nua e dopada, em uma outra casa, com 33 homens armados que, não satisfeitos em terem-na estuprado coletivamente, ainda por cima a fotografavam e filmavam para então postarem esses “troféus” imagéticos perversíssimos nas redes sociais. Já era domingo. Porém, somente na terça-feira a garota voltou para casa, descalça, descabelada e com uma roupa masculina toda rasgada, sem dizer nada aos seus pais, tamanha a vergonha que sentia.

Depois de sofrer a barbaridade cometida pelos 33 homens, que são melhor definidos como monstros, não só a menina estuprada, mas também seus familiares e amigos, todos profundamente abalados, ainda tiveram de se confrontar com os vídeos e fotos do estupro postados nas redes sociais pelos próprios estupradores. Como se não bastasse, nessas postagens perversas e em muitas outras que polemizavam o terrível estupro, muitos dos comentários ainda culpavam a menina pelo acontecido. Essas barbáries subsequentes diziam absurdos tais como: se estivesse em casa, se estivesse na igreja, se não usasse drogas; se usasse roupas decentes etc., não teria sido estuprada.

Aqui vale lembrar o que disse a filósofa Marcia Tiburi, que “pela lógica do estupro, pensa-se mais no ‘erro’ da vítima do que no ‘erro’ do criminoso”. É exatamente essa lógica perversa que, por um lado, levou os 33 estupradores a se sentirem livres para estuprar a garota, pois certamente tinham certeza de que o “erro” dela seria mais evidenciado e condenado do que o deles, e por outro, “autorizou” centenas de pessoas a “estuprarem-na” posteriormente com vis comentários nas redes sociais. Grosso modo, o que estes “estupradores-comentadores” fizeram foi dizer que a menina estuprada é a culpada. Seja por não ter escapado, seja por não ter desconfiado da barbaridade que lhe aconteceria. Ou o que é pior, como coloca Tiburi, “por ter ‘parecido’ mulher demais”.

Tanto os 33 estupradores quanto as centenas de comentadores perversos agiram do modo que agiram porque, conforme a filósofa, “o status da mentalidade brasileira relativamente à questão do estupro define a vítima como culpada … É a mesma lógica que permitia que brancos privassem de liberdade, espancassem e matassem pessoas negras”. Embora o Brasil ainda seja um país fortemente machista e racista, o racismo, entretanto, é mais facilmente detectável e condenável do que o machismo extremo, qual seja, o estupro.

Mas por que um estuprador, um machista extremo, ainda goza de tamanho e abjeto privilégio? Porque “um estuprador não consegue isso sozinho … Ele precisa do apoio de uma sociedade inteira”, ressalta a filósofa. E essa sociedade que apoia estupradores é bem conhecida de todos. Quem não está habituado com a realidade machista na qual o pai tem mais poder que a mãe; o irmão, mais liberdade que a irmã; o homem, maior salário que a mulher etc.?

Sem esquecer que essa “sociedade protetora dos estupradores” é a mesma que ainda não conseguiu –talvez porque não queira- deixar de fazer piadas machistas. Barbaramente, a sociedade machista ainda ri, diverte-se com o seu próprio machismo. E essa lógica perversa, levada ao extremo, isto é, o estupro de uma mulher, chega a prometer espécie de “diversão” maior. Como se não bastassem as velhas jocosidades machistas contra as mulheres, temos agora o rol de comentários nas redes sociais a darem nova e altamente publicizada roupagem ao machismo extremo. Somado ao machismo em forma de piadas de mau gosto, temos hoje toda sorte de “opiniões machistas” deliberadamente vomitadas na internet.

E quando a garota de 16 anos estuprada disse em recente entrevista que “não dói o útero e sim a alma”, certamente não se referia apenas ao que os 33 bárbaros estupradores fizeram com seu corpo e espírito, mas também às centenas de comentadores perversos” que, ao culpá-la por ter sido estuprada, absolvem os verdadeiros algozes e a si mesmos pelo machismo extremo que ainda resiste na nossa sociedade. Pois, nas palavras de Tiburi, “na lógica do estupro toda e qualquer culpa recai sobre a vítima … o estuprador não é responsabilizado por seu ato”.

Não é à toa que em uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), realizada em 2014, 60% dos entrevistados -homens e mulheres- concordaram totalmente com a frase: “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Não que a maioria das pessoas seja a favor da violência pura e simples contra as mulheres. Não obstante, essa mesma maioria entende o estupro enquanto um violência menor, de certa forma justificável em algo de errado que as próprias vítimas dos estupros -as mulheres- fazem.

Afora o estupro em si, um mal abominável, as mulheres sofrem ainda uma segunda e talvez mais brutal violência, vinda da sociedade, que afirma contra elas que mereceram o estupro que sofreram. Essa sobre violência é a inversão perversa da vítima em culpada, para, desse modo, os estupradores poderem permanecer impunes e estuprando, alimentando o machismo extremo que resulta no que hoje está em todas as bocas e manchetes: “a cultura do estupro”. Nessa “cultura”, ou nas palavras de Tiburi, “na lógica perversa do estupro, ‘ser mulher’ é condição ontológica passível do estupro”.

Para os estupradores, as mulheres são objetos estupráveis porque eles ainda cultuam a si mesmos como os únicos e verdadeiros sujeitos da realidade. Com efeito, para um “sujeito machista”, o outro -a mulher- é apenas mais um objeto; uma coisa que pode lhe satisfazer. Tiburi deixa isso bem claro ao dizer que “o estuprador é aquele que se vê tendo um estranho ‘direito ao estupro’ … Paranoico, ele se sente o centro do mundo, o mundo no qual ele é o rei e a mulher é, quando muito, uma serva”. A relação entre homem e mulher enquanto relação entre sujeito e objeto ou rei e servo é a lógica do estupro, ou, como se diz hoje, a “cultura do estupro”, em sua perversa e vigorosa forma; ainda faz com que, no machismo extremo, as vítimas –mulheres- sejam mais “criminosas” que seus algozes –os estupradores.

A particular tragédia da carioca de 16 anos vítima de 33 estupradores e de centenas de “comentadores perversos”, todos machistas extremos, está dizendo em alto, universal e bom tom que a nossa sociedade precisa urgentemente ser revolucionada. Os homens precisam deixar de achar que são mais sujeitos que as mulheres. Essa resistente ficção é talvez o nosso mais abjeto fundamentalismo social. Revolucionar a sociedade machista extrema, todavia, não é tarefa fácil. Exigirá muitas batalhas. Uma delas é confrontar o macho com o seu insustentável mito de superioridade. A outra, forçar o macho à verdade social mais necessária à nossa época, qual seja: a igualdade entre os sexos. Por quê? -perguntaria o conservador criacionista. Porque estamos no século XXI, responde a parte sã da sociedade que já está na guerra contra o machismo, seja ele brando, seja extremo.

 

Lógica do golpe / lógica do estupro

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A primeira mulher eleita presidente do Brasil sofreu um golpe branco. Em bom português, um golpe baixo. Afastada do seu cargo devido à práticas financeiras as mais corriqueiras, cometidas fartamente inclusive por aqueles que a afastaram, Dilma Rousseff se diz vítima de violência e injustiça brutais. Como, porém, violência e injustiça contra as mulheres ainda são coisas assaz naturalizadas na nossa brutal sociedade, o país seguiu adiante como se Dilma fosse apenas mais uma histérica a reclamar indevidamente da vida; da vida “como ela é”; e como muitos ainda insistem, como ela deve ser. Não à toa o jornal britânico The Guardian ressaltou em manchete que “Machismo e rancor da direita pesaram em queda de Dilma”.

Metaforicamente podemos dizer que Dilma foi estuprada jurídica e politicamente pelos “falos golpistas” que a cercavam, muito embora a definição estrita de estupro seja: crime que consiste no constrangimento a relações sexuais por meio de violência. Essa definição, todavia, não generaliza quem comete nem quem sofre o estupro. Entretanto, se considerarmos a misoginia institucionalizada que impera no Brasil – e de forma geral no ocidente pelo menos desde a Grécia antiga-, temos que as mulheres sempre foram as maiores vítimas do estupro, e os homens, seus grandes algozes. Tanto que a filósofa Marcia Tiburi, no ensaio “Como conversar com um fascista”, pôde dizer categoricamente que “na lógica perversa do estupro, ‘ser mulher’ é condição ontológica passível de estupro”.

Dilma, ainda que não tenha sido estuprada stricto sensu no golpe político que sofreu, como ela mesma disse, foi “vítima de uma violência brutal”, e ademais cometida por uma cambada de homens para os quais o poder deve ser deles somente. Para pensarmos a violência da qual Dilma não foi poupada, considerando que foi maior pelo fato de ela ser mulher, doravante trataremos o golpe como se estupro fosse. E para penetrarmos mais fundo nessa violência misógino-política que vitimou a presidenta vale atentar à “lógica do estupro” ensaiada por Tiburi, segundo a qual “a vítima – uma mulher – não tem saída: de qualquer modo ela será condenada quando, de antemão e sem análise, ela já foi julgada.”

Dilma foi acusada por “pedaladas fiscais”, algo que seus acusadores – homens – praticam corriqueiramente. Primeira injustiça: homens podem “pedalar” fiscalmente, uma mulher, não. E de nada adiantou Dilma defender-se dizendo que os homens que a acusavam faziam o mesmo; que para eles não era nem nunca foi crime o que para ela estava sendo. Por que, analogicamente, isso representa um estupro? Ora, porque, segundo Tiburi, “o estupro é o ato em que a outra – a estuprada – não tem nenhuma chance de defesa porque a priori está condenada”. Com efeito, Dilma estava condenada ao afastamento independentemente do que dissesse ou provasse. Os “machos golpistas” apenas queriam que ela caísse fora. E conseguiram.

Agora os “golpistas estupradores” estão presidindo despótica e odiosamente o país, e o que é pior, sem nenhuma mulher por perto. Eis o absurdo: um ministério sem nenhuma presença feminina em pleno século XXI. Violência universalizada contra a mulher. Mas não só contra elas. Também de fora do governo golpista estão negros, gays, índios, e qualquer um que não seja homem, branco, rico e evangélico. Tiburi tem toda razão ao afirmar – todavia parafraseando Aristóteles em relação ao ser – que “o ódio ao outro se diz de muitas maneiras” Porém, segue a filósofa, “as mulheres sempre foram vítimas especiais desse ódio”.

Se, na lógica do estupro de Tiburi, “o estuprador é aquele que se vê tendo um estranho ‘direito ao estupro’ … Ele só pode pensar assim porque é uma personalidade autoritária, que, como tal, não tem capacidade de ver o ‘outro’”, na lógica do golpe contra Dilma, os golpistas são os que se veem tendo um estranho “direito ao golpe”. E eles pensam assim porque são personalidades autoritárias, que, outrossim, não tem condições de ver o “outro”. No caso, as mulheres – mas também os negros, os pobres, os gays, os índios etc.

E por que os “golpistas estupradores” de Dilma gozam de tamanhas liberdade e ela não? Segundo Tiburi, na lógica do estupro é a vítima – a mulher – que é sempre questionada. Na lógica do golpe contra Dilma, portanto, foi somente ela que foi questionada, e por uma corja de machos que há muito mais tempo que ela habita a mesma questão, sem, contudo, ser confrontada com ela. E assim podem agir porque “o criminoso [o homem] não é questionado, porque ele é homem e, segundo a lógica do estupro, não se objetifica o homem”, completa a filósofa. Já a mulher é o ser que os homens – mas também a sociedade – primeiramente transformam em objeto útil.

E no Brasil o abismo entre a inquestionabilidade masculina e a a priori suspeição feminina é mais dramático ainda, país subdesenvolvido que ainda somos. Assim como, nas palavras de Tiburi, “o status da mentalidade brasileira relativamente à questão do estupro define a vítima como culpada”, na lógica do atual golpe de estado o status da mentalidade golpista definiu Dilma como culpada por algo que, no entanto, aqueles que a culpam são tão ou mais culpados que ela. E isso porque, diz-nos a filósofa, “pela lógica do estupro pensa-se mais no “erro” da vítima do que no “erro” do criminoso”

Tiburi segue dizendo que na lógica do estupro “é como se a vítima fosse culpada por não ter escapado … por não ter desaparecido antes”. Na lógica do golpe tupiniquim, com efeito, os golpistas, antes de vestirem essa sórdida carapuça, bem que tentaram fazer com que Dilma renunciasse; que desaparecesse da cena política da qual eles pensam serem os donos exclusivos. Mas ela resistiu. E, segundo a lógica golpista, Dilma só fez por merecer ser afastada, “estuprada”, por ter peitado os déspotas da oligarquia política tupiniquiim. “O estuprador, autoritário e irresponsável, reivindica a supremacia masculina na qual ele se compraz. Ainda vivemos na idade Média”, conclui Tiburi.

Os “golpistas estupradores” da presidenta conseguiram culpá-la e afastá-la, para então gozarem de uma anacrônica e inacreditável liberdade, porque já na lógica do golpe/estupro que ainda subjaz na mentalidade machista brasileira o golpista/estuprador projeta sua culpa nas suas vítimas para só então poder gozar. Entretanto, esclarece Tiburi, “um estuprador não consegue isso sozinho. Ele precisa do apoio de muita gente. De uma sociedade inteira” aliás. Aqui é impossível não lembrar das hordas de paneleiros que gritaram “fora Dilma” nas ruas, dos 367 deputados que disseram “tchau querida” na votação na câmara federal, e dos 55 senadores que, um pouco mais sóbrios, mas nem por isso menos machistas, admitiram o processo de impeachment contra Dilma.

Sim, a nossa sociedade é tão culpada pela lógica do estupro que vitima milhares de mulheres brasileiras quanto pela lógica do golpe que injustamente vitimou Dilma, a despeito mesmo de sua honestidade e dos 54.501.118 de cidadãos que a elegeram presidenta. E essas vis lógicas são tão naturalizadas que mesmo depois da tremenda violência imputada contra Dilma o sórdido e imediato gozo do criminoso governo Temer foi governar sem mulher alguma por perto.

Confrontados com esse abominável machismo, os golpistas bem que tentaram se desvencilhar do estupro político que foi não darem espaço algum no governo deles para uma mulher sequer – a não ser, obviamente, para a jovem, “bela, recatada e do lar” esposa de Temer. Porém, como estupro e golpe são crimes sim para além da “macholândia” golpista, os criminosos “estupradores”, bem representados pelo Chefão do DEM, o senador José Agripino Maia, não escaparam de ouvir da jornalista Mariana Godoy a alfinetada: “não tem mulher no governo Temer porque não tem mulher precisando de foro privilegiado”. Contra essa verdade, que talvez só uma mulher pudesse perceber e afirmar, mais violência. Agripino então disse: “boa piada”. Ou seja, mulher, quando fala a verdade para um homem, é chamada de palhaça.

 

Contra o golpe, qual o melhor afeto?

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Tristeza é o sentimento confesso de grande parte dos brasileiros diante do golpe de estado dado pelo “PMSDB” (o Frankenstein antidemocrático formado pelo PMDB e pelo PSDB). Tristeza maior, todavia, é que seja justamente tristeza o afeto mais afirmado em resposta ao golpe. Sentir outra coisa porventura é possível nesse momento? Como não estarmos tristes perante tamanho assalto? Mais ainda, poderia a alegria ser de alguma serventia contra os golpistas? Baruch Spinoza, o filósofo dos afetos, pode mostrar que sim, e como.

Para Spinoza, a tristeza seria um afeto inútil no enfrentamento do golpe tupiniquim porque ela outra coisa não é senão a passagem de um estado de potência maior para um menor. Ou seja, quanto mais tristes estamos, menos potentes somos. A tristeza, portanto, é o afeto que nos fragiliza ainda mais frente ao que já nos fragilizou. Os brazukas que desejam dar cabo dessa até aqui venturosa empreitada da oligarquia política tupiniquim devem cultivar outro afeto, pois, tristes, menos podem contra a besta “peemeessedebista”. Qual seria, entretanto, este outro afeto?

Desprezo? Spinoza diria que não, pois este afeto nos leva a imaginar mais o que a coisa desprezada não tem do que aquilo que ela tem. Quando desprezamos algo, portanto, lidamos mais com inimigos imaginários do que com o verdadeiro e real. Temer e sua tropa golpista agradeceriam que os desprezássemos apenas, pois assim permaneceríamos ocupados com a nossa ignorância, e quanto mais ignorantes, mais vulneráveis.

E o ódio aos golpistas, substituiria melhor a tristeza? Também não, uma vez que para o filósofo dos afetos o ódio outra coisa não é que uma tristeza que aponta uma causa externa. Ao odiar ainda permanecemos tristes, consequentemente menos potentes, e o que é pior, tornamos transcendente, isto é, absolutamente separado de nós a causa da nossa tristeza. E sem poder afetá-la, não temos como vencê-la. O ódio, viciosamente, só aumenta a nossa impotência.

Indignados seriamos mais potentes contra a elite golpista? Infelizmente não. Spinoza diz que a indignação é o ódio por alguém que fez mal a um outro. Aqui temos dois problemas. Primeiro, sendo ódio, a indignação ainda assim é uma tristeza, ou seja, uma forma de impotência. Segundo, em se tratando de um golpe de estado, isto é, de algo que afeta a todos simultaneamente, afetarmo-nos pela ideia de que esse mal foi causado a um outro é ignorar que esse mal nos afeta igualmente. E ignorância definitivamente não é a melhor arma.

Vergonha também não é um afeto que aumenta nossa potência contra os golpistas nem diminui a potência deles, uma vez que, para Spinoza, a vergonha ainda é uma tristeza, e além do mais, acompanhada da ideia de que alguma ação nossa foi desaprovada pelos outros. Ora, o afeto que devemos cultivar diante dos golpistas para que eles não sejam mais potentes que do nós é um que reforce que a ação imprópria, condenável, foi cometida por eles, e desaprovada por nós! Do contrário, culparíamos a nós mesmos, cidadãos golpeados, pelo ato dos golpistas.

A vingança, que por ódio nos leva a fazer mal a quem nos causou algum dano, e a ira, que nos leva a fazer mal a quem odiamos -ambos afetos que parecem cair muito melhor ao revolucionário do que a tristeza-, também não seriam indicados por Spinoza para nos tornarmos mais potentes do que a elite golpista que negativamente nos afeta. Sendo espécies distintas de ódio, vingança e ira ainda assim são formas de tristeza. No fim das contas, de impotência.

Podemos ainda ser afetados pelo temor, pavor, aversão, escárnio, decepção, sevícia etc., porém, são todos formas diversas de tristeza. Nada nos ajudam nesse momento no qual precisamos aumentar a nossa potência contra os golpistas oligarcas. Com efeito, nenhuma espécie de tristeza serve ao brasileiros golpeados

Em oposição à tristeza, Spinoza coloca a alegria: a passagem de um estado de potência menor a um maior. Alegres, portanto, nos fortalecemos. O problema é conseguir ser afetado de alegria diante de um golpe de estado… Dita simplesmente, alegria pode parecer abstrata demais para encontrar lugar na angusta realidade brasileira. Porém, assim como a tristeza é bem mais palpável para nós em forma de desprezo, ódio, indignação, vergonha, vingança, ira etc., a alegria outrossim tem suas expressões mais concretas, tais como: a admiração, a segurança, o reconhecimento, a satisfação etc.

No rol das alegrias spinozanas temos ainda a esperança. Para o filósofo, entretanto, trata-se de uma alegria instável, pois acerca de algo, passado ou futuro, de cuja realização não temos como ter certeza. Pseudo alegria, a esperança, como o desprezo, nos mantém atentos mais à nossa imaginação do que à realidade. Nutrir esperança de que venceremos os golpistas, portanto, é deixar o real para eles enquanto permanecemos no mundo dos nossos sonhos. Categoricamente, Spinoza diz que a esperança é o refúgio da ignorância. Por isso é uma péssima arma na guerra contra o golpe.

Agora, se quisermos ser efetivamente potentes contra os golpistas, devemos ter em mente que, para Spinoza, a mais virtuosa forma de alegria, portanto de potencialização, é o amor. Nas palavras do filósofo, “o amor é uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior”. Dito de outro modo, o amor é a passagem de um estado de potência menor a um maior do qual, no entanto, pensamos não ser os responsáveis. Amando, o aumento de nossa potência parece vir de fora, como se fosse uma dádiva. E como não temos consciência de que somos nós que o produzimos, mas algo externo, tampouco sabemos como parar essa afetação. Eis a virtuose do amor.

De modo algum estamos falando aqui do amor cristão, aquele que se é obrigado a cultivar aqui na terra para que se tenha direito à eternidade celeste. Aos golpistas, obviamente, ninguém deve oferecer a outra face ao tapa. O amor spinozano não visa futuro transcendente algum, mas, ao contrário, recuperar, presentemente, a imanência perdida entre parte e todo. E no caso do golpe brasileiro, o amor deve recuperar a harmonia rompida entre o cidadão e o seu Estado.

Como, então, vencer a adversidade do golpe com o amor? De que causa externa devemos ter ideia para que seja aumentada a nossa própria potência no sentido de não sermos afetados negativamente pela potência dos golpistas? Mais ainda, que ideia deve nos acompanhar para que sejamos mais potentes que os golpistas; para que os vençamos definitivamente? Obviamente não é a ideia do golpe ela mesma, visto que apenas nos causa a pá de tristezas que vimos anteriormente, e que estas apenas nos tornam mais impotentes.

Portanto, se em Spinoza o amor recupera melhor do que qualquer outro afeto a perfeita ordem entre parte e todo, na luta contra o golpe, que é a recuperação da ordem entre o cidadão e o seu Estado, o nosso amor deve ter um objeto definido. Considerando que o Estado brasileiro é composto por 200 milhões de outros cidadãos, e que estes também são vítimas do mesmo golpe, tenham consciência disso ou não, é a eles que devemos amar, isto é, tê-los enquanto a ideia externa que acompanha uma alegria potencializadora em nós mesmos.

Assim, fazendo com que estes outros milhões de cidadãos golpeados sejam a causa, não de uma imensa tristeza, raiva, ódio ou indignação, mas de uma alegria suprema em nós mesmos –como nas vezes nas quais nos alegramos por haver “o povo brasileiro”-, enfim, quando conseguimos amar o todo-povo é que a parte-cidadão que cada um de nós é adquire potência e virtude suficientes para lutar contra o inimigo comum sem se entristecer, ou seja, sem se despotencializar inadvertidamente.

Em suma, não é porque os golpistas afetam negativamente a mim, particularmente, que devo lutar contra eles. Meu desagrado privado é assaz impotente contra inimigos públicos. Em troca, é porque o golpe de estado do “PMSDB” afeta negativamente todas as demais partes-cidadãs do meu país que eu, uma dentre elas, devo lutar contra os oligarcas golpistas. Afinal, só no dia em que todos os cidadãos brasileiros estiverem finalmente livres desse inimigo é que eu também estarei. Virtuose absoluta, obviamente, é quando todas as partes agem assim, e em função da alegria do todo, pois quando o todo está alegre, potente, cada parte não tem como  não estar. Contra o golpe, portanto, amor ao povo golpeado.

 

Dois projetos de sociedade, dois logotipos

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Um governo é um projeto de sociedade. E a “cara” desse governo está em todo e cada ato dele, inclusive na publicidade que o inaugura. O logotipo-lema com o qual um governo se apresenta à sociedade já diz quem ele é e com quem deseja falar. Nesse momento brasileiro de transição de governos, somos apresentados ao logotipo-lema do governo -de exceção, golpista- de Michel Temer, que ilegitimamente afastou o governo Dilma Rousseff, que outrossim iniciou seu governo com seu logotipo-lema próprio. Então, vale analisar a primeira “cara” com que cada um deles se apresentou à sociedade brasileira, suas logo-lemas inaugurais, pois já aí podemos ver o que está e o que não mais está em jogo na mudança de projeto de sociedade que golpe o tupiniquim inaugura.

Como a proposta aqui é analisar o que simbolizam os logotipos de apresentação dos governos Dilma e Temer, estaremos no terreno da semiótica, ciência dupla que estuda os símbolos relacionando a “forma” com o “conteúdo”. Em outras palavras, a relação do “o que é mostrado” com o “o que se quer mostrar”. Para tanto, vale dedicar um instante estético à imagem que ilustra esse texto, que traz os dois logotipos em questão. Na parte superior da imagem, o logo-lema com o qual o governo Dilma se apresentou à sociedade. Na inferior, o do governo Temer. Para simplificar a leitura, doravante serão usadas as expressões “logo Dilma” e “logo Temer” para falar dos logotipos-lemas inaugurais dos dois governos.

Em primeiro lugar, chama a atenção a oposição entre a policromia do logo Dilma e a proposta monocrômica do logo Temer. Ora, do Brasil é dito que é uma país de muitas raças, crenças, credos. Simbolicamente, de muitas cores. Já aqui podemos ver que o logo Dilma se preocupou em contemplar essa diversidade. O logo Temer, por sua vez, elegendo prioritariamente o branco e o azul , não tem intenção alguma de ressaltar a pluralidade que vive na nossa terra. Como não lembrar aqui do velho mito desigualitário do sangue azul dos brancos ricos aristocratas? A palheta de cores através a qual um governo se apresenta, portanto, já é um filtro, crômico, que informa semioticamente com quem e para quem está falando. Dos dois logos, o de Dilma, obviamente, é bem mais democrático.

Em segundo lugar, temos a distância entre a proposta naif do logo Dilma e o tecnicismo “corelDRAW” do logo Temer. Naif, que em francês significa ingênuo, no mundo da arte fala de uma produção alheia ao academicismo tradicional e se caracteriza, digamos assim, pela simplicidade popular. O logo Dilma traz a ideia de que, senão é feito à mão, ao menos poderia sê-lo, e por qualquer um. A irregularidade do desenho da bandeira brasileira no centro do logo Dilma diz que o Brasil também é o que até mesmo uma criança consegue desenhar. Em contraste, o design assaz digitalizado do logo Temer, com sua esfera e estrelas perfeitas e dispostas em função de uma rígida simetria, é coisa que somente um já iniciado e já equipado tem condições de produzir. Agora, infelizmente, o “logotipus brasilis” fala mais de meritocracia do que de democracia.

Em terceiro lugar, se pensarmos em que nível os dois logotipos pressupõem os seus observadores, temos que o logo Dilma, por ser deliberadamente chapado no plano de apresentação, não se coloca nem acima nem abaixo de quem o vê. Tampouco propõe distorção de perspectiva, uma vez que para o “Brasil” ser efetivamente um “País de Todos” o lema não deve parecer outro em função da posição do observador. O logo Temer, em troca, coloca o “Brasil” e o “Governo Federal” vistos de baixo para cima e em dramática perspectiva, fazendo com que o observador nunca esteja à altura deles. E, pior ainda, para se estar em pé de igualdade com o Brasil de Temer a escalada é árdua.

Em quarto lugar, vemos que em oposição à garatuja de bandeira brasileira que “ingenuamente” compõe a letra “A” da palavra Brasil, o logo Temer mutila a bandeira Brasileira, trazendo somente o seu centro, a bola azul e as estrelas brancas, deixando claro que a bandeira nacional, com a riqueza e diversidade que ela representa, não tem mais lugar junto ao “BRASIL” e ao “GOVERNO FEDERAL” golpista. Mais ainda, que esse centro azul estrelado propositalmente alienado de sua periferia verde e amarela se coloca na frente do Brasil, gerando inclusive uma sombra sobre o nome do país. Vale ressaltar também que o logo Dilma dispensa a frase positivista “Ordem e Progresso”, enquanto que o logo Temer, com seus jogo de profundidades, coloca esse questionável positivismo em primeiríssimo plano.

Em quinto e último lugar, todavia deixando o plano semiótico e caindo no linguístico, não poderiam ficar de fora da presente análise os textos dos dois logotipos. Afora a presença de “Brasil” e de “Governo Federal”, comum aos dois, temos no logo Dilma a ideia de “um país de todos”, e no logo Temer, a de “ordem e progresso”. Um país historicamente estruturado na desigualdade -social, econômica, racial, de gênero- é revolucionado ao ser lematizado “de todos”, ao passo que, ressuscitando os velhos ordem e progresso o logo Temer apenas dá, de modo reacionário, continuidade à produção da desigualdade estrutural da qual o logo Dilma já pretendia se ver livre. Que ordem e que progresso são esses do logo Temer? Melhor dizendo, quem dita essa “ordem” e esse “progresso” que se coloca de modo vertical na já “cara” com que esse governo golpista se apresenta?

Em suma, o logo Dilma tem a virtude de contemplar a diversidade étnica e religiosa brasileira com suas muitas cores; o espírito popular livre de qualquer “academicismocentrismo” com a proposta naif; um país de todos com a horizontalidade com que esse lema é apresentado; e a liberdade em relação aos velhos dogmas com a eliminação dos positivistas ordem e progresso. Em contraste, o logo Temer é assaz vicioso ao contemplar os brancos de sangue azul com a eleição quase exclusiva dessas duas cores; o espirito meritocrático-tecnicista que melhor atende os Senhores do Liberalismo; o desnível social com a perspectivação do Brasil e do Governo Federal a ponto de todos estarem bem abaixo deles; e, por fim, a revivificação de velhos dogmas com a, digamos assim, “primeiro-planização” do “Ordem e Progresso”.

Mais triste do que ver o elitista logo Temer substituir o democrático Logo Dilma, no entanto, é saber que, em se tratando de propostas para o Brasil, a de Temer afastou a de Dilma. E com esse afastamento, a alienação, para fora da arena social -assim como para fora do logotipo golpista-, da diversidade étnica, do espírito popular, da horizontalidade social, e da possibilidade de seguirmos adiante livres de um lema importado do velho mundo por uma elite que outra coisa não quer senão que o passado “progrida” futuro adentro, segundo as suas “ordens”, sem pedágios sociais, e carregando consigo velhas desigualdades e privilégios. Mesmo substituído, que a ideia por trás do primeiro logotipo do governo Dilma ao menos permaneça viva como a memória de uma proposta de um novo Brasil, que, em 2016, entretanto, ainda pode ser afastada pelo velho Brasil.

 

O preço de ser mídia golpista

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A grande mídia brasileira é não só o arauto, mas também coprodutora do quase finalizado golpe tupiniquim de 2106. E o jornalismo da Rede Globo merece destaque nesse poderoso, ilegítimo e antidemocrático projeto para o Brasil. O alto preço dessa espécie de vitória dos “jornalistas” Globais, contudo, é que, após ter vendido sistematicamente o golpe, ao vivo em e em cadeia nacional, a emissora fica impossibilitada de voltar, melhor dizendo, de começar a fazer jornalismo de verdade.

Mesmo com Dilma Rousseff e o PT afastados, e os velhos Michel Temer e PMDB ocupando o poder, a Globo não tem como começar a reportar a realidade conforme ela se apresenta. Como falar da absurda ausência feminina no ministério golpista, da inacreditável eliminação do Ministério da Cultura, do impopularíssimo fim da valorização do salário mínimo e da austera redução das aposentadorias sem com isso dizer que foi justamente o golpe que ela ajudou a instalar o produtor dessa angusta distopia?

O que resta para o jornalismo da Rede Globo nessa, digamos assim, saia-justa é seguir sendo parcial, isto é, continuar manipulando o real até que ele se pareça com o ideal desejado. Novamente, isso significa não poder polemizar, quiçá condenar o machismo, o racismo, a homofobia, o elitismo e o vil liberalismo que estão no cerne da “Ponte para o futuro” golpista vendida espetacularmente pela emissora. Ou seja, a impossibilidade de fazer algo a que eles se propõem: jornalismo.

Será que a Rege Globo sabia que não tem como apenas alugar a alma ao diabo pelo tempo que o pecado for conveniente, para, em seguida, recuperá-la incólume? Ou a emissora aprenderá somente agora que ao Mal só se vende definitivamente o espírito; patrimonialista egoísta e irrecuperável que é o Capeta? De qualquer forma, estranha virtude essa a do Diabo de não permitir o fim dos seus contratos.

Não totalmente virtuosa porque a impossibilidade de deixar de produzir uma propaganda ideológica disfarçada de jornalismo outra coisa não é que a permanência da mentira onde poderia começar a haver o ideal objetivo do jornalismo: o aclaramento do real. Não totalmente viciosa, todavia, porquanto é bom que o mentiroso-criminoso não possa se alienar oportuna e estrategicamente de sua vil essência.

Não é mistério para ninguém que alma da Globo está com o Diabo desde o seu princípio, filha da ditadura iniciada em 1964 que é. No século XXI, entretanto, a empresa repactuou fortemente com a Besta. E um dos principais motivos desse bestial estreitamento de relação é que a concessão do Estado que permite à Globo ser o império midiático que é expira em 2018. São, portanto, os interesses imperialistas da empresa que estão em jogo.

Por isso é mister para a empresa que à época de repactuar a sua concessão haja um Estado tão avesso à verdade, à democracia e à descentralização da mídia quanto ela. E se a velha oligarquia derrotada na eleição presidencial de 2014 não for o Estado em 2018, a emissora terá de se curvar, um pouco que seja, ao projeto de Brasil um tanto mais democrático eleito diretamente por 54 milhões de cidadãos naquela mesma eleição. Era agora ou nunca mais o golpe da Globo!

Desde sempre contrária a governos verdadeiramente democráticos, a Globo, desde a redemocratização do Brasil, fez de Lula e do seu Partido dos Trabalhadores os seus espantalhos reacionários espetaculares. Quem não lembra da Global manipulação da realidade nas eleições presidenciais de 1989? Até o então diretor de programação da Globo, o Boni, admitiu publicamente que a emissora armou contra Lula para eleger Collor. Mea culpa que, entretanto, demorou 22 anos para acontecer.

O apoio irrestrito aos vinte anos de ditadura militar no Brasil; a assunção de Boni de que a Globo elegeu o presidente que ela queria em 1989; a atual colaboração no ilegítimo afastamento de uma presidenta democraticamente eleita em 2014 -só para citar os golpes mais espetaculares da emissora nos últimos 50 anos-; de um ponto de vista minimamente democrático são razões mais que suficientes, senão para cancelar, ao menos para rever duramente a concessão dada pelo Estado, diga-se de passagem, à empresa.

Só restava à Globo vender o que restava de sua fétida alma ao Diabo. E o plano parece estar dando certo. A vitoriosa investida da empresa contra Dilma e o PT, que no final das contas visa ninguém outro que o velho Lula e a sua histórica popularidade, é o projeto em curso da emissora para que na renovação de sua concessão, em 2108, o PMDB e PSDB sejam os Diabos com os quais ela renegociará. O Mal cobra fidelidade!

Poderosa, mais forte do que 54 milhões de cidadãos juntos, a Globo mais uma vez coloca no poder quem que mais lhe interessa. Passivo, o povo brasileiro assiste em cadeia nacional à emissora realizando seus desígnios particulares. Tal vitória, entretanto, é um lento tiro-no-pé, pois na mesma telinha poderosa podemos assistir à Globo cada vez mais impossibilitada de tratar do real: “jornalistas” mulheres sem poder criticar o machismo do golpe que ajudaram a construir; “economistas” sem poder avaliar os danos do projeto econômico do governo Temer que viabilizaram; “comentadores” de cultura sem poder dizer do absurdo do fim de um Ministério da Cultura; e por aí vai.

Pelo andar da carroça brasilis, em 2018 a Globo ainda não precisará se confrontar com as cada vez mais tácitas contradições nas quais o seu projeto imperialista a coloca. Contudo, se restar alguma coisa de democracia no Brasil, chegará o dia em que o Estado, melhor dizendo, os cidadãos que o constituem, não renovarão a concessão de uma empresa que trata apenas de si mesma e não da realidade comum. Para isso, todavia, precisamos ao menos manter viva a utopia de um mundo no qual 54 milhões de votos tenham mais poder do que uma dúzia de falsos jornalistas.

Tiraram Dilma para Cristo

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Foto: Lula Marques / Fotos Públicas

“Honesta, Dilma pode ser afastada por criminosos”, dizia o The new York times em 13 de abril de 2016. E foi! Um mês depois da manchete do jornal americano, em 13 de maio, a presidenta democraticamente eleita pelo voto direto de 54.501.118 de cidadãos brasileiros está afastada. Nem foi difícil. Bastaram precisos 422 votos golpistas -367 de deputados federais e 55 de senadores da república- para anular os mais de 54 milhões de votos com os quais Dilma se elegeu. Os vitoriosos votos golpistas são pouquíssimos, porém, temos de reconhecer, têm poder: o poder da velha oligarquia política-econômica tupiniquim.

A estratégia do golpe: ter transformado em crime uma prática corriqueira de governança, muito usada pelos golpistas aliás, seja em governos passados, seja nos atuais. Estamos falando de manobras fiscais, que, entretanto, na linguagem do golpe é chamada de “pedaladas fiscais”. Crime, obviamente, não para todos, muito menos para os próprios golpistas, mas apenas para Dilma. E para quê? Ora, para que eles, e somente eles, possam seguir “pedalando fiscalmente”, contudo, diferente de Dilma, é preciso frisar, contra os interesses populares.

Agora, sejamos sinceros: quem, cotidianamente, não comete espécie de “pedaladas fiscais” com suas finanças pessoais? O crédito, essência do mundo capitalista, é a “pedalada fiscal” legal e institucionalizada por excelência. A mais democrática aliás. E para que não seja crime, basta pagar em tempo o que se tomou a crédito. Para Dilma, entretanto, essa regra universal não deve funcionar. A presidente afastada, em 2015, fez manobras fiscais, isto é, pegou dinheiro de onde tinha, colocou onde não tinha, e, antes da conta vencer, pagou 72,4 bilhões de reais, saldo acumulado até dezembro de 2015. Mas…

Para a primeira mulher a governar o Brasil, contudo, é negado aquilo que nossos cartões de crédito e cheques especiais nos oferecem insidiosamente. Mais grave, a espetacular criminalização das manobras fiscais de Dilma é a magia política que não só oblitera o fato de que os criminosos golpistas que afastaram a presidenta sempre agiram da mesma forma, como também, e principalmente, purifica-os estrategicamente, para que, doravante, eles possam seguir manobrando o fisco brasilis do seu modo antidemocrático de sempre. Só que agora com o privilégio de um Cristo político espetacularizado, Dilma, que passa e incorporar simbolicamente os pecados deles.

Dilma, com efeito, foi transformada em espécie de Cristo. Pagou com a sua carne política os pecados fiscais de todos, não só os dos que vieram antes dela, mas também os de seus contemporâneos “pedaladores”. Assim como Jesus, que na cruz redimiu a humanidade da inobservância às leis e à existência de Deus, a crucificação política de Dilma outrossim redime os golpistas da velha inobservância às leis que os fazem ser quem são. Agora, a corrupta oligarquia política brasileira pode mentir a si mesma e ao povo brasileiro que está limpa, purificada justamente pelo banho de sangue com o qual inundou a arena política do país e mediante o qual afastou Dilma do lugar que a maioria dos cidadãos a colocaram.

Dilma Rousseff, crucificada e destituída, traz uma mensagem universal: pedaladas fiscais, na verdade, nunca foram, não são, nem serão crime. Basta ver os antecessores e os atuais crucificadores da presidenta afastada. Todavia, criptografado nessa antidemocrática mensagem está que tais manobras financeiras serão crimes sim, oportuna e pontualmente, para alguns bois-de-piranha simbólicos, senão para que a manada “pedalante” e golpista siga atravessando ilesa –pela tal “Ponte para o futuro”-  o mar de lama que ela mesma produz e onde se sente em casa.

Entretanto, se há uma verdade duramente aclarada com a “crucificação” de Dilma, é que, a despeito dos nossos ideais democráticos, no fim das contas governa quem tem mais poder, que, com efeito, no mundo capitalista, é quem tem mais dinheiro, e não mais votos. Essa é a intragável verdade à qual devemos atentar se quisermos que, no futuro, 422 votos oligarcas&golpistas não tenham mais poder que 54.501.118 votos cidadãos. Melhor dito, se realmente desejarmos viver em um verdadeira democracia, e não em uma oligarquia plena cujo apelido estratégico, não obstante, calhou de ser “democracia”. Até lá, infelizmente, Dilma e outros iguais a ela serão Cristos funcionais aos novos projetos da velha oligarquia brasileira.

54.501.118 + 1 golpes sob a “Ponte para o futuro”

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Foto: Roberto Stuckert Filho – Fotos Públicas

O novo golpe da velha oligarquia brasileira contra a presidenta democraticamente eleita, que, hoje, 12 de maio de 2016, afasta-a oficialmente do seu cargo por seis  meses, não faz de Dilma Rousseff a maior vítima desse momento farsesco. A atual senhora, que quando jovem foi torturada pela ditadura militar por lutar pela democracia, outro destino não terá senão a absolvição histórica. As maiores vítimas, na verdade, estão antes e depois dela: em uma ponta, os 54.501.118 de cidadãos que votaram em Dilma e no seu projeto de país, e, na outra, a própria democracia. Eu, cidadão brasileiro que votei em Dilma, não tenho como deixar de pensar e sentir que o golpe é contra mim.

Se em 2104 o meu voto nas políticas de distribuição de renda e de inclusão social foi vitorioso, e deveria ser respeitado até 2108, o impedimento desse projeto de país  por golpistas que pretendem fazer justamente o contrário é um atentado pessoal, no entanto nas vestes de uma manobra democrática. O pior de tudo é que, hoje, há no mínimo 54.501.118 vítimas como eu. E os algozes dessa violência são, de um lado, golpistas abstratos, tais como: o capital ele mesmo, a velha oligarquia brasileira, o PMDB, o PSDB; e, por outro, golpistas concretos, quais sejam: Michel Temer, Renan Calheiros, Eduardo Cunha, mais 367 deputados federais e 55 senadores que votaram pelo afastamento de Dilma.

Os oligarcas golpistas, essencialmente reacionários, ilegitimamente deram um golpa porque não mais suportaram a evolução pela qual passou o Brasil nos últimos 13 anos, desde que Lula e o PT chegaram ao poder. Acostumada com privilégios históricos, a elite tupiniquim finalmente conseguiu viciar a democracia a ponto de ela, paradoxalmente, ser capaz de dar cabo de incontestáveis virtuoses sociais, como por exemplo, a valorização do salário mínimo e a universalização do acesso ao ensino superior. O golpe encerra precisamente esse projeto de país: no lugar do melhor para a maioria, o melhor para quem sempre teve mais do que a maioria. Em suma, a retomada e a radicalização da desigualdade social que vinha sendo amenizada pelos governos petistas.

Intrigante é o nome do projeto que a elite reacionária e golpista quer para o Brasil: “Ponte para o futuro”. Só mesmo que não consegue transpor o passado em direção ao futuro com horizontalidade precisa de uma “ponte” entre estes dois. A metáfora da ponte é a assunção de que para os reacionários há um abismo a separá-los do futuro. E para não precisarem trilhar o desafiador presente em toda sua complexidade e diversidade, pulam-no mediante a construção de uma “ponte” que dá acesso privilegiado do passado ao futuro. O problema é que o presente é o chão não só dos quase 55 milhões de eleitores de Dilma, mas de 200 milhões de brasileiros que ficarão debaixo dessa ponte golpista vendo a elite desfilar vitoriosa a manutenção do seu velho modus operandi.

Desde a primavera brasileira de junho de 2013 muito de fala na tal crise de representatividade, que, entretanto, até aqui ainda figurava assaz abstrata. Agora, porém, ela se mostra mais concreta do que nunca, amargamente concreta aliás: centenas de representantes políticos democraticamente eleitos, com nomes, rostos e partidos bem definidos, que descaradamente representam não a manutenção dos interesses populares que os elegeram, mas apenas os seus interesses pessoais e partidários. O golpe representa espetacularmente a péssima qualidade da representatividade dos nossos políticos; um suspeito de tráfico internacional de droga, outro acusado de ser dono de contas ilícitas no exterior, e a maioria deles investigados por receberem propinas milionárias. Destruindo a democracia, os “representantes” golpistas constroem a “ponte” que os aliena da Lei que, não obstante, deveria valer para todos, indiscriminadamente.

“Corruptos querem depor uma presidenta honesta” é frase que corre desde a boca de Dilma às manchetes dos mais renomados jornais internacionais. Oxalá o teor dessa declaração não cesse de repercutir não só nesses seis meses de afastamento ilegítimo que a presidenta enfrenta, mas, principalmente, história adentro, sendo Dilma deposta definitivamente ou não. Que a injustiça que Dilma sofre hoje, que ela tem dignidade suficiente para declarar abertamente em alto e bom tom, de fato faça história. O futuro, que nunca precisou de ponte alguma para se conectar com presente, certamente agradecerá essa memória.

E o que é importante não esquecer é que Dilma está sendo tirada do poder para que a elite reacionária possa levar o passado adiante mediante a sua natimorta  “Ponte do futuro”. Todavia, afastada, Dilma em outro lugar não está que no cru chão do presente, desapoderada, certamente, porém, absolutamente horizontalizada com no mínimo os 54 milhões de cidadãos que a elegeram e que tiveram seus votos jogados no lixo pela farsa jurídico-política de algumas centenas de oligarcas golpistas. A “ponte” deles, mesmo que leve algo ao futuro, não tem como levar todos a esse destino. Ponte alguma permite que todos sigam lado a lado em direção ao outro lado; a estreiteza de qualquer ponte apenas coloca uns na frente dos restantes e outra coisa não faz senão permitir que somente uma minoria chegue primeiro onde todos temos direito de chegar simultaneamente: num futuro mais igualitário.

Novamente, só precisa de uma “Ponte para o futuro” quem não consegue caminhar pelo chão do presente. E só não consegue trilhar o presente quem não tem capacidade conviver com a horizontalidade da realidade, mas só com a verticalidade social que sobreleva uns poucos em relação à maioria. Sem dizer que quem erige uma ponte pode cobrar o pedágio que bem intender para quem quiser cruzá-la. Desse modo, estreitando o acesso ao futuro à largura de sua “ponte elitista”, os golpistas reservam o futuro para si, para que ele seja sempiternamente o velho passado que pretere a maioria das pessoas em benefício de uma minoria. E quando essa “Ponte para o futuro” estiver terminada, e o futuro for tal qual o velho passado oligárquico, aí sim o povo poderá chegar nele, entretanto, para estar subjugado às elites, como sempre. Eis a razão do golpe e dessa ilegítima “Ponte para o futuro”.

 

Hashtagtivismo: preguiça revolucionária?

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arte: Rafael Silva – imagem base: Banksy – publicdomainpicture

 

A experiência da vida-em-rede-social tenta, por todos os links, nos convencer de que tudo o que queremos e precisamos está à distância de um click, inclusive, pasmem, mudar o mundo. Porém, as desventuras éticas, políticas, econômicas, ecológicas, etc. desse mesmo mundo mostram que, em se tratando dele, o buraco é mais em baixo. Sua revolução não está disponível às pontas dos nossos cursores e nas poucas polegadas dos nossos smartphones. O que, entretanto, conseguimos tentando revolucionar a realidade por meio de cliques?

No Facebook, uma postagem que prometia a cassação de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos deputados do Brasil, dizia o seguinte: “Clique aqui para depor Cunha”. Ora, Cunha tem contra si não só a opinião pública, mas também, e há anos!, inúmeros crimes e suspeitas gravíssimas que, entretanto, em nada impediram a sua ascensão e permanência no poder. Pior ainda, ele está depondo Dilma, presidenta democraticamente eleita. Como crer que apenas “clicando aqui” tiraremos o poderoso Cunha de onde ele está? O deputado corrupto, ao contrário, parece se fortalecer com as ofensivas do exército de “clickinimigos” que tem.

Banalíssimo hoje em dia também é o uso das hashtags. Algumas letras e palavras se seguindo de um “jogo-da-velha”, e “tudojunto”, fazem com que anseios e descontentamentos individuais sejam imediatamente coletivizados e pareçam ter algum lugar e potência no mundo. Fala-se aqui de um “hashtagtivismo”, isto é, de um ativismo de hashtag! #occupywallstreet, #vempraruavem, #nãovaitergolpe, são alguns exemplos desse tipo de manifestação-rede-social que, virtualmente, convencem muitas pessoas de que estão engajadas em alguma mudança real.

Para entender melhor o que é o “hashtagtivismo” é preciso conhecer o seu pai, o “clicktivismo”, algo como “ativista de clique”, expressão cunhada para dizer daqueles que usam as redes sociais como forma de organização e protesto. Indo mais fundo, chegamos ao seu avô, o “slacktivismo”, termo criado em 1995 que significa “ativismo preguiçoso” (slack, em inglês, significa folga, preguiça). Compreendendo a “árvore genealógica” do nosso banal “hashtagtivismo” podemos concluir que ele descende da preguiça revolucionária.

Ainda contra o presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, podemos perceber a impotência das hashtags. O memético #ForaCunha que se enfileira nas timelines tupiniquins desde 2015 em nada impediu o corrupto indesejado não só de permanece até agora no seu cargo, como também, na sua empresa para depor uma presidenta democraticamente eleita, desmontar a própria democracia da qual, aliás, depende a pretensa potência do “hashtagtivismo”.

O que estaria por trás desse ativismo virtual em forma de “cliques preguiçosos” que pouco ou nada pode contra a tenacidade de seus inimigos reais? Seria a insuficiência das manifestações tradicionais, aquelas formadas pela presença física de manifestantes munidos de gritos de ordem, cartazes e faixas, nas ruas e praças públicas? Destas, contudo, temos de admitir que não têm mais como alcançarem seus objetivos sem o seu outro virtual, “clickico”, “hashtaguico”, uma vez que virtualidade e realidade cada vez menos se distinguem na contemporaneidade.  O buraco, porém, é mais embaixo do que se pode supor.

A filósofa Marilena Chaui, no Ato pela democracia, realizado em março de 2016 na PUC paulistana em decorrência da tentativa de golpe contra a presidenta Dilma, chega a dizer que sequer a presença física dos manifestantes nas ruas serve de alguma coisa enquanto suas performances políticas se resumirem no repetitivo grito “Não vai ter golpe!”. Podemos dizer inclusive que essa frase-grito é tão inócua contra o real inimigo que simultaneamente golpeia Dilma e a democracia brasileira quanto a sua versão-rede-social, antecedida de uma hashtag e replicada aos milhões.

Sequer as duas formas de protesto juntas, a presencial, com milhares de pessoas nas ruas, e a virtual, com milhões de pessoas clicando e hashtaguiando compulsivamente, estão dando conta do problema. O que Chaui quer evidenciar com o apontamento desse impasse é que, se não queremos que os canalhas e corruptos que ocupam o poder usem-no contra nós, devemos nós mesmos preencher este lugar de poder no qual eles estão. Ora, de nada adianta protestar, seja virtualmente, seja presencialmente, se, antes, permitimos que os canalhas e corruptos ocupem o poder. Uma vez eles lá, e suas canalhices e crimes cometidos, protestar é paliativo; apenas a “slack” liturgia da nossa impotência.

Óbvio é que uma hashtag não faz revolução. Menos claro, todavia, é que sequer milhões delas cumprem essa tarefa. Mais indigesto ainda é perceber que, hoje em dia, no Brasil, o hashtagtivismo virtual e o ativismo presencial juntos não estão conseguindo fazer o “Não vai ter golpe!” funcionar. Cunha, o PMDB, o PSDB, e toda a elite tupiniquim estão surfando, e vitoriosamente, a onda “hashtagtivista” contrária a eles. E pouco importa que as marés anti-golpe, tanto as virtuais quanto as presenciais, tenham extrapolado o território nacional e ganhado o mundo. O golpe segue firme e forte.

Parece que tudo o que entendemos por ativismo político, seja o clássico, presencial, seja o contemporâneo, virtualizado, seja ainda os dois combinados, se mostra ineficiente diante do poder contra o qual temos de lutar atualmente. Gritar nas rua ou lotar as timelines com hashtags, com efeito, ainda hoje faze barulho. O problema, no entanto, é que esse ruído é imediatamente ouvido pelo poder contra o qual se volta e, sem mais, facilmente abafado por este. Muitos dizem inclusive que o formato “protesto”, seja ele presencial, seja virtual, é apenas a performance que aqueles que detêm o poder permitem às pessoas para que nada realmente mude.

Por isso, enquanto chorarmos hashtags nas redes sociais ou gritarmos frases de efeito nas ruas depois do leite derramado, isto é, depois de sermos transformados em massa subserviente de políticos, juízes, delegados e policiais canalhas e corruptos, aquilo que queremos mudar permanecerá onde está, incólume. Marilena Chaui aponta a solução; temos de ouvi-la: os cidadãos que estão insatisfeitos e que se sentem ultrajados pelos desfeitos dos seus representantes devem ocupar esse lugar de representação eles mesmos. Ativismo político virtuoso, para quem não quer corrupção nem impunidade no mundo em que vive, é participar direta e lisamente das esferas do poder.

A ineficiência dos “slacktivismos”, isto é, dos “ativismos preguiçosos” apenas revela uma outra face da já conhecida crise de representatividade política. O “hashtagtivismos”, temporão da preguiça revolucionária, é só mais uma expressão dessa crise: a incapacidade de inclusive os indivíduos se representarem eficientemente. Enfieiramos algumas letras depois de uma hashtag, postamos esse neoativismo no oceano virtual das redes sociais, e esperamos dele o mesmo que dos canalhas corruptos que elegemos nossos representantes: a solução dos nossos problemas.

O “hashtagtivismo” preguiçoso pode render centenas de “likes” e, mais ainda, a bela ilusão de que somos um exército imenso, forte, imbatível até. Porém, lembrando que a hashtag não foi criada para ser arma revolucionária, mas para indexar conteúdo digital existente, podemos concluir que ela, na verdade, é uma ferramenta reacionária: trata verticalmente do que já há. As hashtags por meios das quais cremos agir politicamente, portanto, outra coisa não fazem que nos colocar nos índices contemporâneos da falta de potência e da incapacidade de representarmos a nós mesmos de modo eficiente e revolucionário.

Utopia e revolução

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O ser humano precisa da utopia”, afirma o sociólogo Antônio Ozaí da Silva no seu artigo Ideologia e Utopia. Isso porque o homem é um ser imaginativo, o único capaz de pensar realidades para além da realidade imediata. E quando essas realidades imaginadas passam a ser habitadas por outros que a partir de então começam a sonhar o mesmo sonho, as utopias são passíveis de serem realizadas. Importante é saber que o pensamento utópico que transcende o status quo não pode se efetivar solitariamente, pois utopias estão relacionadas a grupos sociais, e enquanto não forem incorporadas por eles não terão efeito. Qual é, então, o papel da utopia e da coletividade que ela engendra na esperança de construção de um futuro melhor?

Outro sociólogo, Karl Mannheim, autor do clássico Ideologia e utopia, sustenta que “a desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático em que o próprio homem se transforma em coisa”. Ou seja, sem imaginar outras realidades ele apenas é essa coisa chamada realidade. Por isso é fundamental manter aberto um espaço para as utopias, pois elas renovam a possibilidade para os indivíduos insistirem em um outro mundo. Quanto mais não seja, para Mannheim, “A erradicação da utopia só é possível com a sua realização”. Pragmaticamente falando, mesmo que derrotada em suas respectivas épocas, as utopias sobrevivem e são incorporadas pelas gerações vindouras.

Marilena Chaui, nas suas Notas sobre utopia, esclarece que a utopia nasce na renascença como um gênero literário — a narrativa sobre uma sociedade perfeita e feliz — e um discurso político — a exposição sobre a cidade justa. Porém, para vir ao mundo seu percurso foi longo. Chaui conta que, primeiro, teve de haver o colapso do teocentrismo medieval para que o homem tivesse participação no destino do mundo e para que percebesse que é dotado de capacidade e força não só para conhecer a realidade, mas sobretudo para transformá-la. Aqui vale citar o adágio celebrizado por Francis Bacon: “o homem é o arquiteto da Fortuna”. Em segundo lugar, fundamental para o vir-a-ser do pensamento utópico foram as viagens marítimas iniciadas no século XV e a descoberta de novas terras e povos que inspiraram fantasias de sociedades perfeitas vivendo em plena harmonia com a natureza.

E dizendo que, etimologicamente, utopia significa não lugar ou lugar nenhum, Chaui quer reforçar não só que utópico é o lugar que nada tem em comum com o lugar em que vivemos, como também e principalmente que “utopia significa, simultaneamente, lugar nenhum e lugar feliz … Ou seja, o absolutamente outro é perfeito”. Afirmando a perfeição do outro, o utópico outra coisa não faz que propor uma ruptura com a totalidade existente. Para a filósofa, a sociedade imaginada pode ser vista como negação completa da realidade existente ou como visão de uma sociedade futura a partir da supressão dos elementos negativos da sociedade existente. Temos aqui a utopia compreendendo tanto o horizonte revolucionário quanto o reformista? Chaui corrobora com isso dizendo que “o utopista é um revolucionário ou um reformador consciente do caráter prematuro e extemporâneo de suas ideias”.

Mannheim aqui é de grande ajuda, pois, para ele, a mentalidade utópica deve ser compreendida segundo maneiras de pensar, sentir e agir que são coletivamente determinadas no sentido de transformar a realidade dominante de acordo com as aspirações do próprio grupo que deseja transformá-la. O sociólogo compreende essas formas de pensar, sentir e agir no mundo ou como ideológicas, ou como utópicas; Ambas, porém, motivações coletivas que determinam a forma como os indivíduos agem e pensam. A diferença principal, entretanto, é que ideologia identifica-se com conservação, e utopia, com mudança. Fazer de ideologia e de utopia sinônimos é um erro, mais difícil de ser percebido na expressão ideologia revolucionária do que no absurdo utopia conservadora. Utopias são contestatórias por natureza; colocam a revolução diante da ordem estabelecida; apontam a possibilidade do não-lugar justamente no lugar que não dá lugar a ela.

Com efeito, são os grupos dominantes que determinam o que será utópico no ato de criticar as concepções dos grupos que lhe são opostos. Em contrapartida, são os grupos que fazem oposição aos grupos dominantes que determinam como ideológicas as concepções destes. Em suma, as ideologias refletem a ordem social dominante, e as utopias, um futuro almejado que supera essa ordem dominante. Mannheim exemplifica isso relembrando-nos de que no momento histórico em que a burguesia se fortalecia economicamente, suas aspirações eram consideradas utópicas pela aristocracia feudal dominante. Porém, uma vez que a burguesia conquistou o poder, isto é, realizou a sua utopia, a sua concepção de mundo passou a ser dominante, e, doravante, o grupo que passou a ser oprimido por ela, o proletariado, passou determiná-la de ideológica.

Chaui corrobora com Mannheim afirmando que a utopia surge como possibilidade objetiva, inscrita na marcha progressiva da história. A filósofa esclarece, contudo, que nenhuma utopia mudou o curso da história por seu realismo, mas, ao contrário, pela negação radical das fronteiras do real instituído e por oferecer aos agentes sociais a visão de inúmeros possíveis. Segundo a filósofa brasileira, “O utopista desloca a fronteira daquilo que os contemporâneos julgam possível”, e que ao passar do u-tópos ao tópos, isto é, do não-lugar a um lugar na história, a utopia se transforma em ideologia.

A crítica de Engels e Marx ao socialismo utópico não escapa das considerações de Chaui sobre utopia. Segundo ela, para os dois filósofos alemães a utopia socialista “é um pressentimento ou uma prefiguração de um saber sobre a sociedade … Assim como da alquimia se passou à química e da astrologia à astronomia, assim também é possível passar do socialismo utópico ao socialismo científico”. Passagem do afetivo ao racional, do parcial ao totalizante, do pressentimento à revolução, o socialismo utópico é o primeiro movimento contra a opressora ordem estabelecida. O socialismo científico, por sua vez, é o passo derradeiro: o conhecimento racional das causas materiais da humilhação e da opressão, ou seja, o modo de produção capitalista.

O pensamento utópico, seja em que área for, é a assunção da incapacidade de diagnosticar corretamente a realidade na qual pensa. Entretanto, tem a virtude de dirigir a ação coletiva. Utopia não é exatamente um vir-a-ser, mas um não-ser-que-não-obstante-já-é, uma vez que o lugar do não-lugar é justamente a resistência do real em ceder lugar a outra coisa que não ele mesmo. Por mais que as utopias, de certa forma, sejam discursos sobre o não existente, com isso não podemos dizer que são quimeras, delírios de indivíduos incapazes de ver a realidade. O que o utopista pensa é a mudança, a revolução, pois se o pensamento humano permanecesse prisioneiro da realidade as sociedades estariam condenadas a permanecerem estacionadas no que já são.

Vale seguir as principais características de uma utopia feita por Chaui, feita a partir da Utopia de Thomas More. Segundo a filósofa, uma utopia: é normativa na proposição de um mundo tal como deve ser; é sempre totalizante, pois utopia é criação de um mundo completo; é a visão do presente sob o modo da angústia e da crise; busca a liberdade e a felicidade totais graças à reconciliação entre homem e natureza, indivíduo e sociedade, sociedade e Estado, cultura e humanidade; busca combinar o irrealismo com o realismo; não ocultar nem dissimular nenhum de seus mecanismos e nenhuma de suas operações (ou seja, não é ideológica!); é um discurso de fronteiras são móveis, isto é, pode ser literária, arquitetônica, religiosa, política, etc. Mais do que um programa de ação, uma utopia é um exercício de imaginação, permanecendo assim no plano potencial e hipotético.

Na sequência, Chaui enumera o conjunto de aspectos utópicos que passaram a operar como modelo para obras e discursos utópicos posteriores. Quais sejam: a busca pela cidade feliz ou justa se encontra na excelência da legislação, na estabilidade social, política e institucional; a identificação de cada indivíduo com  a lei ou com o Estado, o desaparecimento da família, da propriedade privada, do dinheiro, da desigualdade social e da competição; a escolha de uma locus insular e isolado de todo o restante do mundo, cuja localização, por segurança, permanece secreta; o planejamento geométrico, urbanístico e arquitetônico enquanto produto da razão que organiza o espaço segundo exigências sociais, políticas e econômicas; demarcação do lugar do poder; a beleza e a salubridade da cidade ideal; e, seguindo Platão na sua utópica República, a recusa do isolamento engendrado na escrita e na leitura solitárias em proveito dos encontros, conversar e debates coletivos.

Foram esses aspectos que, a partir do século XVI, fizeram da utopia um jogo intelectual que passou a combinar a nostalgia de um mundo perfeito porém perdido com a imaginação de um mundo novo instituído pela razão. Francis Bacon se vale disso para criar a sua ilha utópica, Nova Atlântida, na qual projeta todas suas expectativas de um futuro baseado em uma nova racionalidade. Sem duvidar um momento sequer de que o homem pode se tornar “ministro e intérprete da natureza”, Bacon descreve uma espécie de utopia da ciência futura. Seu esforço fez dele profeta da sociedade moderna.

Por que nova Atlântida? Bacon faz alusão à civilização Atlântida, formulada por Platão no diálogo Crítias, enaltecida pelo grego pelas belas instituições e feitos de seus habitantes, sobretudo pela valorização da filosofia, da ciência e pela virtude e sabedoria. O inglês buscou no ideal platônico o protótipo de uma sociedade paradisíaca a ser seguida, modelo, segundo ele, capaz de tornar seres humanos perfeitamente virtuosos. A nova Atlântida de Bacon é uma sociedade harmônica, feliz e próspera, na qual o conhecimento e sua aplicação superaram as limitações da condição humana. As virtudes cívicas não são religiosas; a civilidade ideal nasce do conhecimento e não da fé. Ou seja, Nova Atlântida é a utopia da ciência.

Chaui ressalta que depois de Nova Atlântida o racionalismo e o experimentalismo científicos passam a integrar o discurso utópico. A utopia de Bacon exalta as artes liberais e o trabalho manual e técnico. Nova Atlântida é uma civilização do trabalho; antecipa a sociedade racional produtora de sua própria felicidade mediante a instalação de uma ordem social perfeita. E para não esquecer do que coloca Mannheim, qual seja, que as utopias falam da realidade ao negá-la, que propõem justamente o que não tem lugar na realidade imediata, é importante frisar que Bacon transferiu para sua utopia aquelas aspirações suas que a ordem econômica e política de sua época impediam de serem realizadas. Com efeito, a Nova Atlântida de Bacon era uma crítica à sociedade medieval tardia da qual o pensador gostaria de se ver livre. O pensar, sentir e agir contemporâneos a Bacon, senão romperam com o passado, ao menos revelaram a ruptura sócio histórica que estava em curso.

Com efeito, a utopia de Bacon serviu de paradigma para o pensamento utópico posterior. Tanto que, aponta Chaui, a partir do século XIX a utopia deixa de ser apenas um jogo intelectual-imaginativo para se tornar projeto político no qual o possível se insere na história e constrói o futuro. Doravante a utopia passa a ser deduzida de teorias sociais e científicas. É tida como inevitável porque a marcha da história baseada no conhecimento garante sua realização. A utopia deixa de ser apenas literatura contestatória e se torna prática organizada. A cientifização das utopias resultam em um projeto de reforma global como ciência aplicada.

O problema da viabilidade das utopias mediante a racionalidade e a técnica humanas, entretanto, é que elas passam a ser encaradas pelos poderes dominantes reacionários, isto é, ideológicos, como perigo real. Começam a ser censuradas, desacreditadas e abafadas por bombas de gás lacrimogêneo pelo poder que elas ameaçam. Todavia, a virtude subversiva das utopias está em que, conforme destaca o sociólogo Antônio Ozaí da Silva, a sociedade que nega veementemente uma utopia outra coisa não faz senão produzir as condições para a sua realização. Mais ainda, com Mannheim podemos dizer que é a própria ordem existente, absoluta e ideologicamente contrária à sua própria ruptura, que, entretanto, dá vida a utopias que rompem com o real, abrem a história, possibilitam a mudança, seja ela revolucionária, seja reformista. A utopia, portanto, é uma não-ordem que, na marcha da história e por força de uma coletividade, possibilita as ordens seguintes.

 

A uma periferia da verdade

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O desejo de alcançar a verdade, seja sobre o cosmos, seja sobre si mesmo, levou o homem a criar os mitos, isto é, relatos fantásticos protagonizados por seres que encarnam as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana. Foi preciso milhares de anos para que a mitologia perdesse seu posto de locus da verdade e fosse irreversivelmente substituída pela ciência que, com precisão matemática, acredita-se dizer o que e como as coisas são. Agora, seria um absurdo perguntar se a ciência, em vez de efetivamente tocar a verdade, não estaria apenas inventando as ficções mais efetivas da história da humanidade?

Os mitos lidavam com personagens e situações particulares para, todavia, dizer do universal, ou seja, daquilo que sempre foi, é, e será. O mito de Prometeu, por exemplo, contando a história da sabedoria roubada de Zeus para que os homens pudessem viver longe do paraíso, conta, na verdade, de nós, seres humanos, e da necessária sabedoria que a cada instante devemos furtar para vivermos na natureza. Sendo assim, somos todos nós os eternos larápios, porém, projetados miticamente em Prometeu, pois só a certa distância podemos vislumbrar, sem padecer, aquilo que eternamente somos.

O mítico Édipo Rei, cuja eternidade, todavia, é trágica, só revelou a verdade sobre os desejos incestuosos que todo os homens têm em relação aos seus progenitores à distância de uma plateia e sob o pretexto de um texto. Ora, se se disser a uma pessoa qualquer que ela de fato deseja matar o seu pai e ter relações sexuais com a sua mãe, de forma alguma compreenderia, tampouco aceitaria tais desejos. O mito tem a capacidade de torna o difícil fácil; o inaceitável, palatável. A história da capacidade humana para lidar com o insuportável, não obstante, é contada por outro mito, o de Ulisses e as sereias, que, nas palavras de Adorno, outra coisa não é senão a história da invenção da plateia, ou seja, da distância contemplativa segura.

Por conseguinte, o primeiro passo do homem para além da arena mítica foi trágico. As tragédias gregas, espetáculos nos quais a mitologia seguiu performando a sua pretensão de ser o veículo da verdade, outra coisa não foram que uma nova proximidade, uma nova segurança, em relação àquilo que da natureza e de si mesmo o homem não tinha condições de suportar. Entretanto, o passo derradeiro que definitivamente negou ao mito a posse da verdade foi científico. O tipo de verdade que a ciência inaugurou não carecia, ao contrário do mito, de crença nem de repetição, pois, por um lado, não se corrompe longe da audiência humana, e, por outro, não deseja ser descoberta, dado que aguardou, paciente e incólume, os milênios de protagonismo mítico.

Porém, assim como a tragédia foi um dos veículos da mitologia, é justo desconfiar que a ciência, embora afirmando-se alheia às fantasias, veicule, contudo, algo delas. Ora, os cientistas contemporâneos, diante de equações matemáticas elegantérrimas, no final das contas falam delas mediante enunciados assaz poéticos tais como buraco de minhoca, buraco negro, partícula de deus, etc. Não parece mitológico os nossos físicos dizerem que “uma partícula subatômica ora é onda, ora matéria”? Não estariam eles assumindo que não sabem o que ela de fato é, sempre, e, para remediarem essa incerteza, contam uma boa história?

Portanto, mítica ou cientificamente, estamos condenados a projetar em todas as nossas questões centros de verdade a serem alcançados, contudo, a partir da imensa circunferência das nossas próprias dúvidas. Porém, dessa periferia não escapamos. Prometeu nos dirá sempre que precisamos furtar a sabedoria de que necessitamos, pois ela não nos pertence. Édipo repetirá eternamente que desejamos matar os nossos pais e casar com as nossas mães, pois somos sempre ignorantes em relação aos nossos desejos primordiais. Ulisses, por sua vez, narrará sempiternamente que apenas à distância de uma plateia podemos suportar a verdade, observá-la.

Imaginemos que a relação do homem com a verdade tem a forma de um círculo, a verdade ocupando o centro e o homem a circunferência. O raio desse círculo pode ser de qualquer tamanho e, partindo do centro, apontar para qualquer um dos infinitos pontos que formam a circunferência, mas será sempre uma distância determinada a afastar o homem da verdade central. Podemos nos aproximar desse centro, mas como o raio que nos separa dele é uma reta, isto é, é constituído de infinitos pontos, chegar ao centro verdadeiro exigiria que transpuséssemos o infinito. Tarefa impossível para seres finitos como nós!

Podemos perambular peripatética ou histericamente ao longo da circunferência curiosa na qual estamos, qual o desejo lacaniano em torno do seu pequeno objeto a, que, se tocado, é destruído. Pensando em aproximação em relação ao centro no qual jaz a verdade, podemos inclusive fazer uma gradação entre as infinitas periferias que se estabelecem em relação à verdade central: o mito um círculo maior, a filosofia, um menor, e a ciência, o menor deles, um tanto mais próxima da verdade. Porém, o homem é de uma natureza que estabelece raios irredutíveis entre as verdades centrais e a sua vontade de conhecê-las, Se o homem conseguisse abandonar a periferia de suas dúvidas e conquistar o centro da verdade, não mais a veria, mas somente ele mesmo, um outro mito.