Não pronuncie “fascismo” em vão!

fascismo em vão.jpg

Os predicados “fascista” e “fascismo” estão, como se diz, “em bocas de Matilde”, sendo usados vulgar e indiscriminadamente a ponto de pretenderem significar coisas absolutamente opostas. Deve causar espanto o fato de progressistas e reacionários ambos estarem chamando uns aos outros de fascistas. Os primeiros querendo apontar autoritarismos, despotismos; os segundos, mais ignorantes, crendo e repetindo que “o fascismo é produto da esquerda”, e que, portanto, comunista e fascista são sinônimos. As duas partes, infelizmente, estão fazendo uso errado do conceito. Não à toa a dicotomia tupiniquim não está se resolvendo, mas, em vez disso, agudizando-se.

Diante dessa bagunça semântica, acredito serem duas as atitudes mais urgentes e prudentes a serem tomadas. Em primeiro lugar: recuperar e respeitar o significado inequívoco de “fascismo”. Afinal, uma relação civilizada começa e subsiste com a concordância em respeito às palavras e o que elas significam no mundo real. E, em segundo lugar, uma vez que “sábios” e idiotas não concordam mais sobre o que significa “fascismo”, mostrar que não se é idiota começa por saber o que é a coisa nomeada pela palavra em questão e só usá-la para se referir a essa coisa. Melhor ainda, porém não mais fácil, é dispensar totalmente a própria palavra “fascismo” e descrever mediante outras palavras e conceitos menos equívocos a realidade que queremos criticar. Por hora, mais sábio do que não usar a palavra “fascismo” em vão é dispensá-la absoluta e estrategicamente.

Slavoj Žižek, em seu “Alguém disse totalitarismo?”, critica Hannah Arendt pelo seu conceito de “totalitarismo”, acusando-a de cunhar um termo que, em vez de bem explicar uma determinada conjuntura sócio-histórica, ou mesmo um “novo” sistema de governo surgido no século XX, ao contrário, funciona até hoje como um “conceito tampão” que, no final das contas, impede-nos de conhecer aqueles eventos históricos singulares. Não tenho dúvida de que precisamos fazer contra a vulgarização do conceito de “fascismo” o mesmo que Žižek fez contra o de “totalitarismo”, de Arendt. Afinal, como podemos observar, hoje em dia, chamar alguém de fascista, ou um ato qualquer de fascismo, tornaram-se os atos vazios e covardes par excellence. Seja para se finalizar uma discussão – como as pseudopolíticas, nas redes sociais, onde já no terceiro ou mais tardar quinto comentário algo ou alguém é predicado de fascista e as discussões deixam de ser produtivas -, seja ainda para um único indivíduo encerrar o seu próprio pensamento – pois o contemporâneo fetiche da palavra “fascismo” está em iludir que tudo foi pensado, e que, portanto, só é preciso repetir a palavra. Mas aí podemos estar falando de papagaios inclusive.

Não pronunciar a palavra “fascismo” em vão, por exemplo, é significá-la inequivocamente ao radicalismo político autoritário e nacionalista que galgou poder no início do século XX na Europa, cuja origem jaz na Itália de Mussolini, e que teve lugar na Alemanha de Hitler, na Espanha de Franco, na França de Vicky, entre outras. Caso tenhamos a prudência de nos limitarmos a dizer, por exemplo, que “fascista” é aquele que coloca os conceitos de nação e raça sobre os valores individuais, como aconteceu na Itália e a Alemanha da primeira metade do século passado, só aí, então, seremos civilizados a ponto de sermos compreendidos, digamos assim, mais universalmente, pois até mesmo o intelectual mais progressista e o idiota mais reacionário são capazes de concordar tal formulação.

A confusão em torno da palavra “fascista”, contudo, começa quando se quer fazê-la significar coisas no mundo real que, porém, já tem seus nomes acordados; seus conceitos mais e melhor universalizados. Por exemplo, tornou-se banal chamar de fascistas pessoas que cometeram meros – todavia não menos criticáveis – atos machistas, racistas, e até mesmo moral, política e economicamente ilícitos. O preço dessa banalidade é, de um lado, colocar dentro do guarda-chuva semântico do “fascismo” coisas que ele não tem dever algum de nomear, e, de outro lado, deixar de dar o nome certo ao boi que estamos criticando e que merece uma crítica e um nome certeiros, oxalá mortais. No exemplo do machista que é chamado de fascista, ao mesmo tempo ele é chamado de algo que ele não é, sem dizer que deixa-se de criticá-lo usando o(s) predicado(s) que realmente lhe cabe(m). Analogamente, é como esquecer, perdoar o crime do criminoso atribuindo-lhe um outro crime. Como podemos ver, o atual e indevido uso do conceito fascismo implica injustiça.

(Obviamente!) Não se trata de deixar de pensar, de falar da nossa crísica realidade e da sorte de autoritarismos que nos acossam e que apenas se parecem com o real fascism. Trata-se apenas de não chamar o nosso momento sócio-político-histórico – que só por este ou aquele “parentesco” lembra a Itália de Mussolini ou da Alemanha de Hitler – de fascista. Seja para não banalizarmos as radicais e monstruosas experiências históricas do século XX – o que seria imediatamente imoral e eternamente desumano; seja sobretudo para não deixar de dar, aos nossos próprios bois historicamente determinados os seus nomes específicos em vez de aliená-los por trás de outros mais equívocos.

Evitar ser confundido com um idiota é saber que o fascismo encontrou sua razão de ser em nacionalismos e racialismos radicais, e que o “ismo” do poder que hoje se coloca enquanto regime é outro. Diz respeito ao capital globalizado, que, ao contrário dos fascismo, tem na transnacionalidade e na trans-racialidade combustíveis excelentes. Pouco importa se se é indiano, norte-americano ou chinês; branco, preto ou amarelo; basta ter dinheiro, aliás, bastante dele, e, como disse Žižek, pode-se frequentar quaisquer ambientes, colocar os filhos nas melhores escolas, e por aí vai.

A expressão “fascista” vem do latim fasces. Significava “cetro”, “cajado”, do tipo que os magistrados da Roma Antiga usavam para ostentar poder, afastar ou e até mesmo agredir a plebe. Tratava-se de um feixe, em italiano, de um fascio de varas finas, cada uma muito frágil, porém, quando unidas e amarradas firmemente se tornavam inquebráveis. Quando Mussolini implantou o seu famigerado regime autoritário, usou o antigo símbolo. Portanto, o uso generalizado do conceito de “fascismo” por progressistas e reacionários os coloca, saibam disso ou não, em um grande fascio, se não totalmente ignorante, certamente produtor de ignorância. Escapar dessa obscuridade, portanto, começa por recusar-se a usar a palavra “fascismo” para significar movimentos sociopolíticos que não estritamente os radicais da primeira metade do século XX.

Em respeito à presente ofensiva reacionária da nossa direita contra direitos e liberdades populares, nós temos muitos nomes prontos e inclusive mais pertinentes. Basta resistir ao “conceito tampão” mais fetichizado do momento e criticar o que se quer criticar mediante palavras que reacionários e progressistas entendam e concordem com o que significam no mundo. Só então o crítico e o criticado (o progressista e o reacionário, ou vice-versa) estarão em relação civilizada, devidamente palavreada. Só assim será possível, se não superar, ao menos entender melhor os antagonismos presentes.

Deixe um comentário