A univocidade da Natureza

Quando vemos cataclismos naturais, pela TV ou presencialmente, as assombrosas magnitudes destes eventos, mas também a inquestionável naturalidade com que ocorrem, ambas as impressões nos solicitam predicações que traduzam quantidades naturais em qualidades artificiais, ou seja, humanas. Porém, encontrar semântica que dê conta deles é tarefa inglória, pois as ideias que imediatamente nos sobrevêm em compaixão às muitas vidas que, por exemplo, um tsunami ceifa, conflitam com outras que dizem apenas da espetacular potência da Natureza.

Nesse final de abril de 2015, em menos de uma semana, o mundo assistiu à erupção do vulcão chileno e ao terremoto nepalês. Aquele, expulsando milhares de famílias de suas casas e privando nova-iorquinos de suas férias em Buenos Aires, e este, destruindo patrimônio da humanidade, matando cinco mil pessoas, e afetando oito milhões. Em resposta ao infortúnio que estes eventos causaram à tantas vidas humanas há a tendência de culparmos a Natureza, de projetarmos nela crueldade, violência e, o que mais denuncia a impertinência das nossas predicações, desumanidade.

Entretanto, paralelo à comiseração pelas vítimas das duas catástrofes, há o maravilhamento, do qual não conseguimos nos alienar, diante das proporções e das misteriosas estruturas destes acontecimentos universais, que por sua vez não têm, nem nunca tiveram, o homem, tampouco suas palavras, como princípio, meio ou fim, ou seja, como medida. Trata-se, então, não dos juízos que nós, partes, temos em relação às outras partes dentro do todo, mas das ideias que as próprias partes têm do todo dinâmico e astronômico do qual fazem parte.

A onipotência da Natureza, seja expelindo rocha derretida e fumaça a alturas de cinco quilômetros, seja tremendo os continentes por conta da lenta batalha geológica travada sob os nossos pés, incita-nos às nossas melhores palavras. Em contrapartida, para aquilo de que somos privados pela performance da Natureza temos outras expressões, e estas trazem significados mais vis. Diante desses mesmos fatos temos, contudo, predicados completamente opostos, mas que só são possíveis porque usados ora uns, ora outros.

Difícil mesmo é encontrar um substantivo inequívoco que diga da miríade de coisas que a Natureza envolve e cria, ao modo de ser sempre ela mesma, que não Natureza. Dizemos, aqui e ali, que ela é bela, mas, de modo algum, figuram-nos belas as mortes que ela causa acolá. Outrossim, falamos que a Natureza é providente. Porém, tendo extinto de dinossauros a borboletas monarcas, e ameaçando extinguir inclusive a humanidade, o termo “providente” jaz absolutamente relativo. A Natureza, portanto, aceita somente um nome: Natureza; tornando inútil o palavrório com que tentamos dizer, sem sucesso, o que ela de fato é.

Todavia, rotulamos a Natureza com a gama imensa dos nossos predicados porque somos afetados por ela, pelas alegrias e tristezas que ela nos causa. Esquecemos, não obstante, de que as nossas expressões qualitativas atendem melhor às partes, mas de modo muito impróprio ao todo. Mesmo assim, insistimos em definir o todo que nos afeta como se, reduzindo-o semanticamente, ele passasse a fazer parte das partes que o definem, ou seja, de nós. Porém, a Natureza nunca deu ouvidos à prolixa humanidade. Não que ela seja surda, senão porque sua língua é outra. Ademais, todo o discurso da humanidade é apenas um recente e superficial “tweet” na profunda e unívoca rede de acontecimentos que é a Natureza.

Os nomes dos pau

O órgão sexual masculino goza do maior número de nomes dentre todos os objetos, ganhando, com apertada vantagem, apenas da sua transgênere, a vagina. São tantos os apelidos do pênis, num fálico desafio à generalização, que cada um deles parece querer um nome exclusivo. Porém, tão variados quanto as designações do “amiguinho”, são os seus tamanhos. Então, vale a pena aventar uma relação entre as alcunhas e as dimensões dos “abre-alas” ao longo da vida dele.

Ao “anjinho barroco” de um bebê, por conta de sua estatura e monofuncionalidade, cabem nomes tais como: “piu-piu”, “pipí”, “bingolim”, “bingulino”, “pingolim”, “tico”, “bigorrilho”. Isso porque, chamá-los de, por exemplo, “pilão”, “atrasa-bosta”, “arma-pra-boquete” ou “Picasso”, além de botar a carroça na frente dos bois, isto é, atribuir funções onde mal há forma, no nosso mundo politicamente correto pode suscitar desconfianças pedófilas. Ora, o que está implícito, digamos, no apelido “pirulito”? Então, paciência para não chamar o “pintinho” de “galo-véio” antes do tempo!

Na infância, surgem apelidos como “bilau”, “pingola”, “pinto”, pois a “torneirinha” que outrora apenas mijava nas fraldas, agora, um tanto mais desenvolvida e dona de suas próprias cuecas, pede novos nomes. Porém, não por muito tempo, pois o “tico” infantil logo dá lugar ao “pirú” adolescente que, com alguns centímetros e ereções à mais, atende melhor se chamado de “pau”, “piça”, “piroca”, “badalo”, “balangandã”. Nessa fase, o “Júnior” passa a dar um prazer especial, no mais das vezes onanístico, donde nasce o nome “palhaço”, constantemente escabelado, embora os pelos pubianos não formem ainda uma juba que justifique plenamente a expressão.

Porém, é na vida adulta que a “caceta” experimenta sua maior prolixidade de codinomes. O império do sexo muda tudo, e tem um epíteto, contudo espirituoso, embora advindo do mundo científico, que bem traduz essa revolução: “alavanca-de-Arquimedes”. No entanto, é devido á interatividade que o “plug-and-play” adulto pode se dar ao luxo de se chamar também “caralho”, “cacete”, “catso”, “pica”, “rola”, “vara”, etc. Aqui o tamanho importa muito na escolha do nome, pois, se pequeno, não faz sentido algum chamá-lo de “jeba”, mas talvez de “amigo”, quiçá de “alisa-que-cresce”. Já os maiores podem, e inclusive devem, ser chamados de, “tora”, “berinjela”, “tripé”, “mastro”, “capitão”, “Alexandre, o Grande”, e por aí vai.

A velhice, entretanto, começa quando a “benga” se reconhece melhor se chamada de “bengala”, “trouxa”, “borracha”, “invertebrado”, “geringonça”, “chonga”. Também é muito usual, nessa fase da vida, a “pila-murcha” ser chamada de nomes próprios, tais como, “Leopoldo”, “Roberlau”, “Bráulio”, “Olavo”, “Duval”, como se se tratasse de outra pessoa, com suas próprias vontades e limitações. Se bem que, hoje em dia, com o Viagra, qualquer “Judas” senil pode reencarnar o “Espírito-Santo” e ser chamado, ainda que por algumas horas, de “possante”, “cava-cova”, “almirante”. Em contrapartida, longe da farmácia, e na tranquilidade do lar, o “bagaço” idoso admite todos os nomes infantis supracitados.

Não é porque existe muitos nomes para o “pau” que, como diria Aristóteles, não há um ordem nessa joça. Auto lá! Só quem tem uma “neca” sabe do que ela pode e, sobretudo, do que não deve ser chamada. “Banana”, por exemplo, é um universal. Já “chave-de-mulher”, por sua vez, se aplica somente a parte dos “cipós”. Os tamanho dos “documentos” também determinam suas graças. Porém, cada “espiga” experimenta, ela mesma – uma mais, outras menos -, uma evolução dimensional ao longo de sua própria jornada peniana. Por isso, acredito eu, seja esta a hierarquia mais genuína dos muitos nomes com os quais, do “tiquinho” ao “varizento”, chamamos o nosso “amigão”.

Rastros dos rastros dos rastros da felicidade

Um amigo budista me disse que, desejando-se a felicidade, devemos seguir as pistas que a vida nos dá, pois somente nelas, e a partir delas, é que a ventura se revela e se realiza. Disse-me ainda que, enquanto estivermos cegos à tais pistas, circunvagaremos por caminhos que a outro lugar não levam senão à tristeza. Pois bem, como eu desejo ser feliz, e não triste, e constatando que a minha busca por felicidade segue sistematicamente os juízos últimos que faço da vida, e não as pegadas que ela primeiramente coloca diante dos meus passos, achei que devia procurar por tais indícios.

Então, imaginei que bastaria olhar em volta para perceber os rastros que me levariam à desejada bem-aventurança, como se eu estivesse partindo de um deserto estéril, em cujas areias alisadas pelo vento estaria riscada, clara e distintamente, a trilha da minha felicidade – essa égua selvagem sempre fugidia. Porém, diferente do cenário que eu projetei à epopeia venturosa a ser empreendida por mim, ao meu redor insistia, indiferente e imperiosa, a selva de pedra urbana de sempre, povoada de pessoas, de descaminhos e, sobretudo, da miríade de marcas densamente sobrepostas, para todos os lados e em todas as direções.

Não é que eu deixe de atentar às pistas que a vida, segundo o amigo budista, tem para me dar, senão que elas, anãs que são, permanecem ocultadas pela multidão de gigantescas confusões que mais desviam da felicidade do que atalham a ela. Como, então, seguir tais pistas se elas são pisoteadas antes mesmo de serem notadas? Eu mesmo, na minha fuga peripatética para longe da tristeza, inadvertidamente sulco a terra em tantos outros sentidos, apagando o mapa que me levaria ao acampamento da minha felicidade cigana, e, sobre o borrão que dele resta, riscando rotas de emergência.

Antes de seguir os felizes indícios que, Buda afirma, a vida me dá, preciso, não obstante, encontrá-los. Devo, portanto, procurar primeiro por pistas que me levem às pistas daquilo pelo que procuro, ou seja, a felicidade. Ingenuamente, achei que a evidência da evidência fosse mais fácil de ser encontrada. Entretanto, o mistério não desapareceu, mas se antecipou, todo ele, no meu estratégico passo antecedente. Porventura deveria eu repetir a operação e procurar por pistas que me levassem às pistas das pistas da minha felicidade? Desconfiei dessa investigação que, à medida em que a solução era vislumbrada ao longe, desdobrava o seu mistério e duplicava o percurso a ser percorrido.

No entanto, a dificuldade em achar o rastro do rastro que levaria ao rastro da felicidade não revelava mais dificuldade. Antes, era a projetação da dificuldade primeira, contudo, nos passos que eu fazia anteceder a já difícil caminhada. Ora, o caminho que leva ao caminho é ele mesmo o próprio caminho. Dividi-lo em muitos estágios, como que em preâmbulos, não encurtará a promenade. Pelo contrário, apenas fará do paraíso uma terra ainda mais distante.

Sendo assim, a pista feliz, que o meu amigo budista afirmou que a vida sempre dá, e à qual basta atentar para se alcançar a felicidade, não deve ser procurada, pois, vasculhando por ela, nos tornamos cativos do círculo vicioso que, a cada ciclo seu, distancia-nos um passo do objetivo primeiro. Para estar livre das charadas da tristeza, portanto, mais vale se embrenhar em qualquer carreira, sem medo de que se trate de um desvio, pois mais vale errar na busca pelo acerto do que se afastar da tentativa. Desconfio, agora, que, talvez, a única pista que a vida nos dê, de fato, seja a de que a felicidade é o destino do qual não conseguimos nos desviar. Todo resto é apenas álibi peripatético.

Vontade e desejo em Spinoza

A única coisa de que não precisamos ter vontade é de ter vontade, pois já a temos, ao modo de sê-la, a despeito dos objetos determinados nos quais ela deságua em forma de desejo. O problema é que tomamos, inadvertidamente, a foz do desejo pela nascente da vontade, como se as coisas específicas que desejamos desejassem primeiro serem desejadas, para só então nós termos vontade delas. Cativos desse engano, elegemos, a partir da nossa plena liberdade, um senhor do qual, doravante, seremos escravos. Por isso é fundamental conhecer a diferença entre vontade e desejo, ou, do contrário, invertendo a hierarquia entre eles, ou ainda fazendo dos dois uma coisa só, circulamos peripateticamente, quiçá avançamos, no entanto tortuosamente, no rio da nossa existência individual.

Para o filósofo Baruch Spinoza, a vontade é a capacidade de afirmar e de negar coisas em geral, antes de elas serem coisas específicas. O desejo, por sua vez, afirma ou nega coisas bem determinadas, pois sua função é saciar necessidades outrossim já determinadas. A vontade, diz Spinoza, é um ente universal, aquilo que é comum a todos os desejos particulares, isto é, uma ideia que explica e sustenta todos eles, e, por conseguinte, não suporta peculiaridade alguma. Somente quando a vontade esclarece-nos a que ela se dirige, ou seja, afirma ou nega uma coisa qualquer, é que surge o desejo. Portanto, quanto temos consciência do que queremos, desejamos. Em contrapartida, enquanto não temos tal consciência, eis a vontade em sua abertura absoluta.

Sendo assim, ao pensarmos que temos vontade, e não desejo, de, por exemplo, comer (batatas-fritas), rezar (a Ave-Maria), amar (a fulano), outra coisa não fazemos senão achatar a universalidade tridimensional da vontade no plano específico do desejo. Spinoza afirma que os homens, ao dizerem que suas ações deliberadas são suas próprias vontades, pronunciam palavras sobre as quais não têm a mínima ideia, pois, ignoram, todos, o que seja a vontade e como ela os move. O filósofo sustenta ainda que, por serem conscientes apenas de seus desejos e dos meios através dos quais realizá-los, as pessoas creem que são livres, mas nem em sonho conhecem a causa, isto é, a vontade que primeiro as dispôs a desejar.

Podemos dizer, então, que a vontade é a abstração, necessária e a priori, daquilo que será, a posteriori, concreto e consciente a ponto de poder ser desejado, todavia apontado pelos nossos sentimentos cotidianos. Como disse Spinoza, a saudade, por exemplo, é o desejo de uma coisa passada; a ira, o desejo de fazer mal a quem odiamos; o temor, o desejo de evitar um mal; a polidez, o desejo de fazer o que agrada aos outros; a ambição, o desejo de glória; a gula e a embriaguez, desejos por comida e por bebida; a luxúria, pela união dos corpos; e assim por diante. Entretanto, é da necessária inconsciência da vontade que nascem todos os nossos desejos particulares.

Para Spinoza, o desejo é a própria essência de cada um de nós à medida que ela é concebida como finita e determinada, ao passo que a vontade é essa mesma essência, porém, infinita e resistente a qualquer determinação. Quando, por confusão nossa, determinamos a vontade, a contrassenso dela, para que funcione como um desejo qualquer, emulamo-nos, isto é, produzimos, pervertidamente, em nós mesmos, desejos, ou porque é mais prático lidar com algo concreto do que com uma abstração, ou pelo simples fato de outros terem tais desejos – como quando desejamos fugir porque vemos outros fugirem, ou tememos ao ver outros temerem.

Com efeito, não há nada de errado em sentir ou desejar algo conquanto isto seja expressão da nossa vontade, ou seja, do nosso inalienável poder de afirmar ou negar as coisas. No entanto, quando tomamos um desejo particular como se fosse a vontade – em si universal – deixamos de ser os senhores do infinito indeterminado que reside em nós mesmos, de cujos confins brota a miríade de desejos, todos genuínos, embora determinados, dos quais somos afetados, para então nos tornarmos escravos subservientes do latifúndio dos desejos, sejam os nossos, sejam os dos outros.

Ora, como existe um universo de desejos particulares em cada ser dotados de vontade, e, conforme Spinoza, como há tantos desejos quantos são os objetos a serem desejados, do império determinante dos desejos não podemos esperar uma democracia, mas, antes, uma tirania egoísta na qual o pragmatismo de uns se sobrepõe aos demais. Entretanto, com a vontade, cuja natureza universal e livre de determinações viabiliza não só o surgimento de todos os desejos particulares como também as suas realizações, com ela podemos, e sobretudo devemos, formar comunidade. Para concluir, parafraseando Spinoza, não é porque desejamos alguma coisa que temos vontade dela, mas, ao contrário, é porque temos uma vontade do tamanho do universo, sempre primeira, que coisas podem ser, sempre posteriormente, objetos de desejo.

Cachorros, pastéis e barbaridades

Rolando o feed de notícias do Facebook, passei os olhos sobre uma postagem que falava de uma lanchonete carioca, porém, de chineses, reutilizando cachorros-quentes na preparação dos seus salgados, o que pareceu mais oportunista do que nojento. Como outros posts me aguardavam logo abaixo, segui adiante sem maiores considerações. Porém, um dia depois, aquela mesma notícia reapareceu várias vezes no mural, o que me levou a relê-la. Qual não foi a minha surpresa ao perceber que não eram cachorros-quentes, mas sim cachorros que haviam sido usados para rechear os salgados da tal pastelaria.

Imediatamente, intriguei-me pelo fato de ter lido “cachorros-quentes” onde estava escrito somente “cachorros”. Porém, a justificativa que encontrei é que eu jamais imaginaria que carne de cão e pastéis pudessem estar juntos, fosse numa notícia, fosse numa lanchonete, ainda mais em uma na qual eu bem poderia ter ido – se é que não fui. Entretanto, num segundo momento, diante da gravidade do fato, indignei-me tremendamente pelo fato de cachorros terem sido mortos e moídos em troca de, no máximo, três reais o pastel. Por fim, senti nojo ao imaginar a imundície e o perigo à saúde em se consumir carne de um animal urbano, que se alimenta de restos não menos urbanos.

Entretanto, duas considerações bastaram para que eu relativizasse o asco e a indignação que sentia. A primeira delas é que carne de cachorro, ao contrário dos nossos hábitos ocidentais, é consumida normalmente na Ásia, e, sobretudo na China, é uma iguaria oferecida em ocasiões especiais, dita inclusive benéfica para a saúde. Ora, a minha náusea carioca diante do picadinho de cão outra coisa não é que uma frescura cultural. Ademais, se eu tivesse conhecido mais da Ásia além da parte não europeia de Istambul, provavelmente teria provado do bicho, no mínimo, por curiosidade. Então, nojo de carne canina não deveria mais se seguir da polêmica notícia.

Porém, restava ainda a indignação pela morte dos cães. Por que os donos da pastelaria não usaram carne convencional, digamos, da Friboi, ou qualquer outra que se encontra nos supermercados? Então, em segundo lugar, percebi que a minha revolta contra a morte dos cachorros desapareceria caso se tratasse de peixes, frangos, porcos, etc. Ora, no Rio Grande do Sul, de onde eu venho, mas não só lá, as pessoas se se deliciam com um bom churrasco, no entanto, de carne de vaca. Diante de uma suculenta picanha, o gaudério civilizado pouco ou nada se importa com a morte de uma vaquinha.

O fato de, aos meus olhos civilizados, significar uma barbárie matar cachorros para que pastéis sejam recheados apontou para o bárbaro escondido em mim, todavia, do qual me alieno ao sustentar que matar vaca pode, cachorro não! É exatamente essa barbaridade dissimulada que eu alimento sempre que como, por exemplo, um inocente quibe-cru, uma modesta esfirra de frango, um saudável Sushi, e não me insurjo contra a morte dos animais usados nestes quitutes, mas, pelo contrário, deleito-me com os sabores de suas carnes – mortas. Portanto, a indignação com o canicídio da pastelaria carioca-chinesa é só mais uma demão de civilidade com a qual sigo envernizando a minha barbárie inconfessa.

Ora, não foi à toa que, na primeira vez em que passei os olhos sobre a notícia, eu me privei de encarar que, com efeito, se tratava de cachorros. Em troca, o pretenso civilizado que eu sou leu, estrategicamente, “cachorros-quentes”, pois assim os cãezinhos mortos dos pastéis não me levariam às vaquinhas mortas dos meus churrascos, e, por fim, eu não precisaria me deparar com o barbarozinho alienado que se oculta em mim, cuja resistência habilmente contextualizou tanto o consumo quanto a morte dos cachorros cariocas. Difícil, contudo, é reprovar a costelinha de porco que eu terei em seguida para o almoço da mesma forma como desaprovei o pastel canino carioca-chinês. Que barbaridade!

Ciência, Psicanálise, e Eu.

O físico alemão Werner Heisenberg esbarrou com um paradoxo crítico: quanto mais pesquisava alguma coisa, menos do que era analisado era descoberto, e mais daquilo que ele próprio desejava encontrar era evidenciado. Logo, o limite de suas respostas atendia ao seu desejo, todavia expresso em perguntas científicas. Saciar uma dúvida, portanto, outra coisa não visa senão à origem curiosa que a fomenta. Como quem pergunta é sempre um Eu, a verdade, com efeito, é o antídoto desse Eu contra aquilo que o inquieta.

Na psicanálise, contudo, nenhuma verdade afora o próprio Eu analisado permanece muito tempo no consultório. Porém, quando é inquirido pelo psicanalista, esse Eu primeiramente procura por respostas às suas questões fundamentais naquilo que ele não compreende do mundo, em seguida nos outros, e por fim nas coisas, na quimérica esperança de que algo que não ele mesmo explique o caos que angustia e ameaça a sua harmoniosa ideia de Eu.

Entretanto, esse Eu que, por um lado, adora se esconder de suas próprias perguntas, mas que, por outro, é o único que permanece até o final de todos os questionamentos, esse Eu é apenas uma ficção funcional, não existindo para além da colcha de retalhos de suas próprias experiências. Acreditamos possuir o um Eu simplesmente porque alguma coisa acompanha todas as nossas perguntas, ou, como diria Kant, todas as nossas representações. Porém, sem perguntas nem representações não há nada através do qual um eu possa existir.

Todavia, encontrar réplicas que não o Eu às interrogações fundamentais, fim da ciência, mas não da psicanálise, serve, contudo, para livrar esse Eu de confrontar-se com sua própria contingência. Por conseguinte, recusando-se como resposta última às suas questões profundas, além sustentar a ilusão da existência, o Eu lucra com um mundo de coisas cientificamente comprovadas e de muita utilidade.

Entretanto, a estreita via dos dados científicos, das precisões milhonesimamente aferidas, leva para longe da ágora qualitativa que reúne, a um só tempo, as verdades universais, a quimera apelidada de Eu, e a eterna polêmica entre elas. Kant coloca que a verdade sobre o universo é o que jamais alcançaremos enquanto carregarmos essa contingência chamada Eu, visto que as coisas não existem para nós, quiçá para elas mesmas.

Freud, o pai da psicanálise, por sua vez, diz que o Eu é aquele que quer se livrar do desconforto de suas próprias perguntas, mas também aquele que deseja se satisfazer com as respostas que encontra. Portanto, as verdades com as quais o Eu freudiano se depara em suas tentativas de existir são, por um lado, o que o inquietam, e, por outro, o que o apaziguam. Entretanto, no divã, esse Eu não desvelará os segredos do universo, mas, com sorte, sua inconsistências.

Ora, se, como diz Kant, o Eu é uma ilusão funcional, permiti-lo no laboratório científico é deixar que a ficção inquira a realidade, o que é um absurdo. Ou ainda, se, como pensa Freud, o Eu é apenas uma instância dialética que faz do universo ora uma falta angustiante, ora uma recompensa prazerosa, no divã esse Eu só potencializará sua histeria intrínseca.

A ciência tem por função corrigir a relação problemática que o pensamento estabelece com as verdades universais da qual a ilusão do Eu é plateia cativa, porém, acusando esse Eu ficcional por gerar tal problema. Já a Psicanálise se interessa mais pela relação polêmica do pensamento consigo mesmo, todavia, a partir do que ele padece por preferir-se às verdades universais, isto é, fazer delas moeda de troca da sua economia do prazer.

Se, como afirmou Heisenberg, o Eu insiste em ser resposta às suas próprias perguntas, Kant tinha razão em afirmar que a única ciência digna do Eu é a lógica, cuja equação final é sempre o árido Eu=Eu. Para este filósofo, o Eu principia e finda necessariamente no princípio da identidade, e, fora disso, é apenas ficção. Para Freud, a ciência do Eu é psico-lógica, pois só esta abarca o absurdo Eu≠Eu, todavia, até que essa diferença se reconheça enquanto fuga da identidade fundamental na qual, sempre, Eu=Eu.

Silêncio, verbo, cidade

“No princípio era o verbo”, diz João na abertura do seu evangelho, falando da criação do mundo. Porém, para que Deus não parecesse um idiota, usar o verbo só faria sentido conquanto houvesse ao menos um homem para ouvi-lo. João, portanto, conta a história do homem rompendo a ausência de diálogo no universo. Da verborragia humana subsequente nasceu o nosso mundo, bem como suas instituições, tais como a família e a cidade. Porém, ao se apropriar do verbo inaugurado por Deus, e ao exclui-Lo do bate-papo mundano, com quem fala a humanidade, e de que criação é capaz tagarelando sozinha?

Antes de pronunciar qualquer palavra, enquanto elas sequer existiam, aqueles pré-falantes ancestrais deram ouvidos a algum verbo interior desejoso de expressar uma paixão inquieta do primitivo recôndito humano. Como homem, cultura e linguagem findaram uma coisa só, se atentarmos para o ato inaugural da cultura, qual seja, o sepultamento dos mortos, logo, esse inaudível, porém sensível verbo primeiro outra coisa não deve ter ordenado que um imperativo: sepulta!

Ora, a vida nômade não pronunciava esse verbo, pois enquanto os homens erravam pelo mundo seus mortos eram apenas aqueles que misteriosamente ficavam para trás. Porém, desde que o homem atendeu àquele verbo interior que o mandava sepultar, entendeu também que deveria permanecer em torno de tais sepulturas, inaugurando, assim, o sedentarismo. Corroborando com São João, primeiro foi o verbo, no entanto mudo, que mandou enterrar os mortos, e, em seguida, um eco semântico que ordenou aos homens permanecerem juntos dos seus idos.

Então, em torno dos mortos enterrados e devidamente cultuados os vivos dispuseram suas casas, plantações e, principalmente, suas novas relações, não só entre vivos e mortos, mas também entre os próprios vivos. Porém, no centro da vida estava, sobretudo, o culto aos mortos que, visando a bem-aventurança dos idos, prometia a bem-aventuranças dos vivos. Acreditava-se, contudo, que se os mortos não recebessem atenção e culto constantes, puniriam os vivos pela negligência. As secas, as pragas e as demais adversidades naturais eram tidas como maldições ditadas pelas deidades sepultadas nos quintais sempre que contrariadas.

Segundo o historiador Fustel de Coulange, o culto que os “gens”, isto é, as famílias, prestavam aos seus mortos exigia privacidade absoluta, sendo uma desventura suprema outras gentes saberem das divindades familiares cultuadas. Caso alguém de outra “gen” visse ou participasse das oferendas que uma família rendia aos seus próprios mortos a bem-aventurança oferecida por tais deidades seria dividida com o intruso. Portanto, parte do isolamento no qual viviam os ancestrais núcleos familiares atendia essencialmente ao resguardo dessa relação entre os vivos e os seus mortos, bem como das benesses que dessa privacidade resultavam.

Porém, por conta da necessidade, não tardou até que as famílias superassem esse estratégico distanciamento e se aproximassem umas das outras, primeiro na polis, depois na urbe. Coulange conta que isso só foi possível porque, de um lado, as “gens” urbanas aprenderam a resguardar suas divindades das demais mesmo na proximidade, e, por outro, as diversas “gens” que se adensavam na cidade elegeram, consensualmente, divindades outras que não as suas privadas, às quais todos prestavam cultos, claro, em vista de proteção e de bem-aventurança ao corpo urbano.

Assim como as divindades familiares, as públicas eram pessoas reais, porém finadas, como antigos profetas, pioneiros colonizadores ou heróis que haviam se sacrificado pela cidade. Portanto, a urbe, seguindo o exemplo das “gens”, só foi viável a partir do culto às deidades produzidas pela divinização de seres mundanos, ou seja, de pessoas, contudo mortas, das quais todos desejavam proteção, oferecendo a elas, em contrapartida, culto e sacrifícios.

Agora, se o mundo que chegou até nós decorreu daquele verbo primordial que ordenou aos errantes sepultar os seus idos, cultuá-los e permanecer juntos deles, o que, porventura, se passará com o sedentarismo lá instituído a partir do atual costume de não mais se viver em função dos mortos, quiçá enterrá-los, haja visto que hoje em dia os cremamos? Deixando de ouvir o verbo primeiro corremos o risco de retornar ao ancestral desenraizamento geográfico e à inexistência da cultura. Basta lembrar de Roma, o panteão babilônico das mil e uma deidades, que, por não conseguir mais cultuar todos os seus mortos, ruiu diante da barbárie mesmo dando voz ao Deus cristão, cujo verbo, entretanto, não evitou as trevas da Idade Média.

Ora, a capacidade de divinizar o mundano, empreitada inicial que nos legou a cidade, é diametralmente contrária à laicização generalizada – sobretudo das divindades – verbalizada histericamente pela contemporaneidade. Logo, ao contrariar o princípio da cultura – enterrar e cultuar os mortos enquanto divindades – nos redirecionamos àquele nomadismo surdo-mudo que antecedeu o verbo primordial, que, no entanto, naquela vez nós obedecemos subservientemente. A frase de João, portanto, poderá dizer que não só no princípio, mas também no final – do mundo dos homens – era só o verbo.

Adão, do paraíso à sociedade civil 

Deus proibia Adão de comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal para preveni-lo, sobretudo, do medo da morte. Enquanto eram apenas Deus e Adão, este, por saber que a natureza divina era infinitamente mais perfeita e providente que a sua, não tinha motivos para desobedecer àquele. Porém, quando Eva desembarcou no paraíso, Adão apaixonou-se, não só por ela, mas também pela própria natureza humana em si, preterindo, por conseguinte, Deus, a Sua sobrenaturalidade, e principalmente a Sua única proibição: não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.

Adão inebriou-se com Eva, e depois, com tudo aquilo cuja natureza aproximava-se da sua, até ceder à sedução da serpente que o levou para longe de Deus e de Sua Lei. Pecou, comeu a fruta proibida, soube da própria morte, e foi expulso, juntamente com Eva e a serpente, do paraíso. Por ter se alimentado do bem e do mal, Adão, doravante, teria de, solitária e individualmente, decidir o que era bom e o que era mau, a cada novo passo, assombrado pelo novo e inexorável fantasma que Deus, até então, havia escondido dele: a consciência e o medo da morte.

Uma vez caído no mundo, coube a Adão fazer o possível e o impossível para preservar a si mesmo, e isso, claro, sem a ajuda de Deus. Essa orfandade foi batizada de estado natural, conquanto, sem Deus, restou somente o homem e os limites de sua própria natureza. Diferente do estado paradisíaco, o estado natural, contudo, não estipula previamente o que é bom ou mau. Antes, bem e mal devem ser decisões arbitrárias e individuais que o homem, em cada momento da vida, deve tomar, todavia, sem certeza alguma de que suas escolhas afastam ou aproximam a temida morte.

No estado natural, portanto, não mais é pecado escolher entre o bem e o mal, mas uma obrigação mundana que, não obstante, significa castigo divino. Ora, não havendo bem nem mal absolutos, cada um podia, e sobretudo devia, decidi-los por si, e a partir disso fazer o que pudesse para evitar o derradeiro, inclusive, caso necessário, matar outro homem. No entanto, quando os homens podem tudo para evitar a própria morte, uns correm o risco de serem mortos pelos outros. Diante dos riscos inerentes ao estado natural, portanto, se fez necessária uma nova Lei, todavia humana e não mais divina, que impedisse uns de matar os outros.

Então, emigrando do estado natural, o homem se estabeleceu no estado civil, cuja lei primeira exige que todos cedam parte do seu direito natural, principalmente aquele que os autoriza a matar outros homens. Abdicando do direito natural de decidir, individualmente, o que é bom e o que é mau, e de agir exclusivamente conforme suas paixões, o homem confiou sua preservação ao estado civil que obrigava todos a cumprirem uma mesma Lei, e, mais importante, punia severamente aqueles que a desobedeciam.

Ora, para que houvesse paz entre os homens era preciso que todos renunciassem do seu direito natural e investissem em abstrações tais como justiça, equidade, lealdade, obediência, etc. Tais ideias outra coisa não são que o próprio estado civil, dentro de cujas fronteiras há um arbítrio absoluto acerca do que é o bem, o mal, a justiça e a injustiça, numa espécie de arremedo desesperado de Lei divina. Saudoso da proteção de Deus que o alienava da morte, e preocupado com a sua, o homem passou a cultivar o estado civil como se se tratasse daquele estado paradisíaco perdido em cujo solo vicejava a divina árvore do conhecimento do bem e do mal da qual ele nunca deveria ter experimentado.

Portanto, comer o fruto dessa árvore da civilização, que só nasce no solo do estado civil, e escolher, individual e arbitrariamente, o que é o bem e o que é o mal, deve ser tão proibido ao homem como outrora, no paraíso, era consumir da árvore divina. Abandonados por Deus e ameaçados por sua própria natureza, os homens criaram um paraíso artificial para si mesmos, isto é, um estado civil, um Leviatã que, com suas Leis, promete amenizar o medo da morte.

O paraíso humano durou até quando Adão respeitou a natureza divina. Infringida a Lei dEle, o homem tornou-se um cidadão selvagem no seu próprio estado natural, cujo usufruto lhe obrigava a decidir, de acordo com a necessidade, o que era bom e o que era mau. Porém, como no mais da vezes o mau lhe parecia bom, o homem percebeu que não estaria seguro junto aos seus. Precisou, portanto, reeditar a proibição divina de não desfrutar livremente do conhecimento do bem e do mal, o que resultou na sociedade civil, ou seja, na tentativa de restaurar a ordem paradisíaca perdida na qual a morte, mas também a natureza humana, são males menores.

Uma filosofia do ciúme

O ciúme não é um sentimento puro, mas, segundo o filósofo Spinoza, um composto volátil e de difícil administração entre amor, ódio, tristeza e inveja. Ora, basta ter amado alguém verdadeiramente para saber do que se trata essa bagunça atordoante de sentimentos que o ciúme engendra. Porém, só sentimos ciúme de quem amamos e porque amamos. Seria, então, o amor, ele mesmo, a causa do ciúme, ou, em vez disso, tal causa venha de outro afeto, que, passando-se por amor, contamine a mais sublime das nossas paixões?

Spinoza diz que quando eu imagino o ser amado ligado a um outro com o mesmo vínculo com o qual só eu o desfrutava, primeiramente sou afetado de tristeza pelo fato de o meu amor amar também a um outro. Em seguida, sinto ódio, contudo triplo: do ser que eu amo, por este não amar somente a mim; desse outro que, contra a minha vontade, deleita-se do meu amor; e, inclusive, do par que ambos formam a despeito de mim. Por fim, padecerei de inveja desse outro porque, ao mesmo tempo em que ele é amado por quem deveria amar somente a mim, também desfruta, a seu bel-prazer, do meu objeto de desejo.

A intensidade da tristeza que o ciúme provoca, coloca Spinoza, é diretamente proporcional à alegria que o ser que eu amo provoca em mim. Então, antes mesmo de o ciúme vir à tona sua amplitude já me aguarda, sorrateiramente. Logo, pelo fato de esse amor presente ser a medida exata do meu ciúme futuro, portanto da minha tristeza, ódio e inveja, começo culpando e odiando o ser amado pelo meu infortúnio, pois, como disse Spinoza, o ódio é uma tristeza acompanhada da ideia de uma causa exterior. Imediatamente fora do meu ciúme está o ser que eu amo. Vasculhando essa exterioridade, por conseguinte, deparo-me com esse outro que, a contragosto meu, também é amado pelo ser que eu amo, e a este também culpo e odeio.

Agora, pelo fato de eu odiar àquele que amo, porquanto ele ama também a um outro, esse ódio passa a fazer parte do meu relacionamento, e, doravante, não mais me relacionarei com o ser amado da mesma maneira, isto é, só pela via do amor, mas também pela via do ódio. Ademais, ao odiar a cópula entre o meu amor e um outro, não autorizando, com isso, a felicidade que eles dois usufruem a despeito de mim, desaprovo, consequentemente, a alegria que o meu amado encontra independente de mim. Ora, entristecer-me com as alegrias do ser que eu amo, sejam elas quais forem, não tem como ser motivo de felicidade para ele.

Porém, é bom não esquecer que, apesar de ser um “mix” de sentimentos pouco alegres, e inclusive baixos, o ciúme é uma queda a partir do alto de uma Atlântida amorosa, isto é, do topo de um amor verdadeiramente sentido. Como o amor, para Spinoza, outra coisa não é que uma alegria acompanhada da ideia de uma causa externa – portanto algo que eu, por esforço individual, não posso causar em mim mesmo – o ser amado divide comigo o protagonismo da minha felicidade. Por isso o responsabilizo, e o odeio, pela tristeza que ele me causa por amar também a um outro e não somente a mim.

Seguindo a lógica spinozana que diz ser o ciúme que sinto de alguém uma tristeza proporcional à felicidade que o amor que esse mesmo alguém me causa, eu seria levado a pensar que quanto menos amar, menos ciúme sentirei. Entretanto, não é desse amor que fala o filósofo, mas de outra espécie. Diferente do amor que sentimos por alguém, o amor-próprio é uma felicidade que acompanha a ideia de uma causa interior, sustenta Spinoza. Então, se o ciúme é uma afeto que surge em mim conquanto eu mesmo posso produzi-lo, sua causa, portanto, é interna e em função do meu amor-próprio.

Ora, ao atrelar minha felicidade a uma causa interior nada encontro senão eu mesmo, ou seja, o meu próprio ego sempre desejoso de felicidade. Por isso o ciúme é um círculo vicioso egoico que parte da aparente inocência do amor-próprio, contamina o amor que me une ao meu objeto de desejo, e retorna ao amor-próprio, para então recomeçar a roda novamente. Em troca, desinvestindo desse amor a si, e preferindo o amor em si, ou seja, aquele que acompanha a ideia de uma causa externa, não só escapo do círculo das minhas próprias carências como também fruo da liberdade na qual eu e o ser que eu amo não somos as causas exclusivas da felicidade um do outro, mas seres cujas ideias de felicidade acompanham muitas causas.

A família do ciúme, cujos integrantes são o amor, o ódio, a felicidade, a tristeza e a inveja tem o amor-próprio como sobrenome. É desse núcleo instável que surge a ideia de um amor devotado exclusivamente a mim, indiferente a todo resto, ainda que isso resulte, contudo, em infelicidade, tanto a mim como também ao ser que eu amo. Em contrapartida, esquecendo-me de mim e das minhas causas internas, que a outro lugar não levam senão ao amor egoico, para então amar preferencialmente as causas externas que acompanham ideias de felicidade, não tenho como sofrer pelo fato de o ser que eu amo ser feliz não somente comigo. Talvez seja precisamente essa natureza incontrolável e propensa à felicidades que insiste dentro do ser que eu amo, a despeito do meu egoísta amor-próprio, a causa externa que me leva a amá-lo verdadeiramente.

Contemporaneísmo

Como será chamada a nossa Idade Contemporânea, inaugurada na Revolução Francesa, quando contemporâneas forem as Idades futuras? Chamar a si mesma de contemporânea é pertinente a qualquer idade histórica: os antigos eram contemporâneos de sua antiguidade; os medievais, do seu medievo; e os modernos, da modernidade. Por nossa vez, também somos contemporâneos da nossa contemporaneidade. No entanto, o fato de rotularmos o nosso período histórico determinado com o nome “contemporâneo” trará dificuldade às contemporaneidades futuras, pois, ou elas terão de se chamar outra coisa, ou terão de roubar, de nós, esse nome.

Ora, daqui a três mil anos, a antiguidade dos gregos, por exemplo, e a nossa contemporaneidade serão igualmente antigas. Entretanto, ambas, cada qual em seu tempo, obviamente, terão sido igualmente contemporâneas. Aristóteles já se diferenciava dos seus “antiquíssimos” chamando a si mesmo de contemporâneo. Ler um Aristóteles contemporâneo de há 2300 anos é experienciar a relatividade da contemporaneidade. Se, por um lado, não podemos negar uma contemporaneidade a cada idade histórica, por outro, não há contemporaneidade que se encaixe noutra senão mediante uma descontemporaneização, no mínimo, de uma das duas.

Somente enquanto contemporâneos de uma época determinada é que podemos saber o que é contemporaneidade; mas somente essa. O que, então, de uma contemporaneidade, é exclusivo dela mesma e, em troca, incompatível com todas as outras? Não temos como saber o que se perdeu das contemporaneidades da antiguidade, do medievo e da modernidade. Outrossim, a essência da nossa contemporaneidade jazerá oculta às demais. Por isso a posteridade crerá piamente que contemporâneas serão as idades delas, e não a nossa, cuja essência, aliás, lhes escapará.

Em remédio a isso, vale perguntar o que, da nossa idade, é já ininteligível a nós mesmos, e que, por conta disso, também será obscuro a todas as outras. Trata-se, portanto, de procurar o ser da nossa época na sua ausência, ou seja, no seu não-ser. O que será a nossa contemporaneidade quando contemporâneo disser respeito, digamos, aos anos 4000? Para responder a isso, entretanto, é preciso invadir a fronteira leste da linha histórica até podermos dialogar com a idade subsequente, para só então saber dela, numa efeméride ao estilo “O Feitiço de Áquila”, o que ela sabe e pensa da nossa.

Quando for virada a próxima esquina das Idades, visto que são tantas as contemporaneidades quantas são as “quebradas de esquina” históricas, a nossa será reduzida a um trecho determinado da linha do tempo. Então, uma vez irremediavelmente cativos dessa abstração, estaremos tão dessubstancializados da nossa contemporaneidade quanto carentes de um novo nome. Para Aristóteles, substância é aquilo que não é predicado de nada, mas que, por sua vez, recebe as predicações. Portanto, a substancialidade da nossa Idade Contemporânea é cognoscível, seja a nós mesmos, seja aos futuros, somente através de suas predicações. Porém, as idades futura nos trarão seus próprios predicados, e o que nos é substancial será visto, por elas, apenas como circunstancial.

Por um lado, fomos extremamente precipitados e redundantes ao nomear a nossa experiência de contemporaneidade com esse mesmo nome. Ora, chamar de contemporâneo um período histórico, sabendo que todos são passageiros, outra coisa não é que adiar a responsabilidade de defini-lo. Agora, por outro lado, e por isso mesmo, autointitularmo-nos “contemporâneos” revela uma espécie de generosidade à posteridade, pois, ao ser dito que somos contemporâneos não dizemos, de fato, nada acerca de nós mesmos. Oferecemos, portanto, mais liberdade aos “futuros” quando estes forem nomear essa nossa idade.

Nossos antecessores da Idade Moderna assim se denominaram porquanto apólogos das modas, por conseguinte, modernos. Desse modo, a contemporaneidade deles, todavia não mais contemporânea, não conflita com o nome sob o qual jaz. Em relação a nós, Umberto Eco, no livro “História da Beleza”, acredita que essa nossa Idade Contemporânea será predicada, pelo porvir, como a da “mass media”, ou seja, a época na qual somente o que é massivamente divulgado é digno de existência. Como se chamará, então, essa nossa contemporaneidade quando ela não for mais contemporânea? Idade da Mídia; Idade Contemporaneísta; ou, em vez disso, a idade daqueles que não disseram outra coisa senão que eram apenas contemporâneos de si mesmos?