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O buraco político de Steve Bannon

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Atos e declarações do presidente Bolsonaro e de membros de sua família ou governo espantam e, momentaneamente, paralisam o pensamento. Por observação empírica, sei que até defensores seus passam por tal aperto. A atual relação do presidente com seu próprio partido reforça a tese. Será a performance política dos Bolsonaros acidental ou, em vez disso, estratégia?

Não é segredo que a campanha de Bolsonaro usou os serviços de Steve Bannon, assessor político ultradireitista estadunidense que, previamente, elegeu Donald Trump, da mesma forma, mediante torrentes de fake news espetaculares e preconceitos reacionários de toda sorte. Entretanto, o radicalismo de Bannon fez até mesmo o tresloucado líder norte-americano tremer: foi escanteado logo após a vitória de Trump. E Jair Bolsonaro é o pé torto para o chinelo velho de Trump.

A virtude malévola da tática bannoniana está no fato de ocultar a si mesma no momento preciso em que atua. A “mamadeira de piroca”; o “Jesus na goiabeira”; o “um novo A.I.-5”; todas são declarações que, por mais que saibamos que são estranhamente estratégicas, ainda assim cumprem seu papel: espantam, imobilizam e desarmam sobretudo os seus mais radicais críticos. Chega-se ao ponto, paralisante, onde a veracidade ou não dos fatos ser de somenos importância comparado ao julgamento intenso que já fazemos a respeito deles. O objetivo é substituído pelo subjetivo. A lógica da pós-verdade estrutura esse sistema.

O sucesso dessa técnica política cobra preço alto: diante de ataques ou tropeços, a tática é dobrar a aposta, porém, contra si mesmo; ser mais autodestrutivo do que qualquer risco de destruição vinda de fora. Um dia após a reportagem do Jornal Nacional sobre o porteiro no caso Marielle, o Eduardo Bolsonaro ameaça seus opositores com um “novo A.I.-5, mesmo que, em seguida, todos, inclusive o pai, repreendessem-no publicamente. Ora, se é inevitável estar envolvido em um escândalo, que seja um criado pelos próprios Bolsonaros, sobre o qual podem ter maior controle, ainda que seja mais grave do que aquele do qual fogem.

É um tiro no pé que funciona, ao menos no calor do momento. O problema é que, de tiro no pé em tiro no pé, a besta vai se mutilando. A questão é saber quanto tempo aguentarão a autodestruição como forma de evitar a destruição externa? Trump já colhe os frutos podres do seu método bannoniano de ascensão ao poder. Pode estar deposto em breve.

O modo de sobrevivência política de Bannon, abusado por Bolsonaro, reflete o modo com que o capitalismo se mantém em pé. Suas crises antecipam-se e tomam o lugar de todas as outras. E não importa quão feias e desumanas sejam as resoluções subsequentes. Na crise de 2008, trilhões de dólares foram furtados da população norte-americana para salvar o sistema financeiro daquele país, o autor discreto e deliberado da crise. Tanto que o capitalismo não se contenta mais com crises estratégicas e revigorantes a cada dez anos. Caminhamos para um capitalismo de crise constante, o que faz muito bem para o capitalismo.

Assim como o capitalismo contemporâneo, Jair Bolsonaro sobrevive politicamente cavando ele mesmo buracos maiores do que aqueles nos quais cai. Dessa forma, sobrevive aos instantes críticos, repetindo sempre a mesma forma eficiente com outros conteúdos aleatórios: quilombolas, gêneros sexuais, ciência, comunismo, o próprio partido… E, como o capital, avança deixando atrás de si buracos mais profundos que, por suas vezes, exigem buracos ainda maiores para engoli-los e escondê-los.

Diante dos atos e declarações dos Bolsonaros ainda fico espantado e paralisado apesar da clara consciência de que é a estratégia bannoniana que as anima. E experimento genuinamente a dificuldade de permanecer atento a ela no calor dos fatos. Assim como é mais difícil responsabilizar o capitalismo financeiro pelas grandes tragédias humanas e ambientais, pois o capitalismo faz com que o problema crucial esteja sempre em outro lugar que não no próprio capitalismo, para, em seguida, apresentar-se como a única solução, assim também é difícil manter a consciência de que sob as vociferações crísicas e malévola dos Bolsonaros jazem crises e maldades ainda maiores, escondendo-se viciosamente sob novas e mais sofisticadas crises.

O drama social é que precisam levar tudo e todos para os buracos que criam para si, no sempiterno desvio dos obstáculos da realidade. Entretanto, buraco algum comportará, por muito tempo, a aberta dimensão humana. Nossa natureza, se é que há uma, é sair dos buracos que o real impõe; é superá-los com soluções positivas, que acrescentem liberdade, civilidade e, por que não dizer, beleza ao mundo; e não, como querem Bannon, Trump e Bolsonaro, saídas negativas, destrutivas, que tentem desviar de dilemas cruciais mediante regressões cognitivas, éticas, sociais, políticas; como se, refugiando-se no passado de uma determinada limitação estivéssemos enfim livres delas

A tarefa lúcida do povo brasileiro, eleitores de Bolsonaro ou não, é a seguinte: não esquecer de que o grotesco espetáculo político do presidente e família não é um problema real, mas uma realidade artificiosa, criada para esconder o real. Enquanto nos ocuparmos com as espumas das ondas bolsonarianas – “a mamadeiras de piroca”; “o Jesus na goiabeira”; “meninos vestem azul e meninas rosa”; o “novo A.I.-5 -, há uma realidade que importa a todos que, contudo, permanece ignorada. Talvez devamos nos habituar à barbárie política bannoniana até conseguirmos destacá-la objetivamente da imagem que temos do real. Esse é o buraco do qual devemos sair caso queiramos seguir humanos.