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“Eu não sou o seu negro”, mas você é o meu monstro.

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Uma das muitas, profundas e verdadeiras frases do filme “Eu Não Sou o Seu Negro” (2016), do produtor Raoul Peck sobre o livro inacabado do romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta e crítico social afro-americano James Baldwin, e que é referida diretamente aos brancos racistas norte-americanos, diz que: “Vocês não podem me linchar e me manter em guetos sem se tornarem algo monstruoso”.

O predicado teratológico de Baldwin, no entanto, não pretendia traduzir algum ódio reativo à histórica violência branca contra os negros daquele país. Ele dizia com todas as letras que não odiava os brancos, pois não era racista. Sua “filosofia” ativista, na verdade, é muito mais uma exposição algo psicanalítica da ignorância e da bestialidade dos sobrinhos brancos do Tio Sam na busca desesperada deles pelo tal American Dream.

Baldwin não era tão pacífico quanto Martin Luther King, ou seja, não acreditava que era o amor o caminho para a conquista da igualdade entre as raças. Entretanto, também não era apólogo da violência como os Panteras Negras. Sua percepção do racismo nos EUA se apresentava em termos assaz marxistas. Baldwin dizia, por exemplo, que não era “negro”, mas simplesmente um homem. E que branco”, prossegue o ativista, “é apenas uma metáfora de poder; é simplesmente uma maneira de descrever o Chase Manhattan Bank”.

Para Baldwin, o racismo era fruto tanto da falta de paixão humana, quanto da excessiva preocupação com números, lucros, vantagens e privilégios de uma parcela – branca – da população em busca de segurança; de ter uma casa com uma cerca branca e de que os filhos pudessem cursar a universidade para, da mesma forma, terem suas casas com cercas brancas e seus filhos estudando em uma universidade. O “virtuoso” sonho americano, da perspectiva do ativista afro-americano, era um maldito círculo vicioso.

O racismo, na visão de Baldwin, era produto do mais desumano patrimonialismo, levado adiante por um povo convencido de sua própria ficção de felicidade. Na verdade, aprisionado por ela. E, prossegue o autor, era justamente a ignorância desses brancos em relação à sua escravidão diante de sua própria ficção que os levava a escravizar os negros; para que estes encarnassem a contradição que os brancos não tinham coragem para enxergar em si mesmos e no seu sonho americano.

A genialidade de Baldwin está em ter percebido que os negros, escravizados e violentados pelos brancos, materializavam extrinsecamente a escravidão e a violência nas quais os próprios brancos estavam imersos, fazendo com que os brancos, subjetivamente, prosseguissem acreditando que seus sonhos eram possíveis. Os brancos eram vistos por Baldwin mais como idiotas do que como indivíduos essencialmente maus. Todavia, tal idiotice os levava à bestialidade. Por isso ele os considerava monstros.

Para Baldwin, contudo, os brancos não desejavam ser monstros, mas qualquer um que, deliberada ou inadvertidamente, linchasse e segregasse um outro, seja por que razão fosse, não teria como deixar ser considerado como tal. A chave da revolução racial baldwiniana, aliás, dependia de os brancos compreenderem que quem faz com um outro o que eles fizeram – e ainda fazem! – com os negros não tem como ser outra coisa senão um monstro.

O primeiro homem na história a racionalizar a monstruosidade, isto é, a fazer uma teratologia, foi Aristóteles. Para o filósofo grego, “terathos”, ou seja, monstro, é aquele que não consegue realizar plenamente a sua própria natureza. Por exemplo: alguém que nascesse sem as pernas não realizaria algo da natureza humana: andar; da mesma forma, quem sofresse de alguma deficiência mental não conseguiria fazer o que, para Aristóteles, era o mais próprio do humano: pensar racionalmente. Para o maior gênio da Antiguidade, aquele que não pudesse realizar a potencialidade da natureza humana era um “terathos”.

Baldwin, ao predicar os brancos racistas de monstros, foi astutamente aristotélico. Para o ativista afro-americano, a monstruosidade dos seus conterrâneos violentadores estava no fato de não conseguirem realizar, atualizar em si mesmos, algo indispensável à humanidade, que, segundo Baldwin, era a paixão, ou seja, a capacidade de se apaixonar pelo outro – de outra cor – assim como por si próprios. E nessa carência, que se converte em ignorância, tratavam estes outros como números, como coisas, em suma, como meio de realizarem a sua nunca alcançada, nem tampouco alcançável, felicidade.

A teratologia de Aristóteles está presente em Baldwin quando este faz-nos ver que os racistas são monstruosos na medida em que não conseguem reconhecer o outro racial como igualmente humano. Os brancos violentadores e escravizadores de que fala o afro-americano ativista são bestas incapazes de conhecer o tamanho e a diversidade que é essa coisa chamada humanidade. Entretanto e infelizmente, o realismo de Baldwin – que se confunde com pessimismo – coloca o fim da violência racial dos brancos contra os negros na dependência de os brancos tomarem consciência de sua própria monstruosidade.

Se não é infeliz essa conclusão a de Baldwin, ao menos é ingênua. E isso porque o próprio American Dream, produzido pelos brancos e para os brancos, os impossibilita de tomar qualquer verdadeira consciência, seja do outro oprimido por eles, seja de si mesmos enquanto escravizados por sua própria ficção de felicidade. Baldwin, em “Eu Não Sou o Seu Negro”, apresenta, traumática e objetivamente, o histórico problema do racismo no EUA. Todavia e infelizmente, não propõe um meio para acabar com o vil poder que chama a si mesmo de “branco” sem depender imediatamente de uma – improvável – tomada de consciência desse mesmo vil poder.

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Viver sem trabalhar?

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De onde vem a utopia de um mundo no qual as máquinas produzem tudo sozinhas e as pessoas são livres e desocupadas para fazerem o que bem entender senão de um idealismo pequeno burguês alienado da materialidade do capitalismo? Ora, as máquinas não são dádivas da natureza, nem tampouco de algum deus para que os seres humanos sejam perdoados da maldição adâmica de viverem do próprio suor. Com efeito, são armas quiçá as mais objetivas do capital no sentido de possibilitar a obtenção de mais-valor, o objeto capitalista par excellence. As máquinas só passaram a existir, e cada vez mais são aperfeiçoadas e disseminadas worldwide para esse fim. Se não for assim, elas perdem o seu porquê. Como poderiam então prometer liberdade às pessoas?

Como Marx bem mostrou nO Capital, as máquinas existem para reduzir o investimento dos capitalistas em salários. Em suma, para desvalorizar o trabalho. O filósofo mostra que, na aurora do capitalismo, os patrões investiam metade do seu capital em meios de produção (matéria-prima, ferramentas, energia, instalações etc.) e metade em força de trabalho (salários). Com o advento da maquinaria, poucos séculos depois, o investimento em meios de produção era cerca de dez vezes maior do que em salários. As máquinas de fato desvalorizam o trabalho humano. Porém, como a história da miséria moderno-contemporânea comprova, não para valorizar o “livre viver” das pessoas, e sim para fazê-las aceitar salários cada vez menores e exploração cada vez mais maior.

De um lado, o capitalismo desvaloriza sistematicamente o trabalho humano através de crescentes investimentos em tecnologia em função de seu mais-valor. Todavia, de outro lado, o mais-valor é conseguido somente através da exploração do trabalho humano. Ao contrário do que vulgarmente se pensa, máquinas não têm como produzir mais-valor porque não têm como serem exploradas. Elas cobram pelo que produzem exatamente o que custam ao capitalista. Se uma máquina, por exemplo, custa $1 milhão, e ao longo de sua vida útil é capaz de produzir um milhão de sapatos, cada mercadoria individual cobrará exato $1 pelo investimento no meio de produção que é essa máquina. E assim com os demais meios de produção. A única possibilidade de o capitalista lucrar jaz na exploração do trabalho humano, pois só ele pode produzir, em mercadorias, muito mais valor do que custa ao capitalista.

O que a princípio parece ser uma contradição – a busca de mais-valor do capitalista mediante tecnologia que, por sua vez, dispensa a fonte de mais-valor, qual seja, o trabalho humano -, na verdade, é a sui generis estratégia capitalista de, mediante a desvalorização do trabalho, aumentar a exploração sobre esse trabalho desvalorizado. E a crescente massa de desempregados que esse processo gera, chamado de exército industrial de reserva, longe de ser produzido para que esse contingente desocupado se ocupe com o que lhe dá prazer, serve, ao contrário, para comprometê-lo ainda mais com as necessidades do capital. De modo que, em um mundo no qual as máquinas façam tudo, não haverá uma humanidade finalmente livre, mas uma absolutamente desempregada e inescapavelmente subjugada pelos donos das máquinas. Por essa razão, é burrice os trabalhadores utopizarem a substituição do trabalho humano pelas máquinas. Sem dizer que, de sua parte, o capitalismo, para quem o sumo objeto é o mais-valor obtido pelo trabalho humano, tampouco criará tal realidade.

Somente quando a força de trabalho é valorizada há motivo para os capitalistas investirem em tecnologia. Quando, ao contrário, o valor do trabalho cai, a tecnologia se torna cara demais para valer a pena. O geógrafo marxista David Harvey explica isso dizendo que, nos EUA, por exemplo, onde o valor da força de trabalho é alto, é feito de tudo para que o trabalhador seja substituído pela tecnologia com o objetivo de baixar o valor dos salários. Já na China, prossegue Harvey, onde o valor do trabalho é baixíssimo, é mais vantajoso utilizar milhares de trabalhadores produzindo mercadorias com ferramentas manuais do que investir em maquinário tecnológico.

Temos, portanto, uma gangorra na qual, em uma extremidade, está o trabalho humano, e, na outra, a tecnologia, sendo que a subida de uma às custas da descida de outra se dá em função de um centro fixo: o mais-valor. Quando o valor da força de trabalho está em alta, o mais-valor força a sua baixa, elevando a tecnologia. Quando, porém, a tecnologia está em alta e o trabalho em baixa, o mais-valor central percebe que vale mais a pena voltar a usar a força de trabalho desvalorizada e não a tecnologia supervalorizada. Então a gangorra se inverte. E assim sucessivamente, numa dialética infindável que, entretanto, em todos os casos, atende aos interesses do capital tanto quanto é estabelecida por ele. A utopia da libertação definitiva da humanidade mediante a substituição total do trabalho humano pelo das máquinas, da perspectiva do capital, na verdade, é absolutamente distópica.

Do ponto de vista dos trabalhadores, a utopia de viver sem precisar trabalhar deve ser encarada pelo o que é: um ingênuo sintoma causado pelo insuportável e exploratório modo de trabalho imposto pelo capital, e de modo algum como a percepção iluminada de que o trabalho enquanto tal não tem valor e que, portanto, deve ser substituído pela máquina. Aliás, os trabalhadores não percebem a armadilha capitalista na qual caem ao desvalorizarem, eles mesmos, o trabalho, a única fonte material de valor que existe e que jaz em suas mãos. Sonhar com o fim do trabalho humano, com efeito, é realidade sempiterna do capitalismo. Portanto, todo aquele que quiser contribuir com a superação desse vil sistema econômico deve, ao contrário, valorizar cada vez mais o trabalho humano; colocá-lo no centro nevrálgico da vida social; e não colocar a máquina, que é invenção e propriedade dos capitalistas, nesse lugar. A utopia da vida sem trabalho, mais do que ao capital, é distópica sobretudo às pessoas.

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O Conto da Karoshinha Capitalista

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Karoshi, na contemporânea cultura nipônica, significa morrer por excesso de trabalho. Desde 1960 há uma epidemia de japoneses que adoecem terminantemente ou simplesmente se suicidam encurralados pelas demandas de um capitalismo absolutamente desumanizado aliado a uma cultura de disciplina férrea cuja tradição prega que um trabalhador que chega no serviço depois do chefe ou dos colegas, ou sai antes deles, é mal visto e deve ser descartado para dar lugar a alguém que “realmente” honre a empresa. Um lema para o karoshi seria algo como: “Empresa ou morte!”

No Brasil as pessoas não se matam por excesso de trabalho. Bem mais comum, aliás, é o brazuka morrer ou se matar por falta de trabalho. Todavia, as bases para um karoshi tupiniquim foram lançadas pelo primeiro lema do atual governo golpista: “Não pense em crise, trabalhe”. Com o agravamento da crise, contudo, já estamos na fase do: “Não pense em mais nada, apenas trabalhe muito”. E só mesmo muito otimismo ou alienação para não crer que, em breve, seremos cativos da mínima tautológica: “Trabalhe, trabalhe”.

“O trabalho dignifica o homem” é a sui generis mensagem do cristianismo. Todavia, na era pré-capitalista na qual nasceu tal ideia, “capital” era Deus. “O Homem” a ser dignificado pelo trabalho, portanto, era tão somente Ele. Entretanto, a dignificação de Deus mediante o trabalho humano resultava em dignidade humana, pois trabalhar em prol da obra de Deus, o mundo, aumentava a graça divina e, consequentemente, os homens eram agraciados, dignificados através da dignificação dO Homem.

Já na nossa era capitalista, demasiada capitalista, “capital” é só mesmo o capital. Ele é “O Ser Supremo” a ser dignificado pelo trabalho dos homens, mesmo ao custo de toda a dignidade mundana. Ao contrário de Deus, que dignificado pelo trabalho humano agraciava os homens, o capital só faz acumular para si a mais-graça que recebe dos seusb trabalhadores. E não há limite para essa vil liturgia capitalista. Se há, arriscamos dizer que são dois: o Karoshi, a morte dos homens por excesso de trabalho, ou o que é pior, a destruição total do planeta Terra por excesso de capitalismo.

Marx nos fez ver de modo científico que apenas metade de uma jornada de trabalho serve às necessidades do trabalhador. A outra metade existe para gerar mais-valia ao capitalista. Aliás, tudo o que este mais quer daquele jaz nessa segunda metade de jornada explorada! O fato de hoje nós, brasileiros, trabalharmos de janeiro a junho para pagar impostos, e só de julho a dezembro para nós mesmos só reforça a tese de que metade do nosso trabalho é para a benesse de outrem.

Claro, a sagaz ideologia capitalista oblitera sistemática e exitosamente o furto do nosso trabalho e da nossa dignidade, e de modo tão sistemático e exitoso quanto acumula capital. De nossa parte laborante, esperamos que, trabalhando arduamente, obteremos conforto e segurança. Todavia, nesse mundo só há espaço para tal labuta esperançosa porque assim é melhor para o capital, e tão somente para ele. Afinal, metade do nosso trabalho é imediatamente furtado pelo capital enquanto trabalhamos para ele, e a outra metade, aquela que trabalhamos para nós mesmos, é mediatamente furtada ao compramos nossos confortos e segurança dele.

Somos sistematicamente enganados pelo “Conto da Carochinha” capitalista. Roubados em metade do nosso trabalho pelo capital, e devolvendo a ele, aos preços que ele estabelece, a outra metade que ele justamente nos paga, para nós o jogo é um eterno perde-perde. Já para o capital, o jogo é apenas ganha-ganha. E isso é tão verdade que, como os japoneses comprovam de maneira sintomática e epidêmica, os trabalhadores cada vez mais perdem-perdem inclusive as suas vidas para o ganha-ganha do capital.

Sequer pensar na Revolução, mas, antes de tudo, matar a si mesmo em desistência plena diante da ameaça inimiga faz do karoshi nipônico a derradeira e mais vil “mercadoria” produzida pela mentira, pela ideologia, pelo “Conto da Carochinha” do capital. Trabalhar até morrer; morrer por causa do trabalho; não ser humanamente digno da “empresa”; tudo isso é o “Conto da Karoshinha” capitalista insistido worldwide para enterrar uma verdade tão real quanto simbólica, qual seja, a de que o trabalho foi feito para o homem, mas não o homem para o trabalho.

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Crítica da política

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Por que a política ainda promete ser o meio de luta contra os interesses espúrios do capital se é ele, o próprio capital, que sempre vence na arena política todas as batalhas que enfrenta? Está certo que a política é bem mais antiga que o capitalismo, entretanto, desde que este sistema econômico colonizou o mundo, também a política passou a servi-lo subservientemente. Não seria o caso então de realizarmos que a promessa de libertação social via política é apenas mais uma, quiçá a mais sagaz mentira do capital no sentido de mais-dominar?

Karl Marx foi contundente em criticar a política enquanto instrumento revolucionário, apontando que, na verdade, ela é o meio sempre presente de o passado, isto é, a dominação da maioria pela minoria – da totalidade pela parcialidade – prosseguir futuro adentro. A revolução em Marx não se dá apenas com a superação do Estado, mas também com a da política enquanto tal. Para o filósofo alemão, agir no interior de formas políticas pertence à velha sociedade, à sociedade na qual a dominação de uns poucos sobre a maioria é regra.

É imperativo sair da perspectiva meramente política para poder ser verdadeiramente crítico em relação à dominação do capital sobre a sociedade segundo Marx. E isso porque ele anteviu de modo muito profundo que a dominação do capital se dá, imediatamente, por via econômica, e não política. A política, em troca, é o meio, o modo mediato de o capital dar continuidade à sua dominação econômica. Ser fiel à Marx, portanto, significa crer, como ele, que a dominação do capital não tem como ser totalmente destruída no nível político. A política, na verdade, é o bunker social do capital.

Embora a política sirva imediatamente o inimigo capital da sociedade, ela ainda é, contudo, o ringue onde interesses sociais e interesses econômicos se digladiam; uma arena relacional na qual sociedade e capital mantém ao menos uma linguagem em comum, ainda que de modo assimétrico, pois, politicamente falando, trata-se de um diálogo no qual a sociedade, de seu lado, externa sinceramente suas demandas diante do vilipêndio capitalista, ao passo que o capital, ao contrário, é sistematicamente parlapatão em fingir que ouve a sociedade e que moderará o seu ímpeto acumulador em função de algum bem-estar social.

Entretanto, por ainda ser o nível no qual sociedade e capital se comunicam – mesmo que este sempre vença as discussões -, Marx apontava uma dimensão subversiva da política contra o capital: a sua potencialidade negativa. Para o filósofo, a política é adequada para realizar as funções destrutivas da transformação social. Marx não tinha dúvida de que, nas mãos da sociedade, a política pode ser instrumento de crítica no sentido de minar a dominante ideologia capitalista. Também sabia, contudo, que enquanto a sociedade permanecer apenas no âmbito político o seu inimigo capitalista permanece livre e dominante na sua esfera excelente: a economia.

Como o domínio da parcialidade sobre a totalidade é produzido economicamente e mantido politicamente, enquanto age somente politicamente a sociedade permanece no campo de conforto do inimigo. A vitória da totalidade sobre a parcialidade, embora deva começar politica e destrutivamente, só se finalizará, contudo, se depois da destruição for abandonada a esfera política e iniciada uma construção econômica alternativa. A revolução se dará apenas quando os indivíduos sociais operarem econômica e diretamente uns com os outros distantes da liturgia com que o capital segue intermediando vitoriosamente todas as relações humanas.

A verdadeira revolução nunca será simplesmente uma revolução política. Antes de tudo, deve ser uma revolução social que ultrapasse os limites do sistema político que perpetua a exploração econômica capitalista. E isso porque a virtude das revoluções sociais está em minar a contradição entre a parcialidade e a totalidade. Já as revoluções meramente políticas apenas reproduzem a velha hierarquia da parcialidade sobre a totalidade, pois a política, desde que foi usucapida pelo capital, outra coisa não é senão a subjugação das necessidades da totalidade aos arbítrios da parcialidade.

Se para Marx uma revolução social restrita à política é um absurdo, um primeiro passo político, desde que negativo, na medida em que há a necessidade da destruição das formas vigentes, é fundamental. No entanto, tão logo o TNT político da totalidade cause as primeiras rachaduras no bunker da parcialidade, a totalidade deve desinvestir do expediente político e investir no econômico, preenchendo essas rachaduras com novas relações socioeconômicas até que o edifício minado rua por completo.

Essa revolução socioeconômica será a maior transformação positiva da história, na qual a política, contudo, tem a contribuir apenas com sua negatividade imediata e destrutiva. O que Marx ainda tem a nos ensinar é que negligenciar a dimensão socioeconômica e priorizar a dimensão política impossibilita a revolução que fará a parcialidade ser derrotada e absorvida pela totalidade porque tira da política o seu mais revolucionário fim, qual seja: ser apenas o meio de se iniciar a destruição do capital, do Estado e inclusive de si própria.

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Estado de mal-estar capital

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Efêmero e tenso ponto de equilíbrio entre as necessidades básicas das pessoas e os imperiosos interesses do capital encontrado no século XX, o Estado de bem-estar social foi a garantia de serviços públicos e proteção à população mediante a organização da economia; algo como uma visível luva social que vestiu a invisível, porém sempre larápia, mão capitalista. Todavia, nesse início de século XXI, já sentimos na carne que o bem-estar deixou de ser prioridade do Estado, que voltou a ser apenas aquilo que Marx bem disse no Manifesto Comunista: “o comitê executivo da burguesia”.

Por degradar sistematicamente as condições de vida daqueles que lhes vendem força de trabalho, o capitalismo da Belle Époque viu a classe trabalhadora se organizar ameaçadoramente. Porém, pelo fato de não viver sem os trabalhadores – pois é deles que extrai a sua mais-valia – o ímpeto capitalista teve de se refrear. Sem dizer da então presente experiência socialista soviética do início do século XX que obrigou o capitalismo a ao menos fingir que sobre a face da terra havia também as necessidades das pessoas. Do contrário, todas elas poderiam, digamos assim, optar pelo outro sistema econômico que, segundo Marx, superaria(rá) o capitalismo.

Portanto, durante um estratégico período o capital aceitou comprometer parte de seus ganhos com a sociedade que, não obstante, nunca deixou de explorar. O Estado de bem-estar, social cujo apogeu se deu nas décadas de 1960 e 1970 na Europa, com efeito, foi patrocinado pelo capital para que os trabalhadores tivessem o mínimo suficiente para não se revoltarem nem pensarem em Revolução. Com o oferecimento de saúde, educação e segurança públicas mais um punhado de seguridades sociais o capital anestesiou as massas exploradas da dor que provoca nelas.

Como, contudo, a lógica capitalista não pode se privar de aumentar incessantemente a exploração sobre a vida, o Estado de bem-estar social não tinha como durar. Os grandes e decisivos ataques contra o bem-estar social foram cometidos na década de 1980 por Margaret Thatcher e Ronald Reagan. A destruição violenta das organizações e dos direitos trabalhistas, árdua e historicamente conquistados, permitiu que a vida voltasse a ser escravizada pelo capital. O velho liberalismo, de roupa nova, agora neoliberalismo, reconduziu o Estado à sua prévia condição de bureau da burguesia.

O que vemos no Brasil desde o golpe de Estado de 2016 outra coisa não é que o carnaval macabro do neoliberalismo, que para não tolher em nada a sede de lucro do capital destrói, rápida e certeiramente, o público em benefício do privado. As atuais reformas trabalhista e da Previdência, desenhadas golpisticamente para os empresários comprometerem cada vez menos as suas mais-valias com aqueles que as produzem; a drástica redução de investimento público em segurança, saúde e educação, expressa no aumento da criminalidade, das filas do SUS e do sucateamento do sistema de ensino público; tudo isso e muito mais é o fim do Estado de bem-estar social tupiniquim que mal e porcamente foi rabiscado na terra brasilis.

Depois do curto recreio chamado Estrado de bem-estar social que tivemos no curso histórico do capitalismo, estamos de volta à rígida e degradante disciplina de um mundo no qual a economia, para usar a ideia do filósofo alemão Robert Kurz, vence a vida. A destruição neoliberal de quaisquer organizações capazes de fazer frente aos interesses espúrios do capital; a vitoriosa ideologia da classe média, que faz a classe dominada se esquecer de sua real condição e perder sua força revolucionária; enfim, o Estado violentamente usucapido pela classe dominante finalmente reifica o vertical projeto capitalista de um “Estado de mal-estar capital” – sendo que esse mal-estar, obviamente, recai sobre todos aqueles que, com suas próprias vidas, produzem o bem-estar e o mais-valor do capital.

Por mais que o social esteja derrotado pelo capital, não podemos esquecer que no passado a consciência da classe trabalhadora, as grandes greves e o fantasma socialista foram as forças reais que obrigaram o capital a se conter e a devolver à sociedade pelo menos algo daquilo que dela furtava. Contra o Estado de mal-estar capital que se erige, a classe dominada podem muito bem repetir aqueles passos: reconhecendo-se como tal, e não como classe média; lembrando a classe dominante, através de grandes greves, que ela não é nada sem aqueles de quem compra a força de trabalho; e, por fim, mantendo o socialismo no horizonte, se não como realidade, ao menos como ideia ameaçadora.