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O buraco político de Steve Bannon

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Atos e declarações do presidente Bolsonaro e de membros de sua família ou governo espantam e, momentaneamente, paralisam o pensamento. Por observação empírica, sei que até defensores seus passam por tal aperto. A atual relação do presidente com seu próprio partido reforça a tese. Será a performance política dos Bolsonaros acidental ou, em vez disso, estratégia?

Não é segredo que a campanha de Bolsonaro usou os serviços de Steve Bannon, assessor político ultradireitista estadunidense que, previamente, elegeu Donald Trump, da mesma forma, mediante torrentes de fake news espetaculares e preconceitos reacionários de toda sorte. Entretanto, o radicalismo de Bannon fez até mesmo o tresloucado líder norte-americano tremer: foi escanteado logo após a vitória de Trump. E Jair Bolsonaro é o pé torto para o chinelo velho de Trump.

A virtude malévola da tática bannoniana está no fato de ocultar a si mesma no momento preciso em que atua. A “mamadeira de piroca”; o “Jesus na goiabeira”; o “um novo A.I.-5”; todas são declarações que, por mais que saibamos que são estranhamente estratégicas, ainda assim cumprem seu papel: espantam, imobilizam e desarmam sobretudo os seus mais radicais críticos. Chega-se ao ponto, paralisante, onde a veracidade ou não dos fatos ser de somenos importância comparado ao julgamento intenso que já fazemos a respeito deles. O objetivo é substituído pelo subjetivo. A lógica da pós-verdade estrutura esse sistema.

O sucesso dessa técnica política cobra preço alto: diante de ataques ou tropeços, a tática é dobrar a aposta, porém, contra si mesmo; ser mais autodestrutivo do que qualquer risco de destruição vinda de fora. Um dia após a reportagem do Jornal Nacional sobre o porteiro no caso Marielle, o Eduardo Bolsonaro ameaça seus opositores com um “novo A.I.-5, mesmo que, em seguida, todos, inclusive o pai, repreendessem-no publicamente. Ora, se é inevitável estar envolvido em um escândalo, que seja um criado pelos próprios Bolsonaros, sobre o qual podem ter maior controle, ainda que seja mais grave do que aquele do qual fogem.

É um tiro no pé que funciona, ao menos no calor do momento. O problema é que, de tiro no pé em tiro no pé, a besta vai se mutilando. A questão é saber quanto tempo aguentarão a autodestruição como forma de evitar a destruição externa? Trump já colhe os frutos podres do seu método bannoniano de ascensão ao poder. Pode estar deposto em breve.

O modo de sobrevivência política de Bannon, abusado por Bolsonaro, reflete o modo com que o capitalismo se mantém em pé. Suas crises antecipam-se e tomam o lugar de todas as outras. E não importa quão feias e desumanas sejam as resoluções subsequentes. Na crise de 2008, trilhões de dólares foram furtados da população norte-americana para salvar o sistema financeiro daquele país, o autor discreto e deliberado da crise. Tanto que o capitalismo não se contenta mais com crises estratégicas e revigorantes a cada dez anos. Caminhamos para um capitalismo de crise constante, o que faz muito bem para o capitalismo.

Assim como o capitalismo contemporâneo, Jair Bolsonaro sobrevive politicamente cavando ele mesmo buracos maiores do que aqueles nos quais cai. Dessa forma, sobrevive aos instantes críticos, repetindo sempre a mesma forma eficiente com outros conteúdos aleatórios: quilombolas, gêneros sexuais, ciência, comunismo, o próprio partido… E, como o capital, avança deixando atrás de si buracos mais profundos que, por suas vezes, exigem buracos ainda maiores para engoli-los e escondê-los.

Diante dos atos e declarações dos Bolsonaros ainda fico espantado e paralisado apesar da clara consciência de que é a estratégia bannoniana que as anima. E experimento genuinamente a dificuldade de permanecer atento a ela no calor dos fatos. Assim como é mais difícil responsabilizar o capitalismo financeiro pelas grandes tragédias humanas e ambientais, pois o capitalismo faz com que o problema crucial esteja sempre em outro lugar que não no próprio capitalismo, para, em seguida, apresentar-se como a única solução, assim também é difícil manter a consciência de que sob as vociferações crísicas e malévola dos Bolsonaros jazem crises e maldades ainda maiores, escondendo-se viciosamente sob novas e mais sofisticadas crises.

O drama social é que precisam levar tudo e todos para os buracos que criam para si, no sempiterno desvio dos obstáculos da realidade. Entretanto, buraco algum comportará, por muito tempo, a aberta dimensão humana. Nossa natureza, se é que há uma, é sair dos buracos que o real impõe; é superá-los com soluções positivas, que acrescentem liberdade, civilidade e, por que não dizer, beleza ao mundo; e não, como querem Bannon, Trump e Bolsonaro, saídas negativas, destrutivas, que tentem desviar de dilemas cruciais mediante regressões cognitivas, éticas, sociais, políticas; como se, refugiando-se no passado de uma determinada limitação estivéssemos enfim livres delas

A tarefa lúcida do povo brasileiro, eleitores de Bolsonaro ou não, é a seguinte: não esquecer de que o grotesco espetáculo político do presidente e família não é um problema real, mas uma realidade artificiosa, criada para esconder o real. Enquanto nos ocuparmos com as espumas das ondas bolsonarianas – “a mamadeiras de piroca”; “o Jesus na goiabeira”; “meninos vestem azul e meninas rosa”; o “novo A.I.-5 -, há uma realidade que importa a todos que, contudo, permanece ignorada. Talvez devamos nos habituar à barbárie política bannoniana até conseguirmos destacá-la objetivamente da imagem que temos do real. Esse é o buraco do qual devemos sair caso queiramos seguir humanos.

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Neoterraplanismo, o outro do neoconservadorismo.

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Mais difícil do que suportar terraplanistas, isto é, aqueles que creem que a Terra é plana e não geoide, é entender porque, a despeito de evidências científicas, essa antiga crença ganhou espaço nas cabeças de certos indivíduos contemporâneos. Entretanto, esse fato absolutamente intempestivo não é acidental nem tampouco má-fé de seus polemizadores mais vulgares. Trata-se, objetivamente, da repercussão oportunista de um modelo cosmológico caduco que, todavia, ainda guarda em si os mesmos poderes ideológicos e consequências sociopolíticas de outrora. E é em prol de um certo projeto de poder: o neoconservadorismo, que essa velha ideia foi ressuscitada.

Um sistema cosmológico, fictício ou cientificamente comprovado, é uma imagem de como o universo é e se organiza, e, entre outras coisas, serve de fundamento, de justificativa para as instituições socioculturais daqueles que nele creem. A monarquia, qual seja, a centralização do poder em um só indivíduo, por exemplo, é a outra face do antigo modelo cosmológico ptolomaico/ geocêntrico, para o qual o universo tem um centro definido, com a Terra ocupando esse centro. Daí as sociedades passadas,  tradicionais, desejantes de respeitar e reproduzir “a lógica eterna do cosmos”, organizarem-se do mesmo modo: a sociedade também deve ter um centro e esse centro deve ser ocupado por um indivíduo determinado em torno do qual os demais orbitam.

Já a democracia dos nossos Estados modernos, que pulveriza igualitariamente o poder entre os indivíduos de uma sociedade (para a qual as ideias de centralidade e de poder, ao menos formalmente, são apenas representativas) é reflexo inevitável do subsequente modelo cosmológico copernicano, segundo o qual a terra não mais ocupa o centro do universo nem o universo tem um centro unívoco. Para Freud, essa foi a “primeira ferida narcísica da humanidade”. Com essa nova forma cósmica desenvolve-se a ideia de que, se não é natural as coisas se organizarem hierarquicamente no universo; se não há centros universais; as sociedades humanas, que são coisas no universo, tampouco devem refletir tal irrealidade.

Essas duas imagens cosmológicas: a ptolomaica e a copernicana, e as duas formas de organização do poder que delas decorrem: a monarquia e a democracia, respectivamente, esclarecem a identidade entre determinadas ideias de organização do universo e as realidades sociopolíticas humanas. A proposição inicial, segundo a qual o neoterraplanismo é o outro do neoconservadorismo, se dá sobre essa base. Assim como outrora a monarquia encontrou longeva justificativa em uma imagem cósmica, assim também os atuais promotores de uma nova centralização do poder agem. E colar cacos do passado para com eles construir os vasos do presente e futuro é próprio do pior conservadorismo reacionário.

Então, como foi dito, o uso da ideia terraplanista não é acidental. É, na verdade, a tentativa, de indivíduos sedentos pelo poder absoluto, de restabelecer uma ordem cósmica que justifique as suas ideias de como a sociedade deve estar ordenada. O neoconservadorismo não conseguirá ser tão profundo e longevo quanto sua versão pretérita enquanto a imagem copernicana de um universo livre de centros hierárquicos for paradigmática.

Ícone tupiniquim tanto do neoconservadorismo quanto do terraplanismo é o “pornofilósofo” Olavo de Carvalho que, como muitos autores conservadores, acredita que um projeto de poder não encontra espaço na realidade se com ele não vir junto uma imagem do todo, do cosmos, que o sustente com ares de naturalidade. Esse autor defende, há anos, a ideia de que a direita deve trazer ao mundo um novo e completo modelo de realidade caso queira recuperar o seu poder perdido para “as esquerdas”, que, segundo ele, venceram historicamente popularizando uma imagem do todo onde somente a democracia é reflexo cósmico fidedigno.

Pelo que podemos observar atualmente, o ressurgimento da falsa imagem da Terra plana; da centralidade da Terra e consequente periferização do restante do universo relativamente a esse centro excelente acompanha o levante dos poderes conservadores de direita no mundo, não apenas no Brasil. Apenas um projeto de poder tão ambicioso e intempestivo quanto o que Olavo de Carvalho e seus congêneres reacionários defendem justifica as presentes afrontas, tanto ao virtuoso cientificismo de nossa época, quanto à própria sensibilidade humana.

O Objetivo primordial dos promotores oficiais do neoterraplanismo não é revelar uma verdade maior a ser acordada por todos após uma batalha propriamente racional. Antes, pretendem apenas abrir uma discussão que de forma alguma deve ter fim, mas que crie dissidências irrecuperáveis entre as pessoas; para conturbar o espaço de esclarecimento que paulatinamente a humanidade construiu para si; para estabelecer dois tipos de pessoas: os que veem o universo como ele é, e os que não. Daí, se vitoriosos, poderão tratar os que discordam de sua “verdadeira imagem do cosmos”, no melhor dos casos, como idiotas, ou, no pior, como escravos. Ah, e nunca é demais lembrar da intimidade histórica do conservadorismo com a escravidão; com a sujeição de uns a outros; e, no ápice, e todos a um só.

Corriqueiro, historicamente falando, é portadores de grandes e revolucionárias verdades serem mortos, exilados, queimados vivos. Giordano Bruno, por exemplo, teve esse último destino por afirmar que o universo é infinito. Filósofos antigos, bruxas medievais e cientistas modernos: suas verdades são tão poderosas que ameaçam profundamente as forças que se fundamentam em imagens falsas da realidade.

 Há sim a possibilidade de a verdade científica ser obscurecida por sombras ideológicas demodês em função de objetivos mundanos perversos. O que pode salvar nosso presente e futuro, contudo, é outra imagem da realidade que dificilmente se poderá negar: a de que, na História, a racionalidade sempre venceu a irracionalidade; a civilização, a barbárie; a política, a violência. Pode demorar um tanto, assim como toda batalha, mas não temos melhor quadro da humanidade senão o da construção da liberdade justificada no conhecimento verdadeiro em relação à realidade.

Creio que a melhor tática anti-neoterraplanista seja espantar-se menos com a sua popular repercussão, e, em troca, alimentar a consciência de que essa mentira, embora mentira, é dita e sustentada por motivos reais, concretos, de uma elite que não suporta a ideia da distribuição universal do poder e, por isso, precisa rejeitar qualquer modelo de cosmos que exprima a descentralização. Os neoterraplanistas estrategicamente interessados, aqueles que incutem objetivamente tal ilusão nas cabeças de milhões de pessoas, não para informá-las sobre a realidade, mas para obter poder real, dificilmente acreditam que a Terra seja de fato plana. Apenas sabem, muito bem, por experiências históricas, que tal lorota tem as suas consequências sociopolíticas. E são justamente estas que eles objetivam com a sua neofalácia cosmológica, ainda que ao alto preço da racionalidade e sensibilidade humanas.

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Política, comédia e educação.

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Diante da contemporânea “tragédia” política brasileira, parece um perigoso exercício de alienação o mar de memes que faz troça do roubo do poder por uma corja de golpistas criminosos e do radical furto de direitos da população. Todavia, esse talento cômico do nosso povo face às vicissitudes da política não é invenção sua. Nascida na Atenas antiga, a comédia era a crítica e a expressão mais candente da crise daquela democracia. E isso porque, nas palavras do filósofo Werner Jaeger, na sua clássica “Paideia”, “A comédia visa as realidades do seu tempo mais do que qualquer outra arte”.

Disseram alguns que o homem é o único animal capaz de rir. Outros, mais mordazes, que ele é o único capaz de rir de sua própria desgraça. Se é assim, a comicidade é a forma humana de encarar a realidade quando ela é mais difícil de suportar. Estaria a sabedoria popular certa ao repetir que “É melhor rir do que chorar”? Ou, antes, certo está Platão ao dizer que a vida humana tem de ser encarada ao mesmo tempo como tragédia e como comédia? Bem, o povo brasileiro parece não escapar do dito do pai da filosofia… Resta saber como a popular memética cômica desses nossos dias golpistas pode nos ajudar na nossa tragédia política.

Jaeger conta que “A origem da comédia encontra-se no incoercível impulso das naturezas mais comuns … na tendência popular, realista, observadora e crítica”. Na Atenas antiga, ela tinha a tarefa da crítica pública, ou seja, da crítica feita pelo povo, ou, pelo menos, da perspectiva do povo. Todavia, adverte o filósofo, a comédia nunca constituiu algum grande plano político organizado. De uma parte, contribuía para desanuviar a atmosfera de opressão. De outra, comunicava publicamente a situação de opressão, apontando distintivamente os opressores. Para Jaeger, a comédia é a “elevada arte do ataque pessoal dirigida até mesmo às pessoas de mais alto posto na hierarquia do Estado”.

Sabemos que a democracia, isto é, a administração do Estado pelo povo, foi uma invenção dos atenienses. Antes disso, e em outros lugares, a lei que regia as sociedades vinha sempre de cima. Primeiro, dos deuses. Depois, dos heróis e dos reis. Em Atenas, contudo, a lei passou a ser produto dos próprios cidadãos, de suas livres deliberações democráticas. Entretanto, afirma Jaeger, a democracia ateniense tanto deu liberdade ao povo que, a certa altura, precisou limitá-la para evitar o caos social. Só que essa limitação, democraticamente falando, não poderia vir do próprio Estado democrático. Se assim tivesse sido, falaríamos de tirania, e não de democracia. Então o Estado democrático, prossegue o filósofo, fez com que tal limitação viesse das interferências do próprio povo, melhor dizendo, da opinião pública, que se expressava, verdadeira e contundentemente, na comédia.

Com efeito, para Jaeger, a comédia veio ao mundo grego como “o mais genuíno produto da liberdade democrática da palavra”. Claro que as autoridades oficiais procuravam, sempre que podiam, proteger as pessoas de prestígio dos cômicos ataques populares. Mas o filósofo conta-nos que tais proibições não duravam muito. Afinal, cada vez mais sabia-se que negar o que a comédia trazia a público significava negar algo de muito importante da realidade. Para Jaeger, a comédia encarnava o invisível numa forma sensível, fazendo ver as forças opostas da comunidade e do indivíduo; do povo e da elite; dos pobres e dos ricos; da liberdade e da opressão; do passado e do presente. Em suma, era através da comédia que a crísica sociedade grega conhecia seus recônditos ao ironizar a si mesma.

Na crise da democracia e da pólis grega, prossegue Jaeger, “Só a comédia era capaz de exprimir isso para todos”. Antes disso, a religião, com seus deuses, e a tragédia, com seus heróis, cumpriam o papel de comunicadoras e unificadoras universais daquela sociedade. Porém, com a progressiva laicização da vida que resultou politicamente na democracia, os atenienses não puderam mais contar com sobre-humanidades nenhumas, fosse para compreender, fosse para atacar seus problemas sociais e políticos. Diante desse novo, grandioso e absolutamente mundano desafio, Jaeger conta que somente a comédia, com sua linguagem e penetração social, foi capaz de colocar a sociedade diante do espelho.

Está certo que a comédia não salvou Atenas e a sua democracia. Ainda mais depois da dominação de Alexandre, o Grande, quando as cidades-estado gregas perderam a sua razão de ser, e a revolucionária democracia ateniense passou a jazer apenas em forma de saudosa lembrança. Trágico destino, obviamente, depõe contra qualquer tentativa de se enfrentar a vileza da realidade apenas fazendo rir. Entretanto, como dito antes, a comédia nunca foi um macro plano organizado de solução sociopolítica global, mas sim uma forma particular – se bem que a maior de seu tempo – de reconhecimento público de um presente crísico.

Relativamente ao presente brasileiro, só devemos condenar o nosso ímpeto espirituoso face às agruras sociopolíticas se nada além de troça fizermos. Nada contra o riso – humano, demasiado humano tomar conta da sociedade, qual histeria coletiva, em reação imediata a grandes dificuldades. Afinal, como diz aquela canção, “É melhor ser alegre que ser triste”. Agora, como bem sabe o ditado popular, “Rir de tudo [e o tempo todo] é desespero”. Um povo que realmente espera resolver seus problemas, e isso sem contar com deuses nem heróis, depois de comunicar cômica e publicamente o próprio infortúnio, deve cerrar os dentes e agir seriamente.

Que seriedade, não obstante, pode sobrevir, primeiro, à tragédia, e, por fim, à comédia, senão a consciência positiva e comunicável desse processo? Jaeger é categórico em dizer que, após o apogeu da vida política e social da Grécia, quando finalmente estavam arruinados todos os seus maiores bens, tais como o Estado, o poder, a liberdade e a vida cívica, algo de extremamente valioso permaneceu vivo e operante: a Paideia grega, isto é, o sistema de educação e formação ética daquele povo, cujo escopo era a formação do cidadão perfeito e completo, capaz de desempenhar um papel positivo na sociedade.

Foi justamente em meio às trevas irremediáveis da catástrofe política grega que se revelaram os maiores gênios da educação, tais como Sócrates, Platão e Aristóteles, que transmitiram aos outros povos da Antiguidade e à posteridade histórica, até nós, a mais alta expressão possível de humanidade. Não que a educação deva surgir somente após a tragédia e a comédia. Na verdade, ambas desde sempre já foram modos educacionais a conduzir toda uma sociedade ao seu melhor fim. A grandeza grega esteve, e ainda está, justamente no fato de a educação ser substantiva. Superada a educação trágica, que socializava a imersão humana no inescapável fluxo da vida, e a educação cômica, que permitia ao público falar a si mesmo de seu trágico destino, restou a educação per se, enquanto objetivação racional do conhecimento do mundo e de si próprio.

Talvez devamos mudar um pouco a frase de Platão apresentada no início. Em vez de a vida humana, seja a grega antiga, seja a tupiniquim contemporânea, dever ser encarada ao mesmo tempo como tragédia e como comédia, se tomarmos o exemplo da própria evolução histórica da sociedade grega, que primeiro foi trágica, depois cômica, para, por fim, ser puramente paidêutica, isto é, educacional, quem sabe a atual dinâmica do povo brasileiro de, primeiro, sofrer seus revezes, para, em seguida, fazer piada deles, seja o necessário calvário do nascimento de um verdadeiro processo de conhecimento e de aperfeiçoamento de sua, de nossa, própria condição social.

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Financeirização da economia e a dominação ilimitada

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Como impedir a classe dominante de dominar? Marx bem tentou responder essa pergunta no seu Manifesto Comunista, que começa afirmando que “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Só que essa tarefa se mostrou bem mais difícil do que o grande filósofo materialista imaginou. Mais ainda depois que o capitalismo se libertou de qualquer limitação material, ou seja, após o presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971, abolir o lastro material do Dólar. Com esse ato, foi dispensado o fundamento material daquela moeda, e por efeito cascata, o de todas as demais. Doravante o dinheiro, e a dominação que ele proporciona, passaram a ser inventados. Claro, quem detém o poder (político e militar) para tal “alquimia” é a classe dominante, que, quanto mais inventa riqueza, mais a inventa para si mesma, e, portanto, mais-domina.

Para inventar sua dominação de modo legal, e além do mais democrático, basta, por exemplo, que as doze famílias mais ricas dos EUA, donas dos doze maiores bancos que formam o Federal Reserv Bank (o banco que cria os dólares para os EUA), enfim, basta que a classe arquitete uma devastadora crise econômica, para a qual apenas alguns trilhões de dólares – que ela mesma pode inventar imediatamente – sejam a solução mais objetiva. O governo então aceita esse dinheiro abstrato e, no mesmo instante, o povo e o futuro desse Estado passam a dever a exata quantia à classe, só que agora, obviamente, em forma de riqueza concreta. Se o lastro para o dinheiro que  a classe inventa findará em barras de ouro ou em mega favelas na África, Ásia e América do Sul tanto faz. A classe cobra concreta e materialmente por centavo que abstratamente inventa.

Só que, dado o montante de dinheiro inventado na nossa economia financeirizada, é impossível lastreá-lo materialmente. Há vários limites. Um deles, o ecológico, é quiçá o que melhor demonstra essa impossibilidade. Há quem diga que seria preciso de seis a dezesseis planetas Terra (em quantidade de ar, água, terra, minérios, etc.) para arrancar, da natureza ao mundo humano, a riqueza material necessária para lastrear a riqueza inventada pela classe. Todavia, embora essa dívida seja de fato material, econômica, social, política e ecologicamente impagável, ela só continua sendo criada porque é logicamente possível fazê-lo. Afinal, nada há de errado em cobrar do futuro, que além do mais é ilimitado, quando se abstrai o fato concreto de que não haverá planeta Terra para tanto.

Para manter essa lógica insustentável funcionando, todos os dominados/endividados que ousam afrontá-la devem ser restringidos legalmente e reprimidos militarmente pela classe. É tão impossível para a humanidade materializar toda a riqueza abstratamente inventada pela classe quanto deter a classe na sua desenfreada financeirização da econômica. Na época de Marx, o capitalismo ainda era refém do mundo material. A mercadoria, misto de matéria-prima e meios de produção capitalistas e de mão de obra proletária, era fundamental no processo de produção de mais-valor que permitia à classe mais-dominar. Na financeirização da economia, entretanto, nada de material precisa ser produzido para que venha ao mundo tanto dinheiro quanto deseja a classe. A produção material, obviamente, não desapareceu. Apenas sobrevive em modo zumbi, mentido caducamente que será através dela que se pagará a dívida à classe.

Agora, por mais perverso que seja, esse sistema no qual a classe minoritária dominante pode inventar, em nome da classe majoritária dominada, uma dívida maior do que o futuro da humanidade, obrigando esta última, legal e militarmente, a pagá-la, materializá-la, lastreá-la com o suor de seus corpos, é de uma estratégia admirável. Nunca foi tão fácil dominar! Žižek bem disse que, desaparecendo a necessidade de fundamento material para a dominação de classe, e bastando a classe inventar quantas vezes quer ser mais rica e dominante, o que resta é a dominação direta e injustificável de uns indivíduos sobre outros, como se se tratasse de uma determinação divina, extra-humana. Inventar dinheiro, no mundo capitalista, é inventar poder. Poder criar uma dívida em nome de outros, portanto, é criar poder sobre eles.

Desfinanceirizar a economia é, portanto, um urgente passo para libertar os povos dessa insustentável liberdade da classe de inventar, desimpedida de qualquer restrição material, a sua dominação. Talvez devamos reconsiderar a velha ideia marxiana segundo a qual o sumo valor é tão somente fruto de trabalho humano, pois ela reata os pés de Ajax da classe no chão material do mundo, impedindo-a de inventar abstratamente sua dominação concreta. O grande problema, contudo, é impedir a classe de se valer compulsivamente de sua maior sofisticação (inventar sua superioridade) uma vez que ela está de posse dos Estados e de seus exércitos.

Uma autêntica revolução seria a solução, pois desfinanceirizaria a economia capitalista ao destruir próprio o cosmo capitalista. Ora, se é para desafiar o Estado burguês e sua opressiva força militar, que seja para a maior das mudanças, pois só ela puxará naturalmente todas as demais necessárias. Entretanto, a revolução parece estar mais desacreditada do que nunca. Todavia, não porque os preceitos socialistas revolucionários tenham perdido sua pertinência, mas porque a classe, estrategicamente, assim como vem inventando a sua dominação, inventa também as pseudo verdades que lhes serve, tal como a ideia de que é melhor o capitalismo do que qualquer outra forma econômica para a humanidade subsistir materialmente.

Se não é possível fazer a revolução agora, pois, novamente, temos os Estados nacionais e os seus exércitos contra ela, ao menos alimentemos a ideia de revolução tal qual se encontra excelentemente em Marx. Que não seja possível mudar o mundo por esta ou aquela contingência não deve significar que a razão da mudança seja inválida. Muito pelo contrário. Talvez seja justamente nessa era de economia financeirizada, na qual a invenção de dominação concreta a partir de uma mera abstração é a regra, que uma simples ideia revolucionária possa, subversivamente, aproveitar a onda e materializar-se. Se não há como vencer uma guerra sem ter ao menos as mesmas armas do inimigo, afrontemos então a classe usando a sua mais sofisticada artilharia: inventemos um mundo sem dominação e exijamos, a qualquer custo, que o mundo material e concreto corresponda a essa justa, e até aqui, abstração.

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Neoliberalismo Político-Cultural na Cidade Sorriso

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Nelson Marchezan (esq.), prefeito de Porto Alegre, e, Luciano Alabarse, secretário de cultura.

O secretário de Cultura da capital portalegrense pelo governo do PSDB, Luciano Alabarse, participou do encontro promovido pelo Goethe-Institut chamado “Conversas Cidadãs” para debater “Política Cultural” com a comunidade. Entretanto, o mais próximo que se chegou do grande tema foi a apresentação, em números concretos, por parte do secretário, das políticas culturais da presente administração; e, da parte da plateia, contraposições atinentes à má assistência e até mesmo ilegalidades da atual política cultural estatal, outrossim referentes a fatos concretos. Um espaço franco como o que o Instituto Goethe promoveu entre a comunidade e o Estado, contudo, deveria ser também ocasião para a sociedade alçar-se a assuntos mais globais, pois estes são tão reais quanto determinantes nos casos particulares concretos. Infelizmente, não houve oportunidade para serem abordadas, abstratamente, isto é, independentemente da situação particular da Cultura em Porto Alegre, questões tais como: de onde partem as tais “Políticas Culturais”; a quem elas servem em primeiro lugar; e, o mais importante, que espécie de política resta e é combativa quando a “política cultural oficial” é problemática?

Nesse sentido, vale lembrar a distinção feita pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu entre “Política Cultural” e “política da Cultura”. A primeira, referindo-se à política culturalizante produzida e aplicada verticalmente por quem ocupa o poder político, e, sem ingenuidade, para benefício próprio. Como exemplos trágicos de “políticas culturais” temos as dos Estados de Mussolini, Hitler e Stalin. Contrapondo-se à “política cultural”, a “política da Cultura” é a organização e a mobilização política da categoria cultural para ter força diante da “Política Cultural estatal”. (Digo “categoria” e não “classe” porque é munição política ter bem claro que classes são apenas duas: a dominante e a dominada). Analogamente à distinção entre Estado e sociedade civil distinguem-se “Política Cultural” e “política da cultura”. A ausência dessa profundidade bourdieuana no “Conversas Cidadãs” acabou por impedir a plateia de poder criticar a própria ideia de “Política Cultural” e, consequentemente, de pensar uma outra política efetivamente em função da Cultura e de sua categoria.

Claro, para saber que a Política Cultural do Estado serve imediatamente a quem governa esse Estado é necessário saber também que os nossos Estados Nacionais são uma produção da classe dominante burguesa que afasta o povo do autogoverno via “a nossa democracia” representativa. Nisso, Marx sempre esteve certo: o Estado é um instrumento de dominação de classe. No ínterim estatal burguês, o povo ganha permissão para “participar do poder” apenas no cada vez mais inócuo expediente das urnas, sendo que em qualquer outra aventura popular em função de mais poder além desta será – como de fato é – constrangida legalmente e reprimida militarmente. Abstrair da ideia de “Política Cultural” as políticas culturais de um governo determinado permite ver inclusive que faz pouca diferença o Estado estar nas mãos de um partido de direita ou de um de esquerda: o Estado enquanto tal servirá à parcialidade às custas da totalidade. Sequer precisaríamos do exemplo peessedebista para vermos como e até onde políticas públicas são feitas para benefício de banqueiros e empresários.

Na ignorância desse fato, muitos participantes do Conversas Cidadãs, na defesa da Cultura e de sua categoria profissional, chegaram ao absurdo de, ingenuamente, defenderem que a categoria cultural deveria “sentar junto” com o secretário (do PSDB!) para “construírem conjuntamente” a solução para os graves problemas da cultura portalegrense. Alabarse, como legítimo representante do Estado neoliberal naquele auditório, elogiou diversas vezes a ideia. Entretanto, não por ser a solução para os reais problemas da Cultura e da categoria que dela sobrevive e nela se realiza, mas porque obscurece ainda mais a distância entre a “Política Cultural estatal” e a “política da Cultura”. Assim como o neoliberalismo mente uma igualdade onde não existe ao defender que é melhor deixar patrões e funcionários a sós para resolverem suas questões, assim também é mentiroso que seja melhor à categoria cultural sentar amigavelmente com o braço cultural do Estado como se houvesse paralelismo de metas entre eles.

Impossível não lembrar de Nicolau Maquiavel, filósofo italiano que deixou bem claro, lá na aurora da modernidade, que a ventura de uma sociedade não se dá na paz e na concórdia interna, mas na irresolubilidade do conflito político. Dessa perspectiva, obviamente, não é “sentando em paz” com o secretário do PSDB que a categoria cultural se beneficiará (assim como patrão e funcionários deixados sozinhos é bom só para o patrão). Maquiavelianamente falando, alguma autonomia à categoria cultural só será possível quando esta categoria se colocar, política e organizadamente, contra a verticalidade inerente a qualquer “Política Cultural estatal”, e, particularmente, contra a política cultural específica do PSDB. Por isso é importante manter a distinção de Bourdieu entre “Política Cultural” e “política da Cultura”: para não nos esquecermos de que no plano da “Política Cultural estatal”, ainda mais na de um Estado gestado neoliberalmente, não está a realização da Cultura nem tampouco a de sua categoria, mas somente no antagonismo a tal “Política”.

E o engodo neoliberal segundo o qual “a solução” é o secretário de cultura e a sociedade “sentarem juntos” para construírem o bem da Cultura portalegrense, estratégia que oblitera a dissimetria entre essas duas partes, serviu de trampolim para Alabarse dizer pública, vertical e neoliberalmente que “fora da parceria público-privado não há solução para os problemas da cultura local”. Resumindo: aceitar “sentar juntos” com esse representante do Estado é ter de engolir, de pronto, o propósito mor de seu partido: o privado – e às custas do público. Se isso fosse claro, a plateia não cogitaria pax alguma com o secretário, mas apenas uma incansável luta política, pois, com efeito, não se trata de a categoria cultural desejar que a política de seus governantes lhes sirva a partir de cima, acidental ou dadivosamente, mas, decisivamente, de fazer os governantes entenderem que é a “política da Cultura”, gestada e defendida pela categoria cultural, que deve ser tornada “a” política cultural do Estado. Pois assim o Estado não será obstáculo, mas, em vez disso, um meio de a Cultura e todos as pessoas que dela vivem realizarem-se cultural e materialmente. Se bem que, aí, nem poderíamos mais chamar essa coisa de Estado…

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Uma reflexão sobre o neofundamentalismo tupiniquim

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Imagem: Rafael Silva

A despeito de toda ciência, desenvolvimento tecnológico e cultural, em suma, de toda autonomia que a humanidade historicamente conquistou para si, o fundamentalismo religioso novamente se empodera dentro da nossa sociedade. É estarrecedor, por exemplo, que em pleno século XXI centenas de deputados estaduais cantem, de mãos dadas e entusiasticamente, um não sei que hino religioso-evangélico, em pleno horário de trabalho na Assembleia Legislativa do Estado (constitucionalmente laico) do Rio de Janeiro. Infelizmente, essa força obscurantista cresce não só no parlamento fluminense, mas em toda política brasileira, fato que conflita frontalmente com a certeza, moderna por excelência, de que da política a religião deve estar excluída.

Não estará errado quem disser, lucidamente, que por trás da ladainha neofundamentalista há, imediata e objetivamente, o projeto de poder de alguns poucos que, apenas instrumentalmente exploram o divino para melhor obterem êxito mundano. Não é mistério que engôdos para manipular a opinião pública é lugar-comum na luta pelo poder. Quem conhece minimamente a “nossa democracia” sabe muito bem que basta plantar sordidamente, e regar insistentemente certas ideias em parte substantiva da população para ideologizá-la em benefício próprio. E uma vez que a alienação fundamentalista estrategicamente criada por uns poucos em função do poder é só uma variante da sempiterna alienação produzida pelo macroprojeto de poder do capital, talvez seja mais oportuno investigar a particularidade da vulnerável população tupiniquim sobre a qual esses oportunistas fundamentalistas estão lançando suas podres sementes para crescerem qual erva daninha.

Procurando, na presente conjuntura, pelo “sentimento nacional” que estaria unindo a um só tempo gregos e troianos, melhor dizendo, fundamentalistas retrógrados e modernistas progressistas, encontraremos, em primeiro lugar, a indignação coletiva com a corrupção política. E, em segundo e remediativo lugar, temos a exigência outrossim coletiva de que haja ética na política. Exemplos emblemáticos e históricos, tais como junho de 2013 e os movimentos pró-impeachment de 2015 e 2016, porventura não foram, cada qual com sua distinta qualidade, clamores massivos no sentido de se eticizar a política para então ser possível controlar, quiçá erradicar a afrontosa e sistemática corrupção?

Entretanto, para frustração geral, a corrupção e a imoralidade na política não desapareceram. Ao contrário, estão mais livres e corrosivas do que nunca. Ai está o ponto que merece especial atenção para se entender a receptividade religiosa-fundamentalista por parte da população brasileira. O fracasso popular – tanto o dos progressistas de 2013 quanto o dos reacionários de 2015 e 2016 – diante da corrupção política pode explicar o fato de algumas pessoas deixarem de confiar nelas mesmas, enquanto indivíduos, enquanto cidadãos, para cumprirem tal empreitada, e, desesperada e irracionalmente, começarem a crer que essa tarefa é sobre-humana, digna apenas de um Deus, ou, o que o projeto de poder por trás disso quer que concluam, digna dos oportunistas vigários mundanos dEle.

Aqui é salutar lembrar de Nicolau Maquiavel, não só porque foi precursor do pensamento político moderno, revolucionária e escandalosamente apartando o longevo casamente entre política e moral, mas sobretudo – o que aqui mais deve nos interessar – porque ele viu que as pessoas só conseguiram um dia se sujeitar às leis civis, isto é, as leis que as próprias pessoas dão a si mesmas, porque, antes, foram habituadas pelas religiões a aceitarem e seguirem mandamentos que valiam e deveriam valer para todos. As religiões, dessa perspectiva maquiaveliana, seriam um estágio pré-civilizatório fundamental à civilidade.

Esse apontamento de Maquiavel sobre o papel das religiões na construção da dimensão propriamente civil pode iluminar o fato de, hoje, algumas pessoas estarem reagindo à corrupção generalizada recorrendo à religião em forma de um clamor desesperado por uma reeducação cívica aplicada pelo “mestre supremo do universo”. O “Não roubarás”, por exemplo, que “coxinhas” e “petralhas” estão exigindo dos seus representantes políticos, em um plano absolutamente laico pode ser inobservado, como de fato o é, quando se acredita que se pode ficar legalmente impune. Já num plano religioso, onde há um Deus onisciente, mesmo que ninguém no mundo saiba da corrupção cometida por alguém, ainda assim o Ser supremo saberá; dela nunca se esquecerá; e cedo ou tarde fara justiça.

Essa ideia de que Deus é o maior, mais presente e eficiente juiz; de que sua “governança” celestial será a melhor ou única solução; é tão ingênua quanto primitiva. Todavia, explica porque historicamente, no árduo e longo processo de autonomização da humanidade, as pessoas sempre sobrehumanizaram alguns de seus iguais para se assegurarem de que “um poder maior” do que elas lhes protegesse. Daí se sujeitarem ao pai, ao padre, ao rei, ao ditador, ao representante político, e por aí vai; pois sem nenhum poder superior e inquestionável as observando e constrangendo não encontrariam, não dariam a si mesmas restrições suficientes no sentido de não se corromperem.

O paralelo político dessa histórica autonomização humana é a evolução das formas de governo: respectivamente: teocracia, monarquia, aristocracia e democracia. O que os fundamentalistas religiosos talvez mais queiram seja apenas reiniciar o ciclo; enquanto os progressistas se negam terminantemente a isso. Porém, lembrando Maquiavel novamente, cada uma das diversas formas de governo se coloca como “a” solução aos problemas, temporal e inevitavelmente, trazidos pela anterior: a monarquia solucionando as insuficiências da teocracia; a aristocracia, as da monarquia; e a democracia, as da aristocracia. Só que a democracia, assim como as demais formas, com o tempo também se torna problemática e insustentável, e, também como as demais, precisa de uma solução extrínseca.

Maquiavel é taxativo – e talvez devêssemos atentar mais para a sua revolucionária sabedoria: a corrupção trazida pela democracia não tem como ser sanada democraticamente. Antes, a democracia apenas a agravará. Se aceitarmos a necessidade de um expediente extraordinário à democracia para resolver os problemas que ela mesmo coloca, as opções seriam duas: ou regride-se reacionariamente a uma forma de governo prévia – a teocracia, a monarquia ou a aristocracia -; ou, em vez disso, progressivamente, introduz-se uma nova forma de governo que possa resolver a crise democrática. Se são essas as opções, temos que os reacionários fundamentalistas já têm a deles, enquanto que os progressistas, infelizmente, ainda não.

Diante do perigo do fundamentalismo teocrático, os progressistas, inclusive os melhor intencionados, insistem na democracia sustentando que nenhuma outra forma de governo é aceitável, independente da circunstância. Interessante é que os progressistas, nessa insistência, são tão fundamentalistas quanto os religiosos; apenas colocam outro deus no pedestal: em vez do perfeito Deus celestial, o imperfeito anjo caído da democracia. Nesse sentido, e paradoxalmente, os neofundamentalistas religiosos são algo menos conservadores que os progressistas: ao menos relativizam democracia e ousam se arriscar em uma outra forma de governo. Algo de salutar no neofundamentalismo religioso – e a a única! – é o fato de aceitarem com menor resistência os limites imanentes da democracia, ainda que seu imperdoável vício seja eleger imediatamente o transcendente.

Esse apego dos progressistas à democracia porventura não poderia ser chamado de fundamentalismo laico? Afinal, como categorizar essa fé cega, essa crença inarredável de que o melhor é o único caminho, em toda e qualquer circunstância, é o democrático? Ora, para quem sabe que a “nossa democracia”, cujo real nome é democracia parlamentar burguesa, é uma forma de governo criada pela casse dominante em benefício próprio para que a única participação da classe dominada no poder se dê no expediente paliativo das urnas, e para que contra todas as demais tentativas dessa classe desfavorecida de participar do poder sejam reprimidas legal e militarmente, enfim, para quem conhece a essência dessa “nossa democracia”, defendê-la é mais do que fundamentalista, é burrice!

Com efeito, há um pecado comum aos fundamentalistas religiosos e aos progressistas laicos: ambos não aventam uma nova e mais eficiente forma de autogoverno mundano. Aqueles, recolocam Deus no comando da sociedade; estes, insistem na forma atual, problemática como bem podemos observar. Que os fundamentalistas assim o façam, não deve causar espanto. Agora, que os progressistas estejam estagnados na ladainha democrática merece uma crítica contundente, afinal, caberia a eles, que defendem o progresso, não permanecerem beatos do já existente para então realizarem de fato o progresso; trazerem o novo, o melhor; em suma, materializarem a evolução.

Os progressistas deveriam criticar a si mesmos, pelo menos tanto quanto criticam os reacionários. Defendendo cega e ingenuamente a democracia, apenas colocam o seu “deus fundamental” para se digladiar com o “deus fundamental dos seus oponentes, e a arena política, por consequência, resta absolutamente fundamentalista. Se os progressistas deixassem de demonizar os ídolos dos reacionários para, em vez disso, trazerem ao mundo não o velho e desgastado deus democrático, que no atual estado das coisas todos deveríamos rejeitar, mas sim uma nova e melhor forma para a realmente resolver o que é mais crítico na nossa sociedade mundana, talvez os deuses dos fundamentalistas caíssem mais facilmente de seus falsos pedestais. Porém, enquanto os progressistas não fazem bem esse seu trabalho de reificar o progresso, os reacionários fazem o deles, notoriamente miserável e velho. E tanto pior para todos.

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A liberdade é um partido!

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Com a modernidade surgiu a ideia de que a história da humanidade é a história da liberdade, mais especificamente, da conquista da liberdade pelo ser humano. No entanto, quando falamos, e até mesmo lutamos por “liberdade”, porventura sabemos o que é esse objeto? Na pós-modernidade não é difícil encontrar quem diga que sim, que cada um conhece a liberdade, afinal, cada sujeito tem ideia do que, para si, a liberdade significa. Todavia, se cada indivíduo tiver o próprio ideal de liberdade, como se se tratasse de uma mera percepção subjetiva e singular, como poderíamos lutar conjunta e objetivamente por uma liberdade que valha igualmente para todos, e, assim, darmos continuidade à história que é a nossa?

Qualquer luta conjunta que pretenda alguma eficiência exige, em primeiro lugar, que haja um acordo em relação ao objeto pelo qual se luta. Mais ainda: um verdadeiro conhecimento desse objeto. E não é demais lembrar que a palavra “conhecer”, do Latim cognoscere, é a composição de “com”, que significa “junto”, mais gnoscere, que significa “saber”. Para a luta pela liberdade ser encampada eficaz e coletivamente, portanto, devemos saber juntos o que liberdade significa, em detrimento de ideias particulares, criticamente atomizados. Nesse urgente sentido, mobilizo aqui as duas concepções quiçá as mais contundentes, na nossa Idade, sobre a liberdade: a burguesa e a socialista.

Para os burgueses, liberdade significa o não impedimento dos indivíduos em seus propósitos particulares. Classicamente, a burguesia lutou para se ver livre dos impedimentos do Estado absolutista e da Igreja. Porém, não tinha por fim a liberdade enquanto tal. Apenas defendeu as “liberdades individuais” estrategicamente, fazendo delas meios para alcançar o fim propriamente burguês: dominar economicamente a sociedade. Já para os socialistas, liberdade significa mais do que apenas não ser impedido de realizar o que se busca. Precisa também ser o poder para os indivíduos materializarem os próprios objetivos. A liberdade burguesa enquanto não impedimento decerto é necessária para, enfim, os indivíduos terem a liberdade socialista de poderem realizar o que querem. Todavia, do ponto de vista socialista, a liberdade burguesa é apenas metade do caminho.

Aqui já podemos ver a importante diferença entre a liberdade burguesa e a liberdade socialista: a primeira significando apenas o não impedimento dos indivíduos por poderes extrínsecos a eles; e a segunda, exigindo que ao desimpedimento burguês seja necessariamente adicionado o poder necessário para que os indivíduos se realizem. Verdade seja dita, as liberdades individuais burguesas foram de valor inestimável para a humanidade: introduziram na tal história da liberdade o desimpedimento dos indivíduos em relação aos intransponíveis vínculos tradicionais do passado. O grande problema delas, entrementes, é que, apesar de boas, não são acessíveis a todos. Sãolibertárias apenas formalmente, e não real ematerialmente.

Só mesmo para um sujeito burguês privilegiado as liberdades individuais significam, ao mesmo tempo, desimpedimento e poder. Já para a imensa maioria das pessoas, que das liberdades individuais burguesas só colhem a migalha formal do desimpedimento, mas não o bife material do poder, para estes, enfim, as liberdades burguesas são tão distantes quanto opressivas. Essa opressão, no entanto, foi o preço sócio-histórico, pago pela maioria das pessoas, pela aventura burguesa de criar e salvaguardar (mediante instituições sólidas) as tais liberdades individuais, que, imediatamente, são inegavelmente boas aos indivíduos e, mediatamente, um passo evolutivo na história da liberdade humana.

Por isso os socialistas não rejeitam as liberdades burguesas, como ingenuamente se poderia pensar. Na verdade, levam-nas muito a sério, quiçá mais do que os próprios burgueses, pois, afinal, tentam fazer com essas liberdades o que o próprio liberalismo burguês não conseguiu, ou não quis fazer. De um lado, os socialistas afirmam que a liberdade enquanto desimpedimento é uma liberdade negativa, meramente formal, e mais importante, que a liberdade real não pode prescindir de poder. De outro lado, defendem a ideia de que o poder deve dizer respeito a todos e à humanidade como um todo, pois só assim os indivíduos serão igualmente livres e a história da humanidade enquanto história da liberdade poderá passar ao seu próximo capítulo.

Com efeito, mobilizando a visão marxiana clássica segundo a qual, do escravismo antigo à servidão medieval, e desta ao capitalismo moderno, o que temos é um processo histórico de libertação humana, o próximo passo que o filósofo previu para a humanidade, o socialismo, não poderia deixar de representar mais liberdade. De modo que o socialismo é o modo de as valorosas liberdades burguesas serem um bem não apenas para poucos (os dominantes), mas para todos, igualitariamente.

Fazer com que todas as pessoas sejam igualmente livres no sentido socialista do termo, ou seja, igualmente desimpedidas e empoderadas, deve ser o próximo passo na história humana da liberdade. Como vimos, a liberdade burguesa, por importante que seja, contudo, não tem condições de democratizar as benesses libertárias que trouxe ao mundo. Evoluir, dentre as opções de que estamos tratando, é investir na liberdade socialista: a liberdade que só se reconhece enquanto tal quando a sociedade como um todo a possui; como desimpedimento e como no poder.

Quem pagará o preço de a liberdade deixar de ser desigualmente particularizada para ser igualitariamente socializada? Essa pergunta permite ver que o ônus da mudança em questão recairá somente sobre a minoria burguesa privilegiada, cuja liberdade é, e no sentido socialista do termo, tanto a de desimpedimento quanto a de poder. Já à maioria desprivilegiada das pessoas, a mudança outra coisa não representará que o bônus do empoderamento material ao praticamente inócuo desimpedimento formal.

O próximo passo humano, no que tange à liberdade, precisa impedir essa minoria burguesa de possuir privilegiadamente o que a maioria desprivilegiada não possui: o poder material para efetivar a sua liberdade. É preciso confrontar socialistamente a burguesia assim como, outrora, elao fez comos poderes tradicionais que lhe impediam. A liberdade material e igualitária dos socialistas, portanto, deve superar a liberdade formal e particularista dos burgues assim como estes superaram a rede de rígidos privilégios medievais que impediam o modo burguês de produção de ter lugar no mundo.

Quando se pressupõe que história da humanidade é a história de sua liberdade, e, além disso, que esta é uma história na qual cada forma socioeconômica representa um passo no sentido da liberdade comparativamente à anterior, o aumento de nossa liberdade depende exclusivamente de que não paremos de caminhar. E o percurso à maior liberdade depende, hoje, de superarmos o particularista paradigma burguês de liberdade e de avançarmos para o igualitarista paradigma socialista de liberdade. E a tarefa pode ser mais fácil do que imaginamos, visto que não estamos falando de uma revolução, mas de simples evolução: da boa, mas desigualitária liberdade burguesa, à melhor, porque igualitária liberdade socialista.

A liberdade, como podemos ver, além de uma questão histórica, coloca-se como uma questão de partido, mais especificamente, de se tomar um partido em relação a ela. Nossas opções, no atual momento histórico, resumem-se a duas – e não na miríade de versões particulares e subjetivas, como insistiria o pós-modernóide. Pode-se tomar o partido dos burgueses e aceitar que a liberdade é boa e válida mesmo que seja para uns poucos – se bem que tomar este partido e não tomar nenhum acabam sendo a mesma decisão, visto que o paradigma burguês da liberdade é dominante. Pode-se em troca, tomar o partido dos socialistas, para os quais só existe liberdade quando todos forem igualmente lives. Leia-se: todos igualmente desimpedidos e empoderados.

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Nada contra a arte. Tudo à liberdade.

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Foto: Rafael Silva. Manifestação contra o cancelamento da Mostra Queer. Porto Alegre.

O cancelamento da Mostra Queer pelo Banco Santander, devido à pressão do Movimento Brasil Livre (MBL), traz uma questão que envolve arte e liberdade. Porém, as manifestações contrárias ao acontecido ainda são vulgares a ponto de colocarem a questão da arte e a questão da liberdade em um mesmo patamar, ou, o que é mais grave, de priorizarem a ofensa à arte em detrimento da afronta à liberdade. Mais do que não resolver o problema, sobrelevar a arte em relação à liberdade faz com que essa própria irresolução sirva (siga servindo) às forças reacionárias; ao próprio MBL. Por quê?

Em primeiro lugar, porque evitar tratar o autoritarismo do MBL apenas como uma censura artística, estética, mas, centralmente, como uma questão ética referente à liberdade enquanto tal, enfim, fazer isso permite apontar a contradição quiçá mais escandalosa desse vil inimigo: confrontá-lo com o fato de que, de um lado, ele se autodenomina liberal, ou seja, defensor das liberdades individuais, mas, de outro lado, furta, assumida e despoticamente, a liberdade tanto dos artistas quanto do público que quer fruir da arte deles. Focalizar na questão da liberdade permite metralhá-los com a crua verdade que lhes cabe: são nada além de conservadores; mais ainda, covardes, pois se disfarçam de não-conservadores mentindo que são “liberais”.

Se os integrantes do MBL realmente acreditam que são liberais, isso só pode se dar porque fazem uma confusão que, infelizmente, é muito comum: identificam totalmente os valores liberais com os valores burgueses. Porém, estes valores são e devem ser distinguidos. De uma parte, porque a burguesia não inventou a liberdade. Apenas precisou dela para alcançar seus propósitos capitalistas. A partir da modernidade os burgueses foram apenas mais uns a fazerem isso. Ademais, distinguir valores liberais de valores burgueses permite reconhecer mais claramente os burgueses que odeiam a liberdade. E há vários deles a serem reconhecidos… Se não o próprio MBL, sem dúvida o poder que o patrocina.

Razão mais importante para levar a discussão sobre o cancelamento da Mostra Queer do campo da arte censurada para o da liberdade ceifada é o fato de a liberdade ser a própria condição da vida civilizada e de todo progresso humano. Diante dela as demais coisas são e devem ser secundárias, inclusive a arte. Só havendo liberdade é que poderá haver arte livre – ciência livre, sexo livre, etc. Não seria absurdo, sem dizer ofensivo, uma arte livre em um mundo opressor? E quão abominável seria aquele que defende a liberdade da arte mas não luta com mais esforço pela liberdade enquanto tal? Só focando mais no valor da liberdade do que no da arte é possível levar o debate para um plano mais universal e efetivo.

Os verdadeiros liberais – não os do MBL, obviamente – sabem que a liberdade é um bem para a arte. E isso porque a liberdade é um bem para qualquer coisa humana. Agora, dizer o contrário, ou seja, que “a arte é um bem para a liberdade”, isso pode ser refutado apenas lembrando-se de que governos totalistas, como o nazista alemão e o comunista soviético, que usaram também a arte como ferramenta de poder, produziram tudo menos liberdade. Só se dá um verdadeiro primeiro passo para compreender e superar casos como o da mostra cancelada pelo Santander quando se deixa a esfera artística, estética, e se passa para a ética, colocando a liberdade como sumo valor humano a ser defendido.

Para mostrar que a liberdade importa mais que a arte, basta lembrar daquela máxima: “os maiores valores são aqueles pelos quais se está disposto a morrer”. Será que alguém, algum artista está disposto a morrer pela arte? Acho que não… Não se arrisca a própria vida por coisas que não valham tanto a pena. E não se arrisca a própria vida pela arte porque ela não é o valor último da humanidade, mas apenas um valor instrumental que, sem dúvida, colabora na obtenção, agora sim, do bem maior que a humanidade pode desejar: a liberdade.

Todos que são contrários ao mentirosamente liberais do MBL têm a obrigação de ser radicalmente liberais – todavia, sem serem burgueses! -, e por dois motivos. O primeiro, para deixar claro, por comparação forçada, que o MBL é absolutamente conservador. O segundo, de suma importância, porque defender a liberdade é lutar em prol do valor supremo da humanidade. Defender a liberdade da arte para o bem da própria arte é fazer metade do trabalho; é ser parcialmente humano apenas. Já aquele que defende a liberdade da arte para que a liberdade humana não seja comprometida, esse sabe o que é instrumentalizar o seu mundo em favor do que mais importa.

No caso Santander/MBL, muito antes da arte enquanto tal e das particulares obras de arte que foram censuradas, foi a liberdade que foi constrangida. Novamente: o problema não é estético, mas ético-político. A afirmação mais contundente, portanto, não é: “a arte deve livre”; mas sim: “deve haver liberdade, incondicionalmente”; pois havendo liberdade, fazer com que a arte seja livre é passo menor e mais fácil. Por isso, todo esforço sério contra autoritarismos como o do Santander/MBL deve se ater à questão da liberdade, apenas lembrada pela questão da arte censurada da Mostra Queer. Nada contra a arte. Mas tudo a favor da liberdade.

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Não pronuncie “fascismo” em vão!

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Os predicados “fascista” e “fascismo” estão, como se diz, “em bocas de Matilde”, sendo usados vulgar e indiscriminadamente a ponto de pretenderem significar coisas absolutamente opostas. Deve causar espanto o fato de progressistas e reacionários ambos estarem chamando uns aos outros de fascistas. Os primeiros querendo apontar autoritarismos, despotismos; os segundos, mais ignorantes, crendo e repetindo que “o fascismo é produto da esquerda”, e que, portanto, comunista e fascista são sinônimos. As duas partes, infelizmente, estão fazendo uso errado do conceito. Não à toa a dicotomia tupiniquim não está se resolvendo, mas, em vez disso, agudizando-se.

Diante dessa bagunça semântica, acredito serem duas as atitudes mais urgentes e prudentes a serem tomadas. Em primeiro lugar: recuperar e respeitar o significado inequívoco de “fascismo”. Afinal, uma relação civilizada começa e subsiste com a concordância em respeito às palavras e o que elas significam no mundo real. E, em segundo lugar, uma vez que “sábios” e idiotas não concordam mais sobre o que significa “fascismo”, mostrar que não se é idiota começa por saber o que é a coisa nomeada pela palavra em questão e só usá-la para se referir a essa coisa. Melhor ainda, porém não mais fácil, é dispensar totalmente a própria palavra “fascismo” e descrever mediante outras palavras e conceitos menos equívocos a realidade que queremos criticar. Por hora, mais sábio do que não usar a palavra “fascismo” em vão é dispensá-la absoluta e estrategicamente.

Slavoj Žižek, em seu “Alguém disse totalitarismo?”, critica Hannah Arendt pelo seu conceito de “totalitarismo”, acusando-a de cunhar um termo que, em vez de bem explicar uma determinada conjuntura sócio-histórica, ou mesmo um “novo” sistema de governo surgido no século XX, ao contrário, funciona até hoje como um “conceito tampão” que, no final das contas, impede-nos de conhecer aqueles eventos históricos singulares. Não tenho dúvida de que precisamos fazer contra a vulgarização do conceito de “fascismo” o mesmo que Žižek fez contra o de “totalitarismo”, de Arendt. Afinal, como podemos observar, hoje em dia, chamar alguém de fascista, ou um ato qualquer de fascismo, tornaram-se os atos vazios e covardes par excellence. Seja para se finalizar uma discussão – como as pseudopolíticas, nas redes sociais, onde já no terceiro ou mais tardar quinto comentário algo ou alguém é predicado de fascista e as discussões deixam de ser produtivas -, seja ainda para um único indivíduo encerrar o seu próprio pensamento – pois o contemporâneo fetiche da palavra “fascismo” está em iludir que tudo foi pensado, e que, portanto, só é preciso repetir a palavra. Mas aí podemos estar falando de papagaios inclusive.

Não pronunciar a palavra “fascismo” em vão, por exemplo, é significá-la inequivocamente ao radicalismo político autoritário e nacionalista que galgou poder no início do século XX na Europa, cuja origem jaz na Itália de Mussolini, e que teve lugar na Alemanha de Hitler, na Espanha de Franco, na França de Vicky, entre outras. Caso tenhamos a prudência de nos limitarmos a dizer, por exemplo, que “fascista” é aquele que coloca os conceitos de nação e raça sobre os valores individuais, como aconteceu na Itália e a Alemanha da primeira metade do século passado, só aí, então, seremos civilizados a ponto de sermos compreendidos, digamos assim, mais universalmente, pois até mesmo o intelectual mais progressista e o idiota mais reacionário são capazes de concordar tal formulação.

A confusão em torno da palavra “fascista”, contudo, começa quando se quer fazê-la significar coisas no mundo real que, porém, já tem seus nomes acordados; seus conceitos mais e melhor universalizados. Por exemplo, tornou-se banal chamar de fascistas pessoas que cometeram meros – todavia não menos criticáveis – atos machistas, racistas, e até mesmo moral, política e economicamente ilícitos. O preço dessa banalidade é, de um lado, colocar dentro do guarda-chuva semântico do “fascismo” coisas que ele não tem dever algum de nomear, e, de outro lado, deixar de dar o nome certo ao boi que estamos criticando e que merece uma crítica e um nome certeiros, oxalá mortais. No exemplo do machista que é chamado de fascista, ao mesmo tempo ele é chamado de algo que ele não é, sem dizer que deixa-se de criticá-lo usando o(s) predicado(s) que realmente lhe cabe(m). Analogamente, é como esquecer, perdoar o crime do criminoso atribuindo-lhe um outro crime. Como podemos ver, o atual e indevido uso do conceito fascismo implica injustiça.

(Obviamente!) Não se trata de deixar de pensar, de falar da nossa crísica realidade e da sorte de autoritarismos que nos acossam e que apenas se parecem com o real fascism. Trata-se apenas de não chamar o nosso momento sócio-político-histórico – que só por este ou aquele “parentesco” lembra a Itália de Mussolini ou da Alemanha de Hitler – de fascista. Seja para não banalizarmos as radicais e monstruosas experiências históricas do século XX – o que seria imediatamente imoral e eternamente desumano; seja sobretudo para não deixar de dar, aos nossos próprios bois historicamente determinados os seus nomes específicos em vez de aliená-los por trás de outros mais equívocos.

Evitar ser confundido com um idiota é saber que o fascismo encontrou sua razão de ser em nacionalismos e racialismos radicais, e que o “ismo” do poder que hoje se coloca enquanto regime é outro. Diz respeito ao capital globalizado, que, ao contrário dos fascismo, tem na transnacionalidade e na trans-racialidade combustíveis excelentes. Pouco importa se se é indiano, norte-americano ou chinês; branco, preto ou amarelo; basta ter dinheiro, aliás, bastante dele, e, como disse Žižek, pode-se frequentar quaisquer ambientes, colocar os filhos nas melhores escolas, e por aí vai.

A expressão “fascista” vem do latim fasces. Significava “cetro”, “cajado”, do tipo que os magistrados da Roma Antiga usavam para ostentar poder, afastar ou e até mesmo agredir a plebe. Tratava-se de um feixe, em italiano, de um fascio de varas finas, cada uma muito frágil, porém, quando unidas e amarradas firmemente se tornavam inquebráveis. Quando Mussolini implantou o seu famigerado regime autoritário, usou o antigo símbolo. Portanto, o uso generalizado do conceito de “fascismo” por progressistas e reacionários os coloca, saibam disso ou não, em um grande fascio, se não totalmente ignorante, certamente produtor de ignorância. Escapar dessa obscuridade, portanto, começa por recusar-se a usar a palavra “fascismo” para significar movimentos sociopolíticos que não estritamente os radicais da primeira metade do século XX.

Em respeito à presente ofensiva reacionária da nossa direita contra direitos e liberdades populares, nós temos muitos nomes prontos e inclusive mais pertinentes. Basta resistir ao “conceito tampão” mais fetichizado do momento e criticar o que se quer criticar mediante palavras que reacionários e progressistas entendam e concordem com o que significam no mundo. Só então o crítico e o criticado (o progressista e o reacionário, ou vice-versa) estarão em relação civilizada, devidamente palavreada. Só assim será possível, se não superar, ao menos entender melhor os antagonismos presentes.

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“Eu não sou o seu negro”, mas você é o meu monstro.

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Uma das muitas, profundas e verdadeiras frases do filme “Eu Não Sou o Seu Negro” (2016), do produtor Raoul Peck sobre o livro inacabado do romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta e crítico social afro-americano James Baldwin, e que é referida diretamente aos brancos racistas norte-americanos, diz que: “Vocês não podem me linchar e me manter em guetos sem se tornarem algo monstruoso”.

O predicado teratológico de Baldwin, no entanto, não pretendia traduzir algum ódio reativo à histórica violência branca contra os negros daquele país. Ele dizia com todas as letras que não odiava os brancos, pois não era racista. Sua “filosofia” ativista, na verdade, é muito mais uma exposição algo psicanalítica da ignorância e da bestialidade dos sobrinhos brancos do Tio Sam na busca desesperada deles pelo tal American Dream.

Baldwin não era tão pacífico quanto Martin Luther King, ou seja, não acreditava que era o amor o caminho para a conquista da igualdade entre as raças. Entretanto, também não era apólogo da violência como os Panteras Negras. Sua percepção do racismo nos EUA se apresentava em termos assaz marxistas. Baldwin dizia, por exemplo, que não era “negro”, mas simplesmente um homem. E que branco”, prossegue o ativista, “é apenas uma metáfora de poder; é simplesmente uma maneira de descrever o Chase Manhattan Bank”.

Para Baldwin, o racismo era fruto tanto da falta de paixão humana, quanto da excessiva preocupação com números, lucros, vantagens e privilégios de uma parcela – branca – da população em busca de segurança; de ter uma casa com uma cerca branca e de que os filhos pudessem cursar a universidade para, da mesma forma, terem suas casas com cercas brancas e seus filhos estudando em uma universidade. O “virtuoso” sonho americano, da perspectiva do ativista afro-americano, era um maldito círculo vicioso.

O racismo, na visão de Baldwin, era produto do mais desumano patrimonialismo, levado adiante por um povo convencido de sua própria ficção de felicidade. Na verdade, aprisionado por ela. E, prossegue o autor, era justamente a ignorância desses brancos em relação à sua escravidão diante de sua própria ficção que os levava a escravizar os negros; para que estes encarnassem a contradição que os brancos não tinham coragem para enxergar em si mesmos e no seu sonho americano.

A genialidade de Baldwin está em ter percebido que os negros, escravizados e violentados pelos brancos, materializavam extrinsecamente a escravidão e a violência nas quais os próprios brancos estavam imersos, fazendo com que os brancos, subjetivamente, prosseguissem acreditando que seus sonhos eram possíveis. Os brancos eram vistos por Baldwin mais como idiotas do que como indivíduos essencialmente maus. Todavia, tal idiotice os levava à bestialidade. Por isso ele os considerava monstros.

Para Baldwin, contudo, os brancos não desejavam ser monstros, mas qualquer um que, deliberada ou inadvertidamente, linchasse e segregasse um outro, seja por que razão fosse, não teria como deixar ser considerado como tal. A chave da revolução racial baldwiniana, aliás, dependia de os brancos compreenderem que quem faz com um outro o que eles fizeram – e ainda fazem! – com os negros não tem como ser outra coisa senão um monstro.

O primeiro homem na história a racionalizar a monstruosidade, isto é, a fazer uma teratologia, foi Aristóteles. Para o filósofo grego, “terathos”, ou seja, monstro, é aquele que não consegue realizar plenamente a sua própria natureza. Por exemplo: alguém que nascesse sem as pernas não realizaria algo da natureza humana: andar; da mesma forma, quem sofresse de alguma deficiência mental não conseguiria fazer o que, para Aristóteles, era o mais próprio do humano: pensar racionalmente. Para o maior gênio da Antiguidade, aquele que não pudesse realizar a potencialidade da natureza humana era um “terathos”.

Baldwin, ao predicar os brancos racistas de monstros, foi astutamente aristotélico. Para o ativista afro-americano, a monstruosidade dos seus conterrâneos violentadores estava no fato de não conseguirem realizar, atualizar em si mesmos, algo indispensável à humanidade, que, segundo Baldwin, era a paixão, ou seja, a capacidade de se apaixonar pelo outro – de outra cor – assim como por si próprios. E nessa carência, que se converte em ignorância, tratavam estes outros como números, como coisas, em suma, como meio de realizarem a sua nunca alcançada, nem tampouco alcançável, felicidade.

A teratologia de Aristóteles está presente em Baldwin quando este faz-nos ver que os racistas são monstruosos na medida em que não conseguem reconhecer o outro racial como igualmente humano. Os brancos violentadores e escravizadores de que fala o afro-americano ativista são bestas incapazes de conhecer o tamanho e a diversidade que é essa coisa chamada humanidade. Entretanto e infelizmente, o realismo de Baldwin – que se confunde com pessimismo – coloca o fim da violência racial dos brancos contra os negros na dependência de os brancos tomarem consciência de sua própria monstruosidade.

Se não é infeliz essa conclusão a de Baldwin, ao menos é ingênua. E isso porque o próprio American Dream, produzido pelos brancos e para os brancos, os impossibilita de tomar qualquer verdadeira consciência, seja do outro oprimido por eles, seja de si mesmos enquanto escravizados por sua própria ficção de felicidade. Baldwin, em “Eu Não Sou o Seu Negro”, apresenta, traumática e objetivamente, o histórico problema do racismo no EUA. Todavia e infelizmente, não propõe um meio para acabar com o vil poder que chama a si mesmo de “branco” sem depender imediatamente de uma – improvável – tomada de consciência desse mesmo vil poder.

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Viver sem trabalhar?

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De onde vem a utopia de um mundo no qual as máquinas produzem tudo sozinhas e as pessoas são livres e desocupadas para fazerem o que bem entender senão de um idealismo pequeno burguês alienado da materialidade do capitalismo? Ora, as máquinas não são dádivas da natureza, nem tampouco de algum deus para que os seres humanos sejam perdoados da maldição adâmica de viverem do próprio suor. Com efeito, são armas quiçá as mais objetivas do capital no sentido de possibilitar a obtenção de mais-valor, o objeto capitalista par excellence. As máquinas só passaram a existir, e cada vez mais são aperfeiçoadas e disseminadas worldwide para esse fim. Se não for assim, elas perdem o seu porquê. Como poderiam então prometer liberdade às pessoas?

Como Marx bem mostrou nO Capital, as máquinas existem para reduzir o investimento dos capitalistas em salários. Em suma, para desvalorizar o trabalho. O filósofo mostra que, na aurora do capitalismo, os patrões investiam metade do seu capital em meios de produção (matéria-prima, ferramentas, energia, instalações etc.) e metade em força de trabalho (salários). Com o advento da maquinaria, poucos séculos depois, o investimento em meios de produção era cerca de dez vezes maior do que em salários. As máquinas de fato desvalorizam o trabalho humano. Porém, como a história da miséria moderno-contemporânea comprova, não para valorizar o “livre viver” das pessoas, e sim para fazê-las aceitar salários cada vez menores e exploração cada vez mais maior.

De um lado, o capitalismo desvaloriza sistematicamente o trabalho humano através de crescentes investimentos em tecnologia em função de seu mais-valor. Todavia, de outro lado, o mais-valor é conseguido somente através da exploração do trabalho humano. Ao contrário do que vulgarmente se pensa, máquinas não têm como produzir mais-valor porque não têm como serem exploradas. Elas cobram pelo que produzem exatamente o que custam ao capitalista. Se uma máquina, por exemplo, custa $1 milhão, e ao longo de sua vida útil é capaz de produzir um milhão de sapatos, cada mercadoria individual cobrará exato $1 pelo investimento no meio de produção que é essa máquina. E assim com os demais meios de produção. A única possibilidade de o capitalista lucrar jaz na exploração do trabalho humano, pois só ele pode produzir, em mercadorias, muito mais valor do que custa ao capitalista.

O que a princípio parece ser uma contradição – a busca de mais-valor do capitalista mediante tecnologia que, por sua vez, dispensa a fonte de mais-valor, qual seja, o trabalho humano -, na verdade, é a sui generis estratégia capitalista de, mediante a desvalorização do trabalho, aumentar a exploração sobre esse trabalho desvalorizado. E a crescente massa de desempregados que esse processo gera, chamado de exército industrial de reserva, longe de ser produzido para que esse contingente desocupado se ocupe com o que lhe dá prazer, serve, ao contrário, para comprometê-lo ainda mais com as necessidades do capital. De modo que, em um mundo no qual as máquinas façam tudo, não haverá uma humanidade finalmente livre, mas uma absolutamente desempregada e inescapavelmente subjugada pelos donos das máquinas. Por essa razão, é burrice os trabalhadores utopizarem a substituição do trabalho humano pelas máquinas. Sem dizer que, de sua parte, o capitalismo, para quem o sumo objeto é o mais-valor obtido pelo trabalho humano, tampouco criará tal realidade.

Somente quando a força de trabalho é valorizada há motivo para os capitalistas investirem em tecnologia. Quando, ao contrário, o valor do trabalho cai, a tecnologia se torna cara demais para valer a pena. O geógrafo marxista David Harvey explica isso dizendo que, nos EUA, por exemplo, onde o valor da força de trabalho é alto, é feito de tudo para que o trabalhador seja substituído pela tecnologia com o objetivo de baixar o valor dos salários. Já na China, prossegue Harvey, onde o valor do trabalho é baixíssimo, é mais vantajoso utilizar milhares de trabalhadores produzindo mercadorias com ferramentas manuais do que investir em maquinário tecnológico.

Temos, portanto, uma gangorra na qual, em uma extremidade, está o trabalho humano, e, na outra, a tecnologia, sendo que a subida de uma às custas da descida de outra se dá em função de um centro fixo: o mais-valor. Quando o valor da força de trabalho está em alta, o mais-valor força a sua baixa, elevando a tecnologia. Quando, porém, a tecnologia está em alta e o trabalho em baixa, o mais-valor central percebe que vale mais a pena voltar a usar a força de trabalho desvalorizada e não a tecnologia supervalorizada. Então a gangorra se inverte. E assim sucessivamente, numa dialética infindável que, entretanto, em todos os casos, atende aos interesses do capital tanto quanto é estabelecida por ele. A utopia da libertação definitiva da humanidade mediante a substituição total do trabalho humano pelo das máquinas, da perspectiva do capital, na verdade, é absolutamente distópica.

Do ponto de vista dos trabalhadores, a utopia de viver sem precisar trabalhar deve ser encarada pelo o que é: um ingênuo sintoma causado pelo insuportável e exploratório modo de trabalho imposto pelo capital, e de modo algum como a percepção iluminada de que o trabalho enquanto tal não tem valor e que, portanto, deve ser substituído pela máquina. Aliás, os trabalhadores não percebem a armadilha capitalista na qual caem ao desvalorizarem, eles mesmos, o trabalho, a única fonte material de valor que existe e que jaz em suas mãos. Sonhar com o fim do trabalho humano, com efeito, é realidade sempiterna do capitalismo. Portanto, todo aquele que quiser contribuir com a superação desse vil sistema econômico deve, ao contrário, valorizar cada vez mais o trabalho humano; colocá-lo no centro nevrálgico da vida social; e não colocar a máquina, que é invenção e propriedade dos capitalistas, nesse lugar. A utopia da vida sem trabalho, mais do que ao capital, é distópica sobretudo às pessoas.

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O Conto da Karoshinha Capitalista

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Karoshi, na contemporânea cultura nipônica, significa morrer por excesso de trabalho. Desde 1960 há uma epidemia de japoneses que adoecem terminantemente ou simplesmente se suicidam encurralados pelas demandas de um capitalismo absolutamente desumanizado aliado a uma cultura de disciplina férrea cuja tradição prega que um trabalhador que chega no serviço depois do chefe ou dos colegas, ou sai antes deles, é mal visto e deve ser descartado para dar lugar a alguém que “realmente” honre a empresa. Um lema para o karoshi seria algo como: “Empresa ou morte!”

No Brasil as pessoas não se matam por excesso de trabalho. Bem mais comum, aliás, é o brazuka morrer ou se matar por falta de trabalho. Todavia, as bases para um karoshi tupiniquim foram lançadas pelo primeiro lema do atual governo golpista: “Não pense em crise, trabalhe”. Com o agravamento da crise, contudo, já estamos na fase do: “Não pense em mais nada, apenas trabalhe muito”. E só mesmo muito otimismo ou alienação para não crer que, em breve, seremos cativos da mínima tautológica: “Trabalhe, trabalhe”.

“O trabalho dignifica o homem” é a sui generis mensagem do cristianismo. Todavia, na era pré-capitalista na qual nasceu tal ideia, “capital” era Deus. “O Homem” a ser dignificado pelo trabalho, portanto, era tão somente Ele. Entretanto, a dignificação de Deus mediante o trabalho humano resultava em dignidade humana, pois trabalhar em prol da obra de Deus, o mundo, aumentava a graça divina e, consequentemente, os homens eram agraciados, dignificados através da dignificação dO Homem.

Já na nossa era capitalista, demasiada capitalista, “capital” é só mesmo o capital. Ele é “O Ser Supremo” a ser dignificado pelo trabalho dos homens, mesmo ao custo de toda a dignidade mundana. Ao contrário de Deus, que dignificado pelo trabalho humano agraciava os homens, o capital só faz acumular para si a mais-graça que recebe dos seusb trabalhadores. E não há limite para essa vil liturgia capitalista. Se há, arriscamos dizer que são dois: o Karoshi, a morte dos homens por excesso de trabalho, ou o que é pior, a destruição total do planeta Terra por excesso de capitalismo.

Marx nos fez ver de modo científico que apenas metade de uma jornada de trabalho serve às necessidades do trabalhador. A outra metade existe para gerar mais-valia ao capitalista. Aliás, tudo o que este mais quer daquele jaz nessa segunda metade de jornada explorada! O fato de hoje nós, brasileiros, trabalharmos de janeiro a junho para pagar impostos, e só de julho a dezembro para nós mesmos só reforça a tese de que metade do nosso trabalho é para a benesse de outrem.

Claro, a sagaz ideologia capitalista oblitera sistemática e exitosamente o furto do nosso trabalho e da nossa dignidade, e de modo tão sistemático e exitoso quanto acumula capital. De nossa parte laborante, esperamos que, trabalhando arduamente, obteremos conforto e segurança. Todavia, nesse mundo só há espaço para tal labuta esperançosa porque assim é melhor para o capital, e tão somente para ele. Afinal, metade do nosso trabalho é imediatamente furtado pelo capital enquanto trabalhamos para ele, e a outra metade, aquela que trabalhamos para nós mesmos, é mediatamente furtada ao compramos nossos confortos e segurança dele.

Somos sistematicamente enganados pelo “Conto da Carochinha” capitalista. Roubados em metade do nosso trabalho pelo capital, e devolvendo a ele, aos preços que ele estabelece, a outra metade que ele justamente nos paga, para nós o jogo é um eterno perde-perde. Já para o capital, o jogo é apenas ganha-ganha. E isso é tão verdade que, como os japoneses comprovam de maneira sintomática e epidêmica, os trabalhadores cada vez mais perdem-perdem inclusive as suas vidas para o ganha-ganha do capital.

Sequer pensar na Revolução, mas, antes de tudo, matar a si mesmo em desistência plena diante da ameaça inimiga faz do karoshi nipônico a derradeira e mais vil “mercadoria” produzida pela mentira, pela ideologia, pelo “Conto da Carochinha” do capital. Trabalhar até morrer; morrer por causa do trabalho; não ser humanamente digno da “empresa”; tudo isso é o “Conto da Karoshinha” capitalista insistido worldwide para enterrar uma verdade tão real quanto simbólica, qual seja, a de que o trabalho foi feito para o homem, mas não o homem para o trabalho.

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Crítica da política

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Por que a política ainda promete ser o meio de luta contra os interesses espúrios do capital se é ele, o próprio capital, que sempre vence na arena política todas as batalhas que enfrenta? Está certo que a política é bem mais antiga que o capitalismo, entretanto, desde que este sistema econômico colonizou o mundo, também a política passou a servi-lo subservientemente. Não seria o caso então de realizarmos que a promessa de libertação social via política é apenas mais uma, quiçá a mais sagaz mentira do capital no sentido de mais-dominar?

Karl Marx foi contundente em criticar a política enquanto instrumento revolucionário, apontando que, na verdade, ela é o meio sempre presente de o passado, isto é, a dominação da maioria pela minoria – da totalidade pela parcialidade – prosseguir futuro adentro. A revolução em Marx não se dá apenas com a superação do Estado, mas também com a da política enquanto tal. Para o filósofo alemão, agir no interior de formas políticas pertence à velha sociedade, à sociedade na qual a dominação de uns poucos sobre a maioria é regra.

É imperativo sair da perspectiva meramente política para poder ser verdadeiramente crítico em relação à dominação do capital sobre a sociedade segundo Marx. E isso porque ele anteviu de modo muito profundo que a dominação do capital se dá, imediatamente, por via econômica, e não política. A política, em troca, é o meio, o modo mediato de o capital dar continuidade à sua dominação econômica. Ser fiel à Marx, portanto, significa crer, como ele, que a dominação do capital não tem como ser totalmente destruída no nível político. A política, na verdade, é o bunker social do capital.

Embora a política sirva imediatamente o inimigo capital da sociedade, ela ainda é, contudo, o ringue onde interesses sociais e interesses econômicos se digladiam; uma arena relacional na qual sociedade e capital mantém ao menos uma linguagem em comum, ainda que de modo assimétrico, pois, politicamente falando, trata-se de um diálogo no qual a sociedade, de seu lado, externa sinceramente suas demandas diante do vilipêndio capitalista, ao passo que o capital, ao contrário, é sistematicamente parlapatão em fingir que ouve a sociedade e que moderará o seu ímpeto acumulador em função de algum bem-estar social.

Entretanto, por ainda ser o nível no qual sociedade e capital se comunicam – mesmo que este sempre vença as discussões -, Marx apontava uma dimensão subversiva da política contra o capital: a sua potencialidade negativa. Para o filósofo, a política é adequada para realizar as funções destrutivas da transformação social. Marx não tinha dúvida de que, nas mãos da sociedade, a política pode ser instrumento de crítica no sentido de minar a dominante ideologia capitalista. Também sabia, contudo, que enquanto a sociedade permanecer apenas no âmbito político o seu inimigo capitalista permanece livre e dominante na sua esfera excelente: a economia.

Como o domínio da parcialidade sobre a totalidade é produzido economicamente e mantido politicamente, enquanto age somente politicamente a sociedade permanece no campo de conforto do inimigo. A vitória da totalidade sobre a parcialidade, embora deva começar politica e destrutivamente, só se finalizará, contudo, se depois da destruição for abandonada a esfera política e iniciada uma construção econômica alternativa. A revolução se dará apenas quando os indivíduos sociais operarem econômica e diretamente uns com os outros distantes da liturgia com que o capital segue intermediando vitoriosamente todas as relações humanas.

A verdadeira revolução nunca será simplesmente uma revolução política. Antes de tudo, deve ser uma revolução social que ultrapasse os limites do sistema político que perpetua a exploração econômica capitalista. E isso porque a virtude das revoluções sociais está em minar a contradição entre a parcialidade e a totalidade. Já as revoluções meramente políticas apenas reproduzem a velha hierarquia da parcialidade sobre a totalidade, pois a política, desde que foi usucapida pelo capital, outra coisa não é senão a subjugação das necessidades da totalidade aos arbítrios da parcialidade.

Se para Marx uma revolução social restrita à política é um absurdo, um primeiro passo político, desde que negativo, na medida em que há a necessidade da destruição das formas vigentes, é fundamental. No entanto, tão logo o TNT político da totalidade cause as primeiras rachaduras no bunker da parcialidade, a totalidade deve desinvestir do expediente político e investir no econômico, preenchendo essas rachaduras com novas relações socioeconômicas até que o edifício minado rua por completo.

Essa revolução socioeconômica será a maior transformação positiva da história, na qual a política, contudo, tem a contribuir apenas com sua negatividade imediata e destrutiva. O que Marx ainda tem a nos ensinar é que negligenciar a dimensão socioeconômica e priorizar a dimensão política impossibilita a revolução que fará a parcialidade ser derrotada e absorvida pela totalidade porque tira da política o seu mais revolucionário fim, qual seja: ser apenas o meio de se iniciar a destruição do capital, do Estado e inclusive de si própria.

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Estado de mal-estar capital

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Efêmero e tenso ponto de equilíbrio entre as necessidades básicas das pessoas e os imperiosos interesses do capital encontrado no século XX, o Estado de bem-estar social foi a garantia de serviços públicos e proteção à população mediante a organização da economia; algo como uma visível luva social que vestiu a invisível, porém sempre larápia, mão capitalista. Todavia, nesse início de século XXI, já sentimos na carne que o bem-estar deixou de ser prioridade do Estado, que voltou a ser apenas aquilo que Marx bem disse no Manifesto Comunista: “o comitê executivo da burguesia”.

Por degradar sistematicamente as condições de vida daqueles que lhes vendem força de trabalho, o capitalismo da Belle Époque viu a classe trabalhadora se organizar ameaçadoramente. Porém, pelo fato de não viver sem os trabalhadores – pois é deles que extrai a sua mais-valia – o ímpeto capitalista teve de se refrear. Sem dizer da então presente experiência socialista soviética do início do século XX que obrigou o capitalismo a ao menos fingir que sobre a face da terra havia também as necessidades das pessoas. Do contrário, todas elas poderiam, digamos assim, optar pelo outro sistema econômico que, segundo Marx, superaria(rá) o capitalismo.

Portanto, durante um estratégico período o capital aceitou comprometer parte de seus ganhos com a sociedade que, não obstante, nunca deixou de explorar. O Estado de bem-estar, social cujo apogeu se deu nas décadas de 1960 e 1970 na Europa, com efeito, foi patrocinado pelo capital para que os trabalhadores tivessem o mínimo suficiente para não se revoltarem nem pensarem em Revolução. Com o oferecimento de saúde, educação e segurança públicas mais um punhado de seguridades sociais o capital anestesiou as massas exploradas da dor que provoca nelas.

Como, contudo, a lógica capitalista não pode se privar de aumentar incessantemente a exploração sobre a vida, o Estado de bem-estar social não tinha como durar. Os grandes e decisivos ataques contra o bem-estar social foram cometidos na década de 1980 por Margaret Thatcher e Ronald Reagan. A destruição violenta das organizações e dos direitos trabalhistas, árdua e historicamente conquistados, permitiu que a vida voltasse a ser escravizada pelo capital. O velho liberalismo, de roupa nova, agora neoliberalismo, reconduziu o Estado à sua prévia condição de bureau da burguesia.

O que vemos no Brasil desde o golpe de Estado de 2016 outra coisa não é que o carnaval macabro do neoliberalismo, que para não tolher em nada a sede de lucro do capital destrói, rápida e certeiramente, o público em benefício do privado. As atuais reformas trabalhista e da Previdência, desenhadas golpisticamente para os empresários comprometerem cada vez menos as suas mais-valias com aqueles que as produzem; a drástica redução de investimento público em segurança, saúde e educação, expressa no aumento da criminalidade, das filas do SUS e do sucateamento do sistema de ensino público; tudo isso e muito mais é o fim do Estado de bem-estar social tupiniquim que mal e porcamente foi rabiscado na terra brasilis.

Depois do curto recreio chamado Estrado de bem-estar social que tivemos no curso histórico do capitalismo, estamos de volta à rígida e degradante disciplina de um mundo no qual a economia, para usar a ideia do filósofo alemão Robert Kurz, vence a vida. A destruição neoliberal de quaisquer organizações capazes de fazer frente aos interesses espúrios do capital; a vitoriosa ideologia da classe média, que faz a classe dominada se esquecer de sua real condição e perder sua força revolucionária; enfim, o Estado violentamente usucapido pela classe dominante finalmente reifica o vertical projeto capitalista de um “Estado de mal-estar capital” – sendo que esse mal-estar, obviamente, recai sobre todos aqueles que, com suas próprias vidas, produzem o bem-estar e o mais-valor do capital.

Por mais que o social esteja derrotado pelo capital, não podemos esquecer que no passado a consciência da classe trabalhadora, as grandes greves e o fantasma socialista foram as forças reais que obrigaram o capital a se conter e a devolver à sociedade pelo menos algo daquilo que dela furtava. Contra o Estado de mal-estar capital que se erige, a classe dominada podem muito bem repetir aqueles passos: reconhecendo-se como tal, e não como classe média; lembrando a classe dominante, através de grandes greves, que ela não é nada sem aqueles de quem compra a força de trabalho; e, por fim, mantendo o socialismo no horizonte, se não como realidade, ao menos como ideia ameaçadora.

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Evasões ideológicas flagrantes

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Cuidado com os conceitos! Enquanto unidades semânticas que funcionam como unidades de conhecimento, os conceitos são vias preconcebidas seguras ao pensamento. Algo como pedras da superfície de um rio sobre as quais pisamos para atravessá-lo sem nos afogarmos nas corredeiras da reflexão. Contudo, enquanto representações gerais e abstratas preconcebidas, os conceitos são presença duplamente problemática: analogicamente, do genérico/abstrato no específico/concreto; e, em segundo lugar, anacronicamente, do passado no presente. Por isso temos de atentar aos descaminhos a que os conceitos podem levar o pensamento. E essa atenção deve vir em forma de crítica constante.

Deleuze dizia que filosofar é produzir conceitos. Dessa perspectiva, no momentum de sua produção pelo filósofo, um conceito corre risco de ser absolutamente pertinente à realidade que pretende fazer conhecer. Entretanto, depois de “manufaturados”, o vício dos conceitos é se hipostasiarem enquanto explicações universais atemporais que precisam, necessariamente, abstrair as particularidades daquilo que conceituam para manterem suas preestabelecidas validades universais. E, nesse sentido, os conceitos se tornam barreiras ao pensamento.

Slavoj Žižek, no seu “Alguém disse Totalitarismo?”, critica a célebre conceituação de Hannah Arendt a respeito do Totalitarismo, acusando-o de ser um conceito-tampão que, aplicado aos diversos casos históricos de Estados autoritários/tirânicos – inclusive os clássicos do início do século XX -, na verdade nos impede de conhecê-los em suas particularidades. Para este filósofo, o conceito arendtiano de Totalitarismo é um tipo de “tapa-buraco” que em vez de forçar o pensamento a adquirir uma nova visão sobre a realidade histórica, na verdade, “desobriga-nos de pensar, ou nos impede ativamente de pensar”.

Já o filósofo Baptiste Noël critica o vulgar e hodierno uso do conceito de “fascismo”, dizendo que estarmos nos valendo indiscriminadamente desse conceito – que na verdade aponta uma experiência histórica específica – outra coisa não é que nos alienarmos do fato de que os radicalismos atuais que nos afrontam não são sorrateiras ervas-daninha fascistas, mas vermelhas maçãs polpudas da “nossa” tão defendida democracia liberal. Para Noël, chamar vulgarmente alguns dos nossos políticos ultraconservadores e interlocutores desagradáveis de fascistas é apenas “desconversar”. Em suma, é dar um apelido novo a um velho e conhecido boi – sendo que o velho boi é a democracia liberal, e o novo apelido, o fascismo.

Também o filósofo István Mézáros critica a ilustre máxima weberiana segundo a qual “O Estado detém o monopólio da violência”, dizendo que se trata de “uma evasão ideológica flagrante”, sustentada para borrar o fato de que o mais grave a ser pensado, e que, no entanto fica, esquecido, “é a ilegalidade do Estado – mesmo quando essa não se manifesta de modo violento”. Para Mézáros, a violência do Estado “deve ser objeto de séria investigação histórica, em vez de ofuscar o assunto com a identificação genérica do Estado com o seu decretado monopólio da violência”.

O que estes três exemplos de crítica a três conceitos determinados apontam é que os conceitos, embora se coloquem como unidades de conhecimento, podem ser vórtices de obscurantismo. A pergunta que se coloca aqui, portanto, é a seguinte: qual a distância segura, nomeadamente crítica, que devemos tomar dos conceitos, visto que, de um lado, são de fato vias ao pensamento, mas, de outro, condenam o pensamento ao já pensado, e, consequentemente, ao não-pensar? E suma, como jogar fora a água suja (a alienação a que os conceitos nos levam) sem jogar o junto bebê limpo (a possibilidade de mais pensar oferecida pelos conceitos)?

Nietzsche dizia que as palavras são metáforas que se esqueceram de que são metáforas. A palavra amor, por exemplo, acredita ser um objeto específico no mundo. Já poesia, não obstante, desmente que aquilo que se esconde sob a palavra amor possa ser peremptoriamente resumido, seja em uma única palavra, seja em um conjunto delas formalizadas em versos. E assim como as palavras se esqueceram de que são meras metáforas, os conceitos também se esquecem de que o são. E nesse esquecimento, convencem-nos de que apontam, inequívoca e universalmente, a realidade. No entanto, são abstrações cunhadas diante uma – pequena – porção de realidades particulares.

A busca de uma distância crítica em relação aos conceitos, segura o suficiente para que não privem o pensamento, quiçá deva sondar o terreno intermediário entre as simples palavras e os grandes conceitos. Até porque não estamos falando de seres alienígenas um em relação ao outro. As palavras, chamadas de metáforas por Nietzsche, são todavia conceitos, embora muito simples. Outrossim os conceitos são metáforas, só que bem mais complexos do que as palavras. Porventura o melhor ponto ao pensamento estaria entre a simplicidade das palavras e a complexidade dos conceitos?

Cartesianamente falando, conhecer clara e distintamente a realidade é fazê-lo mediante unidades de conhecimento as mais simples possíveis. E se os conceitos mais simples e imediatos são as próprias palavras, temos que são elas as pequenas, todavia mais confiáveis pedras sobre a superfície do rio que queremos atravessar ao pensar. Claro, elas também têm seu calcanhar de Aquiles: certa distância intransponível em relação ao que nomeiam. Entretanto, se as palavras, assim como os conceitos, podem induzir a erros, estes são, todavia, erros menores. Os conceitos, ao contrário, enquanto conjunto de palavras, são, consequentemente, um misto inextricável de distâncias em relação ao real. Na nossa analogia do rio, seriam as grandes pedras que facilmente acumulam limo sobre si. E nestas escorregamos muito mais facilmente. Por isso, crítica!

A conclusão, portanto, é que o pensamento mais esclarecedor e precavido é aquele que se fia mais nas pedras semânticas mínimas das palavras do que nos continentes máximos dos conceitos. Em relação aos nossos exemplos conceituais “continentais” de Totalitarismo, criticado por Žižek; de fascismo, por Noël; e de Estado enquanto mero monopolizador da violência, por Mézáros; o trabalho virtuoso do pensamento é explicar, em simples palavras, as realidades singularidades de que se ocupa, em um humilde trabalho descritivo/analítico, sem sucumbir à tentação de se complicar com os grandes “resumos de ópera” conceituais que, em verdade, inscrevem e sintetizam o pensamento. Em suma, tolhem-no.

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Memes e política

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Notória é a capacidade dos brasileiros para transformar as suas atuais frustrações politicas em memes que fazem graça do que é grave. Pelo jeito, Cartola continua paradigmático: “Rir pra não chorar”. Agora, diante da gravidade da realidade política tupiniquim, não podemos deixar de perguntar se esse talento para fazer troça espontânea da própria desgraça não é, antes, incompetência no sentido de se levarmos a sério os nossos próprios e mais sérios problemas. Afinal, palhaçada como arma política não é coisa de bobo da corte?

Não devemos nos fiar na descontração massivamente democratizada pelos memes. Relaxar no meio da guerra outra coisa não é que se vulnerabilizar. Ainda mais diante de inimigos que falam sério e jogam baixo. Entretanto, não joguemos a água suja com o bebê junto! Algo essencial e digno de louvor nos memes pode e deve ser usado na jihad política do povo contra as “despolíticas” que o afrontam: a viralidade imediata deles. Com efeito, se conseguirmos trazer às ações propriamente políticas essa potência viral a luta popular só tem a ganhar.

Para tanto, devemos conhecer melhor esse objeto, o meme. Etimologicamente, meme deriva do grego mimesis, que significa imitação. Porém, desde 1976 o biólogo evolutivo Richard Dawkins sustenta que “meme” designa uma unidade de informação que se multiplica de cérebro em cérebro. Em termos mais simples, meme significa a transmissão de informação de uma mente para outra. Para Dawkins, os memes são replicadores de comportamentos, em plena analogia com o gene da genética. Tanto que Dawkins chamou a ciência dos memes de memética. A memética está para a ideologia assim como a genética está para a biologia.

Jaz nessa característica replicadora de comportamentos a virtude que queremos apontar nos memes no sentido de serem usados como arma política efetiva. Para tanto, o meme não deve ser pensado enquanto pólvora mortal, visto que ele é forma, e não conteúdo, mas como cartucho subversivo capaz de ser preenchido e de levar adiante, com grande poder replicador, pólvoras propriamente políticas capazes de minarem as “despolíticas” dos que ocupam sordidamente o poder.

Em vez de fazer troça da vil realidade, os memes, devida e politicamente usados, devem ser capazes de fazer dela – melhor dizendo: da percepção que dela temos – troço, coisa, res. Em suma, a memética, enquanto metralhadora nas mãos do povo, deve reificar nossas frustrações e desejos, a ponto de nos tornarmos inarredáveis “pedras no caminho” dos nossos inimigos. Afinal, um conteúdo capaz de produzir a mudança que o povo quer é melhor que seja colocado em um continente capaz de propagá-lo, viralmente, ao maior número de pessoas e no menor tempo possível.

Por isso não devemos apenas nos satisfazer com a graça dos memes. Isso seria nada além de alienação. Devemos, politicamente, valer-nos do poder de penetração deles nas graves realidades. Claro, desde que a piada seja substituída por protesto político. Melhor ainda, por demandas políticas. Manter o cartucho memético, sim. Agora, caso queiramos interferir, quiçá corrigir as “despolíticas” que nos assaltam, a pólvora que precisamos colocar dentro desse pacote ideológico precisa ser mais explosiva do que engraçada.

Resta saber se o talento brasileiro para fazer piadas de longo e intenso alcance pode ser usado para fazer críticas políticas de mesma envergadura. Em suma, se conseguiremos politizar a nossa capacidade memética a ponto de ela nos levar adiante na guerra, e não apenas servir de trincheira jocosa que, enquanto nos mantém protegidos pela graça, impede de ataquemos mortalmente quem nos ataca gravemente. E isso porque a realidade está exigindo de nós mais memes/coquetéis Molotov e menos memes/anedota de salão.

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Despolitização e repolitização

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A transformação do cidadão em mero consumidor, a invenção e a manutenção da famigerada classe média, e também o surgimento de lutas políticas parciais e atomizadas (como a das mulheres, negros, homossexuais, etc.) são vitórias inequívocas do processo de despolitização que a classe capitalista dominante promove contra a sua histórica inimiga econômica: a classe dominada – que, atualmente, sequer se reconhece como tal.

Ardil do êxito despolitizante da classe dominante é impedir que os despolitizados retornem à violência própria do âmbito pré-político. E isso é feito empanturrando-os com mercadorias, pseudoprivilégios burgueses e semidireitos particulares que, como diz Slavoj Žižek, se por um lado mudam alguma coisa, por todos os outros lados deixam as coisas – e para a classe dominante! – exatamente como estão.

Para entender melhor a relação estrategicamente interrompida da despolitização com a violência, digamos de modo bastante sucinto que, quando surgiu na antiga Grécia, a política foi a substituição da violência pelo diálogo. Em outras palavras: a migração das resoluções verticais baseadas na força física para o consenso horizontal através da palavra. Categoricamente, a politização foi um processo de transformação do despótes (déspota) em polites (político).

Portanto, “despolitizar”, que no dicionário significa apenas “retirar o caráter político das relações humanas”, deveria apontar também para o fato de tai relações se reaproximarem da violência. Afinal, quando o polites sai de cena, é o despótes que a protagoniza. E isso porque, depois dos gregos, ninguém inventou nada além da política como opção à violência despótica na resolução dos díspares interesses humanos.

Entretanto, porque violência demais traz um custo indesejado à classe dominante, o expediente econômico de sua jihad despolitizante contra a classe dominada é justamente inventar pseudoesferas políticas, como as do consumo, da classe média, das micro lutas multiculturais, etc., que, com efeito, mantêm os dominados a meia distância da política e da violência. Sendo que esses extremos estrategicamente desabitados pelos dominados findam usucapidos exclusivamente pelos dominantes.

Vil jogada de mestre! A violência e a política, nas mãos da classe dominante, não são mais opostos, mas, antes, cada uma, o meio de a classe dominada não mais acessar a outra. Ou os dominantes despolitizam os dominados, e a violência que isso suscita nestes é eficientemente reprimida pela sobreviolência daqueles, ou simplesmente aumentam a violência sobre os dominados, pois sabem que o consumismo, a alienação e os particularismos políticos impedem que os dominados constituam um corpo verdadeiramente político, grande e forte o suficiente.

O que devemos ver nisso tudo é que a presente despolitização da classe dominada não é, de modo algum, o fim da política. Antes e exitosamente, é o vigoroso projeto político da classe dominante, que, se aqui e ali –com Trumps e Dórias – traveste-se despoliticamente, o faz apenas para melhor dissimular-se. Esse plano dominante de impedir os dominados de acessarem tanto a esfera política quanto a da violência, e isso mediante o usufruto exclusivo delas, traz o paradoxo de uma política despótica.

De fato, a classe dominante é um grande despolites; uma mistura impertinente de despótes e polites; um Frankenstein composto de política e violência; um misto do remédio e do mal que ele pretende curar. A vitoriosa despolitização produzida por essa classe dominante monstruosa, entretanto, tem como ser remediada, tanto pela via política, quanto pela violenta. Mas para que tal antidoto tenha efeito, deve contar com a poderosa, todavia alienada ideia marxista de consciência de classe. Mais especificamente, a da classe dominada.

De modo que a única política da liberdade é a da classe dominada reconhecendo-se como tal, apesar e por causa dos biombos políticos com os quais a classe dominante mantém a classe dominada alienada de suas potências, seja a política, seja ainda a violenta. Por isso, repolitizar-nos significa, entre outras coisas, recusarmos o consumismo, o pseudoclassismo e as políticas particularistas, pois o ouro alquímico da liberdade da classe dominada não conta com os metais pesados da classe dominante.

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Falácia libertária pós-moderna

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Não sem muita controvérsia, cada vez mais o pensamento pós-moderno libertário de esquerda, produzido sobretudo por intelectuais após maio de 68, como por exemplo o de Deleuze e Guattari, é acusado pela redução da liberdade e pelo enfraquecimento das esquerdas pelo mundo. Se essa causalidade ainda é suspeita, certamente não o são as notórias crises das esquerdas e da própria liberdade. Esse ensaio caminhará no sentido de criticar o ideário de liberdade pós-moderno concebido a partir da segunda metade do século passado, acusado de minar o pensamento verdadeiramente libertário – marxista – que o precedeu, e, considerando isso, qual virtude ainda resta ao pensamento pós-moderno.

Comecemos dizendo que a ausência de liberdade, socialmente expressa na desigualdade e na dominação socioeconômica de umas pessoas sobre outras, teve, a seu favor, as mais variadas explicações ao longo da história. Os antigos atenienses criadores da democracia, por exemplo, acreditavam que a natureza havia feito uns homens melhores que outros, e que estes “melhores homens”, em grego, os aristoi – aristocratas -, deveriam governar e decidir por todos. Mulheres, escravos e estrangeiros não tinhas direitos alguns. Posteriormente, chegou-se a justificar a desigualdade nalguma decisão divina. Em ambos esses casos, tentar eliminar a desigualdade social significava ou atentar contra a natureza, ou contra o eterno plano de Deus. E assim a desigualdade fez carreira no mundo.

No século XIX, contudo, Karl Marx criticou contundentemente essas visões, apontando que a desigualdade entre os homens era produto tão somente deles próprios. Afirmando, no Manifesto Comunista, que “a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”, Marx fez-nos ver que era o privilégio material de uns que gerava a dominação dos desprivilegiados materialmente. Na antiguidade, isso se deu com homens livres dominando escravos e patrícios, dominando plebeus; no medievo, senhores dominando servos; e na modernidade da qual Marx falava, o mesmo acontecia com os burgueses dominando os proletários.

Com essa nova visão, a ideia de Revolução deixou de ser não só antinatural ou pecaminosa, mas também utópica. Compreendendo a real dinâmica socioeconômica de modo científico, Marx previu a vitória da classe dominada sobre a dominante. Para tal, os dominados, isto é, os proletários, desde que unidos, deveriam tomar a revolucionária consciência – de classe – de que eles eram os agentes da mudança. Em outras palavras, que a realização de sua liberdade estava tão somente nas suas mãos. Mudança que, obviamente, ameaçava o longevo império da classe dominante, ainda mais depois da Revolução aventurada na Rússia em 1917, onde a ideia socialista se fez realidade. E como a classe dominante nunca esteve disposta a perder o seu histórico privilégio, a contraofensiva diante dessa abertura histórica à Revolução não tardou e não deixou por menos.

Em resposta à ameaça socialista, a classe dominante, primeiramente, chamou a Revolução – a liberdade enquanto coisa para todos – de “caos social”. Com efeito, o fato de os dominados se libertarem dos grilhões com que os dominantes os oprimiram desde sempre era o desmoronamento do cosmos aristocrático. Então, os aristoi dominantes do início do século XX iniciaram uma potente engenharia social para, com ela, desarticular qualquer consciência revolucionária dos oprimidos, e, assim, impedirem o que, para os dominantes, seria o “caos”. E o produto mais efetivo dessa neoarquitetura da dominação foi a invenção da famigerada classe média: uma classe intermediária, composta por parte da classe dominada, que, no entanto, não mais se reconhecia como tal.

Com o expediente da classe média, os oprimidos enganados foram convencidos de que ascenderam socialmente e se esqueceram da Revolução para então sustentarem, em beneficio da classe que seguiu os dominando, a manutenção da situação de desigualdade e opressão social, desde que, é claro, essa pseudoclasse fosse ao menos aparentemente preservada da sempiterna degradação social promovida pela classe dominante. Com efeito, a estratégia da classe dominante para não perder o seu domínio foi enfraquecer a classe dominada, dividindo-a em classe baixa e classe média, a despeito da verdade marxista segundo a qual há apenas duas classes: a dominante e a dominada. E, cereja do bolo, colocar essa pseudoclasse contra a classe dominada à qual ela, de fato, nunca deixou de pertencer.

Nessa conjuntura, pensamentos que apontassem a real e cruel dominação e, ainda por cima, rotas de fuga efetivas precisaram ser alienados desse mundus classe média. E o esquecimento fortuito do pensamento verdadeiramente libertário – como o de Marx – deu-se, também, com a ascensão do pensamento pós-moderno, declaradamente libertário, mas que, por sob suas mais sinceras intenções, prosseguiu obliterando o cruel fato de que, no fundo, só há classe dominante e dominada. Resultado: atomizações sociais, tão benéficas à classe dominante – afinal, átomos isolados não constituem consciência de classe nem tampouco fazem Revolução -, cresceram qual erva daninha regado pelo ingenuamente sincero pensamento libertário pós-moderno.

Ideias de micropolítica, de sujeito molecular, de desterritorialização, e, mais recentemente, de empoderamento e de lugar-de-fala, em suma, toda a conceituália pós-moderna esterilizou sobremaneira o único solo sobre o qual poderia florescer a Revolução: o continente perdido da classe dominada, e isso mediante o plantio de guetos cada vez menores e mais atomizados, e, consequentemente, mais fracos diante da peste dominante. Em oposição ao pensamento marxista, que explicava as partes em função do todo, a pós-modernidade ainda é a aventura de explicar o todo a partir das partes. Todavia, assim como o todo não é a soma das partes, e assim como falta ao finito condições ontológicas para explicar infinito, assim também a particularidade de onde arranca o pensamento pós-moderno de modo algum consegue explicar o todo sócio-econômico-polítioco-cultural.

Diante dessa incapacidade pós-moderna, restou a ela permanecer no micropensamento que se ocupa de desejos e de experiências individuais e de demandas particulares. De modo que, quando finalmente há alguma coletividade organizada em função da liberdade, ela é tão justa que comporta apenas um sexo, uma sexualidade, uma raça, em suma, uma demanda particular, por uma liberdade outrossim particular. No entanto, a busca de liberdade enquanto privilégio particular, não nos esqueçamos, é o objetivo per se da classe dominante. Aliás, jaz aí a diferença entre classe dominante e dominada borrada pelo pensamento libertário pós-moderno: a classe dominante quer liberdade e segurança contra o caos apenas para si, enquanto a classe dominada deveria querer estas coisas para todos, indistintamente.

No entanto, com o patrocínio do atomizante pensamento pós-moderno libertário, temos mulheres, negros, homossexuais, transexuais, etc., em lutas atomizadas, cada qual buscando uma liberdade parcial. Com isso, o objetivo maior da esquerda, qual seja, a socialização irrestrita da liberdade, é impossibilitado. As partes, isoladas, porém paradoxalmente crentes na centralidade de suas próprias excentricidades, perdem assim a possibilidade de constituírem a consciência realmente coletiva – de classe! – que mostre que todas elas são classe dominada. E mais, que o inimigo das mulheres, o dos negros, o dos homossexuais e transexuais, é o mesmo: a classe dominante. Por mais importante que seja às partes, às minorias, as suas lutas particulares, o marxismo ainda está aí para nos lembrar de que há uma luta muito mais urgente, primeira e universal que, no entanto, deixa de ser lutada ao ser dividida em uma miríade de lutas parciais.

Em relação ao viral discurso sobre o tal do “lugar-de-fala”, o filósofo brasileiro Vladimir Safatle diz que jamais a esquerda deveria ter sucumbido a ele. Não obstante, porque o fez, levou a rasteira épica que assistimos worldwide. Outro filósofo, Slavoj Žižek, é mais acusativo: que o discurso pós-moderno do “lugar-de-fala” é o discurso autoritário por excelência. Ora, dizer que um homem não pode se colocar no lugar de uma mulher; um branco, no de um negro; um heterossexual, no de um gay, e por aí vai; em nada difere do discurso dominante/patrimonialista segundo o qual ninguém pode ocupar a minha propriedade. Todavia, a ladainha libertária pós-moderna nos convence de que impedir o outro de se colocar no meu lugar é algo diverso das cercas eletrificadas e da militarização com que a classe dominante se resguarda. O que falta ser pensado seriamente é que, assim como o revolucionário marxista luta para que os privilégios socioeconômicos todas caiam em benefício da totalidade, assim também o libertário que pós-moderno deveria preferir a liberdade da classe dominada como um todo muito antes de querê-la para um (o seu) gueto particular.

Com tudo isso devemos concluir que o pensamento libertário pós-moderno deve ser jogado no lixo? Obviamente que não. Não só porque há pensadores pós-modernos, como os supra citados, que com efeito contribuem para a consciência de classe necessária ao vigor das esquerdas e à liberdade, mas isso ao criticarem o próprio pensamento pós-moderno – uma filosofia pós-moderna rigidamente crítica! -, mas sobretudo porque sem percorrermos os descaminhos do próprio pensamento libertário pós-moderno não entenderemos a dramática redução da liberdade nem a bancarrota das esquerdas pelo mundo. Marx sempre é de grande ajuda, mas não explicará essa desgraceira sozinho, visto que a maior virtude de seu pensamento é ser a ciência do caminho contrário: o da realização da liberdade universal.

Por mais que devamos criticar o pensamento libertário pós-moderno, não podemos jogar a água suja com o bebê junto – entendendo aqui a água suja enquanto a atomização social que esse pensamento produziu; e o bebê, a causalidade pela qual esse pensamento ganhou o mundo, mas que, no entanto, entregou o contrário do que prometeu. Algo como conhecermos bem a história do erro para não mais o repetirmos. Portanto, consumir o pensamento pós-moderno, sim. Porém, de modo radicalmente crítico – sendo que as melhores raízes dessa crítica devem estar fincadas no solo marxista. Não só o perigoso vigor da classe dominante exige isso, mas inclusive as justas suspeitas dos próprios pensadores pós-modernos de esquerda que ainda trabalham pela libertação universal. E isso porque somente quando a classe dominante não mais dominar – econômica, política, social, cultural e intelectual e ideologicamente – é que poderá haver um pensamento e uma vida verdadeiramente livres.

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O pensamento do pensamento

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A velha divisão metafísica entre corpo e mente faz parecer que o pensamento pode existir sem a matéria. O contrário, sabemos muito bem, de fato ocorre: as coisas, os objetos, provam isso. Agora, pensamento sem ser em um corpo material, seja ele biológico/natural, seja ainda em um computacional/artificial, disso não temos prova alguma. Assim como os corpos materiais são as ocasiões das sombras, assim também a matéria é a única ocasião do pensamento. Entretanto, é apenas em algumas organizações materiais, alguns corpos – animais mais evoluídos, e, para alguns somente o homem – ocorre o que chamamos de pensamento.

Mesmo assim há a crença – humana – em seres que pensam mas que não possuem corpos materiais. Por exemplo, em primeiro e sumo lugar, Deus; e, em segundo e mais corriqueiro lugar, almas humanas desencarnadas, os “espíritos”, que levariam o mesmo pensamento de quando encarnados na matéria para um plano etéreo/imaterial. Precisamos denunciar, contudo, que essas ideias não se sustentam em nenhuma prova objetiva, mas sobrevivem apenas em base mística/subjetiva.

De onde então vem essa fé em um pensamento livre da matéria? Bem, até aqui sabemos que só o pensamento humano – que ocorre na matéria; no corpo humano – imagina um pensamento se dando fora da matéria. Abstraindo a fé de alguns na mente de Deus ou nos “espíritos”, temos que as ocasiões nas quais o pensamento humano se aliena maximamente da materialidade que o produz são durante os sonhos. Com efeito, nos sonhos o pensamento encontra o mínimo de restrições materiais, tanto que, neles, pessoas, lugares e objetos se modificam, transmutam, surgem e desaparecem ao sabor do pensamento onírico.

Entretanto, por mais “livre” da matéria que o pensamento onírico pareça, ainda assim ele é produzido por uma mente material – todavia não em vigília, adormecida. E, mais comprometedor ainda: esse pensamento onírico só sonha mediante representações de corpos materiais: o corpo do próprio sonhante (que, dizem, existe em todos os sonhos); os corpos das demais pessoas e animais que interagem com ele; bem como os lugares e objetos que servem de cenário do sonho. De modo geral, o pensamento não consegue representar-se a si mesmo senão através do suporte de imagens materiais. Pensar o pensamento puro é impossível. O “Penso, logo existo” de Descartes nos diz que o pensamento, quando não pensa nenhum objeto determinado, não significa que pense o próprio pensamento, mas, minimamente e no limite, a existência.

Será então que é dos sonhos que tiramos a ideia de pensamento sem matéria; de Deus e de “espíritos” que pensam mas que não têm corpos? A gênese do universo segundo a Bíblia nos conta que para criar o mundo material Deus apenas pensou nele. De modo que, antes dessa ocasião, quando a matéria ainda não havia sido criada, só existia o pensamento de Deus. Entrementes, bastou Ele pensar na matéria e, voilà, ei-la criada. E assim com tudo, até mesmo a existência do homem. A única coisa que Deus não precisou pensar/criar foi o próprio pensamento, pois Ele já o é desde a eternidade.

Na Crítica da Razão Prática, Kant nos mostra que a razão, naturalmente disposta a resolver os problemas que enfrentamos na nossa existência cotidiana, pode, no entanto, quando desocupada de tarefas mundanas, produzir duas abstrações sublimes: a ideia de exatidão, expressa pela matemática, e – o que mais interessa aqui – a ideia de perfeição, expressa por Deus. De modo que, para a mente humana, a sua própria perfeição, representada pela ideia de Deus, seria pensar absolutamente livre da matéria. Por que o pensamento, que até onde sabemos é produzido pela matéria – pela mente física -, cria para si mesmo a metafísica de um pensamento independente da matéria e, mais ainda, convence-se de que isso é a perfeição?

Decerto que as limitações materiais são inconvenientes para o pensamento. Em um lugar, desejamos estar em outro; tristes, queremos ser felizes; pobres, imaginamos as delícias da riqueza; só que a materialidade da realidade, no mais das vezes, impede esses pensamentos de realizarem as ideias que produzem. Fôssemos qual Deus, isto é, bastasse pensar em uma coisa ou situação para ela existir, seríamos onipotentes. No entanto, nossos pensamentos são sempre limitados pela realidade material. E talvez seja justamente a percepção disso que faça com que imaginemos o seu contrário, ou seja, um pensamento livre de qualquer constrangimento pela realidade material.

No entanto, essa ideia de que o pensamento perfeito é o que se dá livre das limitações materiais porventura não incorre no mesmo engodo do sonho, isto é, querer se livrar da matéria para, todavia, pensar através dela sem as limitações que ela impõe? Em outras palavras, para brincar de Deus? Não obstante, assim como não controlamos o sonho para que não se transforme em pesadelo, assim também o pensamento, livre das restrições materiais, não poderia evitar de ser traumaticamente inconveniente para si mesmo. Imaginemos uma pessoa no conforto de sua casa pensando em uma gélida e escura caverna. Se não houvesse a realidade material para, digamos assim, impedir tal pensamento de fazer de seu pensado realidade, essa pessoa estaria em apuros o tempo todo.

Se, por um lado, é ruim pensar, por exemplo, em felicidade e não necessariamente tê-la, ou pensar em ser rico e não significar que o seremos, por outro lado, é muito bom podermos pensar livremente em tragédias ou em ausências irreversíveis sem que elas se realizem imediata e necessariamente. A matéria, com efeito, é a âncora do pensamento, tanto durante tempestades, quanto em períodos de calmaria. Se, contudo, podemos imaginar que existe pensamento independente da matéria, e que, aliás, esse seja o pensamento perfeito, digno de Deus, mas, ao mesmo tempo, sabemos que é impossível pensarmos sem o nosso corpo, a única coisa que podemos deduzir é que o nosso pensamento sabe muito bem que ele não é perfeito.

De fato, como não é mistério ao próprio homem, ele sabe que não é perfeito – por mais que finja isso, seus próprios pensamentos o denunciam intimamente. E justamente por conta de tal ciência, o pensamento frustrado consigo mesmo imagina a perfeição que lhe falta, pois, por mais que se saiba distante dela um infinito – a mesma distância que separa as criaturas de Deus -, no final das contas esse pensamento imperfeito se satisfaz com a capacidade de ao menos pensar a perfeição. Se não experimenta materialmente a perfeição, pelo menos tem a experiência do sublime diante dela. Em suma, se, de um lado, o nosso pensamento sabe que não é perfeito, de outro, é capaz de imaginar o que ela seria, e, mais ainda, que só ele pode imaginá-la. Mas isso, contudo, ao alto custo metafísico de abstrair desse pensamento qualquer materialidade, inclusive a que o produz fisicamente.

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O “povo” nas ruas e o povo “na rua”

povo nas ruas

“Não são só 20 centavos”, “Saúde e educação padrão FIFA”, “Fora Dilma”, “Não vai ter golpe”, “Fora Temer” e, agora -novamente -, “Diretas Já” são os (emb)lemas das grandes manifestações populares brasileiras que levaram “o povo às ruas” de 2013 a 2017. Jovens e velhos, ricos e pobres, coxinhas e petralhas, monarquistas e anarquistas usaram as ruas e fizeram nelas grandes eventos de expressão pública/política. Esses eventos, no entanto, envolveram invariavelmente a ideia de festividade. Muito embora todas contassem com pautas políticas – umas notoriamente sociais, outras inacreditavelmente elitistas -, a necessidade da política foi usada também como pretexto para espécie de carnavais cívicos.

Nas muitas manifestações de que fui partícipe, depois de os manifestantes respirarem muito gás lacrimogênio e torcerem para não serem agredidos pela Polícia Militar, invariavelmente se reuniam em torno de cervejas geladas na construção de um pseudo-heroísmo-hedonista-patriótico-revolucionário. Nas poucas que eu participei, não por concordar com suas pautas, mas, digamos assim, por interesse sociológico, via que após os manifestantes proferirem coletivamente seus despautérios pró-ditatoriais ao som de ruídos de panelas e com a Polícia Militar servindo de cenário para selfies, outro pseudo-heroísmo-hedonista-patriótico, só que dessa vez reacionário, era coletivamente construído, todavia ao redor de taças de champanhe e em restaurantes devidamente gentrificados.

A última grande manifestação popular tupiniquim desse domingo 28 de maio na praia de Copacabana pedia por Diretas já. E a festividade, como não poderia deixar de ser, também esteve presente, embalada por deliciosos shows de reconhecidos artistas e celebridades nacionais. Mais uma vez é reforçado o fato de que o “momento festa” vem sendo condição sine qua non às atuais manifestações políticas. Essa neopolítica afetivo-hedonista, que muitas vezes se confunde com uma micareta, além de desidratar politicamente a efetividade das manifestações populares, nos obriga a colocar a seguinte pergunta: que povo é esse que está nas ruas?

Essa pergunta, que não se dará por satisfeita enquanto não tiver como resposta: “um povo para o qual a vitória política é menos importante que a construção de uma narrativa pessoal digna de Facebook”, tem o propósito de evidenciar um outro povo, que também está nas ruas desde 2013, mas que, apesar de ser bem mais numeroso, pelo simples fato de não fazer festa pelas esquinas, tampouco faz celebridade nas timelines. Estou falando dos 14 milhões de desempregados que estão, literalmente, na rua. Aliás, porventura não temos aqui o estranho caso de uma metáfora literal: o maior índice de desemprego da história do Brasil botou o povo “no olho da rua”?

Com efeito, também temos esse povo, que é de outra categoria, nas ruas; povo este que, diferente do político-festivo-redesocializado, não tem condições de pagar por cervejas – muito menos por taças de champanhe – depois de sua extenuante “manifestação” diária atrás de emprego. E o seu contingente, infelizmente, só aumenta. E como procurar por trabalho não paga as contas nem enche barriga de ninguém, esse massivo desemprego tem uma consequência socioeconômica mais aparente do que as longas e frustrantes filas de emprego. E – spoiler – também nas ruas. A neoexplosão da informalidade na forma com que esse povo desempregado busca sobreviver é empiricamente perceptível nas cidades brasileiras, principalmente nos grandes centros urbanos.

Minha percepção mais aguda disso se dá em Copacabana, bairro populoso no qual vivo e onde, consequentemente, recaem mais cotidianamente minhas observações. Faz um ano que vejo o número de camelôs aumentar drasticamente pelas calçadas da Princesinha do Mar. Essa “ilegalidade” há muito se faz presente, todavia, de modo comedido e somente após o término do horário comercial – na verdade, depois que o “rapa” para de trabalhar. Atualmente, contudo, as calçadas estão lotadas de ambulantes desde a manhã até a noite. A crise econômica que levou a isso muitas vezes me fez pensar que estamos nos reaproximando do modo medieval de troca de mercadorias feito exclusivamente em ágora pública.

Noite dessas, voltando para casa em um ônibus que circula pela Avenida Atlântida, via à beira-mar conhecida, de um lado, pelo calçadão de ondas de pedras portugueses pretas e brancas mais famoso do mundo, e de outro lado, pela prostituição ao grande estilo “Katia Flávia, Godiva do Irajá, escondida aqui em Copa”, fiquei surpreso ao ver que, assim como os camelôs nas avenidas internas do bairro, também sobre as calçadas de Burle Marx na orla as prostitutas se multiplicaram, e muito. O povo desempregado, para sobreviver, vende tanto coisas na rua, quanto a si mesmo nelas.

Interessante é ver que o prefeito da Cidade (que luta para seguir mentindo que é) Maravilhosa discute publicamente e busca solução apenas para a parte do povo desempregado que lota as ruas vendendo bugigangas. Também pudera, essa impertinente presença é um problema social na medida em que é um problema econômico: faz os lojistas legais arrecadarem menos e, consequentemente, pagarem menos impostas. Já o tsunami de prostitutas à beira-mar permanece longe dos “problemas oficiais” da cidade. Não só porque alimenta melhor o internacionalmente procurado mercado turístico-sexual carioca, mas também porque as prostitutas, assim como as mulheres em geral, têm constantemente suas necessidades preteridas pela nossa sociedade.

Para ilustrar com um último exemplo carioca a presença do povo desempregado nas ruas, cito aqui uma velha conhecida da Guanabara: a presença de ambulantes vendendo toda sorte de mercadorias nos trens metropolitanos, fato que mesmo na era lula de pleno emprego se fazia presente. Entretanto, na atual situação de “vácuo-emprego”, o comércio informal nos trens não só aumentou drasticamente, como sobretudo radicalizou os roubos de carga na cidade do Rio de Janeiro. Somente nesses primeiros meses de 2017 foram mais de 3 mil. O esquema de roubos de mercadorias e sua venda ilegal é tão eficiente que menos de duas horas depois de uma carga ser roubada na Avenida Brasil ela já está sendo vendida nos trens, e muitas vezes por 1/4 do que custam nos estabelecimentos legais. Afinal, esse povo desempregado não só precisa fazer dinheiro com o que estiver à mão, mesmo que ilegalmente, como também precisa pagar o mínimo possível seja lá pelo que for.

Tentei aqui apresentar duas ideias distintas de “povo nas ruas”. A primeira, referente às eventuais manifestações político-festivas, cujo “povo” (e a essa altura as aspas já devem fazer seu pleno sentido), depois de gases lacrimogênios e cervejas ou selfies e champanhes, esvazia as ruas para então ocupar orgulhosamente as redes sociais. A segunda, apontando uma realidade nada carnavalesca na qual o povo (sem aspas algumas, afinal, estamos falando de quem não é povo apenas eventualmente) manifesta desesperadamente sua necessidade de trabalho. Só que esse povo, que foi posto “no olho da rua”, isto é, que não tem trabalho, é quem verdadeira e diariamente está “nas ruas”, seja procurando emprego, seja fazendo delas o seu escritório informal/ilegal.

Minha crítica conclusiva, que se dirige a esse “povo” entre aspas, é no sentido de acusá-lo de que, se fosse povo mesmo, e não só um bando de personagens político-festeiros, ele sairia às ruas para lutar por um país no qual o povo – sem aspas – desempregado e desesperado não tivesse somente as ruas como opção de vida. E isso porque, na realidade, o que vemos é que, quanto mais aquele “povo” se manifesta carnavalescamente nas ruas, mais o povo está, literal e metaforicamente, “na rua”. O que o povo brasileiro precisa, e urgentemente, é de menos festa e mais política.

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“Diretas Já!”, bebê? Consciência de classe!

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Desenho: Laerte

O povo brasileiro, depois de 24 anos, clama novamente por “Diretas já!” diante do risco, aberto pela crise política tupiniquim, de uma eleição indireta para presidente da república capitaneada por um parlamento notoriamente corrupto e antipopular. Entretanto, esse clamor popular mais uma vez esconde uma terrível ingenuidade. Ora, “Diretas Já!” pressupõe que eleições diretas atenderiam os interesses do povo, e eleições indiretas, os dos políticos corruptos clientes do capital. Não obstante, entendendo esses dois “adversários” em termos marxistas, enquanto classe dominada versus classe dominante, o frágil castelinho de cartas democrático do povo desmorona, pois crer que eleições diretas mudarão o fato de que quem seguirá dominando será a classe dominante é tão tolo quanto esperar que dominante aceite outro significado.

Sequer podemos dizer que “Diretas Já!” é folclórico, pois, do inglês folklore (folk: povo + lore: conhecimento), folclore significa “conhecimento do povo”. Não obstante, a classe dominada entender que pela mera ocasião das urnas pode moderar, quiçá impedir a dominação da classe dominante outra coisa não é senão ignorância popular a respeito dos sistemas político e econômico vigentes. Dentro da engenharisticamente arquitetada democracia representativa/liberal/burguesa, o povo achar que o fato de ele votar ou votarem por ele fará alguma diferença é nada mais que estupidez; o seu folclore estúpido; sua folkstupidity.

E isso porque, em primeiro lugar, o competente trabalho de classe da classe dominante vem sendo obliterar a certeira leitura de Marx, eternizada no Manifesto Comunista, segundo a qual o Estado não é nada além do que “o comitê executivo da burguesia”. E a democracia, essa ideia de que é o povo, mediante o voto, que governa é a falácia da classe dominante para mentir que o Estado não é a sua exclusiva res privata. Ora, em uma democracia liberal/burguesa, o Estado democrático continua sendo o bunker do capital; a democracia, o bureau da oligarquia. Com efeito, a maior burrice do povo é seguir ignorando isso.

Sejamos realistas, povo brasileiro! Em ambos os casos, seja com eleições diretas, seja com indiretas, será eleito presidente um representante dos interesse da classe dominante. “A realidade é dura”: ou a classe dominante apresentará seus candidatos ao arbítrio popular, ou arbita ela mesma entre eles. Até mesmo Lula, tido como o herói “guerreiro do povo brasileiro”, embora tenha de fato distribuído renda, universidades e cisternas aos mais pobres como “nunca antes na história desse país”, ele só foi presidente da república porque atendeu, melhor dizendo, enriqueceu a classe dominante. Prova disso é que bastou o lulismo – todavia nas mãos menos competentes de Dilma – não mais realizar o sempiterno objetivo das elites e, voilà, rua!

O paralelo entre as “Diretas Já!” de 1983 e 2017 é inevitável. No recente século passado, a pecha “democrática” – e derrotada – foi tentar impedir que os militares escolhessem o presidente da república – que, como sempre, representaria as elites – para que o povo pudesse escolher, “democraticamente”, o presidente da república representante das elites. E o atual “Diretas Já!”, repetindo o erro do passado, pretende impedir que parlamentares corruptos – clientes cativos de empresários outrossim corruptos – elejam indiretamente um representante dos interesses desses empresários para que nós, o povo, escolhamos, dentre as opções que os políticos corruptos nos darão, o representante dos interesses dos empresários corruptos.

Eis a falácia da moderna “democracia”: fazer com que o povo, estupidificado, legitime a escolha dos representantes da classe dominante sem que esta precise fazê-lo despoticamente, via ditadura ou golpe, expedientes que, para quem quer lucrar sempre e muito, têm preço – econômico, político, ético – alto demais para serem usados constantemente. E “Diretas Já!”, novamente, é o grito do povo no sentido de seguir fazendo o que a classe dominante quer que ele faça: legitimar os representantes dela.

Fazendo uma analogia com a contemporânea e mui polemizada mazela social do crack, assim como os seus usuários, preteridos e esquecidos pelo sistema, valem-se desesperada e compulsivamente da “pedra” para suportarem tal condição – sem no entanto mudá-la com o vício -, assim também o povo, copiosamente, corre atrás da “pedra” da “democracia” para ao menos suportar, melhor dizendo, esquecer o fato de que o sistema seguirá dominado pela classe dominante. Nesse velho quadro, clamar coletivamente por “Diretas Já!”, infelizmente, é apenas desespero popular diante de uma crise de abstinência mais fortemente percebida. Metaforicamente, é a ignorância suicida do viciado fazendo-o escolher ele mesmo a sua destruição para não ver, crua e claramente, que, na verdade, não há escolha: o sistema no qual se encontra é que o destrói.

Ver essa realidade sem o Véu de Maya “democrático” tecido historicamente pela classe dominante para perpetrar mais expeditamente a sua dominação; no caso tupiniquim, aceitar o fato de que não importa quem escolherá o próximo presidente do Brasil, se o povo, diretamente, ou se os representantes da classe dominante, indiretamente, pois em ambos os casos a classe dominante seguira como tal; realizar isso, sem dúvida alguma, é traumático. Psicanaliticamente falando, contudo, todo trauma tem uma dupla virtude: primeiramente, não permitir que aquilo que o causa desapareça no esquecimento – o trauma é a fortuita presentificação de uma intervenção insuportável do real; e, em segundo lugar, é superável na medida em que o traumatizado é capaz de falar dele, de comunicá-lo àqueles que podem entendê-lo – sendo o analista o ouvinte/remédio ideal desse processo de cura.

Por isso aqui eu me dispenso, para evitar o pecado da ingenuidade, de propor alguma solução para o impasse traumático no qual nós, povo brasileiro, estamos metidos nessa inócua querela entre “Diretas Já!” e “Indiretas quando a classe dominante quiser”. Faço apenas questão de reforçar insuportavelmente esse trauma. Não só para que o meu encontro – enquanto povo – com o real se apresente em toda a sua radicalidade, sem véus/cracks anestesiantes, mas, sobretudo, para que, ao mesmo tempo, falando dele a quem me ler/ouvir, eu possa me “destraumatizar”. Se todos nós, dominados, fizéssemos isso certamente nos despatologizaríamos a ponto de lidarmos com o real de nossa opressão de modo mais objetivo, político e subversivo, exatamente como a classe dominante faz para nos oprimir.

É porque a classe dominante sabe nitidamente que, de um lado, a democracia liberal/burguesa é a melhor fantasia para a sua estável oligarquia, e que nem mesmo eleições diretas mudarão o fato de que os presidentes serão representantes exclusivos seus; e também, de outro lado, porque está certa de que, até aqui, conseguiu fazer com que a classe dominada permanecesse alienada dessas cruéis verdades; por isso tudo é que ela domina tão certeiramente. O que se depreende disso tudo é que falta ao povo um esclarecimento fundamental, precisamente aquilo que Marx prescrevia aos trabalhadores para que a Revolução fosse possível, qual seja: consciência de classe – consciência essa que sobra à classe dominante. E se o povo puder conscientizar-se de sua potencialidade revolucionária fazendo aquilo que a psicanálise prescreve ao traumatizado: assumir o trauma e comunicá-lo a quem melhor pode compreendê-lo, não a psicanalistas, obviamente, mas a si próprio?

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O pior pós-capitalismo

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A expressão “pós-capitalismo”, embora seja bastante usada para se referir ao sistema econômico que se seguirá ao capitalismo, ainda é negativa, no sentido de não haver certeza alguma acerca do próximo modus economicus que sistematizará, materialmente, as relações humanas. O pós-capitalismo ainda é apenas um imenso significante vazio, cuja única virtude pseudopositiva quiçá seja indicar que haverá um após em relação ao capitalismo, que, no entanto, não sabemos qual.

Em respeito aos sistemas econômicos, pelo menos os que precederam o capitalismo, sabemos que são históricos e finitos. São, com efeito, sistematizações determinadas dos modos de produção e de subsistência materiais de sociedades humanas outrossim determinadas. Mudando-se a conjuntura social, muda-se consequentemente a forma econômica mediante a qual a sociedade subsiste. E é essa (cons)ciência que nos permite pressupor que o capitalismo, assim como o escravismo e o feudalismo, antecessores seus, morrerá e dará espaço a um novo sistema econômico.

Marx foi o pensador que talvez mais fortemente tenha acreditado nisso, profetizando que o capitalismo ruiria inevitavelmente devido às suas próprias contradições para ser sucedido pelo socialismo, e então pelo comunismo, tanto quanto a sua ciência – autonomeada não-utópica – pôde prescrever. Entretanto, depois de duas experiências históricas marxistas dignas de nota: os comunismos soviético e cubano; aquele, já encerrado, e este, sendo desmontado diante dos nossos olhos; hoje em dia, infelizmente, o marxismo serve muito mais como um farol simbólico do que como o GPS que indica o rumo econômico preciso que nossas sociedades tomarão.

O conceito de pós-capitalismo, em sua abertura indeterminada, de certa forma é um antídoto à febre marxista de prever o futuro em seus mínimos detalhes. Agora, pelo simples fato de indicar um após em relação ao capitalismo, a ideia de pós-capitalismo guarda um quê de Marx pelo simples fato de contar com o fim do capitalismo. Mantendo essa – saudável – “esperança” marxiana, o conceito de pós-capitalismo, no entanto, não deveria nos permitir pressupor nada além de duas opções: ou um após melhor do que o capitalismo, ou um pior.

Todavia, uma terceira opção não pode ser descartada . E se o capitalismo for um sistema econômico sui generis, e, mesmo depois de morto, não dê lugar a nenhum outro? E se não houver nada melhor nem pior do que o próprio capitalismo depois dele, mas apenas a presença eterna de seu cadáver a assombrar morbidamente as nossas sociedades? Para ilustrar essa – terrível – ideia, nada melhor do que o conceito de zumbi. Com efeito, o zumbi é o ser que já morreu mas que, de certo modo, permanece meio-vivo enquanto suga a vida do que vive. Em modo zumbi, o capitalismo pode permanecer como o sistema econômico morto-vivo.

E se o pós-capitalismo, na mais realista das opções, no final das contas, for unicamente o capitalismo zumbi, ou seja, o capitalismo oficialmente morto, mas, sinistra e espectralmente, sugador inarredável e paradigmático da vida das sociedades? Se esse quadro parece demasiado sinistro, isso se deve menos a qualquer pessimismo do que a característica genética e sempiterna do próprio capitalismo de superar e destruir qualquer outra forma de organização econômica.

Outra possibilidade pós-capitalista no mesmo sentido da do zumbi é a fantasmática: o capitalismo enquanto alma penada; enquanto assombração insistente; mantendo-nos aprisionados a ele simplesmente pelo ruído fantasmagórico do arrastar de suas correntes, as mesmas com que até o presente momento nos agrilhoa. Seriam esses os piores pós-capitalismos, o capitalismo zumbi ou o fantasmagórico, que nunca desaparecem completamente, mas sobrevivem indefinidamente mediante seus restos putrefatos ou espectrais?

Pelo andar da carroça capitalista até aqui, não temos motivos para não esperar o pior do capitalismo; sendo esse pior, obviamente, a sua não desaparição das vidas das nossas sociedades. Entretanto, assim como nos filmes de ficção os sobreviventes de apocalipses zumbis se livram dos mortos-vivos destruindo o que resta de vivo nos seus cérebros, assim também devemos estar prontos para atacar o resto vivo do capitalismo assim que morto. E se a mais promissora arma que ainda temos para destruir o cérebro capitalista zumbi for mesmo as ideias do cérebro de Marx, que, até hoje, não só sustentam a morte total do capitalismo, como principalmente preveem um após melhor?

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Uma crônica aos neo-servos

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Utopias, ou seja, lugares ou estados de completa felicidade e harmonia, estão, infelizmente, sempre distantes um futuro. Já as distopias, isto é, lugares ou estados de extrema opressão e infelicidade, estes, mais infelizmente ainda, conseguem se fazer presentes. A série norte-americana The handmaid’s Tale (Crônica de uma Serva), de 2017, adaptação do romance distópico escrito pela canadense Margaret Atwood em 1985, mais do que mostrar um futuro inacreditavelmente opressor, apresenta, no entanto, algo mais raro no mundo ficcional, qual seja, o processo através do qual uma distopia social é produzida. Para nós, brasileiros já insatisfeitos com apenas os primeiros metros da “Ponte para o Futuro” golpista, elitista, machista, racista e homofóbica que está nos conduzindo a um futuro indubitavelmente asfixiante, a Crônica de uma Serva é cruelmente distópica: apresenta a incontornável impotência dos oprimidos diante dos opressores.

A ficção de Atwood apresenta um mundo no qual a poluição esterilizou quase todas as mulheres e o terrorismo é a maior ameaça. Em resposta a isso, os homens norte-americanos mais ricos e poderosos dissolveram o congresso, aboliram a Constituição, fizeram das forças militares milícias suas, e transformaram as pouquíssimas mulheres férteis que restaram em servas pessoais cujos úteros geram os seus filhos. E tudo isso regado ao mais radical fundamentalismo religioso. Os EUA e a sua mui celebrada democracia desaparecem dando lugar à República de Gilead, uma teocracia totalitária cristã. Em Gilead, uma nação dominada por homens ricos que precisam se reproduzir, os homossexuais são tratados como bestas abomináveis. Os gays são enforcados sumariamente. As lésbicas só escapam deste destino quando são férteis, todavia, tendo os seus clitóris extirpados para então serem enviadas às famílias ricas e servirem de útero escravo.

As servas são propriedade, são coisas reprodutoras de seus “comandantes”, isto é, de seus “donos semeadores” casados com mulheres estéreis. Não podem se dirigir a qualquer homem, nem mesmo aos seus donos. São proibidas de andarem sozinhas. Sempre saem acompanhadas de outras servas, para que umas sirvam de olho espião do “grande outro teocrático” às outras. Não há liberdade às mulheres em geral, férteis ou inférteis. Com efeito, tudo na história gira em torno da necessidade dos aristocratas masculinos de levarem seus genes e fortunas adiante em um mundo que, contudo, parece se recusar a dar prosseguimento natural à raça humana. Estranha e sábia natureza!

O que, entretanto, acho mais urgente apontar em The Handmaid’s Tale é o violento e rápido processo pelo qual sua distopia foi implantada. Offred, a serva protagonista da série, conta esse processo através de suas traumáticas memórias. Tudo começou quando o presidente dos EUA foi assassinado por terroristas – mote para a teocracia totalitária cristã ser instaurada. Poucos dias depois, um bando de milicianos armados entra na empresa na qual Offred trabalha para comunicar a nova lei do novo Estado, segundo a qual todas as mulheres estavam proibidas de trabalhar. Em seguida, vê que sua conta bancária foi bloqueada, e isso porque as mulheres foram também impedidas de terem propriedade. Tudo delas foi transferido para seus maridos. As que ão eram casadas tiveram seus patrimônios confiscados pelo Estado. Pior ainda, todas as mulheres passaram a ser propriedade dos homens; ou de seus maridos, ou dos que comandam a sociedade.

Offred e as suas contemporâneas, acostumadas a usufruírem da liberdade do dito “país mais democrático do mundo”, até se organizam em resistência imediata contra a mudança social que furtou delas todo e qualquer direito. Entretanto, a violência desmedida das forças milicianas que defendem o totalitarismo impede qualquer avanço delas. Civis são sumariamente assassinados ao expressarem a menor discordância em relação ao novo sistema. Offred e seu marido, desesperados, resolvem fugir com a filha do país. No entanto, a milícia os captura, mata o marido, sequestra e separa mãe e filha para que sejam escravizadas por famílias ricas estéreis. Offred é levada a um campo de concentração onde é fortuitamente treinada para ser produtora de bebês para a aristocracia, a despeito de sua resistente consciência a respeito do absurdo em que se transformou a realidade. Para uma mulher até então livre e realizada, a impossibilidade de controlar seu destino a obriga a permanecer livre somente na solidão isolada de seus pensamentos.

E porventura não é mais ou menos isso que nós, cidadãos brasileiros, estamos sendo obrigados a fazer diante da involução forçada que a falocracia oligárquica golpista está produzindo no nosso país? Com efeito, estamos vendo um podre poder avançar pujante e violentamente em função exclusiva de si esmo, furtando verticalmente nossos direitos, liberdades e futuro, sem que nada possamos fazer para barrar, quiçá reverter o distópico quadro. Até nos manifestamos coletiva e indignadamente contra tudo isso, mas, como a experiência vem mostrando, a interlocução do inimigo é sempre acachapante, em forma de cada vez mais bombas de efeito imoral e crânios rachados. Estamos sendo obrigados a engolir a seco esse amargo presente, e qualquer doçura utópica que ainda resta só sobrevive nas nossas imaginações, sem chance de ter lugar no real.

O grande problema é que este presente distópico, opressor e infeliz não se abate sobre todos, mas apenas sobre a maioria que não tem como evitar a opressão. Na verdade, essa imensa e assaz democratizada distopia é o alto preço a ser pago pela utopia, liberdade e felicidade de uma minoria opressora. A correlação com a desigualdade econômica é total. A riqueza dos 1% custa a miséria do restante. Simples, desumano e cruel assim. E enquanto o poder econômico puder comprar as melhores e mais mortais armas, tanto as servas de The Handmaid’s Tale, quanto nós, brasileiros neo-servos de homens brancos ricos golpistas estaremos todos condenados a mais amarga distopia para, com ela, sustentarmos a utopia de nossos algozes.

The Handmaid’s Tale não aponta saídas para essa vil conjuntura. Antes, deixa claro que não há saída. É uma bofetada na cara de todos nós que ainda cremos que o inimigo pode ser contido em sua ignomínia. Entretanto, talvez esteja aí a grande virtude do romance distópico de Atwood: fazer com que a inescapável insuportabilidade de uma distopia produza, subversiva e subterraneamente, um gigante Frankenstein utópico incontrolável capaz de, na sua bestialidade, matar o médico fascista que o criou. Contra toda opressão, resistência é fundamental. Se ela, contudo, ainda não pode ser exercida fisicamente, que seja ao menos cultivada metafisicamente, nas ideias secretas dos oprimidos, assim como faz Offred, que, se por um lado é serva da elilte, por outro ainda é senhora de seus ideais. E como na nossa atual distopia nós, os oprimidos, somos a imensa maioria, nosso primeiro trabalho revolucionário conjunto deve ser formar uma imensa constelação com os nossos ideais utópicos, e deles fazer as armas de nossa urgente jihad.

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Ainda é possível uma vitória da vida sobre a economia?

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Para entender a lógica do governo golpista e ilegítimo do Brasil em respeito a tudo o que ele está fazendo/cometendo contra o seu povo, e, ademais, a lógica neoliberal per se, nada melhor do que o título do texto do filósofo alemão Robert Kurz: “A vitória da economia sobre a vida”. Com efeito, é disso que se trata a vertical e imbatível priorização dos interesses econômicos a despeito de quaisquer outros: políticos, sociais, culturais, ecológicos, etc. Se a economia sempre foi determinante na vida das sociedades, e, consequentemente, na dos indivíduos que as compõem, depois de alguns poucos séculos, paramentada com a sua veste história capitalista, a economia reina tiranicamente sobre tudo e todos.

Kurz, em um outro texto seu chamado “A falta de autonomia do Estado e os limites da política”, apresenta de modo muito direto o empecilho indesejável que o Estado, mais especificamente o Estado de bem-estar social é para os propósitos do capital. Embora o capitalismo, em seu nascimento, tenha precisado dos Estados Nacionais – suas estradas, portos, forças militares, leis, etc. – para se alavancar, no seu desenvolvimento, melhor dizendo, na sua globalização, no entanto, os Estados Nacionais findaram como suas novas pedras no caminho. Não à toa, a neoliberália tem por lugar-comum o discurso do Estado mínimo; em termos neoliberais: o Estado que interfere minimamente – que, com sorte, não interfere – nos projetos do capital.

No que tange os cidadãos desses Estados Nacionais – indesejados pela economia capitalista global -, a saúde, a educação, a segurança e toda a sorte de direitos que receberam durante algum tempo do Estado de bem-estar social – e isso para que as massas fossem socialmente contidas, controladas, em suma, entretidas democraticamente para não interferirem decisivamente nos sórdidos movimentos do capital – a estes cidadãos resta engolir “A vitória da economia sobre a vida”, isto é, aceitar o fim do Estado enquanto amortizador/compensador da ignomínia capitalista.

O furto de direitos que nós, brasileiros, estamos sofrendo por parte do governo ilegítimo é a reificação da forma neoliberal que o Estado precisa assumir para não atrapalhar os movimentos do capital em sua forma global. “Esqueçam aquele Estado que se compromete com o socius” – diz-nos secamente o neoliberalismo. “Doravante, saúde, educação, segurança e tudo mais o que precisarem, tratem de vocês mesmos, reles cidadãos, de conseguirem, pois o capital não pode mais perder tempo, quer dizer, lucros sustentando vocês” – completa verticalmente.

Estamos, nós, cidadãos cativos dos nossos Estados Nacionais, definitivamente perdidos e irremediavelmente derrotados pela economia? Aparentemente sim, mas não absolutamente. Por mais que o capitalismo, atualmente, viceje melhor distante de seu velho bureau Estatal Nacional, a democracia ainda lhe é fundamental. Por isso, e talvez somente por isso os Estados Nacionais democráticos ainda não são desinvestidos completamente; são, aliás, mantidos e impostos, mundial e belicamente, como faz o mais capitalista dos Estados Nacionais, os EUA. E uma vez que o capitalismo, até aqui, não pôde prescindir da democracia (moderna/burguesa/representativa) pra se legitimar, e uma vez que a democracia envolve os cidadãos, eis aí a via com que estes ainda podem interferir nos planos daquele.

Um corpo de cidadãos, Estado Nacional e Capital formam o ser histórico moderno par excellence. Entretanto, por mais que o capital esteja vencendo os dois primeiros – melhor dizendo, sequestrando, minimizando o segundo contra os primeiros -, todas as três as instâncias ainda são constituintes essenciais da equação histórica que atende pelo nome de Sociedade Moderna. Outro alemão, o filósofo Jürgen Habermas, no texto “A nova obscuridade”, ressalta a potência revolucionária que os cidadãos ainda têm justamente dentro do Estado democrático imprescindível ao capitalismo. Superando a aparente ingenuidade da proposta de Habermas, ele aconselha o estabelecimento de laços solidários e comunicativos positivos entre os cidadãos, pois isso, e somente isso!, é capaz de fazer com que o Estado não seja tiranizado exclusivamente pelo capital.

O que Habermas propõe é que seja estabelecida pelos/entre os cidadãos, organizados concretamente em esferas subculturais, uma autogestão em resposta ao capital; uma nova organização dos poderes capaz de fazer as vezes do perdido Estado de bem-estar social. O filósofo chama essa nova organização de “sociedade da comunicação”. E como, conforme o provérbio popular, “quem não se comunica, se trumbica”, a sociedade fundamentada na comunicação pode reequacionar a hierarquia do capital sobre a vida, não somente tornando tácito a todos os cidadãos que é mais importante a eles, ou seja, à vida, com principalmente comunicando globalmente os crimes desumanos que comete o capital quando ele não é controlado, contido, como, por exemplo, o foi durante a valência do falecido Estado de bem-estar social.

Nesse sentido, a incontinente sordidez capitalista aclarada, por exemplo, na íntima e criminosa relação entre empresários e políticos no Brasil, apesar de ser um dos males que os cidadãos devem combater, deve, por isso mesmo, servir de carranca insuportável às formações e decisões políticas populares. Se as vilanias político-econômicas como as que estamos conhecendo nos seus mais abjetosdetalhes não servirem ao menos para reunir, política e solidariamente, os cidadãos contra elas, aí sim Kurz terá razão: a economia terá obtido vitória absoluta contra a vida.

Agora, como podem os cidadãos estabelecerem entre/para si uma autogestão democrático-comunicativa em função da vida como um todo e em detrimento da determinação meramente econômica da vida? Minha aposta inicial – em contribuição à proposta habermasiana – é a reconversão dos cidadãos, transformados pela economia em simples consumidores, naquilo que eles nunca deveriam ter deixado de ser, qual seja: indivíduos que constituem, eles mesmos, um Estado, para desse modo usufruírem de direitos civis e políticos. Com efeito, os cidadãos abandonarem o papel de reles consumidores – que o “estado capitalista” os obrigou a encenar para a sua própria bonança – outra coisa não significa, se não o mais certeiro ataque contra esse estado inimigo da vida, ao menos o mais à mão.

Em suma, para que a vida vença a economia dentro de um Estado Nacional, a condição de cidadão não deve mais servir, como vem sendo feito pelos próprios “cidadãos”, para que uns indivíduos se sobrelevem em relação a outros mediante ganhos particulares. Ao contrário, uma cidadania revolucionária em termos habermasianos, isto é, solidária e que se comunique em prol da vida – enfim, que comunique vida! – deve ser aquela que se encontra no pleno gozo de direitos comuns e públicos que permitam, sobretudo comprometam os cidadãos a participarem ativamente da vida política, a fim de que esta não seja mais fraca e derrotada diante do ímpeto da economia, este sim, conhecido de todos.

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Remedievalização

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A Idade Média não se reconhecia como tal. Esse nome epocal foi dado a posteriori, pela modernidade que a seguiu, para indicar o período mediano, intermediário, de mil anos, que separou a grandeza da antiguidade até Roma do século V da grandeza da modernidade Europeia a partir do século XV. A Idade das Trevas, como o século XIX se referia ao medievo, caracterizou-se pela ruralização, pelo isolamento social e pelo obscurantismo da fé em detrimento da urbanização, do cosmopolitismo e do uso da razão.

Isto está sendo colocado aqui para perguntarmos se a história porventura estaria se repetindo, isto é, se o nosso mundo pós-moderno, no qual a globalização e a ciência promovem um desenvolvimento sem igual e aparentemente irreversível, não está se encaminhando para um intermédio histórico trevoso que, uma vez estabelecido, negará os nossos mais elevados valores contemporâneos. Assim como a urbe máxima romana produziu a grande noite histórica conhecida como a Idade Média, assim também a nossa babilônia pós-moderna por acaso não está produzindo um novo e inevitável regresso epocal?

Dizem os historiadores que Roma, e toda a sua surpreendente grandeza, ruiu devido às invasões bárbaras. Levados pela literalidade dessa definição, desde a escola imaginamos que se tratou de ataques muito pontuais e objetivos de bandos bárbaros contra Roma que, depois de algum tempo, devassaram definitivamente a Cidade Eterna, nada deixando aos altivos cidadãos romanos senão a timidez da escuridão medieval.

Entretanto, para mim, a melhor explicação – histórico materialista – desse fato se encontra em uma nota de rodapé de Karl Marx, em O Capital, segundo a qual foi a própria imensidão do Império Romano, mais especificamente a insustentabilidade dessa imensidão, que fez com que, paulatinamente, a sociedade romana precisasse de mais mão de obra e insumos de toda espécie advindos de povos cada vez mais distantes, dos bárbaros, que se tornaram fundamentais à opulência romana. E não tardou até os bárbaros perceberem essa sua centralidade, de modo que, em vez de “invadirem” Roma, eles apenas assumiram que ela já era sua.

Nesse sentido, o atual “povo distante e estanho”, sem o qual as essenciais bugigangas ocidentais, eletrônicas ou não, não são mais possíveis; povo esse cujo dinheiro inclusive salvou os bancos norte-americanos da mega crise financeira de 2008, qual seja, a China, pode estar para o nosso mundo assim como os bárbaros estiveram para o mundus romano. Porventura não será só questão de tempo até a China perceber que o mundo é ela, e então fazer dele o que bem entender?

Todavia, os “bárbaros” que imediatamente ameaçam a nossa contemporânea pax globalizada e cosmopolita são, com efeito, os terroristas religiosos/muçulmanos. Os cada vez mais frequentes atentados de terror que explodem nos/os nossos grandes e populosos centros urbanos – para, obviamente, terem maximizados os seus efeitos destrutivos -, criam imensa desvantagem em se viver em opulentas cidades. Preferir vilarejos e locais esquecidos do mundo, hoje em dia, parece ser o melhor antídoto, tanto contra as organizadas alcateias terroristas, quanto contra os proliferantes “lobos solitários”.

O próprio Império da Ciência, imbatível em se tratando de verdade e de interferência na vida de todos, está, inacreditavelmente, perdendo espaço para toda sorte de crenças e opiniões infundadas, atualmente chamadas de pós-verdades. Intempestivamente, até mesmo universidades reconhecidas decidem investir mais na desacreditada teoria criacionista em detrimento da cientificamente comprovada teoria evolucionista. Será que a base ideológica/religiosa dos “bárbaros terroristas” de que falávamos acima é um terrorismo colateral ao terrorismo explícito que eles espalham pelo mundo?

O neoimpério do dogma sobre a ciência é espécie sorrateira de terrorismo que, entretanto, não tem como ser detectado por leitores de raio-X nem, consequentemente, eficientemente contido. Com efeito, os vigorosos fundamentalismos religiosos, seja o bélico muçulmano, seja o endêmico evangélico pentecostal, são freeways para o passado que pedágio epistemológico moderno algum está conseguindo controlar. O que anda restando aos grandes intelectuais da contemporaneidade contrários a essa onda, infelizmente, é apenas discorrer sobre o neo-obscurantismo que cresce e avassala o mundo científico qual tsunami.

Não podemos deixar de falar dos impertinentes ímpetos xenófobos, racistas, machistas, sexistas e homofóbicos que, com Trump, nos EUA, Le Pen, na França, Petry, na Alemanha, e Bolsonaro, no Brasil, reconduzem-nos a um passado – nem tão distante assim – cuja validade, contudo, parecia ter sido superada. Talvez o passado deva ser encarado como um monstro que nunca morre, mas que sobrevive em modo zumbi, apenas aguardando que o presente baixe sua guarda para atacá-lo no pescoço e sugar a vida que corre em suas veias.

O propósito de listar – alguns – contemporâneos movimentos da nossa dita “sociedade evoluída”, no entanto, em direção a uma extemporânea involução, é perguntar se evolução demais, como desejamos e planejamos, é possível. Assim como Roma, que elevou a quantidades inimagináveis as comedidas qualidades do mundo antigo, foi a produtora da regressão sócio/cultural/urbana trevosa posteriormente chamada de medievo, assim também o nosso mundo contemporâneo superdesenvolvido pode estar sendo o produtor sorrateiro de uma remedievalização do mundo.

Como, vulgarmente, pensamos que tudo o que está indo contra os nossos planos de um mundo ainda mais desenvolvido trata-se apenas de erros a serem sanados, e não, como Marx diria, do resultado material e inevitável dos modos de subsistência da nossa sociedade capitalista globalizada, essas crescentes rachaduras no nosso aparentemente inabalável edifício pós-moderno não são devidamente encaradas. Desse modo, ruem o modus vivendi contemporâneo apressando a sua queda. Se ainda não estamos tombados no chão do passado zumbi que nunca deixou de sustentar as nossas democráticas e digitais torres de marfim (pós)modernas, talvez seja apenas questão de tempo até isso acontecer.

E não nos surpreendamos se trevas tais como as medievais, que estão demasiadamente próximas no nosso cosmopolita horizonte contemporâneo, fecharem o tempo de vez e criarem uma tempestade incontrolável por, digamos, outros mil anos. Infelizmente, qualquer apelo para se evitar tal destino parece ser apenas ingenuidade, uma vez que são precisamente os nossos modos de pensar e de viver os maiores catalisadores do nosso ingresso às “neotrevas”; mais ou menos como os romanos, que, democratizando desde água encanada e esgoto a direitos inalienáveis de cidadania, acreditavam estarem construindo mais evolução, mas que, como a história nos conta, apenas gestaram, no ventre de sua crescente e inacreditável opulência, aquilo que a aniquilou.

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Sobre o monopólio da violência

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Foto: Ana Carolina Fernandes – Greve Geral, Rio de Janeiro, Cinelândia, 28 de abril de 2017.

Discordemos do Estado, e, no melhor dos casos – como quando trabalhadores protestam na defesa de direitos constitucionais – recebemos bombas de gás e balas de borracha. A repressão do Estado na greve geral de 28 de abril, no Brasil, não deixa dúvida disso. No pior dos casos, como na Síria atualmente, cidades inteiras são dizimadas com armas químicas e ataques aéreos. O monopólio da violência pelo Estado é sempre tirânico, independente de o Estado ser democrático ou tirânico. E se essa violência, que monopolizada é sempre despótica, fosse democratizada? Será que não seria menos violenta?

O monopólio da violência pelo Estado é didaticamente explicado pela teoria política do filósofo Inglês Thomas Hobbes, que justifica essa posse exclusiva no medo natural dos homens da “morte violenta”. Grosso modo, o substantivo medo dos homens de serem mortos, violenta e intempestivamente, por outro ou outros homens fez com todos travassem um “contrato social”, um trato coletivo no qual todos abrem mão do “direito natural” de matarem uns aos outros em caso de necessidade, para então terem o direito artificial, nomeadamente civil, de não serem mortos; ou, caso isso aconteça, que justiça seja feita.

Só que esse “contrato social” – e isso não mistério para ninguém – de forma alguma extinguiu as mortes violentas e injustas. A violência da qual o homem quis se ver livre, na verdade, foi transferida toda ela ao Estado, ou, na imagem clássica de Hobbes, ao Leviatã. Só ele pode matar, violenta e injustamente, sem sofrer punição, como comprovam, por exemplo, os cotidianos assassinatos de suburbanos cariocas pelo Estado, na figura da polícia militar – que, segundo os coros populares desde a primavera brasileira: “Não acabou. Tem que acabar. Eu quero o fim da polícia militar”. Entretanto, por mais monstruoso que o Leviatã possa parecer, Hobbes insiste, em outras palavras, que esse é o melhor e mais racional dos mundos.

Para o filósofo contratualista, quebrar o contrato, ou seja, retirar do artificial Leviatã o monopólio da violência é o ato mais irracional possível, uma vez que o Estado é resultado dos melhores cálculos humanos a respeito da segurança. Em suma, para o liberal Hobbes, a revolução do Estado será sempre para pior; devolver-nos-ia imediatamente ao “estado de natureza” no qual, conforme suas célebres expressões, há a “guerra de todos contra todos”: estado no qual “o homem é o lobo do homem”. Por isso, justifica ele, a violência deve ser posse do Estado, tão somente dele.

Entretanto, e quando o Leviatã, cuja função essencial é transformar o Homo homini lupus no “cachorrinho melhor amigo do homem”, falha, deixando seus súditos temerosos não só de serem mortos violentamente uns pelos outros, mas, sobretudo, pelo próprio Estado, como de fato ocorre cada vez mais banalmente? Pior ainda: e quando esse Estado delibera que são os súditos os lobos e usa sua monopolizada violência não para protegê-los, mas para proteger-se deles? Porventura não temos aí um mau contrato, que deve ser quebrado para que possamos travar outro que melhor nos sirva?

Falta-me comprovação estatística, mas minha intuição sugere que o número de mortes no “estado de natureza” seria o mesmo que temos no artificial Estado Civil, com a diferença que, no primeiro caso, essas mortes seriam cometidas pelos homens e em nome dos próprios homens, e, no segundo caso, seriam feitas outrossim por homens, não obstante, em nome do Estado. Se essa minha ideia não pode ser comprovada cientificamente, ao menos pretende questionar a capacidade da violência, monopolizada pelo Estado, de assegurar aos homens que eles não serão mortos violenta e injustamente. Porventura seria um barbarismo imperdoável propor uma redemocratização da violência, mediante a suspensão, ainda que experimental, de sua posse pelo Estado, para vermos se assim estaríamos algo mais seguros?

Para relativizar o lugar-comum que repete que as pessoas não podem e não devem agir violentamente – lugarzinho esse que nos faz gritar, em coro, “Sem violência” até mesmo quando estamos engolindo, violentamente, litros de gás lacrimogêneo comprados pelo nosso violentador com o nosso dinheiro -; faço questão de comentar uma cena do seriado norueguês Fortitude, que se passa em uma isolada cidadezinha, no extremo norte do mundo, encravada em uma geleira.

O que há de promissoramente reflexivo nesse exemplo ficcional é que, pelo fato de os cidadãos de Fortitude viverem na tundra, precisam, todos, ter armas para se protegerem dos ursos polares que coabitam o local. Quando, então, a governadora local pretende impor medidas antipopulares aos cidadãos, alguém lembra ela que isso não pode ser feito, pois, como ser impopular em uma cidade onde o povo é armado e pode responder com igual ou maior violência a violência que receberá? Fortitude sustenta uma pergunta fundamental: e se o Estado, para não ser injustamente violento com o povo, precise estar sujeito à violência deste?

Certamente dirão que armar o povo é uma ideia fascista, diga do execrável Bolsonaro. O problema dessa crítica, contudo, é que ela pressupõe que as pessoas deveriam ter armas apenas para matar umas às outras. Todavia, o exemplo de Fortitude mostra que os cidadãos devem ser armados para se defenderem de feras, de bestas, de “monstros não humanos” que os ameacem violentamente. Os moradores da geleira fictícia não têm armas para as usarem contra si próprios – ainda que isso possa acontecer acidentalmente. E se, como dissemos, o Leviatã não é um cidadão, mas um ser artificial criado por cidadãos, um “monstro”, por assim dizer, então, usar de violência contra ele quando ele é desmedidamente violento significa defender os cidadãos.

Muitos, dirão, decerto, que nos EUA, país com a população mais armada do mundo, o Estado não se sente ameaçado nem deixa de agir violentamente sempre que julga necessário. Com efeito, para que o Leviatã norte-americano tivesse medo dos milhões de sobrinhos do Tio Sam, seria preciso que estes tivessem não apenas pistolas, mas algumas centenas de ogivas nucleares. Afora o absurdo dessa ideia, ela deve ao menos nos levar a pensar que o atual Leviatã norte-americano só seria moderado pelo seu povo se este fosse “nuclearizado”. E isso porque há muito tempo só o Estado deteve a posse da violência. Ora, deixe isso acontecer por alguns séculos, e, voilà, a violência será patrimônio inalienável do Estado.

Seria pretensão demais querer descobrir a forma de acabar com o monopólio da violência pelo Estado. Entretanto, qualquer movimento nesse sentido só será possível se, primeiro, refletirmos sobre esse monopólio, sobretudo quando ele não entrega o que promete. Pior ainda, entrega o contrário: mais violência e mortes aos cidadãos.

Se a física comprova que qualquer ação suscita uma reação de mesma intensidade, porém, de sentido contrário, então, aceitar ser violentado pelo Estado sem ter a liberdade de reagir com igual violência contra ele é se alienar em uma dimensão metafísica que, com efeito, apenas permite ao Estado seguir agindo impune e injustamente. Esperar não-violência do violentíssimo Leviatã tupiniquim, por exemplo, é crer ingenuamente não só que Deus é brasileiro, mas que Ele, mistica e milagrosamente, irá livrar-nos do “Lobo do Estado”.

Que virtuosas reformas econômicas, políticas, sociais, culturais, éticas, etc., são necessárias para que possamos, novamente, ter a violência democratizada, porém, sem que a voltemos viciosamente contra nós mesmos, mas, ao contrário, possamos usá-la, conjuntamente, contra os “monstros” nossos inimigos, por exemplo: o Estado injusto e violento? Não nos esqueçamos jamais: essa mudança não virá do além sobrenatural, mas do aquém natural dos próprios homens que, ao passo que não querem ser mortos nem violentados injustamente, muito menos podem aceitar tal violência justamente de quem foi posto no mundo – e por eles! – para protegê-los dela.

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A pior república

pior república

Assistir às delações do fim-do-mundo protagonizadas pelos Odebrecht produz um sentimento angustiosamente ambíguo em quem é povo. De um lado, há a profunda tristeza em se saber que eles – e oligarcas de mesmo calibre – cometeram, subterrânea e livremente, crimes contra a república, e, nas palavras do Odebrecht pai, pelos últimos trinta anos. De outro lado, há a estranha felicidade de se ver estes mesmos crimes antirrepublicanos sendo finalmente desenterrados, divulgados, em suma, publicizados. Que país foi esse, estamos, como nunca, cientes. Agora, relembrando a música da banda brasiliense Legião Urbana, como saber “Que país é esse”? E, mais ainda, que país será esse?

A República Federativa do Brasil está em uma encruzilhada histórica em plena e ardente luz do meio-dia. Aquilo que até então ainda se tinha por res publica, ou seja, o governo, o parlamento, até mesmo as leis, tudo isso se revelou a mais funcional res privata de meia dúzia de empresários que compram toda sorte de políticos, de vereadores à presidentes da república, tanto para monopolizarem os orçamentos públicos, quanto para aprovarem leis que os beneficiem e enriqueçam ainda mais. A única res publica, melhor dizendo, a única coisa que é realmente pública nesse momento de sangria aberta é o conhecimento de que o Brasil é uma res privata, isto é, uma coisa privada de uma criminosa oligarquia político-empresarial.

O golpe de Estado de 2015 comprova a mesma situação. A quadrilha de políticos e empresários – corruptos e corruptores, respectivamente –, que deslegitimaram a democracia para não ter seus longevos esquemas criminosos descobertos e punidos, e isso ao vivo, em cores e em cadeia nacional, também atesta que a administração da res publica em benefício da res privata, hoje em dia, não tem pudor algum em ser publicizada. O golpe militar de 1964 ao menos teve a virtude de mentir, a desumanos custos, é preciso dizer, que defendia a república. Já o atual, é assumidamente particularista. Como o telefonema de Romero Jucá, tornado público, relembra-nos em baixíssimo e mau tom, o golpe foi para “estancar a sangria”, ou seja, para encerrar as investigações que levariam à prisão aqueles que fazem do Brasil uma res privata.

Publicidade é uma ideia chave na realidade republicana. Tudo o que, direta e indiretamente, afeta e interessa os cidadãos de uma república deve necessariamente se tornar público, afinal, como a etimologia da palavra não deve deixar esquecer, “público” é tudo aquilo que diz respeito ao povo. Pois bem, crimes de lesa-pátria como os da Odebrecht e afins são duplamente antirrepublicanos. Em primeiro lugar, porque são cometidos às escondidas, longe de qualquer publicidade; e, em segundo lugar, porque fazem da res publica res privata. Já o crime golpista de 2015 é antirrepublicano apenas pela segunda razão, pois a primeira, a falta de publicidade, não foi expediente utilizado. Mostraram a cobra morta, a democracia, e o pau assassino, o acordão golpista; e isso em muitas sessões televisionadas e telefonemas publicizados.

Entretanto, embora ambos os crimes acima citados sejam antirrepublicanos por natureza, antes mesmo de serem devida e finalmente tornados públicos por vias jurídico-midiático-institucionais, o que, por assim dizer, é o mínimo a ser feito para que haja algo que se pareça com uma república, esses crimes já se publicizavam sintomaticamente, e da pior forma possível, há pelo menos o mesmo tempo, por exemplo, na forma de uma saúde pública, uma educação pública e uma segurança pública por demais insuficientes. A presente “falência” dos serviços públicos de estados como o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, só para citar dois, mostra como a não publicidade estratégica de roubos à coisa pública cometidos por políticos e empresários acaba sendo, inevitavelmente, contemporânea de uma desassistência em relação às necessidades básicas do povo, essa sim, tacitamente pública e publicizada.

Nessa conjuntura, a república é cruelmente parcial: apenas os problemas são tornados públicos, não aquilo e aqueles que os causam. No entanto, na “encruzilhada sangrenta” em que o Brasil se encontra, com Odebrechts e OASses revelando cruamente e em cadeia nacional os seus muitos e longevos crimes contra a res publica, ao menos tem-se a oportunidade de que as causa e as consequências das mazelas brasileiras se tornem, ambas, públicas. O povo, há muito consciente de sua desassistência por parte do Estado, agora tomando conhecimento de que isso se dava porque o Estado estava voltado para os interesses de meia dúzia de megaempresários, obviamente não tem diante de si a melhor visão do mundo, mas, ao menos, o grotesco quadro do seu mundo real.

Talvez o Brasil esteja experimentando, pela primeira vez, o que é essa coisa chamada república com a publicidade não só de seus problemas, mas sobretudo das causas até então ocultas deles. Se o país era uma república de fachada, por trás da qual a coisa que deveria ser pública era manipulada para atender os interesses privados de poucos, agora esse biombo está no chão. Hoje, mais do que nunca, é insuportavelmente público o que fazia da aparente res publica uma verdadeira res privata. Com efeito, se isso constitui o primeiro degrau autêntico da nossa república, convenhamos, é a pior república: aquela que publiciza apenas o fato de que a coisa pública não é do povo. Entretanto, não se chega a patamares mais elevados sem passar pelos mais baixos.

A virtude de, em uma república, ser dado publicidade a tudo aquilo que afeta e interessa o povo, até mesmo e inclusive aquilo que o priva de sua, e tão somente sua, res, é a oportunidade de se criar instituições adequadas que, doravante, impeçam que a res publica seja voltada a interesses meramente privados. It´s a long way home, folks! ButThis is the only way. O fim do roubo à república sistematicamente cometido pela criminosa sede privada de modo algum será uma dádiva ao povo, mas sim a batalha dele – nossa! – para que uma res que é e deve ser publica não seja privata, e pouco importa se às escondidas ou publicamente.

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O novo avatar do velho suicídio

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As discussões públicas sobre jogo da Baleia Azul quizz internético no qual deve-se cumprir 50 tarefas, que vão desde desenhar uma baleia azul em uma folha de papel; passando pelo autoflagelo e pela mutilação do próprio corpo; terminando com o suicídio dos jogadores – estão envoltas ou em achismos reativos, ou em psicologismos reducionistas ao pior estilo auto-ajuda de televisão. O vício dessas discussões é pretender que a particularidade do evento Baleia Azul explique a universalidade do suicídio, quando na verdade, o método deveria ser invertido. Aqui tentaremos fazer esse outro caminho, percorrendo inicialmente algumas das ideias do filósofo francês Émile Durkheim presentes no seu grande tratado sobre o assunto, chamado: “O Suicídio”, e, a partir delas, pensar o fenômeno da Baleia Azul.

Um dado fundamental dito por Durkheim, que certamente furta o catastrofismo da presente onda de suicídios, é que “cada povo tem uma taxa de suicídio que lhe é pessoal”. Mutatis mutandis, o suicídio é um fato cultural; varia de sociedade para sociedade; de cultura para cultura; estando, no entanto, presente em todas e em todos os tempos. O suicídio não é uma anomalia, mas uma expressão social, senão necessária, ao menos, segundo o nosso filósofo, “com uma taxa mais constante do que a mortalidade geral”. Durkheim vai mais longe ainda, dizendo que “cada sociedade se predispõe a fornecer um contingente determinado de mortes voluntárias”. A partir dessas considerações, devemos refletir de modo menos vulgar e reativo sobre os presentes suicídios causados pelo jogo da Baleia, vendo neles não o “fim do mundo”, mas apenas a nova roupa, ou, por se tratar de uma interação mediada pela Internet, o novo avatar do velho e constante suicídio.

Compreender o suicídio pelo que ele é passa por saber, por exemplo, que, como mostra Durkheim, “é nas classes mais cultas e mais abastadas que o suicídio faz mais vítimas”. A presente superficialidade das discussões sobre a Baleia Azul bem pode estar tentando preservar a insustentável pax burguesa daqueles que criam os seus filhos imersos – ou desejando se imergirem – na riqueza, como se se tratasse de um valor algo importante à vida. Será que estamos prontos para relativizar a ideologia da abundância no sentido de nos protegermos do suicídio? Outro dado interessante é que “o suicídio é mais comum na cidade do que no campo”. Aqui também podemos ver que a escolha cosmopolita de se viver em grandes e densos centros urbanos apenas predispõem mais ainda ao suicídio. Novamente: quem está disposto a uma vida bucólica e interiorana apenas para estar livre do espectro do suicídio?

O maior pecado das atuais reflexões sobre as vítimas da Baleia Azul, no entanto, é pretender resumir a problemática dizendo que a causa desses suicídios é ou a depressão, ou a insanidade mental dos jovens suicidas. Durkheim, contesta essa ideia. A certa altura dos seus estudos, ele percebeu que “a loucura é muito mais frequente entre os judeus do que nas outras confissões religiosas”. Não obstante, verificou também que “a propensão ao suicídio entre os judeus é muito fraca”. Estimulado por esses dados, Durkheim viu que o mesmo acontecia a despeito de determinações religiosas; que, de modo geral, “os países em que há menos loucos são aqueles em que há mais suicídios”. Assim chegou à revolucionária conclusão de que “o suicídio varia na razão inversa dos estados psicopáticos”. A loucura, de certo modo, seria um antídoto contra o suicídio.

Aos que insistem em que as causas do suicídio são psicopatológicas, Durkheim faz uma concessão, dizendo que “se a tendência ao suicídio constitui uma variedade da loucura, só pode ser uma loucura parcial, e limitada a apenas um ato”. Em outras palavras, o suicida não é um louco, mas um quase-louco, que age tresloucadamente apenas no ato de se matar. Essa quase-loucura, na letra de Durkheim, é chamada de “monomania”. Para o filósofo, “o monomaníaco é um doente cuja consciência é perfeitamente sã, salvo em um ponto: ele apresenta uma tara, e nitidamente localizada”. No caso dos suicidas, a tara de se matar, e nitidamente localizada no instante em que o faz. Encerrando essa discussão sobre loucura e suicídio, o filósofo diz que “se existe, portanto, uma loucura-suicídio, ela só pode ser uma monomania”.

Entrementes, o peso da monomania não recair exclusivamente nas costas dos suicidas. Enquanto paranoia que fixa uma única ideia ou conjunto de ideias na cabela de alguém, a monomania é um pathos assaz universalizado nesse nosso mundo obsessivo-compulsivo. A monomania, diz Durkheim, “é simplesmente, na ordem das tendências, uma paixão exagerada, e, na ordem das representações, uma ideia falsa”. Ora, quem de nós, não-suicidas, não exageramos nas nossas paixões e não temos pencas de ideias falsas? Se, como disse o nosso filósofo, a monomania é uma quase-loucura que provoca o suicídio, temos de insistir no fato de que ela também é uma compulsiva paixão que move milhões de pessoas vida adentro.

Para Durkheim, suicídio é toda morte que resulta, a longo prazo ou imediatamente, dos atos da própria vítima. Ser anorexo ou obeso; fumar; ingerir álcool em demasia, consumir advertidamente alimentos com agrotóxico; respirar o ar poluído das grandes metrópoles; até mesmo destruir a natureza como todos estamos fazendo; tudo isso é, na lógica durkheimaina, suicídio. É… o nosso mundo conta com muito mais suicidas – mediatos – do que supõe a nossa vã filosofia. O que talvez mais perturbe nos suicídios das vítimas da Baleia Azul seja não só a imediatidade destas mortes, mas o fato de serem uma nova moda, um novo avatar mortal para essa imediatidade.

Há diferentes espécies de suicídio. Durkheim no entanto as reduz em quatro tipos. Em primeiro lugar, o suicídio maníaco, no qual o indivíduo se mata para fugir de um perigo ou de uma vergonha imaginários. Em seguida, o suicídio melancólico, relacionado a extremas depressão ou tristeza. Há também o suicídio obsessivo, cometido por quem se vê tomado pelo desejo de se matar, embora saiba perfeitamente que não há motivo racional algum para tal. E, por fim, o suicídio impulsivo ou automático, que é aquele que surge intempestivamente, eclodindo e levando à morte num verdadeiroautomatismo, tão previamente indetectável quanto incontrolável.

Contudo, será que todos os suicidas vítimas da Baleia Azul podem ser colocados em uma única dessas quatro categorias suicidas? Provavelmente não. Independentemente de Baleias online e do fato de ser adolescente, pessoas de todas as idades e culturas se matam por qualquer uma das quatro vias, ou ainda pela combinação de duas ou mais delas. Sequer é absurdo imaginar alguém misturando os quatro suicídios durkheimianos em um, por exemplo: desejando se matar para fugir de uma vergonha imaginária que, por sua vez, gera extremas tristezas, mesmo sabendo que não há motivo racional para tanto, mas que, por algum automatismo que se instalou nas ideias dessa pessoa, o suicídio é levado a cabo como se de necessidade se tratasse.

Com efeito, seria reducionista demais tentar colocar todas as jovens vítimas da Baleia Azul em uma única categoria durkheimiana de suicídio. Faríamos o mesmo que as superficiais discussões sobre o caso. Entretanto, do nosso filósofo é preciso ter em mente duas ideias. A primeira, que “viver é responder às excitações externas de maneira apropriada”; e a segunda, que “o suicídio é, antes de tudo, o ato de desespero de um homem que não faz mais questão de viver”. Suicidar-se, portanto, seria perder a esperança, ou ainda, não fazer mais questão de responder às solicitações da vida.

E não é preciso ser adolescente partícipe de jogos mortais online para saber o que é a frustração de não se conseguir corresponder apropriadamente às solicitações desse esquizomundo capitalista no qual vivemos. Esse mundo, aliás, é feito para que não consigamos atendê-lo apropriadamente. Fazemos isso, como se diz, “aos trancos e barrancos”. Desse modo, quando nos perguntamos por que os adolescentes estão se matando por conta de um joguete da Internet, devemos saber que os motivos que os levam a isso são os mesmos que pairam sobre as cabeças de todos, com o mesmo insuportável peso. A maioria consegue driblar esse inimigo. Uma minoria, contudo, sempre sucumbe, e das mais variadas formas. As vítimas da Baleia Azul só encontraram outro meio para realizarem essa percepção de que é impossível atender apropriadamente às solicitação desse nosso esquizomundo.

De fato, como estamos insistindo aqui, e com a ajuda de Durkheim, a Baleia Azul é apenas a mais nova “roupa do rei” suicídio; o último avatar que dá vida à impossibilidade de se viver apropriadamente. Porventura seria inumano retirar a aura escatológica da Baleia Azul, uma vez que, de um lado, como mostrou Durkheim, o suicídio é um fato cultural universal, mais constante nas sociedades do que as mortes não voluntárias; e, de outro lado, dado que é só a nova moda em matéria de suicídio? O espanto com os suicídios causados pelo jogo da Baleia deve ser domado pela compreensão do suicídio enquanto um universal humano. Até porque toda moda, passa; o que não passa, garante o nosso filósofo, é o próprio suicídio.

O que mais espanta a “opinião pública” não-suicida, e inclusive os suicidas tradicionais, é que as mortes voluntárias causadas pelo jogo da Baleia não são nem solitárias, nem tampouco solitariamente decididas, mas, ao contrário, ordenadas e assistidas por um outro, ou por outros que habitam a profundidade insondável da Web. Entretanto, para uma geração que não consegue mais viver off-line, também o suicídio não poderia deixar se ser online, youtubizado, instagramizado, curtido e compartilhado. Reflexo dos novos costumes, folks.

Vivemos em uma era de liberalidade extrema que prega que as pessoas devem ser livres para fazerem o que bem entendem. Atualmente há liberdade inclusive para se discordar do sexo biológico com o qual se nasce em função de sexualidades subjetivas. A virtude do discurso padrão é sustentar que as pessoas devem usufruir de suas liberdades desde que não privem os outros das suas. Agora, a liberdade de não mais viver, que de modo algum priva os demais de viverem, ah!, essa segue negada, mistificada. Se ainda estamos vivendo em uma tirania da vida, os jovens seguidores da Baleia Azul são apenas os mais novos rebeldes dissidentes. Quanto tempo demorará para que as nossas sociedades mantenedoras de estáveis índices de suicídio finalmente pensem como o título daquela música do Guns N’ roses: Live and let die, ou seja, viva e deixe morrer?

Nesse sentido, o filme “A descoberta”, de 2017, contribui muito, ainda que perturbadoramente. Na ficção, um cientista internacionalmente reconhecido (Robert Redford) comprova que a consciência humana não é causada pela matéria, e que, portanto, sobrevive à morte física, continuando em um outro plano. A surpreendente resposta social a essa descoberta é uma onda incontrolável de milhões de suicídios de pessoas que querem “passar para o outro lado”. Estes suicidas não são mais estigmatizados pelos que permanecem vivos, afinal, todos já sabem que não se deixa de existir pelo simples fato de se deixar de viver. A pertinência do filme está em acabar com a dicotomia entre vida e morte, fazendo da morte apenas uma outra vida; suicidar-se, na ficção, passa a ser como ir viver em um outro continente.

Como, entretanto, no mundo real não sabemos o que há depois da vida, não só o suicídio – enquanto curiosidade e experiência mórbidas -, mas sobretudo o tabu em respeito ao suicídio, permanecem. Bebem dessa ignorância, aliás. Insólita condição essa a do ser humano de saber que vai morrer, mas sem saber nem quando nem o que é a morte. Suicidar-se é, para dizer o mínimo, eliminar a primeira dúvida. Já a segunda, isto é, saber o que é a morte, sua resposta ainda não tem como ser objetivada. Se isso acontecer algum dia, como em “A Descoberta”, o suicídio parecerá mais com que Durkheim mostra no seu tratado, isto é, um fato cultural; uma expressão social; em suma: uma particular não-relação com vida que, a contragosto da nossa ideologia dominante, cresce na medida da abundância da própria vida: quando ela é mais culta, mais rica, mais urbana; e, como os seguidores da Baleia Azul expressam, mais tecnológica.

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“We need to talk about” democracia

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Ninguém mais questiona a democracia. Cremos nela cegamente, como se estivéssemos diante de Deus, contra o qual é heresia suprema levantar a mínima suspeita. E pouco importa saber que Hitler tenha ascendido ao poder democraticamente na Alemanha pré-nazista, ou que, no Brasil de há um ano, um bando de criminosos corruptos tenham deposto injustamente uma presidenta por vieses outrossim democráticos: continuamos defendendo a “nossa democracia”. Agora, uma coisa é preciso perguntar: democracia de quem – e para quem! – cara pálida?

O mordaz Nelson Rodrigues disse certa vez que “toda unanimidade é burra”. Aplicando essa chave rodrigueana à generalizada ideia de que a democracia é condição política padrão e obrigatória, não é difícil concluir que há grande falta de inteligência política. Não só o povo, que se compraz com a tradução literal de democracia (“o governo do povo”), mas também todas as importantes instituições internacionais, e, sobretudo, a classe burguesa/dominante prescrevem nada além da democracia como base da justiça e plataforma para um presente e um futuro melhores. Até mesmo os governos autoritários não podem deixar de, ao menos, encenarem eleições democráticas, mesmo que subterraneamente fraudadas. Mas, como ressalta Francis Fukuyama, “o simples fato de um país possuir instituições democráticas nos diz muito pouco se é bem ou mal governado”.

Deus, há muito tempo, não é mais amor. Hoje em dia Ele é democracia. E projetamos essa deidade, vertical e inquestionavelmente, sobre o universo das sociedades humanas. A democracia se tornou tirana! Interessante é o comentário de Fukuyama sobre a invasão dos Estados Unidos no Iraque, em 2003, cujo objetivo era derrubar a ditadura de Saddam Hussein para lá instalar a democracia. Realizada a primeira parte do plano, certamente a mais fácil, restou aos norte-americanos a frustração de ver que somente a anarquia teve lugar no país “libertado”. Diante desse fato, em vez de os sobrinhos do Tio Sam – e boa parte do mundo – questionarem a própria democracia, melhor dizendo, a impossibilidade e ou a impertinência de ela ser aplicada indiscriminada e universalmente, a imperfeição foi aplicada sobre sobre o povo iraquiano, suas instituições e costumes.

A impossibilidade de a democracia ser universalizada vem, em primeiro lugar, dos diferentes significados que ela tem, não só para diferentes sociedades, mas, mais essencialmente, para o povo e para os poderosos de uma mesma sociedade. Com efeito, o povo acredita ingenuamente que todo poder emana dele. Já os poderosos de hoje em dia sabem muito bem que todo poder emana do seu capital. É como se o povo acreditasse que democracia ainda é e deve ser aquilo que acontecia na antiga Atenas, uma democracia direta, sem saber, contudo, que tal regime era privilégio de apenas 10% daquela população. Direta para quem, cara pálida? Já a burguesia, desde a sua revolução, a Revolução Francesa, aventurou o mundo na sua própria e mui lucrativa democracia: a democracia representativa ou liberal; de um lado, iludindo o povo com a ideia de participação política nas decisões públicas mediante o singelo expediente do voto; porém, por todos os outros lados, monopolizando a res publica tiranicamente. A Odebrecht que o diga!

Desmistificando a virtude da antiga democracia direta ateniense para além do fato de ela considerar demos, isto é, povo, apenas 10% da população – o que, mutatis mutandis, no melhor dos casos, significava uma aristocracia, e, no pior, uma oligarquia – temos a clássica teoria política de Aristóteles segundo a qual exitem seis formas de governo; Três delas essencialmente boas: monarquia, aristocracia e regime constitucional (ou, na letra do filósofo, a politeia). As outras três, essencialmente ruins, porque são as degenerações das três primeiras, respectivamente: tirania, oligarquia e democracia. Já à época, a ilustre democracia direta ateniense tinha seus críticos, pois confundia-se com a anarquia, ou seja, a ausência de governo. 1800 anos depois Maquiavel ainda sustentava a teoria das formas de governo aristotélica, porém, em vez de opor a virtude da politeia aos vícios da democracia, nas palavras do italiano essa oposição se apresentava entre a virtuosa república e a viciosa licenciosidade, outro nome para a anarquia.

Como podemos ver, durante a maior parte da existência da civilização humana, a democracia foi considerada uma forma corrompida de governo, indesejável pelos maiores pensadores políticos. Foi apenas recentemente, desde a Revolução Francesa burguesa, que a democracia se vestiu com a toga da virtude inquestionável, obviamente, sem esclarecer ao demos que era essencialmente burguesa: para e pelos os burgueses. Mesmo assim o mundo ainda resistiu em universalizá-la. Fukuyama nos conta que 1973, apenas 45, dos 151 países do mundo eram democráticos, “livres” – um terço deles. Somente no ano de 2000 é que a democracia foi majoritária, com 60% dos países sendo governados democraticamente.

Só que, como Aristóteles e Maquiavel nos diriam, essa nossa contemporânea conjuntura democrática não teria como se sustentar, dado o princípio de corrupção intrínseco à própria democracia, seja ela direta, seja representativa. Prova disso é que, diz Fukuyama, de 2000 a 2010 20% dos países democráticos reverteram ao autoritarismo. O presente processo de autoconversão de Erdoğan em ditador, na Turquia de 2017, é apenas mais um capítulo desse afastamento do sonho democrático que por uma breve noite encantou o mundo. Sobre a democracia, Fukuyama tem uma boa tirada sobre a democracia, que certamente agradaria a Aristóteles e Maquiavel: “é como uma fábrica de salsichas, parece menos atraente quanto mais perto se chega do processo”. Talvez seja por isso que nós, brasileiros, estejamos clamando tanto pela “nossa democracia”: estamos distantes dela.

Quando a democracia está ausente, o que lembramos dela é a sua aura grega antiga, na qual os cidadão – na verdade os pouquíssimos que tinham o privilégio de serem considerados com tais – governavam. Já quando ela está presente, a exclusão que gera, ainda mais na democracia liberal, é tácita insuportável. E isso porque, na realidade, democracia não é a falácia da maioria da população decidindo sobre a sua res a partir do tímido e esporádico parlatório das urnas, mas, como a burguesia faz questão de esconder – ou pelo menos fazia até estrear espetáculos escatológicos tal como o protagonizado no Brasil pela Odebrecht -, a democracia é o expediente com o qual, relembrando Marx, a burguesia gere o seu bureau privado: o Estado.

Por mais que hoje em dia queiramos “a nossa democracia de volta”, é preciso considerar o preço desse desejo. Do contrário, seremos como o viciado em heroína que deseja cegamente aquilo que o escraviza e mata. Por que não considerar o que nos legaram gênios como Aristóteles e Maquiavel, cujas obras sustentam que há uma forma de governo virtuosa – a constituição civil ou politeia, para o grego; o governo popular ou a república, para o italiano – em relação a qual a democracia é a forma degenerada, licenciosa, anárquica? Será por burrice mesmo, como diria o dramaturgo brasileiro, que seguiremos todos, povo e poderosos, ricos e pobres, incluídos e excluídos, desejando unanimemente a mesma coisa? Seja a democracia direta antiga, seja a representativa/liberal moderna, elas sempre serviam apenas às minorias, mais especificamente: os poderosos, os ricos, os incluídos. Jaz aí a sua corrupção essencial. Dessa visada, a burrice é do povo.

Quanto tempo ainda demorará para que enxerguemos a armadilha democrática com a qual os privilegiados nos capturam, e, doravante, passemos a desejar, mas não só isso, comecemos a construir um governo verdadeiramente virtuoso à maioria, algo como a politeia aristotélica ou a república maquiaveliana? Ainda que, nós, os muitos do povo, ainda não saibamos como instituir um governo autenticamente popular, podemos devemos começar esse processo abandonando esse coro, unânime e burro, em nome da democracia, que, na verdade, desde sempre foi em nome de poucos e poderosos. We need to talk about democracia. Precisamos criticá-la duramente pelo que ela é: a corrupção do que significa um legítimo governo da maioria e para a maioria.

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Falácias humanitárias

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Há um ano, quando do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, paralelamente às manifestações populares propriamente políticas contra o democraticídio, houve um evento no Rio de Janeiro chamado “Ioga contra o golpe”. Nada contra as tradicionais disciplinas físicas e mentais indianas, que fazem bem tanto ao corpo quanto à mente dos seus praticantes. Agora, acreditar que cuidar do próprio umbigo físico e metafísico faria qualquer verão contra o inverno golpista que abriu a “era do gelo” ao Estado de bem-estar social brasileiro, convenhamos, é mais do que ingenuidade: é alienação ipsis litteris. E a direita golpista só tem a agradecer às ações “políticas” dos “yoggers contra o golpe”.

Está sendo divulgado um vídeo com o comediante Marcelo Adnet no qual ele convida os cariocas para um evento musical na Fundição Progresso chamado “Rock por Aleppo”, cujo objetivo é destinar 100% do valor arrecadado no festival às crianças afetadas pela guerra civil síria. Até aí nada de absurdo, pois, desde o “We are the world” do pedófilo Michael Jackson, “pela fome na África”, em 1985, assim caminha o humanitário. O que, entretanto, denuncia a imperdoável alienação do “Rock por Aleppo” é o restante do convite de Adnet, que, com seu sorriso falso à la Jim Carrey, diz o seguinte: “Venha se divertir e ao mesmo tempo ajudar as crianças da Síria!” Em outras palavras, “o máscara” tupiniquim convida-nos para assistirmos aos nossos músicos prediletos, bebermos nossas cervejas geladinhas, dançarmos alegremente junto de nossos amigos, e, ainda assim, acreditarmos que estamos fazendo alguma diferença contra o crime quiçá mais hediondo da atualidade: a “explosão” de crianças inocentes em função uma guerra feita por adultos culpados de poder.

O humanitarismo, decerto, chega até nós com muitas e distintas máscaras. Por trás de algumas delas, no entanto, não há nada de humanitário, apenas uma performance vazia, ou, o que pode ser pior, um egoísmo incapaz de se assumir, a não ser sob o espetaculoso disfarce do altruísmo. O filósofo Slavoj Žižek nunca teve papas na língua para denunciar que o real objetivo dos ricos países do primeiro mundo que dispendem vultuosas ajudas humanitárias aos pobres países do terceiro mundo é mitigar a culpa oriunda da consciência de que são precisamente as suas abundantes riquezas que causam, por mil vieses capitalistas, as aviltantes pobrezas em cada vez mais cantos do mundo. Basta estes afortunados países mandarem algumas migalhas aos miseráveis – que só são miseráveis relativamente às fortunas deles – e, voilà, os ricos podem fruir de suas bonanças mais tranquilamente.

Esse expediente dos países ricos de enviarem alguns trocados aos distantes necessitados pobres, com o objetivo de dirimir algo dos males do capitalismo, e que se apresenta sob o manto cada vez mais canastrão do humanitarismo, merece um neologismo só seu, que me arrisco aqui a chamar de “humanetarismo”: um humanitarismo meramente monetário, baseado no envio de algum dinheiro a quem precisa, desde que quem o envie nada mais precise fazer. Claro, o que deveria ser feito, o que realmente resolveria os problemas da miséria e da radical desigualdade socioeconômica mundial, seria o deliberado desinvestimento nesse sistema – capitalista – produtor de desigualdades radicais e de misérias extremas em nome de riquezas cada vez mais astronômicas concentradas em menos mãos.

Todavia, o exemplo do “Rock por Aleppo” mostra que é mais do que apenas enviar algum dinheiro aos desendinheirados o que esse “humanitarismo” está planejando. Ao mesmo tempo que pretende destinar alguns tostões às crianças vitimadas pela guerra síria – movimento no entanto absolutamente paliativo, pois não toca na causa do problema, apenas a remedia -, esse “humanitarismo” quer fazer isso mediante o prazer hedonista dos pretensos “humanitários”; via boa música, boa iluminação, bom ar-condicionado, boas bebidas, tudo isso rodeado de pessoas bonitas e bem vestidas dentro de um espaço devidamente gentrificado e, o que é mais importante, bem distante do real problema que imaginam resolver. Dessa visada, o “humanetarismo” diz pouco desse humanitarismo tacitamente hedonista. Mais apropriado seria outro neologismo, que sou tentado a chamar de “hedonitarismo”: o humanitarismo que se dá mediante o prazer hedonista de quem pretende agir humanitariamente.

O verdadeiramente hedonista e duvidosamente humanitário “Rock por Aleppo”, que nada faz para que adultos culpados deixem de explodir crianças inocentes, apenas pretende enviar “lotes de Band-aid” às feridas delas, pode ser colocado no mesmo saco de alienação do verdadeiramente egoísta e vergonhosamente político “Ioga contra o golpe”, que, através do alongamento muscular e do “equilíbrio do eu alienado”, acreditou que faria alguma diferença contra o democraticídio e o roubo dos direitos sociais que teve e está tendo lugar no Brasil. A Ioga não é uma religião, e sim uma “filosofia”. Entretanto, no caso do “Ioga contra o golpe”, cabe a ele a crítica de Marx segundo a qual “a religião é o ópio do povo”. Só que, nesse caso, em vez de rezar contra os males propriamente humanos do mundo, alonga-se o corpo e relaxa-se a mente; no caso do “Rock por Aleppo”, ouve-se boa música, sacode-se o corpo, bebe-se “bons drinques”, e, para muitos, volta-se desse “hedonitarismo” no ar refrigerado do Uber.

Insisto nessas aberrações que aqui chamo de “humanetarismo” e “hedonitarismo” sobretudo em respeito aos verdadeiros humanitaristas, por exemplo, os do Médicos sem fronteiras e os do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, notadamente aqueles indivíduos que, mais do que apenas dinheiro, levam os seus corpos e tempos a quem deles necessita urgentemente, não para obterem prazeres egoístas e consumistas, visto que estar presente em campos de guerra ou em áreas de catástrofes humanas e ou naturais é qualquer coisa menos ajudar o outro “curtindo a vida”. Os verdadeiros humanitários são aqueles que sabem que a miséria do outro só será realmente reduzida se o conforto deles for realmente comprometido: reduzido na medida do desconforto desse outro. Esse é o humanitarismo real. Envergonhem-se todos os que pensam fazer isso regados a boa música e cerveja ou alongando o próprio umbigo.

A vilania do capitalismo não é patente apenas por produzir sistematicamente miséria e guerras para melhor se manter e crescer. Seu mau também se expressa nessas “mercadorias” que aqui chamei de “humanetarismo” e de “hedonitarismo”, distribuídos worldwide com o rótulo falso do humanitarismo; mas que, como qualquer iPhone ou Uber, “ajuda” necessariamente apenas os próprios capitalistas, e, contingentemente, os indivíduos que os consomem alienadamente. Não, “yoggers contra o golpe” e “rockers por Aleppo”, a potência política e o senso humanitário de vocês, longe de serem a mais pálida solução a qualquer um dos graves problemas atuais, são, no mínimo, a manutenção deles. Mais grave ainda: o seu agravamento.

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Empresário-de-si-mesmo versus Proletário-mesmo

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A expressão “proletário-de-si-mesmo” seria algo redundante, uma vez que o proletário, de certa forma, já é um “si-mesmo”: aquele que, solitariamente, vende sua força de trabalho para sobreviver, e assim mesmo permanece, mais ainda, assim deve permanecer para o bem do capitalismo. Se aqui invisto nesse pleonasmo é para criticar o contemporâneo, e cada vez mais investido, conceito de “empresário-de-si-mesmo”: sujeito que, como o proletário, também vende a sua força de trabalho no mercado, mas que, antes disso, e sobretudo para isso, já “trabalha”, investe, árdua e não-remuneradamente, para estar a altura das necessidades daqueles que, com sorte, comprarão a sua força de trabalho para explorá-la.

Antes de prosseguir, é importante percorrer os significados históricos da palavra “proletário”. A expressão “proletari” surge na Roma antiga para designar os cidadãos da classe mais baixa que, despossuídos de quaisquer bens materiais, tinham por única função social gerar prole para ser usada pelos exércitos. Muitos séculos mais tarde, Karl Marx reutiliza o termo para, comezinhamente, diferenciar os trabalhadores dos burgueses capitalistas, porém, mais especificamente, para diferenciar os trabalhadores conscientes do seu papel social e histórico daqueles que não adquiriram tal consciência.

Marx, compreendendo, de um lado, que o motor da História é a luta de classes – como lemos no “Manifesto Comunista” -, e, de outro lado, que a riqueza social é medida com base no tempo de trabalho necessário para produzir mercadorias – ideia presente em “O Capital” -, enxergou nos trabalhadores, os indivíduos despossuídos de bens que no entanto produzem a riqueza, a classe que tem por destino vencer a substantiva luta das sociedades humanas. Mas isso, prega Marx, somente se o trabalhador se proletarizar. O eternizado lema dessa revolução jaz no Manifesto: “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”

Dessa perspectiva, é fácil entender porque, atualmente, a “identidade proletária” é sistematicamente desmantelada pelo sistema capitalista, afinal, este sabe, como Marx, que se seguir comprando a força de trabalho daqueles que, unidos, irão derrotá-lo, estará com isso dando um tiro no próprio pé. O ideal de “empresário-de-si-mesmo”, ao contrário, cinde os trabalhadores em unidades autônomas e competidoras entre si, destruindo assim qualquer possibilidade de uma consciência global entre aqueles que produzem a riqueza das suas sociedades.

O problema mais grave, contudo, é o fato de os próprios trabalhadores contemporâneos rejeitarem a sui generis identidade revolucionária que tão somente lhes cabe. Vestidos com o sofisticado uniforme de “empresários-de-si-mesmos”, são, na verdade, demasiadamente reacionários: reencarnam os seus antigos ancestrais romanos que, assim como eles, não são senhores da riqueza social, permanecendo como meros “produtores de população”, só que agora para a “guerra mundial” do capital. Rejeitar a identidade proletária tem um amargo preço: abrir mão da revolução.

Marx cunhou a expressão “lumpenproletariat” (lumpemproletariado) para designar os trabalhadores que, sem consciência de classe, ou o que é o mesmo, sem unirem-se a outros trabalhadores em um grande corpo proletário consciente, atendiam subservientemente aos interesses da burguesia. Se em alemão “lumpen” significa “trapo”, “farrapo”, a sua célebre significação marxiana é: “seção degradada e desprezível do proletariado”. A radical escolha do trabalhador, portanto, é, ou unir-se, conscientizar-se, proletarizar-se, ou, em vez disso, desunir-se, ser eternamente explorado, lumpemproletarizar -se.

Essa besta capitalista chamada “empresário-de-si-mesmo” tem o vício de fazer da virtude proletária um trapo, um farrapo. Hoje em dia, cada vez mais vence a ideia de que é degradante para um trabalhador identificar-se com a condição de trabalhador, e, pior ainda, com a de proletário. Só que, sendo absolutamente marxista, não é difícil concluir que essa “nova ideologia” esconde o fato de que o “empresário-de-si-mesmo”, essencialmente, é um lumpemproletário: aquele que mais subservientemente está a serviço da burguesia.

Sem embargo, aqueles que gastam, em média, trinta anos de suas vidas, sem dizer uma imensa quantidade de dinheiro, para estudarem, especializarem-se, falarem no mínimo três idiomas, vestirem-se adequadamente, responsabilizarem-se privadamente pelos seus planos de saúde e de aposentadoria, e tudo isso apenas para poderem vender as suas forças de trabalho à burguesia para, doravante, serem explorados por ela como qualquer trabalhador, são o que senão a “seção degradada e desprezível do proletariado” que, lumpenproletariamente, faz tudo o que seus opressores burgueses mais querem?

O “empresário-de-si-mesmo” é um monstro social do mesmo calibre que a “classe média”. A classe dominante, para mais-dominar, precisou nublar o fato de que as sociedades são constituídas por duas únicas classes: a dominante e a dominada. Então, inventou essa “classe” intermediária, que, na verdade, é constituída por indivíduos da classe dominada, que, entretanto, não mais se reconhecem como tais. São realmente dominados, porém, ideologizadamente dominantes. Não se unem mais aos interesses de seus pares, mas, burra e manipuladamente, aos de seus ímpares.

O pecado capital do “empresariado-de-si-mesmo” está em desistir do poder sui generis que Marx enxergou no proletariado, esse corpo de trabalhadores autoconsciente do seu papel histórico e essencialidade social que, somente enquanto proletariado, unido, é o agente da revolução que dará cabo da exploração que sofre. O “empresário-de-si-mesmo”, com efeito, está muito mais próximo do baixo cidadão romano, cativo da rígida e tradicional estratificação social antiga, que se já não tinha chance de mudar a sua condição, menos ainda podia revolucionar a sua sociedade.

Agora é a ocasião de desinvestirmos de vez a redundante expressão “proletário-de-si-mesmo”, usada inicialmente para criticar a besta social chamada “empresário-de-si-mesmo”. E isso para defender que enquanto “si-mesmo” um trabalhador é apenas um lumpemproletário. É precisamente por deixar de ser “si-mesmo” para formar um corpo unido e consciente com os demais “si-mesmos” como ele que o trabalhador deixa de ser um “lumpen”, um trapo velho e desprezível nas mãos daqueles que compram a sua força de trabalho, e veste a farda com a qual revolucionará a sociedade.

Já o “empresário-de-si-mesmo”, ao contrário, é um “si-mesmo” deliberada e demasiadamente ensimesmado; isolado dos seus iguais, e o que é pior, concorrente deles. Em outras palavras, é um lumpemproletário que se enxerga como burguês – assim como a classe média é a classe dominada que se vê como dominante. O único “si-mesmo” que pode existir com alguma dignidade social é o trabalhador. Não obstante o sistemático furto dessa dignidade pelos “detentores dos meios de produção”, isto é, os burgueses, os trabalhadores deve proletarizarem-se. Por isso, em vez de “proletários-de-si-mesmos”, e de modo algum “empresários-de-si-mesmos”, todos nós que trabalhamos devemos ser, em primeiro lugar, “proletários-mesmos”!

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As palavras, a política e as coisas.

PALAVRAS POLÍTICA

Na obra-prima “Política e tragédia: Hamlet, entre Hobbes e Maquiavel”, o filósofo argentino Eduardo Rinesi expõe um dos fundamentos do pensamento político do filósofo inglês Thomas Hobbes, “a questão das palavras”, que acaba ocultado pelo ilustre e imenso edifício teórico desse autor, simbolizado pelo Leviatã, que trata sistematicamente da forma do Estado absoluto e soberano. Atentar a esse soterrado “alicerce” hobbesiano, como veremos, é exercício urgente para quem quer tocar o núcleo quiçá mais imanente da política.

Rinesi ressalta que a preocupação primordial de Hobbes é com as palavras. Melhor dizendo, na relação que elas têm com as coisas que nomeiam. Segundo o filósofo argentino, a problemática que levou o inglês a conceber o seu Leviatã está no fato de as pessoas, embora usem as mesmas palavras, na maioria das vezes discordam das coisas que essas palavras designam no mundo. E, para ele, a política existe justamente por conta desses hiatos: para fazer com que as pessoas concordem com as coisas que as palavras nomeiam.

Tomemos como exemplo as palavras: “liberdade”, “justiça” e “democracia”. Por mais que sejam as mesmas nas bocas de todos, no mundo real elas significam coisas muito distintas. O que na boca do capitalista significa “liberdade para vender a força de trabalho”, no mundo real do proletariado representa uma quase escravidão. Trazendo a tona um exemplo contemporâneo, o significado de “justiça” para o juiz/celebridade Sérgio Moro significa o contrário para grande parte da população brasileira. E “democracia”, que para o povo significa, ingenuamente, “o governo do povo”, para a burguesia, no entanto, sempre significou o sistema político mediante o qual é ela quem governa o povo mais livremente.

Para Hobbes, ressalta Rinesi, se as pessoas concordassem com as coisas que palavras tais como “liberdade”, “justiça” e “democracia” designam, não haveria necessidade de política. O (con)trato de todos com todos – a ordem – estaria dado. Porém, é precisamente por conta da desordem entre as palavras e as coisas que elas deveriam significar que as pessoas entram em conflito. O caos semântico é o que a priori estabelece a célebre “guerra de todos contra todos” hobbesiana. Só que essa batalha, para não ser bárbara e sim política, precisa se dar no campo minado das próprias palavras.

Lembremos do surgimento dessa coisa chamada “política” na antiguidade grega. Somente após aqueles helenos abandonarem o conflito físico com o qual defendiam os seus interesses particulares para então disputarem na esfera da palavra foi que o despótes, isto é, o bárbaro, se converteu em polités, ou seja, em político, civilizado. A relação política que travaram entre si produziu não só a concordância em relação às coisas reais que as suas palavras significavam, como também a coisa que chamamos de “civilização”.

Hobbes, porém, sabia que tal concórdia em torno das palavras, sempre que existia, era frágil, instável demais. Não que para ele as próprias palavras fossem as culpadas, senão que eram as próprias pessoas, suas verbalizadoras, que naturalmente pervertiam o que elas significavam em função de interesses particularistas/egoístas. Não nos esqueçamos que, para o inglês, Homo homini lupus (O homem é o lobo do homem)!

E Rinesi parte desse equívoco semântico que sempre instabiliza as relações humanas para desmistificar a ideia de que a pré-política “guerra de todos contra todos”, ou o que é o mesmo, o famigerado “estado de natureza” hobbesiano, seja um estágio ancestral, anterior à civilização, do qual, uma vez súditos do onipotente Leviatã, estaríamos devidamente protegidos. Ao contrário, o “estado de natureza” no qual as pessoas se embatem – em função do que significam as palavras – é constantemente presente. E é em função dele aliás que devemos ser políticos com a mesma constância. O provérbio popular “matar um leão por dia”, parafraseado hobbesianamente, ficaria assim: domar um homo homini lupus por dia, mas com um chicote político cujo “sustenido” sejam palavras.

Empreitada do tamanho da civilização que Hobbes só conseguiu sistematizar erigindo o seu onipotente Leviatã, isto é, mostrando que, em suma instância, só conseguiremos concordar com o que significam “medo”, “morte” e “violência”, presentes no hobbesiano fundamento subjetivo do Estado, qual seja, “o medo da morte violenta”, se tivermos um soberano invencível que nos prive, objetivamente, do direito de mudarmos as coisas que concordamos em colocar sob as palavras que pronunciamos em conjunto.

Caos semântico contemporâneo, por exemplo, acontece com os significados de “mulher” e “homem”. O atual movimento envolvendo a “questão de gênero” altera o quiçá mais longevo trato humano: aquele que dizia que homem é quem nasce com falo, e mulher, quem nasce sem. Não que seja a priori condenável a modificação desses conceitos, afinal, o devir histórico impõe necessidades, senão que, a posteriori, devemos enxergar nisso como passamos a não mais concordar com as coisas que nós mesmos colocamos sob as nossas palavras.

A lente hobbesiana colocada sobre a presente questão de gênero magnifica o fato de que a transexualidade abriu brechas semânticas – angustiantes para uns, libertárias para outros – entre as velhas palavras “homem” e “mulher” e as coisas que elas até então representavam. Mais importante, contudo, é a sabedoria de Hobbes no sentido de apontar que a superação desses inevitáveis hiatos deve ser sempre política: é no campo das palavras, do diálogo, do (con)trato, e não no da violência física que devemos permanecer até, com sorte, voltarmos a concordar com o que, no caso, “homem” e “mulher” devam significar. A vitória transexual, portanto, equivalerá a todos concordarem que nem toda pessoa que nasce com um falo é homem, e nem toda que nasce sem, é mulher.

Sim, somos livres para mudarmos as coisas que até então estiveram significadas pelas nossas palavras, afinal, elas sempre foram tão somente nossas. Não obstante, devemos saber que isso tem um custo que somente pago com a moeda política evita que entremos numa sanguinária “guerra de todos contra todos”. Se formos políticos, civilizados a ponto de concordarmos, por exemplo, que “homem”, como dizia Platão, é “um bípede implume de unhas largas”, e ninguém discordar, a paz, pelo menos em torno dessa coisa/palavra, estará dada.

Universalizando essa lógica, a “paz total entre os homens”, a “civilização absoluta”, ou, dito ainda de outro modo, a domesticação completa do Homo homini lupus, será possível somente quando concordarmos, todos, que sob cada palavra há uma única e inequívoca coisa. Tarefa impossível, já sabia Hobbes. Por isso mesmo: mais política! Pragmaticamente falando, nosso trabalho político mais urgente seria concordarmos com o que significam: “natureza”; “igualdade”; “sustentabilidade”; “justiça”; “direitos”; só para citar algumas das nossas palavras que significam coisas perigosamente distintas para uns e outros.

Se não fizermos nós mesmos, natural e horizontalmente, essa politicagem, Hobbes nos diz que só resta criarmos um ser artificial, o Leviatã, que nos obrigue, verticalmente, a tal. Quando o Estado, do topo do seu monopólio da violência, lança bombas de gás lacrimogêneo contra, por exemplo, trabalhadores que se manifestam por salário, esse mesmo Estado está fazendo o seu trabalho – sujo, baixo, é preciso dizer – de obrigar todos a entenderem que, sob a palavra “manifestante”, em vez da “coisa trabalhador”, está a “coisa desordem”, ou a “coisa ameaça”.

Por isso devemos empreender nós mesmos, antes de nossos monstros artificiais, esse árduo trabalho político, polido, civilizado, de concordarmos com as coisas apontadas pelas nossas palavras. Do contrário, essa necessidade intratada acaba por produzir: ou a imanente “guerra de todos contra todos”; ou o transcendente Leviatã, que todavia tratará dela à sua maneira sobrehumana, demasiadamente próxima da desumanidade. Se, conforme Hobbes e Rinesi, quando discordamos do que significam as coisas nomeadas pelas nossas palavras é que precisamos ser políticos, tanto melhor que nós mesmos possamos produzir o consenso ausente, pois tanto pior é a sobre presença tirânica do Leviatã fazendo isso por nós.

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O animal político Lula

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Lula, livre, ganha. Simples assim. Em popularidade, em fama, em importância histórica, e, o que mais preocupa as atuais forças reacionárias brasileiras, nas urnas. E é em função dessa imbatível dianteira política que o ex-metalúrgico está sendo, nas palavras dele, “massacrado publicamente” pelas elites. Só que as – apressadas – pesquisas eleitorais estão mostrando que Lula, como se diz, “quanto mais apanha, mais cresce”. Sem dizer que o tal “massacre” mais que tudo denuncia os interesse espúrios de seus “carrascos”. Lula estaria, estrategicamente, “dando a cara a tapa”, tanto para se agigantar quanto para apequenar seus inimigos?

O que assistimos entre Lula e seus oponentes é um círculo – virtuoso para aquele; vicioso para estes – no qual quanto mais Lula é atacado como objetivo claro de ser excluído do próximo pleito presidencial, mais ele repete que não só concorrerá à presidência da república, como principalmente a vencerá. “Que eles rezem para eu não concorrer à presidência em 2018, porque se eu concorrer, eu vou ganhar!”, diz o ex-presidente, seguro de si. Em resposta, seus inimigos recrudescem ainda mais, lançando contra ele novas e maiores ofensivas e difamações, e assim por diante. De “ladrão de pedalinho” à “chefe da maior organização criminosa da história do país” Lula foi e é chamado pelos que o querem definitivamente fora da política.

Agora, por que Lula não se cala, momentânea e estrategicamente, deixando de repetir, reativamente, que concorrerá à próxima eleição presidencial e a vencerá, se, com isso, atiçaria menos os pavores e as investidas de seus inimigos elitistas? Por que Lula coloca, ativamente, mais lenha na fogueira, justamente no seu momento mais ardente? Por que anuncia com tanta antecedência uma provável candidatura se isso faz apenas com que seja mais e mais “massacrado”?

Seguindo a lógica do “quanto mais apanha, mais cresce”, “dar a cara a tapa”, em se tratando de determinados “agressores”, no caso atual, uma elite desavergonhadamente corrupta e antidemocrática, é, para um animal político do calibre de Lula, “dar a cara ao povo”, “dar a cara à lei”, e, consequentemente, “dar a cara ao voto”. A “reação” pública de Lula ao “massacre” outrossim público que sofre é estrategicamente proativa: é uma ação antecipada que evita ou resolve problemas futuros. Expor-se e elevar-se intrepidamente é o passo que até aqui mantém Lula na dianteira. “Quem não deve não teme” é o lema que ele parece levar a cabo.

Não obstante, qual seria “o problema futuro” que Lula estaria tentando evitar com sua proatividade política? A resposta quiçá mais política de todas, dita pelo próprio Lula, é a seguinte: “Mais do que nunca, sou um homem de uma causa só. E esta causa se chama Brasil”. Contra os críticos do “populismo de esquerda” do ex-líder sindical, temos que, depois de se eternizar como “o maior presidente da história do Brasil” e como “o maior líder mundial do início do século XXI”, Lula pode sim, mais do que nunca, esquecer de si e colocar o Brasil na frente; coisa que oligarca algum jamais conseguirá fazer.

Experiência empírica do que é ser povo não tem preço. Passar fome e sede na infância; ser impedido, social e economicamente, de estudar; ser um autêntico – e explorado! – proletário já na adolescência; ser marginalizado, e até mesmo preso por se dedicar à construção de uma força sindical potente no Brasil; e, como se não bastasse, no meio do seu árduo caminho à presidência, ser “golpeado eleitoralmente” para que o “Marajá caçador de marajás” Fernando Collor de Melo vencesse o pleito presidencial de 1989; tudo isso só contribui para que Lula soubesse como nenhum outro presidente o que é o Brasil de verdade, e, sobretudo, que Brasil precisa ser construído para que o povo – isto é, para que gente como o próprio Lula – não permaneça sistematicamente excluído.

Último capítulo da exibição pública do que me atrevo a chamar de “a ciência empírica de Lula” em respeito à realidade brasileira se deu nesse domingo, 19 de março de 2017, na “Inauguração Popular” da Transposição do Rio São Francisco. Obra prometida ao povo nordestino desde a época do Império que, entretanto, somente Lula, que sofreu concretamente com a carência hídrica daquela região, foi capaz de tirá-la do mundo das ideias; mais ainda: do mundo das mentirosas promessas eleitoreiras. Só ele não é demagógico ao dizer que “nenhum doutor” – referindo-se aos governantes sempre bem-hidratados vindos das elites – “jamais teve consciência da real necessidade de se levar água ao nordeste”.

E, quando, setenta anos depois de passar sede no nordeste, o ex-presidente, com os pés dentro do “novo rio” que ele construiu a partir do “Velho Chico” (o Rio São Francisco), encheu seu chapéu com a água que fez o “Sertão virar mar” e a jogou para cima, qual chuva republicana, Lula fez, mais uma vez, a façanha de juntar inextricavelmente o real e o simbólico em um único ato. E é essa a singular visceralidade do um autêntico animal político que deve ser “abatida” selvagemente por aqueles – as elites – que tanto mais se beneficiam quanto mais distantes estiverem a realidade do Brasil e a ideia de Brasil.

O fato de Lula estar se “presidencializando” novamente diante da atual ofensiva das elites é a sua virtuosa estratégia para mostrar que quem menos merece decidir o futuro do país são justamente os seus algozes. Pode ser que o velho Lula, devido ou à idade ou aos escusos estratagemas de seus oponentes, morra antes das próximas eleições. Mas ser presidente não parece, melhor dizendo, não precisa mais ser o grande e final objetivo dele. O fundamental de sua atual pecha pública talvez seja mostrar ao povo, a todos, a violência, o despotismo, a injustiça com que as elites o tratam, que, com efeito, é a mesma com que tratam o povo, e historicamente.

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O bom Mal

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Mesmo que, conforme diz o provérbio popular, haja males que vêm para o bem, um Mal, em si mesmo, nunca é bom. Talvez a única coisa boa de uma Mal é quando ele é mau inequivocamente, pois, desse modo, estamos todos conscientes dele. No entanto, quando o Mal não é totalmente mau, isto é, quando algumas pessoas não o consideram dessa forma, ou, o que é pior, acham-no bom, proveitoso, de alguma forma e para algum propósito particular, aí temos um Mal incompetente, que não revela universalmente a sua vil face. Ou seja, um mau Mal.

Racismo, sexismo, xenofobia, homofobia, pedofilia, egoísmo, insustentabilidade ecológica, por exemplo, são grandes, quiçá os maiores candidatos a males absolutos, e não só da nossa época. Entretanto, como a realidade cruelmente mostra, ainda angariam para si apólogos/eleitores em todos os cantos do mundo. Como pode alguém, em sua sã civilidade, não considerá-los males? O que falta a eles, ou em nós, para que sejam final e absolutamente maus?

O polêmico Slavoj Žižek disse em algum lugar que “Hitler não foi mau o suficiente”. O que o filósofo quis dizer com isso é que, apesar de a Shoa, isto é, o genocídio judeu ser oficialmente considerado o maior crime contra a humanidade da História, essa opinião, contudo, nunca foi compartilhada por todos. A atual reascenção, tão vigorosa quanto impertinente, de grupos neonazistas ao redor do mundo não deixa dúvida. Por isso é que, segundo Žižek, Hitler não teria sido mau o suficiente, pois o seu Holocausto não convenceu a todos de que era um Mal absoluto.

Mas o que seria o Mal total? Assim como o seu oposto, o Bem, o Mal é um conceito abstrato que a linguagem faz parecer que existe concretamente na realidade. Mas, como certa vez disse o filósofo Baruch Spinoza, Bem e Mal, outrossim certo e errado, belo e feio etc., não existem fora da esfera da opinião humana. Não há nada no universo que, em si mesmo, seja necessariamente mau, errado ou feio, nem tampouco bom, certo e belo. As coisas são o que são; apenas as predicamos contingentemente conforme elas nos afetam. Aqui podemos ver a razão de o Mal não conseguir ser absolutizado: porque as opiniões humanas diferem umas das outras tanto quando os humanos entre si.

Eis então os dois maiores desafios da humanidade em relação ao Mal: em primeiro lugar, defini-lo universalmente; e, em segundo lugar, com a mesma universalidade, concordar em evitá-lo incondicionalmente. Se nem mesmo nas sociedades mais antigas, nas quais havia um Deus absoluto, onisciente e onipotente, que dizia verticalmente o que era o Bem, o certo, o justo, a humanidade conseguiu deixar de ser valer do Mal como se de Bem se tratasse, imagine como o Mal pode ser relativo nas nossas sociedades pós-modernas, ou, em outras palavras, pós-morte-de-Deus…

Por mais que o racismo, hoje em dia, seja um Mal inaceitável para cada vez mais gente, muitos brancos cariocas, por exemplo, ainda acham bom que jovens negros da periferia sejam barrados às portas da balneária Zona Sul da Cidade Maravilhosa.

Embora o machismo seja um barbarismo condenável, o eurodeputado polonês de extrema-direita Janusz Korwin-Mikke não acha errado as mulheres ganharem salários menores, afinal, diz ele, como se quisesse relembrar alguma verdade ao mundo: “as mulheres são mais fracas, menores e menos inteligentes que os homens”. E sujeitos deploráveis como este crescem em popularidade atualmente.

Apesar de a xenofobia ser diametralmente oposta à civilização, uma vez que civilizado é aquele que aceita, que consegue conviver com a alteridade, países os mais civilizados do mundo estão se fechando aos estrangeiros, aos imigrantes, em suma, ao outro. E o famigerado muro de Trump o exemplo mais emblemático desse triste movimento.

Da mesma forma, a homofobia, seja no Brasil, país que mais mata pessoas trans no mundo, seja no mundo árabe, onde gays são arremessados do topo de prédios, pelo jeito não é um Mal com o qual todos concordem.

A despeito do Mal hediondo no qual a imensa maioria de nós quer enquadrar a pedofilia, temos que no Afeganistão ainda é legal, mais ainda, distintivo socialmente, abusar sexualmente de crianças. Há inclusive um nome instituído para as vítimas dessa violência: os Bacha Bazi, isto é, “os meninos para brincadeiras”. Nem precisamos ir muito longe. Em muitos lares isso é triste realidade.

Sem dizer do egoísmo, do hedonismo, que, se um dia, aos olhos de Deus, foram pecados, hoje, em troca, para a cegueira capitalista são virtudes capitais.

E a destruição da natureza pelo homem, que para mim é o Mal absoluto par excellence, pois ameaça a todos indiscriminadamente, infelizmente ainda deixa um gosto bom nas nossas bocas sempre que comprarmos nossos iPhones, automóveis, viagens de avião e alimentos embalados em camadas e mais camadas de plástico.

Como estes exemplos mostram, não há nada que possa ser chamada de mau sem que muitos discordem disso. Racistas, machistas, xenófobos, homofóbicos, pedófilos, capitalistas e, mais disseminados que todos estes, consumidores destruidores da natureza, todos consideram suas práticas boas, senão em si mesmas, ao menos para si mesmos. “Há males que vêm para o meu bem” seria o provérbio adequado para estes. Novamente: o desafio é conseguirmos universalizar tais males sem relativismo algum, sendo que, repetindo Spinoza, nada há no universo que seja mau ou errado em si mesmo.

A ideia de Žižek, segundo a qual um Mal deve ser suficientemente mau para que doravante assim seja considerado por todos e não seja repetido, pode ser pertinente no caso do nazismo. Porém, em respeito à destruição da natureza, essa lógica žižekiana seria inócua, pois então a natureza só não seria destruída porque não mais existiria

Já de Spinoza podemos tirar maior proveito. Ora, uma vez que o Mal só é uma predicação dada pelas pessoas a coisas ou ações que, em si mesmas não são boas nem más, só são, o Mal universalmente considerado como tal só seria possível mediante o consenso democrático entre todas as pessoas.

Eis a dificuldade ulterior: criar um consenso na humanidade. Não precisamos de um Deus ao estilo cristão que nos dite o que é o Mal e como evitá-lo. A experiência histórica mais que comprova que estratégias como essa geram tantos males quanto os que promete evitar. Talvez devamos ser esse Deus nós mesmos. Não na forma de um panteão conflitivo de deuses, cada um com a sua opinião acerca do que é bom ou mau. Esse, aliás, é o limbo no qual já nos encontramos.

Se dentre os muitos significados da palavra Deus temos os de “Ser Absoluto”, “Ser Supremo”, sermos Deus nós mesmos para estabelecermos o que é e será o Mal, outra coisa não é que concordarmos, todos, que certas práticas são inquestionavelmente más e que isso jamais deve ser relativizado. Esse seria o bom Mal: o Mal que uniria a humanidade, mas em universal oposição a ele. E nesse exercício de sermos Deus nós mesmos, de constituirmos “Um Ser Supremo”, embora humano, quiçá encontremos a concretude da humanidade.

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Fora “Fora Temer”

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E se deixássemos de gritar, hashtaguiar e, agora, carnavalizar o famigerado “Fora Temer”; se desinvestíssemos da ideia de um inimigo externo que nos subjuga fortuitamente? Se, enfim, assumíssemos plena responsabilidade pelo mal que aflige a nós e às nossas democracia e república, o que restaria como nosso lema de protesto? Um desiludido “Fora nós”! A radicalidade dessa mudança seria dupla. Em primeiro lugar, de sujeito: de Temer, o grande vilão, para nós, os cidadãos brasileiros; e, em segundo lugar, da nossa própria condição enquanto sujeitos políticos: de cidadãos traídos, golpeados para cidadãos traidores, golpistas de nós mesmos. Se tivéssemos coragem para encarar a realidade dessa forma, o mal do qual, agora, dizemos ser vítimas, e do qual, imediatamente, queremos nos ver livres, estaria definitivamente dentro da nossa esfera de ação, e, portanto, seria mais fácil de ser combatido.

“Fora Temer” é uma interjeição que soa patética quando consideramos seriamente a teoria política do filósofo inglês Thomas Hobbes, autor que, a meu ver, propõe o mais desafiador convite à responsabilidade cidadã. Hobbes diz categoricamente que “tudo quanto o representante” – isto é, o governante, o Leviatã – “faz, como ator, cada um dos súditos faz também, como autor”. Em outras palavras, também do filósofo: “cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano fizer; por consequência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não deve acusar ninguém a não ser a si próprio”.

Dessa perspectiva hobbesiana, gritar “Fora Temer” outra coisa não é que vaiar o ator em cima do palco por desempenhar mal o espetáculo político que nós mesmos escrevemos conjuntamente. A amarga ideia com que Hobbes nos confronta é que, na relação entre súditos/cidadãos e Leviatã/representante, não há vítimas. Mais ainda, se há culpados, este são os primeiros. Já o Leviatã não é vítima nem culpado, pois é feito apenas de cidadãos, pelos cidadãos, para os cidadãos. O representante político é o resultado de cálculos, de acordos, de disputas entre cidadãos. Em suma: é feito apenas de relações sociais. E como a matemática comprova, se o resultado de uma equação está errada, o erro está aquém dele.

Temer, gostemos ou não, é o nosso atual Leviatã: o resultado da disputa concreta entre os cidadãos brasileiros. Portanto, repetir “Fora Temer” apenas nos aliena do fato de que, quando Temer atua, somos nós, os cidadãos brasileiros, que atuamos através dele. Amargo preço da representatividade política que dispensa os cidadãos de atuarem, direta e constantemente, em função de suas necessidades. Para os antigos gregos, inventores da democracia direta, seria uma barbaridade legar interesses pessoais a outrem. Nós, porém, fizemos disso regra. Só que, covardemente, não queremos pagar o preço dessa mudança.

Ora, se, como coloca Bruno Latour, o Leviatã apenas traduz os cidadãos, e se, como denunciam os maiores críticos literários, qualquer tradução é sempre uma traição, está no horizonte do representante máximo trair os seus representados. Só que quando isso acontece, reclamamos, gritamos “Fora Temer”, como se estivéssemos em uma democracia direta, esquecendo-nos, no entanto, de que, desde o princípio, sustentamos uma democracia indireta, burguesa, que, se por um lado trai-nos sistematicamente, por outro dispensa-nos do árduo e constante trabalho cidadão. Afora o compromisso bienal nas urnas, desperdiçamos nosso impagável tempo cívico nos shopping centers comprado smartphones.

Nos anos Lula, quando todos, ricos e pobres, éramos mínima e decentemente representados, a alienação que a representatividade política sempre promove não era um problema. Um bom Leviatã todos amamos. Agora, bastou um oligarcas que representa única e escancaradamente os interesses dos seus encarnar o Leviatã e essa mesma representatividade política burguesa mostrou o seu lado insuportável. Mas, não nos esqueçamos, esta é a forma com que decidimos, consensualmente, ou, em termos hobbesianos, contratualmente, viver. Hobbes, comprometedoramente, não nos deixa esquecer de que o soberano é apenas um ator designado pelo contrato social travado pelos cidadãos.

Dar um Fora no “Fora Temer”, para então focarmos em nós mesmos enquanto sujeitos de um lema de ordem que de fato possa melhorar a nossa condição de cidadãos, é assumirmos que somos nós, e ninguém mais, que delegamos, e democraticamente!, nosso poder a um representante, a um Leviatã, que, em verdade, é apenas o resultado dos nossos cálculos, em função dos nossos anseios. Para Hobbes, são os cálculos dos cidadãos, todos equacionados em um contrato, que constituem o Leviatã. Se, a posteriori, o “resultado Temer” parece-nos um desastre, a responsabilidade cidadã está na assunção de que, a priori, nós não soubemos equacionar nossos valores individuais de modo menos desastroso.

O “erro Temer” é um resultado verdadeiro: a verdade do erro das operações que nós, brasileiros, viemos realizando nos últimos anos. Insistir no “Fora Temer”, portanto, é como continuar somando 2+2 e querer, estupidamente, que o resultado dessa soma seja 5. Da visada hobbesiana, um “Fora Nós”, em vez de um “Fora Leviatã”, ou, no nosso caso específico, do “Fora Temer”, não só seria mais responsável, como principalmente ensejaria revermos tanto os nossos parciais cálculos individuais, quanto os subtotais cálculos coletivos, cujo total, no final das contas, é o Leviatã – ou Temer.

Minha hipótese é que a revisão “matemática” da problemática representatividade política, hoje protagonizada tristemente por Temer, passa por esclarecermos, primeiramente, o ardil da democracia representativa burguesa, que não foi feita para atender os interesses dos cidadãos, apenas para dar tal impressão. Devemos criticar a nós mesmos pela “democracia” burguesa, indireta, representativa, mediante a qual somos cidadãos estruturalmente ausentados da nossa luta.

Se, por um lado, o presente impede de voltarmos ao passado idílico de uma democracia direta, na qual ninguém além de cada cidadão pode frustrar ou trair a si próprio, nada, por outro lado, nos priva de construir uma democracia diferente dessa na qual oligarcas criminosos usam o Estado como bureau de seus vis interesses. Por isso: Fora “Fora Temer”. E em seu lugar, um ensurdecedor e consensual “Fora nossos erráticos cálculos cidadãos”; tanto os individuais quanto os coletivos; pois é essa incompetência que resulta em erros crassos, totais, tais como Michel Temer Leviatã tupiniquim.

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Por que “Jamais fomos modernos”?

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Como acreditar na jovem pós-modernidade se, como disse o antropólogo e filósofo francês Bruno Latour no título de seu livro, “Jamais fomos modernos”? O que fez com que nos autodeclarássemos pós-algo que, na verdade, nunca fomos? Somos vítimas culpadas de uma falácia? Mas onde está o ardil? Na modernidade? Na pós-modernidade? Ou em ambas?

Para Latour, “Jamais fomos modernos”, não porque a modernidade tenha sido interrompida, injusta e fortuitamente, por uma vanguarda qualquer, mas, antes, porque, em si mesma, ela é um projeto impossível realizar o que promete. E, como veremos, a pós-modernidade é justamente a reificação dessa impossibilidade; um sintoma; a tentativa de se desfazer o nó criado pelo modus operandi moderno.

Para desatar um outro nó, aquele com o qual a pré-moderna sociedade medieval manteve por tanto tempo juntos natureza, sociedade e Deus, a modernidade, tirando Deus da jogada, separou tudo o que restou de não-divino no mundo em dois polos opostos e absolutamente separados: natureza e sociedade. Dito de outro modo: natureza e cultura. Em suma: necessidade natural e liberdade humana.

O problema do esclarecimento moderno, contudo, era que, tudo aquilo que se apresentava entre estes dois polos irredutíveis, ou seja, os híbridos, não merecia dignidade ontológica, pelo menos até que fosse classificado ou como natural, ou como sociocultural. No cosmos da modernidade havia espaço apenas para: de um lado, objetos; e, de outro, sujeitos. No meio deles, apenas fenômenos, isto é, ocasiões nas quais os sujeitos conheciam os objetos.

E, de acordo com Latour, o calcanhar de Aquiles dessa sistemática e assumida recusa aos híbridos foi a inevitável produção subterrânea de novos híbridos, que, outrossim sistematicamente alienados, acumularam-se até ruir os alicerces da própria modernidade. Em uma imagem, a pós-modernidade é a sintomática visita à ruína da modernidade.

Um exemplo, dado por Latour, de híbrido que não teria como ser abordado pela modernidade, pois ela fazia das coisas ou só naturais, ou só socioculturais, é o buraco do ozônio. Metade natural, metade humano; quase-objeto-quase-sujeito; o buraco do ozônio seria inexplicável fora do laboratório pós-moderno, cujo procedimento é não desconstruir os híbridos para compreendê-los.

Em vez da moderna práxis que transformava os híbridos em entes ou naturais ou sociais, para só então compreendê-los, o que, mutatis mutandis, significava pervertê-los, os pós-modernos, em troca, respeitam a hibridez para compreendê-la em sua realidade. Dessa perspectiva, o buraco do ozônio não seria compreensível descobrindo-se somente suas causas naturais, ou somente as sociais, mas no entendimento de que natureza e sociedade estão inextricavelmente misturadas nele. Mais ainda, ganham qualquer realidade através dele.

A pós-modernidade é uma sobreorfandade. Os modernos eram órfãos orgulhosos de Deus, mas seguiram “rezando” para os anjos caídos da natureza e da sociedade. Assim acreditavam estarem a salvo do inferno dos híbridos que criavam e que sistematicamente enterravam sob seus pés. Mesmo que tenha sido eles mesmos os demonizadores da mistura! Já os pós-modernos queimam inclusive esse desdivinizado panteão dualista.

Sem Deus nem a confortável e moderna distinção entre natureza e sociedade, a pós-modernidade é a laica assunção de que, com efeito, só há híbridos, nada além de híbridos; quase-objetos-quase-sujeitos; relações que, primeira e concretamente, explicam apenas outras relações, outros híbridos; e só idealmente implicam abstrações tais como Natureza e Sociedade puras.

O puro, o ideal, o absoluto, nada disso existe para o pós-moderno. E era justamente dessa realidade sem pedigree que os modernos fugiam nas suas idealidades polarizadas. A primeira delas: a de uma natureza completamente livre de sujeitos, composta apenas por objetos substantivos (necessários) esperando para serem conhecidos. A segunda: a idealidade de sociedades livres da necessidade natural, capazes de serem instituídas e mantidas apenas pelo arbítrio (liberdade) humano.

Assim como os pós-modernos, os pré-modernos não faziam tal separação entre natureza e sociedade. Porém, porque Deus havia criado ambas. O problema dessa univocidade pré-moderna/divina entre natureza e sociedade estava em que era proibido aos homens mudarem seus costumes socioculturais sem violarem a natureza, e vice-versa. Em ambos os casos ofendiam a Deus, à Sua obra. Por isso tinham de ser absolutamente tradicionais. Do contrário, seriam punidos por Ele, seja através do colapso de suas sociedades, seja através de enchentes, secas, pragas ou pestes naturais.

Aliás, foi justamente para serem livres, tanto para mudarem suas sociedades quanto para se assenhorarem da natureza, que os modernos mataram Deus e fizeram da natureza e da sociedade mundos opostos. Só que o movimento de reduzir o infinito cosmo divino em duas instâncias estanques, natureza e sociedade, não permitindo que nada residisse no meio, acabou se tornando uma fábrica de monstruosidades híbridas ainda mais difíceis de serem conhecidas pelo filtro moderno.

E como a modernidade não lida com híbridos, nem mesmo com os que produz alienadamente, ela sozinha não tinha como enfrentar monstros mistos como por exemplo o buraco do ozônio: produto simultaneamente da liberdade sociocultural humana e da objetificação da natureza desdivinizada. Doença que nunca se cura, mas que apenas prolonga a sua própria agonia, a modernidade teve de ser pós-ela-mesma antes que fosse tarde demais. Se ela não era apta aos híbridos, ao menos o sintoma histórico dessa inaptidão deveria sê-lo.

Dessa forma, quando Bruno Latour afirma que “Jamais fomos modernos”, ele quer dizer que, sim, tentamos ser modernos; buscamos reduzir a diversidade ou ao polo natureza, ou ao polo sociedade/cultura; mas que essa aventura não obstante foi incompleta, porque insustentável. E a existência de algo chamado pós-modernidade é prova dessa incompletude; dessa insustentabilidade; da impossibilidade negarmos os híbridos sem produzirmos mais deles.

Em vez de forçar os híbridos ou à natureza ou à sociedade, a pós-modernidade compreende-os em redes de relações com outros híbridos. E se tais relações concretas ainda geram abstrações irredutíveis tais como natureza e sociedade puras, ideais, é porque o modernismo é incorrigível. A virtude, a correção pós-moderna está justamente em não inventar distância entre híbridos reais e polos ideais. Em primeiro lugar, para não distanciar os híbridos de si mesmos; e, em segundo lugar, para evitar que se multipliquem.

“Jamais fomos modernos” é antes uma confissão desiludida que uma constatação surpreendente. Tentamos ser modernos. Apostamos todas as fichas em viver sem Deus e somente entre uma natureza necessária e uma sociedade livre. Mas o sintoma pós-moderno, assim como o híbrido buraco do ozônio, estão aí para não deixar-nos esquecer de que, simultaneamente, as nossas liberdades socioculturais criam naturezas contingentes e a necessidade da natureza constrange as nossas sociedades.

Na pós-modernidade, tudo está em rede; tudo são redes de relações. E segundo essa concepção, as únicas referências para conhecermos e lidarmos com os híbridos reais são os demais híbridos reais, e não referenciais extremos abstratos e absolutos. Explicar essa hibridez somente pela necessidade natural, ou somente pela liberdade humana, como faziam os modernos, é, para dizer o mínimo, deixar metade da explicação de fora. E, sintomaticamente, essa metade reprimida retorna na forma de um novo híbrido, ainda mais difícil de ser explicado. Assim a modernidade nunca conclui seu trabalho. Por isso jamais fomos, e jamais seremos modernos.

Para concluir com uma metáfora, pensemos nos ideais de natureza e sociedade enquanto retas paralelas. Para os pré-modernos, estas retas se encontravam/nasciam no infinito, isto é, em Deus. Já para os modernos, órfãos de Deus, elas nunca se tocavam. Seu encontro era apenas uma distorção de perspectiva, um erro provocado pelos sentidos a ser corrigido pela razão. Enfim, para os pós-modernos, essas retas paralelas são finalmente decompostas em infinitos pontos, que, a partir de então, livres para estabelecerem relações entre si, formam tantas retas transversas quantos forem os pontos “naturais” e “sociais” a serem relacionados.

“Jamais fomos modernos” – e jamais seremos! – porque é impossível reduzir a infinidade de retas que se entrecruzam formando o real a duas únicas, ideais: natureza e sociedade. Oxalá consigamos ser minimamente pós-modernos e não nos esquecermos de que a diversidade, a hibridez que somos e na qual estamos imersos será tanto menos compreensível quanto mais a abstrairmos e simplificarmos; e inversamente, tanto mais cognoscível será ao passo que a complexificarmos em suas reais redes de relações. Já que “Jamais fomos modernos”, assumamos essa impossibilidade. Tal assunção já é a pós-modernidade.

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Violentem-me, meus violentados.

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“Olho por olho, dente por dente” é um antigo princípio de justiça criado na Mesopotâmia que exigia que um agressor fosse punido com o mesmo sofrimento que causou. Hoje em dia, contudo, condenamos tal prática, pois a vemos muito mais como vingança, barbárie, do que como justiça, civilidade. “Politicamente corretos” que somos, preferimos corrigir/educar quem viola leis, regras, tratos, em vez de violá-los na mesma medida. Do contrário, acreditamos, reproduziríamos, duplicaríamos os males dos quais queremos livrar-nos.

Em relação às violências do machismo e do racismo, por exemplo, somos outrossim refratários  ao “olho por olho, dente por dente”. Privar homens de votarem, de uma profissão, de salários iguais ou maiores que os das mulheres, nada disso passa pela cabeça sequer das feministas mais radicais. Abduzir brancos de seus locais de origem para escravizá-los por gerações; chibateá-los quando agem de acordo com os seus próprios arbítrios; obrigá-los a sentarem nos bancos traseiros de ônibus e a usarem banheiros segregados, da mesma forma, parece apenas a continuidade de desumanidades que queremos ultrapassadas.

Civilizada e surpreendentemente, violentadores e violentados históricos concordam que a tarefa mais importante é estabelecermos uma imediata igualdade entre todos. Agora, considerando-se a longevidade e a intensidade das violências machista e racista, essa saída “politicamente correta” não acaba sendo injusta? Pelo menos da perspectiva do “olho por olho, dente por dente”, violentadores privilegiados nunca experimentarem o que é sofrer violência nem serem obrigado ao desprivilegiado é injusto, sem dizer antieducativo.

Porém, como somos politicamente alérgicos ao “olho por olho, dente por dente”, quando feministas e ativistas raciais atuam combativa e irredutivelmente, muitos dizem que são violentas e violentos. Esquecemos, contudo, que tais violências combativas/reativas são sintomáticas em relação às históricas violências machista e racista. Porventura não foi a violência do homem branco que, depois de muito se exercer impunemente, gerou a violência combativa/reativa da qual o próprio homem branco, agora, diz-se vítima, e, covardemente, reclama?

Aqui tocamos no nó “politicamente correto” que, injustamente, ata violentadores privilegiados e violentados desprivilegiados em torno de uma igualdade que, se não é idealizada, ao menos é apressada. No entanto, esta é a melhor saída apenas para os primeiros. Da ruína de sua longeva torre patriarcalista, o homem branco, o violentador privilegiado per se, concorda com perder o seu confortável privilégio somente para passar à condição de igualdade entre ele e seus violentados. De forma alguma cogita a possibilidade de seus velhos oprimidos experimentarem, por um átimo que seja, o privilégio de oprimi-lo. O fim da violência, sim. A contra-violência, jamais!

Por isso interpelações feministas e antirracistas, ao buscarem um simples e privilegiado “lugar de fala” às mulheres, negros e negras, ainda causam tanta polêmica. Quão violento continua sendo para muitos homens ouvirem de uma mulher que eles não podem assediá-la sexualmente? E quão afrontoso foi para muitos brancos e brancas lidarem com a exigência da ativista negra no caso do turbante de Curitiba: “uma branca não pode usar turbante”? Os violentadores privilegiados tremem ao menos indício de sofrerem a violência com que sistematicamente subjugaram seus outros.

O problema de o homem branco, as mulheres, os negros e negras superarem de um só golpe os abismos machistas e racistas que historicamente privilegiaram àquele, passando todos a uma situação de igualdade, é, mesopotamiamente falando, injusto. Mantém uma cruel dissimetria: o violento homem branco perde o título de “senhor” histórico para ser “igual” aos seus violentados, enquanto mulheres, negros e negras passam apenas de “escravos” a iguais. Diante dessa conjuntura, aquele que pudesse tomar o ponto de vista do fim da história certamente concluiria que teria sido melhor ser homem branco: espécie de suprassujeito nunca violentado nem desprivilegiado; no pior dos casos, igual aos demais

Proponho duas metáforas para enxergarmos alguma pertinência na Lei da retaliação mesopotâmia contra o resistente privilégio do homem branco. A primeira, é imaginar o racismo e o machismo, combinados desastrosamente nesse “sujeito privilegiado”, como uma força atuando contra mulheres, negras e negros. Uma vez que a física comprova que uma força só é anulada por outra de mesma intensidade, todavia de sentido contrário, o “olho por olho, dente por dente” feminista e antirracista seria o único maeio de anular o machismo e o racismo.

A outra metáfora é imaginarmos um pêndulo, pendido há milênios para um dos lados, sendo finalmente solto. Seria perverter as leis da física querer que o pêndulo, imediatamente, repousasse no ponto central de equilíbrio, sem balouçar até o outro extremo. A lei da retaliação, de certa forma, reifica esse movimento. Por isso, aceitar que o homem branco passe da situação de total privilégio à de igualdade, sem ver o pêndulo que sequestrou pender para o lado que sempre careceu dele, é manter um privilégio a esse homem branco.

Essa última metáfora, contudo, obriga-nos a imaginar que, no balouçar do pêndulo do privilégio, de lá para cá, tantas vezes quanto for a energia acumulada no sistema, o homem branco, de um lado, e as mulheres, os negros e negras, de outro, serão, alternadamente, violentados e desprivilegiados, e violentadores e privilegiados. Pelo menos até a tensão da nossa desigual sociedade chegar a zero. Os idealistas, obviamente diriam que devemos passar imediatamente à situação de igualdade na qual ninguém é violentado nem desprivilegiado. O realista, contudo, saberá que a humanidade, se é que pode “escreve certo”, o fará sempre por “linhas tortas”.

Deixando as analogias físicas para nos aproximarmos da filosofia, em relação às superações do machismo e do racismo vale lembrar o argumento do filósofo Slavoj Žižek, que sustenta que desigualdade se combate com desigualdade, e não com igualdade. Se tratarmos ricos e pobres igualitariamente, por exemplo, não reduziremos o abismo entre eles, apenas o manteremos. Ao contrário, é só tratando-os desigualmente, ou seja, dando mais aos pobres do que aos ricos; ou tirando mais dos ricos do que dos pobres; que a desigualdade será combatida.

Assim como os ricos só abrirão mão de suas riquezas se forem forçados a tal, e por ninguém menos que os pobres, assim também o homem branco só perderá os seus privilégios fortuitamente, ao ser combatido exaustivamente por mulheres, negros e negras. O “altruísmo” do homem branco ao lutar pela igualdade entre ele e seus violentados será sempre suspeito de ser egoísta, pois, secretamente, pode ser apenas o discurso com que evita ser o violentado da vez. Já as mulheres, negros e negras que lutam apenas por igualdade em relação ao homem branco perdoam-no cedo demais. O que, aliás, é o que ele mais quer, ainda que não mereça isso devido à longevidade e intensidade de sua violência.

Sou obrigado a retornar à metáfora do pêndulo. Talvez não seja o caso de restabelecermos a lei mesopotâmia absolutamente, mas de misturá-la homeopaticamente ao nosso sistema educativo/punitivo. Assim como o pêndulo balouça de um lado para o outro, muitas vezes, antes de encontrar o equilíbrio, no entanto nunca reocupando os mesmos lugares extremos, mas sempre um tanto aquém deles, e sempre em direção ao centro de equilíbrio, assim também o privilégio da violência deveria pendular, de lá para cá, até que sua vil energia se dissipasse completamente. Aí, e somente aí, algo como justiça seria paulatinamente construído.

O problema dessa hipótese, contudo, é contar com a violência justamente no movimento de superá-la. Entretanto, se nos despirmos do sentido traumático, sanguinário com que essa palavra é comezinhamente usada, e privilegiarmos outros sentidos seus, tais como o de “veemência”, “impetuosidade” (em Latim: “violentia”), podemos quiçá conviver mais civilizadamente com ela. Até porque, se o machismo e o racismo são barbarismos assaz resistentes, violá-los, agir com violência contra eles, é construir civilização.

Se essa ideia, dita assim de modo abstrato, parece perigosamente desumana, compartilho aqui exercícios concretos que eu, um homem branco, tenho feito, nos quais me constranjo a ser violentado por aqueles que foram violentados por sujeitos como eu. Um deles, em relação ao machismo: sempre que mulheres me acusam de ser machista, independentemente de serem violentas ou não, ou de eu concordar ou não com elas, está a priori fora de questão a possibilidade de elas estarem erradas, ou de estarem exagerando. Enquanto homem branco, nem eu nem meus violentados devemos confiar no meu discernimento.

Da mesma forma, referente ao racismo, e aproveitando o caso do turbante de Curitiba, mesmo gostando de turbantes, e de certa forma achando que usá-los é elogioso à cultura africana, a partir do momento que uma ativista negra diz que brancos não podem usá-los, compreender as suas razões é imperativo. Não deve estar em questão se ela está certa ou errada, mas, primeiramente, de que modo a sua demanda é fundamental. E, nessa dificuldade, o que me impede de enxergar isso. Se compartilho aqui estes exercícios pessoais é para dizer que, ao permitir que meus violentados violentem-me, encontro uma paradoxal humanidade que argumentação alguma de minha parte traria.

Diante das bestas do machismo e do racismo, qualquer coisa que o homem branco disser será algo como o argumento da doença contra a cura. Se calar alguém é violentá-lo, calar quem há séculos faz tantos outros serem privados de suas vozes é uma violência curativa, mais que necessária. E se o homem branco nunca for calado, violentado pelas violências que sempre cometeu, mas apenas abandonar o seu histórico privilégio para então ser confortavelmente igualado aos desprivilegiados – claro, somente depois que estes deixarem de sê-lo -, tal igualdade outra coisa não significará que um novo nível de desigualdade, só que agora disfarçada de igualdade.

A maior dificuldade de fazer apologia da violência, ainda que terapêutica, contudo, é combiná-la com a contemporânea sede “politicamente correta”. No entanto, a “violentia” latina, ou seja, a “veemência”, a “impetuosidade”; violar no sentido de quebrar regras e costumes; essa violência não pode ser negada às lutas feministas e antirracistas.

Para concluir com uma metáfora banal, imaginemos duas pessoas discutindo e não mais se ouvindo por tagarelarem descontroladamente ao mesmo tempo. Em casos como este, basta um dos interlocutores agir com violência, isto é, violar a confusa regra do diálogo e elevar o tom impetuosamente para que o outro pare, escute, e o verdadeiro diálogo se restabeleça. Pelo menos desse tipo de violência o violento e privilegiado homem branco deve sofrer dos seus violentados desprivilegiados calados há tanto tempo.

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Gentrificação incompleta, ou urbanicídio no centro do Rio de Janeiro

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A Cidade Maravilhosa dispensa apresentações. Já o termo “gentrificação”, não. Principalmente se quisermos que “o Rio”, bem como todas as nossas cidades não percam o que elas têm de realmente maravilhoso: a coexistência da diversidade. Conhecer o significado da expressão “gentrificação” e seus perigosos sentidos sociais, econômicos, políticos e culturais é fundamental para as nossas urbanidades não serem pervertidas pela especulação imobiliária. Há várias modalidades de gentrificação urbana. Todavia, doravante farei relato de uma que, a meu ver, é de uma decadência notável, melhor dizendo, condenável, que tem exemplo triste e concreto no centro do Rio de Janeiro.

Etimologicamente, o nome “gentrificação” vem do francês arcaico “genterise”, significando “de origem gentil, nobre”. Gentrificar uma área urbana, portanto, é fazê-la, fortuitamente, parecer que teve tal origem. A coisa real que o nome designa é a elitização de espaços urbanos, até então de caráter popular; valorização cujo objetivo é o aumento de custos e bens de serviços. O preço imediato disso, por conseguinte, é a exclusão, de dentro desses espaços (regiões, bairros, ruas, praças), de antigos moradores, frequentadores, hábitos e tradições. Ou seja, a gentrificação é sempre o assassínio da urbanidade que a precede. Um urbanicídio.

A elitização de zonas urbanas é velha conhecida do Rio de Janeiro. Um exemplo trágico disso foi a expulsão, em 1957, da favela chamada de “A Cruzada São Sebastião” das margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, para, ali, serem erigidos nobres bairros, com os antigos e populares moradores tendo sido realocados fortuitamente para a famigerada “Cidade de Deus”, na distante Zona Oeste.

Mesmo assim, desde que o Rio se tornou sede oficial, tanto de jogos da Copa do Mundo, quanto da Olimpíada, a gentrificação que na cidade morava passou a ser “carioca da gema” (expressão que designa cariocas filhos de cariocas para se apontar “cariocas de verdade”). A consequência dessa gentrificação olímpica foi que muito cariocas da gema de verdade tiveram de deixar várias zonas da cidade nas quais viviam e/ou trabalhavam para se refugiarem em outras que coubessem nos seus orçamentos, claro, bem distantes dos noveau bolervards gentrificados.

A Gentrificação é espécie de Hidra de Lerna de muitas cabeças. A mais publicizada delas, obviamente, é a sofisticação de espaços urbanos. Outra, que decorre desta, é a substituição de classes sociais mais baixas pelas mais altas nesses espaços sofisticados. Uma outra ainda, cujos efeitos quero pensar aqui, é a gentrificação comercial que cada vez mais transforma o centro do Rio de Janeiro em uma área urbana que não serve nem às elites, nem tampouco aos antigos moradores/usuários do histórico bairro, em outras palavras, ao povo.

Usarei duas ruas do centro do Rio como exemplos desse tipo de gentrificação que, imediatamente, produziram o oposto do que pretendiam: decadência. A primeira delas: a Rua da Carioca; até os anos 2000 um movimentado polo de lojas de instrumentos musicais da cidade do samba, do chorinho e da bossa-nova. Assombrado pelo fantasma olímpico que fez com que, durante alguns anos, o Rio fosse a cidade do metro quadrado comercial mais caro do mundo, o logradouro viu os seus estabelecimentos comerciais rapidamente fecharem, sem, no entanto, nada de novo ou mais nobre tomar os lugares. A vida musical da rua calou completamente. O único som que hoje se ouve por lá é o do ruído dos automóveis reverberando tristemente no corredor de cortinas de ferro cerradas e enferrujadas, suportes para placas de Aluga-se ou Vende-se que, por mais que sejam vistas, não cabem no bolso de quem as vê

A pergunta que em primeiro lugar podemos fazer é: por que expulsar os antigos e tradicionais comerciantes e transeuntes da rua – que tem como nome o gentílico da cidade! – sem que outros, mais ricos e elitizados, os substituíssem? A resposta é mais triste do que se poderia esperar: em vez de apenas sofisticar o comércio que musicava a rua, a “política de terra arrasada” da especulação imobiliária gentrificatória é fazer com que a manutenção estratégica de uma ruína urbana apague quaisquer memórias popularmente simpáticas para, assim, parecer uma solução boa a todos serem construídos ali, por exemplo, antipáticos estacionamentos e shopping centers.

A Rua da Carioca, que inicialmente chamou-se Rua do Egito, depois, Rua do Piolho, tenha talvez de mudar de nome novamente, seja para fazer jus à ruína urbana que atualmente ela é, seja, futuramente, para nomear a “nova cidade” que ali será empreendida pelos interesses do capital imobiliário.

O segundo exemplo que trago é a Rua da Conceição, no movimentado corredor comercial popularmente chamado de Saara, que até alguns anos concentrava lojas essenciais a carnavalescos (na terra do carnaval!), sapateiros, costureiros, estofadores, encanadores, carpinteiros, e toda sorte de artesãos. Depois do tsunami gentrificatório que elevou os aluguéis, toda a variedade da Rua da Conceição foi substituída por um único tipo de serviço. Circular pelo logradouro, hoje em dia, é passear quase que exclusivamente por lojas que, uma depois da outra, vendem produtos para camelôs. Um olhar mais atento mostra ainda que tais lojas vendem todas as mesmas mercadorias. Com a gentrificação, a variedade sucumbiu diante da mesmidade.

Sem dizer que substituir lojas que antes serviam a um leque enorme da população por distribuidoras de bugigangas chinesas que suprem camelôs outra coisa não é que transformar um autêntico comércio oficial em um indesejado comércio informal, porque no mais das vezes ilegal, mediante atacadistas que, no final das contas, são os únicos que podem pagar por lojas legais em um ambiente assim gentrificado.

Só que, convenhamos, de “genterise”, isto é, de gentil, de nobre, essa gentrificação não tem nada, pois as visadas elites de modo algum passaram a frequentar os novos atacadistas que expulsaram os velhos lojistas da Rua da Conceição. Em vez disso, é o povo que, para buscar o que precisa ou deseja, não pode mais fazê-lo no interior de lojas devidamente estruturadas, mas tem de se expor nas congestionadas, sujas e perigosas ruas do centro do Rio onde os camelôs “atendem”, pelo menos até estas ruas serem gentrificadas também.

Aqui chegamos ao ponto que eu mais queria tocar. O centro Rio está sendo vítima de uma gentrificação incompleta, decadente, que expulsa o povo não para trazer elites, mas apenas para expulsar o povo. A lógica perversa dessa gentrificação é a seguinte: se as elites ainda não querem ocupar determinados espaços urbanos, ao menos a especulação imobiliária deve “limpá-los” de povo, e imediatamente, para quando os nobres desejarem, não terem “pedra no meio do caminho” alguma. Se já triste uma cidade ter a sua diversidade capitalisticamente expurgada para que certas zonas sejam privilegiadas às elites, que de certa forma também compõem a diversidade urbana, mais triste ainda é ver essa diversidade expulsa para que a não-cidade, ou seja, a não-diversidade tenha lugar cativo na cidade.

O silencioso corredor de lojas fechadas da antiga e musical Rua da Carioca, bem como a sequência de distribuidoras de bugigangas idênticas para camelôs que agora faz a Rua da Conceição, antes um rol de variedades, ambos os exemplos evidenciam, urbanisticamente, a tristeza reificada de uma gentrificação decadente, que, mesmo que não sofistique lugares às elites, precisa ao menos despopularizá-los imediatamente.

Não me atrevo propor uma solução para problema tão complexo e contra inimigos tão poderosos. Apenas peço que não nos esqueçamos de que, diametralmente oposta à gentrificação está a popularização. Pelo menos assim o povo pode saber qual dos dois movimentos que se digladiam dentro da cidade é o melhor para si, mesmo que, no momento, o movimento elitista esteja vencendo.

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Pós-racismo e desprivilegiação

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A jornalista e escritora Eliane Brum enviou uma arejada carta pública a Thauane Cordeiro, protagonista do “caso do turbante de Curitiba”, intitulada: “De uma branca para outra – O turbante e o conceito de existir violentamente”. Como não poderia deixar de ser, em se tratando de uma carta, Brum falava objetivamente a Thauane, mas, inevitável e subjetivamente a si mesma. E, por se tratar de uma carta pública, intersubjetivamente com seus leitores. E o vento virtuoso desse escrito devia mesmo ser publicizado, uma vez que o bafo úmido do racismo ainda é um resistente vício daqueles que, por trás de seus um crachás “politicamente corretos” seguem reproduzindo a incorreção que é o racismo.

Depois de fazer um elogiável, porque cada vez mais raro, exercício de alteridade, e ter se colocado na pele de Thauane, garota que por conta da leucemia perdeu os cabelos, e que por isso encontrou proteção (estética) no famigerado turbante africano, Brum assume que é mais fácil para ela se colocar no lugar da mulher branca que é Thauane do que no da mulher negra que a interpelou dizendo que “uma branca não pode usar turbante”. Entretanto, em vez do caminho fácil de se colocar do lado daquela com quem mais imediatamente se identificava – a mulher branca Tahuane -, a jornalista optou pela senda mais árdua, qual seja, a compreensão do lugar do outro mais outro que ela tinha em frente – a condição da mulher negra, crítica da apropriação cultural indevida de elementos de cultura negra por brancos.

Então, Brum compartilha com Thauane e seus leitores a contingência de ter nascido branca, em uma cidade de colonização europeia no interior do Rio Grande do Sul, tempos e ventos nos quais o racismo sequer precisava ser dissimulado. Conta-nos ela que nem mesmo para empregadas domésticas, ou para trabalhos dessa sorte, os negros eram solicitados. Vil conjuntura que Brum pensava ter superado somente pelo fato de ter superado as formas despudoradas de racismo em meio às quais cresceu. Mas o monstro do racismo, assim como a mitológica Hidra de Lerna, de três cabeças, faz crescer duas cabeças malévolas no lugar de cada uma que é cortada. Porém, como no mito, a Hidra racista só será eliminada se decepada a sua cabeça principal, chamada de imortal. Que sempiterna cabeça racista então a branca Brum estava cortando de si mesma, e competentemente levando os seus leitores a fazerem o mesmo?

Depois de lembrar-nos da histórica, monumental, fortuita e desumana instituição da subjugação dos negros pelos brancos, Brum constrange Thauane, a si mesma e a todos os brancos e brancas como elas a se ocuparem os lugares superprivilegiados de que os brancos sempre desfrutaram desde que esse mundo racista passou a ser o mundo. E, num ato de louvável consciência e coragem, afirma que, para mudarmos esse quadro, ela e todos os brancos precisam perder tal privilégio, pois tal dianteira outra coisa não é que o racismo per se. Para tanto, o privilégio relativista do qual muitos brancos se valeram ao colocarem o discurso defensivo de Thauane em pé de igualdade com o discurso crítico da mulher negra que a interpelou, esse privilégio deve ser extinto.

Sabiamente, Brum leva-nos a compreender que não deve haver igualdade entre os dois “lugares de fala” quando um deles, o de uma negra ou negro que luta por reconhecimento e identidade no mundo racista no qual vivemos, primeiramente foi privado, não só de sua fala, mas, como a História não nos deixa esquecer, de sua própria humanidade. Brum diz que, mesmo que ela possa usar um turbante, seja porque é livre, seja porque quer homenagear a cultura africana, ela todavia não deve fazer isso a partir do momento que esse outro mais outro do que ela mesma assim o solicita.

Essa postura lembrou-me a de Žižek em relação à desigualdade econômica provocada pelo capitalismo. Contrário à saída fácil, cínica, cretina, neoliberal par excellence, de se reduzir a desigualdade socioeconômica investindo-se na igualdade das partes, o filósofo defende que somente com desigualdade combatemos a desigualdade. Por exemplo, não acabaremos com o abismo entre ricos e pobres tratando-os igualmente. Isso apenas mantém intacto aquilo que inicialmente se quer modificar. Em vez disso, é ou dando mais aos pobres do que aos ricos, ou tirando mais dos ricos do que dos pobres que as desigualdades sociais serão reduzidas. Categoricamente, acabar com a desigualdade exige que ajamos desigualitariamente em favor do lado mais fraco e oprimido, e em detrimento do mais forte e opressor.

Na luta social contra o racismo, isso deve significar que os brancos ou devem abrir mão, civilizada e deliberadamente, de seus lugares de fala diante dos dos negros, ou, nessa dificuldade, serem fortuitamente privados deles. Se essa última opção parece radical, violenta, não obstante deve ser desestigmatizada. Assim como os ricos não abrirão mão espontaneamente do privilégio desigualitário de suas riquezas, mas só o farão se forem – revolucionariamente? – constrangidos a tal, assim também os brancos talvez só deixem de ocupar os seus privilegiados lugares de fala em respeito à luta dos negros por respeito e igualdade mediante constrangimento. O problema do atual “politicamente corretamento”, no entanto, é a priori rechaçar a violência. Todavia, ela não é só bárbara, sanguinária, mas pode ser civilizada, ademais, civilizatória, uma vez que “violar” (raiz semântica de violência) regras e costumes barbarescos como o racismo com o intuito de superá-los é construir civilização.

Num debate sobre o mesmo “caso do turbante de Curitiba” em um programa televisivo, vários jornalistas e comentadores brancos colocavam suas ideias sobre como devemos agir eticamente ante a luta contra o racismo. Mais uma vez, brancos, verticalmente, capitalizando para si o “ordenando o mundo”. Porém, depois de toda a “politico-corretice” branca, a única jornalista negra da mesa, até então calada, nos últimos minutos do programa, diz que, em assunto de racismo, tanto naquele quadro televisivo quanto na sociedade, não são, não serão, e não devem ser os brancos os donos da última palavra, mas os negros. Assim ela encerrou aquela discussão. Foi inevitável perceber o peso cinza no ar, melhor dizendo, o desconforto da maioria branca em ser despossuída, ao vivo e em cadeia nacional, do seu longevo e privilegiado lugar de fala diante de todo e qualquer assunto.

A jornalista negra foi violenta sim. Todavia, não porque foi agressiva nem desrespeitosa, mas, antes, porque violou a regra “politicamente correta” segundo a qual brancos e negros devem ter iguais direitos na luta contra o racismo. Ou, mais radicalmente ainda, porque violou o velho costume de os brancos encerrarem todos os discursos. Da mesma forma, só que nesse caso deliberadamente, Brum abdicou do privilégio intrínseco de sua confortável e historicamente segura condição de branca em nossa sociedade racista para dizer que é o discurso da ativista negra de Curitiba, e não o da branca Thuane, que deve reverberar privilegiadamente sem ser abafado pelo ruído branco. Essa é a lição mais civilizada em relação a casos como o do turbante de curitiba. Eliane Brum, de um lado, dizendo que é através da despriviliegiação fortuita dos brancos. Žižek, de outro, sustentando que só alcançaremos a igualdade quando atacarmos a desigualdade com a desigualdade que a corrigirá.

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Pós-Brasil e combate à corrupção “al Machiavelli”.

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A corrupção que assola o Brasil – que desde o seu princípio assolou, mas que atualmente está mais desnudada do que nunca – levou-me a estudar o combate à corrupção republicana proposto por Nicolau Maquiavel. Teria o fundador do pensamento político moderno um ensinamento válido para a corrompida terra brasilis, na qual empresários midiáticos (João Dória, prefeito de São Paulo) e pastores evangélicos (Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro) elegem-se justamente com discursos antipolíticos, da mesma forma como Trump, que conquistou o cargo político de maior poder no mundo dizendo que “As pessoas estão fartas de política”?

A resposta é: sim. E pelo menos no caso brasileiro, a explicação é a seguinte: se o combate à corrupção maquiaveliano, “velho” cerca de 500 anos, parece inócuo ao nosso corrompido país, “jovem” cerca de 500 anos, isso se deve não à limitação da teoria do italiano, mas, em vez disso, ao alto nível de corrupção da nossa república. Assim como o câncer não quer ser curado, pois seu mórbido desejo é metastasear-se o máximo possível, assim também a corrupção quer crescer sem resistência, até tomar todo o corpo do Estado. Por isso creio ser fundamental conhecer melhor o “remédio” para o mal da corrupção prescrito pelo pensador renascentista da aurora da modernidade.

Antes de combater a doença da corrupção republicana é preciso saber o que é esse mal: a corrupção; e o que é o corpo que ela ataca: a república. Comecemos por essa última. Res publica, ou seja, a coisa pública, é o Estado enquanto propriedade pública, governado em função dos interesses do povo, e não uma res privatam, voltado aos interessesprivados de um ditador, tirano, ou, no caso do Brasil, de um bando de longevos oligarcas.

Dessa perspectiva, vendo que o governo prioriza interesses de empreiteiras, agroconglomerados, canais de televisão e empresas de telefonia, em detrimento explícito dos interesses do povo, seria alienação sustentar que o Brasil é uma res publica. A presente conjuntura grita nos nossos ouvidos que o nosso Estado é uma desavergonhada res privatam. Se, todavia, quisermos insistir no fato de que o Brasil é uma república, o preço a ser pago todavia é assumirmos que é uma república corrompidíssima.

O que, então, para Maquiavel é a corrupção republicana. Conforme diz o italiano, uma república se sustenta através desuas leis e instituições. As primeiras, estabelecendo o que pode e o que não pode ser feito, deveres e direitos de todos. As segundas: fazendo cumprir as leis. Uma república saudável, não corrompida, é tanto aquela na qual as leis são sempre cumpridas por vigilância e competência das instituições, quanto aquela na qual as leis são infringidas, todavia, com instituições que punem/educam os infratores.

Um complicador natural na relação republicana entre leis e instituições é o fato de as leis serem dinâmicas, mudarem conforme as necessidades do povo e a força dele no sempiterno conflito com as elites. Entretanto, é bom que seja assim, uma vez que a liberdade do povo, fundamento das repúblicas, não é um ideal que seja dado ou negado ao povo, mas uma construção real, feita ao longo do tempo. Já as instituições, cujo objetivo é fazer valer as leis, não acompanham as mudanças destas; são estáticas. E é bom que seja assim também, pois instituições que mudassem constantemente, ao sabor dos momentos, não seriam confiável. A virtude de uma instituição é justamente a sua estabilidade diante das mudanças.

Aqui, portanto, vemos que a corrupção está inescapavelmente no horizonte de qualquer república, pois mesmo que leis e instituições cumpram plenamente seus papéis, em algum momento estas estarão defasadas em relação àquelas. E quando as instituições não têm mais capacidade para fazer cumprir as leis, alguns cidadãos se beneficiam disso. Em primeiro lugar, as elites em detrimento do povo. E, em segundo lugar, facções do próprio povo em relação a outras. Quando ambas acontecem simultaneamente, eis a corrupção reificada, ou, na letra de Maquiavel, a República corrompidíssima.

Mas isso significa que a república seja falha em si mesma, e que, portanto, o melhor a fazer é investir em outra forma para o estado? Auto lá! Basta não pressupormos Estados e repúblicas ideais, coisa que Maquiavel ensina do princípio ao fim de sua obra. O inevitável descompasso das instituições em respeito às leis não é um erro, um mal, mas, antes, um fato das repúblicas. O exemplo de Maquiavel para um Estado cujas instituições nunca ficaram aquém das leis era Esparta. O custo dessa “perfeição”, contudo, é que naquele Estado nada podia mudar. Algo antinatural em se tratando de coisas humanas. Criticamente falando, o povo espartano era a priori privado, por exemplo, de desejar, quiçá conquistar novos direitos. Em suma, não era livre.

Se a corrupção, ou seja, a defasagem das instituições ante as leis, é inevitável em uma república, então, combatê-la pode se dar por três caminhos. O primeiro: reformar as instituições para que doravante façam jus às leis existentes. O segundo: mudar as leis para que sejam exequíveis pelas mesmas instituições. Enfim, o terceiro: fazer leis e instituições totalmente novas. As duas primeiras opções são viáveis, porém, têm contra si os riscos de qualquer reformismo – o mal permaneceria presente em pelo menos metade do Estado. A terceira opção, apesar de radical, é a mais indicada por Maquiavel, porquanto estabelece leis e instituições novas, ambas livres dos velhos vícios. Só não devemos chamá-la de “revolucionária” porque o conceito usado pelo filósofo é outro, o de “refundação”.

Para Maquiavel, o único remédio para uma república corrompida é refundar-se. Em outras palavras, o “retorno à origem” dessa república, pois, segundo o renascentista, é lá, e somente lá que leis e instituições estão plenamente alinhadas. Radicalmente falando: confundem-se. O ilustre exemplo de Maquiavel para o seu “retorno à origem” é Roma, cuja virtuosa fundação por Rômulo era repetida sistematicamente na manutenção da saúde do corpo republicano romano ao longo do tempo. Mas oque havia na fundação originária de Roma que, refundado, alinhava leis e instituições e, consequentemente, livrava aquela república da corrupção?

Seria a mítica segundo a qual Rômulo matou o irmão Remo e então fundou Roma? Mas o que diz essa estória? Long story short, que Remo, pretendendoevidenciar que a cidade que o irmão estava fundando era vulnerável e não tinha futuro, pulou a muralha que Rômulo havia recém-construído, e que este, para mostrar que ninguém, nem mesmo um igual – seu irmão gêmeo – poderia infringir a ordem de sua nascente cidade, cometeu um dos fratricídios mais ilustres da história, ficando assim livre para erigir sua cidade que, um dia, seria chamada “Eterna”. Agora, investigar de que forma leis e instituições coincidiram nesse ato mítico e, aliás, bárbaro, porventura não nos afastaria da verdade factual na qual Maquiavel aconselha permanecermos?

Para Maquiavel, o que na verdade havia no princípio de Roma ao qual aquela república retornava para combater as corrupções que a assolaram ao longo do tempo era a virtude de um príncipe ordenador, Rômulo, que não poupou esforços para fazer valer as leis. Até mesmo a mítica encontra pertinência aqui: ao matar Remo por ter infringido a primeira ordem de Roma, qual seja, a muralha da cidade, Rômulo foi ao mesmo tempo a lei a ser cumprida e a instituição que a fez cumprir. Em suma, para Maquiavel, quando uma república estava corrompidíssima, o que ela precisava era de um príncipe virtuoso e corajoso.

Entretanto, como superar essa paradoxal necessidade de um príncipe, de um monarca, justamente por uma república? Sem embargo, era de um príncipe civil, escolhido pelo povo que Maquiavel falava, e não de um monarca que tomasse a cidade à força ou governasse por algum direito divino e/ou hereditário. Com efeito, príncipes podem facilmente tiranizar seus súditos. Estão com a faca e o queijo nas mãos. Não obstante, é quando um príncipe atua não como um ditador dono da res, mas como o primeiro cidadão (princeps) de uma res cuja posse é compartilhada com os súditos, que encontramos a virtude do principado referida por Maquiavel. E não poderia ser diferente, pois, para os mais atentos estudiosos do pensador italiano, ele era absolutamente republicano.

Não há dúvida de que a monarquia é extraordinária – fora da ordem – em se tratando de republicanismo. Contudo, uma vez que a república é a única forma para um estado na qual sua matéria, o povo, pode ser livre, e considerando que a corrupção republicana furta tal liberdade, a corrupção, outrossim, é republicanamente extraordinária. Por isso, quando Maquiavel receita um monarca – desde que civilmente eleito! – a uma república corrompida, assim o faz porque, para ele, “problemas extraordinários exigem soluções extraordinárias”. Um principado civil, metaforicamente, seria uma Unidade de Terapia Intensiva para uma república doente até que ela estivesse curada.

Todavia, não me dei por satisfeito com o maquiaveliano “retorno à origem” como forma de se combater a corrupção republicana romana significando apenas uma volta “terapêutica” à fundação monárquica de Roma na qual lei e instituição se alinhavam na persona de Rômulo. O mito do fratricídio insistia em meus pensamentos que ordem e executor confundidos na mesma pessoa produz despotismos, barbarismos. Onde, então, estaria o virtuoso e crucial ponto originário da fundação de Rômulo no qual leis e instituições se encontraram para produzir res publica, mais especificamente: liberdade para o povo?

Encontrei essa preciosa resposta na monumental obra “Ab Urbe Condita” (Desde a Fundação), do historiador romano Tito Lívio. Depois de narrar detalhadamente o mito da fundação de Roma, Lívio aponta, todavia passageiramente, o que, a meu ver, seja talvez o momento fundacional mais virtuoso, e concreto, ao qual os romanos retornavam sistematicamente para sanar a corrupção que o tempo (o inevitável descompasso das instituições em relação às leis) trazia à sua república. Mas o que diz Tito Lívio sobre isso?

Em primeiro lugar, que a cidade que Rômulo fundara havia sido populada inicialmentesobretudo por excluídos sociais de outras cidades, mercenários desocupados, antigos criminosos, ou seja, toda sorte de gente de índole duvidosa. Antes de criticarmos tamanha abertura, Maquiavel a defende dizendo que, na verdade, tratou-sede uma das grandes virtudes de Rômulo, pois, segundo o filósofo, aceitar indiscriminadamente dentro de suas fronteiras quem quisesse ser romano foi fundamental para, um dia, Roma alcançar o cosmopolitismo que a eternizou.

O grande desafio de Rômulo, por conseguinte, foi o de instituir leis para serem cumpridas por súditos tão pouco civilizados que, como o próprio Rômulo no caso do fratricídio, resolviam seus problemas barbarescamente. Com efeito, seria um idealismo condenável criar leis perfeitas para súditos imperfeitos. Tito Lívio conta que Rômulo teve de resolver duas questões cruciais. A primeira: como deveriam ser as leis de modo que súditos semicivilizados e estranhos a elas pudessem, de fato, observá-las? A segunda: como deveriam ser as instituições públicas de maneira que pudessem punir cidadãos tão rudes de modo civilizante, e não de modo barbarizante?

Aqui já posso apresentar a minha hipótese para a origem precisa – mais precisa do que a que Maquiavel receitou – à qual uma república corrompida deve retornar para combater o seu próprio mal. Essa hipótese, contudo, não refuta a prescrição maquiaveliana, apenas tenta complementá-la. A ideia é a seguinte: para se combater efetivamente a corrupção republicana al Machiavelli, a origem a qual se deve retornar para serem refundadas leis e instituições, pois só assim elas são absolutamente compatíveis e garantem a saúde da república, ou o que é o mesmo, a liberdade do povo, em suma, para fazer tudo isso não basta um monarca corajoso e bem-intencionado, como Rômulo, que confunda em si lei e instituição e que não permita que a sua ordem seja quebrada. Essa origem deve estar no átimo absolutamente realista no qual o Princeps concebe leis e instituições, isto é, a forma do Estado, a partir dos seus cidadãos, a matéria do Estado, e de forma alguma alienado deles.

Se arrisco contribuir com a pragmática maquiaveliana referente ao combate à corrupção republicana é porque não encontrei nos escritos de Maquiavel nada além do “retorno à origem” significando o realinhamento de leis e instituições na figura de um príncipe virtuoso e corajoso. Porém, dando um passo atrás, e pedindo ajuda a Tito Lívio, pude, creio eu, dar um passo à frente de Maquiavel e concluir que tal empreitada significa fazer como Rômulo, isto é: não pensar a forma para o Estado sem, desde o princípio, formatá-la em função da matéria desse estado. Metaforicamente, é agir como um alfaiate, e não ao modo prêt-à-porter.

Todavia, devo reconhecer que a minha hipótese é absolutamente maquiaveliana. Ora, para um pensador a quem só interessava a “veritá effettuale della cosa”, o fato de Rômulo ter pensado a forma de seu estado em função de sua matéria, qual seja, o povo; e, além do mais, ser exatamente isso que qualquer república deve fazer para combater a corrupção que inevitavelmente a assola; para tal pensador essa hipótese não é estranha. Desse modo, creio que minha humilde contribuição deva ser apenas mais uma volta – ou meia-volta – no parafuso realista com o qual Maquiavel, há 500 anos, fixou-se, ilustre e inarredavelmente, na superfície do pensamento político.

Confesso, contudo, que, antes de formular a minha hipótese, o tal “retorno à origem” para se combate a corrupção, que no caso de Roma significava retornar à virtuosa fundação por Rômulo, se aplicado à corrompida república tupiniquim soava demasiado desanimador. O que temos de virtuoso desde o descobrimento do Brasil até a Proclamação da República; entre o esquartejamento do território em capitanias hereditárias legadas a fidalgos da alta aristocracia e a derrota da monarquia pela oligarquia fazendeira, que mentiu ser republicana apenas para governar livremente e instituir uma pseudorrepública, apelidada de “Café com leite” porque nela oligarcas cafeeiros paulistas e leiteiros mineiros revezavam a verdadeira res privatam que era o Estado?

Considerando a origem republicana do Brasil, retornar a ela para se combater a atual corrupção seria o maior tiro no pé. Significa então que o Brasil está condenado à corrupção porque carece de uma origem não corrompida à qual retornar refundacionalmente ao estilo de Maquiavel? Talvez seja o caso de, em primeiro lugar, sermos radicalmente realistas, prudência que o italiano aconselharia, e compreendermos que nunca fomos, de fato, uma res publica; que apenas migramos da res privatam monárquica para uma res privatamoligárquica que, para melhor se manter, aceitou ser pós-verdadeiramente apelidada de república.

Depois de assumirmos a vacuidade da formalidade republicana com a qual as elites enganam o povo, a única coisa que nos resta é reconhecer que a República brasileira ainda está para ser fundada! Por isso a corrupção que furta a liberdade do povo não pode ser combatida republicanamente, porque esta corrupção não é verdadeiramente republicana, mas concretamente oligárquica, e, como tal, sequer é reconhecida pelos oligarcas como corrupção, mas como o seu sempiterno e lucrativo modus operandi. Somente depois que a res for publica, e o povo tão livre quanto as elites sempre foram, é que a prática corriqueira dessas elites será obrigada a engolir a denominação de corrupção.

Como então fundar essa república a partir da “bárbara” oligarquia que ainda governa o Brasil? Politicamente falando, precisamos de um Rômulo tupiniquim que crie formas para a república, isto é, leis e instituições verdadeiramente republicanas observáveis pela matéria do Estado brasileiro, ou seja, os cidadãos; desde que – e isso é fundamental! – ricos e pobres, elite e povo, em suma, todos estejam republicanamente horizontalizados nessa categoria chamada “cidadãos”. Aqui sim podemos, sobretudo devemos falar de Revolução!

O que não podemos é seguir normalizando um pseudo Estado republicano cujas leis, por exemplo, dizem, formalmente, que é crime roubar a riqueza nacional em função de interesses privados enquanto políticos, empresários, e até mesmo grande parte do povo o faz; e isso porque as instituições, que deveriam fazer valer as leis, não têm mais, se é que um dia tiveram, capacidade para fazê-lo. Michel Temer, Aécio Neves, Renan Calheiros, José Sarney, Romero Jucá, Moreira Sales, Paulo Maluf, só para citar alguns – de muitíssimos –, são prova de que o Brasil não é res publica, mas res privatam, e deles.

O combate à corrupção republicana de Maquiavel, contudo, tem a ensinar à res privatam que somos que, em primeiro lugar, precisamos fundar uma res publica. Só assim certas práticas poderão ser reconhecidas como corrupção e doravante combatidas republicanamente, ou seja, com participação do povo. O exemplo da realista fundação das leis Roma por Rômulo dado por Tito Lívio, por sua vez, ensina aos futuros fundadores da República brasileira que ninguém, nem mesmo um gêmeo, um sócio, parceiro do fundador poderá se arrogar o direito de infringir as leis, pois será inescapavelmente punido pelas instituições.

Claro, no Brasil, muitos cidadãos são punidos pelas instituições sempre que infringem as leis, o que até pode convencer alguns de que vivemos em uma república. Mas, verdade seja dita, na maioria esmagadora dos casos são indivíduos do povo que são elencados para encenarem o mito da república brasileira. Até mesmo a recente onda de prisões de grandes políticos e empresários, infelizmente, só estão aí para dar seguimento à fábula republicana que esconde o fato de que vivemos uma crua tragédia oligárquica. Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Marcelo Odebrecht só foram espetacularmente pegos pelas instituições por terem infringido as leis para que os peixes oligarcas verdadeiramente grandes permanecessem livres delas. Pós-modernice par excellence: mudar as coisas para que elas permaneçam exatamente como estão.

Por isso precisamos fundar a república brasileira, para finalmente todos estarmos sob as mesmas leis e à observância das mesmas instituições. Em outras palavras, para que o povo seja tão livre quanto as elites. Não para o povo estar fora do alcance das leis e instituições, como as elites, mas para que estas sejam tão constrangidas a cumprirem as leis quanto ele. Isso significa deixar o concreto Brasil oligárquico no passado e fundar um novo Brasil, pós-ele-mesmo, pós-oligarquia, pós-fábula republicana. Um pós-Brasil fundado do modo como Rômulo fundou Roma, com leis e instituições pensadas de modo realista, isto é, em função do nível de barbárie/civilização dos cidadãos que deverão observá-las. De formas republicanas vazias e de matérias oligárquicas plenas estamos fartos. São essas as “corrupções” que, enquanto não são efetivamente combatidas, impedem que lutemos republicanamente contra a corrupção.

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O bem dito Manifesto de Zuckerberg vs. o maldito algoritmo do Facebook

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Mark Zuckerberg, fundador & dono do Facebook, nesta quinta-feira 16 de fevereiro publicou um Manifesto em Defesa da Globalização. Espécie de “Ponte para o Futuro” para a próxima década de sua rede social, que, entretanto, assim como a golpista tupiniquim, mais mente levar-nos do presente a um futuro melhor do que de fato tem intenção e capacidade para tal. Assim como os nossos políticos corruptos fingem “representar” os interesses do povo enquanto tratam apenas de seus interesses privados, assim também Zuckerberg mente que “na última década o Facebook esteve focado em conectar amigos e famílias”, mas, como qualquer usuário do Facebook “sente na timeline”, a conexão principal vem sendo com empresas privadas e conglomerados midiáticos.

Zuck dirige o seu Manifesto à comunidade. À sua “comunidade”, obviamente. Teria feito bem maior para o futuro se tivesse se manifestado, de preferência silenciosamente, contra o maldito algoritmo de sua rede social, que, sob o pretexto de “criar comunidade”, na verdade produz bolhas de mesmidade cada vez mais incomunicáveis entre si. Ao contrário do que parece, nossos feed de notícias não são janelas que nos conectam à diversidade do mundo, mas um brete virtual através do qual somos constantemente reconduzidos para onde já estamos e de onde é cada vez mais difícil de escapar: nossos arraigados e preguiçosos hábitos e preferências. Se, como dizia Umberto Eco, a cultura de massa dividiu a humanidade em dois tipos: os Apocalípticos e os Integrados; o Facebook, em vez fazer comunidade com esses dois tipos antagônicos, sistematicamente conecta apocalípticos com apocalípticos e integrados com integrados.

Os ensimesmamentos solipsistas que o algoritmo do Facebook produz lembram as mônadas de Leibniz: unidades simples, autossuficientes e incomunicáveis entre si; microcosmos “sem portas nem janelas” que possuem em si a representação de todo o Universo e da relação entre todas as mônadas; mas que não podem exercer qualquer efeito umas sobre as outras. Só que as “mônadas facebookianas” não têm, cada uma delas, “a” representação do Universo, mas sim a “sua” representação. Se as de Leibniz não precisavam “dialogar” com as demais mônadas porque já compartilhavam com elas uma “ideia” fundamental, as do Facebook, em troca, não dialogam pelo motivo inverso: terem, cada uma, uma ideia completamente diferente. Antes de as “comunidades” monádicas do Facebook não quererem ou não poderem estabelecer comunidade entre si, é o próprio algoritmo da rede que furta delas essa possibilidade.

Mais grave do que “a comunidade facebookiana de Zuck” ser, ela mesma, uma mônada ignorante do que é uma verdadeira comunidade, é o fato de ela produzir tantas mônadas ignorantes em relação às demais quantos são os seus usuários; que, se não se percebem como tais, é porque a ausência de “portas e janelas” com a qual estão envoltos mente que é espécie de aquário, cujas paredes, no entanto, em vez de vidros transparentes, são feitas de espelhos. O Facebook é um mentiroso salão de espelhos, como o do Palácio de Versalhes: espetacular, sofisticado, capaz de repetir o mesmo, infinitamente, mentindo que ali está presente o mundo, mas, diferente do que Zuck quer fazer crer, não forma comunidade.

Em outras palavras, Zuck diz que o desafio do Facebook é criar soluções globais para problemas globais. Certamente falta a ele leituras sociológicas de vanguarda, segundo as quais: “para problemas globais, soluções locais”; ideia defendida por grandes intelectuais, como por exemplo, o recentemente finado Zygmunt Bauman, que em seu popular “Confiança e medo na cidade” esclarece que tentar solucionar um problema com o próprio problema outra coisa não é que duplicá-lo, que problematizá-lo. É como querer solucionar o capitalismo com mais capital; a bebedeira com mais álcool; o fascismo com mais egoísmo. O Bom-senso do velho e sensato sociólogo felizmente sobrevive para dizer a Zuck que, se “há pessoas que sentem que foram deixadas para trás pela globalização” – afirmação do dono do Facebook -, o problema é a globalização; precisamente, o modo como ela se dá; seu conceito que não consegue ser realizado. Ora, uma globalização que no final das contas é excludente sequer merecia esse nome.

No entanto, Zuck enche a boca para falar de “globalização” e “comunidade” enquanto o seu algoritmo, sob os ecrãs que simulam unir todos, produz glocalização (separação) e guetos virtuais que, infelizmente, não tardam em se materializarem na realidade. Exemplo disso é a divisão político-ideológica que tem espaço no Brasil atualmente. A incapacidade de “petralhas” e “coxinhas” estabelecerem diálogo, por exemplo, está muito menos em suas reais diferenças ideológicas do que no subterrâneo distanciamento em relação à alteridade que algoritmos como os do Facebook promovem através das redes sociais. Só que um verdadeiro espaço em comum não é aquele que somente “petralhas”, ou “coxinhas” compartilham entre si, sem a presença do outro. A comunidade de que mais precisamos é uma na qual as grandes diferenças possam compartilhar, e civilizadamente, o mesmo espaço.

Ao contrário da Lei de Coulomb, que, vulgarmente falando, diz que na natureza os opostos se atraem e os iguais se repelem -, a imperiosa “Lei Algorítmica do Facebook” é antinatural a ponto de aproximar iguais e separar opostos. Que universo se constrói com isso? Resposta: nenhum, apenas microcosmos insustentáveis; tão instáveis quanto a aproximação fortuita de duas cargas negativas, ou positivas. Aproximar iguais é duplamente burro. Em primeiro lugar, porque iguais não precisam ser aproximados. Tal aproximação já existe, mesmo que não seja noticiada em um mesmo feed. Em segundo lugar, porque a verdadeira comunidade de que precisa o problemático e excludente mundo globalizado é justamente aquela que possibilitará aos opostos compartilharem um espaço em comum; um locus onde “coxinhas” e “petralhas”, Apocalípticos e Integrados, bem como quaisquer pares de opostos que pudermos listar aqui, possam formar um universo humano.

A metáfora que a Lei de Coulomb e o modelo clássico de átomo têm para ensinar a Zuck é a seguinte: assim como a natureza não precisa aproximar elétrons de mesma carga negativa para que formem uma eletrosfera, nem tampouco prótons de carga positiva para que formem um núcleo, mas, em vez disso, junta elétrons com prótons para assim formar uma estrutura estável chamada átomo, assim também o algoritmo do Facebook não deve aproximar ideologias, gostos e práticas iguais ou demasiadamente similares para formar comunidade – iguais se entediam de si mesmos e se afastam! -, mas, em vez disso, sair do caminho dos opostos para que eles possam se atrair livremente. Quando os opostos não estão impedidos de se atrair, os iguais se organizam em função dessa atração.

Não há porque ter medo de deixar os opostos livres para atraírem-se. Como acontece nos átomos, os opostos elétrons e prótons se atraem mais do qualquer outra coisa, contudo, não se tocam; não se fundem; não querem ser o mesmo. O raio da órbita de um elétron é distância mínima que, tanto o elétron negativo quanto núcleo positivo, precisam para manterem, ambos, as suas alteridades. Sabe-se, também, que quem estabiliza essa atração/repulsão entre as partes negativa e positiva do átomo são os nêutrons, sem os quais os elétron se chocariam com os prótons e adeus átomo. Essa metáfora deve servir de exemplo ao futuro algoritmo do Facebook, que deveria se comportar como o nêutron, nem positivo, nem negativo, e por isso mesmo o cimento universal das “comunidades” atômicas.

O Manifesto de Zuckerberg é “politicamente correto”. Todavia, no sentido mais vil da popular expressão, pois, ou se é apenas e autenticamente político, e assim se constrói civilização; promove-se a realização do melhor para a humanidade; ou, ao contrário, não se é político, mas despótico. O vício condenável da político-corretice é querer fazer reluzir um verniz politico, civilizado, onde, na verdade, há um ato despótico que não tem coragem de assumir. E Zuck, nesse sentido, e sem aspas, é politicamente correto: sob a sua vendável apologia de uma “Comunidade Global” jaz o seu maldito algoritmo guetificador. Como se diz no Brasil: prega moral de cueca. Mas Zuck é um capitalista. E um dos mais bem-sucedidos da atualidade. Seu Manifesto, mutatis mutandis, poderia até fazer as vezes do ausente, porque desnecessário, Manifesto Capitalista. Todavia, ninguém deve esperar que a verdadeira comunidade futura, de que já carecemos presentemente aliás, virá de Manifestos tão distantes daquele que realmente se importou com o comum, qual seja, o Manifesto Comunista.

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Linchamento em planta-baixa

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De repente, ouço uma gritaria vinda da av. Nossa Senhora de Copacabana. Vou à minha janela, do décimo segundo andar, para ver o que se passava. Lá embaixo, cerca de dez homens corriam atrás de um garoto sem camisa e descalço, que ziguezagueava entre os carros de um congestionamento.

Nas calçadas, a massa que antes caminhava, somada a que estava dentro de bares e lojas, alinhavam-se junto aos meios-fio, como se estivessem em um camarote. Também devidamente camarotados, eu e dezenas de pessoas nas janelas dos prédios ao redor.

O burburinho, que a princípio não dizia nada claramente, na verdade, era uma centena ou mais de descompassados gritos de “pega ladrão”. Ao mesmo tempo, outras frases eram ouvidas: “arrebenta com ele”; “tem que matar”; “mostra para ele o que ladrão merece”, e por aí vai. Eu não era o único calado nesse Coliseu contemporâneo urbano, mas nós que apenas observávamos éramos certamente minoria.

Então o garoto leva um soco na nuca de um dos que corria atrás dele, e cai, literalmente, na sarjeta da Nossa Senhora. Os gritos de “pega ladrão” perdem lugar para os de “arrebenta”. Não só os cerca de dez homens que perseguiam o garoto começaram a chutá-lo, como receberam reforço de transeuntes/espectadores. Acho que, no final das contas, devia ter quase trinta pessoas em torno do garoto.

Da vista da rua nem devia mais ser possível enxergá-lo. Como, porém, eu estava doze andares acima do espontâneo linchamento, ainda podia ver, em planta-baixa, o corpo magrelo descamisado, encolhido qual feto, protegendo-se do útero violento que o envolvia. E os gritos não paravam. Nem os de ódio, da massa, nem tampouco os de dor, do garoto.

Preocupado com a vida do linchado, foi inevitável lembrar de Foucault, em “Vigiar e Punir”, dizendo que, antigamente, havia uma intensidade de suplício para cada delito, sendo o pior de todos aquele imputado contra o crime de regicídio, ou seja, o assassinato de um rei. Isso serviu para confirmar que a punição que o garoto estava recebendo já estaria sendo excessiva até mesmo para os padrões de mil anos atrás. Seja lá o que o garoto tivesse roubado, o suplício público extenuante que sofria, com certeza, é infinitamente mais criminoso.

Sem pestanejar, eu gritei para pararem; para chamarem a polícia… Então, alguns dos gritos de ódio contra o moleque, tanto os da rua, quanto os das janelas à minha frente, voltaram-se contra mim. Se eu estivesse lá, no nível da rua, certamente não seria somente ofensas verbais que eu receberia por criticar a excessividade da agressão.

Experiência triplamente traumática. Em primeiro lugar, em função da desmedida da agressão contra garoto. Em segundo lugar, por conta da impessoalidade do foco desse ódio, conduzido facilmente a quem quer que fosse contra ele. E, em terceiro lugar, por causa do fascismo explosivo dos meus vizinhos de bairro. Copacabana, a Princesinha do Mar, de uma hora para outra, forma uma turba de linchadores orquestrada por um coro odiento.

Afastei-me da janela para pararem de me ofender. Não mais via o bolo de linchadores em torno do garoto, só os ouvia. O que eu pude observar, no entanto, logo ali, do outro lado da rua, eram quatro soldados do exército – que agora fazem a segurança civil da cidade, devidamente armados com suas metralhadoras -, parados, olhado tudo aquilo acontecer, sem nada fazerem além de balançarem afirmativamente suas cabeças em reposta aos comentários da plateia insana que os cercava.

A polícia não mais funciona na cidade. Por isso os militares vieram fazer o serviço deles. No entanto, estes também nada fizeram além de fingir que estão fazendo o serviço da polícia que nada faz. O que ambos deveria estrar fazendo? Oferecendo segurança aos cidadãos. Mas, pelo jeito, o garoto não cai nessa gentrificada categoria chamada “cidadão”.

No vácuo da segurança pública carioca, são os cidadãos, sem treinamento nem escrúpulo algum, do jeito que podem e movidos por afetos barbarescos, que se arrogam o dever de fazer o trabalho que a polícia e o exército deveriam estar fazendo juntos. Justiça com as próprias mãos, ou, para ser literal, com os próprios pés. Que Leviatã que nada. No caos tupiniquim, é a guerra de todos contra todos.

Se a civilização é um projeto, e aquilo que eu estava vendo doze andares acima era uma planta-baixa desse “working process”, a conclusão, infelizmente nada surpreendente, é que aquelas pessoas, plenas de ódio e de falta de compreensão, não estão construindo outra coisa além da ruína da nossa sociedade. Na verdade, trata-se de um projeto público de demolição.

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Raças vs. Etnias, e a tal da “apropriação cultural”

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Na esteira da polêmica sobre “apropriação cultural” gerada pelo “Caso do Turbante de Curitiba”, qual seja: se uma pessoa “branca” pode ou não usar vestimentas típicas da cultura negra/africana; uma afirmação de ímpeto “politicamente correto” ecoou nas redes sociais: “Não existe raça. Por isso, não existe apropriação cultural”. A frase que pretendia encerrar a discussão, no entanto, levanta importantes questões. Uma delas: se não existe raça (ou qualquer quer nome que a valha) o que dizer de diferenças humanas geneticamente determinadas? Outra: se existisse raça, então existiria “apropriação cultural”? A terceira, decorrente dessa última: por que as culturas, produtos humanos par excellence, seriam inapropriáveis?

Contemporaneamente, ganha força o discurso de que a diversidade humana deve ser explicada pela cultura. Os justos intuitos “politicamente corretos” desse discurso são: a preservação identitária de determinadas culturas; a desconstrução de preconceitos raciais até hoje sobreviventes nas sociedades; e a prevenção contra o ressurgimento de quaisquer ideias de superioridade racial. E para isso, conceitos como os de etnia, povos, comunidades, grupos, tomam o lugar do conceito de raça. Dessa perspectiva, o que constituiria a identidade de uma etnia não seriam características naturais algumas, mas culturais: aquilo que, povos, grupos, comunidades cultuam em comum e que os diferenciam dos demais.

Esse enfoque, porém, não cobre diferenças naturais facilmente observáveis nos seres humanos, como por exemplo as que vemos em alguns esportes, tais como a natação e o atletismo. Independente de suas culturas, os maiores velocistas são invariavelmente negros e negras. Da mesma forma, os mais velozes nadadores são brancos e brancas. Sem desconsiderar consistentes análises sociológicas que apontam que certos esportes são mais elitizados que outros, e que por isso negros e brancos tiveram acessos desiguais a eles, é preciso considerar evidências científicas, sob o risco de sermos pós-modernos, demasiado pós-modernos.

Levando em conta um dado cientificamente irrefutável: a diferença de densidade óssea entre negros e brancos; não é absurdo, nem tampouco desrespeitoso aceitar que, por conta de uma ossatura mais densa, e consequentemente mais pesada em relação à dos brancos, os negros obtém menor performance dentro d’água. Por outro lado, comparativamente aos negros, a menor potência e resistência muscular natural dos brancos os deixa para trás nas pistas de corrida. Atentar a essas diferenças não significa necessariamente ser racista – embora muitos delas se valham e tenham se valido para tal -, mas, essencialmente, racialista.

O racialismo, ou – nome que de fato pouco ajuda – “racismo científico”, é uma “teoria científica das raças humanas” que estuda os tipos humanos a partir de suas diferentes características genéticas hereditárias, tais como, por exemplo, as apontadas acima. Se, para o discurso “politicamente correto”, diferenças culturais explicam satisfatoriamente a diversidade humana, o discurso “cientificamente correto”, por seu turno, não pode deixar de explica tal diversidade sem atentar à diferenças genéticas hereditárias.

O maior desafio dos racialistas, por conseguinte, é o de não serem racistas. Para tal, precisam ser absolutamente críticos em relação às contingências socioculturais e econômicas que, durante séculos, serviram de matéria para que alguns grupos humanos subjugassem desumanamente outros. A insólita virtude do racialismo, no entanto, é ainda se preocupar com diferenças genéticas humanas, todavia ao preço de colocá-las sob um guarda-chuva semântico que apenas atende pelo nome de raças, e isso justamente no contexto contemporâneo, “politica e culturalmente correto”, que, por sua vez, tenta suprimir a pertinência de tais diferenças.

No entanto, eleger a teoria de que as diferenças humanas são apenas construtos socioculturais e não também genéticos/hereditários, mutatis mutandis, é como fechar de vez os livros de ciência para manter aberto O Livro da Teoria da Criação, ou seja, A Bíblia. Ser pós-moderno, demasiado pós-moderno, nesse caso, confunde-se perigosamente com ser medieval, demasiado medieval. Dizer que é o homem, e só ele, que cria as suas diferenças, não é muito diferente do fundamentalismo de dizer que Deus, e só Ele, criou o homem. É anticientificamente dogmático.

A virtude do ímpeto “politicamente correto” contemporâneo em se recusar à diferenciações racialistas está no fato de lembrar a todos que o discurso racialista pode ser facilmente pervertido e apropriado pelo discurso racista. Com efeito, diante do desafio de acabarmos com o resistente barbarismo do racismo, certos discursos e teorias deveriam calar. Pelo menos até a humanidade alcançar um estágio civilizatório no qual tratar, aberta e cruamente, de diferenças genéticas não ofereça riscos de que certos grupos se considerem superiores e, por conta disso, subjuguem outros.

O vício do discurso “politicamente correto” que refuta as diferenciações racialistas (Não há raça!), no entanto, está em não reconhecer o seu próprio Calcanhar de Aquiles. Ideias de superioridade racial, bem como os males que elas causaram e ainda causam, não estão prescritas em gene algum, mas se justificam de forma muito mais clara culturalmente. O tropeço “politicamente correto” está em não reconhecer que os maiores males podem se justificar mais eficientemente na contingência de discursos culturalistas do que na verdade necessária de dados científicos.

Apesar de a contemporânea politico-correção em respeito à construção da igualdade entre as pessoas exigir que entendamos raça tão somente enquanto um constructo social perigoso, a antropologia e a sociologia, por exemplo, sabe muito bem que diferenças genéticas/fenotípicas afetam e organizam a vida de grupos humanos. Se, por um lado, tais diferenças provocaram e sustentam desigualdades sociais traumáticas, por outro lado, contudo, estabelecem pertenças culturais de valor e acolhimento insuperáveis, ou, para dizer o mínimo, humanos.

Diante da atual força do discurso “politicamente correto”, os cientistas de modo algum deixam de estudar as diferenças genéticas humanas. Apenas são constrangidos a usarem nomes que não causem, digamos assim, “polêmica política”. Como dito antes, em vez de raças: etnias, povos, grupos, comunidades, etc. No final das contas, e infelizmente, a político-correção muitas vezes se dá por satisfeita com meras vitórias nominalistas. Pós-modernice todavia condenável; pois, como provoca Žižek: o pós-moderno é aquele que quer mudar tudo desde que as coisas permaneçam como estão. Assim dá continuidade à sua luta, o que realmente importa a ele.

Todavia, os mesmos riscos e problemas socioculturais dos quais os “politicamente corretos” querem se ver livres não desaparecem ao apenas serem mudados os nomes mediante os quais se quer definir diferenças naturais dentro da humanidade. Ora, se o conceito de raça, por questões culturais, pôde gerar ideias de superioridade racial, os de etnia, de grupo, outrossim podem sustentar ideias de mesmo e vil calibre.

Para se ser “cientificamente correto” hoje em dia é preciso ser ao mesmo tempo “politicamente correto”. Até aí tudo bem. Nada de errado os cientistas serem devidamente civilizados. O mesmo, entretanto, não pode ser dito dos “politicamente corretos”, cujo discurso insiste em ser refratário a certas verdades científicas. Por isso dizem, por exemplo, que “raças não existem”, como se aquilo que racialistas estudam e comprovam inexistisse. O problema de se crer cegamente que tudo é construto social é que aquilo que precede a cultura, e que de forma alguma é anulado por ela, qual seja, a natureza, não é também determinante na existência humana.

A natureza existe, sem a menor sombra de dúvida, mas não foi feita por homens e mulheres, nem tampouco para eles. Dessa visada, é outorgar-se espécie de divindade querer menosprezar determinações naturais. Por outro lado, o que é feito por e para homens e mulheres é a sociedade, a cultura. Somente aí podemos agir como se fôssemos deuses. No entanto, não ao estilo do Deus cristão: único, onipotente e onisciente; mas no máximo ao modo dos deuses do paganismo: um panteão povoado por divindades sem o qual, em idas eras, a humanidade não se reconhecia nem se explicava.

Mais problemático ainda é a político-corretice de se sustentar que todas as diferenças humanas atendem pela acunha de culturais e ao mesmo tempo defender de que “não há apropriação cultural”. Com isso dizem que diferentes etnias, grupos, são inconciliáveis; alienígenas uns aos outros. Cindem a humanidade de modo irreversível. Felizmente, a simples experiência mostra que estão errados. Quaisquer povos, comunidades, podem se apropriar da língua e dos costumes de quaisquer outros. O problema do “politicamente correto” está em achar isso incorreto politicamente.

Se a língua é um dos mais inarredáveis fundamentos de uma cultura, e se o diálogo é a base da civilização, então, sem se apropriarem no mínimo das línguas uns dos outros, povos diversos nunca poderiam estabelecer relações civilizadas entre si. Por que com outros elementos culturais seria diferente? Dizer que “não há apropriação cultural”, em outras palavras, é condenar as diferenças a espécie de eterna barbárie. Sim, apropriamo-nos culturalmente de elementos de outros grupos, mas isso não significa necessariamente furtar-lhe suas identidades. Antes, é um passo civilizado, pois se dialoga com o outro ao se agir, pensar, falar como ele; em suma, ao se apropriar de sua cultura.

Então, a frase “Não há raça! Por isso não há apropriação cultural” é a saída mais fácil, todavia mais burra, para a complexa e interminável epopeia humana chamada civilização. Apropriação cultural há! E é ela que faz com que o mundo não recaia na barbárie. E, pelo menos do ponto de vista racialista, raças há! E são elas que explicam diferenças naturais que conjunturas culturais não o fazem nem tem como fazê-lo. Se ser “politicamente correto” impede que se compreenda as coisas também desse modo, desculpe-me, tal “correção” merece outro nome: limitação.

Os grandes e mais civilizados povos da antiguidade, o grego e o romano, tinham por bárbaros aqueles que se recusavam a apropriarem-se de suas culturas e que preferiam permanecer fechados em suas próprias. Roma, muito mais do que a Grécia, era um convite à alteridade. Qualquer um podia ser romano. Bastava apropriar-se de alguns costumes e leis para se desfrutar da pax romana. Não só há apropriação cultural, como ela é uma virtude humana, quiçá uma das maiores. Sem ela, não seriamos civilizados, mas bárbaros isolados em nossas próprias culturas.

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Radicalismo “politicamente correto” e civilização

politicamente

A expressão “politicamente correto” é redundante. Não há incorreção quando somos, de fato, políticos. Dentro dessa relação, até as diferenças mais irredutíveis não são e não devem ser vistas como erros, mas como matéria da política. Radicalmente falando, ou agimos politicamente, ou, em vez disso, somos despóticos. Se há algum erro, ele pertenceria ao segundo caso. A invenção da política pelos gregos se caracterizou justamente pela conversão do despotés (déspota) em polités (político). Dessa perspectiva, acusar alguém de ser “politicamente incorreto”, na verdade, significa chamá-lo de bárbaro.

Todavia, não pretendemos ser tão radicais quando, vulgarmente, apontamos a político-incorreção em um de nossos pares. O mais das vezes, queremos apenas denunciar, quiçá corrigir uma civilidade incompleta, falha, que precisa de um ajuste para se realizar plenamente. O problema dessa crítica, contudo, é pressupor que a civilização seja um projeto acabado, um modelo ideal e acessível, ao qual devemos nos conformar para dele nunca nos afastarmos. Só que não!

A civilização é, em si mesma, um projeto inacabado e inacabável da humanidade. Provas disso são: tanto a persistência, até hoje, do maior despotismo de todos, o assassínio; quanto principalmente a sistemática conversão de costumes, até certa altura naturais à civilização, em neobarbarismos a serem doravante extirpados, como por exemplo: não mais fazer piadas nem cantar marchinhas de carnaval racistas e sexistas; “brancos” eurocêntricos não usarem, banal e indiscriminadamente, roupas étnicas, e por aí vai.

Se ser civilizado, ou o que é o mesmo, ser político, é uma sempiterna construção, então, não há nada de fundamentalmente errado em descobrirmos e apontarmos, uns nos outros, zonas de despotismo, porões de aquém-civilidade. Isso, aliás, é o modus operandi per se da civilização. Se existe algo que podemos chamar de correto na história da civilização, é não abandoná-la enquanto a escrevemos. Com perdão da redundância, civilidade é permanecer civilizado na construção e na manutenção da civilização.

Exemplo disso é a postura do bloco carnavalesco carioca “Cordão da Bola Preta” que, diante da postura de ímpeto “politicamente correto” que condena a execução de algumas marchinhas de carnaval clássicas por conta de teores racistas, sexistas ou homofóbicas, decidiu apenas não tocá-las, seja porque de fato elas ofendem alguns, seja ainda porque há tantas outras músicas, tão mais alegres e/ou clássicas, e certamente menos polêmicas. O “Bola Preta” é civilizado porque não se impõe despoticamente àqueles que não compartilham do seu, digamos assim, estágio civilizatório. Apenas age exemplarmente.

Entretanto, pode-se ser radical em defesa da civilização. Um recente caso, que ilustra bem isso, é o da ativista negra curitibana que interpelou agressivamente uma concidadã branca que usava um turbante estilo africano para esconder a careca causada por tratamento quimioterápico, dizendo-lhe que “uma branca não pode usar roupa de negro”. A radicalidade “politicamente correta” da ativista estava em condenar a “apropriação cultural” de elementos da cultura negra precisamente pela etnia branca que se apropriou despoticamente dela por séculos.

A despeito do significado vulgar que damos à palavra “radical”, como se se tratasse apenas de “excessividade”, de “exagero”, etimologicamente, no entanto, ela significa “relativo à raiz” (do latim “radicalis”, derivação de “radix”: raiz). Dizer que algo é radical, portanto, é falar que esse algo está conectado à sua origem.

Esse esclarecimento é importante porque, ao chamar de “radicalismo politicamente correto” o ato político da ativista, eu não quero acusá-lo de desmesura, nem de, em última instância, despotismo. Em vez disso, o objetivo é entendê-lo enquanto um ato político autêntico que, no entanto, se aproxima polemicamente da origem que é a própria instituição da civilização.

Com efeito, na raiz da civilização estávamos muito mais próximas da questão dualista de o que fazer/o que não fazer para ser civilizado; para não ser bárbaro… A distinção radical da civilidade em relação à barbárie está em um “não” ao embate físico, e em um “sim” ao diálogo político. Nesse estágio, e somente nele, ser civilizado é simples assim.

A crítica da ativista negra à “apropriação cultural” do turbante africano por uma branca, está longe de ser errada. Apenas é radical no sentido de pretender estabelecer regras demasiadamente objetivas em respeito ao que se deve fazer para se ser, segundo seu ponto de vista, devidamente civilizado. Mutatis mutandis, pretende dizer que “correção política”, ou, mais apropriadamente, polidez, civilidade, é uma etnia não se apropriar, impune e banalmente, de elementos de identidade de outra etnia. Principalmente em se tratando de uma que, histórica e desumanamente, foi desapropriada de si mesma pela outra. E, infelizmente, não só culturalmente!

Embora tenhamos deixado de lado o significado comezinho de “radical”, qual seja, o de exagero, de excessividade, temos contudo de reconhecer a sua pertinência na luta politica dos negros por reconhecimento identitário e igualdade. E isso porque, fazendo uma analogia com as relações físicas de força, a força através da qual os negros foram historicamente subjugados pelos brancos não será anulada sem o expediente de, no mínimo, uma força de igual intensidade, porém, de sentido contrário.

Ser radical, no sentido amplo que essa palavra nos oferece, é tanto “estar junto à origem”, quanto, em relação à origem da própria civilidade, estar próximo à barbárie. O “Calcanhar de Aquiles” do ato político radical, no entanto, está em que, embora civilizante por natureza, de qualquer modo trara aquilo contra o qual empreende como se se tratasse de barbárie.

Se o ato político da ativista negra contra o uso de turbante por brancos é polêmico, o é porque entre a sua radicalidade e a sua contemporaneidade se interpõe toda sorte de relativismos. Um deles, assaz célebre e pertinente, vem do filósofo alemão Theodor Adorno, para quem “o consumidor não é soberano, como a Indústria Cultural quer fazer crer; não é o seu sujeito; mas o seu objeto”.

Com efeito, da vertical perspectiva dos rolos compressores que são a indústria cultural e o capitalismo que a industrializou, o fato de os negros terem sido historicamente subjugados pelos brancos, guardadas as devidas proporções, obviamente, é no entanto tão objetal quanto todos nós, brancos, negros, índios, mulheres, homens, gays, lésbicas, etc., estarmos subjugados aos ditames da moda, que, radicalmente, são os do sistema capitalista que de todos se apropria.

Se no nascimento da civilização a pecha se deu com a vitória do diálogo político sobre o embate despótico, atualmente, entretanto, em plena “Idade do Lobo” dessa mesma civilização, ser civilizado deve ser, antes de tudo, lutar contra o novo inimigo comum da civilização. Não mais a barbárie antepassada, mas o presente despotismo universal do capitalismo. Embatermo-nos uns com os outros em vez de, juntos, lutarmos contra o sistema que de todos se apropria imperiosamente é, como se diz, “bater em gato morto”.

Para concluir, uma metáfora com o objetivo de resumir a presente reflexão.

Imaginemos que a humanidade seja um pêndulo em busca de equilíbrio – de liberdade, de igualdade, de oportunidade para todos -, oscilando entre dois extremos: de um lado, a antepassada barbárie da violência que vence o diálogo, e, do outro lado, o contemporâneo despotismo do sistema capitalista, que se projeta futuro adentro, e cuja violência se dá inclusive no diálogo. O ponto ideal no qual a civilização estaria livre dos dois males seria, portanto, o centro: a maior distância possível dos dois extremos.

Porém, quem já observou um pêndulo funcionar sabe que seu equilíbrio final se dá paulatinamente, com tantas oscilações, para lá e para cá, quanto for a energia do próprio pêndulo. É somente quando a energia do sistema chega a zero que o pêndulo entra em equilíbrio. Metaforicamente, estágio no qual a civilização seria finalmente alcançada.

Contudo, projeto inconclusivo que é, a civilização é um pêndulo que nunca se equilibra. E isso porque nunca tem uma energia igual a zero. Muito pelo contrário, a civilização é um embate de forças que nunca cessa. Ao contrário do pêndulo físico, o da civilização balouçará ad aeternum.

Apesar de o ponto central de pleno equilíbrio nunca acolher perenemente a civilização, ele tem ao menos a virtude de marcar, ainda que fugazmente, uma medida ideal, intermediária às medidas reais que jazem nos extremos. Esse ponto de equilíbrio, pelo qual a civilização passa em meio ao seu sempiterno movimento; átimo no qual é possível o diálogo sem violência e onde a alteridade não é um problema, mas a matéria das nossas relações; esse é o momento político par excellence.

Se não conseguimos capturá-lo para nele permanecermos indeterminadamente, o que seria ideal, ao menos devemos manter memória dele, para, enquanto estivermos nos aproximando dos reais extremos do despotismo, permanecermos suficientemente civilizados. No caso da radicalidade da ativista negra Curitiba: sermos polidos, políticos, e não tratá-la como se estivesse exagerando, mas como voz que, assim como a da maioria, quer apenas realizar civilização.

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Trump e mixofobia

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A civilização é um cimento que uniu os seres humanos em um projeto em comum, tirando-os da barbárie. Sua materialização primordial foram as cidades; em latim chamadas de civitas; em grego, de pólis. O não-bárbaro, portanto, é aquele que prima pela convivência civilizada, politizada com os demais. O afeto desse primado é sociologicamente denominado de mixofilia, isto é, o amor à mistura. Sentimento que, entanto, o impertinente isolacionismo do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, parece desconhecer.

A exemplo daqueles que a instituíram, a civilização é ambígua. Por mais que ofereça às pessoas benesses de que nunca desfrutariam caso permanecessem barbarizadas, a começar pela substituição do embate físico pelo diálogo, a mistura civilizada gera afetos negativos. A proximidade com outros também produz medos, pavores, que por suas vezes impõem distanciamentos. Esse afeto isolacionista, em sociologia, é chamado de mixofobia, ou seja, o pavor da mistura. Movido pelo pretexto do terrorismo, o isolacionista Trump é o mixófobo espetacular da contemporaneidade.

Se, portanto, a civilização é a instituição humana na qual vivemos tanto o amor quanto o pavor em relação à alteridade, todavia com a vitória do primeiro, Trump é a prova da derrota diante do segundo. Ao passo que, mixofilicamente, experimentamos os prazeres e as vantagens da convivência com os outros, sendo o carnaval um exemplo mixofílico por excelência; mixofobicamente, ao contrário, priorizamos os riscos oferecidos por tal convivência, sendo o famigerado muro com o qual Trump irá isolar-se dos mexicanos o exemplo mixofóbico mais emblemático da atualidade.

A mixofobia patológica de Trump, contudo, é mais bárbara do que alienígena. Nossos condomínios e semblantes fechados já são espécie de muro trumpeano através dos quais nos isolamos do perigo da alteridade. Entretanto, por mais ambígua que seja a civilização, ela é, a priori, mixofílica, mesmo que, a posteriori, mixofóbica. O desafio primordial do civilizado, portanto, é superar sistematicamente os afetos mixofóbicos em prol dos mixofílicos. Pois é somente através do amor à mistura que transformamos as carências e vulnerabilidades inerentes ao isolamento em abundância e segurança. Afinal de contas, não foi por isso que o ser humano se civilizou?

Todavia, paradoxalmente, é em função do risco de perder essa abundância e segurança que os afetos mixófobos brotam. Trump, realmente acredita que uma “America Great Again” só é possível mediante isolamento; se ela estiver sitiada intramuros intransponíveis. Porém, o pavor da alteridade não desaparece ao se isolar dela. Esse isolamento, aliás, é o medo concretizado, espacializado; de forma alguma superado. Sem dizer que agir em função do medo, do pavor, ou seja, de afetos mixofóbicos não é coisa de quem é ou será “Great”. A América de Trump, isolada, será tão “small” quanto a barbárie diante da civilização.

O grande problema da mixofobia é que ela reinstitui o não-diálogo entre quem se sente atemorizado e quem causa tal temor. Ela é antipolítica por natureza. Mas, não nos esqueçamos, Trump se elegeu vendendo o peixe de que não era político; de que os americanos estavam fartos da política. Só que ser civilizado e ser político, “Mr. President”, são sinônimos! Felizmente, massivas e mixofílicas manifestações “worldwide” contra o mixófobo-mor estão ocupando a ágora mundial com a civilidade da qual não querem ser privadas. Uma luta política par excellence.

Não foi devido à ausência de mixofobia que a civilização se deu, mas, fundamentalmente, pelo conflito dela com os afetos mixofílicos. A civilização, por assim dizer, é o estágio humano no qual a mixofilia vence essa sempiterna pecha. E a mixofobia, sistematicamente derrotada, compõe a régua com que se mede a vitória da civilização. O triunfo mixofílico se sustenta na consciência de que, por mais que o outro possa ser um problema, antes disso, ele já é a solução. Quanto mais não seja, cada um de nós é um outro para os outros.

Trump, contudo, não considera o fato de que é um outro para os outros. Em vez da abertura política à alteridade, o bárbaro fechamento egoísta. “America First!”. E quando se está desse modo isolado, o temor serve de paradigma para toda sorte de apolitismo. Mas, se em uma imagem, civilização é vitória sobre barbárie, a nossa, sobre Trump e todos os que, como ele, não querem ser outros de ninguém, essa vitória consiste em seguirmos amando nos misturarmos: troféu que se ganha ao ser derrotado o medo da mistura.

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Relativismo moral

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Uma moral que cede às circunstâncias é absolutamente condenável, ou, em troca, há situações em que pode ser aceita, mais ainda, desejada? Na prática, quando os outros transgridem os valores que defendem – e os políticos nos oferecem os exemplos mais traumáticos disso – exigimos ética deles, acusando-os pejorativamente de “pregarem moral de cueca”. Agora, quando somos nós mesmos que adaptamos os nossos valores a imperativos momentâneos para alcançarmos fins que nos interessam, aí somos extremamente autocondescendentes. A flexibilidade moral parece ser ruim e boa ao mesmo tempo, dependendo de quem se vale dela.

A princípio, parece fundamental que os outros sejam morais. Essa hipótese, contudo, é insustentável, pois, uma vez que cada um de nós é um outro para os outros, a moral, no final das contas, cabe a todos, indiscriminadamente. A hipótese alternativa, qual seja, a de que ninguém precisa agir moralmente, no entanto, é de uma outra insustentabilidade, visto que levaria as relações humanas à ruína. Ora, se todos transgredirmos livremente as regras que estabelecemos uns com os outros, tais como: não mentir, não trair, não roubar, não matar, etc., voltaríamos ao hobbesiano estado de natureza “de todos contra todos”. E bye-bye civilização!

Para entender melhor essa contradição entre o relativismo moral quando se trata de nós mesmos, e a rigorosidade moral quando se trata dos outros, é interessante atravessarmos dois grandes edifícios morais da filosofia: o de Immanuel Kant e o de Nicolau Maquiavel; respectivamente: o rígido moralismo do Imperativo Categórico Universal, e o aparente amoralismo dos “fins que justificam os meios”.

A pertinência de aproximarmos esses dois autores, tão antagônicos em se tratando de moral, justifica-se contudo em um alinhamento fundamental digno de nota: Maquiavel queria descobrir a “veritá effettuale della cosa” (a verdade efetiva das coisas); Kant, por seu turno, “despertar do sono dogmático”. A consonância dos dois está em querem pôr fim ao longevo e resistente idealismo platônico que, desde a antiguidade, sacava os homens da realidade para lançá-los em utopias. A proximidade entre os dois filósofos, entretanto, acaba por aí.

Kant, a priori, era cético, isto é, acreditava que só podemos conhecer aquilo que passa pelos nossos cinco sentidos. Para ele, só conhecemos o que se dá na experiência sensível. Porém, a sensibilidade não segue regras universais: aquilo que é bom ou agradável para uns, pode ser – como não é difícil comprovar – ruim ou desagradável para outros. Os sentidos, portanto, não ofereceriam fundamento seguro para uma regra moral de validade universal.

Entretanto, a posteriori, Kant era idealista: dizia que podemos conhecer, racionalmente, coisas que não passam, nem tem como passar pelos nossos sentidos. O infinito, por exemplo, é “o que não tem fim” para a razão teórica, mesmo que nada seja para a sensibilidade empírica. Uma moral consistente, ou seja, uma regra universal a ser seguida imperativamente por todos, teria de advir, segundo Kant, da necessidade da razão pura, e contra as “impurezas” contingentes da sensibilidade. A moral kantiana, portanto, é uma moral que se fundamenta em princípios racionais.

Já Maquiavel, que era um realista radical, sustentava que o conhecimento de maior valor para o homem e as coisas humanas estava nos exemplos históricos concretos, e não em elucubrações racionais abstratas cujo vício é criar mundos que não existem. Para o italiano, a contrário do alemão, a sensibilidade não era um desvio, nem tampouco a razão o atalho para a fundamentação de sua moral, mas a coexistência inseparável e não hierárquica delas duas no homem. A sensibilidade seria responsável pelos desejos; a razão, por encontrar os meios para realizá-los. Os fins, desejados pelos sentidos, justificariam os meios, arquitetados pela razão.

Agora, podemos falar de uma moral em Maquiavel uma vez que, para alcançar um objetivo, a razão poderia planejar qualquer coisa, inclusive matar, roubar e trair? A frase maldita, atribuída ao florentino, “Os fins justificam os meios”, que parece pregar liberdade total para se alcançar determinado fim, na verdade é duplamente maldita. Em primeiro lugar, porque não foi dita por Maquiavel, mas mal lida por muitos intérpretes. E, em segundo lugar, porque o que foi bem dito pelo autor foi que: os meios, através dos quais se alcança certo fim, serão valorados em consequência do julgamento a que o fim obtido será submetido. O fim, sendo reprovado, outrossim o serão os meios.

O que superficialmente parece ser uma liberdade no presente, na verdade, é uma profunda subjugação em relação ao futuro. Para Maquiavel, o melhor tribunal para as ações humanas (os tais meios!) nunca é contemporâneo delas, mas extemporaneamente histórico. E, em se tratando de um pensador republicano como o florentino, o fim maquiavélico que absolve os meios que lhe deram vez é somente aquele que produz os melhores resultados à res publica, isto é, ao que é de todos.

Um bom exemplo histórico disso é o ilustre caso de Brutus, juiz de Roma que mandou assassinar os seus dois filhos, Tito e Tibério, assim que soube que eles estavam conspirando contra a República. Os contemporâneos do republicano romano reprovaram-no. Todavia, uma vez que o assassínio de sua prole contribuiu para a grandeza do Império e para a pax de milhões de romanos, o futuro findou aprovando o filicídio de Brutus.

Aqui podemos ver que, diferente de Kant, para quem a moral é baseada em princípios, Maquiavel, ao contrário, estabelece uma moral de resultados. Resumindo: a moral de Kant tem por fim os princípios; a de Maquiavel, inversamente, tem por princípio os fins. O problema, entretanto, é que essa moral maquiaveliana não pode ser universalizada dentro da república, pois, se todos forem livres para fazerem o que acreditam que será considerado bom futuramente, é bem possível que o presente seja arruinado antes mesmo de produzir o pretenso “futuro melhor”.

Em Maquiavel, somente os príncipes podem dispor do relativismo moral. Não por conta de sobre humanidade, semidivindade alguma, mas por dois motivos: o primeiro, porque são eles, os príncipes, que, mais que todos, têm a responsabilidade de primar pela república, isto é, pelo que é de todos, pelo é melhor para todos; o segundo, porque são os príncipes que serão julgados historicamente pelos seus atos e resultados, e não o vulgo anônimo.

Em vez de liberar o príncipe para ser um tirano com a maldita máxima “Os fins justificam os meios” e com uma flexibilidade moral negada aos cidadãos, o Maquiavel republicano, ao contrário, adverte os governantes de que os meios de que eles se valem em função de determinados fins serão inescapavelmente julgados; tanto para se averiguar se buscavam fins verdadeiramente republicanos, e não apenas glória pessoal, quanto para medir se os fins efetivados foram de fato os melhores para a república.

Já os cidadãos em geral, tanto faz se nobres ou povo, deveriam aceitar as leis da república como os únicos princípios morais. Todavia, como em uma república autêntica – ao contrário de uma tirania, na qual o povo é subjugado pela força – as leis atendem aos próprios cidadãos, aos seus desejos mais pungentes, estar moralmente submetido às leis é estar comprometido com os próprios interesses. Com efeito, para Maquiavel a liberdade dos cidadãos só é possível na república, mediante suas leis. Isso, claro, se a república não estiver corrompida, ou seja, se as leis não estiverem beneficiando somente a uma minoria.

Aqui já podemos ver que, em Maquiavel, em vez do amoralismo atribuído ao seu pensamento, há na verdade uma dupla moral: a dos cidadãos, que para serem livres devem obedecer à leis em todos os casos; e a do príncipe, que deve seguir às leis apenas quando elas garantem os melhores resultados aos cidadãos, mas que pode abstraí-las quando for mais prudente, isto é, quando o melhor fim exigir. Em Maquiavel, o relativismo moral não só é desejado, como sobretudo necessário. Todavia, somente ao príncipe. Não porque ele seja absolutamente livre – o que faria dele um tirano, mas, ao contrário, porque ele é necessariamente constrangido a fazer o que for melhor para todos.

Depois de aproximar Kant e Maquiavel em repeito à recusa ao idealismo que sobrevivia desde a antiguidade; e de mostrar a distância entre os edifícios morais deles; chegamos ao ponto em que podemos sugerir que a rigidez do moralismo kantiano tem lugar cativo no moralismo maquiaveliano, pelo menos na moralidade atinente aos cidadãos. Todavia, desde que compreendamos que essa moral é estabelecida, não por princípios racionais abstratos, mas, em vez disso, por imperativos republicanos reais, visto que, para o italiano, a república é a melhor conjuntura a todos. Já o relativismo moral do príncipe maquiaveliano será eternamente alienígena ao rígido moralismo kantiano.

Desse modo, a contradição apontada inicialmente, qual seja: condenarmos os outros quando eles infringem os valores morais, e, ao mesmo tempo, perdoarmos a nós mesmos sempre que meios extra-morais se fazem necessários para alcançarmos fins particulares; essa contradição se dá porque, mesmo que saibamos muito bem que somos cidadãos como os outros, no entanto, agimos como se fôssemos príncipes: desfrutamos secretamente – ou nem tão secretamente assim – de um relativismo moral que, entretanto, não deveria visar bem ou glória particulares alguns, mas o melhor resultado final a todos.

A dupla moral maquiaveliana, tanto o relativismo moral principesco – desde que absolvido pelo jugo histórico por ter resultado no bem maior para os cidadãos -, quanto a rigidez moral que cabe aos próprios cidadãos perante as leis; visa a liberdade geral que só se encontra na república. Já a moral kantiana, que se fundamenta em um imperativo da razão abstraído de resultados empíricos – e, aliás, contra eles! –, produz todavia uma moral impossível de ser realizada plenamente por qualquer homem, mulher ou príncipe, a não ser… “de cueca”; da mesma forma como seres humanos finitos nunca alcançarão o infinito, a não ser… idealmente.

A moralidade maquiaveliana, por visar nada além da efetividade concreta, deve ser preferida por homens e mulheres outrossim efetivos e concretos que desejam liberdade e igualdade, encontradas somente na república. Já a idealidade abstrata da moral kantiana, por mais que, a princípio, vise o universal em detrimento do particular, no entanto, acaba possibilitando desigualdade e furto de liberdades públicas em função das privadas, como prova o imoral liberalismo capitalista que encontrou alicerce na ética de Kant.

Considerando a aversão aos dogmas idealistas dos dois filósofos, a “veritá effettuale della cosa” de Maquiavel acaba sendo mais sólida para se edificar uma moral do que o “despertar do sono dogmático” de Kant. Seja porque a verdade efetiva das coisas não se abala, estejamos dormindo ou não, seja ainda porque estar desperto dos dogmas não significa que estejamos livres de sonharmos acordados com eles. Sem dizer que a dupla moralidade de Maquiavel, que tem uma moral para o povo e outra para o príncipe, tem a virtude de garantir a liberdade e a igualdade de todos.

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A grandeza prometida pelo “republicano” antirrepublicano

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“Make America Great Again” (Fazer a América Grande Novamente), slogan que levou Donald Trump à presidência dos EUA, é impossível de ser realizado a partir da política isolacionista que o bilionário defendeu em campanha e que, uma vez no poder, está implementando a contragosto do cosmopolitismo do mundo globalizado. Essa contradição é tácita no que alguns analistas políticos já chamam de “ O Imperialismo Isolacionista de Trump”. A impossibilidade de a América ser grande isolando-se será analisada à luz de algumas ideias de Nicolau Maquiavel, o fundador do pensamento político moderno. Aplicando-se a teoria maquiaveliana sobre a promessa de grandeza do slogan trumpeano, como ele ficaria?
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Investigando o que fazia um estado ser grande, Maquiavel encontrou o que procurava na Roma antiga, o maior exemplo da história, e, segundo o pensador, digno de ser imitado. Maquiavel não era um teórico que ficava imaginando estados ideais, tal como Platão, em “A República”, ou ainda Santo Agostinho, em “A Cidade de Deus”. Ele, na verdade, era um realista pragmático que buscava em exemplos históricos concretos os fundamentos para as suas lições políticas. Até mesmo o racionalismo de Aristóteles, na “Política”, e o historicismo de Cícero, em “Histórias”, ficavam aquém da concretude factual a partir da qual Maquiavel tirava as suas conclusões.
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Ao contrário do que sustentavam todos os pensadores políticos antes dele, Maquiavel não via em fronteiras intransponíveis; na ausência de tumulto interno; nem tampouco no poderio militar a grandeza de um estado, mas, em primeiro lugar, na possibilidade de os cidadãos desse estado, fossem ricos, fossem pobres (nas palavras do florentino: grandes e povo, respectivamente) poderem estabelecer entre si um conflito político aberto em função de seus interesses de grupo. E era precisamente a diversidade e a irredutibilidade dos desejos dos grupos sociais, chamados pelo florentino de “humores”, que fazia a riqueza política e a grandeza da Roma republicana que chegou ao conhecimento de Maquiavel através das Histórias de Tito Lívio.
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E se a diversidade de humores é fundamental para a grandeza de um estado, Roma foi o maior da antiguidade porque, desde a sua fundação até o seu declínio, abriu-se para quem quisesse ser romano. Roma era uma urbe de humores conflitantes! O surgimento da maior instituição republicana de todas, os Tribunos da Plebe, que equiparou povo e grandes politicamente, só foi possível porque Roma, incorporando paulatinamente indivíduos oriundos dos mais variados lugares, foi pluralizando e empoderando seu o povo diante dos estáticos interesses dos grandes, a ponto de aquele não ser mais dominado por estes, mas todos serem cidadãos com iguais direitos e obrigações perante a lei.
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Para mostrar como o isolamento de um estado leva-o à ruína, Maquiavel usou o exemplo de Esparta, cujas leis, instituídas por Licurgo, rejeitavam estrangeiros. Uma das causas dessa recusa era a manutenção da rígida estratificação social que impedida qualquer mobilidade política. O povo, nessa conjuntura, esteve sempre subjugado aos reis e à aristocracia. E, não tendo direitos políticos, o povo não compartilhava do estado. Como, por conseguinte, a res não era publicamas privada, o povo não tinha motivos para defender o estado de inimigos externos nem tampouco para lutar pela expansão desse estado que, no final das contas, não era seu, mas apenas dos grandes.
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Em Esparta, portanto, quem defendia o estado e empreendia a sua expansão era a própria aristocracia, a verdadeira dona da res. No entanto, como os grandes sempre são minoria em relação ao povo, o exército, que tinha por tarefa tais objetivos, era sempre limitado, pois composto ou apenas por indivíduos da aristocracia, ou por mercenários contratados por ela. Assim como nunca se confiou em escravos para defender uma res que não era deles, assim também o povo espartano não era alistado pelos reis e aristocratas. Com essa pragmática antirrepublicana, ensina Maquiavel, Esparta não só não se expandiu ao longo do tempo, como principalmente ruiu pela própria rigidez de sua estrutura política.
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O povo da Roma republicana, ao contrário, uma vez que também possuía a res, comprometia-se com ela, fosse em caso de ameaça externa, fosse em função de expansão. Quanto mais não seja, considerando a natureza humana egoísta pressuposta por Maquiavel, só faz sentido defender e fazer crescer aquilo que é seu. E os estrangeiros que, por vontade própria e aceitação de Roma, passavam a desfrutar da cidadania e da pax romana, defendiam esse estado e a sua expansão como se fossem romanos natos.
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Sem dizer que a própria origem mítica de Roma, qual seja, a fundação por Rômulo, deu-se mediante a abertura irrestrita aos estrangeiros. Depois de matar seu irmão, Remo, em um dos fratricídios mais ilustres da história, Rômulo aceitou indiscriminadamente indivíduos de todos os lugares e índoles dentro de suas muralhas. E essa diversidade, em vez de arruinar Roma, fez a sua grandeza.
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Voltando aos Estados Unidos, país que, como se sabe, foi formado por estrangeiros, e cuja atual grandeza ainda se dá pela mistura de praticamente todas as gentes do mundo, caso se ensimesme dentro de fronteiras intransponíveis cometerá o mesmo erro que Esparta. Fechando-se à diversidade, à novidade, à alteridade que são os estrangeiros, os EUA terão por destino imediato a estagnação e, a longo prazo, a própria ruína. Sem dizer que, erro maior, os EUA de Trump se encontram em um mundo fundamentado na globalização, como os estados da antiguidade jamais experimentaram. Fechar-se nunca foi tão impróprio!
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Se Donald Trump, que quer fazer a “América Great Again”, seguir ignorando que um estado só é verdadeiramente grande quando, a exemplo da Roma republicana, abre-se irrestritamente aos estrangeiros, incorporando o que de melhor eles têm, e com isso tornando-se mais diverso, mais plural, mais cosmopolita, em suma, “Great”, talvez o déspota contemporâneo descubra isso do modo mais difícil, ou seja, vendo o seu país encolher por conta de isolamentos, banimentos e muramentos impertinentes.
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Será que Trump, graduado na quarta melhor universidade dos Estados Unidos, não aprendeu nada dos ensinamentos políticos de Maquiavel? Minha aposta é que o “republicano” está sendo deliberadamente antirrepublicano, ou o que é o mesmo, antimaquiaveliano. Ora, se a res norte-americana não for publica, mas privada, ela será apenas de bilionários como ele. E se essa hipótese é verdadeira, a única coisa que faltou ser acrescida no famigerado slogan trumpeano, “Fazer a América Grande Novamente”, foi o complemento mais reacionário de todos, qual seja: “Para os poucos aos quais a América sempre foi grande”.
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Esse adendo obsceno, é claro, não poderia ter sido publicizado durante a campanha. Todavia, uma vez eleito, nada mais impede Trump de, desavergonhadamente, colocá-lo em prática na sua forma completa. Porém, levando em consideração os ensinamentos de Maquiavel e o isolacionismo antirrepublicano de Trump, o slogan do topetudo, no final das contas, tem de ser reescrito na seguinte forma: “Fazer o povo da América menor para ela ser novamente grande somente aos grandes. Só assim o slogan fará jus ao “republicano” antirrepublicano que atualmente preside a terra do Tio Sam.
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A morte de Dona Marisa, e a do povo brasileiro.

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Cliquei no vídeo facebookiano da cerimônia do velório de Marisa Letícia Lula da Silva e, ao mesmo tempo em que amigos, colegas e o próprio Lula faziam os seus discursos presenciais, uma torrente de comentários virtuais pipocavam, em um ritmo impossível de acompanhar. Uns, humanamente, de amor e solidariedade; outros, desumanamente, de ódio e discórdia. Em apenas três horas de publicação, o vídeo já constava de quase 100 mil comentários em pleno e embate. Creio que nunca alguém irá lê-los todos. Impossível, não só pela quantidade, mas principalmente pela irracionalidade de, pelo menos, metade deles.
Assistindo a incessante sequência de comentários me perguntei: por que não se calam? Qual a dificuldade em apenas assistirem ao vídeo do velório da ex-primeira dama (ou não assisti-lo), terem os seus próprios pensamentos, e guardá-los para si mesmos? Ora, porque não se tratava, para esses milhares de comentadores compulsivos, do velório de Marisa Letícia, nem tampouco da dor da perda da família Lula, mas, antes, da única coisa que acontece no Brasil atualmente: a divisão radical.
Qualquer coisa, até mesmo a morte de alguém, seja por AVC ou pela queda de um avião, é estopim para os brasileiros se digladiarem histérica e publicamente, pervertendo os fatos que deram origem ao combate e abandonando completamente civilidade e humanidade. Só a divisão é. Só ela tem de ser. Nem que seja às expensas da tristeza que é uma família perder a sua mãe.
Esse é o meu comentário, que, entretanto, recusei-me a enfileirá-lo entre as centenas de milhares de outros, tresloucados e deslocados, que ainda pipocam ao lado do vídeo fúnebre. Se lá me calei, por que aqui falo? Talvez porque tenha me lembrado, tanto daquela máxima pós-Holocausto: “Impossível pensar depois de Auschwitz?”; como principalmente da sua refutação por Zizek: “Como não pensar depois de Auschwitz?”. Como não pensar no que os brasileiros estão fazendo consigo mesmos no agonístico presente? Em nome de quê estamos agindo assim?
Se percebermos que, durante essa divisão radical do povo, as elites apenas estancam as suas próprias sangrias e sangram esse mesmo povo com mais facilidade, em um furto deslavado de diretos e em um vilipendio da riqueza nacional em benefício de parcos proprietários de petrolíferas e empresas de telecomunicações, perceberemos também que essa mesma divisão odienta que o próprio povo empreende internamente é a sua própria ruína. Divisão essa que, se não foi arquitetada desde o princípio pelas elites (o que é mais provável), ao menos a beneficia muito.
Quando um povo não consegue ao menos silenciar diante da morte de um dos seus, independentemente de diferenças políticas e ideológicas, é porque não há mais povo de fato, mas apenas um bando de bestas servis sangrando umas às outras, assim como as elites sempre fizeram. Só que agora é o próprio povo que faz o trabalho sujo e odiento das elites; por elas; em nome da ventura e da riqueza delas.
O antídoto contra esse mal, contudo, é conhecido e acessível: a solidariedade do povo diante das dificuldades, seja na perda de entes queridos de uns, sejam em golpes de estado dado pelas velhas oligarquias contra todos. Mas a falta de solidariedade que levou alguns brasileiros a fazerem buzinaços comemorativos e postagens facebookianas vingativas, desde o anúncio da morte cerebral da ex-primeira dama até o seu velório, atesta somente a falta de solidariedade de uma turba que não é povo.
Além dos pêsames que todos deveríamos declarar aberta e solidariamente pela morte da brasileira, trabalhadora, esposa e mãe que foi Dona Marisa Letícia, temos ainda um outro, mais radical e insuportável, para dar todavia a nós mesmos. Este, pela morte do próprio povo brasileiro enquanto povo. Novamente: em benefício de quem?
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A parábola do bom evangélico hipster

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Certa vez um figurinista foi a uma feira vender as suas vestimentas inspiradas na estética da dança contemporânea. Ao lado de sua banca havia outra, de um garoto devidamente paramentado na estética hipster, que vendia camisetas pretas com crucifixos estampados em vários formatos e situações. O nome da grife dele era CROSS (cruz, em inglês). Como as pessoas veem a si mesmas nas coisas, o figurinista de pronto achou que as cruzes eram apenas mais do intempestivo revival gótico-anos-1980 que, impertinentemente, crescia no solar e colorido Rio de Janeiro em plena década de 2010. Porém, contemplar as próprias ideias mostra sempre muito pouco. Sendo assim, o figurinista ainda teria algo maior para enxergar.

Uma frequentadora da feira, ao ver as cruzes nas camisetas, comentou com o figurinista que o hipster da CROSS era “um evangélico doutrinando a moda”. O comentário pejorativo encontrava a sua pertinência no fundamentalismo religioso que ocupava a política do Brasil, e, sobretudo, preocupava aqueles que ainda se lembravam de que o Estado brasileiro era, constitucionalmente, laico – ou pelo menos deveria ser… O plano ideológico partir do qual a frequentadora proferiu a sua crítica era compartilhado pelo figurinista. No entanto, ele resistiu em concordar com ela que se tratava de um evangélico evangelizando o mundo da moda. O figurinista ainda achava que era apenas um hispster neo-gótico da Cidade Maravilhosa.

Horas depois, no entanto, o figurinista perguntou amigavelmente ao garoto da CROSS se ele era de fato evangélico, e se suas camisetas pretendiam estetizar a doutrina que ele seguia. Depois de um silêncio que parecia antever algum juízo de valor, e depreciativo, ele, reticente, respondeu afirmativamente às duas perguntas, e ficou aguardando a próxima interlocução do figurinista, que, contudo, não fez crítica religiosa alguma, apenas disse de sua impressão inicial: que as cruzes das camisetas lhe pareceram só uma manifestação estética neo-gótica, como via nalgumas praças do Rio; e, na sequência, confessou que lhe intrigava o fato de as tais cruzes agradarem tanta gente não religiosa.

O agora assumido evangélico hispter não só se sentiu respeitado pelo figurinista laico, como também elogiado pelo comentário sobre o alcance, digamos assim, além-religião das suas mercadorias. Mesmo respeito e elogio, contudo, o evangélico hispter não recebeu dos demais expositores da feira, que, mesmo sem terem certeza se o hipster da CROSS era ou não evangélico, trataram-no como se ele fosse um invasor fundamentalista no universo laico&fashion deles.

No final da feira, houve uma reunião com todos os expositores, na qual o figurinista, por acaso, manteve em mãos uma caixa de alfinetes que, no meio da conversa, abriu-se, esparramando todos os alfinetes pelo chão de pedras portuguesas. Isso chamou a atenção de todo o grupo. Porém, somente o evangélico hispter, imediata e instintivamente, foi ajudar o figurinista a recolher as muitas e miúdas peças. Quando mais ou menos metade delas já estavam recuperadas, o figurinista já se deu por satisfeito. Agradeceu ao evangélico hipster, dizendo-lhe que não precisava se preocupar com o resto. O garoto, no entanto, só parou quando o último alfinete foi achado e devolvido à caixa.

Enquanto isso, os demais expositores haviam interrompido a conversa para ficarem apenas observando o figurinista e o evangélico hispter juntarem os alfinetes. Durante esse tempo, o figurinista – que sequer imaginou que alguém fosse dar bola para os seus pequenos apetrechos caídos -, de um lado, surpreendia-se com o altruísmo espontâneo do evangélico hispter, e, por outro, conformava-se com a indiferença egoísta que imperava entre os laicos. O próprio figurinista  teve de reconhecer que, caso os alfinetes de outrem tivessem caído, ele provavelmente não teria se disposto a ajoelhar-se para juntá-los altruisticamente como fez o religioso.

Ainda juntando os alfinetes com o evangélico hispter, o figurinista silenciosamente relembrou-se de uma velha máxima sua: que a Igreja Evangélica era a “maçonaria dos pobres”. Mutatis mutandis, a comunidade evangélica atenta muito às necessidades dos seus. Se um fiel está sem casa para morar, ou sem trabalho para sustentar a família, os demais fazem o esforço necessário para solucionar tais dificuldades. Os laicos, no entanto, acusam esse “altruísmo” de sempre custar caro demais; sendo o dízimo cobrado pelas igrejas esse alto preço. Porém, naquele momento, um fiel estava ajudando um não fiel, o figurinista, mesmo que este não fosse pagar “taxa” alguma.

O figurinista, que também é amante da filosofia, não conseguiu evitar recordar do realista e amoral Maquiavel, que, no entanto, dizia que a religião, muito antes das leis e instituições como tais, é o primeiro e mais forte cimento da comunidade. Aquele religioso, que de pronto se ajoelhou para que o figurinista não se ajoelhasse sozinho, tinha em si o sentimento do “comum” como nenhum dos laicos dali, nem mesmo o figurinista. Naquele instante, o figurinista laico teve de admitir que a religiosidade guarda virtudes que a laicidade furta. Mais ainda, que a laicidade se orgulha do vício de desmerecer a virtuosidade que a religiosidade possui.

Depois do último alfinete recolhido e da reunião final encerrada, o figurinista laico, para encerrar a feira com chave-de-ouro, melhor dizendo, com chave-de-álcool, comprou duas canecas de cerveja artesanal, uma para ele, outra para o evangélico hispter. Seria o álcool o único “dízimo” que os laicos ainda se dispõem a pagar uns aos outros? O evangélico hispter agradeceu a oferta antes de recusá-la, pois, disse ele, a sua religião não permitia – coisa que o figurinista laico já sabia, só havia se esquecido. O figurinista teve de reconhecer que os laicos como ele, por pensarem tanto ou somente em si mesmos, pressupõem que todos gostarão do que eles gostam, farão o que eles fazem, pois, afinal, não há nada proibido… Se “Deus está morto, então tudo é permitido”, já dizia Ivan Karamazov, personagem de Dostoiévski.

O figurinista laico, ao tentar retribuir a ajuda que somente o religioso ofereceu, no final das contas acabou com duas cervejas deliciosas para beber enquanto esperava o carreto que havia pago para buscar a sua banca. Enquanto isso, alcoolizando-se, observava o evangélico hispter – cuja comunidade é sempre mais solidária do que as “comunidades” laicas – ser buscado por um amigo também evangélico, sem precisar pagar nada por isso. Moral da história: a laicidade nos dispensa de ajudarmos uns aos outros, todavia, cobrando o preço de não sermos ajudados por ninguém quando precisamos; já a religiosidade, em troca, compromete uns com os outros a ponto de ninguém estar sozinho quando realmente precisa de ajuda.

O figurinista amante de Sophia, depois dessa experiência, obviamente, não cogitou converter-se à Igreja Evangélica. Entretanto, experimentou na prática a virtude da religiosidade que contemplava apenas nas teorias. Maquiavel, o seu filósofo favorito, foi mais realista que nunca: as pessoas só conseguem formar comunidades de verdade se alguma religiosidade as atravessarem, unirem, religarem. Sem isso, somos somente um bando de sujeitos individualistas e egoístas observando indiferentemente os outros enfrentarem e resolverem sozinhos os seus problemas, como se as dificuldades não fossem algo comum a todos.

Transformando essa percepção existencial na “parábola do evangélico hispter”, o figurinista laico viu que a ausência de religiosidade não só cinde as pessoas umas das outras, deixando-as sozinhas com os seus problemas, como também divide internamente os próprios sujeitos laicos, que, assim como não ajudam altruisticamente os outros, assim também são incapazes de “salvarem” a si mesmos quando partes suas precisam da solidariedade de outras. O egoísmo não é do sujeito para fora. Nasce no próprio sujeito; em relação a si mesmo. Domina-o em primeiro lugar. E é por isso que tal sujeito não consegue ser solidário com os demais, pois falta-lhe religião, religação; tanto para religar as suas próprias partes, quanto para religá-lo aos demais sujeitos.

A prática da Teoria da Conspiração

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Arte: Rafael Silva

A morte do ministro do Supremo Tribunal Federal e relator da Operação Lava Jato, Teori Zavaski, em 19 de janeiro de 2017, causada pela queda de um avião no Rio de Janeiro, antes mesmo de ser oficialmente confirmada, para milhares de pessoas nas redes sociais, no entanto, “já seria uma queima de arquivo” conspirada pelo governo golpista. Também pudera, os suspeitos a priori são justamente aqueles que deram um golpe de estado para, entre outras coisas, “estancar a sangria”, isto é, não terem os seus crimes investigados e punidos pela operação Lava Jato. A máxima “O teu passado te condena” alimentou instantaneamente a ideia de “Teoria da Conspiração”. Mas será que ideias como essa, hoje em dia, não são ingênuas demais?

Se sim, eu padeci de tal ingenuidade. Contudo, confesso que, mesmo na impossibilidade de me desvencilhar da certeza subjetiva de que Teori foi morto pelo governo golpista, eu invejei a prudência daqueles que acharam que, objetivamente, tratava-se apenas de um acidente, pelo menos até ser provado o contrário. Contra a racionalidade que sustentava que “às vezes um acidente é só um acidente”, eu ainda insisto no fato de que “às vezes uma queima de arquivo é só uma queima de arquivo”, principalmente quando parece um acidente. Afinal, mafiosos oligarcas poderosos se valem desse tipo de expediente, não é mesmo? Se, como bem apontou Foucault, o poder tende a preservar a si próprio, quando esse poder é espúrio, outrossim degeneradas serão as suas estratégias de automanutenção.

Mesmo assim, uma primeira denúncia deve ser feita contra os que, como eu, aderiram à teoria de que o governo golpista conspirou a morte de Zavaski: a materialização da tal “pós-verdade” – neologismo pós-moderno referente à “verdades” fundamentadas não em fatos objetivos, mas em emoções ou crenças pessoais. O desejo ou a crença subjetivos de que Temer tenha matado Teori, se não falou por todos, ao menos gritou mais alto e primeiro. Mesmo que a morte do ministro relator tenha sido um acidente de fato, o “fato alternativo” (apelido que a equipe de Donald Trump deu à pós-verdade essa semana), isto é, o seu assassinato previamente conspirado, certamente teve apelo incontrolável.

Pós-verdades à parte, se não temos como saber a verdade a respeito da morte de Zavaski (se acidente ou conspiração), ao menos devemos saber quem a sabe. Até o presente momento, somente os golpistas suspeitos detêm essa verdade: se conspiraram a morte do ministro, sabem que não foi acidente; se, todavia, não conspiraram, sabem que foi apenas um acidente. A brecha pós-verdadeira se abre justamente porque, se Teori foi de fato assassinado pelos golpistas, o poder e as estratégias destes podem facilmente ocultar esse fato com o “fato alternativo” de que foi acidente. E se pelo menos parte dos brasileiros não sustentar a teoria conspiratória de que Teori foi “queimado” pelos golpistas, esse fogo terá sido acidental desde o princípio, mesmo que propositalmente ateado.

A virtude das Teorias da Conspiração está precisamente em tentar dar voz àquilo que, de antemão, deve estar absolutamente silenciado. No início do Holocausto, por exemplo, quando Hitler dizia publicamente que seu projeto não era outro senão fazer a Alemanha “Great Again”, foram as teorias da conspiração, à época obscuras e desacreditadas, que em primeiro lugar insistiram que, na verdade, tratava-se de um genocídio judeu. Como, por conseguinte, a História mostra que que seis milhões de judeus foram exterminados, às vezes… apostar nas Teorias da Conspiração é investir na verdade.

No caso Zavaski, a Teoria da Conspiração não é absurda: é apenas a impertinência de defender uma verdade que, se de fato verdadeira, todavia nasceu planejada para ser eternamente ocultada. Ora, se a pragmática golpista, na manutenção do seu podre poder, já “matou”, ao vivo e em cadeia nacional!, a própria democracia no Brasil, “queimar um arquivo” humano no meio do percurso é apenas burocracia menor e subsequente. Todavia, mesmo que o povo, e sobretudo os inimigos dos golpistas nunca saibam se a morte de Teori foi acidental ou conspirada, a publicizada foto dos golpistas em torno do caixão do ministro que poderia comprometê-los já é uma mensagem de poder que, como li em outro lugar, nem Al Capone enviaria com tanto êxito.

Mas se a Teoria da Conspiração foi tão pertinente no caso do Holocausto, assim como parece ser no caso Zavaski, por que então foi dito no início que era ingênuo embarcar nela? Porque, conforme uma afirmação de Slavoj Žižek em “Às portas da Revolução”, hoje em dia não há a menor necessidade de teorizarmos sobre uma organização oculta dentro de uma organização explícita: “a conspiração” – diz o filósofo – “já está na organização ‘visível’ como tal, na forma capitalista, na forma como o espaço político e os aparelhos de Estado agem”.

Ora, se, longe de serem conspirações secretas, as ações aparentes do poder na sociedade capitalista globalizada já dizimam, e publicamente, populações inteiras, seja em função de petróleo (mundo árabe), seja em busca de novas terras à agricultura (África), achar que esse mesmo poder precisa obscurecer-se, conspirar secretamente para fazer o mesmo com um singelo indivíduo que se lhes oponha é, sem dúvida, tolo. Talvez o fato de a “conspiração oculta” já ser a ação explícita é que seja insuportável.

Pode ser que o atual reinvestimento tupiniquim na Teoria da Conspiração vise justamente a manutenção da velha ilusão de que as obscenas ações do poder não possam se dar de modo tão explícito, como cada vez mais se apresentam. Aqui chegamos ao ponto de supor que defender uma conspiração secreta por parte do poder nada mais é que pedir a esse poder que ao menos mantenha o velho modus operandi de agir como se ocultasse as suas vis estratégias. Algo como: “por favor, já que estão agindo somente em função de si mesmos, ao menos finjam que isso é vergonhoso demais para ser explicitado”; em outras palavras: “mantenham nas suas vilanias reais a possibilidade de elas serem abordadas somente como teorias, e não como tácitas práticas efetivas”.

Como bem apontou Žižek, “as teorias da conspiração são o oposto da convicção iluminista de que a Razão governa o mundo”. E se ainda teorizamos sobre conspirações, é porque, de fato, o mundo não é governado pela Razão, mas, em troca, pela lógica abjeta do capital, que a tudo e a todos consome indiscriminadamente para mais-valorizar-se incessantemente. E essa lógica governante é poderosa a ponto de poder dispensar os expedientes das conspirações secretas para se apresentar em forma de ações cruas  e explícitas. São justamente os que padecem dela que, paradoxalmente, inventam mentiras “factuais alternativas”, “pós-verdades” para mentirem a si mesmos que o poder não é tão evidentemente vil; que ele ao menos ainda exercer a sua vilania tentando escondê-la.

Em suma, as Teorias da Conspiração, por um lado, existem para dar voz ao que é intencionalmente reprimido – e nesse sentido vale lembrar a inversão žižekiana da máxima wittgensteiniana: “do que não se pode falar, deve-se guardar silêncio”, para “o que não se pode falar, não se pode calar”. Todavia, por outro lado, elas disfarçam as ações reais e evidentes do poder em sua sempiterna manutenção de objetos de teoria, escondendo o que de fato são: práticas sistemáticas desavergonhadamente objetivadas.

Talvez as Teorias da Conspiração sejam essencialmente controversas mesmo. Aqui, teorizando sobre verdades aparentemente reprimidas, para, logo ali, essas verdades, uma vez desbravadas, jazerem enquanto teoria mesmo, e não enquanto práticas reais que afrontam insuportavelmente. Teorizar sobre conspirações no mundo atual não é outra coisa que desejar que as ações mais aviltantes ao menos sejam praticadas como se fossem aviltantes.

La La Land e a pós-felicidade

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Filme musical dirigido por Damien Chazelle, cujo título faz referência a cidade de Los Angeles (LA), “land” onde milhares de artistas vivem entre sonhos e decepções sob os desígnios do Deus Hollywood, La La Land – Cantando as Estações (2016), abusa dos clichês dos filmes do gênero para, no entanto, apontar algo mais raro: a manutenção da felicidade mediante sua ausência. Postura subjetiva que, com perdão daqueles que se arrepiam com os neologismos da “era dos pós”, chamarei de pós-felicidade.

La La Land é uma ode ao lugar-comum dos musicais hollywoodianos, colorido a ponto de seus personagens em muitas cenas parecerem Teletubies. A primeira cena do filme, um espetáculo musical performado por centenas de motoristas presos em um congestionamento em um viaduto de LA, dançando sobres seus carros, e que ao último acorde de uma alegre música voltam para dentro deles como se nada tivesse acontecido, reencarnando o tédio que um congestionamento real suscita, é uma pulga atrás da orelha que, no entanto, mais intriga que incomoda.

O casal de protagonistas do filme, Sebastian (Ryan Gosling), um jazzista desempregado, e Mia (Emma Stone), uma aspirante a atriz que trabalha no café Starbucks de um estúdio cinematográfico, deparam-se um com o outro na cena do congestionamento. Ele querendo passar, ela trancando a passagem. Encontro raivoso, bem ao estilo “Senhor Volante”, desenho de Walt Disney no qual o Pateta se enfurece com todos os que dividem as estradas com ele.

Horas mais tarde, perdida na noite de LA, Mia é atraída para dentro de um bar por uma melodia – o tema do filme: “Late for the date” (atrasado para o encontro), composição original de Justin Hurwitz. Dupla surpresa de Mia: a bela música e o seu belo executor, Sebastian. Como, porém, a música em questão estava fora do setlist que o dono do bar havia determinado, Sebastian é demitido assim que tira os dedos do piano. Ele sai do bar irritado e deixa Mia, que estava indo até ele parabenizá-lo, a ver navios.

Dias depois, os dois se reencontram acidentalmente em uma festa e, a partir de então embarcam em uma história amorosa romântica. Como ambos são artistas frustrados, parte do relacionamento é um dar força ao sonho precioso do outro: Mia, estimulando Sebastian a abrir o bar de Jazz “de raiz” que ele sempre desejou; ele, fazendo-a crer que ela será atriz de Hollywood conforme seus sonhos de infância. Os seguidos fracassos que os dois experimentam nas suas tentativas individuais apenas servem para uni-los ainda mais.

A família de Mia, entretanto, preocupa-se com o desemprego e, principalmente, com o idealismo de artista de Sebastian. Por conta disso, ele abandona a ideia do seu bar e fecha contrato com uma promissora banda de pop-jazz – uma perversão do jazz na perspectiva dele. Crítica que, no entanto, ele engole para estar à altura de Mia e das expectativas de sua família. A banda faz sucesso, porém, ao preço de Sebastian e Mia se verem cada vez menos, pois o tempo dele é consumido em gravações em estúdio e turnês com a banda.

Mia, que nesse meio tempo pediu demissão do Starbucks para escrever e ensaiar um monólogo teatral que seria interpretado por ela mesma, passa os dias sozinha. Numa folga de Sebastian, na qual ele prepara um jantar romântico surpresa para Mia, a infelicidade dela acaba causando a primeira briga do casal. O presente sucesso e a constante ausência dele ofende a incerteza em relação ao futuro e a solidão dela.

Quando o espetáculo off-off-broadway dela estreia, em um teatro decadente e para meia-dúzia de pessoas, e o que é pior, sem Sebastian na plateia, pois ele está numa sessão de fotos para o próximo álbum da banda, ela se frustra completamente e decide abandonar tudo: LA, a sua arte e Sebastian. De nada adianta ele, o seu amor e culpa chegarem ao teatro no último momento, na hora em que ela sai do teatro pela porta lateral! Mia regride à casa dos pais no interior dos Estados Unidos.

Algum tempo depois, Sebastian descobre onde ela está morando, vai até ela, e a convence a voltar a LA para fazer uma audição para um filme que será rodado em Paris, dizendo que esta será a grande oportunidade dela. Depois de muito resistir, ela aceita a investida dele. Mia é aprovada para o filme, e, recebendo os parabéns de Sebastian em um bucólico bosque de Los Angeles, questiona-se se eles devem retomar o relacionamento.

Tudo levava a crer que Sebastian havia ido atrás de Mia, forçando-a à oportunidade em LA, para que voltassem a ficar juntos. Porém, surpreendentemente, ele diz que se retomarem o namoro, ela não poderá dedicar-se como deve à sua nascente e tão desejada carreira. Sugere então que eles não pensem no relacionamento deles naquele momento. A única coisa que se permitiram dizer um ao outro é que sempre se amariam. Uma vista panorâmica da cidade de Los Angeles termina a cena.

Corte. Alguns anos depois, Mia está de volta na cidade, famosa e realizadíssima profissionalmente, além de bem-casada e mãe. Saindo de um restaurante com o marido, uma sonoridade jazzística que sobra na calçada os atraí para um bar. Logo na entrada ela percebe que o bar é de Sebastian, idealizado por ele tantas e tantas vezes enquanto estavam juntos. Ele então sobe ao palco, apresenta os músicos, e, quando enxerga Mia, fica sem palavras. Vai até o piano e começa a tocar a música deles, o tema do filme, “atrasado para o encontro”.

As cenas que acompanham a música, não se sabe se imaginadas por Mia ou por Sebastian – o que sugere que seja pelos dois -, são as da vida que tinham juntos. Porém, todas terminando sempre do modo mais ideal possível: em vez de ele ignorar Mia no dia em que foi demitido por tocar uma música fora do script, Sebastian a beija hollywoodianamente; na fatídica estreia do monólogo dela, ele está presente e vibrante; e em vez de Mia, naquela noite, ter ido com o marido jantar e assistir Sebastian tocar, ela faz tudo isso com Sebastian. Ela e Sebastian assistem Sebastian tocar para eles dois.

A esperança que a sequência ideal suscita, obviamente, é que ao final da música eles sejam arrebatados pelo amor que, no passado, disseram sentiriam para sempre um pelo outro, e que recomecem a sua história. Só que, antes mesmo de Sebastian terminar a melodia, Mia pede para o marido para irem embora. Nas últimas notas, Sebastian vê a cadeira de Mia vazia, procura-a pelo bar, e a encontra saindo pela porta. Entretanto, antes de deixar o bar, ela olha para trás, e, olhos nos olhos, eles reconhecem um no outro o singular e eterno amor que sentem. Mas, mesmo assim, ela vai embora.

La La Land é o tempo todo adocicadamente romântico para, no final, ser amargamente realista. O universo cliché que conduz o musical não deixa dúvidas de que duas pessoas que se amam e que confessamente se amarão para sempre terminarão juntas e felizes. Não obstante, termina com elas separadas. Não por motivos externos a eles, de modo que o espectador tenha pena, mas, antes, por escolha deles próprios.

Mia e Sebastian, no último encontro, sabem que não são totalmente felizes separados, mas, digamos assim, felizes o suficiente longe um do outro. Ela é satisfeita com o seu casamento, filha e sucesso profissional; Sebastian, com o seu bar de jazz “de raiz” e carreira musical. Embora a utopia do epílogo no qual toda a história deles é perfeita pareça obrigá-los a retomar o relacionamento, são eles mesmos que não querem abrir mão de suas atuais felicidades parciais, mesmo que em nome da velha, todavia grande e insubstituível história de amor de suas vidas.

Mia e Sebastian preferem permanecer nos seus sonhos juvenis finalmente realizados a comprometê-los em função da felicidade arrebatadora que, sabem, só eles podem proporcionar um ao outro. Foram felizes juntos, como ninguém além deles mesmos os faria, mas sabem finalmente que essa felicidade só será realmente eterna e feliz se ela ficar de vez no passado. De dentro, essa felicidade seria duvidosa, e até pareceria o seu oposto. “Atrasado para o encontro”, a música tema deles, põe isso em melodia: o melhor encontro é aquele que perdemos, pois mente-nos eternamente que seria feliz.

La La Land, portanto, fala de uma felicidade que só se concretiza pós-ela-mesma. A escolha de Mia e Sebastian de permanecerem separados nas suas felicidades parciais individuais só reforça o fato de que no passado eles foram verdadeiramente felizes. A pós-felicidade consciente deles é garantia, não só de que foram felizes, como também de que essa felicidade, pós-ela-mesma, será tão eterna quanto o amor que sentem um pelo outro. Assim os protagonistas do musical terão sido felizes: mantendo essa felicidade justamente na manutenção de sua ausência.

“Vigiar e Punir” a crise carcerária brasileira

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Imagem: Informe Baiano

A atual “crise carcerária brasileira”, se fosse levada a sério, seja pela opinião pública, seja pela mídia, seja sobretudo pelo poder do Estado, deveria ser chamada de: crise da sociedade brasileira. Porém, não chegar a essa conclusão é estratégico à estreita fatia dessa sociedade que detém o de poder. Por isso o Estado, o bureau dessa minoria, não sem a ajuda da mídia, mantém a opinião pública alienada do fato de que tal crise começa e termina fora dos presídios, muito embora seja mais visível neles, pois ela habita o mesmo edifício social no qual todos vivemos. O problema dessa questionável estratégia é que ela aumenta a crise que visa esconder.

Tiro no pé que fica ainda mais evidente à luz de “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault, obra na qual o filósofo coloca que a punição tem um único e fundamental objetivo: a manutenção do poder. E se os presos das penitenciárias brasileiras estão sendo sobrepunidos, de um lado, pela finalidade elitista do Estado e pela consequente ignorância da opinião pública, e, de outro, por si mesmos, como o número de assassinatos e decapitações intra grades prova, a chave foucaultiana nos sugere que isso está se dando porque o poder tupiniquim está investindo além da conta na sua própria manutenção.

Historicamente, sucedem-se formas de manutenção do poder, cada uma acompanhada de sua forma específica de punição. O poder régio da antiguidade, por exemplo, era mantido mediante tortura e assassínio públicos e espetaculares. O poder, durante a modernidade cientificizada, punia através de instituições prisionais, despidas do velho e bárbaro espetáculo antigo. Já o podre poder brasileiro contemporâneo faz um misto nada virtuoso das duas formas destacadas por Foucault, mantendo as prisões nos moldes modernos, todavia, fazendo delas cadafalsos tão ou mais espetaculares e bárbaros que os da antiguidade.

Quando os reis antigos puniam aqueles que desafiavam a soberania, as torturas, decapitações, incinerações, esfolamentos, enforcamentos etc. praticados em praça pública e contra um único criminoso, na verdade, visavam o restante dos súditos, e não exatamente o infeliz que morria. Nesse violentíssimo evento público o rei reafirma o seu poder aos que permaneciam vivos mediante o seguinte recado subliminar: eis o que aguarda a quem me desafiar.

Entretanto, ao ver um igual ser supliciado bárbara e espetacularmente, a multidão deparava-se com o excesso do poder dos reis, e, ademais, salienta Foucault, com “a sequência de uma cerimônia que canalizava mal as relações de poder que pretendia ritualizar”. Paulatinamente, isso foi minando a imagem dos soberanos. Já no século XVIII, segue o filósofo, “a tortura será denunciada como resto das barbáries de uma outra época: marca de uma selvageria denunciada como gótica.” Doravante, a manutenção do poder teria de encontrar outra forma de punir.

As punições tiveram de deixar de ser tão violentas, pois, aponta Foucault, “ficou a suspeita de que tal rito que dava um ‘fecho’ ao crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo, ultrapassando-o em selvageria”. A extrema violência régia aplicada a um súdito criminoso em praça pública não mais sobrelevava o rei em relação ao súditos, mas, em troca, equiparava-o ao criminoso, a ponto de o supliciado suscitar piedade, e até mesmo admiração, uma vez que, às portas da morte, o torturado era o único que podia maldizer a plenos pulmões o rei e a sua barbárie.

As longas torturas públicas foram substituídas por procedimentos mais expeditos. O uso da guilhotina é um exemplo desse movimento. Todavia, muito embora abreviasse a ostentação da violência régia, ainda assim fazia com que o rei, em nome do qual cabeças rolavam, parecesse um assassino cruel. Sem dizer que a racionalidade almejada pela sociedade moderna de então era conflitante com a barbárie intrínseca de lâminas e praças ensanguentadas. Cientificamente, arquitetou-se outras formas de tortura. E a reclusão dos contraventores em instituições penitenciárias foi o produto mais bem-acabado desse novo paradigma punitivo do poder em função de sua própria manutenção: um modo industrial, científico e limpo de punir.

Um crime, um indivíduo, uma cela. A punição em sua forma prisional panóptica dissimulava muito bem a violência do poder. “Panóptico” é um termo concebido em 1785 pelo filósofo Jeremy Bentham para designar a penitenciária ideal, na qual um único vigilante observava todos os prisioneiros, sem que estes pudessem saber se estavam ou não sendo vigiados. Panopticamente falando, era o receio de não saber se estava sendo observado que levaria o preso a adotar o comportamento desejado pelo vigilante, pela sociedade, em suma, pelo poder que o punia. Só que em um mundo que insiste em ser real, penitenciárias ideais ficam sempre aquém da expectativa.

Entre a trágica distância que separa a realidade prisional brasileira da idealidade panóptica jaz uma elite que busca manter e expandir o seu poder desumanamente, punindo aqueles que desrespeitam as suas regras com uma obscenidade equivalente àquela régia, aplicada no cadafalso antigo. Isso já ficou claro no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, no início do ano de 2014, com dezenas de presos barbaramente massacrados, mutilados e decapitados; e é ainda mais iluminado nesse início de 2017, com a repetição espetacular da mesma barbárie em chacinas em vários presídios brasileiros.

Só que, no caso brasileiro, há uma sobrepunição: em vez de os contraventores serem ou torturados e mortos em praça pública, como antigamente, ou, em vez disso, confinados isoladamente em celas prisionais, como na modernidade, eles na verdade são submetidos às duas punições; sendo que a segunda comporta uma perversão ainda mais desumana. As prisões brasileiras – os antigos cadafalsos espetaculares modernamente panoptizados – são de um panopticismo invertido, no qual os presos, em vez da dúvida sobre se estão ou não sendo vigiados, o que idealmente os levaria ao bom comportamento, estes presos têm certeza de que não são vigiados. E o que é pior, revoltam-se porque são sistematicamente esquecidos pelo poder que os pune.

O panopticismo às avessas das penitenciárias brasileiras faz com que os detentos sejam vigiados, e consequentemente punidos, apenas por si mesmos. E quando a tensão dessa conjuntura interna chega ao limite, eles torturam, mutilam, decapitam, esfolam uns aos outros. Aí, quando essa barbárie cadafálsica choca a opinião pública ao aparecer nos telejornais ou se tornar visualizável no Youtube, o panopticismo invertido se radicaliza: os presos têm as suas degradações assistidas, não pelo poder que os pune, mas por toda a população. São supliciados então diante dos olhos de todos, em um praça pública virtualizada, sem no entanto deixarem os buracos de suas reclusões punitivas.

O linchamento é um ato praticado por iguais que todavia não se enxergam como iguais. Nesse sentido, o conceito de linchamento desenvolvido por José de Souza Martins na sua obra “As condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil” é de grande ajuda na nossa tentativa de compreensão da crise carcerária brasileira. Para o sociólogo, o mais importante a se entender nos linchadores é que eles querem apontar que há algo muito errado na sociedade; que há violações insuportáveis de normas e valores; e que algo precisa ser feito pelo poder urgentemente.

Se, por um lado, o extermínio de iguais nas celas superlotadas e totalmente desatendidas das penitenciárias brasileiras – iguais que todavia se diferenciam apenas pelo poder de uns matarem outros – visa conscientizar a sociedade de sua própria e alienada crise, por outro lado, os presos buscam exterminar aquele(s) outro(s) junto a eles que refletem insuportavelmente a desumanização a que todos estão sujeitos, causada justamente pela punição que, em primeiro lugar, deveria humanizá-los; dito de modo apropriado: ressocializá-los. Nesse quadro, lincham-se uns aos outros para que, pelo menos alguns – os que sobrevivem -, terem, paradoxalmente, uma realidade um pouco menos desumana.

Como sustenta Souza Martins, “o linchamento não é o apogeu da desordem, mas o questionamento último de uma ordem decadente: é questionamento do poder e das instituições”. Só que o Estado e a mídia – se é que esses dois já não são um só no Brasil – são os primeiros a não ressaltarem que a Constituição Federal de 1988 estabelece, como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, que aos presos é assegurado o respeito a sua integridade física e moral, bem como o oferecimento de meios pelos quais eles venham a ter participação construtiva no seio social.

Os miseráveis resultados ideológicos dessa alienação intencional podem ser vistos em declarações públicas mais miseráveis ainda, como por exemplo, a do Secretário Estadual de Justiça e Administração Penitenciária do Maranhão, Sebastião Uchôa, a respeito da tragédia de Pedrinhas em 2014: “há males que vêm para o bem”; e também a infeliz fala do até então Secretário da Juventude do governo golpista de Temer, Bruno Júlio, sobre as chacinas de 2017: “Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”. E nessa esteira ignóbil, a opinião pública repercute ensurdecedoramente tamanhos disparates.

Agora, se a punição sempre foi estratégia de um poder que busca se manter, precisamos perguntar: uma punição decadente como a que estamos vendo no Brasil cumpre melhor ou pior o sempiterno objetivo dos poderosos? Os reis antigos, que tiveram de abrir mão da excessiva crueldade de suas punições para se manterem régios, certamente diriam ao poder contemporâneo que ele precisa se reinventar. Já do isolacionismo idealista da forma punitiva panóptica moderna o poder deveria compreender que, em primeiro lugar, precisa atentar mais ao real, e, em segundo lugar, que a ressocialização dos seus marginais solicita o contrário da exclusão, do esquecimento deles, que hoje se dá ou em celas superlotadas e desassistidas de salubridade e humanidade, ou ainda mediante chacinas.

O movimento histórico da manutenção do poder, em dois atos foucaultianos e em um epílogo tragicamente brasileiro, inicia-se no cadafalso público espetacular com o rei exibindo o seu poder aos súditos. Só que, nesse caso, o supliciado, por sobre o ombro real que o punia, denunciava aos seus iguais a desmedida desse poder com o qual era punido. E os reis não foram poupados de seus próprios excessos. No segundo ato, temos a instituição panóptica, com o criminoso constantemente observado e paulatinamente punido, longe dos olhos da opinião pública. Ainda que produzindo um radical afastamento, um panopticismo minimamente eficiente deve fazer com que o preso seja assistido – mesmo que não saiba exatamente quando -, com o fim de reinseri-lo na sociedade.

Porém, concluindo, temos o coro trágico dos atuais presídios brasileiros, cujos presos seguem desassistidos, tanto pelo poder que os pune, quanto pela sociedade à qual deveriam retornar depois de punidos. Os nossos detentos estão jogados, não dentro do edifício social, nos andares que deveriam ressocializá-los, mas debaixo de suas fundações, ainda vivos ou já decapitados, todos jazendo desumanamente sob o peso de um Estado e de um sistema carcerário decadentes e desumanos. Na incapacidade ou na falta de vontade daqueles que estão fora das grades de fazer valer a punição prescrita pela Constituição, os atuais condenados só podem reduzir e mutilar supliciosamente a si mesmos, para assim iluminarem a trágica crise social que ninguém mais do que eles vivencia na carne.

Brasil, meu impaís

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Se uma coisa não é mais possível, dizemos que é impossível. E se essa coisa é um país, por exemplo, o meu, o Brasil, nem mesmo a sua língua deve censurar a minha impertinência neologista de, no atual momento, mais do que em todos os outros dos meus 43 anos de brasilidade, chamá-lo de impaís. Nas linhas que se seguem, nas quais ocuparei o meu “lugar de fala” enquanto cidadão brasileiro, solicito a distinção entre “país”, enquanto o lugar no qual os interesses do povo são possíveis, e impaís, onde eles são impossíveis.

Nasci em 1973, último ano do famigerado “Milagre Brasileiro”. Convenhamos, milagre mesmo é uma época também conhecida como “Anos de Chumbo”, e o que é pior, cativa de uma ditadura militar, ser chamada de milagrosa. Mas a explicação é fácil: o tal milagre se referia ao extraordinário crescimento econômico, que, no entanto, beneficiava apenas a velha minoria dominante, justamente a classe que sentiam-se, mais uma vez, milagrosamente abençoada.

A partir de 1974, no entanto, o milagre começou a degringolar. Milagre pela metade: o crescimento nacional, que chegou a ser de 13% ao ano, dez anos depois mundanizou-se em parcos 6,5%. Em 1983 a inflação anual era de 200%. Dívida externa galopante, estagnação econômica, radicalização das desigualdades sociais, desemprego: eis a graça de um milagre produzido por anjos militares caídos. Em suma, embora eu tenha nascido em um ano ainda apelidado de “milagroso”, o chão de toda a minha infância foi a crise, cuja aridez só não me afetou porque eu ainda estava no colo de mamãe. Já os pés dela…

Quando eu então estava deixando a infância e começando a entender minimamente a realidade ao meu redor, o pouco que eu percebia seria posteriormente chamado de “A década perdida”, alcunha ressentida à estagnação econômica que o Brasil, bem como a América Latina toda, sofreu ao longo da década de 1980. Se o impaís ainda não me impossibilitava por conta das possibilidades que mamãe mantinha abertas para mim, isso não quer dizer que a realidade não estivesse sendo madrasta, fosse para ela, fosse para a maioria dos brasileiros.

Minha entrada na adolescência foi contemporânea do colapso do Regime militar. A “Redemocratização”, mudança de paradigma nacional, de militar para democrático, foi o ingresso definitivo em mim de uma germinal consciência política a respeito daquilo que eu ainda chamava de meu país. Consciência todavia torpe e ingenuamente maniqueísta: o “Último Ditador”, João Baptista Figueiredo, era o mal; o “democrata” oportunista da vez, José Sarney, o bem. Os anos que se seguiram, entretanto, não deixaram dúvidas de que aquele bem era igualmente mal, ou pior. Mas, como disse Hegel, sempre começamos errando.

A euforia das “Diretas Já” de 1984 é um belo exemplo disso. Começamos com um presidente da república eleito indiretamente, Tancredo Neves, e, como se não bastasse, com a sua morte misteriosa antes mesmo da posse. De “Já”, o melhor que as “Diretas” puderam nos oferecer foi um presidente interino eleito indiretamente, José Sarney, que, se por um lado promulgou a “Constituição Cidadã” de 1988, por outro, manteve prioritários os seus interesses oligarcas, tão distantes dos interesses dos cidadãos brasileiros quanto os da ditadura militar. Só mesmo em 1989 os brasileiros tiveram oportunidade de votar diretamente para presidente.

Mas, repetindo Hegel, os começos são sempre erráticos – o acerto, se é que existe, é apenas a longa história de muitos erros. E para provar que o Brasil errou feio nesse (re)começo democrático, o povo elegeu ninguém menos que Fernando Collor, o marajá que se elegeu autodenominando-se “O caçador de marajás”, uma de suas muitas mentiras que, em parcos dois anos, tornou-se insustentável a ponto de ele ser deposto escandalosamente. Embora eu não votasse à época, foi inevitável concluir que o primeiro voto do povo depois de 25 anos de ditadura é que mereceu o impeachment.

Os “Cara pintada”, que acreditaram serem os responsáveis pela deposição de Collor – dentre os quais eu me incluía ingenuamente-, garatujavam em suas ideias um novo país, ou simplesmente um país, não obstante, sobre a tela rota do impaís que seguiu vivo pelas mãos do vice de Collor, Itamar Franco, que no seu último ano de governo, 1994, levou o país a uma inflação de 916,4%. Os “Cara pintada” desapareceram não porque seus anseios naif haviam desaparecido, mas porque as tintas verde e amarelo estavam custando os olhos da cara. A inflação incontrolável só parecia minimamente domada mediante sistemáticos cortes de zeros e mudança de nome da moeda. De 1989 a 1994 foram nove zeros e cinco nomes.

Então, na primeira eleição presidencial de que participei, na qual votei no metalúrgico sindicalista de um partido de esquerda, o Lula, o Brasil, no entanto, elegeu diretamente um doutor em sociologia de um partido de direita, Fernando Henrique Cardoso. Eleger diretamente um presidente da república, entretanto, ainda não significou que a res publica fosse diretamente do público, mas penas de parte dele – a parte que sempre foi privilegiada, diga-se de passagem. Mas o fato de durante o governo de FHC a inflação ter sido de 100% parecia um novo milagre depois dos mais de 900% do seu antecessor.

Tanto que o povo não só reelegeu FHC, como também, antes disso, aceitou passivamente que ele alterasse escusamente a Constituição para poder ser reeleito. Lula e eu mais uma vez perdemos as eleições de 1998. Nos anos que se seguiram vimos a dívida externa brasileira dobrar, e, como se tornaria vergonhoso doze anos mais tarde, nenhuma universidade federal foi aberta durante os oito anos de governo do doutor sociólogo. E isso porque o Brasil ainda era governado para que fosse nada além de um impaís.

Então, em 2002 Lula foi eleito presidente da república. Pela primeira vez, desde que me reconhecia como um cidadão brasileiro, senti-me representado. Minha passagem para a vida adulta foi contemporânea da possibilidade de o meu impaís finalmente se tornar um país. Mas como saber de antemão se ainda estávamos na hegeliana fase errática inerente aos começos? No entanto, ao longo dos dois governos do ex-metalúrgico, a inclusão social e a divisão de riqueza que teve início no país; a queda da inflação para metade do que era no governo FHC; sem dizer do pagamento da dívida externa – que antes de Lula era dita impagável; tudo isso e muito mais fazia parecer que estávamos nos aproximando da fase do acerto; que o impaís finalmente estava se tornando um país.

Só que a ventura lulista tinha duas faces: uma, populistamente publicizada, outra, sorrateiramente ocultada. Se, por um lado, começávamos a acertar, com o povo desfrutando, como nunca antes, da riqueza que ele mesmo produzia, por outro, no entanto, seguíamos errando, pois a manutenção da desigualdade persistia nos bastidores, com a velha classe dominante enriquecendo mais com Lula do que com seu antecessor de direita, FHC. Ao contrário do que eu pensei por muito tempo, o Brasil de Lula não deixou de ser um impaís para tornar-se um país: era os dois ao mesmo tempo.

Sem dizer que a ventura econômica que o país/impaís experimentou durante o governo Lula cobrou um preço altíssimo: se, aqui, enchia os brasileiros de eletrodomésticos, viagens ao exterior e “carrinhos do ano” – como repetia o ex-metalúrgico -, ali, fazia esquecer completamente a necessidade de o povo educar-se politicamente. O brasileiro se alienou mais ainda de sua historicamente precária politização porque confiou cegamente que o Pai Lula faria todo o trabalho. Hegel sussurra no meu ouvido que essa é a pior fase: aquela na qual erramos dramaticamente, todavia, iludidos de que estamos acertando.

Em 2010, Dilma Rousseff não foi eleita pelo povo e pelas elites senão para manter o desigual enriquecimento geral da nação – os pobres, desejando subir mais um degrau na escala social; e os ricos, planejando ascender mais ainda, e de elevador panorâmico. Só que, enquanto isso, a crise internacional crescia e imigrava clandestinamente para o Brasil. Quando, porém, a queda do valor dos commodities finalmente golpeou o Brasil em cheio, e o enriquecimento dos ricos foi afetado primeiramente – e isso para que o mínimo de autonomia econômica que o povo havia conquistado fosse preservado -, as até então silenciosas elites gritaram e golpearam o misto de país e impaís que vínhamos sendo, entretanto, para restabelecerem o impaís que beneficia somente a elas.

Hoje, em 2017, o povo é vítima de um governo golpista, corrupto não só por ter forjado um “crime de responsabilidade” inexistente com o qual depuseram Dilma – antes fosse! -, mas corrupto estrutural e descaradamente. O impaís que agora tempos abusa de sua impopularidade para reverter rapidamente a divisão de renda e a inclusão social que os governos do PT conseguiram realizar. Em poucos meses, o golpe já comprometeu profundamente os 20 próximos anos de educação e de saúde do povo; o mesmo estando para acontecer com a Previdência Social; sem dizer das imediatas privatizações que espoliam criminosamente a res publica.

Nasci e cresci em um impaís, ao qual, infelizmente, estou de volta na maturidade, depois de uma breve experiência na qual o meu impaís metamoforseava-se em país. Todavia, muito antes da metamorfose se completar, os ratos golpistas da velha elite devoraram a borboleta em cadeia nacional.

Para concluir prestando contas a Hegel, sou obrigado a reconhecer que, em matéria de país, estamos demasiadamente no começo. Basta olhar a quantidade de erros; seja os do povo, elegendo péssimos representantes, como no emblemático caso de Collor; seja principalmente os da elite, deselegendo anticonstitucionalmente os representantes do povo assim que estes não privilegiam os seus interesses. Não obstante, se essa nacional história de erros servir ao menos para construir um acerto logo mais adiante – como Hegel defende – o meu impaís quiçá possa ser chamado de país. Oxalá essa história errática seja mais breve do que eu.

Limitação da internet e hacktivismo naif

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Não é de hoje que querem limitar a internet dos brasileiros. O último capítulo dessa novela, contudo, foi do naipe do governo golpista que temos: se não podem limitar mais ainda os direitos e interesses do povo, ao menos declaram inconsequentemente que o farão. O ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Roberto Kassab, “mal-entendendo” a superior determinação da Anac, declarou publicamente que em 2017 o governo federal limitaria a internet no Brasil, para, pasmem, “beneficiar os usuários”. Será que não se enganou nisso também, e na verdade queria dizer usurários? Um dia depois, no entanto, teve de desmentir a si mesmo e confirmar que, pelo menos por enquanto, “não haverá mudanças no modelo atual de planos de banda larga fixa”.

Ufa! O Brasil continuará tendo a segunda internet mais cara do mundo! Só para se ter ideia do custo da internet ao consumidor brasileiro, hoje temos de trabalhar 5 horas por mês para tê-la, abaixo somente dos argentinos, que precisam dispender 15 minutos a mais pelo serviço. Se os portugueses, por exemplo, pelo fato de precisarem de 50 minutos de trabalho por mês apenas para estarem conectados, parecem-nos privilegiados, o que dizer então dos chineses, que com seis minutos de trabalho já têm acesso mensal à rede?

Cena intermediária entre a mentira e a desmentira de Kassab – entre a sua pós-verdade e a verdade da Anac – foi a do grupo hacktivista Anonymous Brasil. Essa, do naipe do povo brasileiro golpeado: performática, porém de futuro duvidoso. O grupo hacktivista protestou nas redes sociais contra a limitação da internet com a seguinte mensagem: “Acabou a novela. Ministro diz que haverá, sim, limite na internet fixa no Brasil. Chegou a hora da internet dizer aos novos governantes quem é que manda nessa porra! Não se atrevam. Com amor, O povo”.

Muito mais do que interferir efetivamente no macroprojeto golpista de limitação ilimitada dos direitos e interesses do povo, desavergonhadamente empreendido pelos “novos governantes”, a declaração dos hacktivistas teve ao menos a virtude de tentar representar a indignação popular. Entretanto, oxalá um mero “Não se atrevam” pudesse algo contra os mui atrevidos golpistas. Se o “Não Vai Ter Golpe!” foi tão impotente quanto hashtaguizado, acreditar que um “Não Se Atrevam!”, antecedido ou não de uma hashtag, faça verão no presente inverno golpista é no mínimo ingênuo.

Façamos como Jack, o estripador; tomemos por partes a nota dos hacktivistas para ver quão naif ela é na conjuntura pós-golpe. O “Acabou a novela” pressupõe que a caneta que escreve o drama brasileiro esteja, ou na mão do Anonymous Brasil, ou ainda nas do “povo”, conforme a nota nos leva a concluir. Não obstante, o jovem golpe, entre outras péssimas notícias, está aí para nos informar que são os golpistas os dramaturgos oficiais do nosso presente folhetinesco. Acabou a novela não, Anonymous bebê! Ela prossegue. A diferença é que, agora, mais que nunca, os seus protagonistas são os antagonistas do povo

A parte da mensagem hacktivista que realmente impressiona, não pela ameaça que representa, mas pela patética ingenuidade, é: “Chegou a hora da internet dizer aos novos governantes quem é que manda nessa porra!”. Não está um pouco tarde para quem quer que seja dizer aos golpistas “quem manda nessa porra”? A contemporaneidade vitoriosa dos “novos governantes” é que manda; e mais, manda beijinho no ombro para a extemporaneidade alienada do “hacktivismo naif” dos Anonymous tupiniquins.

Então vem o acorde trágico: “Não se atrevam”! “Atrever-se”, do latim adtribuere, significa “achar-se capaz de fazer algo”. O que os hacktivistas estão dizendo na sua “ameaça”, portanto, é apenas para o governo não pensar que pode limitar a internet. Agora, vamos combinar, de quem pensou em roubar, e levou esse pensamento a cabo, furtando publicamente um país inteiro para si, desses não devemos esperar que limitem seus demais pensamentos golpistas em função de apelo popular algum.

E para terminar, os fofotivistas assinam: “Com amor, O povo”. Faltou só o emoticon respectivo, o do coraçãozinho! Fala sério… Esquecem-se de que a presidenta deposta, apesar de sua “cara de poucos amigos”, usou e abusou, desesperada e estrategicamente, do apelo amoroso nas mídias brasileiras, juntando suas mãos torturadas em forma de coração em inúmeros selfies, e que isso de nada adiantou contra o odioso tsunami golpista? Que papo é esse de amor em um momento no qual estamos e devemos estar consumidos pelo ódio?

Onde está a violência, “porra”? 2013, com o seu lema, tão fofo quanto antirrevolucionário, “Sem-vi-o-lên-cia!”, está grudado em nossas peles qual sarna. Muito antes dos golpistas pensarem em limitar a nossa internet, limitamo-nos a nós mesmos naquilo que mais pode ameaçá-los: a violência. Se, por nossa própria conta, passamos a achar politicamente incorreto socializar fortuitamente a violência monopolizada pelo Estado, não é ameaçando o Estado golpista com um patético monopólio do amor que os direitos e interesses do povo deixarão de ser limitados.

Folks, a democracia está limitada; os direitos dos brasileiros estão limitados; a participação popular está limitada; o que restava da esquerda tupiniquim, coitada, sobrelimitada. Só mesmo as limitações ao povo andam ilimitadas no Brasil pós-golpe. Não é idealista demais esperar que a internet não o seja? Ou é o caso de os golpistas entenderem que podem limitar-nos tranquilamente em quase tudo: direitos trabalhistas, previdência social, saúde, educação, escolha direta de presidente da república etc.; mas só não na nossa internet?

Vamos agora chorar por migalhas? Pedir para que ao menos não limitem o ópio internético do povo? Com efeito, se fosse limitada a internet, isso afetaria negativamente mais de 100 milhões de nós. Mas, como diz o escatológico provérbio: “O que é um peido para quem já está cagado?”. A limitação da internet que tentaram, e que, estejamos certos, seguirão tentando, de forma alguma será a gota d’água. A “porra” já derramou toda! Mas o talento popular para fazer garoar no inundado é tão reconhecível quanto patológico.

Aproveitando-me do fato de que hoje em dia pode-se dizer qualquer coisa, e mais ainda, sem medo de ser infeliz, confesso que, sinceramente, cogito a possibilidade de uma limitação fortuita da internet ser bem-vinda. Não porque beneficiaria os usuários, conforme mentiu o ministro, muito menos porque o benefício maior seria aos usurários, dentre os quais o próprio ministro se encontra, mas, ao contrário, porque afrontaria ainda mais o povo; traria mais ódio a ele; faria com que ele desinvestisse de seu pretenso “amor”, tão inócuo à luta política quanto pós-verdadeiro. E isso porque o ódio suscita melhor a violência que merecem receber os nossos violentos algozes golpistas.

Sem dizer que menos internet sacar-nos-ia um pouco que fosse da letárgica alienação com a qual a própria internet limita a nossa potência cívica sob suas centenas de selfies e seriados da Netflix. Se as nossas mais estimadas hashtags apenas nos deixam na mão; se a memetização facebookiana bem-humorada da nossa própria miséria não serve para freá-la; em suma, se a internet mais virtualiza a nossa potência política do que nos leva à luta real e presencial; o projeto de limitação da internet dos golpistas bem poderia ser um paradoxal tiro nos próprios pés deles.

Uma coisa o Anonymous Brasil tem razão: se há alguém que pode e deve conter o ímpeto dos golpistas, esse alguém é “O povo”. Mas, ao contrário do que disseram, não em nome do “amor”. Antes, o povo só exercerá seu ímpeto se estiver insuportavelmente estimulado para tal. E, maquiavelianamente falando, esse estímulo só pode vir dos golpistas mesmo, mediante uma opressão tão excessiva e inaceitável a ponto de o povo explodir violentamente: violando de vez as regras do jogo no qual os golpistas estão vencendo por vis ardis.

Só assim, mediante uma violência que não deixe outra escolha senão uma mudança radical, haverá a possibilidade de ser instituído um Estado no qual os anseios e necessidades populares tenham vez. Mas aqui, porventura, já não estamos falando de Revolução? Claro que sim! Todavia, sendo bem realista, o povo brasileiro parece tão incapaz de revolucionar a sua realidade quanto o foi para evitar que a sua democracia fosse destruída pelos golpistas.

E se esse é o triste papel do povo brasileiro na sua atual e fatídica novela, ao menos deveríamos evitar a charlatanice de fingir uma potência que ainda não temos. Um “Não se atrevam” popular nunca esteve tão desacreditado! Assim como um ator convence muito melhor a plateia se estiver intensa e verdadeiramente mobilizado por tais e quais afetos, assim também o povo, no palco do conflito social no qual se encontra, se quiser vencer os golpistas deve ser mobilizado pelos afetos certos. E, definitivamente, não é o amor o melhor afeto à guerra. Amar, no campo de batalha, é naif demais.

Talvez a internet tenha nos tornado ingênuos a ponto de os nossos ódios, raivas, espantos, tristezas, etc., e até mesmo nossos amores, serem tão superficiais e pouco mobilizadores quanto os “botões de emoção” que se oferecem ao lado do botão de curtir nas postagens dos Facebook. Agora, mais do que se limitassem a nossa internet, se de fato os golpistas nos privassem completamente dela, aí sim o anjo esquecido da Revolução seria relembrado por nós, um pouco mais intensamente que fosse. Mas, ao contrário, tanto o povo, quanto principalmente os seus hacktivistas, pelo jeito preferem as “revoluções” virtuais à real. E para quem limita a si próprio desse modo, o que é uma limitação de internet?

A realidade tem estrutura de… seriado?

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Quando começou a filosofar, Nietzsche usou a tragédia grega para produzir sua crítica à modernidade. Marca do pensamento pop de Žižek é o uso de filmes e anedotas que tornem suas teorias popularmente intuíveis. Também o economista Thomas Piketty se vale de clássicos da literatura para enxergar neles realidades econômicas de tempos nos quais elas não eram cientificamente registradas. Se a ficção é instrumental ao pensamento, os seriados de TV não devem ser ignorados enquanto objetos capazes de contar verdades essenciais, tanto sobre mundo que os produz, quanto sobre os indivíduos que os consomem massivamente.

Por isso, precisamos pensar sobre as séries; a partir delas; e não somente assisti-las! Seja por serem a expressão artística mais popular da atualidade, bastando ver a crescente quantidade de seriados sendo lançados, exibidos, e consumidos constantemente, a ponto de haver quase uma série para cada gosto e ocasião; seja principalmente por serem expressões econômicas sofisticadíssimas em forma de mercadorias tão inocentemente deliciosas quanto perigosamente alienantes. Seriam os seriados o ouro alquímico da vez do sistema capitalista?

Confesso que, em boa desmedida, suportei o Armagedom político tupiniquim de 2016 à base de doses nada homeopáticas de estórias e mais estórias seriadas. Não para me alienar completamente da vil realidade. Antes, os seriados ajudavam a estabelecer entre eu e ela espaços intervalares nos quais a insuportável vilania do real ou estava episodicamente ausente, ou, como em “Mr. Robot”, presentíssima e revolucionável ao alcance de um “hack”. Aliás, “Mr. Robot” tem a virtude de mostrar que só se revoluciona a realidade mediante covardes distâncias (Eliot, o personagem principal, é um psicótico que se refugia em um mundo irreal) seguidas de violentas proximidades em relação a ela (a destruição do sistema financeiro mundial em um único acesso à rede). Algo como se afastar do problema para vê-lo panoramicamente antes de se de aproximar dele com unhas e dentes.

Dizer que as séries apenas alienam é muito raso. A atual (micro?) revolução que o Papa Francisco empreende na Igreja Católica, por exemplo, de forma alguma é esquecida quando se assiste “The Young Pope”, inebriante ficção de Paolo Sorrentino protagonizada pela beleza desconcertante de Jude Law. O Jovem Papa em série, em vez de obscurecer, na verdade magnificava os atuais movimentos da Apostólica Romana. É preciso separar o joio do trigo, mais ainda, os trigos entre si, antes de jogar as séries todas num saco e etiquetá-lo pejorativamente.

Quem, das vítimas da mundial crise de representatividade política, não amou a odienta presidência dos Estados Unidos de Frank Underwood em “House of Cards”, ironicamente a série predileta de Barack Obama? Quantos moralistas não torceram pelo amoral Walter White, o professor de química produtor de metanfetamina do já antológico “Breaking Bad”? E o que dizer dos norte-americanos, absolutamente paranoicos com o terrorismo muçulmano, desejando a salvação do seu concidadão traidor ficcional, Nicolas Brody, de “Homeland”, que sob a pele de comandante da Marinha e herói de guerra era, na verdade, um lobo terrorista da Al-Qaeda?

Há quem diga que o teatro e o cinema já fazem isso há muito mais tempo, e primorosamente. Não obstante, uma diferença deve ser contraposta em vantagem das séries: elas conseguem palatizar muito mais intensamente aquilo que a princípio repudiamos porque o fazem não de um só golpe, como um filme ou uma peça de teatro, mas aos poucos. Ora, um golpe dividido em muitos, isto é, seriado, acaba sendo espécie de massagem. Aí a dor vira deleite. E isso porque as séries contam não só com mais tempo, como também com uma outra temporalidade, intervalar e subversiva, e consequentemente mais eficiente para causar grandes efeitos.

Interessante é observar a terceira temporalidade que a Netflix estabeleceu ao começar a lançar suas séries não no formato de um episódio por semana, mas todos eles de uma só vez. Podemos assistir a uma nova temporada inteira de uma só tacada, como se se tratasse de um imenso filme de muitas horas; algo como uma ópera burguesa nos seus melhores tempos. Interessante também é frisar que a “provedora global de filmes e séries de televisão via streaming” assim o fez porque, em pesquisa, os seus espectadores disseram que preferiam receber as temporadas completas de uma única vez, seja para consumi-las ininterruptamente, seja para fazê-lo nos seus próprios tempos.

Todavia algo se perde com essa estratégia de marketing da Netflix. Ora, assistir a um episódio de seriado, ser capturado por sua boa trama, e ter de esperar uma semana para ver o seu prosseguimento, se, por um lado, é frustrante e exige paciência, por outro, no entanto, gera uma expectativa com data marcada para ser recompensada. E o mistério do intervalo só engorda essa recompensa. Já assistir toda a temporada de uma série de uma única sentada, em troca, exige nada além de bastante tempo; mas um tempo sem o seu depois e sem o entre; um tempo que é um imenso agora. Uma boa metáfora é a da ratazana viciada que pressiona repetidamente o botão que libera a sua ração para consumi-la toda de uma vez, até acabar, alienada do fato de que esta seria a sua provisão para os três próximos meses.

Apesar de alguns seriados realmente alienarem as suas audiências da realidade, muitos outros, no entanto, conseguem dar gravidade a ela; lacanianamente falando: fazer a realidade ser mais do que ela mesma. Como se recusar à possível profundidade dos seriados se, como bem concluiu Lacan, a própria realidade tem estrutura de ficção? A ficcionalidade estrutural da realidade, aliás, é o mote de Žižek – também psicanalista – ao usar filmes para melhor projetar o real nos seus pensamentos. E se as séries, atualmente, muito mais do que os filmes, são o locus espetacular da ficção, é nelas que podemos espiar melhor a coluna do real.

Já que nos aproximamos de psicanalistas, impossível não lembrar de“In Treatment”, série norte-americana, e de sua versão brasileira, “Sessão de Terapia”. Até mesmo para quem faz psicanálise há anos, as séries puderam oferecer algo que analista algum compartilha com seus analisandos: o drama psicoexistencial de outrem. Depois de assistir aos dois seriados, sensivelmente foram expandidas as estreitas fronteiras edipianas nas quais a minha analista me mantinha cativo. Quanto mais não seja, se o próprio processo de análise já é seriado, com um, dois “episódios” por semana, as séries de psicanálise, por suas vezes, são séries sobre séries. Novamente Lacan: a coisa mais do que ela mesma!

Dilema interessante nos colocam as boas séries históricas, tais como: “Roma”; “Vickings”; “Spartacus”; “Bórgias”; “Tudors”; “Marco Polo”. Por mais romanceadas e anacrônicas que de fato sejam muitas de suas cenas, através delas encontramos espinhas dorsais de valor histórico consistente. Assim como um bom consumidor de notícias deve sopesar a orientação ideológica do veículo que a divulga, assim também o bom espectador de séries deve saber aplicar o “filtro Hollywood” sobre elas. E porventura não é isso o que a própria História nos ensina, que é da miríade de histórias particulares, de somenos valor e de veracidades duvidosas, que devemos saber destacar o cerne histórico que dá sentido a todos elas?

Assistir séries é bom; entretêm. Mas, para escapar à alienação, devemos assistir nelas tanto o mundo que as produz massivamente, e assim o conhecermos melhor; como principalmente assistirmos a nós mesmos ao assisti-las, para então nos familiarizarmos melhor com os consumidores desse mundo que somos, os quais entretanto nem sempre reconhecemos em nós mesmos. Parafraseando Nietzsche, quando olhamos muito tempo para as séries, as séries olham para a gente. E se, por força do pensamento, fizermos as séries olharem para si mesmas, quiçá consigamos contemplarmos a nós próprios, e, nesse processo de abstração, nos depararmos com verdades concretas sobre o nosso modus vivendi.

O analógico individualismo do sujeito moderno, potencializado pela digitália contemporânea, por exemplo, tem nas séries um aliado sorrateiro. A respeito do notório fato de estarmos cada vez mais habituados com relações não presenciais com nossos iguais – e o “sexo virtual” é o exemplo mais emblemático disso -, as séries não só dão corda para esse distanciamento físico entre as pessoas, como também dissimulam-no metafisicamente. Sem mais, envolvemo-nos, e durante meses, com os seus personagens, seus dramas, e, para muitos, isso é o melhor que terão em matéria de relacionamento humano. Experimentamos tremendas empatias diante da TV por pessoas ficcionais, e, em seguida, nos “episódios da vida real”, somos antipáticos com as pessoas reais.

E como não poderia deixar de ser, esse individualismo virtualizado de que padecemos tem um correlato espetacular em forma de série. “Black Mirror” é o desfile, diante de nossos olhos, do mundo no qual estamos totalmente submergidos, mas do qual não enxergamos a extensão nem profundidade. Lacan mais uma vez: a série britânica que apresenta ficções especulativas de efeitos sombrios é a nossa realidade mais do que ela mesma. Não porque a realidade do seriado esteja além da realidade verdadeira, mas, em troca, porque somos nós que estamos aquém dela.

“Black Mirror” não nos desconcerta porque surpreende, porque mostra um mundo alienígena ao nosso, mas, antes, porque apresenta precisamente os caminhos que já percorremos, todavia trilhados sem a mochila de alienações que carregamos nas costas. Com efeito, já somos tão sombrios quanto os seus personagens, mas só eles nos fazem enxergar isso. Intelectuais worldwide confessam: há algo candente do real que só é visível em “Black Mirror”; algo completamente ausente nas suas estantes de livros.

E para apontar que os seriados, aos poucos, estão se tornando paradigmáticos à realidade, vale falar sobre o seu ultrapassamento em relação ao cinema e a tv, universos artísticos-audiovisuais de onde nasceram. Até uns anos atrás, as séries tentavam se livrar do estigma televisivo para galgarem uma linguagem cinematográfica, e, agradando mais o público, fazerem mais dinheiro. Hoje em dia, ao contrário, muitos filmes e novelas já são feitos para que se pareçam com seriados, para que tenham a linguagem dos seriados, pois estes já são considerados os detentores da fórmula do sucesso ficcional contemporâneo. E se a realidade tem mesmo estrutura de ficção, porventura os seriados não teriam hoje a fórmula do sucesso da realidade?

Esse movimento não deve passar em branco. Afinal, se aquilo em que, antes, os seriados se inspiravam, agora, passa a se inspirar neles, a própria realidade, objeto inspiracional par excellence dos seriados, não escapa a esse destino. Se isso ainda parece um absurdo, talvez seja questão de tempo, pelo menos até “Black Mirror” lançar um episódio mostrando que a referência fundamental da realidade já são as séries. Quem sabe assim finalmente enxerguemos isso. Ainda sobre dianteira que os seriados estão tomando em respeito à realidade, mais dois exemplos.

Em “The Newsroom”, a equipe de jornalismo de um telejornal investigava a participação de altas patentes do exército americano na morte de milhares de sírios com gás sarim. Alguns dias antes de ir ao ar o episódio no qual seria confirmado, e finalmente divulgado o crime americano, 1.429 sírios são assassinados na vida real, e pelo mesmo gás, obviamente, com suspeitas seríssimas de que os EUA tinham responsabilidade na tragédia. O fatídico episódio da série foi misteriosamente cancelado e, duas semanas depois, o desfecho da trama foi brochante, mas bastante conveniente para o exército: os jornalistas ficcionais foram processados pelo governo e demitidos do canal de televisão por estarem tentando provar algo de que não tinham provas.

Já em “Mr. Robbot”, um episódio no qual uma jornalista e um cinegrafista seriam assassinados ao vivo e em praça pública teve de ser adiado e reeditado por conta do assassinato da repórter Alison Parker e do cinegrafista Adam Ward, também ao vivo, no estado da Virgínia. Nesse caso, não foi ordem superior alguma que mudou os planos do seriado, mas a própria equipe, espantada com o fato de sua ficção estar um passo aquém do real. A humana ignorância em respeito ao futuro não está aí por nada. Superá-la, ainda que episodicamente, é angustiante.

Embora dizer que os seriados estejam se tornando clarividentes, ou ainda que hoje em dia haja um para cada gosto e ocasião seja um exagero, comedindo as afirmações, contudo, não é difícil defender que as séries estão mais aderidas ao real do qualquer outra forma ficcional, e que há ao menos uma delas atinente a cada questão polêmica da realidade. Isso quer dizer que, assim como Nietzsche pensou mediante as tragédias gregas; Žižek, o cinema; e Piketti, a literatura; assim também podemos pensar através dos seriados. Se eles já são a lente privilegiada para tal, talvez seja precipitado dizer. Agora, não nos espantemos se alcançarem esse posto, ou ainda, se mudarem a realidade para que ela seja visualizável apenas por suas lentes seriais.

A antiguidade vivia o tempo circular no qual a sequência de causas e efeitos era finita; terminava e recomeçava eternamente. Nessa percepção de tempo, era como se a realidade fosse uma série cuja mesma temporada era sempiternamente repetida. O medievo trouxe o tempo linear, que nasce no passado e segue infinitamente em direção ao futuro. Desde então, a realidade começou a se comportar como uma de nossas atuais séries: cada episódio é único, todavia, pertencente a uma temporada que nunca terminará. Agora, depois que a Netflix passou a prover as séries todas de uma só vez, podemos experimentar o tempo de Deus, ou seja, a eternidade, na qual tudo o que está para acontecer, para ser visto, já está aí, à nossa disposição.

Entre a Cruz e a Revolução

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Se a classe dominante brasileira está, como se diz, “livre, leve e solta”, fazendo a sua “festa da opressão” sobre a classe dominada, isso se dá exatamente por quê? Antes de responder, vale lembrar que, marxianamente falando, a sociedade é o resultado da luta entre as classes dominante e dominada; e que, sob uma lente maquiaveliana, essa luta – que nas palavras do italiano é dita entre grandes e povo – é amoral, ou seja, não há nada de errado nem de mau no fato de qualquer uma das classes obter vitória sobre a outra, afinal, trata-se apenas do sempiterno jogo de forças que, para os dois filósofos, constitui o socius.

Apontadas essas ideias, recoloco a pergunta inicial em outros termos: o que a classe dominante brasileira está fazendo suficientemente, dentro da luta substantiva, para obter tamanha ventura, ou, o que é o mesmo, o que a classe dominada não está fazendo suficientemente, dentro dessa mesma luta, para padecer de sua atual desventura?

A ideia de suficiência, assaz apropriada à luta política, é trazida aqui por conta de uma conclusão teológica de Slavoj Žižek, qual seja: a de que “não fomos cristãos o suficiente. A digressão à religião em uma linha de raciocínio que se quer política, e ademais de cunho prático, pode parecer estapafúrdia, sobretudo depois de termos chamado à discussão tanto o materialismo de Marx segundo o qual “A religião é o ópio do povo”, quanto o amoralismo de Maquiavel que tirou Deus do comando das coisas humanas. Todavia, se, por um lado, desvios nos afastam da meta, por outro, servem para que possamos analisar os caminhos principais de uma outra perspectiva.

O que, então, Žižek quer provocar apontando a nossa insuficiência cristã? Aonde chegaremos trazendo à tona o apontamento do filósofo na compreensão da presente relação entre as classes dominante e dominada no Brasil, uma vez que o objetivo aqui é entender melhor como a classe dominada deve lutar para ser suficientemente vitoriosa frente à classe dominante? Comecemos entendendo a proposta político-teológica de Žižek.

Como é tácito, cristianismo, judaísmo e islamismo são as três grandes religiões monoteístas. Entretanto, diferentemente das duas últimas, somente na cristã, coloca Žižek, Deus não é transcendente. Não exatamente porque Ele viva no mundo, ou seja o mundo, mas, antes, porque Deus é morto: morreu na cruz, através da morte do corpo mundano de seu filho, Jesus Cristo.

Antes de prosseguir, é preciso frear aqueles que vociferam que as histórias da Bíblia são apenas estórias. Žižek sustenta que é preciso deixar de lado a necessidade de provas empíricas da passagem de Cristo na terra e se ater à estória mesma, pois foi ela que moveu o mundo durante séculos – sé é que ainda não move -, e, ademais, com imensa potência. Potência essa que o filósofo pretende ressignificar em prol da revolução. Aos laicos de plantão, sugiro uma imagem convidativa: uma cruz, todavia formada pela classe dominante enquanto seu eixo vertical, e pela classe dominada enquanto seu eixo horizontal; e no centro, no exato encontro das duas, a luta entre os eixos contraditórios, o locus excelente da Revolução.

Voltando à Žižek, a morte de Deus da qual o filósofo parte é a mais banal de todas, ou seja, aquela contada na Bíblia, na qual Ele, encarnado em Cristo, foi crucificado e morto mundanamente. Essa banalidade não obstante se torna grave quando compreendemos que em nenhuma outra religião Deus teve tal experiência. O Deus cristão, de fato, foi o único que, em determinado momento de sua existência eternal, percebeu que Lhe faltava certas coisas para ser absolutamente onisciente. Para ser Deus de verdade, Ele precisava ainda: ser carne; apaixonar-se; e, por fim, morrer. Mas morrer de verdade! Afinal, um Deus que se preze precisa de experiências absolutas, e não de simulacros.

Comparados a esse Deus, os das demais religiões são deuses entre aspas; pseudo-oniscientes; conhecem o mundo em teoria; não como o Deus cristão que antes de morrer o conheceu também na prática. Para Žižek, quando Cristo na cruz diz a Deus: “Pai, por que me abandonaste?” – relembrando que Cristo é Deus encarnado -, o que devemos entender é que o próprio Deus reconhece, ali, que Ele mesmo não existe mais; que Deus perdeu a divindade ao descer à Terra. Por isso Cristo morre, pois não há mais Pai onipotente algum para salvá-lo. Cristo/Deus teve, na prática, o conhecimento do que é ser mundano. Foi absolutamente Deus na hora exata em que deixou de sê-lo.

“Mas na Bíblia consta que Ele ressuscitou no terceiro dia e depois subiu aos céus novamente” – dirão alguns. Recusemo-nos a isso e teremos a melhor parte da estória, sem dizer a mais eficaz contribuição teológica à revolução. Na teologia de Žižek, Deus não reascendeu ao seu velho posto transcendente depois de morrer. O que houve foi o surgimento do Espírito Santo, ou seja, a Comunidade dos Fiéis. O Espírito Santo é nada além disso: a comunidade de homens e mulheres que restaram órfãos no universo depois da morte de Deus; comunidade que, entretanto, deve se dar conforme a mensagem que Ele transmitiu enquanto foi homem e soube o que era ser humano. Não uma abstrata, e por isso suspeita mensagem de Deus aos homens, mas, em troca, a concreta mensagem de um homem – o homem – aos demais.

Uma bela metáfora da orfandade de Cristo pode ser vista no filme “Últimos Dias no Deserto”, do diretor colombiano Rodrigo García. Cristo (Ewan McGregor), do alto da cruz e da profundidade do sofrimento e da falibilidade de que a carne é capaz, espera a resposta à sua última e, redundantemente, crucial pergunta: “Pai, por que me abandonaste?”. Procura no céu algum sinal que, todavia não vem. De repente, diante de seus olhos surge um beija-flor furta-cor, espetacular como só a natureza. E é justamente nesse momento que Cristo desiste da resposta pela qual espera. Não porque o belo pássaro fosse Deus-Pai dizendo-lhe algo, mas, antes, porque era a prova de que Deus não existia, e por isso nada faria. Ali surge a certeza de que única coisa que há é a condição humana e a natureza. Nada mais. Então Deus morre em paz.

A aceitação dessa teologia que prega a não existência de Deus depois de Sua morte na cruz, mas somente a do Espírito Santo, isto é, a da Comunidade de Fiéis, é revolucionariamente virtuosa porque ensina aos homens e mulheres que, em relação às suas realizações, eles estão absolutamente sozinhos no universo; que a melhor coisa que podem fazer é viver em comunidade, porém, conforme os ensinamentos que Deus proferiu durante a sua única e fugaz estada no mundo. E se somos universalmente órfãos, manter o mundo como está ou revolucioná-lo depende inteira e exclusivamente de nós, homens e mulheres.

A revolução tem sua raiz no Espírito Santo cristão assim como “comunidade”, e outrossim “comunismo”, têm suas raízes no “comum”. Se não percebemos isso, é porque, repete Žižek, “não fomos cristãos o suficiente”. O verdadeiro cristão é mais comunista do que pensa a nossa vã filosofia política. Se quisermos ser mais oportunos, os Mandamentos cristãos podem sim ser encarados como espécie de arché do Manifesto Comunista

O Primeiro Mandamento, “Amar a Deus sobre todas as coisas”, entendido enquanto “respeitemos uns aos outros”; “a todos sirvamos”; “a ninguém excluamos”, porventura é alienígena ao comunismo? E o Terceiro, “Guardar domingos e feriados”, é o que senão o respeito ao descanso e à liberdade do trabalhador? Já o Sétimo, “Não roubar”, levado à cabo, não poria fim à mais-valia capitalista que rouba metade ou mais do valor do trabalho das pessoas? Para terminar, o Décimo Mandamento: “Não cobiçar as coisas alheias”, mutatis mutandis, não é a máxima comunista, “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, popularizada por Marx?

Ser comunista e ser cristão se equivalem na medida em que uma comunidade, uma sociedade cujos integrantes praticam e desfrutam de determinações como as acima citadas não pode ser constituída por ninguém além de nós, homens e mulheres, pois não há Deus bondoso todo-poderoso, nem tampouco teleologia histórica, capazes de fazer isso por nós. Deus está morto! A história somos nós que a fazemos. Mas porque está sendo dito tudo isso se o objetivo é fortalecer a classe dominada na sua luta política contra a classe dominante?

Ora, se, como foi colocado no início, a classe dominada brasileira só está desventurada porque não está lutando suficientemente contra a classe dominante, talvez essa desventura se dê porque ela ainda espere que alguém ou alguma coisa externos à luta a salve; lute por ela; com ela. Se, em vez disso, a classe dominada tivesse a sólida certeza de que nada nem ninguém além dela mesma lhe fortalecerá no conflito que constitui a sociedade, a Comunidade, em suma, o Espírito Santo, talvez assim se apassivasse menos diante dos desafios sociais nos quais está imersa.

Talvez seja o caso de a classe dominada prestar atenção na práxis teológico-política da classe dominante. Por mais que esta encha a boca com o nome de Deus, ela na verdade sabe que sua ventura depende exclusivamente de si. Talvez por isso, historicamente, tenha saído vitoriosa na sempiterna luta social. Seria muito proveitoso se a classe dominada entendesse que Deus, por estar morto, não tem como interferir nos assuntos humanos; que a sua ventura terrena depende somente de si.

No entanto, a ideia de providência externa ainda ocupa, e por isso mesmo enfraquece, a classe dominada. Seja a providência divina, como no caso extremo dos cristãos evangélicos pentecostais, que creem que é Deus que faz desde o fiel passar no vestibular, até o ônibus vir na hora certa; seja ainda a providência da própria classe dominante que lhe antagoniza. E a prova disso é a constante preferência da classe dominada por “salvadores” da classe dominante, tais como João Dória e Donald Trump.

Não! Deus está morto desde antes de sua estória angariar um mundo de fiéis. Não! Ninguém da classe dominante salvará a classe dominada, e isso porque eles não acreditam em salvação, mas somente na luta mundana para fazer valer seus interesses outrossim mundanos. A fraqueza do próprio comunismo até aqui, dizem lucidamente muitos críticos, está em crer que a revolução dependa da contribuição de intelectuais engajados na luta proletária. Mas até aqui a intelectualidade ainda é a classe dominante. Outro vilão do comunismo foi a burocracia, espécie de terceiro elemento que, por estar entre as classes dominante e dominada, não é classe nenhuma, e, não estando na luta, não pode lutar pela classe dominada.

Quão difícil é a classe dominada aceitar que ela está só, sem ninguém além dela mesma que faça valer seus anseios, e o que é pior, inescapavelmente envolvida em uma luta contra um adversário imperioso? A órfã Comunidade dos Fiéis ainda quer ser adotada! Sua espera no orfanato social, no entanto, apenas lhe deixa à mercê de pais adotivos que serão, ou da classe dominante, ou deuses zumbis, ou ainda anjos burocráticos caídos. Sofrer a orfandade universal absolutamente; encarnar a angústia inerente à ideia de que o presente e o futuro dependem exclusivamente dela: eis o trauma/desafio que a classe dominada deve enfrentar para ser páreo suficiente na luta política na qual ainda é dominada.

Quando Žižek afirma que “não fomos cristão o suficiente”, devemos entender o seguinte: não acreditamos suficientemente na Comunidade de Fiéis, a única coisa que restou no universo para homens e mulheres depois que Deus (a ideia de providência externa por excelência) morreu na cruz. A teologia política de Žižek foi insistida até aqui porque o meu objetivo é concluir que a classe dominada deve, revolucionando a terra de suas crenças e trazendo à superfície as raízes cristãs que nela apodrecem esquecidas, entender finalmente que “Comunidade de Fiéis” outra coisa não é senão “Fidelidade ao Comum”. Isso, todavia, não é a Revolução per se, mas uma orientação fundamental a ela.

A eleição da vulgaridade

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Um dos maiores talentos de Donald Trump, presidente eleito dos Estados Unidos, é a sua capacidade de ser criticado. Há poucos dias, a atriz Meryl Streep o criticou em uma famosa premiação cinematográfica. A plateia que a assistia ao vivo e os Trump-haters de todo o mundo aplaudiram-na. Todavia, quase a mesma quantidade de gente – eleitores norte-americanos e admiradores Worldwide do futuro presidente – rechaçaram-na. Até aí tudo bem, afinal, oposição de opiniões cai muito bem à democracia. Porém, como não podia deixar de ser, o ato mais criticável de todos a respeito do ocorrido no Globo de Ouro foi mesmo o de Trump.

Poucas horas depois, o topetudo já respondia, pelo Twitter, à crítica de Streep dizendo, entre outras pós-verdades, que ela é uma “atriz superestimada” e “lacaia de Hillary”. Como dito no início, a capacidade de Trump de ser criticado é imensa, porém, a sua aptidão para receber críticas é inexistente. Ele, ao contrário, orgulha-se de ser do tipo que “não leva desaforo para casa” e, mais ainda, esforça-se para que os “desaforados” recebam desaforos ainda mais pungentes. Agora, em se tratando de alguém que pretende ocupar o cargo político de maior poder no mundo, ser refratário à dissonância a esse ponto é postura que, além de extremamente perigosa, é lamentavelmente patética.

No seriado “The Young Pope”, dirigido pelo grande Sorrentino e protagonizado pelo delicioso Jude Law, o Jovem Papa Pio XIII, tão controverso quanto diabólico, é acusado publicamente de heresia e ameaçado de deposição devido ao teor de cartas de amor escritas na adolescência. Para protegê-lo, a assessora de imprensa do Vaticano exige dele que declare, também publicamente, que não é um herege. O papa, entretanto, responde perspicuamente: “Se não sou herege, por que eu deveria declarar que não sou? Defender-me apenas levantará suspeitas… A melhor coisa a fazer é ignorar a acusação e a ameaça”. No final das contas, as cartas são divulgadas e, para a decepção dos inimigos do Jovem Papa, o mundo se apaixona ainda mais pelo Vigário de Cristo na terra, afinal, a maioria das pessoas se compraz com o amor. Só não percebe isso que não o tem em si.

Trump seria incapaz da segurança e da fineza do Papa ficcional, seja porque aquilo de que lhe acusam ser verdadeiro, e o que é pior, corroborável por vídeos do Youtube, seja principalmente por ser incapaz de resistir às críticas que recebe. Se lembrarmos do que disse Nietzsche em algum lugar, que “toda vulgaridade vem da incapacidade de resistir a uma solicitação”, o mais adequado predicado para o bilionário quase presidente é: vulgar!

Do latim vulgaris – derivação de vulgus (multidão) -, “vulgar” é aquilo que é usado pelo povo e não possui quaisquer traços de nobreza ou distinção. Com efeito, Trump reage às críticas que recebe como se fosse um de seus patéticos eleitores homens brancos de classe média e sem formação superior. Só que, afora sua raça, ele é rico desde a infância – um biógrafo seu conta que, na adolescência, Trump vendia jornais no seu bairro levado pelo seu chofer -, e, além disso, o magnata é diplomado em economia pela quarta melhor universidade dos EUA. Trump não é vulgar fortuitamente, por falta de opção, mas deliberadamente, o que o sobrevulgariza.

Recentemente, intrometendo-se, com sua inconveniência habitual, na delicada diplomacia EUA-Israel, Trump vomita mais um tweet impertinente, desta vez dizendo para Netanyahu: “Mantenha-se forte! 20 de janeiro [data de sua posse] está chegando”. Não obstante o fato de o ordinário Trump não ter sido eleito pelo voto popular, mas indiretamente pelos ardis do suspeitíssimo sistema eleitoral norte-americano, ele ainda por cima não respeita a presidência oficial do seu próprio país.

E o que dizer do polêmico caso político/amoroso/tweetico entre Trump e Putin? Agências de inteligência dos EUA dizem, e até mesmo os próprios colegas republicanos de Trump confirmam, que Putin ordenou espionagem hacker nas eleições norte-americanas para favorecer Trump e desacreditar Hillary. E o que é mais grave de tudo, Trump será empossado mesmo assim, pois nem mesmo a paranoia anti-espionagem dos extremamente paranoicos sobrinhos do Tio Sam parece ter mais poder do que as intempestividades tweeticas de Trump. A mensagem descarada do bilionário a Putin – na verdade, cinicamente endereçada ao povo americano e ao mundo – foi a seguinte: “Junte-se ao nosso time para fazer a tirania grande novamente. Será enorme”.

Convenhamos, o que foi eleito nas últimas eleições norte-americanas não foi um presidente, mas um representante legítimo do antipolitismo, da falta de diplomacia, da vulgaridade. Cereja tirânica do bolo tweetico de Trump: “Quem se importa com a Constituição?”. Ora, se o próximo presidente dos EUA não se importa com a lei, nem tampouco com a civilidade, o que na verdade foi eleito pelo “país mais poderoso do planeta” foi a barbárie. Quase metade dos eleitores, mais o sistema político norte-americano, escolheram a barbárie em detrimento da civilização! Paradoxal é o fato de, hoje, a barbárie poder ser acompanhada pelo Twitter, uma das maiores sofisticações da civilização. Afinal… It´s Trump times, folks!

Amizade X filosofia

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Uma velha e grande amiga, com quem eu conversava sobre o atual caos ético-político brasileiro, a certa altura criticou-me dizendo: “Vocês, da filosofia, não conseguem pensar sem usar outros pensadores como bengala”. Tive de reconhecer que, por um lado ela está certa: para quem tem amor (philia) pelo conhecimento (sophia), é irresistível se envolver com sábios, sábias e sabedorias. Agora, por outro lado, ela está errada: não se trata de uma incapacidade “pensar sem usar outros pensadores como bengala”, mas, ao contrário, de uma virtuosa capacidade, aliás, cada vez mais rara nesse nosso mundo idiotizando.

Na esteira das recentes chacinas nos presídios brasileiros, um cientista social francês radicado no Brasil, em entrevista televisiva, apontava suas causas e consequências. Sua análise sociopolítica era impecável. Com exceção, todavia, de um único pecado: o fundamento de seu pensamento era tacitamente maquiaveliano, mas, em momento algum, ele citou Maquiavel. Essa falta ficou clara para mim pois, atualmente, estudo justamente o pensador renascentista. Amei que o cientista pensava maquiavelianamente, porém, odiei o fato de ele fazer parecer que este pensamento era patrimônio exclusivo seu.

Impossível o cientista social desconhecer o pensamento de Maquiavel. Ou ele esqueceu de citá-lo – pecado menor -, ou suprimiu deliberadamente a referência – algo como um oitavo pecado capital! Embora estivesse lidando com um conhecimento de altíssimo valor, o cientista demonstrou não ter o amor devido por ele, uma vez que omitiu sua origem, sua autoria. Agindo desse modo, o cientista não receberia a crítica da minha amiga de “usar outros pensadores como bengala”. Mas não porque não o tenha feito, e sim porque dissimulou muito bem que caminhava por suas próprias pernas, sem usar as célebres muletas maquiavelianas, conhecidas por serem os pilares do pensamento político moderno.

Ok, este cientista não é filósofo; não fez quaisquer juras de amor com o saber; e talvez por isso use-o pragmática e desrespeitosamente. A aparência de caminhar sem muletas certamente o fez parecer um sábio ao lado de outros sábios. Mas a essência dessa aparência é outra: ele só pôde reluzir algum verniz de sabedoria por conta da sabedoria de Maquiavel. Um verdadeiro filósofo, em troca, se chega a brilhar, é porque se lambuza de sábios e sábias, como se estes fossem purpurina e como se pensar fosse um carnaval.

Tenho certeza de que a minha amiga não queria sugerir com a sua crítica que devemos esconder os autores que falam através de nossas falas. Aposto que ela deve se comprazer, por exemplo, com o historiador brasileiro – quase filósofo – Leandro Karnal, cujas explicações são recheadas de citações de inúmeros grandes pensadores, todas devidamente referenciadas. O que, entretanto, ela queria com a sua crítica? Bem, creio que espécie de conversa sem conhecimento, de pensamento sem sabedoria; algo como uma simples troca de opiniões – estas, sim, de autoria única e exclusiva de quem as profere, pois opinar é se expressar pelas próprias pernas.

Na hora me vi solicitado por espécie de mundo facebookizado, onde opiniões são memética e freneticamente compartilhadas; onde ideias de grandes pensadores são esquartejadas e publicadas sem que sejam devidamente referidas – ou, o que é pior, descuidadamente atribuídas a Caio Fernando Abreu ou Clarisse Lispector. Postar por postar; falar por falar; pensar por pensar; sem que estas expressões considerem, em primeiro lugar, sua relação com a realidade, e, em segundo lugar, se são expressões genuinamente nossas ou, antes, inadvertidamente roubada de outros; ei o que certas “bengalas” sábias podem evitar!

A querela entre opinião e conhecimento é tão antiga quanto a própria filosofia. A clássica pecha entre o conhecimento universal de Sócrates e as opiniões particulares dos sofistas é prova disso há 2500 anos. De modo que, quando fui criticado pela minha amiga, quase trouxe à discussão alguns diálogos de Platão. No entanto, era justamente isso o que ela não queria… Do contrário, sequer teria proferido a sua crítica. Seu pedido, na verdade, era para que apenas falássemos o que achamos das coisas, sem que estes achismos sejam relacionados a qualquer saber válido. Ela queria apenas o velho negócio de “jogar conversa fora” – coisa que, aliás, amigos fazem melhor do que ninguém.

Embora eu não tenha problema algum em apenas papear, e sobre o que quer que seja, esse ato banal de conversar livremente com a minha velha amiga, no entanto, passou a estar como que sob o jugo de um “Grande Outro” que a qualquer momento iria me acusar por eu estar pensando conforme Maquiavel, Kant, Marx, e tantos outros filósofos que, felizmente, sempre se intrometem nos meus pensamentos, até nos mais banais. Resultado: eu não consigo mais relaxar em uma conversa com ela. Não porque eu tenha que cuidar para não falar besteira, mas, ao contrário, para que eu não deixe de falar besteira e comece a fazer relações intelectualisadas.

Eu era adolescente na década de 1980, e, à época, ser “Nerd” (pessoa que exerce intensas atividades intelectuais) causava embaraço, tanto que eles se confinavam em grupos bem afastados da galera “descolada”. Para escapar da “nerdice”, tinha-se de ser ou das artes, ou dos esportes, ou ainda ser punk. Porém, durante as décadas de 1990 e 2000, a coisa mudou. Os “Nerds” passaram a ser “cool”. Doutores em História e físicos/matemáticos passaram a ser heróis de Hollywood e de seriados de TV. “The Big Bang Theory” é a vingança dos “Nerds”!

Quando a minha amiga pediu, mutatis mutandis, para eu não ser “Nerd”, é como se estivesse me convidando para uma amizade “old school”, ao velho estilo 1980. Pedido que, no entanto, eu estou tentando aceitar, pois, ironia do destino, a nossa amizade começou justamente naquela época. Por enquanto, enquanto eu não me desilumino, fico com a boa tirada de um outro amigo meu, filósofo, que, quando ouve alguém dizer que “pessoas que estudam filosofia se tornam chatas”, ironicamente responde: “É verdade. Porém, pior ainda é quem é chato sem estudar nada”.

Se depender da humanidade…

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Se depender somente da humanidade, ela está perdida. O que todavia falta para esse fato ser tácito é apenas o abandono da alienação com a qual a própria humanidade se distancia dele. Decadência econômica, política, social, moral, ecológica etc., acossam-nos cada vez mais gravemente. Porém, em resposta imediata, fugimos dessas ameaçadoras realidades, pateticamente. Basta um punhado de dinheiro aqui, uma ideologiazinha tranquilizadora lá, uma inócua ética hashtaguica acolá, a reciclagem de apenas 1% do lixo e do esgoto que produzimos, como no Rio de Janeiro, e voilà: a perdição que produzimos, simplesmente por existirmos, parece suficientemente distanciada.

Da perspectiva da finitude da vida de um ser humano, até faz sentido se alienar do beco sem saída no qual a espécie humana está metida. “Tanto faz se a humanidade está condenada a desaparecer do universo por sua própria conta; se o curto tempo que em eu viver for suficientemente preenchido com excessos e confortos, dane-se a humanidade”. Esse é o vergonhoso subtexto da maioria das pessoas. Eis o que a modernidade, e o seu objeto excelente, o sujeito burguês, legaram-nos: o mais imbatível egoísmo. Agora, se, por um lado, é uma infelicidade a humanidade solapar-se a si mesma, por outro, contudo, se somente isso for capaz de dar cabo desse sujeito insaciável & insustentável que de certa forma cada um de nós já é – ativa ou passivamente -, temos aí uma felicidade, pelo menos de qualquer ponto de vista não-humano.

É preciso muita ignorância, ou pelo menos uma imensa capacidade de alienação para seguir acreditando que a humanidade vale a pena. Uma ideia dessas, com efeito, exige um esforço tremendo. E por que não dizer: humano? Ora, achar que sinfonias e filosofias dignificam a existência humana ao lado da sempiterna exploração do homem pelo homem; que ciência e tecnologia são de extrema pertinência, mesmo que dentre seus produtos figurem genocídios e a destruição da natureza; que o hedonismo é mais importante do que o altruísmo; tudo isso é o que senão a humanidade destruindo a si própria, não obstante mergulhada nos seus próprios e insustentáveis contos de fada?

Cada vez mais humanidade grita nos nossos ouvidos que pessimismo é sinônimo de realismo. De um lado, temos cadáveres de bebês refugiados encalhados em praias do Mar Mediterrâneo; populações inteiras de vilas africanas ou cidades árabes sendo exterminadas; favelas insalubres maiores do que muitas capitais mundiais brotando pela Ásia e pela América Latina; uma primavera invernal de atentados terroristas pelo Primeiro Mundo; chacinas bárbaras em presídios do Terceiro Mundo; e, de outro lado, todos aqueles que não são diretamente afetados por tais mazelas não se envergonham nem um pouco de seguirem lotando shoppings centers, mesas de bar, viagens de turismo a Paris ou Indonésia etc.

Justiça seja feita: somos afetados pelas desumanidades que nos cercam, afinal, embora egoístas, demasiadamente egoístas, a grande maioria de nós não é psicopata. Até somos avassalados com o pior do nosso mundo. Todavia, é como se a nossa percepção da realidade se desse como os telejornais, nos quais uma notícia sobre uma barbárie tremenda é abruptamente interrompida, seja pela previsão do tempo, seja por uma entrevista com o artista da moda, seja ainda pelo comercial do nosso próximo iPhone. Apesar de, hoje em dia, estarmos inescapavelmente conectados com o que acontece no mundo e com o mundo, essa conexão não obstante é sempre fugazmente episódica. O contato com a menor gravidade já é o convite para passarmosao nosso próximo alienante hedonismo individual. Fizemos de nossas vidas sequências informacionais anódinas como as dos telenoticiários? Quem dera! Antes, fizemo-los a nossa imagem e semelhança.

Ao observar o andar da carroça humana, um realismo que se preze não pode deixar de concluir que estamos irrecuperavelmente perdidos. A catástrofe ecológica da qual já somos vítimas é, com certeza, o fato do qual seja mais difícil nos alienarmos – muito embora o façamos cegamente enquanto nos comprazemos, por exemplo, com o frescor dos nossos aparelhos de ar-condicionado alimentados por energia de usinas termelétricas que queimam carvão e o único ar que temos para respirar. Anos atrás, eu me sentia ingênuo, pouco criativo, ao cogitar que a melhor coisa para a natureza, enfim, para o universo, era a espécie humana ser extinta de vez. Atualmente… aquela ingenuidade pouco imaginativa se tornou certeza.

“Que graça teria o universo sem a humanidade?” – muitos podem perguntar. Entrementes, fazendo o esforço banal de imaginar o que responderiam, por exemplo, as abelhas, as baleias, os corais, todos em extinção por nossa causa, certamente ouviríamos deles que o universo sorriria novamente com o desaparecimento da espécie humana. Se fosse possível equiparar os afetos humanos com os das demais espécies, a humanidade ganharia a medalha de ouro de espécie mais odiada do planeta terra. Sua incapacidade de estabelecer relações ecológicas sustentáveis a elegem com larga vantagem. Também pudera, sequer conseguimos tecer relações humanas que o sejam.

Contra o realismo = pessimismo das linhas até aqui, temos, de um lado, a esperança de que a humanidade encontre um outro paradigma existencial capaz de mantê-la no universo. O problema de qualquer esperança, contudo, é que, como bem ressaltou o filósofo Espinosa, a esperança é o mais impotente dos afetos humanos. Raiva, ódio, desespero, em troca, seriam minimamente mais virtuosos, porque mais mobilizadores. De outro lado, há a fé de que a ciência humana será capaz de solucionar os problemas que ela mesma, e a humanidade junto com ela, causam. No entanto, não estariam os crentes na ciência esperando por uma fórmula alquímica mágica que fizesse do problema a sua própria solução?

O Slavoj Žižek propõe uma paradoxal ação à humanidade frente a catástrofe ecológica: a não-ação. Esperança, então? Não exatamente. O que o filósofo quer dizer é que não há nada que devamos fazer para salvar o mundo, pois qualquer coisa que façamos será tão ou mais problemática do que as que já fazemos. Agora, “fazer nada” de modo algum pode significar seguirmos destruindo uns aos outros e à natureza sem nenhuma remediação. “Fazer nada”, levado à radicalidade, seria algo como fazer nada de humano; abandonarmos a humanidade de vez; destruirmos o nosso modo de existir no universo sem, todavia, deixarmos de existir. Em suma: desaparecermos estrategicamente com a humanidade antes que os animais que somos – e tantos outros – desapareçam por conta dela.

Involução abrupta e total? E por acaso não seria essa a maior dificuldade para a humanidade; algo que, no final das contas, custaria tão ou mais caro que desaparecer pelo excesso de evolução? O melhor cálculo, todavia, é o seguinte: insistindo na evolução que nos ameaça, a humanidade e os macacos eretos que a encarnam desaparecerão ambos, levando consigo uma pá de outras espécies; ao passo que, involuindo – subversivamente? -, padecerá a humanidade, mas não os macacos bípedes que a fazer ser.

Há aquela teoria científica que diz que o universo se mantém expandindo-se e contraindo-se ciclicamente – do Big Bang ao Big Crunch, deste àquele, e assim por diante. Não estaria aí a possibilidade de a humanidade permanecer na existência, isto é, involuindo depois de evoluir; para então evoluir novamente; retornando mais uma vez à involução; ad aeternum? Outra teoria científica, a do Big Rip, diz que o universo só se expandirá a partir do Big Bang, e a tal ponto que os átomos se desintegrarão, e, finalmente, o próprio universo. E se depender da humanidade… essa teoria seguirá sendo a nossa prática, até ser impraticável qualquer outra.

Bestas sacrificiais

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“Não pense em crise. Trabalhe!”, diz a classe dominante golpista aos brasileiros. O que querem que engulamos a seco, contudo, é uma dura verdade: o sacrifício que estão (re)impondo ao povo não tem nada a ver com crise mesmo, como se se tratasse de uma dificuldade presente a ser superada. Querem apenas a radicalização da velha realidade sacrificial na qual a classe dominada trabalha única e exclusivamente para enriquecer e privilegiar ainda mais os já muito ricos e privilegiados. A novidade está em que, hoje, isso se dá sobre as cinzas da utopia de “igualdade social” que certas ideologias de esquerda tentaram tornar reais.

Entretanto, para quem ainda se recusa a aceitar essa desigual realidade, na qual umas pessoas são sacrificadas em função de outras (os pobres, em prol dos ricos; os proletários, em benefício dos burgueses etc.); para quem acha que, se as coisas infelizmente ainda são assim, essa história deve ser mudada, isto é, que devemos evoluir socialmente; proponho atravessar uma ideia do liberalíssimo filósofo alemão Immanuel Kant, presente no seu texto “Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita”, que diz o seguinte: a evolução é algo que concerne somente à espécie, e não aos seus indivíduos.

A hipótese do filósofo, obviamente, engloba todos os indivíduos de uma espécie. No caso da humana, indiscriminadamente ricos e pobres, proletários e burgueses, dominados e dominantes, etc. Para Kant, todos somos indivíduos de menor, insignignificante importância a construir, sacrificialmente, com nosso sangue, vida e histórias particulares, uma história muito maior, a da espécie humana, cuja finalidade, no entanto, desconhecemos, seja por nossa individual finitude temporal, seja principalmente por nossa ignorância em respeito ao plano da natureza que a tudo e a todos engloba.

Agora, se todos nós, humanos, somos nada mais que vítimas sacrificiais da “História Universal”, por que, além disso, a maioria de nós, a classe dominada, ainda é sacrificada pela minoria, a classe dominante? Por que o sobressacrifício? Será por que essa minoria até aqui dominante pensa que é a protagonista da grande História Universal, em função da qual todo resto – a classe dominada – deve ser sacrificada? Muito provavelmente sim. Todavia, mutatis mutandis, não foi exatamente isso que fez Marx ao eleger o proletariado enquanto o agente excelente e personagem principal da história humana, na qual era a burguesia a besta a ser sacrificada?

Mesmo que, como disse Kant, a grande história do universo não seja a nossa, mas a da natureza, ao menos podemos ler nesse subcapítulo confuso que somos que todos nós, ricos e pobres, dominantes e dominados etc., queremos uma única coisa: ser o centro em torno do qual a verdadeira história se dá. O problema é que, para tal, uns tenham de ser sacrificados; talvez para que o restante possa se alienar da verdade mais cruel, qual seja, que todos seremos sacrificados em função da história universal. Sacrificar alguns promete – todavia mentirosamente – espécie de coprotagonismo na grande história do universo.

Dentro dessa lógica, se, além do inalienável sacrifício ao qual todos estamos sujeitos dentro da História Universal, nossa pequena e impertinente glória subcapitular é sacrificarmos uns aos outros, cabe a pergunta: é melhor que a minoria (os ricos, a burguesia, etc.) seja sacrificada em função da maioria (os pobres, o proletariado, etc.), ou o contrário? Porventura não está nessa resposta a diferença entre esquerda e direita? Se sim, não seria a direita o agente anti-histórico por natureza, uma vez que seu intuito é manter as coisas como sempre foram, isto é, a minoria dominando a maioria? E a esquerda, por sua vez, cujo objetivo é mudar esse fato, não é, como diria Marx, o único agente histórico dentro da pequena história humana?

Ora, o objetivo de uma verdadeira esquerda deve ser o fim da sociedade de classes, isto é, o fim da dominação de uns por outros. Só assim será possível evoluirmos a uma realidade social onde nenhumas pessoas sacrifiquem outras, uma sociedade na qual nem mesmo o proletariado domine a burguesia, mas haja somente povo. E uma realidade na qual todos se “sacrifiquem”, melhor dizendo, sejam “sacrificados” igualmente já não é razão suficiente para que a “história” da direita seja sacrificada em função “história” da esquerda.

Se, como dito antes, a direita não quer fazer história, mas apenas manter as coisas como sempre foram, isto é, manter a dominação da minoria sobre a maioria, o desejo da esquerda de acabar com a sociedade de classes, de pôr fim à dominação de uns por outros, para que doravante haja somente uma sociedade igualitária, quer por sua vez também espécie de fim da história. A diferença entre elas, entretanto, está precisamente em um único e decisivo passo, qual seja, o fim da dominação de classe: a direita, evitando com unhas e dentes essa evolução; e a esquerda, fazendo o que pode para realizá-la.

Kant foi trazido aqui para lembrar-nos de que uma existência humana completamente livre de sacrifícios é impossível, uma vez que a história principal na qual estamos temporariamente imersos não é a nossa, mas a da natureza; em função da qual todos os indivíduos são inescapavelmente sacrificados. A presença de Marx, em troca, é fundamental porque nos informa que esse sacrifício pode e deve ser mitigado, mas isso somente se for igualitariamente democratizado, a ponto de as pessoas não sacrificarem-se umas às outras dentro do grande espetáculo sacrificial que é a História Universal.

Marx propõe a melhor “política de redução de danos” ao capítulo humano dentro da História Universal kantiana. Para os que acham que a dominação de uns sobre outros é capítulo que deve ser superado, essa é a política. Já àqueles que, em troca, impõem à maioria das pessoas que apenas trabalhe para privilegiá-los mais ainda, e, ademais, sem pensar que isso se trata da mais candente crise humana, a solução marxista é uma ameaça absoluta. E isso porque faz com que o inevitável sacrifício humano dentro da História Universal kantiana seja de fato comum a todos, e não recrudescido à maioria para que à minoria ele seja amenizado. Só assim o fatal sacrifício humano dentro da História Universal será menos sacrificial. Sacrificados, sim, mas pelo universo; não bestas sacrificiais de nós mesmos.

Velho, novo e os anos.

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Na aproximação de um Ano Novo, geralmente nos atemos mais ao velho do que ao fenômeno do “novo” propriamente dito. Por não antecipar nada de si, o novo, antes de ser, ganha corpo apenas através de elementos não-novos; sempre se apresenta na forma de um pot-pourri de velharias que, por conta de uma inusitada combinação, mascara a sobrevivência do velho.

Despido de qualquer “veste” passada, como poderia o novo ser pensado, imaginado? Como seria pensar em algo que nunca foi; que nunca aconteceu; que jamais existiu? A imensa e habitual superfície do velho profana a profundidade indeterminada do novo. Nossa pré-experiência do novo é corrompedora: para já fruí-la, projetamo-la sobre a lousa do não-novo.

Seria o novo por ventura somente aquilo de que não podemos falar, nem, por conseguinte, desejar que seja feliz? Se, parafraseando Wittgenstein acerca da linguagem e do mundo, o limite do novo é o limite do velho, podemos dizer que sim. Resta-nos, portanto, viver o novo à margem de qualquer pensamento, esperança, expectativa, pois estas atitudes sempre carregam passado consigo. O conhecimento do novo só pode se dar retrospectivamente.

Sobre o Ano Novo que esperamos, geralmente é o ano velho levado novo adentro. Todavia, um velho esperançosamente melhorado. A esperança que antecede o ano novo, ao modo de produzi-lo, corrompe sua novidade: é o velho roto estuprando o novo virgem.

No entanto, é com os pés no derradeiro de um ano que temos a impressão de que ele é velho. Um ano antes, festejávamos esse ano velho enquanto novinho-em-folha. Contudo, se um ano é novo, todo ele o é. Ou, do contrário, aquilo que chamamos “ano novo” são apenas os seus primeiros meses. No entanto, envelhecemos de antemão a novidade de cada ano novo em função do próximo.

A novidade que realmente nos espera nos anos que se iniciam é o desconhecido ele mesmo; aquilo de que não temos ideia. E como a novidade pode ser angustiante, fazemos dela espécie de Frankenstein, cuja forma nova esconde velhos conteúdos. Assim temos uma pós-verdadeira sensação de que o novo será o velho manipulado conforme nossos velhos desejos.

Chamamos de “velho” o ano que não tem mais como comportar a realização dos nossos desejos, e em oposição a ele, de “novo” o que pode fazê-lo. Entretanto, a partir de que momento do ano passamos a chamá-lo de velho? Em novembro? Ou é nos últimos dias de dezembro que tal senilidade se apresenta? Na verdade, a velhice de cada ano é absolutamente pós-verdadeira, subjetiva.

E no instante em que cruzamos a linha que separa o ano velho do novo, não obstante fincamos os pés em um ano demasiado parecido com o anterior, mas de forma alguma naquele “ano novo” pressuposto. Também pudera, com tanta velharia trazida nas costas por conta de esperanças e expectativas, o neonato ano novo não tem como mostrar sua novidade!

Todavia, a novidade subsiste em cada ano que se inicia. Para vivê-la, não podemos é esperá-la, pois o ano só será novo se nos abstivermos de novificá-lo previamente, de esperar novidade dele. Devemos inclusive levar esse desespero ao limite e iniciar qualquer juízo ou desejo acerca do ano novo não antes dele acontecer, mas somente no seu derradeiro. Do ano novo que virá, nada deve ser dito para não envelhecê-lo de antemão.

A Revolução na era dos “pós”, ou… acho que vi um proletariozinho!

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Hoje em dia, as esquerdas estão miseravelmente enfraquecidas. A revolução socialista que elas deveriam empreender, parece mais utópica que nunca. Culpar a vigorosa rea(scen)ção das direitas, no entanto, só aumenta a miséria das esquerdas, por mais que a fraqueza destas interesse àquelas. O atual tsunami reacionário, ao contrário, deveria estimular mais os seus antagonistas de esquerda. Contudo, a presença deles na pecha política mais parece ausência.

Mas as esquerdas não estão exatamente ausentes… Elas andam por aí, perambulando pelos parlatórios do mundo, todavia em modo zumbi. Zumbis que sobrevivem de hashtags. Que vida real, entretanto, está faltando às esquerdas para que, em vez de apenas reagirem pateticamente feito mortas-vivas, ajam virtuosamente contra a direita? Quem ou o que é a vida das esquerdas?

Marxianamente falando, a nossa sociedade capitalista é composta pela luta antagônica entre burguesia e proletariado. Estes, organizados politicamente, são a direita e esquerda, respectivamente. Assim como a vida da direita pulsa no peito da burguesia, assim também a vida da esquerda pulsa no peito do proletário – ou pelo menos deveria. Se hoje as esquerdas estão, como dito acima, zumbis, isso se deve a alguma “parada cardíaca” do próprio proletariado. Antes de desfibrilá-lo, talvez devamos recordar quem  ele é.

Dito de modo comezinho, o proletário é um trabalhador. Uma definição mais sofisticada, todavia, dirá que o proletário é o trabalhador que sabe que é ele o agente da sua revolução social. Melhor ainda é a distinção que Marx faz entre a classe trabalhadora, uma categoria social objetiva oposta à burguesia, e o proletariado, o portador de uma posição subjetiva que corporifica a singularidade da estrutura social como classe universal.

Agora, se, por um lado, o agente da revolução socialista é o trabalhador conscientizado de sua singularidade, e, por outro, há trabalhadores pelo mundo todo, a ausência pela qual estávamos procurando só pode ser a da consciência proletária nos trabalhadores. Existem trabalhadores; sobram razões para a revolução; o que falta é a conscientização política deles; sua proletarização. O que está impedindo esse processo?

Dando um passo atrás, há espécie de desidentificação, de preconceito dos sujeitos “pós-modernos” com a condição de trabalhadores. A jocosidade do filósofo Slavoj Žižek coloca isso em uma frase provocativa: “Na perspectiva ideológica de hoje, o próprio trabalho, não o sexo, aparece como o locus de indecência obscena a ser escondido do olhar do público”. E se o próprio trabalho é algo vergonhoso, imagine-se a proletarização.

As novas formas do trabalho na era chamada pós-industrial dão oportunidade para os trabalhadores não mais se reconhecerem como tais. Designers e programadores computacionais, personal trainers e hair stylists, doutores acadêmicos e curadores de arte, entre tantas outras novas modalidades de trabalho, resistem em se subjetivarem como trabalhadores, mesmo que a maioria deles tenha jornadas de trabalho extenuantes e seja explora como operários de fábrica.

E qual o preço que pagam por isso? Em primeiro lugar, o de sua despolitização dentro do verdadeiro antagonismo social, pois sem a inicial identificação de quem trabalha com a sua condição de trabalhador; em seguida com a de proletário; e finalmente com a de uma força de esquerda que represente seus interesses, não há potência política que faça frente a direita. Esta, ao contrário, é politizada até os dentes, e isso porque o burguês se identifica, mais ainda, orgulha-se de sua condição social.

Ao contrário do que os “pós-trabalhadores” de hoje creem, o desinvestimento no papel de trabalhador, mais ainda no de proletário, não lhes oferece mais ou nova liberdade. Em troca, esconde deles a velha sujeição de que nunca se libertaram. Nas palavras dramáticas de Žižek, “a tradição na qual o trabalho é subterrâneo, sendo realizado em cavernas escuras, culmina em nossos dias na ‘invisibilidade’ dos milhões de trabalhadores anônimos que suam em fábricas do Terceiro Mundo”.

Com efeito, a pós-modernidade pós-verdadeira tagarela histericamente que, “a classe trabalhadora está desaparecendo”, mesmo que, adverte Žižek, essa classe seja facilmente identificável no mundo de mercadorias que consumimos. Na letra do autor, “tudo o que temos de fazer é olhar a etiquetazinha que diz: ‘Made in… (China, Indonésia, Bangladesh, Guatemala)’A China merece inteiramente a alcunha de ‘Estado de trabalhadores’: é o estado da classe trabalhadora para o capital norte-americano”, por exemplo.

O trabalho imaterial virtual dos nossos dias mente muito bem que não é trabalho. No entanto, por trás de toda mentira há uma verdade foracluída. E o que se esconde por trás dessa pós-verdade pós-moderna pós-industrial? Que os “pós-trabalhadores virtuais” do Primeiro Mundo, no final das contas, pertencem à mesma classe que a dos milhões de trabalhadores “reais” das fábricas do Terceiro Mundo. A diferença é que aqueles são alienados disso, enquanto estes, não. Os “pós-trabalhadores”, da perspectiva política, estão muito aquém dos proletários. Doce paradoxo: o “pós” que na verdade é “pré”.

Se muitos trabalhadores não se reconhecem como tal, temos aí uma “divisão de classe” dentro da mesma classe, ao molde da velha divisão burguesa entre classes média e baixa, cuja estratégia obscena é borrar a substantiva e cruel divisão social entre classes dominante e dominada. Assim como a classe média, os “pós-trabalhadores” apenas se alienam do fato concreto de que são classe dominada.

E quando a classe singular que é a razão de ser da esquerda separa-se de si mesma, cinde-se em duas, criando um novo e impertinente antagonismo dentro do velho, ambas as partes cindidas perdem potência política diante do real oponente social, a classe dominante, que com o oponente dispersado apenas se fortalece. A esquerda, nessa guerra interna entre suas próprias células, algo como um câncer político, enquanto não morre, sobrevive feito zumbi.

Nesse pseudoantagonismo entre “pós-trabalhadores” e trabalhadores “reais”, a desvalorização do trabalho humano real resulta em um real trabalho de desvalorização da própria humanidade. Visto que o objetivo da revolução socialista é eliminar a sociedade de classes, não restando nem mesmo a classe trabalhadora no final, mas apenas povo, a resistência à proletarização, e em suma à revolução é, a priori, espécie de ojeriza à horizontalidade entre as pessoas. Que a classe dominante pense assim, vá lá. Agora, a dominada, o que ganha com isso?

O trabalhador que não se reconhece como tal, é esvaziado de sua substância social, algo como o a cerveja sem álcool, o chocolate sem açúcar, o leite sem gordura – para usar a recorrente provocação de Žižek. Mais grave ainda, o trabalhador que não se reconhecer como proletário é como o sujeito que faz um pacto com o diabo e em seguida se esquece de que o preço a ser pago é maior do que o benefício; que será cobrado impreterivelmente – e em se tratando de um diabo capitalista, com juros impagáveis!

Žižek critica a sociedade “pós-moderna” como aquela na qual “compro meu preparo físico indo a academias de ginástica; compro minha iluminação espiritual ao me matricular em cursos de meditação transcendental”, etc.. Podemos na sequência criticar a sociedade “pós-industrial” e a ideologia do “pós-trabalho” como aquelas nas quais “compra-se” a experiência “pós-proletária” ao se alienar deliberadamente da potência política singular que a condição de trabalhador confere.

Novamente: o que o “pós-trabalhador” perde com isso? O filósofo Claude Lefort relembra que o resultado de 150 anos de luta dos trabalhadores incorporou na sociedade demandas que eram ridicularizadas pela direita há cem anos, tais como o sufrágio universal, a educação gratuita, o sistema de saúde público, a assistência aos idosos, as restrições ao trabalho infantil, entre tantas outras. A própria participação democrática popular de hoje, aponta Lefort, é resultado da luta da classe trabalhadora. Ou alguém acha que é dádiva da classe burguesa dominante?

Por isso é fundamental o trabalhador se reconhecer como tal. Só assim descobre a força política que tem, mas isso só ao se proletarizar verdadeiramente; ao engrossar com sua consciência social o sangue da esquerda. “A tarefa urgente”, insiste Žižek, “é, mais uma vez, repetir a ‘crítica da economia política’ de Marx, sem sucumbir à tentação das múltiplas ideologias que há nas sociedades pós-industriais”. Quem trabalha é trabalhador; e para não ser eternamente explorado, deve se proletarizar; só assim haverá força política para lutar, quiçá vencer os seus opressores.

Žižek repete Hegel dizendo que “todos os eventos históricos têm de acontecer duas vezes”. Talvez seja a hora de os trabalhadores se proletarizarem novamente, ou seja, repolitizarem-se. Do contrário, a luta política é esquecida, e no lugar dela vinga não o vazio, mas uma “pós-política” burra onde a economia domina, com o “pós-proletário” “votando” cotidianamente na classe que o domina ao comprar seus iPhones, TVs de plasma, conexões com a internet, passagens aéreas à Machu Picchu, etc.

A histeria dos “pós” mantém não só os trabalhadores, mas a esquerda toda numa “pós-vida”: zumbi. Mas a dimensão política do proletariado não está morta, apenas em coma. Para reanimá-la, insiste Žižek, “a primeira coisa a se fazer é aprender a decodificar o modo pelo qual o conflito básico continua a funcionar como ponto de referência secreto dos antagonismos aparentemente ‘apolíticos’”. É essa realidade apagada, travestida, que, se esclarecida, assumida, pode fazer com que o trabalhador se reconheça como tal, encarne o seu papel social singular de proletário, constitua uma esquerda virtuosa, e seja o agente de sua própria revolução.

Por isso, no lugar de os trabalhadores, cindidos em “pós-trabalhadores” e trabalhadores “reais”, desaparecerem com sua própria classe, e inclusive como coloca Žižek, “em vez de procurarmos a classe trabalhadora que desaparece, deveríamos, em vez disso, perguntar: hoje em dia, quem ocupa, quem consegue tornar subjetiva, a posição de proletário?” Essa potencialidade, sem dúvida, está em todos aqueles que, independentemente das pós-verdades que digam a si mesmos, não se enquadrem na classe dominante.

Como, entretanto, saber isso hoje em dia, tempos nos quais ser dono de um restaurante ou ator de novela, por exemplo, leva muitos a crerem que são classe dominante? Uma simples pergunta basta: eu e os meus iguais podemos mudar a realidade social conforme os nossos anseios? Se a resposta for não, violà, você é classe dominada; trabalha para a classe dominante. Todavia, será menos dominado à medida que se proletarizar.

Apesar de subterranizados ideologicamente, trabalhadores com potencial político cobrem o mundo. Só não se reconhecem como tal por conta da forte neblina amorfizante do “capitalismo pós-industrial”. No entanto, mesmo que ainda preso na gaiola da classe dominante, qualquer trabalhador pode procurar ao seu redor e, parafraseando o Piu-piu quando vê o Frajola, dizer a si mesmo: “Acho que vi um proletariozinho!”. Só que em vez de temê-lo, ou achar que se trata de um fantasma do passado, junte-se a ele. O proletário é a realidade que permaneceu real em meio a tantos “pós” de realidade duvidosa.

Fazer história na era da Pós-história

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Vivemos em uma época na qual, como já disse Marx no Manifesto Comunista, “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. E a história não escapa a esse destino. Até mesmo o Holocausto, historicizado como o maior crime de que a humanidade foi capaz, pouco mais de meio século depois começa ter essa sua gravidade desintegrada. Basta ver a atual ascensão apologética do neonazismo no mundo. Estamos condenados a ser, como se diz, vítimas das circunstâncias, ou haverá espaço para sermos novamente senhores da história?

Nossa época não só evapora a história consolidada, como também impede que se historicize os novos acontecimentos. Um exemplo disso é o golpe de estado que se deu no Brasil de 2016, que ao mesmo tempo e irredutivelmente significa, para uns, uma “Ponte para o Futuro”; para outros, uma “pinguela” do presente a ele mesmo; e para outros ainda, um tobogã indigesto para o passado. Interpretações incompatíveis que não constituem história, apenas engrossam o falatório perspectivista pós-moderno cujo vício obsceno, contudo, é manter indefinida a univocidade dos fatos.

Superar a impossibilidade de se historicizar fenômenos presentes, portanto, deve trilhar um caminho menos relativista; quiçá nada relativista. Comecemos, portanto, pelo que hoje em dia é universalmente inquestionável: o império do capital que a tudo e a todos engloba e desmancha inequivocamente. A dificuldade de mantermos sólida a história, bem como a de a fazermos está, em primeiro lugar, no próprio capitalismo. Alguém lembra do que disse Francis Fukuyama na década de 1980, que “o capitalismo global é o fim da história”?

Como historicizar justamente em uma era que sustenta ter superado a história; ou, em termos mais precisos, ser pós-histórica? Entretanto, em que sentido o capitalismo é pós-histórico? Slavoj Žižek, em sua obra “Às portas da revolução”, responde essa pergunta dizendo que o capitalismo é “um movimento que nunca atinge a completude … e que sempre posterga o acerto de contas final”. Ou seja, não faz história; apenas repete a si mesmo; leva indefinidamente adiante o presente no qual existe, carregando inconclusivamente consigo todo resto.

A fórmula capitalista par excellence, D-M-D (Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro) exemplifica muito bem a pós-historicidade genética do capital. Formuladas capitalisticamente, não são as muitas e diferentes coisas, e até mesmo os fatos, que são intermediados pelo dinheiro. A função deles, e de tudo o que se possa imaginar, ao contrário, é apenas intermediar o movimento do capital, que é, e deve ser o início e o fim de todas as “histórias”. O que surge com o capitalismo, portanto, é sempre e apenas mais do mesmo. E esse excesso de si atende pelo nome de mais-valia: a mudança apenas quantitativa daquilo que deu origem ao processo, qual seja, o próprio capital. E história do mesmo é tudo menos história.

O nó que impede os fenômenos de serem historicizados nessa conjuntura pós-histórica imposta pelo capitalismo global se forma porque, diante da voracidade do capital, aponta Žižek, “o presente é vivenciado como uma confusa sucessão de fragmentos que se evaporam rapidamente de nossa memória”. Novamente o Marx do Manifesto: “tudo o que é sólido se desmancha no ar”.

“O problema de nossa era pós-histórica”, prossegue Žižek, “não é que não conseguimos nos lembrar do passado … mas sim que não conseguimos nos recordar do próprio presente – não conseguimos historicizá-lo, narrá-lo apropriadamente”. Em relação a qualquer fenômeno, incontáveis causas podem ser elencadas e articuladas de várias maneiras; pode-se investir inclusive o passado inteiro. Não obstante, é o presente na era do capital que não dá suporte a esse tipo de trabalho, que, afinal de contas, é o da história. Desmancha-o! O paradigma capitalista mantém sólido somente a si mesmo.

De modo que a única história que, sem erro, pode ser feita dentro do capitalismo é a seguinte: as causas dos fenômenos se devem às necessidades do capital porque as suas consequências devem satisfazer as necessidades do capital. Simples e solipsista assim! A fórmula mágica do capitalismo, D-M-D, onde o segundo “D” é o mesmo que o primeiro, todavia acrescido de uma certa mais-valia, mutatis mutandis, é a mesma do pós-historicismo. Adaptada ela fica assim: C-F-C (Capital-Fenômeno-Capital), com o capitalismo, obviamente, mais-valorizando-se através dos fenômenos. Entretanto, desvalorizando-os, desmanchando-os.

Como então superar o pós-historicismo estrutural da era capitalista que, se a priori impede que se constitua história, consequentemente furta a possibilidade de que ela seja revolucionada? Devemo resistir e historicizar mesmo assim, malgrado o capitalismo? Žižek, contudo, adverte: “não devemos subestimar a capacidade que o capitalismo tem de colonizar domínios que lhe opõe resistência”. A armadilha de se fazer história no domínio do pós-histórico é que podemos facilmente terminar com histórias que explicam mais os próprios “historiadores” do que os fatos objetivos de que inicialmente pretenderam tratar. E esse ardil, não nos iludamos, é o próprio pós-historicismo.

Žižek, no entanto, aponta um caminho promissor para se driblar a impossibilidade histórica que o capitalismo global impõe, lembrando da hegeliana máxima antievolucionista de Marx, “a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”. Com ela, o autor pretende reavivar a ideia de que história se faz, não exatamente do presente para o passado, como se se tratasse simplesmente de uma cronologia retrospectiva, mas, antes, das formas mais evoluídas às formas menos evoluídas. Retrospectivamente, sim. Mas de modo lógico; e não cronológico.

E uma vez que, como descreve Žižek, vivemos na era do capitalismo global digital virtual pós-industrial, ou seja, a sua forma mais evoluída, temos nas mãos, portanto, a forma perfeita sobre a qual aplicar a chave lógica e libertar a possibilidade de se fazer história trancada pelo capitalismo global. A partir desse momento, no entanto, o filósofo reaciona a teoria marxista e a pragmática leninista, bem como aciona as suas psicanálise cinematográfica e filosofia anedótica para seguir lidando com a questão.

No que eu lamento ser um afastamento pós-moderno do problema, entretanto, Žižek relembra de uma campanha publicitária de uma selftrade cujo anúncio trazia a imagem da foice e o martelo comunistas feitos em ouro e cravejados de diamantes, encimando o pós-verdadeiro slogan: “E se todo mundo lucrasse com o mercado de ações?”. Sua crítica jocosa à vilania capitalista, cuja pós-historicidade visa justamente apagar, desmanchar a verdadeira história, qual seja, que o capitalismo existe somente se cada vez menos gente lucrar, deu-me, não obstante, a pista da trilha que, creio, o filósofo esloveno deveria ter seguido.

A metafísica de publicitário com a qual Žižek se ocupou, sugeriu-me que, em vez de nos voltarmos contra o grilhão pós-histórico próprio do capitalismo, devemos, em troca, levá-lo absolutamente a sério, mais do que o próprio capitalismo quer que o façamos. E levar o capitalismo a sério é começar pela sua fórmula essencial: D-M-D. Todavia, como o objetivo aqui é a superação do seu pós-historicismo, prosseguiremos mediante a adaptação que dela fizemos: C-F-C (Capitalismo-Fenômeno-Capitalismo).

Ora, se a única “história” que é possível fazer é a do repetitivo, porém mais-valorativo movimento capitalista, e se isso sintetiza tudo, talvez seja essa sintetização mesma a dificuldade que devamos enfrentar. Abramos então a fórmula pós-histórica C-F-C (Capitalismo-Fenômeno-Capitalismo). Seu modo extenso, portanto, é: C-F1-C-F2-C-F3-C … (Cap.-Fen.1-Cap.-Fen.2-Cap.-Fen.3-Capitalismo …).

A chave lógica a ser aplicada é a seguinte: abstrair estrategicamente o “C”, isto é, o capitalismo da sequência. O que resta é, em primeiro lugar, uma sequência de fatos objetivos – objetos concretos à história; e, em segundo e mais importante lugar, um excedente, precisamente a mais-valia que o “C” busca para si mesmo em cada etapa do processo. Excedente esse que, por articular os fatos determinados, afirma-os. Ainda que os desmanche imediata e necessariamente, solidifica-os nos ciclos aos quais eles pertencem. Eis o calcanhar de Aquiles do pós-histórico capitalista: não poder prescindir aqui, daquilo que, ali, ele desmancha.

Talvez só assim seja possível fazer história na era do pós-histórico: historicizando o que é desmanchado sistematicamente. Não a despeito do capitalismo, mas justamente através dele, usando-se subversivamente a sua própria lógica. Assim como não é a mera sequência cronológica de fenômenos que faz história, mas sim a articulação lógica deles, de modo que produzam sentido, assim também, na era do capital, não são os fenômenos em si mesmos que fazem história, mas o entroncamento deles em função da lógica da mais-valia capitalista, que a tudo concatena, inescapável e solidamente.

Feliz “Not All”

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Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil (29/08/2016

Tem um momento de extrema e simples verdade em meio à pós-verdadeirice vigarista de 2016. Quando foi vazado o áudio de uma conversa telefônica grampeada ilegalmente entre o ex-presidente Lula e a até então presidenta Dilma, um pouco antes de ela ser deposta, e na iminência de ele ser preso, Lula, ao saudar a companheira de partido e sucessora, disse: “Oi, querida. Tudo bem?”. Uma pausa de Dilma, tão grave quanto ela. Então ela responde: “Não, Lula, não tá, né? Não tá tudo bem não!”. Afirmação que, obviamente, o ex-metalúrgico não teve como negar. “É, é…” – concordou ele quase que envergonhado.

O subtexto da búlgara guerrilheira no seu repreensivo, porém curto silêncio provavelmente foi: “Que papo é esse de tudo bem, mané? Tu tá prestes a ser preso; eu, deposta; e o Brasil, a cair de novo nas mãos da velha oligarquia; e tu me vem com esse papo de tudo bem?”. E não é que ela estava certa? Pelo menos para ela as coisas não estavam bem, uma vez que, como se diz, não terminaram bem. Para Lula, as cartas ainda estão na mesa. Mas os prognósticos não são muito alentadores…

No ano da pós-verdade, pelo menos segundo o Dicionário Oxford, mas que, sem papas na língua, no Brasil foi o ano da pró-mentira-deslavada, a repreensão de Dilma à alienação retórica de Lula ao telefone foi um ponto fora da curva de grande valor. E talvez esse átimo de diálogo vazado da ex-presidenta tenha sido não somente prova da capacidade dela de enfrentar a realidade sem subterfúgios, como também extremamente simbólico em relação à postura dela diante daqueles que a golpearam.

Todos os que queriam que Dilma enfiasse goela abaixo do povo aquilo que depois do golpe chamou-se “Uma Ponte para o Futuro”, receberam dela algo como: “Não, não tá bom não… Vou tentar de outra forma”. Como é sabido, melhor dizendo, devidamente gravado e publicizado, os canalhas pró-golpe também queriam “estancar a sangria” das investigações e prisões que em breve beberia do sangue deles. Outrossim a presidenta disse um: “Não, não tá bom não… Prefiro que sangremos até o fim”.

Gata escaldada, mais ainda, torturada, Dilma devia saber muito bem com quem estava lidando. Ter lutado contra a Ditadura Militar no Brasil dos anos 1970 certamente a fez conhecer o deslimite e o cinismo de oponentes fascistas. Não obstante, na sua última “guerrilha” parlamentar ela resistiu, ao vivo e a cores, às investidas golpistas, mesmo ciente de que isso custaria o seu cargo. E isso porque, para ela, tem coisas que “não, não tá bom não”.

Nem mesmo o ex-presidente Lula, infinitamente mais popular e creditado que Dilma, consegue ser tão verdadeiro. Depois de ter sua fama devassada “como nunca antes nesse país”, agora ele quer ser presidente novamente. A pós-verdade mais triste da qual nem mesmo Lula consegue se livrar, contudo, é o velho discurso de que o melhor para o povo é voltar a comprar “seu carrinho; sua TV de plasma; sua máquina de lavar roupa”. Aqui é preciso engrossar o coro com Dilma: “Não, Lula. Não tá bom não!”.

Será que o vilipêndio que o povo e o país sofreram em 2016 não serviu para mostrar a Lula que priorizar o poder de compra do povo, em vez de educá-lo e empoderá-lo politicamente em primeiro e mais importante lugar, permitiu que, de um só golpe, o seu legado fosse arrasado, e, de quebra, que a elite golpista retornasse confortavelmente ao poder? Esse seu discurso populista agrada as massas. Sem dúvida repeti-lo dará votos à sua reeleição – isso, claro, se não for preso até lá. Agora, em se tratando do que realmente é melhor para o povo, “Não, Lula. Não tá bom não”.

Ok, Dilma deu seguimento à política consumista inaugurada por Lula. A diferença entre eles, contudo, é que ela não ficava fazendo apologia populista disso. Ela é uma burocrata fria. Mas, forçando a barra, sua “burrocracia” teve ao menos a virtude de impedir que ela caísse na falsa intelligentsia pós-verdadeira que inundou 2016 qual tsunami.

Se faltou à Dilma fazer a tão solicitada mea-culpa, isso ainda divide muito as opiniões. Agora, o que não deixa dúvida é que a guerrilheira sabe melhor do que qualquer um de seus pares aceitar publicamente quando as coisas não vão bem. Ah se Aécio Neves tivesse essa virtude!

Por isso, não tem como eu desejar um Feliz Natal à Dilma. Seria pós-verdadeiro demais de minha parte pretender que seja possível, para uma mulher, como se diz, tão pé-no-chão como ela, alienar-se completamente da tristeza que foi esse nosso ano e, de uma hora para outra, ter um Natal feliz. Desse modo, desejo a minha presidenta que seja feliz, mas… “not all”.

O Estado ideal de Platão e os reais estados desunidos do brasil

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Nesse momento, no qual grande parte dos brasileiros acha que o Estado não faz jus aos seus cidadãos, “A República” de Platão é mais que pertinente. Nela, o pai da filosofia faz o exercício de imaginar um Estado ideal, dizem as boas línguas, em resposta à decadência em que se encontrava a sua Atenas real. Uma das grandes virtudes do diálogo foi estabelecer que as qualidades do Estado são as qualidades dos indivíduos que o compõem. Esquecemo-nos, ou, antes, queremos esquecer que o Estado não é, nem nunca foi uma instituição cujas virtudes e vícios advenham de cima para baixo, dos governantes aos governados, mas, ao contrário, é o resultado da soma dos estados individuais de cada cidadão, que, entretanto, se tornam notórios, e sobretudo criticáveis apenas na figura do Estado?

Antes de prosseguir, peço licença à convenção que usa a palavra “Estado” com letra capital para distinguir o Estado moderno das unidades políticas, econômicas e sociais anteriores ao século XVIII, como por exemplo, as cidades-estado gregas. Doravante, “Estado” se referirá indiscriminadamente à unidade final da totalidade dos cidadãos, e “estado”, à condição de um indivíduo ou grupo deles dentro do Estado.

Diferença essencial entre o Estado ideal platônico e o nosso, contudo, é que aquele era o que, todavia anacronicamente, poderíamos chamar de comunista. O comum deveria imperar, fosse em relação à propriedade, fosse ainda em respeito a cônjuges e filhos. E isso porque a propriedade individual, segundo Platão, era o germe do mal a contaminar paulatinamente os cidadãos. E, consequentemente, o Estado, cujo objetivo não deveria ser outro que o bem-estar geral. Tão logo um homem começasse a ficar rico, adverte o filósofo, deveria mais que tudo exercitar as suas virtudes, pois estas seriam as primeiras a serem sepultados sob sua riqueza nascente; e por último, a virtude do Estado.

Um contemporâneo nosso mais reacionário que estivesse dialogando com Platão, certamente argumentaria em defesa da meritocracia. O filósofo, contudo, repetiria contra ele o seu argumento: o intuito de um Estado é o bem-estar geral, e não o bem particular. Além do que, um Estado no qual a competição entre seus indivíduos permitisse diferenciações econômicas, e consequentemente sociais, não seria um Estado, mas sim muitos estados, notoriamente antagônicos, em espécie de guerra interna. Havendo desigualdades sociais dentro do Estado, haverá tantos estados quantas forem essas desigualdades. E, conforme Platão, o Estado desigual internamente fatalmente ruirá sob o peso dos seus próprios antagonismos.

Podemos, hoje, imaginar um Estado nos moldes d’A República platônica? Para tal, precisaríamos necessariamente fazer o árduo exercício de desimaginar os antagonismos socioeconômicos, mui concretos nos nossos Estados modernos, entre os estados de riqueza, satisfação e liberdade dos famigerados 1% mais ricos, e os estados de pobreza, carência e opressão dos 99% restantes. “Tal homem, tal Estado”, reforça Platão. Um homem rico e poderoso é, a um só tempo, um homem e um estado; ao passo que um pobre e explorado, é outro e outro. Por isso, platonicamente, um Estado só pode ser chamado dessa forma quando todos os cidadãos gozarem de bem-estar.

Entretanto, para nós que achamos que o nosso Estado está aquém do que merecemos, não causa espécie alguma o esforço individual no sentido de um estado melhor apenas para nós mesmos e nossas famílias. Infelizmente, a ideia de um Estado bom para todos permanece apenas uma ideia. Na prática, contudo, o bem comum é sistematicamente preterido em benefício do bem privado. O problema dessa pragmática individualista é que ela não constitui nem verdadeiros cidadãos, nem um Estado propriamente dito, mas sim uma miríade de indivíduos egoístas e, por conseguinte, a mesma quantidade de estados contraditórios.

Parafraseando a máxima de Wittgenstein, “os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, para então intrometê-la na problemática platônica com a qual estamos lidando, poderíamos dizer que “os limites dos cidadãos significam os limites do seu Estado. Dentro dessa lógica, o Estado brasileiro só não ultrapassa o limite que tanto criticamos, qual seja, não ser um estado de bem-estar a todos os seus cidadãos, porque esse é o limite dos seus cidadãos – ou pelo menos o da maioria deles. Se isso parece falacioso, proponho que se imagine a resposta que teríamos se fizéssemos a seguinte pergunta à maioria dos brasileiros: o que você acha mais importante, o bem-estar geral ou o seu bem-estar individual?

Será que é necessário relembrarmos aqui banalidades individualistas e contrárias ao bem-estar geral, tais como estacionar o carro em vagas reservadas para deficientes físicos; consumir álcool e dirigir assim mesmo, burlando através de aplicativos a Lei Seca; sonegar imposto; lucrar uma bolada em algum investimento financeiro sem ter de derramar uma gota de suor enquanto milhões de concidadãos trabalham de sol a sol para não ganharem o suficiente sequer para alimentar os filhos; ou, como bem sintetizou o historiador pop Leando Karnal, “colar do colega durante a prova de ética”? Agindo assim, instituímos apenas estados, reais e de péssima qualidade aliás,mas de forma alguma o Estado que alhures idealizamos.

Seria bem mais corajoso, sem dizer minimamente justo com o Estado que deliberadamente criticamos, se nós, brasileiros, assumíssemos que, em primeiro lugar, não temos condições de produzir o Estado que pensamos merecer. Ainda somos uma colha malcozida de retalhos/estados egoístas, em conflito uns com os outros, incapazes de priorizar o bem-estar geral. Todavia, não nos privamos de exigir um Estado que cumpra essa tarefa independentemente de seus cidadãos. Por isso “A República” de Platão é fundamental nesse momento, pois lembra-nos de que as qualidades do Estado são as qualidades dos indivíduos que o compõem.

Resta saber, contudo, se há alguma verdade nesse desejo dos cidadãos brasileiros de que seu Estado seja realmente de qualidade, ou, antes, isso é somente uma mentira politicamente correta que contamos uns aos outros para encobrir a obscenidade de desejarmos, no final das contas, um estado bom apenas para nós mesmos, e que dane-se a totalidade. E se, para além de qualquer platonismo, qualquer comunismo (com ou sem aspas), essa coisa chamada bem-estar só faça algum sentido concreto para nós se for distribuída desigualmente?

Se for assim mesmo, ao menos deveríamos deixar de culpar o Estado, que, como ensinou o pai da filosofia, é apenas o resumo da ópera dos nossos verdadeiros estados individuais. Seria então menos hipócrita se, em vez de chamarmos o nosso Brasil de “República Federativa”, parafraseássemos o velho nome do nosso país, auto intitulando-nos assumidamente de “estados desunidos do brasil”, assim mesmo, tudo com letras minúsculas, para ao menos não esquecermos o tamanho da nossa capacidade ou desejo de constituirmos um Estado.

Uma crítica da ideologia pós-colonialista

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Imagem: The Sale of Venus – Lili Bernard

O pós-colonialismo, surgido nos anos 1970 como um conjunto de teorias acadêmicas cujo objetivo era analisar os efeitos que as nações colonizadoras, sobretudo as europeias, deixaram na cultura dos países colonizados, hoje em dia, entretanto, jaz vulgarizado em uma problemática ideológica multiculturalista que orbita estreitamente em torno do direito das minorias – étnicas, sexuais, religiosas etc. – de narrarem, livres de qualquer crítica, as suas próprias experiências singulares. Slavoj Žižek, no livro “Às portas da revolução”, mais especificamente no capítulo chamado “Direito à verdade”, faz uma crítica dessa ideologia pós-colonialista que, a meu ver, vale a pena ser ecoada, por mais que o discurso politicamente correto exija ou apologia ou silêncio a respeito dela.

E isso porque, para Žižek, uma crítica da ideologia “nos obriga a inverter a frase de Wittgenstein, ‘do que não se pode falar, deve-se guardar silêncio’, para ‘o que não se pode falar, não se pode calar’”. O que o filósofo esloveno quer salientar com essa inversão é que, antes de se pretender dizer toda ou “mais verdades” sobre determinado fenômeno, o fundamental no discurso que não se cala diante da proibição ética/política é dar voz ao excesso inerente a esse mesmo fenômeno que, se por um lado o ameaça, por outro o completa. Além do que, uma crítica que não vai além do que critica, isto é, que não se aventura a dizer mais do que o criticado “permite”, faria um trabalho tacanho demais.

A primeira parte da crítica žižekiana da ideologia pós-colonialista recai sobre os próprios acadêmicos pós-culturalistas contemporâneos. O filósofo, em primeiro lugar, lembra-nos de que “a grande maioria dos acadêmicos ‘radicais’ da atualidade, silenciosamente conta com a estabilidade de longo prazo de uma posição de trabalho segura”. E isso para dizer que eles, quando lidam de modo politicamente correto com questões de sexismo, gênero, racismo, xenofobia, exploração dos trabalhadores etc., estão na verdade presos “a um ritual compulsivo cuja lógica oculta é: Falar o máximo possível sobre a necessidade de uma mudança radical, para nos assegurarmos de que nada realmente vai mudar!”.

Ou seja, as questões com que grande parte dos acadêmicos pós-colonialistas se ocupam, e para as quais buscam “soluções” teóricas, é melhor que, na prática, não encontrem solução, pois só assim, mantendo vivo o problema de que tratam, eles manterão pertinentes as suas pesquisas e, consequentemente, os seus privilegiados salários acadêmicos. E isso porque, critica Žižek, suas escolhas e atos já são “um ato dentro das coordenadas ideológicas hegemônicas”. Dito de outro modo, eles são concretamente o mundo colonizado a respeito do qual fazem abstrações teóricas descolonializantes. Para Žižek, são como o pós-moderno padrão, cuja lógica é “vamos continuar mudando algo todo o tempo para que, globalmente, as coisas fiquem iguais”.

Dessa visada, pode parecer que Žižek está dizendo que somente aqueles que não têm nada a perder poderiam abordar a realidade de modo autêntico. “Só que não!” Face à inautenticidade dos acadêmicos pós-colonialistas do Primeiro Mundo, o filósofo faz um elogio aos ideólogos e práticos do Terceiro Mundo. Estes, pelo menos assumem mais honestamente o fato de serem cativos das coordenadas globais do capitalismo. E aceitar corajosamente que se é parte do problema com o qual se está envolvido, porventura não é começar justamente por aquele excesso intrínseco que todavia pede desesperadamente para que se cale a respeito de si?

Já a segunda parte da crítica žižekiana da ideologia pós-colonialista ataca o hoje popularizado – e por que não dizer sacralizado? – “direito de narrar”. Para Žižek, o Calcanhar de Aquiles do direito de narrar é que ele usa “uma experiência particular singular como argumento político”. Por exemplo: só um jovem pobre gay latino-americano pode dizer o que significa ser um jovem pobre gay latino-americano. Entretanto, adverte o filósofo, “tal recurso a uma experiência particular que não pode ser universalizada é sempre, por definição, um gesto político conservador”. E o perigo disso é que, se qualquer um pode se valer de sua experiência singular para se justificar, pode-se com isso ser justificado experiências abomináveis. Dentro dessa lógica absolutamente permissivista, deveríamos nos calar diante de muçulmanos radicais que matam seja lá quem for. Afinal… não sabemos o que é ser um muçulmano radical.

Mutatis mutandis, a crítica do pós-colonialismo e do pós-modernismo se confundem. A pós-modernidade é conhecida por ser a Idade onde inexistem certezas absolutas, verdades universais, ou, nietzschianamente falando, a era na qual “Deus está morto”. O problema é que, aponta Žižek, sem a referência a uma dimensão universal de verdade, o que resta é uma profusão de perspectivas, de narrativas, que, no final das contas, dá espaço à “narrativas ridículas”, tais como “a supremacia da sabedoria aborígene holística”, e o que é mais grave, o desprezo à ciência como se se tratasse de “apenas mais uma narrativa entre as superstições pós-modernas”.

Para escapar a esse relativismo, que, como vimos, pode facilmente endossar absurdos, Žižek propõe que qualquer abordagem pós-colonialista deve estabelecer a priori critérios externos à narrativização – atitude paradoxalmente contrária à ladainha pós-moderna pós-colonialista. Retomemos o exemplo anterior. Um jovem pobre e gay latino-americano narrando a sua experiência existencial a um grupo de senhores ricos heterossexuais europeus. O critério que estes têm de preestabelecer é o seguinte: nada do que aquele narrar será alienígena a eles, às suas possibilidades de compreensão. Afinal, “jovem” só faz sentido contraposto a “velho”; “pobre”, a “rico”; “gay”, a “heterossexual”; e assim por diante.

Ainda que somente negativamente, uma pessoa pode, em determinado nível, compreender a experiência existencial singular de outra, afinal, estamos falando de seres humanos que a priori pertencem a um universal comum, qual seja, a humanidade. Desse modo, o medo pós-colonialista de que a comparação de singularidades as anule, atenta justamente contra o fundo comum sem o qual a própria ideia de singularidade deixa de fazer sentido.

Para esclarecer melhor o seu argumento, Žižek vale-se provocativamente da defesa politicamente correta da singularidade do Holocausto. Contra aqueles que acham que comparar, que relativizar a ignomínia nazista é inadmissível, o filósofo sustenta que “sim, o Holocausto foi singular, mas a única maneira de estabelecer essa singularidade é compará-la com outros fenômenos similares”. A provocação do autor ataca justamente a proibição à comparação, pois, nas palavras dele, “a suspeita atormentadora que emerge [da proibição à comparação] é que, se nos fosse permitido comparar o Holocausto com outros crimes similares, este seria privado de sua singularidade”.

Ora, se algo, alguém ou grupo desfruta de singularidade, o faz não porque foi resguardado de ser relativizado, comparado, mas, antes, porque pode sê-lo, sem que essa singularidade corra o risco de ser solapada. O zelo pós-culturalista em respeito às singularidades das narrativas na verdade é covarde: é o medo de que as suas “singularidades” não se sustentem diante de singularidades minimamente diversas.

Pós-culturalismo corajoso é aquele que garante a singularidade de uma narrativa, de um fenômeno, justamente através do universal, do comum de que eles participam, ainda que seja da essência de uma singularidade resistir internamente a isso. A universalidade, fantasma à ideologia pós-culturalista, muito antes de comprometer uma singularidade, na verdade traz à luz o seu excesso, “aquilo” do singular sem o qual ele não é; ou, lacanianamente falando, “aquilo mais do que ele mesmo” que, entretanto, faz com que ele seja justamente o que é: uma singularidade dentro do (ou de um) universo.

Guerra Mundial e internet

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Toda sorte de barbárie e desumanidade já é, e cada vez mais será publicizada, redesocializada, youtubizada. Por conta da internet, até mesmo os horrores da guerra já são habitué de qualquer um conectado à “rede”. Só mesmo uma guerra mundial ainda não temos o (des)privilégio de assistir online in real time. O assassinato do embaixador russo na Turquia em 19 de dezembro de 2016, prontamente videoviralizado, entretanto, pode ser o primeiro ato espetacular de uma Terceira Guerra Mundial, esta sim, videografada do início ao fim.

Quando, o herdeiro do trono austro-húngaro Francisco Ferdinando foi assassinado por um extremista sérvio em Sarajevo, em 1914, demorou um mês para que o fato fosse retroativamente convertido em “o estopim oficial da Primeira Guerra Mundial”. Esse delay provavelmente se deu pela lentidão da circulação da informação naquele início de século.

Já hoje, ao contrário, tempos nos quais estamos imediatamente conectados e superinformados, o caso do embaixador russo, assistido praticamente ao vivo, aos olhos mais pessimistas, ou simplesmente realistas – difícil diferenciar estes dois atualmente -, desde já “será” o estopim do terceiro grande conflito.

A Terceira Guerra Mundial, entretanto, acontecendo imediatamente ao assassinato do embaixador russo, ou dentro de alguns meses ou anos por conta de qualquer outro fato com publicidade para tal, levanta desde já uma pergunta que cedo ou tarde nos acossará: como nós, a opinião pública mundial, conseguirá assistir, mesmo na segurança internética com que estamos acostumados, o horror dos horrores de um mundo destruindo a si mesmo?

Bem, por um lado, estamos assistindo à bela Aleppo e aos seus habitantes serem exterminados, e, convenhamos, afora milhões de visualizações e um punhado de hashtags engajadas, os shopping centers e as mesas de bar continuam cheios. Por outro lado, contudo, é difícil imaginar, por exemplo, que se o povo alemão e o restante do mundo tivessem acompanhado o extermínio judeu, pelo menos como nós atualmente acompanhamos os males mundo, aquele mal teria sido levado tão adiante.

Uma boa dose de alienação é fundamental para o mal. Como, então, o maior mal que a humanidade pode produzir, uma guerra mundial, poderá se dar se a internet praticamente furta a possibilidade de alienação mediante uma incessante enxurrada de notícias, fotos e vídeos que pop-up-pulam diante dos nossos olhos?

Lenin dizia que “os fatos são teimosos”. Mas acredito que o mal é mais teimoso ainda. Por isso, é bastante provável que, em vez de horrorizar-se insuportavelmente com uma guerra mundial ao alcance de um clique, a humanidade, ao contrário, expandirá a sua capacidade de suportar, de se habituar com o horror. Aleppo, novamente, é a mais candente prova dessa nossa vil e elástica capacidade.

Como diz o filósofo Slavoj Žižek, “atualmente, a única maneira de manter a cabeça fria é sendo absolutamente apocalíptico”. E para sermos habitués à l’apocalypse, nada melhor que a internet, cuja especialidade é apresentar o fim do mundo de modo suportável, ainda que ele se dê logo ali, atrás dos nossos vívidos displays digitais.

A internet é o portal excelente através do qual a hecatombe vira espetáculo. Somos o apogeu momentâneo da Sociedade do Espetáculo devidamente criticada por Guy Bebord pouco antes do Maio de 68 francês!

E a Terceira Guerra Mundial, quando ocorrer, será apenas mais um, embora o mair espetáculo escatológico até então. No entanto, de forma alguma será o último, e isso porque a lógica do fim do mundo, em um mundo cuja essência é a produção e o consumo incessantes, não pode levar a si mesma totalmente a sério. Infinitos fins de mundo são necessários para se sustentar o espetáculo!

A Terceira Guerra Mundial será youtubizada, sem dúvida, desde o seu making-of, até o seu gran finale. Esse filme, porém, depois de consumido viralmente, será sucedido e soterrado por outros, ainda mais espetaculares e armagedônicos, bem ao gosto da clientela. E isso porque as piores guerras, e até mesmo a humanidade, já são apenas capítulos de uma outra história, a história da própria internet.

Povo desmaquiavelizado: povo impotente.

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Dizer que é errado os ricos e poderosos oprimirem cruelmente o povo em busca de mais riqueza e poder – em vez de produzirem uma sociedade mais justa, igualitária, blá-blá-blá -, porventura não é como, a despeito da natureza, decidir que é errado a água (ao nível do mar…) ferver a 100°C, e não a 50? Assim como seria em relação à ebulição da água, é muita ingenuidade o povo desejar que a classe dominante não aja conforme a sua natureza, que é dominar e nada mais. Dessa perspectiva, o povo que, dominado, segue achando que os dominantes agem erradamente; que depende da boa vontade dos poderosos a liberdade e felicidade do povo; este povo merece a dominação que sofre, pelo menos até levar à cabo a sua própria natureza, que nasce no desejo de não ser dominado; e que vive somente na luta contra a dominação.

Desde Nicolau Maquiavel sabemos que a sociedade é composta pela relação conflitiva, e sobretudo amoral entre “grandes” e “povo”; cada um com sua natureza própria. Aqueles, dominar; este, não ser dominado. E o trabalho do filósofo renascentista foi justamente ter retirado dessa relação toda a velha moralidade que orbitava entre bem e mal, certo e errado, falso e verdadeiro. Moralidade esta que desde a antiguidade raptava a realidade da política. Retomando a nossa analogia, assim como a água, em determinada pressão e temperatura, entra em ebulição, assim também os grandes, em sociedade, oprimem o povo; tão necessariamente quanto as leis físicas! Dizer que isso é errado, convenhamos, é preferir quimeras em lugar do real. E o amargo preço dessa ilusão, pago inescapavelmente pelo povo, é justamente uma maior liberdade aos grandes dominadores, pois estes, em momento algum, alienam-se moralmente da – nem deixam de investir politicamente na – sua natureza dominadora.

Embora o desejo – e a ação objetiva! – dos grandes seja dominar o povo, e para isso precisem roubar descaradamente liberdades e direitos populares, a natureza do povo não é dominar os grandes, mas, assimetricamente, desejar não ser dominado. Entretanto, ensina Maquiavel, o desejo popular de não ser dominado, para se realizar, precisa se converter em luta política objetiva por liberdade. Não obviamente para circular livremente dentro do universo dos grandes – não como queria Lula: que o povo brasileiro fosse “livre” apenas para comprar eletrodomésticos e viagens ao exterior, coisa que em verdade só alimentava o bolso e o universo dominador dos grandes -, mas liberdade para lutar contra os grandes, contra o natural desejo deles de dominação.

O povo fica aquém de sua própria natureza enquanto reclama da dominação que sofre; enquanto apenas acusa os grandes – quase sempre vitoriosos – de serem maus, desumanos, gananciosos, etc. Ora, quando o povo, parte envolvida no conflito político, não atualiza a sua potência natural, ao passo que os grandes, a outra parte, o faz “sem dó nem piedade”, não é mistério algum qual parte sairá, e deverá sair vencedora. E, para além do ressentimento popular, não há nada de errado nessa vitória dos grandes, uma vez que o real é o conflito entre eles, e que vence quem realiza melhor a sua própria natureza.

Da perspectiva dos grandes empresários, banqueiros, latifundiários, por exemplo, só pode parecer patético, ignorância ou ressentimento impotente o povo crer que os grandes deveriam deixar de dominá-lo e desejarem, como o povo, o fim da dominação e a liberdade irrestrita. A imperdoável ingenuidade popular é precisamente crer que os grandes devam ser como o povo; que há algo de errado em os grandes serem como são. Não! O fato de os grandes desejarem dominar é como a água ferver a 100°C, ora bolas. Agora, o fato de o desejo último do povo ser a liberdade em relação à dominação dos grandes parece não ser tão claro assim para o próprio povo. “Em que mundo você pensa que vive?”; “Quem você pensa que nós somos?”; “Você conhece a realidade e sabe como lutar dentro dela?” – perguntariam justamente os grandes ao povo.

Algo realmente errado é o povo achar errado os grandes agirem como agem! Para sair desse erro, contudo, a primeira coisa que o povo deve fazer é reconhecer, e maquiavelianamente!, que os grandes, para muito além do bem e do mal, do certo e do errado, do falso e do verdadeiro, fazem unicamente o que a sua natureza prega. Fosse de outra forma, isto é, se os grandes ou não quisessem dominar, ou fossem definitivamente eliminados pelo povo, isso significaria o fim da sociedade ela mesma, que, como ensina Maquiavel, é o resultado do conflito político entre grandes e povo.

Desse modo, o desejo acertado do povo, ou seja, a realização plena de sua natureza, deve ser: ser tão ou mais forte que os grandes. Não, como seria ingênuo pensar, que os grandes devam ser fracos para serem finalmente vencidos. E isso porque é somente dentro dessa batalha, árdua e, como ensinou Maquiavel, amoral por natureza, que qualquer vitória do povo no sentido de sua liberdade terá algum valor; e, o mais importante, constituirá uma verdadeira sociedade. Não mais uma sociedade utópica, na qual o povo contaria com a benevolência de seus oponentes; na qual é errado os mais potentes vencerem os mais impotentes na luta da qual ambos não têm como escapar; mas sim uma sociedade onde cada lado do sempiterno conflito político atua com toda a sua potência contra a potência do outro lado.

A sociedade definitivamente não é o lugar de os indivíduos serem livres e felizes gratuitamente, como algum deus bom poderia ter desejado. Antes, ela é a árdua e humana conversão do combate bárbaro-animal, no qual uns aniquilam definitiva e violentamente outros, em conflito político, onde as diferenças podem coexistir, todavia ao preço de uma sempiterna luta de forças. O fato de os grandes liderarem esse conflito na maior parte das vezes não deve ser moralizado, considerado um erro, um mal, porquanto o moralismo custa sempre muito mais caro do que aceitar o real amoralmente. Todavia, muito embora o povo inadvertidamente predique moralmente a ação daqueles que o domina, seu primeiro “acerto” político deve ser reconhecer o “erro” enquanto seu. E esse erro é não ter feito o seu dever cívico básico, isto é, não ter sido, e a qualquer preço, tão ou mais forte que o seu oponente opressor.

Bye-bye, multiculturalismo?

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O multiculturalismo é a coexistência harmoniosa e não hierarquizada de diferentes culturas numa mesma região, cidade ou país. Sua ideia sustenta que o hibridismo cultural produz realidades comuns mais ricas e plurais baseadas no respeito e na aceitação irrestrita das diferenças. Uma sociedade multiculturalista é aquela que, mesmo com uma maioria branca, heterossexual e cristã, por exemplo, coloca em pé de igualdade demandas e direitos de negros, árabes, índios, gays, lésbicas, transexuais, muçulmanos, umbandistas, satanistas, e por aí vai.

Mesmo que, logicamente, a globalização só tivesse a lucrar com plena abertura multicultural, a realidade, entretanto, está se mostrando refratária à utopia pluralista. Conquanto nas últimas décadas os discursos oficiais tenham sido como que obrigados a contemplar a alteridade, desde o fatídico 11/9 no entanto, movimentos monoculturais, nacionalistas, xenófobos encontraram na ameaça do terrorismo o guarda-chuva perfeito para justificarem e retomarem a velha e rançosa recusa ao outro.

A crise econômica mundial que cresceu ao longo da década de 2010, as migrações em massa que explodiram nos últimos dois anos, a vigorosa ascensão “worldwide” das direitas radicais de caráter fascista, tudo isso somente reforça que a aventura multiculturalista, infelizmente, foi um projeto passageiro. Hoje em dia, a ideia cada vez mais vigente, ou pelo menos midiatizada, é a de que a diversidade cultural, étnica, religiosa, sexual, etc., é uma ameaça às identidades nacionais.

Trump, nos EUA; Le Pen, na França; Wilders, na Holanda; Farage, na Inglaterra; Voigt (líder do neo-nazi Partido Nacional Democrático), na Alemanha; Strache, na Áustria; Bolsonaro, no Brasil – só para citar alguns-, reencarnam, política e espetacularmente, a ideia de que o multiculturalismo é danoso às suas sociedades e culturas, sem dizer suas economias.

Até mesmo a ideia do filósofo canadense Charles Taylor de que a democracia é a única alternativa para alcançar o reconhecimento do outro, ou seja, da pluralidade encontra-se malograda. Prova disso é o anti-multiculturalismo crescendo ao redor do mundo justamente pela via democrática. Eis o vício pouco evidente da “cracia” do “demos”: basta a maioria querer o mal – ou ser levada a querê-lo – e, volià, o mal é eleito. Não nos esqueçamos de que foi a democracia que colocou Hitler no poder!

Antes, porém, de sustentar, covarde e defensivamente, que são Trumps, Le Pens e Bolsonaros que reinauguram, deliberada e verticalmente, o extremismo monocultural, é bom considerar a possibilidade de que esta onda anti-multiculturalista que eles surfam notória e oportunisticamente na verdade é o cúmulo de milhares de marolas individuais anônimas formadas aos poucos ao redor do mundo. O diabo não inventa inferno algum. É apenas mais um danado que, percebendo-se rodeado de muitos outros iguais, apenas furta a coroa.

Como, por conseguinte, não é cortando as cabeças de algumas poucas figuras protagonistas que conseguiremos parar o tsunami anti-multicultiural, uma vez que este processo nasce nas milhões de cabeças anônimas que apenas encontram representação naquelas figuras espetaculares, a visão mais realista, e triste, é que, doravante, e por algum tempo pelo menos, viveremos em um mundo que, novamente caça bruxas.

O anti-multiculturalismo tira da tumba um mundo monológico, radical e cruel, no qual a Klu Klux Klan poderá queimar negros na cruz – casas de negros já começaram a ser incendiadas nos EUA um dia depois da eleição de Trump; onde imigrantes ou descendentes de imigrantes serão alienados do humano e universal direito de ir e vir – fato para sírios, iraquianos e afeganistãos, e agora, com Trump, mexicanos; e onde gays, lésbicas e transexuais poderão ser assassinados, ou, com miserável sorte, proibidos de viverem seus desejos e orientações sexuais.

O mundo cosmopolita nos últimos anos tanto condenou o radicalismo religioso fundamentalista, que acabou encarnando ele mesmo o seu maior fantasma. Retorno do reprimido? Pelo jeito sim. Como, porém, colocar esse mundo doente no divã para que, percebendo o seu bárbaro sintoma anti-alteridade, possa atravessar o seu trauma para finalmente se ver livre dele?

A psicanálise tem a nos dizer algo que, nesse momento de ascensão anti-multicultural, é assaz desanimador, qual seja, que antes da cura tem de haver o desejo de ser curado. Esse desejo, não obstante, pressupõe a consciência da doença. O problema, contudo, é que os monoculturalistas vivem hoje, fortemente, a chamada fase da negação. Iludem-se de que são a cura para “o” problema do mundo para se alienarem do fato de que eles mesmos são o maior e pior câncer. O pior de tudo é que confrontá-los nessa fase só faz com que, autodefensivamente, agarrarem-se ainda mais ao mal que os atravessa.

Conseguirá a parte sã do mundo fazer como os psicanalistas, isto, é aguardar pacientemente até que o anti-multiculturalismo encontre-se em sua neurose e a assuma; então deseje curar-se dela; para enfim iniciar o seu processo de recuperação? Ou, antes, o mundo que ainda é e que quer ser multicultural precisa apenas ser um tanto menos ortodoxo, sem dizer um tanto mais subversivo em seu multiculturalismo a ponto de recusar, e com a mesma violência, especificamente os anti-multiculturalistas que o recusa?

Por hora, a via não pode ser, como quer Charles Taylor, democrática, pois, basta olhar pela janela do presente, a democracia está sendo justamente o veículo dessa recusa ao outro. Diante da radicalidade anti-multicultural, manifesto-me em favor de uma tirania multicultural declarada. Afinal, um tirano que obrigue todos a aceitarem-se mutuamente, e só quem não quiser obedecê-lo que desapareça, é absolutamente preferível comparado aos os frutos podres de uma democracia doente cuja única opção que oferece à pluralidade é: desapareça. Quem mais merece o bye-bye despótico, o multiculturalismo ou a sua antítese?

Ocupemos a nós mesmos!

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As muitas ocupações de escolas e universidades brasileiras seguem firmes e fortes contra a péssima representatividade política que o povo está recebendo. Porém, isso é só parte da luta. A jovem máxima “Ocupa Tudo”, para ser verdadeiramente revolucionária, não deve deixar de fora desse “tudo” a exploração econômica que sistemática e sorrateiramente constitui aquela má representatividade. Ocupemos a nós mesmos! E economicamente.

As ocupações restauram intempestivamente algo da antiga democracia direta grega, na qual é o “demos” que atua a sua “cracia”, sem intermediários. Prática que no entanto foi soterrada pela erva-daninha da democracia representativa, posta em prática pela burguesia e para a burguesia. E é contra esses beneficiários burgueses, os únicos que são devidamente representados por aqueles que na verdade deveriam representar o povo, que as ocupações devem também contemplar. Ora, pouco adianta resistir abertamente aos desígnios dos maus políticos aqui, se, ali, alienadamente, segue-se enchendo os bolsos dos burgueses, os grandes e verdadeiros responsáveis pela má representatividade política.

Se, como dizem, a política apenas faz o trabalho sujo da economia, a ocupação deve ser também e principalmente econômica-estrutural, e não somente política-espacial. Do contrário, a luta que deixa de ser lutada é justamente aquela na qual o inimigo mais oprime. Políticos, como sabemos, vão e vêm. O poder do capital, em contrapartida, permanece e cresce nos bastidores do teatro de horrores político que ele mesmo patrocina, tanto para o povo se alienar do verdadeiro inimigo, como principalmente para que este algoz siga aumentando o seu sórdido poder discretamente.

“Ocupar Tudo”, portanto, é o povo ocupar também o lugar econômico mui ocupado por esse inimigo burguês que, antes, durante e depois de quaisquer manifestações políticas, segue enriquecendo com o mundo de mercadorias que nos oferece em todos os lugares e ocasiões. Mundo  mercadológico que seguimos consumindo ingenuamente, como se isso não fosse precisamente o cerne do problema. Como, porém, ocupar a nós mesmos economicamente? As ocupações políticas podem dar o caminho das pedras.

“Encher um espaço de lugar e de tempo” é uma bela definição de “ocupar”. Todavia, assaz abstrata para o que está se querendo propor aqui. Outra definição, bem mais concreta e pontualmente eficiente no sentido de ocupar-nos economicamente uns aos outros, diz que “ocupar” é: “dar trabalho; empregar”. Voilà! Eis a ocupação com a qual também devemos nos ocupar para enfrentar o inimigo, não em sua aparência política, mas em sua essência econômica. Como, entretanto, ocuparmos economicamente os nossos iguais para com isso enfraquecermos, quiçá falirmos o inimigo burguês que até aqui nos ocupa para o seu próprio fortalecimento?

O primeiro passo, o mais acessível, é a já conhecida “economia colaborativa”, ou seja, a esfera de produção, distribuição e consumo de bens e serviços que dispensa as grandes corporações e prioriza aquilo que os próprios indivíduos têm a oferecer uns aos outros. Pragmaticamente, é preferir a quentinha que a vizinha tem para vender ao BigMac; a costureira da esquina à loja Zara; e por aí vai. Se é para dar os nossos míseros e explorados tostões a alguém, que seja a nós mesmos, e não àqueles que nos exploram, ora bolas!

Este primeiro passo, que  nos leva a comprar coisas uns dos outros, não obstante mantém vivo algo essencial ao inimigo: o dinheiro. Um segundo e mais virtuoso passo, que com certeza pode completar a ocupação, por parte do povo, do belvedere da elite econômica é o escambo, ou seja, a troca direta de bens e serviços entre os próprios indivíduos, sem o intermédio vicioso do dinheiro. Em outras palavras, e usando os exemplos anteriores, trata-se de a vizinha trocar as suas quentinhas pela calça produzida pela costureira da esquina, e assim por diante.

Isso é ocupar economicamente os nossos iguais: dar trabalho a eles, empregá-los. Não para explorá-los, obviamente, uma vez que o escambo aqui proposto visa justamente eliminar os exploradores burgueses das relações econômicas – com a “mais-valia” de golpear os maus políticos que os representam. Sem dizer que, propondo-nos à troca com nossos iguais, cada um de nós tem também de ocupar-se em produzir algo que seja útil a esses iguais, e tão somente a estes. Restaurar o escambo é quiçá a maior rasteira econômica que os indivíduos podem no verdadeiro inimigo, e, de quebra, obsoletar a íntima & vil relação entre o capital e os seus representantes políticos.

O desafio, obviamente, é imenso. Afinal, como trocar quentinhas ou alfaiatarias por aluguel na imobiliária? Como bens ou serviços produzidos diretamente pelas nossas próprias mãos pagarão a passagem do ônibus? Para destrinchar o inimigo econômico-burguês, façamos como Jack, o estripador, façamo-lo por partes. Comecemos por estabelecer algumas relações de escambo com aqueles que nos são próximos e dispostos a tal. Hoje em dia há muitos aplicativos que podem ajudar nessa experiência. Não devemos esquecer de que também é da natureza humana se comprazer com trocar. Durante milênios foi assim. Pelo menos até o capitalismo convencer a todos de que o seu capital deveria intermediar todas as trocas.

Se cada um de nós conseguir fazer com que pelo menos 10% de nossas compras sejam substituídas por escambo, o inimigo-mor será enfraquecido nessa mesma proporção. E, quanto mais não seja, é muito mais fácil aumentar qualquer experiência, de 10 para 20%, e assim sucessivamente, do que pretender começá-la já nos seus 100%. Por partes e com calma; e também com prazer, repete Jack.

Certamente demorará para que a Apple aceite uma torta de maçã ou uma poesia em troca de um iPhone. Contudo, com o tempo, ocupando-nos a nós mesmos em função de nossa sobrevivência e liberdade, e sobretudo desocupando subversivamente os nossos algozes econômicos-políticos da intermediação de tudo o que precisamos para viver, poderemos descobrir que os smartphones deles só valem mais do que as nossas tortas de maçã ou poemas porque assim eles nos fizeram acreditar. Essa ideia aliás é a mercadoria excelente deles; se a desocuparmos, definitiva e coletivamente, todas as outras perdem o valor.

O socialistas ortodoxos de plantão dirão que é ingenuidade acreditar que o caminho da revolução é tão simples. Mais ainda, que não podemos dispensar a velha, todavia respeitável profecia marxista. Nada contra as Bíblias dos revolucionários, muito pelo contrário. Que elas sigam angariando fiéis até completarem a sua mui aguardada revolução. Afinal, a liberdade que elas prometem é mais que necessária. Porém, a candente novidade e promissora efetividade das ocupações nos sugerem, não um atalho, mas um desvio em relação às velhas teorias.

O “Ocupa Tudo” deve: ocupar os espaços onde a representatividade política não se efetua; tomar nas mãos a representação das próprias demandas; perceber que enquanto a economia estiver alienada dos indivíduos ela só produzirá má representatividade política; experimentar-se e fortalecer-se em relações econômicas não alienadas, baseadas em trocas diretas, nas quais o valor não é mais um imperativo extrínseco, mas propriedade daqueles que trocam entre si; e, por fim, fazer essa experiência – que não é nova, apenas obsoletada estrategicamente pelo capitalismo – crescer até ocupar totalmente a vida das pessoas.

Muito embora seja fundamental começar ocupando os espaços que os nossos representantes políticos não estão ocupando conforme prometeram ao se elegerem par tal, é só quando os indivíduos ocuparem a si mesmos, não só política, mas sobretudo economicamente, sem deixar espaço livre para qualquer mediação oportunista. Só então a revolução, senão estará dada, ao menos terá sido devidamente iniciada.

Portanto, ocupemos a nós mesmos. Descubramos o que podemos fazer que sirva somente a nós, e de forma alguma ao sistema que só quer nos explorar e oprimir. Reocupemos o sentido grego, e há muito esquecido, de “oikonomia”: “administração de uma casa, lar”. Desocupemos a macroeconomia! Só assim a má representatividade política será desocupada da sua vil participação nas nossa vidas.

Trump e o maquiaveliano retorno à origem.

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Donald Trump presidente dos Estados Unidos é um trauma político inclusive para os seus próprios eleitores, pois o bilionário venceu não por conta de virtude política alguma, mas, ao contrário, justamente pelo seu despotismo escancarado. A defesa pública e violenta da superioridade branca, masculina, heterossexual e aristocrata baseada apenas na opinião contingente do próprio Trump é o que senão a reencarnação à la americana do despótes? A melhor coisa a ser feita a partir do resultado das eleições norte-americanas, e talvez a única, é entender por que a nudez do déspota venceu a fantasia do político.

Traumático, sobretudo, é que, do belvedere da crise de representatividade política que boa parte do mundo civilizado atravessa, a escolha por Trump seja a mais racional, uma vez que, como disseram muitos e esclarecidos comentadores, “Hilary é o mal com máscara; Trump, o mal desmascarado”. Assim como, psicanaliticamente, não se supera um trauma sem atravessá-lo corajosamente, assim também, politicamente, a superação da atual crise de representatividade parece estar exigindo que se comece justamente pela má-representatividade, de forma assumida, cruelmente desnudada.

Se os políticos não conseguem mais representar os seus eleitores como estes esperam, mas, como cada vez mais se vê, asseguram prioritariamente os interesses daquilo que o Ocuppy Wall Street chamou de o 1%, é porque a relação política entre a massa de representados e seus representantes está corrompida. E como se ver livre do inimigo votando justamente nele? Trump foi a alternativa apolítica, e por isso mesmo trágica, para esse dilema. Como, entretanto, a tragédia trumpeana pode ajudar a resolve o problema da corrupção da representatividade política?

Nicolau Maquiavel dizia que para se combater a corrupção em uma república era necessário um retorno à origem dessa república. Um retorno lógico, e não cronológico; não farsesco, mas, autenticamente trágico. Para o filósofo italiano, Roma só era a maior e mais “eterna” porque tinha a virtude de retornar sistematicamente à sua origem trágica, qual seja, o fratricídio de Remo por Rômulo. Mutatis mutandis, não estão os americanos fazendo exatamente isso com a sua res pública ao elegerem Donald Trump, isto é, dando um maquiaveliano “passo para trás”, como quem toma distância para o salto necessário, passo retrógrado sem o qual não superarão o abismo da corrupção que percebem entre eles e os seus representantes políticos?

Para Maquiavel, uma república é virtuosa enquanto suas leis são capazes de serem sustentadas por suas instituições. O problema é que as leis são dinâmicas, mudam conforme a necessidade pública, mas as instituições, ao contrário, são estáticas. Desse modo, com o tempo, as instituições não conseguem mais fazer valer as leis. E é aí que cresce o vício da corrupção. Tentar resolver tal corrupção sem retornar à origem seria o mais abjeto reformismo; algo como dar uma demão de tinta nova sobre a velha casa carcomida. Retornar ao momento fundacional, em troca, é fazer a ruína ruir, fortuita e totalmente, para só então haver a oportunidade de se reconstruir a res pública desde seus alicerces.

E isso porque, segundo Maquiavel, é só no ato fundacional de um estado que lei e instituição coincidem. Somente nesse átimo não há espaço para a corrupção. No exemplo excelente do filósofo, Roma ressincronizava  leis e instituições, e portanto se via livre da corrupção, sempre que retornava à sua raiz violenta/fratricida, recolocando-se a questão fundamental, qual seja: Rômulo não mataria Remo por quê? Como, porém, Rômulo cometeu o fratricídio, os romanos reencontravam nas respostas que davam  a essa pergunta a razão de ser do seu estado.  Por mais angustiosamente trágico que o fosse o “revival” lógico desse “momentum” violento fundacional, nele a “Cidade Eterna” refundava-se livre da corrupção.

Agora, como Trump presidente faz esse serviço aos norte-americanos? Obviamente, a razão fundacional dos Estados Unidos é outra que a de Roma. Foi para pôr fim ao despotismo colonizador do Império Britânico que os Estados Unidos se independizaram. Jaz aí a razão de ser da República Constitucional Federal dos Estados Unidos da América. E é a ela que, segundo a pragmática maquiaveliana, os sobrinhos do Tio Sam retornam ao se sujeitarem democraticamente a um governo como o de Trump. O apolitismo declarado do magnata topetudo porventura não sujeita novamente os EUA a espécie de rei despótico todo-poderoso, algo como outrora estavam sujeito aos impérios da coroa britânica?

Elegendo Trump, os norte-americanos escolheram o protagonista perfeito para a tragédia que com sorte fará com que reencontrem – não se sabe todavia em que ato – a razão de ser do polités, e a civilizada vantagem deste sobre o despótes. Assim fizeram os antigos gregos quando inventaram a política. Assim também precisam fazer os americanos – mas não só eles! -, pois se a política perde o seu jaez virtuoso, é somente porque o despotismo, embora espetacularmente presente, mascara-se, e isso para poder ser tão ou mais despótico.

A razão de ser da política é ser a alternativa civilizada ao despotismo. No entanto, quando a civilização escolhe um déspota declarado, isso se dá não porque optaram entre este e um político stricto sensu, mas, antes, porque não havia político stricto sensu na jogada, somente déspotas, um com máscara, o outro sem. Mesmo que o que as pessoas menos desejem para si mesmas é estarem sujeitadas aos desígnios de um déspota, quando isso é inevitável ao menos hão de preferir um algoz que não dissimule o seu despotismo. Hilary seria tão ou mais despótica que Tump, mas os americanos estariam estrategicamente alienados disso. Por pior que seja, a verdade venceu, ainda que traumática.

O “White Trash”, isto é, a massa de eleitores bancos, homens e sem formação superior que elegeram Trump fizeram quiçá o maior favor ao futuro político daquele país. Como não tinham mais confiança nos representantes que há muito os decepciona; como a representatividade política é hoje uma instituição corrompida; agora ao menos os norte-americanos não vão se decepcionar em termos de representatividade. Elegeram o real em sua crueza desnudada. Mesmo que o “White Trash” americano desconheça Maquiavel, a sabedoria do italiano os atravessou intuitivamente nesse retorno trágico à origem despótica. E isso porque quando o polités está doente de corrupção, precisa de doses traumáticas de despotismo para civilizar-se novamente.

 

Atenção, ocupações!

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Só mesmo muita alienação para não ver nas ocupações de escolas e universidades brasileiras, contrárias às propostas do Governo Temer, um movimento político de resistência, quiçá o maior da atualidade. Entretanto, mesmo e principalmente quem atua diretamente nesse explosivo movimento estudantil não deve se alienar do mais importante, ou seja, de que agir politicamente exige sempre mais. Do contrário, em pouco tempo as ocupações se tornarão eventos performáticos incapazes de alcançar o objetivo principal: barrar as propostas do governo golpista.

Obviamente, ninguém em sua sã consciência cívica é contra estudantes permanecerem nas suas escolas para, além das horas-aula, produzirem voluntariamente melhoria das instalações físicas e estreitamento das relações sociais. Aliás, uma crítica aos estudantes que hoje são ocupantes é não fazerem isso desde sempre. Esperar que alguma tragédia nacional se abata para só então agirem como se as escolas lhes pertencesse é agravante do problema que os próprios estudantes querem resolver. Todavia, antes tarde do que nunca.

As ocupações estarão realizando um novo e importante movimento se forem sobretudo políticas, muito antes de serem meramente físicas e simbólicas – ainda que estas duas formas sejam essenciais à primeira. Estudantes pintando paredes imundas e varrendo sujeira do pátio por certo calam a boca da opinião pública que a priori gostaria de estigmatizá-los de vândalos e vagabundos. No entanto, não se está ocupando mais de mil escolas e quase duzentas universidades com esse objetivo, mas para se ter força política capaz de barrar propostas golpistas tais como o “Escola sem Partido”, a “Reforma do ensino médio” e a PEC 55 (ex-241).

Uma das definições da palavra “ocupar” que eu gosto muito, embora bastante abstrata, é a seguinte: “encher um espaço de lugar e tempo”. Ocupar politicamente, portanto, é encher um espaço vazio de “lugar de cidadania” e de um “tempo de evolução social”. Caso contrário, este espaço será ocupado por outros interesses, e o lugar resultante pode ser tão opressor, e o tempo de tanta involução social quanto indica a distopia que já se deixa avistar através da névoa corrupta que envolve a “Ponte para o Futuro” golpista. Só mesmo agindo politicamente o “Brasil, pátria educadora” golpeado terá nova chance de futuro. Só a política constrói lugares e tempos melhores.

Como, entretanto, os estudantes ocupantes podem ser efetivamente políticos apesar do romantismo performático que já glamoriza as ocupações, e que por isso as enfraquece politicamente? Ora, por mais radical que possa parecer, é só parando a “linha de produção” das escolas; parando as aulas; as aprovações; o ENEM; as formaturas de novos profissionais; da mesma forma que a classe operária para a sua produção e compromete economicamente a classe dominante que os oprime e explora até que esta se abra à negociação. Desafio, contudo, é fazer com que a falta da “mercadoria intelectual” que sai das escolas e universidades, de somenos importância para o nosso governo golpista, ameace tanto quanto uma greve de ônibus ou da polícia.

Para tanto, os espaços a serem ocupados devem transcender os “bunkers” das escolas. A famigerada estudante paranaense Ana Júlia, de 16 anos, por exemplo, fez isso. Ocupou os espaços da Assembleia Legislativa do Paraná e da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal transformando-os em lugares de fala dos estudantes e em tempos de escutá-los. Fossem todos os ocupantes Anas Júlias, a ocupação seria do tamanho do Brasil, e PEC alguma contrária ao futuro dos estudantes teria vez.

Uma lição fundamental a ser aprendida ainda na escola é que a ação política não tem fim; não chega a um patamar estável de onde não precise evoluir. Quando se institui um corpo político, a sua potência e alcance têm de ser constantemente aumentados na medida em que as forças que lhe fazem oposição também crescem. Em outras palavras, nossos adversários políticos se fortalecem em resposta à adversidade que recebem de nós, e por isso devemos aumentar a nossa potência política, tanto ou mais que a deles. Portanto, ocupar, sim! Mas esse é só um passo de uma luta que na verdade é uma caminhada sem ponto de chegada preestabelecido.

Lembremo-nos, toda a virtude política que explodiu em 2013 foi rápida e sorrateiramente deslegitimada pelo conservadorismo que contra-atacou em 2015 e 2016 tão munido quanto imbatível. Que as atuais ocupações aproveitem a explosão que performam, mas que não pensem que isso é tudo. O mundo não mudará apenas porque alguma tentativa para tal chamou atenção da opinião pública, mas sim porque essa tentativa é levada adiante, sem trégua. O degrau físico/espacial já foi alcançado. O simbólico/performático também. Mais importante, porém, é encarar o resto da escada, que é arduamente política, e em cujos patamares superiores está a possibilidade de realização dos objetivos postos pelo presente.

Ocupai!

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Ocupar é fazer política? “Claro que sim!”, diriam aqueles atenienses da antiguidade que ocupavam constantemente o espaço público, com seus corpos e ideias, em defesa de seus interesses. Democracia direta é como chamamos o que eles faziam. Mesmo que a erva daninha da representatividade política, ou o que é o mesmo, a democracia indireta tenha pervertido o antigo fazer político desde que o mundo é da burguesia, em nenhum lugar está escrito que política não possa nem deva ser feita novamente com corpos presentes e potentes representando diretamente os seus desejos e necessidades. As ocupações reencarnam intempestivamente a antiga virtude de combinar corpo e mente na ação política, refundando assim uma civilidade mais autêntica.

Entretanto, a elite política & econômica, que muito se beneficia com a ausência física dos seus representados, treme de medo ao ver cerca de 1200 escolas e universidades ocupadas por milhares de ideias e corpos tão frescos quanto promissores. Felizmente, apesar da burrice de boa parte da opinião pública e da violência policial, as ocupações estudantis crescem, aparecem e se legitimam como força política eficiente. Como não lembrar da vitória dos estudantes de São Paulo sobre o peessedebista Alckmin em 2105? Muito embora a guerra em torno da educação no Brasil não tenha vencedores ainda – se é que terá -, uma coisa importante aquelas ocupações paulistas provaram: são capazes de vencer batalhas. E porventura não é delas que são feitas as guerras?

Para que as ocupações não percam o fio virtuoso da meada política que desenrolam, e para que possam cada vez mais contra o inimigo que tenta reprimi-las, seja com algemas, fuzis, tortura sonora, “Escola sem Partido”, “Reforma do Ensino Médio” e/ou “PEC do fim do mundo”, é bom que os ocupantes compreendam política enquanto afetividade. Não sentimentalismos, estados de espíritos, como pode parecer a alguns, mas sim uma rede de relações, originadas nos corpos, que são afetados desta ou daquela maneira, e que, por suas vezes, afetam outros corpos, de outras tantas maneiras, a fim de alcançar determinados objetivos. Tanto o corpo individual de cada estudante, como o corpo coeso e determinado de centenas ou milhares deles, por exemplo, são corpos políticos autênticos; unidades capazes de serem afetadas e, sobretudo, afetar.

Nesse momento a física tem uma excelente e intuitiva lição às ocupações, qual seja: “dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo”. Seguindo essa a “Lei da Impenetrabilidade”, enquanto corpos coesos e organizados os estudante ocupam os espaços de suas escolas não só porque o corpo do Estado não os ocupava devidamente, mas também para que esse Estado ausente volte a ser corpo único com os próprios estudantes e faça a sua parte de oferecer educação e futuro com qualidade para todos os estudantes. E isso começa por ser democrático em respeito aos projetos que tem para a educação e para o futuro.

A física também nos diz que se um corpo G (de golpista) quiser ocupar o lugar de um corpo A (de alunos), terá de aplicar-lhe uma força que vença a determinação própria de A de permanecer no lugar em que está, ou seja, a sua inércia. A violência com que o Estado golpista tenta se (re)colocar nos espaços das escolas ocupadas é essa força. E ela está sendo violenta, desumana, sem dizer inconstitucional. E isso porque para o Estado o corpo estudantil é matéria bruta e inerte, com sorte massa de manobra, e não como um corpo afetivo, pleno de desejos, aspirações, projetos e dignidade própria. Tratando as ocupações como se invasões fossem, e os estudantes como vândalos e vagabundos, o Estado pretende abafar duas verdades insuportáveis: a sua vergonhosa ausência nas escolas, e o fato de seus projetos para a educação não falarem a língua dos maiores interessados, quais sejam, os próprios estudantes.

A crise de representatividade política que veio à luz nas manifestações de junho de 2013 está encarnada nos estudantes ocupantes como em nenhum outro corpo político no Brasil. Tomara que eles representem melhor a crise de representatividade do que as flores da “Primavera Brasileira”. Desde lá, não só seguimos sendo afetados negativamente pela má representatividade, como a qualidade desse “serviço” piorou tragicamente. Raros somos os que agem contra esse afeto. Os jovens ocupantes são desse jaez. Quem ocupa age na medida em que acredita mais em si e nos que estão ao seu lado do que em qualquer outro corpo político para representar os seus interesses. Tampouco aceita que o seu corpo seja movimentado politicamente apenas nos eventos bienais das urnas.

Assim como aqueles gregos ingênuos de antigamente, que acreditaram que só com seus corpos e ideias presentes representariam bem seus interesses e resolveriam civilizadamente as suas mais importantes questões – e que por conta disso ostentam o título de “Berço da Civilização Ocidental”! – assim também os estudantes brasileiros ocupam as suas escolas com seus corpos e ideias e com isso constroem um presente tão digno de futuro quanto eles mesmos. O fato de as ocupações brasileiras serem incompreensíveis e/ou inaceitáveis das perspectivas da elite reacionária e da população ignorante não depõe contra o movimento. Muito pelo contrário, apenas prova que as ocupações são fortes o suficiente para ameaçarem, e oxalá derrubarem o velho status quo. Por isso, fazendo referência à ocupação talvez a mais célebre de todas, a de Wall Street em 2011, ocupai!

Que fim do mundo para o Brasil?

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Algo chama atenção nos apelidos da PEC 55 (ex-241) e da delação premiada de Marcelo Odebrecht na Operação Lava Jato. A “PEC-do-fim-do-mundo” e a “Delação-do-fim-do-mundo” compartilham, de modo trágico e viral, a ideia apocalíptica. Que “zeitgeist” tupiniquim é esse que aproxima os brasileiros da escatologia? Qual desses dois fins do mundo entretanto o povo deve evitar, e qual investir? E como?

Não há dúvida de que o congelamento dos gastos com saúde e educação no Brasil pelos próximos vinte anos, como tenta a polêmica PEC, é o fim do mundo aventurado no Brasil durante a era petista. Outrossim a publicização de crimes cometidos por grandes e protegidas figuras políticas, dentre elas ninguém menos que o presidente golpista da república, promete ser o fim do mundo, não só da impunidade no corrompidíssimo sistema político brasileiro, como o do próprio e presente golpe de estado.

O primeiro “fim do mundo”, o da PEC 55, afetará muito, e negativamente o povo brasileiro. Já o segundo, ao contrário, é a negativação –ainda que inicial, parcial – do que há de pior no Brasil. Da perspectiva do povo – que deve ser a “de Deus”, afinal, se a voz do povo é a voz dEle… -, o “fim-do-mundo-odebrechteano” portanto é desejável.

Por isso o povo deve investir nesse fim do mundo e exigir do Rei da República de Curitiba, o “juizeco” Sérgio Moro que investigue, julgue e puna seus delatados como o apelido apocalíptico da delação que os traz à luz promete. Como, porém, exigir isso de juiz tão empoderado quanto comprometido com os seus investigados, ainda mais na “judiciocracia” em que se transformou o Brasil?

Ao mesmo tempo o povo deve resistir contra a PEC-do-fim-do-mundo. A ocupação de mais de 1100 escolas e 70 universidades brasileiras contra os cortes em investimentos sociais, se não é a única solução, ao menos está colocada como a mais forte e promissora no momento. Basta, por conseguinte, que sejam fortalecidas e engrossadas para que haja possibilidade de o povo não ser oprimido como planejam seus algozes golpistas.

Minha aposta para ambos os desafios é no formato da ocupação como estratégia política. A exemplo do que está acontecendo dentro das escolas ocupadas, e que ganha cada vez mais força fora delas contra a PEC escatológica, ocupar os palácios do Poder Judiciário do país seja quiçá a única forma de o povo fazer uma pressão impossível de ser ignorada pelo “judiciocrata” Moro, para que a tal delação apocalíptica seja levada a cabo.

E isso porque ocupação é política feita com corpos. E se, como diz a física, dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, o corpo presente e resistente do povo nos lugares onde golpistas, corruptos e juízes vendidos atuam contra esse mesmo corpo popular é a melhor estratégia “que temos para hoje”. Se isso será o fim do mundo, oxalá o seja conforme imaginou Dostoiévski: “no fim do mundo … há de acontecer algo de sublime que satisfará todos os corações.”

Talvez o melhor apocalipse de todos seja mesmo o fim do mundo no qual o povo é corpo político ausente e miseravelmente presentificado pelos desgovernos dos seus representantes. E quem irá negar que a crise de representatividade política aberta espetacularmente em junho de 2013 é o que mais legitima e torna necessárias as atuais ocupações no Brasil? Afinal, onde ocupa o povo, não ocupa quem não o representa.

Incompetente demiurgia tupiniquim

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“Deus é brasileiro”, aquela expressão tão popular quanto ingênua, está sendo customizada pela mais histérica ignorância a ponto de os antigos conterrâneos dEle estarem já acreditando que “brasileiro é Deus”. “Hilary Clinton é comunista”; “Lula é o maior quadrilheiro da história do Brasil”; “filosofia, sociologia e arte são coisas de vagabundo”; e até mesmo a maior irrealidade de todas, “Cunha salvador”; é o que senão a plena ignorância mundana pretendendo-se onisciência divina?

Querer fazer destas afirmações verdades absolutas, se não é pretender agir como Deus, ou seja, criar o mundo do nada, é ao menos a mais pretensiosa demiurgia, isto é, a tentativa de fazer com que uma coisa seja absolutamente outra. É justamente isso o que acontece no Brasil: basta empunhar e tilintar uma panela aqui, vestir a camiseta da corrupta CBF ali, e, voilá, eis um novo “real” circulando pelas ruas do Brasil, por mais que a realidade ela mesma afirme o contrário.

Ora, se lá nos EUA Trump diz que imigrantes e muçulmanos devem ser expulsos porque assim ele deseja, e no Brasil Aécio sustenta que a voz do povo – que até então era a voz de Deus – errou ao eleger Dilma, por que cargas d’agua qualquer cidadão brasileiro não pode fazer o mesmo e inventar uma real para si? Se hoje em dia até os mais pobres sentem-se capazes de criar o mundo que lhes passa pela cabeça, imagina as elites, cuja vantagem é crer que compartilham a riqueza do mundo com aqueles dois “deuses caídos & reacionários”.

O problema é que essa produção de mundos inexistentes não chega nem perto de se colocar como utopia, ou seja, como imaginação de um mundo futuro libertador. Pior ainda, tem o vício de ser uma distopia, isto é, a ideia de um futuro decadente e opressor, só que trazido fortuitamente para o presente. Pressa em adiantar o apocalipse?

O brasileiro, enquanto um Ansioso Deus Distópico, remete ao que disse Slavoj Žižek no seu livro “O sofrimento de Deus”, qual seja, que “adotar uma postura apocalíptica é a única maneira de mantermos a cabeça fria”. Para o filósofo, isto faz sentido na medida em que querer se preocupar com o futuro a partir do que o presente está fazendo com ele é realmente não ter mais mas paz de espírito alguma.

E é exatamente isso o que a maioria dos brasileiros está fazendo: trazendo o caos que o capitalismo globalizado produtor de desigualdade e opressão sempre coloca no nosso horizonte para o exato agora. Assim a angústia dessa espera vira coisa do passado, mesmo que o preço para tal seja viver o “Apocalipse Now”. Mas por que o imediatismo contemporâneo é distópico & reacionário, e não “utopique et révolutionnaire?

Onde foi que a ideia de revolução frustrou o povo brasileiro a ponto de, hoje em dia, a maioria marchar deliberada e reaccionariamente? Longe de ser revolucionário, é preciso dizer, o lulismo no entanto foi a nossa maior aproximação da velha utopia de igualdade social, de divisão de renda e de oportunidade para todos. Seria porventura a timidez, e a consequente incompletude desse “socialismo à lá Lula” a razão da atual e massiva recusa a essa tentativa?

Se, como se diz, “Deus mora nos detalhes”, e, como está sendo dito aqui, o brasileiro pós-Lula comporta-se como se fosse Deus, uma boa conclusão para esse silogismo é o fato de o brasileiro ter se sentido apenas um detalhe desde o governo Lula. O problema é que antes, até o governo FHC, o povo era um detalhe ainda mais irrelevante, e que é exatamente o oposto com o governo Lula no qual o povo foi “a” preocupação central

Talvez esteja aí a chave da questão: enquanto o povo permanecia realmente um detalhe esquecido na realidade socioeconômica brasileira, ele não sabia que o era. Somente depois de Lula ter tentado fazer desse histórico detalhe menor, o povo, o centro focal da sua obra política, mas no entanto não tê-lo feito completamente, como uma crítica acurada precisa apontar, foi que este povo reconheceu-se como detalhe, ainda que minimamente focalizado como, nas palavras do próprio Lula, “nunca antes na história desse país”.

É como se a maioria da população tivesse chegado à conclusão de que “não deu”; “nem o Lula, o nosso grande pai, conseguiu nos salvar”; “deu-nos uma televisão de plasma aqui, um carro popular ali, uma viagem para a Europa acolá, mas consciência de classe que é bom para podermos revolucionar a realidade que desde sempre nos oprime, ah, isso ele não fez”. E o povo tem razão em se revoltar contra esse pai incompleto qual adolescente rebelde.

Fugimos então da casa da velha democracia; abandonamos o lar da razoabilidade; e nos refugiarmos debaixo da “Ponte para o Futuro” que o passado nos oferece espetacularmente. Aceitamos as pedras de crack políticas que os golpistas no oferecem para fumar, que, ao passo em que nos aliena da nossa presente frustração, rouba-nos a possibilidade de sermos saudáveis, livres e respeitados.

“Ah, Pai Lula e Mãe esquerda, vocês não me amaram o suficiente! Então vou dar motivos para vocês não me amarem de verdade: vou me entregar à droga da direita! Eis o que acontece. Qual Lúcifer caído, arrogamo-nos o direito de sermos deuses ou semideuses nós mesmos, criadores ignorantes de nossa realidade menor. Demiurgos incompetentes cujo destino é viver no inferno. Era ou não melhor quando o brasileiro acreditava apenas que Deus era conterrâneo seu?

Obrigado Doria. Obrigado Crivella.

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Graças a Deus “Universal” e ao chiquérrimo Yves “Saint” Laurent por terem escolhido o pastor Marcelo Crivella e o coxíssimo João Doria para governarem as duas mais espetaculares cidades brasileiras – muito embora eu tenha votado no Freixo, aqui no Rio, e, se fosse eleitor paulistano, teria escolhido o Haddad sem a menor sombra de dúvida.

Mas por que cargas d’água agradecer por algo que para muitos é tão trágico? – perguntaria justamente a minoria vencida em ambas as cidades? Ora – respondo – porque a única, todavia grande virtude dessa tragédia é o fato de a realidade estar sendo coerente consigo mesma.

Para entender essa ideia basta lembrar do que vem acontecendo no Brasil nos últimos dois anos: as panelas ruidosas nos metros quadrados mais caros do país contra a divisão de renda aventurada nos governos petistas; a “jihad” golpista da direita derrotada nas últimas eleições presidenciais para “eleger” indiretamente a fatídica “Ponte para o Futuro” deles; o Escola sem Partido; a PEC 241.

O que todas essas coisas tem em comum, sua estrutura genérica implícita, é nada outro que uma ofensiva incontrolável das direitas contra as esquerdas. E isso não é exclusividade do Brasil. No resto do mundo, a Europa de Le Pen e os EUA de Trump exemplificam muito bem esse movimento. A presente tragédia da realidade, portanto, é o protagonismo vitorioso e espetacular do 1% rico, que, para tal, precisa colocar os 99% restante mais na sombra ainda.

Tanto é assim, e tão generalizadamente, que nem cabe mais falar em “onde” a esquerda está sendo destruída pela direita, mas sim de “um tempo” – o presente – no qual isso acontece irrefreável e globalmente. E é desse ponto de vista que Doria ter sido escolhido pela rica sampa, e Crivella, pelo Rio reacionário, provam que a realidade está sendo consistente consigo mesma, sem falha alguma. Pelo menos isso!

Sejamos sinceros, e principalmente racionais: na época reacionária em que vivemos, se por acaso o petista Haddad tivesse vencido na “peessedebeizada” Terra da Garoa”, e o “esquerda-radical” Freixo tivesse ganho na cidade que só é “maravilhosa” para quem tem fé, seria como se a realidade estivesse, ou confessando que é esquizofrênica, ou tirando sarro da cara de todo mundo.

Às combalidas esquerdas tupiniquins é melhor que essa realidade se apresente em sua insuportável coerência mesmo. Reside aí quiçá a oportunidade para elas desacreditarem de seus muitos idealismos, para, aceitando plenamente a queda, reexperimentarem o gosto amargo que acompanha qualquer materialismo, e que nunca deveria ter sido esquecido. Só assim as esquerdas, parafraseando o samba de Beth Carvalho, sacodirão, levantarão a poeira e darão a volta por cima.

Foi um pecado político ter tido esperança de que o Haddad venceria em sampa, e o Freixo, no Rio. E isso porque esperar é não agir; é se privar do ato em função dos próprios idealismos; Conforme reza o materialismo de Espinosa: é cultivar a própria impotência, nada além disso. Para além das atuais derrotas das esquerdas paulista e carioca, é a coerência da realidade consigo mesma que devemos ter estômago para experimentar em toda a sua gravidade.

Afinal, é esse o (des)gosto que qualquer revolucionário deve engolir, ainda que a contragosto, caso queira efetivamente “mudar o mundo”. Agradeçamos à realidade o fato de ela estar se mostrando nua e cruamente. Vejamo-la sem os nossos tantos véus ideais. E, sobretudo, não nutramos esperança em relação a ela.

Por isso, repito: obrigado Doria, obrigado Crivella. Primeiramente, por permitir-nos ver a realidade como ela é, ou melhor, como está. E, segundamente, por frustrarem radicalmente as nossas esperanças. Agora estamos mais com os pés no chão do que antes – muito embora saibamos que esse chão se trate de um lodo fétido e reacionário.

Eu, o Brasil, e a filosofia.

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Dois mil e quinhentos anos é o tempo da filosofia no mundo. Faz pelo menos vinte que ela é presente na minha vida. E há três eu decidi graduar-me nela. “Mas, por quê?” – perguntavam-me à época. A resposta banal que eu dava era que a minha “philia” pela “sofia” era tamanha e tão antiga que eu precisava conhecê-la intimamente antes de morrer, afinal, não é bom que seja assim com as coisas que nos fazem felizes?

Em 2014, quando eu então ingressei na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, o senso comum acerca da filosofia me dizia, através dos comentários de familiares, amigos e conhecidos, que essa era uma profissão que não me daria dinheiro algum, muito embora fosse “bem interessante”. “Ainda bem que vc já tem uma profissão, pois sobreviver de filosofia vai ser bem difícil”, era o texto – ou o subtexto – que eu mais ouvia.

A despeito dessas pessoas, o meu objetivo íntimo com o “amor ao conhecimento”, era, e ainda é, ser professor/pesquisador em uma universidade, e pública, de preferencia. Objetivamente, o salário e as condições de trabalho, na época, me pareciam bastante dignos, e, subjetivamente, eu não tinha dúvida de que era a melhor ocupação até a minha morte, porque, citando Montaigne, “filosofar é aprender a morrer”.

Já no governo Dilma, contudo, a coisa começou a mudar. A terceirização de professores passou a ser presente no horizonte das universidades públicas brasileiras. Em outras palavras, as universidades não teriam mais pesquisadores em filosofia, dentre cujas atividades estaria dar aulas, mas simples horistas, funcionários contratados por outras empresas prestando serviço às universidades, como já acontece com a limpeza e a segurança dessas instituições. Uma quase “uberização” de tão nobre profissão.

Entretanto, o meu amor ao “amor ao conhecimento” não me deixou afastar um milímetro sequer dos meus estudos filosóficos. Resistência! Antes, a crise que aterrissava na universidade pública, e por consequência na da pista essencialmente crítica da filosofia, eram cada vez mais compreensíveis, e sobretudo suportáveis, quanto mais eu estudava Maquiavel, Espinosa, Kant, Hegel, Marx, entre tantos outros. Paradoxalmente, a própria faculdade de filosofia prometia me salvar da crise nas faculdades de filosofia.

Só que a coisa piorou mais. A partir de 2015 o espetáculo do impeachment que ocupou o palco da vida brasileira, muito antes de tirar Dilma da presidência, de imediato já “impitimou” a maioria das pessoas da presidência de suas próprias razões. “Intervenção Militar Já” e “Monarquia no Brasil”, só para citar duas das muitas barbaridades que passaram a ser inacreditavelmente lógicas na terra brasilis, implicitamente ameaçavam o horizonte do pensamento crítico e do culto ao saber.

A história nos lembra de que, diante de reis e ditadores, aqueles que questionam a realidade são enforcados, torturados, ou, com sorte, exilados. Agora chegou a vez de serem lumpemproletarizados! No entanto, novamente, o tsunami irracional que passou a assolar o  Brasil apenas me dizia que a torre da filosofia era o lugar mais seguro, não só para mim, mas para quem não quisesse se afogar na barbárie. Até porque a barbárie só é observável do belvedere da civilização, cujos arquitetos excelentes foram aqueles gregos filósofos da antiguidade. Do contrário, a barbárie é o real sem nome, sem conceito, e portanto sem escapatória.

Porém, em 2016, com o golpe de estado dado pela velha oligarquia política/econômica, o pensamento crítico deixou de ser um inimigo implícito do então poder protagonista. O “Escola sem Partido”, e sobretudo o fim do ensino de arte, sociologia e filosofia nas escolas, golpisticamente travestido de “desobrigatoriedade”, são ações concretas, não só contra o conhecimento, como principalmente contra o amor a ele.

Hoje em dia é o Estado que me diz, verticalmente e com todas as suas tortas letras, que filosofia é um péssimo negócio. E o terremoto da razão tupiniquim que começou em 2015, em 2016 faz com que o fato de alguém estudar filosofia – mas também sociologia, história, artes – seja considerado falha de caráter. “Pobre”, “vagabundo”, “comunista”, e até mesmo “petista” passaram a ser sinônimos de quem se ocupa com ciências sociais ou arte, claro, de acordo com a (des)razão que impera no Brasil atualmente

E com a PEC 241, mais conhecida como “PEC do fim do mundo”, o fato de se ter uma graduação em filosofia, mais do que antes, não dará dinheiro mesmo, e agora, pelo menos durante os próximos 20 anos. Sem dizer que, ideologicamente, será uma chaga purulenta da perspectiva da classe golpista dominante. Só que o domínio dessa classe, embora notadamente econômico e político, para por aí. Pois o desprezo dela em relação à razão e ao saber, embora fantasiado de senhor,  não deixa de ser escravo, e o que é mias grave, do pior de si mesma.

Se, diferente do que planejei em 2013, o meu destino em filosofia, no Brasil, a partir de 2016, é ser pobre e marginalizado, que assim seja. Tamanha adversidade pode inclusive fazer com que a filosofia brilhe mais forte, não só em mim, mas, com sorte, no meu país, mais do que se o pensar se encontrasse em condições totalmente favoráveis, o que, na verdade, estimula-o menos. Afinal, parafraseando o dito popular, o que é proibido e marginalizado por uma ideologia retrógrada e golpista é muito, muito mais gostoso, sem dizer necessário.

Papo reto, carioca.

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“Malandro é malandro e mané é mané”, dirá eternamente o samba de Bezerra da Silva. Por agora, entretanto, para a cidade do Rio de Janeiro, que neste domingo escolhe o seu novo prefeito, o verso de Silva deve ser parafraseado caso o carioca queira seguir cantando a sua malandragem. Para tanto, a música que deve fazer reverberar nas urnas é a seguinte: Malandro que é malandro vota em Freixo e mané que é mané vota em Crivella.

Fala sério! Que malandro iria preferir ser governado por um pastor evangélico homofóbico, racista, classista, fantoche da pior direita fundamentalista, em vez de confiar os próximos quatro anos de sua cidade a um professor de história, laico, democrático, libertário, inclusivo e representante autêntico de uma das melhores esquerdas que temos no momento? Malandro que escolhe o primeiro, desculpe-me, é mané, ainda que tenha sido doutrinado do contrário.

Mané é aquele que não percebe que o Crivella, ao dizer: “Quero mudar radicalmente a saúde e a educação dos cariocas”, e ao mesmo tempo ser apólogo ferrenho da PEC 241, trata, não só os seus fiéis, mas o povo como um todo, como ignorantes que não irão enxergar que ele, primeiramente, quer encher os bolsos de sua Igreja, e, segundamente, engordar os cofres dos banqueiros e empresários. Se o pastor vai mudar radicalmente a saúde e a educação dos cariocas, o fará, no entanto, para pior.

A cidade boêmia e alegre que só ela, lar e destino turístico de gays e lésbicas de todos os cantos do mundo, terra de todas as cores, religiões e classes sociais, não pode de forma alguma ter como prefeito um sujeito que discursa descaradamente que homossexualidade é pecado e/ou doença; que pelo fato de as mulheres terem sido “feitas da costela de Adão devem obedecer mais aos homens”; que o catolicismo é uma religião de idólatras hereges; e que, num jantar religioso/político em um apartamento chique na Vieira Souto, diz que “o povo lá de trás” – os suburbanos e pobres- tem que entender a priorização da já rica Zona Sul, “afinal, é a vitrine do Rio!”

Mané que é mané escolhe os seus representantes políticos de acordo com a ordem do pastor mais próximo, sem levar em consideração que há séculos a coisa mais racional é separar completamente política e religião. Malandro que é malandro, ao contrário, independentemente de sua fé – ou da falta dela -, não se esquece de que a política existe para de resolver problemas mundanos concretos, como saúde, educação, segurança, e que melhor realiza essas tarefas quanto mais distante estiver de questões espirituais abstratas.

O Brasil é um Estado laico, diz a Constituição, e, por consequência, a cidade do Rio de Janeiro. Malandro não só respeita essa determinação, como também está em sua essência querer que isso seja respeitado por todos. Já o mané, em contrapartida, rasga a letra da lei do país ao votar em um candidato que profetiza que “ainda teremos um presidente da República evangélico que finalmente faça por nossa Igreja”, como disse Crivella em um de seus cultos/comícios.

Votar no pastor que defende a PEC do fim do mundo, o Escola sem Partido, o fim das discussões sobre gênero, é transformar a pretensa Cidade Maravilhosa em uma cidade medieval em pleno século XXI. Votar em Freixo, em contrapartida, que defende justamente o oposto do pastor, é fazer o Rio de Janeiro ser, não maravilhoso, coisa que um mínimo realismo mostra que demorará muito ainda, mas ao menos um pouco melhor do que já é. Só assim será possível esta cidade, um dia, ser maravilhosa. Por isso, malandro, nesse domingo é Freixo 50!

O Estado contra o povo. E este?

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O Estado brasileiro está em guerra contra o povo! Primeiramente, o golpe parlamentar dado por um bando de criminosos cínicos, e, por último, a PEC 241 deles, seguida da tentativa de impedir manifestações e greves contrária a esse mesmo Estado golpista, sugerem que o “PMSDB”, o Frankenstein oligárquico que tomou o país de assalto, seja o grande inimigo. Só que não! Tais políticos golpistas são só a metralhadora giratória do verdadeiro inimigo. Quem é ele, na verdade? O que está fazendo o povo atacado? E se não está, por que essa passividade diante de tamanha violência?

Se, como a práxis liberal não faz questão de esconder, a política apenas faz o trabalho sujo da economia, o monstro que está em guerra contra o povo, portanto, é ninguém menos que o 1% da população que detém 50% da riqueza, como bem nomearam e popularizaram os 99% restantes e manifestantes do  Ocuppy Wall Street de 2011. Sim, é essa minoria, dona espúria de pelo menos metade da riqueza, e que quer mais ainda – desejo sem o qual capitalismo algum se sustenta -, que está em guerra contra o povo.

“O Capital do Século XXI”, livro que Thomas Piketty lançou em 2013, traz informações suficientes para vermos que, atualmente, a concentração de riqueza nas mãos de poucos é maior do que na Belle Époque, período entre o quarto final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial no qual se observou a até então a maior desigualdade socioeconômica da história da humanidade. Cínico mesmo é aquela época seguir sendo chamada de bela. “Belle” para quem, cara pálida&rica? Outrossim cínico é o programa de guerra dos golpistas brasileiros, o “Ponte para o Futuro”, que, entretanto, ao povo outra coisa não diz senão aquele verso de “God Save the Queen”, do Sex Pistols: “No future for you”.

Com efeito, o 1% está mais poderoso – e ávido – do que nunca! E é ele que, na verdade, dispara golpes, PECs, partidos políticos e juízes entogados contra os 99% restantes. De modo que, apesar de ser uma difícil tarefa, não devemos gastar toda a nossa revolta contra os políticos e juízes espetacularmente golpistas, visto que a atual e forte investida destes contra o povo é só o projeto/projétil dos seus discretos patrões neoliberais. Marxianamente falando, o inimigo é essencialmente econômico/capitalista, e só aparentemente político/brasileiro.

Agora, se, como explica Piketty, as astronômicas concentração de riqueza e desigualdade socioeconômica da Belle Époque só foram alquebradas pela primeira grande guerra (1914), assim como a tentativa de retomá-las foi frustrada pelo segundo conflito mundial (1939) – e isso porque, segundo o autor, nessas duas ocasiões a riqueza acumulada foi contragosto “socializada”, tanto no investimento bélico dos Estados antes e durante as guerras, quanto na reconstrução das sociedades, depois delas -, as atuais e ainda maiores concentração de riqueza e desigualdade socioeconômica dos 1% que se voltam política&belicamente contra os “99%”, seguindo a lógica pikettyana só seriam malogradas por uma Terceira Guerra Mundial.

Não obstante a certeza de Piketty de que um terceiro conflito global faria isso, o investimento teórico do economista é em um reformismo social democrata, que, no entanto, como a realidade mostra muito bem, só entrincheira confortavelmente os interesses dos 1%. Portanto, em função dos interesses dos 99%, sigo apostando na violência disruptiva, seja a das grandes guerras, seja ainda, nacionalmente, a da guerra civil.

Se o voto do cidadão já não vale nada, como o atual golpe deixou bem claro, tampouco é possível acreditar em hashtags, como largamente se faz hoje em dia. As #NÃOVAITERGOLPE, #FORATEMER e #NÃOÀPEC214, só para citar três famosas, embora massivas são todavia andorinhas solitárias que, politicamente, não tem capacidade alguma de fazem verdadeiros verões populares. Não os fizeram; não os estão fazendo; e não os farão! Nem mesmo as estratégias clássicas do povo contra a dominação das elites, como megamanifestações populares e/ou greves nacionais, funcionam mais; aquelas facilmente anuladas pela mídia; e estas, despoticamente ameaçadas por juízes golpistas.

Como disse Alain Badiou dos revolucionários de maio de 1968, eles perderam a “guerra” porque insistiram em velhos conceitos e performances da “esquerda revolucionária” que, entretanto, já estavam computados subversivamente pela direita inimiga. Não foram verdadeiramente revolucionários porque não foram suficientemente violentos. Isto é, não violaram o jogo de cartas marcadas imposto a eles pelo inimigo. Da mesma forma, a resistência tupiniquim contra os seus ativíssimos algozes é tão ou mais velha que estes.

Àqueles que sustentam, não sem razão, que as guerras são, em última instância, eficientes ferramentas do capitalismo para, em meio a uma crise, retomar grande e maior fôlego, é preciso contrapor que, se, por um lado, a violência máxima possibilita uma maior dominação do capital, por outro, retomando Piketty, é somente durante e imediatamente às guerras que é impossível para o capital seguir o seu curso natural de acumular-se em cada vez menos mãos, empoderando-as contra o povo. Então, não seria o caso de o povo querer grandes guerras, por exemplo, a cada 20 ou 30 anos?

O problema dessa ideia é o seu radicalismo, principalmente para os sujeitos burgueses&hedonistas, demasiado burgueses&hedonistas que somos. Hoje em dia não há nada mais absurdo do que imaginar arriscar a vida por uma nobre causa. Preferimos ser golpeados, vilipendiados cinicamente em nossos direitos, mesmo com alto e consequente preço de os 1% detentores de 50% da riqueza se tornarem os 0,01% donos de 99,99% da mesma riqueza, do que colocarmos nossos corpinhos lumpemproletarizados, todavia satisfeitos com uma TV de plasma e um automóvel popular, na linha de frente de qualquer guerra. A burguesia foi o berço excelente desse sujeito tão covarde quanto alienado do seu horizonte de respeito e liberdade.

Porém, ainda que, no caso brasileiro, deflagrar uma guerra civil estivesse no horizonte povo, como este se organizaria? Com que armas lutaria conta o violento Estado golpista? Antes que ressurjam velhos AIs ditatoriais ao modo do golpe de 1964, confesso que eu não só empunharia metralhadoras contra o parlamento golpista do meu país, como também, se alvejado fatalmente, nos últimos segundos de existência que me restassem, fruiria o maravilhoso gosto agridoce – que se confunde com o de sangue – de ter dado o valor máximo à minha simples vida.

Todavia, quase todos os meus concidadãos insatisfeitos com a situação do nosso país – com certa exceção aos Black Blocs, é preciso dizer – são tão “esquerda festiva” e “hashtaguicos”, tão pouco dispostos à violência radical, que, como andorinha solitária, é impossível participar que qualquer verão sangrento contra o invernal Estado golpista. Três companheiros do Partido Comunista Brasileiro com quem conversei disseram que não sabem de nenhuma resistência armada sendo formada contra os golpistas de Brasília, nem nada do gênero. Quando aqueles que são radicalmente contra a dominação dos 99% pelos 1% não têm em seu horizonte outras regras que não aquelas ditadas por estes 1%,  a guerra realmente é perdida antes mesmo de ser imaginada.

Talvez o Estado golpista inimigo não tenha até aqui sido tão violento, tão inimigo do povo a ponto de este se organizar, violenta e belicamente, contra ele – por mais que os poucos meses de golpe devessem provar o contrário. Pergunto-me, por conseguinte, quanto tempo levará; quantos direitos os golpistas ainda terão de furtar do povo para que recebam uma contraofensiva radical e mortal?

Espero que a demora do povo brasileiro em aceitar o convite à guerra que o Estado já declarou contra ele seja quiçá o tempo de o povo entrar em constelação em seu atual e absurdo vilipêndio, não mediante hashtags nem passeatas festivas, mas, como a teoria política de Spinoza propõe, em armas. E isso porque, no atual estado da guerra, retórica alguma dá melhor voz ao povo do que muitos e certeiros estampidos de revólver. Basta apenas que o povo perca o seu burguês medo de morrer lutando pelo que lhe é essencial, encarnando algo de uma esquecida antiguidade anterior ao capitalismo, qual seja: o heroísmo inegável de morrer na guerra que não pode deixar de ser travada.

O protofeminismo de Montaigne

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Michel de Montaigne, em pleno século XVI, inventou o “ensaio”, estilo literário cuja característica é a expressão de um ponto de vista pessoal e subjetivo sobre um tema; mais especificamente, um modo de escrita que orbita em torno do “eu”. Até então sem espaço de expressão para além das esferas filosófica, científica e poética, e cem anos antes de Miguel de Cervantes abrir o universo do romance com o seu Dom Quixote de La Mancha, este “eu” teve de ensaiar-se para além das tradicionais Torres de Marfim literárias. E nessa aventura algo inédito na intelectualidade de até então surge: a consideração do inferior lugar reservado à mulher enquanto fruto da deliberação masculina apenas.

O que, entretanto, levou Montaigne a ensaiar em si mesmo espécie de protofeminismo, visto que, sendo homem, nobre, rico, branco, heterossexual e cristão, não lhe faltavam razões para dar seguimento à tradição da velha e forte superioridade masculina? Arrisco dizer que, na onda de um famoso contemporâneo seu, o filósofo René Descartes, cuja máxima era “Eu penso, logo eu existo”, Montaigne fez algo como “Penso o eu, logo outros ‘eus’ existem”. E com essa existência pessoal e subjetiva pluralizada, os costumes de sua época não escaparam de serem relativizados. Dentre eles o sexismo secular de que o próprio Montaigne, antes de pensá-lo ensaisticamente, era reprodutor inadvertido.

Escrevendo livremente da proa de seu “eu”, Montaigne traz à superfície o mundo masculino, demasiado masculino, fundamentado em ideias tais como: “as mulheres não são muito aptas a tratar das matérias de teologia”, visto que “não lhes custa passar por cima de uma razão, tanto quanto por cima de outra”; ou, que “é uma tendência natural das mulheres discordar dos maridos […] dada a fraqueza habitual desse sexo”. Seus “Ensaios” explicitam muitas considerações desse calibre, que, entretanto, não precisamos citar para que fique clara a “ideia masculina de mulher” presente no século XVI, e que infelizmente até agora sobrevive, embora  desde sempre condenável.

Entretanto, é somente encarnando e atravessando esse sexismo assaz naturalizado trazido à letra por Montaigne que podemos acompanhá-lo nos seus primeiros passos para longe dessa vil naturalização. Permanecer com ele ao longo de suas sentenças machistas é um modo de encontrar algo da “arché” do movimento intelectual moderno que constituiu a ideia da igualdade entre os sexos que até hoje, no entanto, resta inconclusa. Algo não permanece no lugar do “eu” de Montaigne depois que ele, falando dos costumes de seu tempo, diz, por exemplo, que “educamos as mulheres desde a infância para os preparativos do amor: sua graça, seus adereços, seu saber, suas palavras, toda a instrução delas só tende a esse objetivo”.

Na tentativa de se afastar desse “eu” sexista que acabava de se assumir literariamente, Montaigne ainda tropeça no seu próprio machismo com frases que visam justamente superá-lo, tais como: “é preciso soltar-lhes um pouco as rédeas”; “temos de deixar boa parte de sua conduta à própria sensatez delas”; ou ainda pior, “ensinemos as mulheres a se valorizarem, a se estimarem, a nos divertir e a nos embair”. Todavia, algum “perdão” começa a ser possível quando ele finalmente reflete que “as mulheres têm infinitamente a temer nossa dominação e nossa posse integral: depois que se entregaram totalmente à mercê de nossa fé e de nossa constância estão um tanto em perigo”.

Na promenade que iria afastá-lo do lugar comum usucapido pelos homens, clara quando Montaigne realiza que “nossos pais formavam o comportamento de suas filhas para a vergonha e o medo, e nós, para a segurança, muito embora os corações e os desejos sempre foram iguais”, o ensaísta localiza não somente a gênese da dissimetria entre homens e mulheres na educação que ambos recebem, como também a subsistente, porém negada, igualdade entre os sexos. Seu “eu” é obrigado a reconhecer que, enquanto os homens gozam de plena liberdade, “os costumes fazem em geral a lei tão dura para as mulheres e tão escravizante que a mais remota relação com um estranho é considerada tão grave quanto a mais íntima”.

Montaigne faz-se então a pergunta que, se não é suficiente para torná-lo um feminista, pelo menos tem a virtude livrar-lhe do latifúndio do machismo de até ali: “de onde pode vir essa autoridade soberana e usurpada que nos arrogamos sobre as mulheres que, à própria custa delas, nos garantem seus favores?” Tanto a secularidade da qual o ensaísta era conhecedor profundo, quanto o dogma religioso do qual era crente devotado, não bastavam mais para justificar ao “eu” de Montaigne a submissão das mulheres aos homens. Tanto que vaticina: “As mulheres não estão nada erradas quando recusam as regras de vida que se introduzem no mundo, porquanto foram os homens que as fizeram sem elas.”

Passa a defender que “ouçamo-las descrever nossos assédios e nossas conversas” e que “não lhes oferecemos nada que não saibam”. Uma evolução e tanto para um “eu” que, páginas antes, sustentava que em matéria de razão elas não eram tão aptas quanto os homens. Não obstante esse singelo progresso, o sexismo de Montaigne insinua-se novamente, como que ferido por si mesmo. Tentando compreender a igualdade entre os sexos a qual a sua escrita o levava, pergunta-se: “seria isso que diz Platão, que outrora elas foram rapazes libertinos? Aqui podemos perceber o autor tentando encontrar a igualdade que ensaiava entre homens e mulheres no fato de “elas”, em algum momento, terem sido “eles”.

Montaigne, porém, não deixa de trilhar o caminho protofeminista aberto nos seus ensaios. Sobre a sexualidade feminina, o grande tabu da época – suplantado somente pela sexualidade infantil revelada por Freud quatro séculos mais tarde-, o autor escreve que “a própria ideia que fazemos sobre a castidade delas é ridícula”. Ora, coloca Montaigne, assim como “os deuses forneceram-nos um membro desobediente e tirânico, da mesma forma, proveram as mulheres de um animal glutão e ávido”. Vemos aqui que o ensaísta se afasta do ideário de seu tempo na medida em que não mais entende a libido feminina como se fosse pecaminosa, problemática, nem tampouco diversa da masculina.

Criticando a exigência masculina sobre as mulheres que o seu tempo havia naturalizado, todavia às custas da liberdade delas – percepção que só foi possível a ele através da livre expressão de seu si -, Montaigne diz a todos os homens do mundo e a ele mesmo que “seria preciso que elas se tornassem insensíveis e invisíveis para nos satisfazer.” Porém, como para o “eu” ao qual chegou o autor depois de muito ensaiar-se, “os homens e as mulheres, salvo a educação e os costumes, são feitos do mesmo barro”, a invisibilidade e a insensibilidade delas é tão antinatural e imprópria quanto a dos homens. Não mais fruto da costela masculina, como a tradição teológica sempre defendeu, Montaigne deixa escrito nos seus ensaios que a mulher é tão obra do Oleiro divino, ou, espinosanamente falando, da natureza, quanto o homem.

Se, por um lado, o nobre do Castelo de Montaigne, pelo fato de muito ter replicado o sexismo de seu tempo ao descrevê-lo ensaisticamente não merece ser chamado de feminista, por outro lado, contudo, temos de reservar a ele um lugar distinto que não o continente machista povoado por todos os homens, desde a antiguidade até o seu tempo. E mesmo que seja – e deva ser! – uma afronta ao feminismo defender que este movimento só foi possível porque um dia um escritor homem e ensimesmado questionou o machismo do qual ele mesmo, ao modo de boiada, era constituinte, Montaigne todavia é notável por ter produzido quiçá a primeira rachadura na secular muralha do Império Masculino.

Retornando às raízes do Estado com Thomas Hobbes

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“Quem tem medo do Lobo Mau?”, cantarolava Chapeuzinho Vermelho enquanto cruzava o bosque, não porque destemesse verdadeiramente a fera, mas, ao contrário, porque precisava se alienar desse temor para seguir caminhando. Visto que “homo homini lupus”, isto é, que o homem é o lobo do homem,  como disse o dramaturgo romano Plauto duzentos anos antes de Cristo, e como repetiu categoricamente o filósofo inglês Thomas Hobbes dezenove séculos depois, os seres humanos têm medo do Lobo Mau na medida em que sabem que o maior perigo – o lobo – é o outro – humano.

Assim como Chapeuzinho, todavia nas nossas urbes globalizadas, cantarolamos para nos distrairmos do perigo que somos uns para os outros. Só que fora da ficção, entoar melodias ingênuas não basta. Hobbes deixou bem claro no seu “Leviatã” que precisamos da pesada ópera do Estado Civil para que o frágil espetáculo das nossas vidas prossiga com um mínimo de segurança. Usamos o “earplug” leviatânico para deixar de ouvir o ruído insuportável do “homo homini lupus”, que na teoria do filósofo inglês se eternizou no “medo da morte violenta”, o fundamento seu Estado.

A gravidade dessa fundamentação, todavia, encontra severa resistência nos sujeitos burgueses-tardios que somos. Parece uma afronta até assumir que nos organizamos civilmente por causa do medo de sermos mortos violentamente – muito embora tal temor de fato nunca tenha desaparecido do nosso horizonte. Antes, nos satisfazemos com a ideia de que o Estado está aí apenas para garantir à propriedade privada, para regular as relações trabalhistas, para assegurar o cumprimento de contratos comerciais e civis que os indivíduos travam entre si, e coisas desse tipo.

Sem dizer que, hoje em dia, nesse nosso mundo multiculturalista, demasiado multiculturalista, a função primordial do Estado é como que pervertida no sentido de, antes de tudo, garantir que os gays possam casar e adotar crianças; que as mulheres não sejam oprimidas pelos homens; que os negros tenham os mesmos direitos que os brancos; que muçulmanos e umbandistas desfrutem de liberdade de crença, e por aí vai. Antes que chovam críticas à minha crítica ao multiculturalismo, declaro que não tenho dúvida de que Estado deve também atender às demandas multiculturais. Elas são muitíssimo importantes. Mas não fundamentais.

O que se pretende evidenciar na ideia de que o Estado deve se fundamentar no liberalismo e multiculturalismo, entretanto, é a distância em relação ao Estado hobbesiano cujo fundamento é livrar os indivíduos da morte violenta. Então, pergunto:  não estariam o capitalismo e o multiculturalismo fazendo as vezes da canção ingênua de Chapeuzinho Vermelho no sentido de nos alienar do perigo que nunca deixamos de representar uns aos outros, qual seja, a morte violenta? Considerando as imensas crises que nos ameaçam – ecológica, econômica, social, política, humana -, é preciso cantarolar muito para deixar de ver que seguimos sendo os nossos próprios e maiores lobos.

Embora o Leviatã hobbesiano tenha vindo ao mundo para livrar os indivíduos do perigo da morte violenta, por meio dele intentamos mais, muito mais – burgueses que somos. Desejamos, na verdade, alienar-nos da ideia desse perigo. Por isso o Estado deve ser fortuitamente a (des)unidade de uma miríade de burocracias menores e cada vez mais particularistas em vez de ser o fruto do contrato social travado por todos os indivíduos cujo objetivo primordial é impedir que sejamos mortos violentamente – ou que ao menos haja justiça no caso de sermos.

Pensando assim, todavia, nos esquecemos de que a morte e a violência combinadas subsistem, seja nas megafavelas que se multiplicam na Ásia, África e América Latina, nas toneladas de agrotóxico que consumimos nos nossos alimentos, seja ainda nas ações do Estado sempre que ele faz a manutenção de sua (des)ordem. Hobbes se compadeceria conosco pelo fato de não mais considerarmos o universal medo da morte violenta como o fundamento da nossa Constituição Civil, mas, no lugar dele, uma sorte de pseudofundamentos mais fracos e particularistas, cujo custo não obstante é outra sorte de mortes e violências que, se por um lado são menos violentas, por outro são muito mais presentes.

Talvez a dureza da ideia hobbesiana, qual seja, que fundamos nossos Estados para evitar a morte violenta, seja o arquétipo mais efetivo para evitarmos não só a própria morte violenta, obviamente, pois as estatísticas provam que dessa vulnerabilidade ainda não nos libertamos, como também as micro&múltiplas mortes que nos acossam despudorada e diariamente, tanto no ar que respiramos, na água que bebemos, na exploração que sofremos no trabalho, quanto nas imigrações forçadas por guerras e crises econômicas. Ou pelo menos para que elas não permaneçam demasiadamente desconsideradas.

Com efeito, é um proposta radical retirarmos a teoria hobbesiana do seu estado zumbi para a reencontrarmos em sua insuportável gravidade. Todavia, um retorno às raízes do Estado Moderno, à fundamentação do Leviatã que Hobbes descreveu tão bem, é urgente, pelo menos na medida em que, como muitos dizem, nunca deixamos de ser modernos. Metaforicamente, é como as árvores, que só podem “evoluir” na medida que também são, o tempo todo, as suas raízes. Se se alienassem disso, morreriam. Outra coisa não seriam que lobas de si mesmas. Como, entretanto, é o homem que é o lobo de si mesmo, o mínimo que devemos fazer é não nos esquecermos disso, radicalmente.

Maquiavel contra o golpe

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Contra a circunstancial “vitória” da oligarquia política brasileira, ou, sem papas na língua, contra o golpe, em vez de indignação, melancolia, e até mesmo apatia plena, a minha aposta radical – que retorna às raízes – é na visão política de Nicolau Maquiavel. E isso porque o inaugurador do “pensamento político moderno”, tendo revelado a essência conflitiva das relações políticas, faz-nos compreender tanto ímpeto de dominação dos “grandes” contra o “povo”, como também e principalmente o desejo de liberdade do povo, e, mais importante, o modo de construí-la a partir do conflito político ele mesmo.

Em primeiro lugar, devemos dispensar a ideia vulgar de que, para este autor, “os fins justificam os meios” apenas. Ora, quando se justifica certas causas em função de um efeito, retrospectivamente, fora do tempo em que tais causas de fato “causam”, perde-se o caráter plenamente agonístico da política. Em suma, justificar o passado através do presente é sempre um anacronismo insuficiente. Toda ação política tem de ser justificada em si mesma, no seu átimo kairológico, sem contar com “perdão” futuro algum. Reside aí um princípio de justiça muito elementar, pois, como bem coloca o filósofo Thomas Berns, quando “os fins justificam os meios” essa justificação “chega sempre tarde demais”.

Enquanto crermos que “tudo vale para se conseguir um fim”, o que por sua vez justifica inclusive as mais pérfidas tiranias, deixamos de ser agraciados com a potência republicana das ideias de Maquiavel. O pensamento do renascentista demonstra, de modo muito mais sofisticado e autojustificado que a teoria moral de Kant, o caminho para a liberdade, que na verdade é o desejo genuíno do povo, bem como o sempiterno “tecido conflitivo” da política, sobre o qual aliás essa liberdade –sempre desejada pelo povo e sempre contestada pelos dominantes- deve ser, digamos assim, “bordada” fortuitamente.

O Maquiavel republicano faz do embate entre “grandes” e  “povo” a cena excelente e sempiterna do palco político. Na linguagem pré-sociológica do autor, o “humor” objetivo dos grandes é o de dominar; enquanto o do povo é o de não ser dominado. A grande revolução trazida ao mundo por este pensador é a desmoralização do conflito político, que, para além de qualquer bem ou mal substancial, sustenta que a realização do humor essencial do povo, qual seja, a liberdade, só calha de parecer um bem a partir do conflito com o humor essencial dos grandes, qual seja, dominar.

O filósofo francês Gérard Sfez explica que a insolubilidade do conflito político na teoria maquiaveliana se deve a uma dupla assimetria. Em primeiro lugar, diz o autor, ambas as partes disputantes não querem a mesma coisa: os grandes querem dominar; o povo, não ser dominado. É importante atentar para a diferença entre os objetos desses desejos. Em segundo lugar, grandes e povo tampouco buscam a realização dos seus díspares humores do mesmo modo: os grandes dominam às custas dos direitos do povo, ao passo que este, diferentemente, só alcança a sua liberdade ao preço de todos, grandes e povo, compartilhares dos mesmos direitos.

Se cada lado do conflito quisesse a mesma coisa que a outra, por exemplo, dominar apenas, bastaria o povo “cortar as cabeças” dos grandes para instituir o seu domínio. Nesse caso, não obstante, o povo realizaria, não o seu humor essencial, que é o de ser livre, mas o humor do inimigo, que é o de dominar. O problema disso é que, excluindo o outro –os grandes- da relação política, Maquiavel nos faz ver que a própria ideia de povo se desfaz, e por conseguinte, o próprio tecido político no qual ela se inscreve agonisticamente. Pior ainda, diz o italiano, um conflito de mesmo calibre se estabeleceria no corpo político formado somente pelo povo mediante toda sorte de oportunismos particularistas.

Eliminando o seu outro, o povo perde a sua identidade política, que se torna concreta somente a partir da oposição em relação aos grandes, pois, conforme Maquiavel, o conflito entre grandes e povo é a condição de existência do fenômeno político. A realização de um não deve significar a inexistência do outro, visto que querem coisas distintas, e de modos distintos. O povo quer liberdade. Para isso precisa ter seus direitos respeitados e ampliados conforme a ideia objetiva de bem-comum, que não obstante só se revela na presença opositiva dos grandes. Já estes, querem dominar. E para tal precisam furtar os direitos povo, afastando-se da ideia de bem-comum. Entretanto, a existência do outro/povo é fundamental aos grandes. Do contrário, a quem dominariam?

A visão política de Maquiavel é tão intuitiva e universal que sequer precisamos fazer paralelos explícitos com a circunstância brasileira. O conflito entre grandes/golpistas e povo/golpeado é insuportavelmente aclarado sob a lanterna maquiaveliana. Que no Brasil os “grandes” estejam realizando o seu “humor” dominador de forma tão contundente não deve ser visto, maquiavelianamente, em termos de bem e de mal, pois a liberdade do povo só pode ser um objeto de desejo, e moralmente figurar como  um bem, porque furtada pelos grandes. Mutatis mutandis, não ser dominado é um humor que só se revela e se pode positivar contra um humor dominador. Do contrário, seria um idealismo que não faz verão no moderno pragmatismo político de Maquiavel.

Uma lição fundamental de Maquiavel é a seguinte: o povo não deve querer a extinção dos grandes, mas sim conquistar para si o poder de, agonística e politicamente, conter o ímpeto dominador deles, a ponto de ser o agente de sua própria liberdade. A empresa do povo, entrementes, precisa primeiro positivar o seu “humor” essencial, que nasce negativado na forma de “não ser dominado”. E essa positivação se dá quando o “não ser dominado” se torna  “ser livre”, ao modo da distinção marxiana entre trabalhador e proletário: o trabalhador é o agente negativo da revolução; sua positivação se dá quando ele encarna o proletário.

Ora, não basta desejar não ser dominado, pois nesse aquém negativo não se contempla o inimigo em sua obstacular positividade. Para tanto, o povo precisa conhecer tanto o seu desejo essencial, quanto o do seu oponente. Só assim, na agonia do conflito político, não desejará inadvertidamente o desejo do outro, ou seja, o humor dominador dos grandes, que faria do povo o seu próprio inimigo. Para Maquiavel, a completa falta de virtude política! Uma segunda lição de Maquiavel, portanto, é o velho “Conhece-te a ti mesmo” socrático.

Em terceiro e mais árduo lugar, temos a lição maquiaveliana do combate à corrupção das instituições republicanas que desequilibra o conflito político sempre em benefício dos grandes. Para Maquiavel, o conflito político permite a realização do humor do povo somente enquanto as leis, que estabelecem as regras do conflito político, puderem ser sustentadas pelas instituições. Só assim é possível conter os excessos da cada um dos lados, ao mesmo tempo em que ambos expressem os seus desejos. O problema, aponta o autor, é que, republicanamente, as leis se modificam em função do bem-comum, ao passo que as instituições que as devem sustentar não acompanham essa dinâmica. E é nesse descompasso que a corrupção – que prefere os grandes e pretere o povo- faz carreira.

Em solução a isso, Maquiavel propõe uma “refundação” sistemática da república. Pragmaticamente falando, trata-se de um retorno lógico, e não cronológico!, ao momento pré-legal/institucional que fundamenta a existência das leis e das instituições. Somente nesse “ground zero” a corrupção inexiste, pois só aí lei e instituição se alinham absolutamente ao modo de se confundirem. O exemplo clássico de Maquiavel é o mito fratricida de Rômulo e Remo que funda Roma, ao qual o povo romano deveria “retornar” –a cada dez anos, no máximo, vaticina o italiano- para então reencontrar a razão de ser de suas Leis e instituições.

No caso romano, uma pergunta simples e estratégica bastava para produzir o tal “retorno à origem” pré-legal que justifica tanto a necessidade da Lei, quanto o seu sustento institucional pleno: Rômulo não mataria Remo por quê? Em resposta a ela, entretanto, não devemos vir com moralismos do tipo “porque assim Deus deseja”. Antes, é a angustiosa falta de resposta que deve nos ocupar nesse exercício lógico. Ora, na inexistência de uma lei, Rômulo não comete crime algum ao matar seu irmão. Mas por que deveria haver uma lei que o tivesse proibido? Por quê? Essa resposta justifica inequivocamente tanto a existência da Lei como principalmente a necessidade de instituições que a façam valer. Do contrário, a lei passa a ser um idealismo que somente permitiria a “Rômulos” seguirem matando “Remos”.

E no caso brasileiro, que átimo pré-legal e institucional fundador devemos retornar a fim de atualizar a razão de ser da nossa república, de ressincronizar suas leis e instituições? A violência assassina fundamental maquiaveliana, irmã mais velha do “medo da morte violenta” hobbesiano, é a resposta mais fácil, todavia demasiado genérica. Façamo-nos então a mesma pergunta maquiaveliana que os romanos deveriam fazer a si mesmos, buscando no entanto uma resposta à lá brasileira: os “grandes” não devem dominar o “povo” por quê? Dito de modo mais direto ainda: a nossa oligarquia política-econômica não deve golpear o povo em função de quê? Com esta resposta encontraríamos o casamento perfeito, ainda não corrompido, entre leis e instituições, ao menos no sentido de golpistas serem barrados de alguma forma.

O atual golpe de estado dado pelos “grandes” do PMDB e do PSDB é a prova de que as nossas instituições estão aquém das leis que dizem defender. Por isso a Constituição, como se diz, está sendo rasgada. Todavia, maquiavelianamente falando, não é que as instituições estejam corrompidas, nem que sejam a sede excelente da corrupção, mas, antes, que elas apenas não estão a par da atualidade das leis que deveriam fazer valer. As atuais instituições político-jurídicas brasileiras encontrariam plena atualidade num Brasil de cem anos atrás ou mais, mas não no país pós-Lula, no qual o povo também passou a ser objeto de contemplação das leis. Usar “Maquiavel contra o golpe”, portanto, é tornar insuportável a necessidade de reencontrar a resposta para a seguinte pergunta: os grandes não devem golpear o povo por quê?

Política: passo, tropeço, novo passo, novo tropeço… ad aeternum.

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Já não era sem tempo: o brasileiro finalmente quer fazer política! Entretanto, por mais virtuoso e desejável que seja este passo, isso não quer dizer que a pura intenção de ser um autêntico cidadão da “pólis” seja imediatamente acompanhada de boa performance. O empuxo do longevo vício da despolitização é forte e faz tropeçar no movimento para além de si por muito tempo ainda, quiçá até o final, diriam os mais realistas. E isso porque não existe o ideal estado político puro. A política ela mesma outra coisa não é senão a ininterrupta ação humana de se afastar do despotismo, sua figura anterior e justificadora, de modo que só se faz política porque, parafraseando Marx no Manifesto Comunista, o espectro do despotismo sempre rondará a humanidade. E o momentum  brasilis apenas relembra-nos disso.

Agora, de onde vem as ideias de que, primeiro, o brasileiro finalmente quer fazer política, e, segundo, que tropeça nessa tentativa? Pois bem, os exemplos mais espetaculares são: a “Primavera brasileira” de 2013, que gritava e vandalizava bancos e paradas de ônibus em nome de um Brasil “Padrão FIFA”; e os “Invernos reacionários/golpistas” de 2015 e 2016”, que culminaram na suspensão da democracia no país. Ambas as ações foram tentativas coletivas de se fazer política, todavia “com as próprias mãos”. Não obstante, como podemos observar, elas mostraram-se ineficiente em ambos os casos, vide o atual desgoverno golpista que não prioriza um Brasil para multidão alguma, mas para uma elite que atende muito bem pelo apelido de “os 1% mais ricos”, e olhe lá.

O passo e o tropeço de junho de 2013, por exemplo, foi a multidão ter pedido por saúde, educação, segurança, e até mesmo representatividade política “Padrão FIFA”, esquecendo-se de que a FIFA é tão ou mais corrompida e gentrificatória do que a estrutura política que essa mesma multidão queria revolucionar. Não à toa a jovem e venturosa promenade petista de distribuição de renda e inclusão social, bem como e principalmente o engatinhar contra a corrupção sistêmica, tudo isso realmente se tornou “Padrão FIFA”, isto é, deixou de existir efetivamente, ainda que sobreviva mentirosamente sob o lema “Ponte para o futuro”. Aqui é inevitável não lembrar daquela máxima: “muito cuidado com o que tu desejas”.

Já o passo e o tropeço dos “coxinhas” de 2015 e 2016 se confundem espetacular e imediatamente. A ação “política” deles desde o princípio foi um tiro no pé, não só nos deles, infelizmente, mas nos de todos os brasileiros –com exceção dos pés em meias de seda dos famigerados 1% mais ricos. Pedir por “Intervenção Militar Já”, pela volta da ditadura, e o que pior e mais surpreendente, pela restituição da monarquia no Brasil é o que senão o ato político mais errático de todos, justamente por pedir a sua própria anulação? Os “coxinhas”, cujos clamores paradoxais pretendiam por fim à crise econômica e à corrupção política sistêmica, com governo golpista que ajudaram a instituir apenas ganharam mais crise econômica e mais corrupção. Afinal, o que há de mais corrompido do que um bando de corruptos rasgarem a constituição e desmontarem a democracia diante do país inteiro para não terem de pagar pelos seus próprios crimes?

E o andar errático do povo brasileiro no terreno da política, hoje em dia, transcendeu a sua forma multidudinária, claras nos ajuntamentos de 2013, 2015 e 2016, para se imanentizar nos indivíduos. Os cada vez mais numerosos casos de “arruaças políticas” entre cidadãos e entre cidadãos e políticos, cujos registros vão se amontoando no Youtube, são a proliferação desses andares erráticos em nome da política. Realmente muitas pessoas estão acreditando que ficar gritando “ladrão, sem-vergonha, petista de merda” dentro de um restaurante ou em um voo doméstico é fazer política. Se isso é política, o é contudo no modo de estar com um pé no enlodaçado latifúndio do despotismo e o outro no ar, logo acima do areal continental da política. Não basta usar a palavra para se fazer política. É necessário que a palavra suprima a violência despótica.

Se ao menos essas arruaças pré-políticas que estamos vendo coinduzirem o “politizando cidadão brasileiro” adiante, isto é, para longe dessa performatividade despótica travestida de política, já terá valido a pena. Ademais, talvez esse seja o único caminho da politização ela mesma. Aqui é fundamental lembrar Hegel: não se começa acertando, mas, em contrapartida, o acerto é apenas o fim de uma procissão de erros. Com efeito, a ignorância política do brasileiro não tinha como dar um fim a si mesma para, imediatamente, ser triunfante, isto é, politicamente correta. O tão condenável “politicamente incorreto” também é o entremeio entre o erro despótico e o acerto político. Em uma palavra, só se erra politicamente quando se tenta ser político. Do contrário, o que se tem é apenas o prosseguimento desavergonhado do despotismo.

A metáfora do arqueiro, que para acertar “na mosca” não deve de forma alguma mirar exatamente no alvo, mas, ao contrário, um tanto mais acima dele, a fim de vencer a força da gravidade, e também um tanto mais à esquerda ou à direita, por conta da influência do vento, é pertinente aos neonatos políticos tupiniquins. E isso porque a ingenuidade política do nosso povo é acreditar que para acertar o seu alvo, deve mirar exatamente nele. Por isso erra. Também pudera, saber os desvios e descontos políticos necessários para se atingir o alvo das próprias realizações em cheio é espécie de ciência empírica que demanda uma série indefinida de tentativas e erros.

E para quem acha que os muitos e crassos erros que temos visto na ágora política brasileira são imperdoáveis, Hegel tem a dizer que, em vez de condená-los peremptoriamente, devemos assumi-los. Melhor dizendo, com as palavras do filósofo, suprassumí-los no processo de superá-los. O que não pode acontecer, caso queiramos realmente evoluir politicamente, é renegar nossas incorreções políticas e, pior ainda, transferi-las, covarde e despoticamente, para outrem, assim como a esquerda está fazendo com a direita, e vice-versa. Isso outra coisa não é que perder a oportunidade de se tornar realmente hábil em superar tais erros e estar condenado a permanecer indefinidamente cativos deles. Ao erro político de hoje, portanto, ao menos uma amanhã menos errático, e assim ad infinitum.

Prisão de Lula: cereja do bolo melancólico.

 

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Desde os primeiros tilintares pré&pró golpe de panelas em 2015, incerteza, angústia e medo foram, digamos assim, largamente democratizados no Brasil. Depois dos 367 votos e discursos golpistas da fatídica sessão da Câmara dos Deputados que aprovou a admissibilidade do processo de impeachment contra a presidenta Dilma em abril de 2016, a mãe de todos os afetos tristes, a Tristeza ela mesma, se instalou no cerne da maioria dos “cidadãos-de-bem-pensar”. Nos meses que se seguiram, a performance da nossa oligarquia política apenas fez engordar essa tristeza. E o último ato espetacular da presente tragédia golpista não deverá ser outro que a prisão de Lula.

No meio desse processo eu publiquei um ensaio chamado “Contra o golpe, qual o melhor afeto?”, onde relacionei a crítica de Spinoza à tristeza, na qual o filósofo demonstra que este é o afeto mais impotente de todos, à necessidade de o povo brasileiro cultivar afetos que lhe potencializassem diante do Mal que se apresentava. A minha aposta era, conforme Spinoza, o amor. Se é o afeto mais potente de todos, é o melhor contra o golpe. A pergunta, portanto, era: como sermos afetados de amor diante de tamanha barbaridade? A resposta teve de buscar o único objeto passível de amor dentro do caos tupiniquim, qual seja: o povo golpeado. Em suma, somente nós, o povo, amando-nos uns aos outros, podemos nos afetar de modo a nos potencializar contra as forças contrárias a nós. Qualquer tristeza, seja ela a raiva, o medo, a vingança, a angústia, etc., portanto, deve ser desinvestida, pois apenas nos enfraquece.

Cerca de um mês depois, ouvi o filósofo brasileiro Vladimir Safatle dizer que, diante do golpe, precisávamos fazer uma crítica dos nossos afetos. Para ele, o afeto generalizado era a melancolia, ou seja, a tristeza em forma de saudosismo em função do que estávamos perdendo. Mesmo sem se fundamentar em Spinoza, Safatle criticava acertadamente a imobilização na qual a melancolia nos coloca. Muito mais pragmático do que eu, a aposta de Safatle era (e ainda é) a necessidade de superarmos as nossas melancolias individuais para finalmente colocarmos as nossas demandas reais (de democracia, respeito, direitos, etc.) em constelação, pois só assim poderemos formar um grande, forte e conectado corpo político, uma vez que forte e grande e conectadíssimo é o corpo inimigo.

A leitura afetiva de Safatle denunciando a melancolia como o afeto do brasileiro diante da realidade em curso não me saiu da cabeça. Subsumi minhas ideias às dele desde então, pois essa chave de leitura passou a clarificar muito melhor não só o que eu particularmente sentia, como principalmente a inefetividade de quaisquer ações coletivas tentadas contra os golpistas, hoje quase absolutamente vitoriosos. A nossa melancolia, aliás, produz espécie de tábula-política-rasa sobre a qual os golpistas seguem erigindo o seu “bunker” elitista. E o afastamento definitivo de Dilma, bem como a destruição de leis trabalhistas e, mais recentemente, a retrógrada proposta de reforma do ensino médio que saca as humanidades dos currículos escolares, só para citar três das várias absurdidades com que estão nos golpeando, tudo isso mantém pulsante dentro de nós a melancolia pelo que, dia a dia, vamos perdendo.

Minha proposta aqui é inverter o velho princípio da causalidade que nos convence de que, primeiro, temos a causa para, somente depois, experimentarmos o efeito, para investir na psicanalítica visão de que são os efeitos que criam, retroativamente, as suas próprias causas. A ideia, portanto, é deixar de pensar a nossa tristeza melancólica enquanto efeito dos atos dos golpistas para, em contrapartida, pressupormos esse afeto triste como o produtor dos seus próprios algozes. Essa proposta, todavia, só se sustenta em um “desejo prévio de melancolia” fundado em uma promessa de gozo na própria melancolia. Perguntar se essa tristeza em relação a tudo que perdemos e estamos perdendo com o atual governo golpista é primeiramente um desejo obscuro nosso, que aos poucos foi permitindo que um golpe de estado ipsis litteris fosse sendo pública e escandalosamente construído até a sua presente efetivação, é ao menos um primeiro passo não covarde.

Assumindo que de fato produzimos as causas para o efeito melancólico que experimentamos, vale investigar essas causas. Proponho fazer um recorte histórico para pensar o caos atual a partir do maior e mais caótico evento da nossa história recente, qual seja, a “Primavera brasileira” de junho de 2013. Quanto mais não seja, lá clamávamos justamente pelo oposto do que estamos vivendo hoje. Naquela ocasião, multidões foram às ruas, vestindo e gritando o que tinham certeza de possuir inalienavelmente: direitos, voz, força e, especialmente, democracia.

Entretanto, as muitas e difusas pautas do movimento, somadas às performances blackbloquianas contra bancos Itaú e paradas de ônibus, e principalmente o grito de “Sem partido” –em rejeição à organização política partidária-, minaram os seus próprios propósitos diante da opinião pública. Não, todavia, sem a mão pesada da mídia reacionária. Isso porque aquelas manifestações populares ameaçavam muito mais o Império da direita oligárquica  do que a favela da esquerda. Seria ingenuidade deixar de pensar que o tsunami da direita em 2016 é também resposta àquela liberdade democrática na qual o povo se aventurou em 2013.

E não precisamos nem esperar o golpe de estado de 2016 para termos certeza de que a primavera brasileira foi um fracasso. As urnas de 2014 já deixaram isso bem claro: a eleição de parlamentos muito mais à direita e fundamentalistas. No entanto, até aqui resistimos em fazer o nosso mea culpa. Ainda achamos que ter saído às ruas por vinte centavos gritando coletivamente contra a representatividade e os partidos políticos valeu a pena; que não poderíamos não ter nos manifestado; mesmo que isso tenha sido o início da fragilização espetacular do PT e das esquerdas em geral. Em outras palavras, até aqui não queremos aceitar o fato de que aquele nosso desejo primaveril de um Brasil menos corrompido e mais igualitário não só deixou a direita corrupta de cabelo em pé, como principalmente a colocou numa “jihad” incontrolável cujo prosseguimento nos escandaliza até o presente instante.

Por isso devemos investigar se a melancolia que atualmente experimentamos não é espécie autopunição pelo que foi feito -principalmente pelo que não foi feito- em 2013. Pergunta subsequente inevitável: o que tínhamos em 2013? Ora, uma notória desaceleração do venturoso projeto lulista de inclusão social, distribuição de renda e combate à corrupção, cuja responsabilidade, obviamente, é também do próprio PT, mas que foi fortemente dramatizada pela crise econômica internacional, é preciso dizer. O Brasil de 2103 então explodiu quando a bonança democratizada por Lula se reduziu nas mãos de Dilma. Acostumados que estávamos com a crescente valorização das demandas populares, abandonamos o barco na primeira tempestade. Agora, se pudéssemos ter previsto o tsunami oligarca antipopular que assolaria o Brasil três anos depois, teríamos nos revoltado tanto contra as intempéries de 2013, que perto das de 2016 parecem, nas palavras de Lula, marolas?

A tristeza, mais especificamente a melancolia que nos assola hoje, porventura não é uma culpa travestida por termos explodido, coletiva e fortemente, contra uma conjuntura que, comparada à atual, nem era tão contrária a nós assim? Aqui vale lembrar a estrutura das tragédias da antiguidade: qualquer tentativa de escapar ao destino que os deuses estabeleciam para os homens trazia apenas destinos mais vis. Édipo Rei que o diga! Por acaso o destino que os deuses oligarcas tupiniquins reservaram para nós, que tentamos mudar o Brasil em 2013, não é a trágica armadilha golpista de 2016, da qual novamente não temos como escapar?

Com as tragédias, os gregos aprendiam que não podiam escapar ao destino; que tinham de conviver com o que os deuses tinham reservado para eles. Com a nossa atual tragédia, os nossos “deuses capitalistas” não estão querendo dizer-nos o mesmo? Tristes, melancólicos, somos tal qual Édipo Rei furando os nossos próprios olhos, punindo a nós mesmo por termos tido a petulância de desafiar o “destino liberal”. Não que eu acredite que haja de fato um destino predeterminado escrito por algum deus. No entanto, não posso me esquecer de que a mão invisível liberal escreve e reescreve livremente o destino de todos ao escrever o seu. E aí de quem tentar escapar dele!

O fato de não haver nenhum afeto potente sendo cultivado e atravessando os corpos dos brasileiros golpeados, mas apenas afetos tristes, com destaque à melancolia, é indício de que, ainda que inconscientemente, sentimos merecer tal tristeza, quiçá a desejamos subterraneamente, como se, ao vivê-la pungentemente, pudéssemos nos redimir do nosso próprio erro. Não conseguirmos ser afetados por outra coisa senão por tristeza deve ser visto como uma insistência nessa própria tristeza; um gozo paradoxal e coletivo que promete a superação da nossa incapacidade de, pelas nossas próprias mãos, termos feito um país melhor, justamente o que queríamos desde o princípio.

Lula ter terminado o seu segundo mandato com 87% de aprovação popular, recorde na história do Brasil, e hoje estar prestes a ser preso por crimes que sequer podem ser provados, dentre eles ter roubado badulaques da Presidência da República, é o que senão o povo brasileiro estar produzindo a sua própria tristeza, ou, dito de modo mais adequado, permitindo que a produzam pelas suas costas para entregá-la espetacularmente pela frente, como se não soubéssemos de nada? Atenção: a prisão de Lula pelos golpistas, que veem no maior líder popular da história do Brasil a única força que pode vencê-los democraticamente, será o desabamento definitivo do horizonte utópico de 2013.

Certamente nos entristeceremos e nos melancolizaremos mais ainda na primeira nota da prisão de Lula, quando ela sair. Mas, como desde há muito nada estamos fazendo para impedir isso além de ineficientes postagens no Facebook, penso que precisamos ainda desse último golpe, como se se tratasse da cereja do bolo melancólico com o qual estamos nos empanturrando desde o fracasso de 2013. Não que desejemos essa vil dieta para sempre. Longe disso. Na verdade, estamos querendo mais que tudo chegar naquele domingo gordo, no qual arrotaremos a bílis da nossa própria gula desmedida, para então cairmos na real e vermos o perigo dos nossos desejos difusos. Talvez a prisão de Lula inaugure a famigerada segunda-feira na qual se começa -pelo menos mentirosamente- as dietas para emagrecer.

Madureira reconhecida; Florianópolis ressentida.

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Luta por Reconhecimento, título do livro do filósofo e sociólogo Axel Honneth, foi a ideia que não me saiu da cabeça quando conheci o recém inaugurado Parque Madureira –contrapartida/legado social dos últimos jogos olímpicos-, no bairro de mesmo nome, na pobre e desde há muito esquecida Zona Norte do Rio de Janeiro. As ideias de Honneth também me assaltaram, todavia negativamente, na subsequente visita que fiz à capital de Santa Catarina, a bela Florianópolis, na percepção da frustração daqueles cidadãos devido ao fato de a cidade não ter sido escolhida nem investida para a Copa do Mundo de 2014. Madureira e Florianópolis se comportam como os dois lados do que aqui chamo de “a moeda do reconhecimento”: no suburbano bairro carioca, vemos expresso o valor do reconhecimento; no florianopolitano, entretanto, a sua negação.

Não demorou muito para eu perceber o orgulho dos moradores de Madureira que, após os primeiros cumprimentos, não se continham em expressar imenso contentamento com o belíssimo parque de lazer, cultura e esporte que ganharam da prefeitura, falando de como o equipamento urbano havia melhorado as suas vidas e a relação que cada um tinha com o bairro, bem como a do bairro com a cidade. Honneth repetia no meu ouvido: estes cidadãos de Madureira estão se sentindo reconhecidos na e pela cidade em que vivem. E como reconhecimento é empoderamento, não tive dúvida de que, com o parque, havia-se produzido ali cidadãos mais realizados, e, portanto, mais potentes.

E essa potencialização cidadã dos até então preteridos suburbanos cariocas se dá porque eles percebem que, como belo parque que o seu bairro recebeu, a Cidade Maravilhosa finalmente socializa com eles um pouco de sua –todavia questionável- “maravilha”. E isso porque, segundo Honneth, o processo de reconhecimento “se realiza na confirmação de si pelo outro”. No caso dos madureirenses, no reconhecimento de suas necessidade de cultura, esporte, lazer e beleza pelo “outro” do Rio, isto é, pela cidade que há juito é cultural, esportiva e bela. Inevitável não lembrar da música “Comida”, da banda brasileira Titãs: “A gente não quer só comida; A gente quer comida, diversão e arte; A gente não quer só comida; a gente quer saída para qualquer parte…”

E falando de “saída para qualquer parte”, quando eu deixava o Aeroporto Internacional de Florianópolis, um dia depois de ter estado em Madureira, e impressionado com o fato daquele aeroporto ser demasiado pequeno –parecia ser o de uma cidade do interior, não o de uma capital-, perguntei ao motorista do táxi que me conduziu ao centro da cidade porque o Hercílio Luz não havia sido expandido como ocorreu com quase todos os aeroportos brasileiros nos últimos dois anos. Então ele me disse que a Fifa, na escolhas das cidades que sediariam os jogos da Copa do Mundo, estabeleceu que Florianópolis não tinha estrutura para receber as partidas nem tampouco os muitos turistas que as seguiriam.

Ora, se Florianópolis não tinha um aeroporto grande o suficiente, nem mobilidade urbana –outra desculpa da Fifa, uma vez que a cidade não possui metrô-, não seria o big evento futebolístico justamente a oportunidade para finalmente se investir na cidade? Mas o que ressente os florianopolitanos é que, precisamente porque não tinham um bom aeroporto nem metrô é que não mereciam tê-los. Embora seja ingenuidade esperar que o objetivo das “comerciálias” quadrienais da Fifa seja reconhecer as demandas das pessoas que as sediam, a intervenção que a Copa do Mundo fez no Brasil criou, por assim dizer, o Brasil das capitais que foram devida e superfaturadamente “aeroportizadas” e “urbano-mobilizadas”, e o Brasil das que não. E Florianópolis foi uma dessas cidades que não fez gol algum.

Se, por um lado, empoderamento e socialização é o que surge do processo de reconhecimento, por outro lado, ressentimento e desidentificação é o que decorre da falta de reconhecimento. E se, como coloca Honneth, o reconhecimento é o operador central para a compreensão da racionalidade das demandas políticas, o ressentimento dos florianopolitanos, advindo da experiência de não reconhecimento que atravessam, outra coisa não é que a redução da capacidade deles no sentido de reconhecerem racionalmente as suas próprias demandas políticas. Podemos ver aqui um círculo vicioso no qual a falta de reconhecimento gera as condições para menos reconhecimento ainda.

E uma vez que, diz Honneth, os processos de reconhecimento fundam os processos tanto de socialização como de individuação, não deve ser difícil concluir que o reconhecimento negado aos florianopolitanos mina tanto a possibilidade de eles socializarem verdadeiramente com o restante do país a que pertencem, quanto principalmente a capacidade deles de se identificarem como florianopolitanos. Desinvestir o cidadão, ressenti-lo, tem um preço alto e duplo. Só mesmo no extremo, ou seja, no desinvestimento social total, na completa falta de reconhecimento é que o custo é um só, e que se paga somente com a unilateral moeda da barbárie.

Já o tanto de reconhecimento que foi dado aos moradores do bairro carioca de Madureira não só os qualifica para socializarem de forma mais genuína com o restante da Cidade Maravilhosa, como especialmente os fazem mais “madureirenses” do que nunca. O problema do reconhecimento,  no entanto, é que, como dito antes, ele empodera politicamente os reconhecidos. E estes, mais politizados, têm suas condições de demandar aumentadas. Depois de reconhecer as necessidades de lazer, esporte, cultura e beleza dos madureirenses , certamente o governo do Rio de Janeiro terá mais dificuldade em seguir negando a eles outros bastiões do reconhecimento social, tais como saúde, mobilidade e segurança urbana, etc. Na capital/ilha de Florianópolis, em contrapartida, agora é mais fácil desinvesti-los de reconhecimento –e de saúde, educação, mobilidade, e por aí vai.

Linha 474: crônica carioca de uma tragédia anunciada

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A linha de ônibus carioca 474-Jacaré, que liga a comunidade, ou em linguagem politicamente incorreta, a “favela” do Jacarezinho, a mais violenta da cidade, na pobre Zona Norte, ao coração rico da Zona Sul, o parque Jardim de Alah que  divide os aburguesados bairros do Leblon e Ipanema, é o símbolo ambulante da “Cidade Partida” que não se cansa de se esconder atrás da máscara  de “Cidade Maravilhosa”. Para o bem e para o mal, o “Rio 40°, cidade maravilha purgatório da beleza e do caos”, como canta Fernanda Abreu desde 1990, não tem como se alienar de si mesmo com o 474 recosendo tão desiguais faces. Não sabemos quando a tensão entre as enormes riqueza e pobreza cariocas chegará ao limite explosivo, mas de uma coisa podemos ter certeza: essa bomba-relógio virá de ônibus; e qual, também não é mistério.

Não obstante a conversa-para-gringo-dormir de que a praia carioca é “o lugar mais democrático do mundo”, há um ano o governador do Estado do Rio de Janeiro, o Pezão, ordenou à Polícia Militar que parasse exclusivamente os ônibus da linha 474 às portas da Zona Sul nos finais de semana para que fossem “averiguados” todos os passageiros. Pretendia-se com isso controlar a crescente onda de “arrastões” nas praias nobres da cidade. A ordem era barrar quem estivesse sem identificação e, principalmente, sem dinheiro no bolso. Entretanto, como se viu, na quase totalidade somente garotos pretos e pobres eram abordados. A parte socialmente sensível e humana da opinião pública protestou fortemente contra essa ação preconceituosa e sobretudo anticonstitucional do Estado. Muito perguntou-se, crítica e retoricamente, quantos reais eram necessários para passar no “pedágio” que dava direito “a um lugar ao sol”.

Já a outra parte insensível e desumana da opinião pública carioca comprou fascistamente o método do governador. Não nos esqueçamos de que 2015 foi o ano em que o “Gigante” da direita brasileira acordou de mau-humor contra a sócio-democratização que vinha tendo curso no Brasil, pedindo “intervenção Militar Já!” e “Fora PT”, que em bom português queria dizer: fora esquerda; fora igualdade social; e por aí vai. A elite contrariada se recusou a admitir –mesmo que lhe sobrasse condições intelectuais para compreender-, que a crise social que lhe alcançava nos sábados domingos ensolarados de forma alguma é culpa de apenas parte da sociedade, muito menos da desprivilegiada. Mesmo assim essa direita elitista, sem papas na língua, humanidade na cara nem cidadania alguma nas ideias fez apologia ferrenha para que o 474 sequer chegasse à Zona Sul. Será que esquecia que essa linha de ônibus também traz muitos dos trabalhadores que lhes servem cotidianamente?

Não é demais lembrar que nos últimos seis anos, diante da expansão do metrô Zona Sul adentro as associações de moradores de Ipanema e do Leblon foram contrárias à abertura de estações nos seus ricos bairros. Objetivo: não acessibilizar ainda mais as suas mui gentrificadas fatias da cidade aos suburbanos. A presidenta da associação dos moradores do Leblon teve a coragem de declarar publicamente que “Nós, moradores do bairro, não precisamos de metrô. Afinal, todos temos carro, e quando não, usamos táxi”. Sob vil discurso, contudo, ecoava o descaso dela e dos seus representados às horas diárias de congestionamento que os seus serviçais tinham de enfrentar para chegarem até eles e serví-los.

Página crítica da história recente do Rio, a polêmica barreira social que foi instalada entre as zonas rica e pobre da cidade em 2015 para barrar os viajantes pretos, pobres e descapitalizados do 474, no entanto, foi rapidamente soterrada pelo catatau de novas páginas sempre críticas que dão corpo à “capital do sangue quente do melhor e do pior do Brasil” -segue cantando Fernanda Abreu. Entretanto, assim como a desigualdade não deixou de existir à margem da Baía de Guanabara, assim também o crísico 474 não deixou de fazer o traslado entre as partes tão desiguais de um mesmo Rio, como eu pude experienciar recentemente numa viagem até a grande feira tradicional nordestina do bairro de São Cristóvão, na Zona Norte do Rio.

Única opção de transporte coletivo indicada pelo “Rio Bus”, em um domingo à noite eu embarquei no 474 em Copacabana para ir a São Cristóvão. Em cada uma das seis paradas de ônibus antes de deixarmos a “Princesinha do Mar”, grupos de dez ou mais garotos, quase todos negros e aparentemente pobres, sem camisa e descalços -até aí tudo bem, pois via-se que voltavam do seu domingo de praia- entravam no coletivo. Todavia, não pela porta dianteira nem tampouco passando pela roleta, mas tumultuosamente pulado pelas janelas do ônibus. A minha “civilidadezinha” bem que tentou criticar a irreverência disruptiva daquela molecada, mas o “anjo comunista” que felizmente vive em mim soprou no meu ouvido que a sociedade que eu compartilho com eles já os explora tão profundamente que chegava a ser espécie de justiça eles a explorarem um tanto, ao menos nessa desobediência civil tão inofensiva que é não pagar uma passagem de ônibus.

Em meio à ocupação clandestina do 474 que me espantava -no sentido mais positivo dessa palavra aliás-, foi inevitável não lembrar do lema coletivo que abriu a fracassada “Primavera Brasileira” de junho de 2013 a respeito ao aumento das tarifas de ônibus: “É muito mais do que vinte centavos”. Diferente da população politizada e, pelo a que eu vi à época, privilegiada que foi às ruas em 2013, aqueles moleques suburbanos que pulavam janela adentro no coletivo tinham ao menos a coragem de já começarem a sua “manifestação” exigindo performaticamente no mínimo o valor integral da passagem. Foram os únicos que conseguiram implantar, goela-abaixo da sociedade, a “Tarifa Zero”. Os derrotados de 2013, que já perderam desde aqueles 20 centavos até e principalmente a democracia–vide o golpe em curso no Brasil- talvez tivessem de prestar mais atenção na “política bárbara” dos que dispõem de bem menos privilégios que eles para quiçá ter primaveras políticas menos invernais.

Quando, porém, o 474 no qual eu estava rumo à “feira dos paraíba”, já com uns 50 passageiros “ilegais”, deixou Copacabana e chegou ao bairro de Botafogo, o clima ficou mais tenso. Nos pontos de ônibus que se seguiram, alguns dos moleques desciam do veículo, roubavam bolsas e celulares das pessoas na rua, e voltavam com os objetos furtados para o 474, como se encontrassem ali o refúgio perfeito. E não é que era mesmo? Nem eu, nem os demais passageiros “legais”, nem tampouco o motorista do coletivo tínhamos coragem, ou sequer força para ir contra a molecada, que àquela altura, depois dos furtos, já podia ser chamada de “pivetada”. Um único olhar de repreensão para cima deles teve como resposta um marrento: “É isso mesmo! A gente rouba das ‘madame’ da Zona Sul sim. Tem que roubar de quem tem bastante. Porque a gente não tem nada por causa delas mesmo!” Afora a forma violenta com que enunciavam a sua impertinente redistribuição direta e forçada da riqueza social, eu não pude deixar de me comprazer com o fato de eles saberem muito bem, a ponto de dizerem em alto em bom tom, que a pobreza a que uns –eles-  são submetidos forçosamente vem justamente do excesso de riqueza de outros.

Meu comprazimento, contudo, durou pouco. Quando o ônibus deixou definitivamente a Zona Sul os pivetes começaram a circular por dentro do ônibus averiguando os demais passageiros e os seus pertences. Aí eu vi que eu seria a próxima “madama da Zona Sul” a ser roubada. Nisso, um senhor se aproximou de mim e de outros dois passageiros e disse: “Eu vou descer no próximo ponto. E, olha, se eu fosse vocês, desceria junto, porque a partir daqui eles vão “assaltar geral” no ônibus. Rapidamente eu escondi a minha carteira na cueca e desci com ele. Tive de interromper a minha viagem no meio. Depois de agradecer ao senhor, mas ainda bastante nervoso, perguntei retoricamente: “Por que o motorista permite que essa pivetada entre no ônibus e faça o que bem entende hein? O homem todavia respondeu: “Porque senão ele é morto assim que chega no Jacaré”. Insisti: “Mas então tinham de colocar pelo menos um policial dentro de cada ônibus desse para ao menos impedir que roubem os outros passageiros”. Ele cala a minha boca dizendo: “Seria morto igual”, pô!”

As duas mulheres que desembarcaram/fugiram conosco, apavoradas com o que tinha se passado, não pouparam críticas aos pivetes: “Tem que sumir com esses bandidinhos”; ou: “não dá para deixar que essa gente saia da favela mesmo”. A tensão na qual eu ainda me encontrava quase me levou a concordar com elas. Felizmente a minha razão falou mais alto. Ora, se “essa gente” das favelas chegou ao limite de tamanha e tão afrontosa violência contra “as gentes” dos bairros mais privilegiados é porque, antes de tudo, há muito tempo e muito drasticamente eles são marginalizados –e no âmbito da cidade deles, justamente pelas “gentes” da Zona Sul. Lembremos que um anos antes eles foram impedidos pelo governo de ir à praia para que as elites se banhassem longe da poluição da desigualdade que elas mesmas produzem. Se é porque já são marginalizados que eles se relacionam violentamente com quem os marginaliza, então, qualquer intenção de marginalizá-los ainda mais é apenas um maior e mais burro tiro no pé; e com calibre cada vez mais grosso.

Embora seja impossível resolver a tensão social que vive pujante do Rio de Janeiro -e que circula desmascaradamente pelo 474- na imediatez com a qual ela nos toca, há que se saber ao menos que a solução é bem mais complexa do que simplesmente criar mais barreiras físicas ou metafísicas, ou verticalizar as já existentes  entre as zonas ricas e pobres. A consciência dessa complexidade, e também a aceitação da minha impotência para destrinchá-la sozinho, no entanto, proporcionaram-me uma compreensão bastante simples; quase que uma saída de emergência segura e minimamente humana: não era eu, Rafael Silva, 43 anos, artesão e graduando em filosofia, a vítima objetiva da raiva daquela pivetada. O inimigo deles é tão abstrato como eles mesmos declararam: “as madama da Zona Sul”. Da minha parte, eu não queria condenar nenhum dos 50 moleques em específico, com o seu nome, idade e atividades. Se conhecesse mais intimamente cada um deles me solidarizaria com suas dificuldades e aspirações muito mais do que com qualquer “madama da Zona Sul”.

Na verdade, os nossos problemas objetivos, o meu e o deles, são, respectivamente: o reativo monstro periférico marginalizado, e a ativa besta burguesa marginalizante. O fulano de tal, sem camisa e descalço, que não pagou a passagem do ônibus e que quase me assaltou é o meu problema apenas abstratamente, por mais paradoxal que isso pareça. Da mesma forma, não sou eu, o cicrano Rafael, devidamente vestido, que pagou pela sua passagem e que ainda tinha na carteira o suficiente para ser assaltado o algoz concreto daqueles moleques. O problema real, que é o mesmo para mim e para eles, é o fato de os corpos sociais aos quais cada um de nós pertence distintamente serem demasiadamente antagônicos para formarem uma única sociedade sem que haja internamente tanta violência, ódio, medos e desejos de vingança. Só que a “Cidade Maravilhosa” parece não querer ter as suas partes rica e pobre costuradas. A não ser, claro, pelo alinhavo perigoso da linha 474.

E para piorar a situação, durante os jogos olímpicos prefeitura do Rio colocou dois moto-batedores da polícia, devidamente armados, escoltando cada ônibus 474 que circulava pela cidade. Tão triste quanto incompetente! Amenizar a desigualdade que produz a violência, não; circulá-la, todavia policiada, sim. Eis a “Cidade Partida” em sua sempiterna promenade caótica. O pior é que com uma medida dessas –em nada mais inteligente do que “limpar” preconceituosamente adolescentes suspeitos dos ônibus antes deles entrarem na Zona Sul-, longe de a criminalidade ser contida, o que temos é mais marginalização dos já marginalizados, só que agora pública e espetacularmente nos “bulevares” elitizados. Se já não faltava motivos para os pretos pobres da periferia se revoltarem cotidianamente com “as madama da Zona Sul”, o exclusivo policiamento da linha 474 durante a olimpíada, o momento mais cosmopolita da história do Rio, seja talvez a cereja que faltava no desigualíssimo bolo social carioca, não para adorná-lo, obviamente, mas para, ao modo da “gota que faltava”, levá-lo ao seu limite.

O barril de pólvora ambulante que é o ônibus 474 nos alerta para o perigo de tragédias como a do ônibus 174 ocorrida há exatos 16 anos, episódio já clássico da crônica policial carioca retratado no documentário “Ônibus 174”, de José Padilha, e na ficção “Última Parada 174”, de Bruno Barreto. O jovem Sandro Barbosa do Nascimento, jovem preto e pobre -que aos 8 presenciou o assassinato da mãe pela milícia, e que em seguida escapou de ser a nona criança moradora de rua friamente assassinada por policiais militares na famigerada “Chacina da Candelária” de 1993, no centro do Rio-, embarcou na linha 174, no aburguesado bairro do Jardim Botânico, com um revólver calibre 38 para comunicar, da forma que pôde, a sua revolta contra a sociedade desde sempre cruel com ele. Foi uma ópera social de cinco tensas horas nas quais Sandro fez dez passageiros reféns e, acidentalmente, por um erro da polícia diga-se de passagem, acabou matando uma refém com três tiros. Capturado, Sandro morreu de asfixia no porta-malas da viatura policial. Trágico acorde seco final. No entanto, seguido do mais paliativo Vaudeville.

Em vez de a sociedade carioca investir na solução da crise social que ela mesma é, em resposta à qual Sandro explodiu intempestivamente, apenas o nome da linha foi mudado. Enterrado com Sandro Nascimento e a sua vítima, o 174 passou a ser o novo 158. Apenas isso. E é precisamente essa paliatividade sistemática da sociedade carioca face ao seu maior problema que faz com que o atual 474-Jacaré seja o pré-174 da vez: o “locus móvel” e espetacular daquilo que a “Cidade Maravilhosa” tenta manter escondido em suas coxias urbanas. Intrigante é perceber que são nos ônibus que os espetáculos opacos da desigualdade carioca tendem a brilhar mais fortemente. Mas talvez isso seja o sintoma incontrolável das tentativas de se impedir que o lado pobre e indesejável da cidade circule pelo do lado rico.

No entanto, o fato de os pobres, com a sua violência reativa nos bolsos, passearem pelas praças ricas da Zona Sul ainda é um problema muito menor do que os ricos, com a sua violência ativa em todos os poros, fazerem de tudo para que aqueles não possam sequer ir à praias, e ainda por cima sustentando a pretensa democratização delas. Agora, o problema central, não nos esqueçamos, é a sistemática produção, em escala urbana aliás, de pobreza e desigualdade que, estas sim, pesam somente na conta dos ricos. Pelo andar da carroça carioca, quer dizer, pelo o ambiente gentrificatório & fascistóide que cresce e divide a cidade cada vez mais radicalmente, o 474 parece que seguirá conectando partes cada vez mais antagônicas de uma mesma cidade. Pelo menos até mais uma real tragédia explodir. Aí veremos se alguma coisa efetiva será feita ou se, como no caso do 174, apenas será mudado o nome do veículo do problema.

Rio Olímpico: um ontem à la Barcelona; um amanhã à la Atenas.

rio olímpico

Cidade “Maravilhosa” ao menos pelo que resta de sua estonteante natureza, o Rio de Janeiro vive o maior espetáculo de sua história: os XXXI jogos olímpicos da Era Moderna. A maioria dos turistas que estão na cidade para o megaevento, e até mesmo os cariocas estão dizendo que está “tudo bem”; que o Rio está surpreendendo positivamente. Mas não nos enganemos, esse “tudo bem” significa no máximo que o sempiterno e mui conhecido caos local está devidamente cenografado em forma de ordem mínima e eventual. De qualquer forma, palmas para o talento carioca para as aparências!

O próprio Prefeito da cidade, Eduardo Paes, disse publicamente que “O problema do Rio, e também o do Brasil, nunca foi se dar bem em eventos, mas no dia-a-dia”. Triste, porém verdadeira a afirmação de Paes. Eventualmente o Rio funciona muito bem; é bom de aparência! O problema essencial, no entanto, é que a “medalha de ouro” que a cidade deveria conquistar para si mesma através dos jogos, isto é, o famigerado “legado olímpico” social, cultural e ambiental, que prometia transformar o Rio na Barcelona dos trópicos, essa medalha, infelizmente, vai embora com o evento. Quando o acampamento do Comitê Olímpico Internacional (COI) debandar dessas praias, os cariocas e todos os que dividem o mapa com eles voltarão a usar a velha “medalhinha” de latão; “vira-latas” que somos e que, pelo jeito, continuaremos sendo. Porém, durante esse restinho -do que o presidente do COI jocosamente chamou de “Olimpíadas à la Brasil”-, a “Cidade Maravilhosa” pode se alienar do seu amanhã à la Atenas.

Desde que foi eleita para sediar a olimpíada em 2009, a cidade “deu baixa” para várias “cirurgias” preparatórias. Na área de mobilidade urbana: a construção da tímida -e até aqui inconclusa!- linha 4 da já tímida rede metroviária da cidade; a implantação de corredores expressos de ônibus, como os BRS e BRT, que, se por um lado reduziram o tempo das viagens, por outro lado apertaram a população em “latas de sardinha” superlotadas; a colocação do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) na região central que, mais do que atender à população carioca daqui para frente, serve para os gringos passearem pelo Rio Antigo durante os jogos; e, símbolo espetacular do descaso com o povo, a construção da “Ciclovia Olímpica”, que era para ligar o rico bairro do Leblon ao ainda mais rico Bairro de São Conrado, mas que desabou poucos meses antes dos jogos, matando dois cidadãos, e estando interditada até hoje.

Na área de segurança pública o desafio maior foi tentar controlar o forte poder paralelo das milícias. Não erradicá-las definitivamente, todavia, uma vez que “o lado paralegal-miliciano da força” é muito lucrativo ao “lado legal-estatal”. A farsa das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), que em verdade foi um projeto de colonização das comunidades dominadas pelos traficantes de drogas mediante o poder do Estado, ficou clara desde o princípio. Está no YouTube para quem quiser ver: em vez de se valer de inteligência para prender os cabeças do tráfico, a Polícia anunciava com certa antecedência que iria “entrar” nas comunidades para que os criminosos tivessem tempo de, pelos próprios pés, fugirem, ou para “favelas” mais suburbanas que estavam fora do mapa das UPPs, ou para cidades do interior do estado. O importante mesmo era que os “sócios paralegais” permanecessem longe do Salão Nobre do Rio durante as olimpíadas (e também durante a Copa do Mundo dois anos antes). Em breve descobriremos como será, e quanto tempo demorará para os “maus filhos à casa tornarem”.

Já a cirurgia estética pela qual o Rio passou esta está de parabéns! Não exatamente pela sua pertinência social, muito menos pela racionalidade financeira, mas porque foi a única coisa que ficou pronta a tempo e ademais está cumprindo o seu papel de fazer um belo Rio “para inglês ver”. Nessa conta temos por exemplo a transformação da decadente zona portuária em “Porto Maravilha”; a demolição do imenso viaduto da Perimetral, brutalismo modernista imundo que escondia o que restou de beleza no Rio Antigo Central, para, no lugar dele, pavimentar o belo “Bulevar Olímpico; bem como a “peatonização” e a “bulevarização” da mais emblemática via da cidade, a Avenida Rio Branco; e, ícone cenográfico mor da recente plástica carioca, a construção do Museu do Amanhã no píer da histórica Praça Mauá, projeto do controverso e internacionalmente processado arquiteto catalão Santiago Calatrava, edifício que basta um olhar um pouco mais atento para perceber que não foi feito para durar, ainda mais em um país que não tem tradição nem tampouco dinheiro para fazer a manutenção de si mesmo. Mas enquanto o Museu do Amanhã e o Rio de hoje exibem a sua “cara novíssima”, cariocas e turistas ficam bem satisfeitos.

Se esteticamente o Rio arrasou, ambientalmente é um vexame! O megacompromisso ecológico era despoluir a Baia de Guanabara, a Lagoa Rodrigo de Freitas na Zona Sul, e as lagoas da Zona Oeste, não só porque seriam palco de várias competições náuticas, mas porque este seria o legado ambiental mais importante para a cidade. No entanto, o “legado” atualíssimo são as mesmas águas imundas. As da “Guanabara”, esgotadas por 18 mil litros por segundo de esgoto in natura; por toneladas de plástico, sofás, aparelhos de televisão; sem dizer de bactérias e vírus em quantidade 35 mil vezes mais alta que o patamar considerado alarmante nos Estados Unidos e na Europa. A incompetência hídrica é tamanha que nem a novíssima piscina para as provas de salto ornamental escapou de ter a sua água inacreditavelmente turva por excesso de bactérias e matéria orgânica. O prefeito da cidade, confrontado com a manchete que disse que “Olimpíadas não deixarão legado ambiental para Rio”, dissimulou: “Ok! É uma pena. Mas, veja, tá tudo bem!”

Desde sempre o maior destino turístico do Brasil, o Rio está acostumado a receber visitantes do mundo inteiro. No entanto, nunca soube falar a língua deles. Na verdade, não falar a língua dos gringos acaba sendo uma oportunidade para tirar vantagem, principalmente na hora de vender e cobrar. O “Jeitinho Brasileiro” se retroalimenta com a sua própria ignorância! Desafio desde 2009 era fazer com que os trabalhadores cariocas que fossem atender a maior diversidade turística que a cidade já viu falassem ao menos um inglês instrumental. A iniciativa privada não deixou por menos: quanto mais caras a diária do hotel ou a refeição do restaurante, em melhor inglês os estrangeiros são atendidos. Já nos serviços públicos o Rio segue a Babel de sempre: recebe o mundo com motoristas e trocadores de ônibus, taxistas e policiais incapazes de dar informações mínimas a quem não fala português -e até mesmo a quem fala-; os barraqueiros das praias, que alugam cadeira e guarda-sol e vendem água de coco, não sabem sequer dizer o preço dos seus serviços em inglês (e aí entram os gestos com os quais cobram mais do que o devido). Em suma, mesmo no seu clímax cosmopolita o Rio fala apenas o mais miserável “esperanto”: “Brazil”, “Pelé” e “Caipirinha”.

Para bem ilustrar o “destratamento” do Rio com os seus visitantes, um caso concreto dos dez primeiros “tropeços” que quem chega por aqui enfrenta. No segundo dia dos jogos eu retornava ao Rio pelo Aeroporto Internacional, o Galeão. Como não há metrô saído de lá (“como assim?” #1 -pergunta o turista); como o serviço de táxi local se oferece de forma violenta e pouco confiável (“como assim?” #2); e como o novíssimo BRT que leva a uma estação de metrô do subúrbio estava com seus guichês de compra de tickets fora do ar (“como assim?” #3); a solução foi embarcar no “Frescão”, ônibus executivo que faz o traslado até o centro, a Zona Sul e a Zona Oeste. No mesmo dia o site da empresa anunciava que o preço da viagem era R$16,00. Entretanto, o motorista cobrou de todos os 40 passageiros R$20,00 (“como assim?” #4). Se falando a mesma língua do motorista eu não consegui entender dele a razão da diferença de preço, imagine os gringos! Claro, essa questão se resolveria pragmaticamente caso houvesse um simples adesivo com o valor correto colado nalguma parte do ônibus. Mas como dito antes, a desinformação é estratégica.

Não obstante o “caixa-dois” que o motorista estava fazendo, aos estrangeiros que perguntavam -em inglês- se aquele ônibus os deixaria em determinados lugares ele respondia repetida e monocordicamente “Yes, Rio; Yes, Rio; Yes; Rio”, mesmo que os destinos solicitados estivessem completamente fora do trajeto (“como assim?” #5). Seis vezes eu tive de me intrometer e esclarecer aos gringos que, ao contrário do que o motorista estava dizendo, o ônibus não os levaria onde queriam, e qual deveriam tomar. E em vez de agradecer, o motorista ainda me ameaçava com os olhos (“como assim?” #6). Até mesmo quando passageiros brasileiros pediam para que o motorista os deixasse em determinados pontos da cidade -pois não sabiam onde ficavam- ouviam dele um inacreditável: “Yes, yes… Mas quando chegar lá me avisa que eu te aviso, ok?” (“como assim?” #7).

O desserviço do motorista era tal que ele se recusou inclusive a colocar as muitas bagagens dos passageiros no porta-malas do ônibus. Dizia “tá cheio” para quem quer que fosse. Mentira! Era só preguiça e péssimo atendimento mesmo, pois eu fui o primeiro passageiro a entrar no ônibus e não vi uma mala sequer ser guardada lá. Resultado: bagagens amontoadas por todo o corredor do veículo e sobre os passageiros (“como assim?” #8). No Rio olímpico, pagar mais do que o devido por um serviço vem com a sobretaxa de um serviço de pior qualidade. E depois disso tudo, quando estávamos já na parte da cidade onde as pessoas começaram a desembarcar, o motorista não parava nas maioria dos pontos antes dos quais as pessoas davam devido o sinal sonoro (“como assim?” #9). Enfurecido, porém em acessível português, perguntei ao motorista: “Vem cá, hein, por que você não faz o seu serviço direito?”. Fui ignorado, obviamente. E na hora em que eu ia descer, pimba! Ele passou dois pontos sem parar. Bradei, e como resposta escutei: “Se tivesse ficado tranquilinho tinha descido onde queria. Agora vai ter que caminhar mais” (“como assim?” #10).

Eis o Rio a que o Rio conseguiu chegar para o mais importante evento de sua história. Triste é perceber que depois de anos de preparação e de pesadíssimos investimentos públicos este é o melhor que a cidade teve para dar. Doravante, ultrapassado o horizonte olímpico, que foi a grande oportunidade para o Rio de Janeiro ter evoluído minimamente, o metrô seguirá raquítico; os ônibus, agora com novos apelidos, seguirão desconfortáveis; as milícias retornarão aos seus antigos domínios; as embelezadas áreas urbanas serão palco para a mais que esperada gentrificação; as águas da cidade, sejam elas do mar, da baia ou das lagoas, continuarão tão ou mais sujas quanto o poder que mentiu que iria despoluí-las; os cariocas não aprenderão a falar a língua dos turistas que os sustentam; e, por fim, alegoricamente, chegar ao Rio pelo Aeroporto Internacional continuará sendo um achaque seguido de roubo e desrespeito. O Rio de janeiro, da crista anã de sua onda olímpica, se prepara para mergulhar no seu velho mar de lama.

Kuntas Kinte contemporâneos

KUNTA

150 anos depois da Guerra de Secessão, cujo virtuoso resultado histórico foi o fim da escravidão de negros na América do Norte, novamente “os Estados Unidos estão em situação de quase guerra civil em torno das tensões de origem racial”, alerta Flávio Aguiar, correspondente internacional da Rede Brasil Atual. Essa crise, no entanto, está anunciada desde 2014 quando a morte do jovem negro Michael Brown por um policial branco, no Missouri, originou a mobilização “Black Lives Matter” (Vidas dos Negros Importam) e a denúncia sistemática das práticas racistas das forças policiais norte-americanas. E com as mortes, também por policiais brancos, de outros dois negros, Alton Sterling, em 5 de julho de 2016, na Louisiana, e Philando Castile, no dia seguinte, em Minnesota, a tensão racial voltou a conturbar a arena social dos EUA, com milhares de pessoas protestando nas principais cidades do país.

A “resposta negra” à “violência branca”, porém, não está dispensando a violência. Em julho de 2016, o jovem negro Micah Johnson matou cinco agentes brancos e feriu outros sete em Dallas, e, na capital da Louisiana, outros seis policiais brancos foram atacados por um negro, com três deles terminando mortos. A “barbárie negra” só não é tão bárbara quanto a “branca”, pois, conforme afirma Heidi Beirich, a líder do Centro Legal para a Pobreza no Sul, o “extremismo negro” é apenas a resposta, na “língua” do imimigo, à velha “opressão branca”. E em certas conjunturas políticas emergenciais, “a violência se torna o único modo de reequilibrar as balanças da justiça”, reconhece Hannah Arendt no seu ensaio “Sobre a Violência”, escrito em 1969.

Só que mesmo mediante a violência, a situação parece tão insolúvel dentro da sociedade americana que o “Novo Partido das Panteras Negras para Autodefesa”, um dos principais grupos separatistas negros do país, está mobilizando outros grupos com o mesmo propósito, como a “Nação do Islã” e o “Partido da Liberação dos Cavaleiros Negros”, bem como milhares de cidadãos, para a fundação de uma “Nação Negra”. Só mesmo cindindo a Norte-América em duas estes extremistas acreditam que os negros se verão definitivamente livres da brutalidade policial branca, uma vez que a simples promoção de uma reforma policial em vista da tão necessária justiça racial nos Estados Unidos defendida pelos ativistas do “Black Lives Matter” não parece promissora.

Antes de seguir pensando na eclodida crise racial estadunidense, vale a pena relembrar a “facção” (mistura de “fato” e “ficção”) publicada pelo escritor negro norte-americano Alex Haley em 1976 chamada: “Raízes: A Saga de uma Família Americana”. O personagem central do manifesto/romance é Kunta Kinte, africano nascido na Gâmbia de 1750 e criado para ser guerreiro da tribo Mandinga. Com 17 anos, o até então livre Kunta procurava madeira para fazer um tambor ritual quando foi capturado por ingleses que buscavam escravos para serem vendidos aos EUA. As primeiras humilhações do guerreira africano foram: ter sido amordaçado, exposto nu, sondado em todos os seus orifícios corporais, marcado com ferro quente e, com outros 170 negros, jogado no porão fétido de um navio negreiro por cem dias até chegar a Maryland.

Uma vez nos EUA, Kunta foi comprado por John Waller, que em primeiro lugar exigiu de seu escravo que assumisse o nome Toby, já que doravante ele seria uma “coisa” americana, e não mais um ser africano. O Guerreiro Mandinga, desde sempre orgulhoso de si e de sua origem, resistiu veementemente à alcunha americana. Porém, algumas horas de extenuantes chibatadas ao troco convenceram-no a ao menos mentir ao seu senhor que aceitava se chamar Toby. Sobrebutalidade branca que, não satisfeita em escravizar um negro, ainda por cima exige o enterro do seu passado livre.  Kunta Kinte, entretanto, em nenhum dia sequer deixou de reafirmar, a si mesmo, aos seus familiares e amigos, a sua nobre e livre, e por isso mesmo inesquecível graça africana.

A liberdade que Kunta mantinha viva sob a sua pele negra escravizada o levou a três tentativas de fuga. Como castigo teve a metade de seu pé direito amputada e e, seguida foi vendido a “preço de banana” para o socialmente desqualificado irlandês William Waller, de quem foi jardineiro e cocheiro até seus últimos dias. Nesse meio tempo, teve a permissão do seu senhor para casar-se com outra escrava, Bell, com quem tem uma filha, Kizzy, a quem ensinou secretamente a cultura e as técnicas guerreiras mandinga, pois sonhava para ela a liberdade negada aos escravos. A força e o carisma de Kizzy a aproximaram da filha de seu senhor, que, também secretamente, ensinou-lhe a leitura, o que até então era proibidíssimo a escravos. Mesmo vetada a leitura aos negros em geral, os Kinte nunca mais seriam analfabetos.

Para pagar dívidas de jogo Kizzy foi vendida. Kunta não mais veria a filha. Alhures, Ela teve um filho, Chicken George, a quem fez saber e adorar a história e os sonhos do avô guerreiro africano. A força e a grandeza da ideia de Kunta Kinte na vida de George levou-o, já no fim de sua escravizada vida, a finalmente conseguir comprar a sua liberdade. Sua esposa e filhos, entretanto, permaneceram escravos de um senhor absolutamente cruel até o final da Guerra de Secessão, em 1865, quando então todos os negros foram libertados. Todavia, mesmo livres, George e a sua família ouvem do despótico e derrotado senhor sulista: “nunca os negros serão reconhecidos como iguais a nós, os brancos”; mais ainda, que “nós, os brancos, faremos de tudo para reconquistar o que é nosso por direito divino”.

E a brutalidade dos atuais policiais brancos norte-americanos contra os negros porventura não é o eco contemporâneo daquela fatídica promessa repetida pelos combalidos escravocratas brancos, bem representada na derradeira fala do último senhor do neto de Kunta Kinte? Aqueles “derrotados” Senhores de escravos, que no entanto se tronaram os Senhores do capital, parecem não se satisfazer com o seu novo modo de subjugação: a proletarização, mais ainda, a lumpemproletarização dos ex-escravos não foi suficiente para que a elite branca mantivesse a velha ideia de sua superioridade racial. A precarização econômica da vida de milhares de pessoas não basta; assim como não bastou ao primeiro dono de Kunta Kinte a mera escravização do guerreiro africano: foi preciso ainda por cima arrancar-lhe o nome e a história, ou seja, a sua humanidade.

A violência racial, hoje espetacularizada nos atos dos policiais norte-americanos, ao mesmo tempo que precisa acabar, deve fazer a sua devida sua mea culpa. Quanto mais não seja, como bem ressaltou Hannah Arendt, porque “o racismo não é um fato da vida, mas uma ideologia, e os atos a que ele conduz não são atos reflexos, mas ações deliberadas baseadas em teorias pseudocientíficas”. Em outras palavras, o racismo é uma estratégia fundada em falsas verdades cujo objetivo é à dominação violenta de uma raça pela outra. A violência racista, prossegue a filósofa, “não é ‘irracional’; é a consequência lógica e racional do racismo, que eu não compreendo como certos preconceitos vagos, mas como um sistema ideológico explícito”.

A história de Kunta Kinte e sua família é uma trágica, no entanto pertinente alegoria dessa ideologia que a modernidade colonialista voltou contra os negros, e que, como os últimos acontecimentos nos EUA deixam bem claro, prossegue contemporaneidade adentro. Em uma imagem “kunta-kinteana, o negro africano foi arrancado de sua ancestral liberdade, escravizado pelo Novo Mundo e, depois de séculos de exploração e desrespeito, recebeu algo chamado de liberdade. Não, obviamente, aquela liberdade de que desfrutava no seu continente-pai, mas sim a “liberdade” capitalista-madrasta que o manteve escravo, embora com uma nova alcunha: “proletário”. Há quem sustente, não sem razão, que só se trocou velhas e pesadas correntes por novos grilhões, mais abstratos, mas nem por isso menos escravizadores.

A selvageria racial do “Poder Branco de Estado” que oprime os negros americanos atualmente é muito maior do que aquela africana-ancestral, cujas bestas eram leões ou gorilas, por exemplo, que apesar de facilmente poderem matar uma pessoa em um instante, nunca a humilhariam nem a explorariam por uma vida inteira. Sem dizer que também é mais selvagem que a selva-branca-escravocrata-moderna, que ao menos tinha a coragem de deixar bem claro aos negros que ele eram escravos. Hoje em dia, em troca, violenta-se os negros como se eles ainda fossem escravos, todavia mentindo que eles são livres.

Hannah Arendt, no entanto, nos leva a entender que onde há violência não há mais poder, mas só a tentativa condenada de, digamos assim, ressuscitar um poder defunto. Sendo assim, a crescente violência dos policiais norte-americanos contra os negros daquele país outra coisa não é que a assunção de que o Império Branco já está solapado. A persistência dessa violência apenas mostra que os senhores brancos não querem aceitar a derrota, do mesmo modo como o último senhor branco do neto negro de Kinta Kunte não quis. Baseados no que disse Arendt, qual seja, que o uso da violência apenas corrói o poder, nunca o preserva nem o aumenta, podemos ter certeza de que o abuso da violência por parte do poder branco estadunidense é apenas a aceleração do fim desse mesmo poder.

Em contrapartida, a violência dos negros norte-americanos contra os seus violentos policiais brancos, por ser reflexiva, isto é, ser uma reação e não uma ação, de acordo com a lógica arendtiana não reduz o poder dos próprios negros, apenas acrescenta mais violência à violência de seus algozes, e, portanto, catalisa a ruína do poder destes. Não é o caso, todavia, de dizer que a violência reativa dos negros contra a violência ativa dos policiais brancos é a única solução para o fim da crise racial norte-americana –ou a de qualquer outro país-, mas sim de entender que qualquer violência, longe de garantir ou criar mais poder, apenas cria mais violência. Em suma, menos poder. Não adianta esperar que os negros não ajam violentamente usando-se de violência contra eles. Absolutamente inteligente –e por isso mesmo improvável de acontecer, infelizmente- seria essa “força branca” decadente empoderar os negros, pois só assim se empoderaria junto com eles, todavia pagando o preço da igualdade e da divisão do poder.

Entretanto, não é isso o que está acontecendo. Basta ver o maciço apoio da população branca ao candidato à presidência dos Estados Unidos, o racista –e também sexista e xenófobo- Donald Trump. A branca sociedade norte-americana está deixando claro que não está evoluída suficientemente para dividir com os negros o poder que historicamente carrega consigo. Como na Guerra de Secessão, a guerra civil que se anuncia na terra do Tio Sam é a preferência de que o país se divida em dois, para que pelo menos em algum dos lados o poder permaneça nas mãos dos brancos. Até mesmo os negros radicais separatistas que querem a fundação da “Nação Negra” refletem essa incapacidade de se imaginar um país onde os brancos dividam o poder com os negros e não os violente.

Só que na selvageria de um guerra civil, os negros, cujo potencial para a violência é bem menor do que o dos brancos, uma vez que não detêm o estatal direito à violência, são os únicos que não terão o seu poder reduzido, mesmo que sejam profundamente vitimados pela violência generalizada. Já o “poder branco”, atolando-se mais um pouco na violência inerente a qualquer guerra, só tem mais poder a perder. Ainda mais se cada soldado negro com o qual se confrontará nesse anunciado conflito carregar em suas veias, senão o sangue de Kunta Kinte, ao menos o inquebrantável espírito do guerreiro de Mandinga, que, como na “facção” de Alex Haley, resistiu dignamente até, três gerações depois, reconquistar a liberdade furtada pelos brancos.

E ainda que novamente vitoriosos os negros não voltem para paraíso perdido algum, assim como os escravos libertos depois da Guerra de Secessão também não voltaram, oxalá gozem de liberdade e igualdade suficientes para não serem mais subjugados e assassinados pelo ódio nem pelo cano da arma de qualquer branco decadente. Para tanto, a sociedade americana precisa deixar para trás aquela ideia de Mao Tse Tung, mui criticada por Hannah Arendt aliás, que diz que o “Poder político cresce do cano de uma arma”, para finalmente entender o que coloca a filósofa alemã, qual seja, que enquanto uma relação é mediada pela violência, nenhum dos lados tem poder.

Sociabilidade insociável

sociabilidade insociável

O filósofo alemão Immanuel Kant, no ensaio chamado “Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita”, publicado em 1784, fala da tendência humana natural a uma sociabilidade absoluta. Tal cosmopolitismo, porém, parece um projeto fadado ao fracasso diante da atual marcha xenófoba no mundo. Agora, se, como coloca Kant, “toda a cultura e toda a arte … e a mais bela ordem social são frutos da insociabilidade”, talvez a distopia antissocial que parece estar sendo construída na contemporaneidade outra coisa não seja que o alicerce de uma utopia social futura.

Se descesse do topo de seu moderno farol iluminista, e caminhasse pela areia movediça da obscura contemporaneidade, que sob a superfície mentirosa da globalização esconde a crescente e profunda recusa ao outro -simbolizada mormente pela recusa declarada ao outro imigrante-, será que ainda assim Kant sustentaria o destino cosmopolita da humanidade? Para responder essa pergunta é preciso primeiro compreender a paradoxal “sociabilidade insociável” proposta pelo filósofo enquanto o fundamento da mais excelente organização humana, a Sociedade Civil.

Para o iluminista alemão, sociabilidade e insociabilidade são capazes de harmonizarem-se nos homens porque eles “não procedem de modo puramente instintivo, como os animais, e também não como racionais cidadãos do mundo em conformidade com um plano combinado”. De modo que a inclinação para viver em sociedade, que assegura e abre oportunidades, anda de mãos dadas com uma propensão ao isolamento devido à resistência que os planos e desejos de cada um encontra na íntima relação com os dos demais.

No entanto, diz Kant, “esta resistência é que desperta todas as forças do homem e o induz … a obter uma posição entre os seus congêneres, que ele não pode suportar, mas dos quais também não pode prescindir”. E é nesse ínterim que se passa da insociabilidade inerente à barbárie para a sociabilidade própria da civilização. Obviamente, não é o bárbaro solitário que realiza o potencial humano, mas o civilizado socializado, e isso porque o uso da razão –a ação própria do ser humano- “desenvolve-se integralmente só na espécie, e não no indivíduo”, coloca o filósofo.

Não obstante a paradoxal “sociabilidade insociável” humana, que por um lado nos leva a viver em sociedade, mas que por outro lado ameaça dissolver essa mesma sociedade, é essa contrariedade mesma que faz o homem evoluir, segundo Kant, de modo patologicamente condicionado. Ora, cada homem quer viver confortavelmente entre seus iguais; quer os benefícios do acordo civilizado com eles; mas estes, que também querem o mesmo, impõem a cada um e a si mesmos obrigatoriedades que, por conseguinte, tolhem a liberdade individual. Eis o “pathos” do qual não nos vemos livres mas sem o qual não avançamos.

Em uma bela metáfora o filósofo esclarece a virtude da “sociabilidade insociável”: “tal como as árvores num bosque, justamente por cada qual procurar tirar à outra o ar e o sol, se forçam a buscá-los por cima de si mesmas e assim conseguem um belo porte, ao passo que as que se encontram em liberdade e entre si isoladas estendem caprichosamente os seus ramos e crescem deformadas, tortas e retorcidas.” E aqui devemos entender esse “bosque” enquanto a Sociedade Civil, o estado ideal para a realização do objetivo cosmopolita humano de que fala Kant.

Sem a limitação individual inerente à pertença a uma sociedade, Kant garante que  “cada um, pois, abusará sempre da sua liberdade”. E, como na metáfora acima, se desviará de sua humanidade. Em uma imagem, crescerá “torto”. Absolutamente livre já éramos enquanto selvagens. No entanto, para Kant, vimo-nos compelidos a renunciar à nossa “liberdade brutal para buscar a tranquilidade e a segurança numa Constituição Civil”, pois só limitados por nós mesmos, e em suprema instância por um governante, deixamos ser bárbaros escravos de nossos impulsos e passamos a ser senhores de uma liberdade propriamente humana, qual seja: viver de acordo com uma vontade universalmente válida.

O que Kant quer dizer é que o homem, para atualizar plenamente a sua natureza, tem de galgar para si uma outra liberdade que não aquela experimentada na selvageria primordial. Os homens, começando por limitarem-se uns aos outros em vista de maior conforto e segurança, e, insistindo nesses objetivos, organizando-se em forma de Estados Nacionais, trazem ao mundo -a si mesmos- uma especial liberdade cuja virtude é não poder ser contestada, visto que universalmente acordada. Mutatis mutandis, a civilizada liberdade universal exige que seja abandonada a bárbara liberdade individual.

Portanto, enquanto não impusermos a nós mesmos um conjunto de regras e leis, e principalmente um indivíduo -ou grupo deles- que nos obrigue à conformidade com essas regras e leis, disporemos apenas da menor e mais primitiva liberdade, cujo inconveniente é ser contestável por qualquer outro, seja por palavras, seja pela força. Só que essa Constituição Civil que garante a maior das liberdades não é fruto de uma deliberação pontual e contingente, mas, antes, como o título do ensaio kantiano pretende deixar bem claro, apenas mediante uma “Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita”.

E tal ideia pode ser alcançada, por exemplo, na letra de Kant, “se partirmos da história grega, se seguirmos a sua influência na formação e na desintegração do corpo político do povo romano, que absorveu o Estado grego, e a influência daquele sobre os bárbaros que, por seu turno, destruíram o Estado romano, e assim sucessivamente até aos nossos dias; se, além disso, acrescentarmos episodicamente a história política dos outros povos … descobrir-se-á um curso regular da melhoria da constituição estatal”.

Essa espécie de pré-hegelianismo kantiano outra coisa não é que a busca de um fio condutor que nos guie ao “absoluto cosmopolita” no qual o inescapável devir político da humanidade se torne, nas palavras do próprio Kant, “a arte política de predição de futuras mudanças políticas”. Desse modo, a condenável xenofobia que vemos crescer no presente pode ser compreendida, por exemplo, como o amargo, todavia necessário primeiro passo na histórica construção de sua condenação universal futura. Mas isso, é claro, se Kant estiver certo, ou seja, se a natureza humana tiver mesmo um “Propósito Cosmopolita”.

Gramados de Brasília

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Circular por Brasília é perceber que o provérbio “A grama do vizinho é sempre mais verde” não tem validade universal. Na capital do Brasil, apenas os gramados dos prédios e equipamentos governamentais é que realmente gozam dessa cor. Nos demais, imensos e numerosos canteiros espalhados pela cidade, com sorte vemos grama seca, quando não, a vermelhíssima terra local. O “vizinho” povo, portanto, é o único que pode invejar a “verdura” do gramado do seu “vizinho”, o Estado. E esse desigual paisagismo outra coisa não reflete que a velha desigualdade social e econômica brasileira.

Projeto urbano modernista de proporção descomunal, a cidade de Brasília não nasceu como uma cidade normal, isto é, através de uma formação orgânica e gradual. Na verdade, foi fruto de uma “canetada” caprichosa do Presidente da República Juscelino Kubitschek, na década de 1950, dada no Palácio do Catete, na até então capital brasileira, o Rio de Janeiro. A desculpa de Kubitschek era interiorizar o Brasil, segundo ele, demasiadamente litorâneo. O objetivo cru, entretanto, era levar o poder para bem longe do velho Brasil.

Então, em uma área completamente erma e bastante árida do alienado e imenso interior brasileiro, sem viv’alma nem passado político algum, o urbanista Lúcio Costa riscou uma cruz em forma de avião -o seu “Plano Piloto”- indicando os dois troncos viários venais da nova capital do poder tupiniquim. De leste a oeste se estendia o Eixo Monumental -a maior avenida do mundo segundo o Guinness Book- para os equipamentos governamentais; e, de norte a sul, o Eixo Rodoviário para as residências e demais serviços urbanos.

Já nas suas duas primeiras linhas Brasília indicava não só a cisão entre cidadania e poder, como também a estratégica dramatização da velha hierarquia entre eles. A solução político-modernista, por conseguinte, fez o Eixo Monumental “governamental” passar por cima do Eixo Rodoviário “popular”. E nesse nó central, justamente onde o povo e o poder deveriam compartilhar o mesmo locus, ainda que em níveis diferentes, foram colocados dois shopping centers e uma rodoviária. Ou seja, em relação ao “eixo dos poderosos”, as opções populares eram: chegar, comprar e ir embora.

O fato de a cidade ser pensada a partir de suas duas mega avenidas foi influência clara do automobilizado “American Dream” do qual Kubitschek era apólogo declarado. Brasília não foi feita para o pedestre, mas para o automóvel. Planejada para não ter semáforo algum, para assim não ser preciso para o “carro” uma vez sequer de qualquer origem a qualquer destino, a capital pretendia ser uma utopia para qualquer “Sr. Volante”, o clássico personagem “walt-disneyco” do Pateta. Tanto que, hoje em dia, os próprios brasilienses dizem, e com orgulho, que, diferente da humanidade, cujos corpos são compostos de cabeça, tronco e membros, eles têm cabeça, tronco e rodas.

Criar uma cidade do zero, mas que fosse imponente o suficiente para justificar o astronômico investimento público, exigiu alguns truques. Um deles: todas as edificações da cidade foram farta e desumanamente distanciadas umas das outras para que então a cidade nascesse, pelo menos aparentemente, “grande”. E para preencher essas distâncias todas, além das largas avenidas, imensos “tapetes” de grama, tanto para disfarçar o árido faroeste no qual a capital foi construída, quanto para convir aos higienistas preceitos modernistas.

Só que na secura do cerrado brasileiro, os gramados modernistas, idealizados por urbanistas europeus, não sobrevivem sem muita, mas muita água, recurso que, entretanto, é escassíssimo na região. Então, dos muitos gramados espalhados pela cidade, só permanecem verdes aqueles que podem dispor desse caro, porque cada vez mais raro bem natural, a água. Ícone da desigualdade paisagística brasiliense é o imenso Lago Paranoá, construído para envolver, adornar e climatizar o centro do poder –e não para o povo desfrutar dele, obviamente, visto que são as mansões das elites e as duas residências presidenciais que o margeiam.

Os poucos gramados verdes de Brasília, portanto, são os símbolos urbanísticos-paisagísticos do desigual consumo de recursos, não só ambientais, como principalmente econômicos, que sempre existiu vicejante no Brasil: o Estado e as elites enquanto os consumidores excelentes das riquezas desse país. Ao povo, o vizinho cujo gramado -e também os bolsos- são sempre secos, resta observar e, como prega o provérbio popular, invejar o viço dos gramados daqueles.

Deus, volte a ser brasileiro!

deusbrazuka

Deus, que os brasileiros insistem em tomar por conterrâneo, poderia “salvar” o Brasil da imoralidade política, ou essa tarefa é exclusivamente mundana? Não obstante o brazuka estar querendo mais que tudo a moralização dos seus representantes políticos, é paradoxal ver esse povo que mantém vivo o paralegal “jeitinho brasileiro” estar exigindo moralidade dos seus políticos em primeiro lugar.

Embora os paradoxos sejam insolúveis, todavia não são imunes à compreensão de sua insolubilidade. Aliás, compreendê-los é a chave para não se ficar aprisionado neles. Como, então, o povo brasileiro pode superar a sinuca-de-bico na qual ele mesmo se coloca, e que pode ser bem resumida na seguinte imagem: plantar imoralidade esperando colher moralidade? Os pensamentos do italiano Nicolau Maquiavel e os do alemão Immanuel Kant podem ser de grande ajuda nesse sentido.

Treze anos depois do descobrimento do Brasil, Maquiavel escrevia a sua obra-prima, “O Príncipe”, dizendo ao mundo moderno que ele mesmo ajudava a inaugurar que, ao contrário do que até então pregava o longevo casamento entre fé e poder, moral e política não se misturam. Para o pensador italiano, o político virtuoso não é aquele que segue as regras estabelecidas nem tampouco o que se pauta pelo bem do povo, mas, precisamente, aquele que consegue manter ou aumentar o seu próprio poder, seja por que meio for.

Decerto que dentro da lógica maquiavélica a justeza moral é um empecilho. E essa semente imoral encontrou solo fértil no Brasil politicamente virgem dos 1500. Desde então a imoralidade política vem sendo extensivamente cultivada, a ponto de hoje ser colhida nos quatro cantos desse país, qual mato. Não se espantem com isso -diria Maquiavel- mas sim com essa insistência, melhor dizendo, com a ingenuidade de vocês em ainda esperarem que vossos políticos sejam éticos!

E o pensador renascentista poderia dar dois exemplos bem locais. O primeiro, que Lula só é considerado um dos maiores políticos do mundo porque soube driblar a amoralidade da Fortuna com uma “tabelinha” estratégica entre moralidade e imoralidade. E o segundo, que Dilma Rousseff merece a crítica de que não sabe fazer política justamente por causa de seu moralismo intransigente. Realmente ela não foi política, afinal, decidiu ser ética. E o preço dessa escolha: o impeachment.

Entretanto, apesar Maquiavel ter percebido lá atrás que política e ética não coabitam o mesmo espaço, isso não significa que não possa vir a ser diferente. A crise de representatividade política espetacularmente deflagrada no Brasil em Junho de 2013 com o seu popular “Ninguém me representa!”, mas que seguiu ecoando decadentemente a partir de 2015 na boca das elites com o slogan “Intervenção Militar Já!”, são manifestações diversas, todavia, em repúdio ao mesmo problema: a imoralidade do mundo político.

Agora, para que o contemporâneo desejo popular de representantes políticos éticos possa se realizar, a primeira coisa a ser feita é dispensar a covarde e preguiçosa ideia de que tal moralização deva começar de cima para baixo, isto é, da própria casta política imoral para a base da sociedade, qual dádiva. Até porque, relembra-nos Aristóteles: “a qualidade de um Estado é a qualidade dos seus cidadãos”, o que provavelmente inspirou o historiador Leandro Karnal a dizer que “não existe país com governo corrupto e população honesta”.

O que é fundamental entender dos dois filósofos é que só teremos políticos éticos na nossa sociedade na medida em que nós, os indivíduos que constituem essa sociedade, e que por nossas vezes elegemos aqueles, formos éticos antes de tudo. A moralidade deve ser primeiramente posta por quem a exige, ora bolas! Do contrário, o que exatamente se está exigindo? Como, então, moralizar-nos individual e basilarmente para que, consequentemente, tenhamos o edifício social moral de que estamos carecendo?

Kant é fundamental para esse desafio, e isso porque ele coloca que a moralidade não é algo transcendente que precise ser procurado alhures, mas, ao contrário, é uma faculdade imanente da nossa razão. Desse ponto de vista, cabe a cada um de nós conhecer tal faculdade, melhor dizendo, reconhecê-la em nós mesmos e, sobretudo, exercitá-la se quisermos que ela paute os nossos atos e, por conseguinte, esteja presente nos políticos que nos representam.

Conhecer essa nossa faculdade moral, diz Kant, é saber que sua pedra de toque é o bem. Não o que por acaso é bom a alguém em particular, como pensaria o egoísta –ou o político corrupto. Ao contrário, o bem moral é aquele que é bom em si mesmo, independentemente de qualquer benefício particular, porquanto não visa os objetos-fins das nossas ações, mas as ações em si mesmas, ou seja, o meio com a qual se obtém os fins. Para o bem que é fruto de interesses egoístas, em troca, é justamente o resultado da ação que vale. Aqui, são os fins que determinam as ações.

Dito de outro modo, moralidade é a razão dar as suas leis às nossas ações, ao passo que imoralidade é os objetos ditarem leis à razão. Como bem podemos ver, na imoralidade a razão é escrava das ações e de suas finalidades. Para uma ação ser plenamente moral, portanto, deve-se abstrair dela todo e qualquer objeto de desejo, até que nada influencie a razão no seu trabalho, pois só assim ela não é, como diz Kant, “uma mera administradora de interesse alheio”. Reconhecer a moralidade em si mesmo é perceber-se sustentando um bem que, antes de ser bom para tal e qual caso, é bom em si mesmo, seja em que caso for, ainda e principalmente que não se frua dele.

Tarefa difícil para nós, sujeitos profundamente hedonizados  desde a modernidade, para os quais os prazeres individuais e as vantagens pessoais são os motores principais. “Não se deve mentir”, por exemplo, é um imperativo moral que mesmo o maior dos mentirosos reconhece, uma vez que até mesmo ele não tem como achar bom ser alvo de mentiras. E Kant vai mais longe ainda dizendo que não é somente quem mente que é imoral, mas também aquele que não o faz apenas para continuar honrado. Para o filósofo, só existe moralidade naquele que pensa: não devo mentir ainda que mentir não me traga prejuízo algum.

Só que a ideia de bem fundamental com o qual a nossa faculdade moral determina os bens a serem perseguidos é anterior a esses mesmos bens; afinal, estes só podem ser considerados bons por causa daquela ideia de bem fundamental. A metáfora “não colocar a carroça na frente dos bois” é pertinente aqui. Qual seria então esse bem primordial, racional e a priori que, a partir de todas e ações possíveis, determina quais são as éticas?

De acordo com Kant trata-se da liberdade. Estritamente falando, da liberdade da própria razão em relação ao império dos sentidos e às inclinações subjetivas. Ora, quando julgamos boa alguma coisa porque ela satisfaz algum desejo nosso -sacia a nossa fome, sede, tesão, nos enriquece ou privilegia privadamente etc.- decerto que esta coisa mente ser um bem. Entrementes, é um bem menor, e de forma alguma um bem moral, uma vez que apenas obriga a nossa razão a buscá-lo. Nesses casos, a nossa razão não é livre, mas escrava de desejos patológicos. Só mesmo a moralidade não rouba a liberdade da razão nem impõe o contrário do que ela ordena.

Dessa visada, a condenável imoralidade dos nossos representantes políticos não é outra que a de cada um de nós, indivíduos-cidadãos sempre dedicados ao que é bom primeiramente para nós mesmos. E para nos alienarmos dessa imoralidade celular, não só nos esforçamos para projetá-la no organismo político que nos representa, como mais covardemente ainda exigimos dele que seja ético em primeiro lugar. Melhor dizendo: no nosso lugar. Só que eles, por suas vezes, ou pensam o mesmo, ou, aferrados ao maquiavelismo, sequer dão bola para isso.

Mas o sumo bem, esse objeto fundamental da nossa faculdade moral, felizmente não desaparece sob essa imoralidade toda. Como dito antes, ele é imanente à nossa razão. Subsiste incólume naquilo que cada um entende por “dever”, mesmo que não se o respeite deliberadamente. O dever, na verdade, nasce justamente da nossa incapacidade em atender plenamente aos imperativos morais racionais, seduzidos que somos pelas promessas e gratificações egoístas. E aquilo que não fazemos necessariamente, devemos fazer pelo dever, pois a moralidade não é a lei do que é, mas a do que deve ser.

Para a razão escapar à servidão em relação aos nossos desejos e interesses patológicos, coloca Kant, ela precisa todavia de um referencial metafísico que não seja corrompível por qualquer condição física. Quanto mais não seja, sem esse bem metafísico a ideia de bem incondicional, que por sua vez nos impõe a sensação de dever, não tem como escapar do relativismo, em cuja esfera roubar em função do enriquecimento pessoal, por exemplo, pode passar por um bem -como aliás vemos acontecer fartamente na nossa sociedade.

O que seria então esse sumo bem metafísico absoluto que fundamenta sem relativismo algum uma conduta moral? Para Kant, trata-se da mais perfeita ideia que a nossa razão é capaz de produzir, ou seja: Deus. E Deus só representa o bem absoluto porque, muito antes de ser aquela figura cristã demasiadamente antropomorfizada e problemática, é na verdade a liberdade plena da razão em relação ao mundo sensível e às suas contingências. A ideia de Deus é tão perfeita que dispensa o dever, pois somente nela qualquer querer já coincide com o bem absoluto.

Para a nossa razão produzir a ideia de Deus, entretanto, ela precisa necessariamente excluir qualquer imperfeição ou finitude; qualquer bem menor, particular, egoísta. Porventura Deus precisaria se empanturrar de comida ou bebida; enriquecer; mentir; roubar; trair? Logicamente que não. Portanto, só mesmo com a ideia de Deus a nossa razão pode indicar-nos o que é incondicionalmente bom e, portanto, a regra moral plena. Transgredindo o bem supremo que a nossa razão representa através da ideia de Deus, podemos no máximo ser imorais conscientes, ou, como se diz, “moralistas-de-cuecas”.

Entretanto, a modernidade que começou com Maquiavel cindindo ética e política, e que foi simbolicamente encerrada por Nietzsche com o seu “Deus está morto”, de certa forma foi uma abertura epocal à imoralidade. Com efeito, sem moral e sem Deus nada é mau nem pecado. Então, mentir, roubar, trapacear etc. em função de prazeres e benefícios pessoais, desde que obviamente não se seja descoberto por nossos pares ou leis mundanas, não ameaça trazer dano ulterior. Aqui, o imoral não precisa ser moral, só não deve ser descoberto em sua imoralidade

Só que do outro lado dessa moeda imoral por meio da qual cada um de nós pode se beneficiar individualmente, jaz a imoralidade angustiante dos nossos representantes políticos que se beneficiam justamente às nossas custas. E aqui porventura não vale o provérbio “ladrão que rouba de ladrão tem cem anos de perdão”? De que adiante então sair às ruas e encher as redes sociais de clamores por moralidade política se nós mesmos não cultivamos, pré-politicamente, uma prática moral efetiva? Exigir que um outro realize o que nós mesmos não conseguimos realizar é o que senão imoralidade pura?

Devemos voltar a ser crentes, é isso? Não necessariamente! Basta que reconheçamos em nós mesmos a ideia de bem supremo. Não é necessário ressuscitar aquele Deus cristão. Aliás, tanto melhor que ele não ocupe o lugar do Deus-racional que, em outra palavras, é a própria liberdade da nossa razão em relação às exigências patológicas da existência. O filósofo Baruch Spinoza disse que “Deus é a natureza”, o que, para mim, é irrefutável. Como, porém, o objetivo aqui é mais pragmático, qual seja, pensar uma moralização política que não obstante comece pelos indivíduos, “Deus é a razão” é um bom começo.

Ora, a perfeição da ideia de Deus é maior liberdade da nossa razão; de onde surge a ideia de bem supremo; que por sua vez fundamenta incondicionalmente todos os bens ulteriores que procuramos com nossas ações. A ideia de Deus, portanto, é fundamental para conseguirmos ser éticos. E somente depois de realizada essa tarefa é que podemos passar a exigir moralidade dos nossos representantes políticos sem sermos covardemente imorais, isto é, sem exigirmos moralidade sem primeiramente a colocarmos no mundo.

Vitória absoluta da razão, por conseguinte, será quando todos os brasileiros “endeusarem” em si mesmos a ideia de bem incondicional que tanto estabelece o que não deve ser feito de jeito algum, quanto impõe inescapavelmente o dever ao bem. Aí sequer seria necessário exigir moralidade dos outros, afinal, teríamos moralizado o mundo imanentemente, a partir do que já somos, seres de razão, locus único da moralidade. Talvez o povo que repete insistentemente que “Deus é brasileiro” deva imanentizar essa proverbial conterraneidade divina para realizar a priori a moralidade, e, só então, a posteriori, exigi-la de seus representantes políticos.

 

Filho e Pai, entre a cruz e o deserto.

Jesus divã

Escrito e dirigido pelo diretor colombiano Rodrigo García, o filme “Últimos Dias no Deserto” conta a caminhada solitária do filho de Deus pelo Deserto da Judeia, episódio de 40 dias e quarenta noites conhecido como “A Tentação de Cristo”. Jesus é interpretado pelo inglesíssimo Ewan McGregor, o que mais uma vez nos dá um Salvador loiro e de olhos azuis, e não moreno como alguém nascido na região da atual Palestina, tampouco na América Latina, poesia que o diretor bem poderia ter emprestado à película: um Cristo cucaracha! “Hollywoodianíces” à parte, “Últimos Dias no Deserto” simboliza muito bem a problemática da relação filho-pai. Mais especificamente, a tentação do filho em ser o projeto preferido, quiçá exclusivo do pai.

O filme de García começa com Jesus vagando solitariamente pelo deserto e, em vários momentos, pedindo desesperadamente para que seu pai, Deus, fale com ele, que responda suas muitas perguntas, sem no entanto receber sinal algum. Quem sempre aparece nessas horas não é Deus Pai, mas o demônio ele mesmo, todavia na figura do próprio Jesus: espécie de alter ego pessimista que, sem papas na língua, diz ao filho que o Pai não quer saber dele; que Deus ama somente a si mesmo e à sua obra-prima, o mundo, no qual aliás Jesus foi esquecido; e ainda, que é melhor Jesus superar a melancolia da perda do laço com o Pai e seguir adiante sem ele.

Jesus conhece então uma família eremita: um velho e despótico pai, uma jovem, bela, porém adoentada mãe, e um filho adolescente. Novamente a problemática relação filho-pai é destacada, só que agora com personagens mundanos. O filho, cujo sonho era viver na cidade grande, Jerusalém, no entanto era obrigado pelo pai a permanecer no deserto cuidando da mãe doente. Odiava o progenitor por isso e, consequentemente, se fechava a ele. O pai, por sua vez, cujo sonho era conhecer melhor o filho, saber de seus desejos e pensamentos, no entanto tinha medo de perdê-lo (que ele fosse para Jerusalém) caso fosse amigável, menos despótico com ele.

Quando o menino confessou à Jesus o seu sonho secreto, bem como a frustração por não poder realizá-lo, foi perguntado se já havia dito isso ao seu pai. O garoto respondeu que não, pois tinha medo de ser considerado egoísta, em suma, um mau-filho, e que por isso esperaria o pai morrer para finalmente deixar o deserto. Quando, em outro momento, o velho pai perguntou à Jesus se por acaso o filho havia lhe confessado algum desejo, teve um não mentiroso como resposta seguido da sugestão de que deveria perguntar essas coisas ao filho, aproximar-se dele. O pai, entretanto, disse que conversa era coisa para mulher; que a melhor palavra de um pai é o exemplo prático e silencioso. Distância pai-filho quase intransponível, “assim na Terra como no céu”.

No dia em que o velho pai morre acidentalmente, o filho substitui a tristeza do luto pelas honras protocolares a serem prestadas ao cadáver paterno. Banha-o, besunta-o, envolve-o em linho e o lança ao fogo, tudo isso sem derramar uma lágrima sequer. E no final do mesmo dia decide partir para o seu sonho, Jerusalém, mesmo que isso significasse a mãe doente, por cujo amor rivalizava com o pai, restar desassistida e morrer solitariamente no deserto. Para escapar desse impasse, o menino então pede espécie de benção/permissão a Jesus. O diabo –ou o próprio Jesus- então sussurra: “Como são miseráveis, os homens! Mesmo livres, precisam de alguém que lhes autorize aos seus próprios sonhos”.

Como não lembrar do Complexo Édipo freudiano, conjunto de desejos amorosos e hostis que um menino experimenta em relação à mãe e ao pai? Com Jesus, todavia, esse “complexo é bem mais complexo”; mais do que com o trágico tirano de Tebas; e muito mais do que com o garoto do deserto. Se um menino, digamos assim, normal já disputa o amor da mãe com o seu pai mesmo sabendo que este já era depositário do amor dela antes de qualquer filho, imagine quando se é o primeiro homem da vida de sua mãe, como no caso de Maria, que era virgem. E como se não bastasse, esse segundo homem da vida dela, com quem a disputa, é onipotente: o Ser mais poderoso do universo. Comparado ao “Complexo de Jesus”, o de Édipo é brincadeira de criança.

Todavia, o Complexo de Édipo é um bom caminho para entendermos o de Jesus. Naquele, o menino dirige sua libido, ou seja, seu desejo sexual para a mãe, e, em relação ao pai, o homem com quem ela de fato realiza a sua libido, resta apenas ciúme e rivalidade. Por isso o menino quer matar o pai, qual Édipo. Só que ele tem consciência de que o pai é o mais forte dos dois, o que, por sua vez, gera certa admiração. O menino então fica aprisionado em uma ambivalência em relação ao pai: por um lado, tem vontade de matá-lo, e, por outro, tem medo de ser morto por ele –em termos psicanalíticos, castrado.

De acordo com a teoria freudiana, o menino pode superar essa insuportável ambiguidade de duas formas: ou realiza o Complexo de Édipo, isto é, busca ser forte e potente como o pai, ganhando assim o mesmo amor que a mãe tem por este e livrando-se do ciúme e da disputa iniciais; ou, em troca, reconhece que é impotente diante do pai, ou seja, aceita a castração, com o preço todavia de se colocar no lugar da mãe, não só para garantir o amor dela por meio de uma identidade, como também para se ver livre da ameaça paterna. Em psicanálise isso é chamado de Édipo Invertido, isto é, a saída homossexual para o impasse primordial.

O que fez Jesus para superar a complexidade de seus sentimentos diante do onipotente Pai? No filme, e ainda no deserto, o demônio -ou o próprio Jesus- convence o filho de Deus a desistir de esperar qualquer mensagem ou sinal do seu Pai Ausente. Diz contundentemente que Jesus deve seguir a sua vida, construir o seu caminho com as próprias mãos, pagando o preço que tivesse de pagar. Do contrário, nunca deixaria o deserto de suas próprias dúvidas e impotência. Depois dessa revelação pessoal, Jesus seguiu para Jerusalém para realizar o seu destino, bem conhecido por todos nós.

Jesus, portanto, realizou o Complexo de Édipo: superou o medo de ser castrado pela potência do seu Pai Celeste; caiu no mundo em busca de ser tão forte quanto Ele; e, por fim, tornou-se ele mesmo um Deus na Terra, tão amado quanto o seu Pai. Mais ainda, superando qualquer Édipo, passou a ser o canal mundano para o amor a Deus Pai. Até mesmo a sua mãe, Maria, para amar o Pai, deveria primeiro amar o filho: “A Verdade, o Caminho e a Luz!”.

Todavia, caminhando com as próprias pernas à sua própria glória, Jesus encontrou as vicissitudes mundanas que inexistiam na solidão do deserto. Não é preciso recontar aqui os passos de sua sofrida Paixão. Só que o mundo –o Pai em obra- foi tão cruel com Jesus que nos seus últimos instantes ele voltou à criticar Deus: “Pai, por que me abandonaste?” Só que dessa vez, na iminência do filho realizar a sua missão terrena, Deus Pai não se furtou de recompensá-lo: doravante Jesus seria idolatrado como Ele, para toda a eternidade.

O Jesus do filme, que lá no deserto não entendia porque Deus preferia o mundo que havia criado a ele, no seu suspiro derradeiro recebe uma visita de Deus Pai em forma de mundo que finalmente lhe esclarece a questão. Um beija-flor furta-cor, lindo e perfeito como a própria natureza, paira no ar bem diante de Jesus crucificado. Então Cristo parece refletir, a despeito de sua insuportável agonia: “eis porque Ele preferiu o mundo. Olha que lindo!

Entretanto, é preciso cogitar que talvez Deus estivesse tentando dizer outra coisa, quiçá uma fragilidade secreta sua, algo como: “Eu te olho através dos olhos desse beija-flor, filho, para ver nos reflexo dos teus olhos o que é ser pai, pois diferente de você, Eu nunca tive um. És tu que me ensinas o que é ser Pai! E se em nenhum momento Eu falei contigo, é porque, como aquele déspota do deserto em relação ao seu filho sonhador, achei que palavras fossem coisas, não de mulher, mas de humanos, o que Eu também não sou. És tu que me ensina a ser humano, a falar, e todo o resto!”

Estaria Deus confessando que não era onisciente, uma vez que não sabia o que era ser pai, humano, não sabia falar etc? Nesse momento Ele se cala novamente e, no máximo, fantasia-se de beija-flor para calar tal pergunta. No entanto, a não-onipotência divina seria a melhor moral para a estória, afinal, assim como qualquer menino deve aprender a ser filho do seu único pai, assim também Deus Pai deve aprender a ser pai do Seu único filho. Jesus é a prova de que Deus não era tão potente e perfeito assim: faltava-Lhe justamente um filho, melhor dizendo, “o filho”, bem como a capacidade de ser pai. Em “Os últimos Dias no Deserto”, na verdade na superação de sua própria Tentação, Jesus dá um espetáculo em matéria de Complexo de Édipo.

 

“O Príncipe” maquiavélico tupiniquim

09.03.2016  DD dia a dia --  Lula   --  CONTRA -- Foto: Divulgaçao

Nordestino que nasceu pobre, cresceu analfabeto, tornou-se metalúrgico, virou líder sindical, fundou o maior partido de esquerda do Brasil e, como “cereja do bolo”, considerado o maior presidente que esse país já teve, Lula é admirado internacionalmente, amado pela maioria dos brasileiros e, principalmente, temido pelas elites nacionais. Estas, em 29 de junho de 2016, finalmente o colocaram no banco dos réus por “tentativa de obstrução da justiça”. Mestras em tal obstrução quando se trata de suas próprias e muitas injustiças, essas elites construíram um teatro moralista para emparedar Lula, em cujo palco, no entanto, elas são incapazes de representar a mais pálida e curta pantomima moral. Já Lula, para além da moralidade e da imoralidade, ainda é a maior estrela do espetáculo político nacional.

Pode ser dito inclusive, sem medo de errar e sem intenção de denegri-lo, que Lula é o político mais maquiavélico que este país já conheceu. Isso, claro, desde que entendamos que a teoria de Nicolau Maquiavel, ao contrário do que vulgarmente se pensa, vai muito além da rasa máxima “os fins justificam os meios”. Desse ponto de vista apenas, pode-se pensar até barbáreis como por exemplo o nazismo. Mas não é o caso. O filósofo renascentista italiano, fundador do pensamento político moderno, trouxe ao mundo uma compreensão muito mais profunda da dimensão política e do que é, de fato, ser um político virtuoso.  É a partir desta profundidade maquiavélica, portanto, que devemos pensar Lula, o nosso grande estadista.

Na sua célebre obra, “O Príncipe”, publicada em 1532, Maquiavel esclareceu que política e moral não andam juntas. Mais ainda, que não devem andar caso um político deseje êxito. Auto lá! –protesta o povo brasileiro traumatizado com a aclarada imoralidade de seus representantes políticos, que, concretamente e no final das contas, resulta na corrupção que tanto o vilipendia. Com efeito, a maioria desse povo, mais do que nunca está exigindo que a classe política moralize-se. Decerto não há nada de errado nesse desejo, afinal, o futuro sempre está para ser construído, e o presente é a prancha de projeto e o canteiro de obras para tal. Porém, é ingenuidade, sem dizer profunda ignorância em relação ao Maquiavel deixou bem claro há 484 anos, surpreender-se com o fato de que até aqui o nosso castelo político não foi morada da moral.

Se, vulgarmente falando, ser moral é seguir um conjunto de regras -sociais, religiosas, etc.-, ser imoral, em contrapartida, é desrespeitar tais regras, no entanto, reconhecendo-as. Não respeitar regras porque não se as reconhece é ser amoral. Por exemplo: se de acordo com a lei é proibido roubar, o moralista não roubará de forma alguma; o “imoralista”, entretanto, poderá roubar de acordo com seus interesses particulares e momentâneos, todavia, sabendo que está infringindo a lei; já o “amoralista”, para quem a única lei é a da necessidade particular e momentânea mesmo, se porventura roubar não estará quebrando qualquer regra preexistente, pois para ele, estas não existem.

Em se tratando de política, obviamente não há lugar para o amoralismo, pois o político que não reconhece regras sociais, na verdade, é um déspota. Por outro lado, sabemos muito bem que, pelo menos no Brasil, políticos verdadeiramente morais são raros. Como conclusão, temos que até hoje o mundo político tupiniquim é o habitat da imoralidade. Há inclusive uma expressão que traduz poeticamente essa sempiterna imoralidade: “o jeitinho brasileiro”. Percebendo isso, não há nada com o que se espantar com um líder de esquerda ter flertado estrategicamente com a imoralidade afora o fato de ele, pública e propagandisticamente, ser contra ela.

Não obstante a democratização da imoralidade no mundo político brasileiro, uma diferenciação há de ser feita no caso de Lula. Aqui precisamos entender que quando um moralista atende fielmente à lei, não é ela o que realmente importa, pois a lei é apenas a indicação pragmática de algo mais abstrato, todavia essencial, qual seja, o bem maior. E não havendo Deus algum ditando um bem supremo e inquestionável às sociedades, esse bem maior a ser perseguido deve ser construído socialmente. E tanto maior é, quanto mais democraticamente for estabelecido, isto é, quando é -ou promete ser- o bem para a maioria das pessoas. Politicamente falando, ser moralista é acatar a esse bem maior projetado pela maioria dos indivíduos. Ser imoral, em troca, é preterir esse bem maior de que no entanto se tem consciência justamente em função de benefícios particulares, ou de bens menores, se se preferir.

Essa régua moral/política, que vai dos menores bens (os mais privados) aos  maiores (os mais coletivos), serve para medir uma diferença essencial entre o imoralismo da elite tupiniquim e o de Lula que com efeito faz deste último o grande maquiavélico brasileiro. Não é mistério algum que o objetivo sempiterno das elites sempre foi resguardar e conquistar privilégios para si mesmas, e em detrimento da maioria da população. Os bens que buscam são tão baixos, porque para tão poucos, que jazem muito próximos do zero. Imoralidade quase que plena, beirando a amoralidade aliás. Já Lula, mesmo conhecidos os seus imorais mensalões e caixas-dois-de-campanha, por meio deles é que conseguiu possibilitar à maioria das pessoas justamente aquilo que para elas é bom, por exemplo: a maior distribuição de riqueza da história do Brasil, a erradicação da fome, a democratização do acesso à educação, entre tantos outros bens inquestionáveis.

A imoralidade de Lula por pouco não passa por moralidade. Tendo realizado um feito prodigioso, o ex-metalúrgico de nove dedos conseguiu ao mesmo tempo deixar os ricos mais ricos e os pobres menos pobres. Todos saíram ganhando: quem sempre ganhou e quem nunca. Claro, de acordo com uma rígida régua socialista, Lula não avançou muito na escala. Resta saber, porém, se algum socialista radical conseguiria realizar o bem à maioria do povo adstrito à moralidade apenas. Péssimo, todavia indispensável exemplo dessa impossibilidade foi o comunismo de Stalin, cujo bem, que era para ser coletivizado, no entanto, ficou restrito a ele mesmo e à sua pesada burocracia, ambos responsáveis pelo insucesso do grande projeto socialista russo. Se, de um lado, Lula foi “pelego das grandes corporações” ao permitir que elas seguissem engordando, de outro, foi revolucionário ao fazer com que no Brasil não mais se morresse de inanição.

Outro ponto interessante na teoria de Maquiavel que faz de Lula o nosso “Príncipe” é a boa conjunção entre “Virtù” (conhecimento prático do governante para obter e manter o poder) e “Fortuna” (o curso dos acontecimentos que não dependem da vontade humana, tampouco da do governante). Para Maquiavel, o governante virtuoso é aquele que bem governa porque saber aproveitar os movimentos da Roda da Fortuna, isto é, a imprevisibilidade da realidade. Em respeito à Virtù, Lula não tinha propriamente um conhecimento prático quando se tornou presidente, afinal, este foi o seu primeiro cargo oficial. Entretanto, a sua intuição política fez as vezes, e na verdade superou em muito esse conhecimento faltante. Já em relação à Fortuna, desculpe-me a redundância, Lula foi muito afortunado. Durante a sua gestão, houve uma bonança econômica mundial movida pela sobrevalorização das commodities, como o petróleo e os minérios por exemplo, que Lula soube aproveitar magistralmente. A conjunção de uma Virtù intuitiva incomparável e uma sagacidade invejável diante da Fortuna faz com que Lula seja o mais maquiavélico dos políticos brasileiros.

Companheira de Partido e de projeto de Estado, Dilma Rousseff sucedeu Lula na presidência da República. No começo de seu primeiro mandato ela até surfou a mesma boa onda dele. No entanto, faltou-lhe Virtù. Seu primeiro defeito, pasmem, foi ser demasiado moralista: recusar-se abertamente a participar de estratagemas ilícitos, e o que é mais moral ainda, investigar a corrupção e punir corruptos e corruptores, e isso de dentro de um sistema político-econômico corrompido dos pés à cabeça. Isso acabou sendo o seu tiro no pé. Sua impertinente moralidade fez o Brasil imoral mergulhar em grande crise. Os ricos, os pobres, e principalmente ela mesma, todos saíram perdendo. Maquiavel ainda é tão pertinente! Sem dizer que, para o italiano, a Virtù, além de tudo, é a capacidade de manter a paz e a estabilidade do Estado, coisa que definitivamente ela não conseguiu. Foi afastada por uma canetada oligárquica-parlamentar vergonhosa.

Esse ensaio, no entanto, não estaria completo se não falássemos da maquiavélica relação entre amor e temor do povo com o governante. Para o filósofo, um bom governante é aquele que é ou amado, ou temido. A primeira opção é a mais desejável pois estabelece vínculos mais estáveis com o povo. Já a segunda é mais frágil; basta o povo temerário se reunir suficientemente para depor quem lhe causa medo. Em ambos os casos, porém, Lula é Hors Concours. Tendo terminado o seu segundo mandato com 87% de aprovação popular, mais que Nelson Mandela na África do Sul, Lula foi o presidente mais amado do mundo. E como se não bastasse, além de adorado pela maioria, até hoje é temido pelas minorias, as elites, que se borram de medo de sua força política. Colocá-lo no banco dos réus -e se essas elites tiverem Virtù suficiente, na cadeia- é a estratégia covarde para que Lula não concorra na próxima eleição presidencial em 2018, na qual, de acordo com recentes pesquisas de opinião, ele teria vitória garantida, mesmo que profundamente combalido pela atual oposição jurídica, política e midiática.

Já Dilma não conseguiu ser temida, nem tampouco amada pelo povo. Sua saída forçada do governo até  fez com que ela se tornasse objeto de certo amor coletivo -todavia paralelo a um ódio irracional extremado. Agora, se fizermos uma crítica dos afetos a partir do presente golpe de estado brasileiro, como sugere o filósofo Vladimir Safatle, veremos apenas melancolia. O colateral amor por Dilma, na verdade, é uma máscara à tristeza pela perda da democracia e do valor de 54 milhões de votos populares legítimos. Dilma realmente não tem porque ser amada, seja por sua pálida Virtù, seja por sua questionável relação com a Fortuna, seja ainda por não ter obtido um bom equilíbrio entre estas duas. E isso, maquiavelicamente falando, por conta de sua insistente moralidade. Se tivesse flertado cirurgicamente com a imoralidade -bem menos que Lula até-, Dilma não só teria mantido o poder nas suas mãos, como também sob o governo de um partido de esquerda, o que por sua vez seria muito melhor para a maioria da população. Sem dizer que teria impedido a velha elite política oligárquica brasileira, a mais imoral de todas, de ter retornado ao poder e estar governando sozinha o país.

No entanto, ser um animal político como o ex-líder sindical, isto é, ter Virtù suficiente para espremer o melhor da Fortuna, é para pouquíssimos. E a grande Virtù de Lula, da perspectiva maquiavélica, foi perceber onde e quando deveria ser moral, isto é, colocar o bem maior como o seu motor político –e aqui não precisamos citar novamente os seus grandes feitos-, e onde precisava ser imoral, ou seja, se relacionar com a velha, resistente e corrompida estrutura política brasileira, pagando todavia alto preço -que também não precisa ser repetido aqui. Tática ideal? Não, obviamente. Prática virtuosa, no entanto. Afinal, não sucumbir diante da amoralidade da Fortuna é para quem sabe dosar moralidade e imoralidade. E se Paracelso, médico alemão contemporâneo de Maquiavel, está certo, e “a diferença entre remédio e veneno está na dose”, Lula foi o nosso mais doce e virtuoso alquimista político.

 

Trepalium, a série, exemplo de lumpenrealidade.

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Imagine uma realidade distópica na qual 80% da população é desempregada, miserável e sem utilidade social alguma, e que, por conta disso, deve jazer separada dos 20% afortunados por um grandioso e intransponível muro bem ao estilo Donald Trump. Se não conseguiu, basta assistir “Trepalium” (2016), série francesa criada por Antarès Bassis e Sophie Hiet que oferece um “belo” vislumbre do horror que está logo ali, na virada da esquina que separa o nosso problemático hoje do não menos nosso insustentável amanhã. A expressão alemã “lumpen”, que significa “trapo”, “farrapo”, usada por Marx para predicar a degradação do proletariado, deve ser também predicada à realidade ficcional de Trepalium, bem como à “realidade real” aludida pelo seriado, que por acaso é a nossa: lumpenrealidade.

Na ficção francesa, a minoria altamente aburguesada, chamada de “ativos”, de modo algum quer contato com a maioria lumpemproletarizada em situação de miséria e desesperança extremas, os  “inativos”.  Para tal, além do muro, no lado pobre também é mantida uma publicidade ostensiva que vende aos miseráveis, não a possibilidade de cruzarem para o lado rico, mas um “Sul” utópico e distante que sequer precisa existir para cumprir certeiramente o seu papel alienante. Interessante é ver que esse “Sul” dos sonhos é ilustrado com imagens de Brasília, capital do Brasil, com destaque às famosas e curvilíneas colunas que o arquiteto Oscar Niemeyer colocou no Palácio Alvorada, a residência presidencial oficial.

O que querem os ricos da série francesa dizer com isso? Que o melhor destino dos seus “desgraçados” é o Brasil, mais especificamente o “bureau” político tupiniquim? Como podemos ver, o muro de Trepalium é mais intransponível do que se pode imaginar. Em vez de transpô-lo, os miseráveis são levados a desejar se afastar mais ainda dele; a migrarem (clandestinamente?) para bem longe, para esse “Sul” distante, afinal, nem mesmo em sonho o privilégio da burguesia trepaliana pode estar no horizonte dos pobres. Um alienante e profundo fosso ideológico compondo a estrutura de uma barreira material injusta e excludente. E isso porque, conforme o provérbio árabe, “muro baixo, povo pula”

Como não poderia deixar de ser, do lado pobre há crescentes insatisfações e agitações populares. Porém, em vez de serem tradadas com programas sociais, distribuição de renda e principalmente empregos, apenas são encobertas pelos governantes –que, obviamente, vivem no outro lado- com mais imagens alienantes do tal “Sul”. Do lado rico, todavia, há também insatisfações e inquietações, não econômicas nem sociais, mas as do velho existencialismo burguês: espécie de tédio hedonista cuja miséria subjetiva serve apenas para reforçar a riqueza objetiva. Trepalium corrobora com provérbio popular que diz: “dinheiro não traz felicidade”, pois, como o seriado mostra muito bem, traz apenas mais divisão social.

Sem mais nada a perder, os pobres inúteis aproveitam que o Ministro do Trabalho vai até eles demagogizar mais uma vez sobre o “Sul” utópico e sequestram-no para exigir melhorias para as suas vidas. O governo então promete distribuir 10.000 empregos aos lumpemproletários “inativos” em troca do Ministro sequestrado, desagradando assim o 1/5 da população rica e “ativa”; não só porque esta não querer dividir o seu nobre espaço com os miseráveis, mas porque de fato não tem necessidade alguma do trabalho dos pobres, afinal, suas máquinas já fazem todo o serviço necessário. “Pobres inúteis” no lugar da tecnologia para quê? Não obstante a ordem do governo, os ricos não têm escapatória: devem aceitar a “colaboração” dos pobres.

A inutilidade dos “inativos” aos “ativos” é bem desenhada na cena na qual uma mulher pobre, contemplada com um emprego na casa de uma família rica, é recebida a contra-gosto pelo casal de patrões que de antemão não quer que ela cuide da casa, nem faça compras, muito menos tome conta da filha deles. Dizem que ela deve ficar sentada, sem fazer nada, o dia todo. Antes de sair de casa para os seus privilegiados trabalhos, os patrões dizem ainda que se a empregada fizer alguma coisa, pasmem, as câmeras de segurança mostrarão e ela será expulsa de volta à zona pobre.

Outro “inativo” introduzido no lado “ativo” da sociedade, sem ter o que fazer, é no entanto escolhido pelo governo para ser o garoto propaganda do “Programa de Reinserção Social”, cujo objetivo, na verdade, é apenas facilitar um empréstimo junto ao Banco Internacional. A ingênua felicidade do “inativo” em ter sido “reinserido” socialmente é apenas a aparência de uma essência que os ricos queriam que não existisse ou que não saísse do outro lado do muro que erigiram. De fato, a sociedade excludente não sabe nem tem o que fazer com seus excluídos além de excluí-los ainda mais.

A Teoria do Valor, que Marx popularizou como ninguém, e que diz que o trabalho é a fonte de toda riqueza, parece ter lugar excelente na sociedade trepaliana. Todavia de modo a manter a sua intransponível desigualdade. Ora, se aos lumpemproletários é oferecido “trabalho” para que então se libertem da miséria e participem da ventura social, mas se o que de fato recebem é apenas um trabalho de fachada, um pseudotrabalho, isso serve apenas para que permaneçam alienados da riqueza da sociedade. Em suma, para que sugam profundamente excluídos, todavia, sob o verniz mentiroso da inclusão.

Um professor, “ex-ativo” -“inativado” forçosamente por conta de seus ideais socialistas-, ensina aos seus alunos do lado pobre a origem da palavra trabalho. Aí o nome da série é contemplado. Trepalium (“tripálio” em português), diz o professor, “é o nome de um instrumento de tortura, composto por três sarrafos, usado na antiguidade para arrancar lentamente os membros dos escravos. E foi daí que surgiu a expressão trabalho”. Os alunos protestam imediatamente, pois, para eles, filhos de desempregados miseráveis, é justamente a ausência de trabalho que é “a” verdadeira e maior tortura. Aqui é impossível não lembrar da frase do portão de Auschwitz: “O trabalho liberta”. Traz liberdade, sem dúvida. Contudo, como bem mostra a série, apenas a uma minoria, e ao preço da prisão da maioria.

O desemprego de 80% da população não só é excludente como principalmente serve para sobrevalorizar ideologicamente os parcos 20% de trabalho existente. Enquanto do lado rico os “úteis” se entediam com os seus privilégios, do lado pobre os “inúteis” endeusam o que aqueles não mais precisam valorizar. Idolatram todavia justamente aquilo que os excluí. O tripálio, antes usado para arrancar membros de escravos, na série francesa serve tanto para arrancar os pobres da sociedade, quanto para convencê-los de que o grande problema social é apenas a falta de trabalho deles, e não o monopólio das oportunidades por parte dos ricos excludentes.

Haverá uma revolução na sociedade trepaliana? É preciso esperar pelo fim da série. No entanto, as dificuldades que os revolucionários da ficção terão de enfrentar para tal já são as mesmas que a nossa sociedade real tem diante de si, só menos espetacularizadas talvez. O muro de Trump, que promete alienar ainda mais os cucarachas da bonança norte-americana, bem como as cercas eletrificadas europeias, que já negam a milhares de refugiados um futuro no lado dito civilizado do mundo, são exemplos reais, absolutamente cruéis, todavia ainda pálidos se comparados à barreira que foi erigida na ficção francesa.

Se Lacan está certo, e a realidade tem mesmo estrutura de ficção, a revolução ficcional que acabará tanto com o muro e, consequentemente, com a intransponível cisão social em Trepalium bem poderá servir, ao menos como estrutura simbólica, à revolução real de que o mundo outrossim real cada vez mais carece. Quanto mais não seja, porque o problema central do seriado francês é o mesmo que o das sociedades humanas em geral, qual seja, nas palavras de Isaac Newton: “construímos muros demais e pontes de menos”.

 

Poesia e terror: alquimia revolucionária

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O terrorismo sofreu um ataque terrorista! E o que é pior, dos Estados nacionais e da mídia internacional; em suma: do capitalismo ele mesmo, o grande e verdadeiro líder mundial. O objetivo número 1 desse “inimigo alfa”, obviamente, é alienar qualquer pretensão revolucionária da sua mais radical, todavia indispensável estratégia diante das não menos radicais e terroristas forças contrarrevolucionárias que encontrará pelo caminho. A melhor imagem do que estão querendo furtar do revolucionário é o “Terror Vermelho”, que, nas palavras de Leon Trotsky: “é uma arma usada contra uma classe [a burguesia] que, apesar de ter sido condenada à destruição, não quer morrer”.

Demonizar absolutamente o terrorismo, empreendimento contemporâneo ferrenho, é talvez o maior terrorismo porque, de certa forma e em certa medida, e ao contrário do que se repete histericamente, o terror pode ser uma passagem a uma dimensão existencial mais estimulante e libertária. Exemplo excelente de um bom-terrorismo é o “Terrorismo Poético”, que, de acordo com seu apólogo mor, o pensador anarquista Hakin Bey, “é a estética da conquista no lugar da política do medo” -esta última, compartilhada tanto pelos maus-terroristas quanto pelo Estado, o pior de todos.

De forma alguma se pretende aqui elogiar, por exemplo, os atos de terror do Estado Islâmico nem tampouco os dos lobos solitários, rebentos viciosos daquele. Muito pelo contrário. O que se quer pensar, na verdade, é justamente a ausência de poesia no terrorismo que vemos no mundo. Tal carência, por um lado, faz com que ele seja peremptoriamente condenável, como de fato está sendo; e, por outro lado, nubla completamente a sua potência para conduzir-nos –radicalmente, é preciso admitir- a um futuro no entanto melhor, no qual nem o mau-terrorismo, nem o terrorismo-de-Estado tenham lugar.

Para tanto, é necessário separar o joio do trigo. E a peneira é poética! Se em grego “poein”, isto é, poesia, significa “fazer, compor”, de um lado, devemos reconhecer quais atos considerados por nós como “terroristas” são somente negativos, isto é, apenas destroem realidades sem nada colocar nem propor no lugar delas. Estes seriam então os verdadeiramente condenáveis e dispensáveis. Por outro lado, distinguir quais desses atos de fato são ou podem ser positivos, ou seja, capazes de colocar algo melhor no lugar das ruínas que instauram no mundo. Ou ainda, ao menos fazerem delas símbolos –e por que não poéticos?- que estimulem o mundo à mudança necessária.

Exemplos desses últimos sobram em “Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares”, obra anárquica de Hakim Bey. Eis alguns deles: “escolha alguém ao acaso & o convença de que é herdeiro de uma enorme, inútil & impressionante fortuna –digamos, 5 mil quilômetros quadrados na Antártida, um velho elefante de circo, um orfanato em Bombaim ou uma coleção de manuscritos de alquimia… Coloque placas de bronze comemorativas nos lugares (públicos ou privados) onde você teve uma revelação ou viveu uma experiência sexual particularmente inesquecível etc.”

A superfície aparentemente alienada dos atos poético-terroristas sugeridos por Bey, todavia, não deve repelir os revolucionários, mas, em troca, estimulá-los a mergulhar mais fundo nas possibilidades esquecidas ou inexploradas do terror, para com sorte encontrarem nele virtudes, senão para substituírem totalmente a violência de que não poderão dispensar-se na contraofensiva mais do que esperada do inimigo, ao menos para darem tons menos burocráticos às suas ofensivas.

Bey assegura que a feliz “vítima” de um Terrorismo Poético “mais tarde perceberá que por alguns momentos acreditou em algo extraordinário & talvez se sinta motivada a procurar um modo mais interessante de existência”. E porventura não é essa a essência do revolucionário: crer, de dentro da distopia que o angustia, na possibilidade da sua utopia libertária? Com Bey, portanto, podemos ver que o terrorismo pode ser louvável, desejável, pois ao menos em sua forma poética, diz o pensador, “ataca, não seres humanos, mas ideias malignas, pesos mortos na tampa do caixão dos nossos desejos”.

De acordo essa lógica, o terrorismo, desde que poetizado, é bom porque assassina violentamente ideologias aprisionadoras; explode os pesados monumentos que elas se tornam dentro de nós. Atuando dessa forma, o equilíbrio de forças que, aqui, é desfavorável, poderá, ali, ser invertido. “Trame & conspire, não pragueje nem gema… Seja brutal, assuma riscos, vandalize apenas o que deve ser destruído, faça algo de que as crianças se lembrarão por toda a vida”, ensina o anarquista.

Decerto faltou muita poesia à monstruosa pressa revolucionária de Stalin e às suas todavia sábias palavras: “o Terror é a maneira mais rápida de se criar uma nova sociedade”. Diferente do Terrorismo Poético que, para Bey, “é um ato num Teatro da Crueldade sem palco”, o terror stalinista fez na verdade um e grande ato, só que extremamente cruel dentro do velho Teatro da Crueldade que queria dar cabo. Dito de outro modo: deu palco excelente à crueldade. Forçando mais ainda a ideia, Stalin duplicou a crueldade que já havia, todavia com o seu outro-novo travestido de esperança comunista.

O que faltou ao terror de Stalin, colocado a serviço do seu obsessivo amor à revolução, foi algo muito simples proposto por Bey: “entender que amar & libertar são o mesmo ato”. E quem sabe só mesmo a presença da poesia para não deixar qualquer terrorista esquecer dessas duas dimensões humanas, demasiado humanas: o amor e a liberdade. Só que a philia de Stalin pelo seu ideal -para muitos, apenas por si mesmo-, apoético e extremamente despótico, precisava de liberdade apenas para si mesmo. E, nas palavras de Bey, “cada um dos que entram no reino do Imã-de-seu-próprio-ser transforma-se num sultão de revelação inversa, num monarca da anulação & da apostasia”. Em suma, um mau-terrorista. Ou o que é o mesmo: um não-revolucionário.

Para que o terror não se alheie do seu horizonte revolucionário ele precisa ser sempre poetizado. Do contrário, absolutamente pragmático, frio e calculista, só lhe resta mesmo a condenação universal. Mesmo que o ato do revolucionário seja sempre considerado criminoso da perspectiva do inimigo (o Estado burguês e suas leis), ele é necessário conquanto seja, nas palavras de Bey, “não crimes contra o corpo, mas contra Ideias que sejam letais & asfixiantes. Não libertinagem estúpida, mas crimes exemplares, estéticos, crimes por amor”.

Aqui devemos entender que, para o revolucionário socialista, o horizonte comunista é o objeto desse seu amor, digamos assim, criminoso! O melhor terrorismo poético “é contra a lei, mas não seja pego!” –adverte Bey. Revolução como crime; crime como revolução. Bom exemplo de “Crimes Exemplares” são os de Robin Hood, que roubava dos ricos para dar aos pobres – e não os de Stalin, que espoliou o povo da pouca liberdade que tinham para com ela engordar a sua burocracia odiosa e ineficiente.

O terror poetizado nunca é demasiado. Tem e deve ter a sua medida. Segue a regra de Paracelso que diz que “a diferença entre o remédio e o veneno está na dose”. E não é total porque, como bem colocou Bey, “qualquer um que consiga ler a história com os dois hemisférios do cérebro sabe que o mundo termina a todo instante… e a todo instante também é gerado um mundo novo”. O “bom terrorista-alquimista”, portanto, sabe que o terror e a poesia que aplica ao mundo para que este não escape à lei do devir não é condição sine qua non a “um mundo novo”, mas um estímulo para que ele não deixe de proceder quando forças reacionárias tentam impedi-lo.

E por acaso esse terror comedido -senão poetizado, ao menos profetizado- já não estava já nas ideias de Marx quando ele disse que o Terrorismo Revolucionário é “um meio de reduzir, simplificar e concentrar a agonia dos assassinos da antiga sociedade e as dores do parto sangrentas da nova”? A dose paracelsiana, metáfora perfeita para a dose beyana entre terror e poesia, se devidamente ministrada pelo revolucionário há de legar um resíduo alquímico muito importante: o elixir homeopático capaz de nutrir e manter saudável esse “mundo novo” que se sucede de qualquer terror positivo.

O revolucionário não precisa ser absolutamente terrorista, pois, como diz Bey, “cada um de nós possui metade do mapa… As fronteiras imaginárias da nossa cidade-Estado se borram com o nosso suor”. Metade da tarefa já está feita. A parte do terror que se pode e se deve dispensar de produzir é justamente aquela que já está dada e mantida pelo Estado. Não é o caso de, ou roubá-la, ou recriá-la. Isso seria burrice: assumir o crime do inimigo criminoso. Basta que redirecione, mediante uma virtuosa poesia terrorista, esse terror pré-existente contra o seu velho proprietário.

Trapaça/estratégia muito antiga das artes marciais em geral, o terrorismo poético também é o uso da força do adversário contra ele mesmo Assim como, diz Bey, “os Terroristas-Poéticos comportam-se como um trapaceiro totalmente confiante cujo objetivo não é o dinheiro, mas TRANSFORMAÇÃO”, assim também o terrorista revolucionário -que outrossim não tem no dinheiro a sua meta, pois essa é a do seu inimigo, a burguesia- deve trapacear com segurança para trazer ao mundo a transformação positiva que projetou para ele.

O terrorista-poético-revolucionário deve, não só inventar, como principalmente comedir o terror de seus atos. E isso porque a energia envolvida na instauração de qualquer terror não é suficiente para sustentar o “novo mundo” que ele inaugura. É preciso guardar forças para o amanhã. Aqui vale lembrar da incredulidade de Slavoj Žižek em relação aos “revolucionários” do filme “V de Vingança”, que, para ele, é a mesma da atual esquerda mundial. Nas palavras do filósofo: “o filme termina com cidadãos mascarados tomando o Parlamento. Eu adoraria mesmo é assistir V de Vingança, parte 2. O que eles fariam no dia seguinte, como reorganizariam a vida cotidiana?”

O bom-terrorista, o verdadeiro revolucionário, ou seja, aquele que cria e mantém um mundo melhor, além de não poder se furtar à poesia, uma vez que só ela adocica o que, do contrário, restaria absolutamente amargo; em palavras menos poéticas: aquele que adequa o terror à capacidade humana de suportá-lo; este bom-terrorista deve também sobreviver ao seu próprio terror, tanto para prosseguir o trabalho que começou -afinal, é melhor não confiar os próprios sonhos apenas aos outros-, quanto para fruir desse “mundo novo” que não teria vez sem o seu terror poético.

Mesmo que essa boa aventura revolucionária seja interrompida abruptamente pelo contra-ataque inimigo, diz-nos Bey, “uns poucos dias liberto do Império das Mentiras já pode muito bem valer o sacrifício”. Entretanto, prossegue o escritor anarquista, “nossa posse sobre ele é seriamente comprometida se precisamos cometer suicídio para preservar sua integridade”; advertência, aliás, que seria muito bom os nossos cada vez mais numerosos lobos solitários terem em mente.

A arte de bem dosar terrorismo e poesia, cujo ouro alquímico é a verdadeira revolução, portanto, exige do terrorista-poético-revolucionário que exercite a sua criatividade, a sua imaginação, pois o seu inimigo mais belicoso, a besta capitalista, por seu turno, é assaz criativa e imaginativa. E o que é mais ameaçador, o capitalismo e, segundo Bey, também “os bancos transmutam a Imaginação em fezes & dívida. O mundo não ganharia um pouco mais de beleza com cada banco que tremesse… ou caísse?” –pergunta-nos o anarquista.

Indivíduos apoetizados, e aí não importa se cidadãos apassivados ou se terroristas ideologicamente autoativados, apenas seguem, nas palavras de Bey, “engatinhando pelas frestas entre as paredes da Igreja, do Estado, da Escola & da Empresa, todos monolitos paranoicos”. Agora, em troca, encantados pela musa poética, ambos aqueles já podem começar as suas cruzadas uma vez que já possuem no mínimo poderosas e irresistíveis bombas imaginárias, as únicas capazes de explodir o inimigo no seu cerne imaterial, ideológico.

Um terrorista que ataque o inimigo em sua materialidade, além de não poder ser chamado de poético, tampouco de revolucionário, deixa viva justamente a “alma” do mal ao atacar apenas o seu “corpo”. Começar pela poesia, ou ao menos fazê-la acompanhar desde o princípio qualquer ideia de terror, é manter firme a indicação de que o espírito do inimigo, sua ideia insuportável, é o mal a ser enfrentado e destruído. Assim como com qualquer animal, sem a anima seu corpo cai imediatamente.

Objetivamente, o equilíbrio entre poesia e terrorismo a ser buscado pelo terrorista-poético-revolucionário em função de seus choques-políticos-estéticos tem que resultar, conforme coloca Bey, em “uma emoção pelo menos tão forte quanto o terror –profunda repugnância, tesão sexual, temor supersticioso, súbitas revelações intuitivas, angústia dadaísta” etc. Emoções que tirem as suas vítimas afortunadas dos lugares-comuns-passivos onde estavam e sobretudo não permitam voltem nem se reconformem a eles.

Todas as velhas, pálidas e arraigadas emoções e ideias que temos são apenas Prozacs ideológicos que, há muito a serviço do inimigo, apenas mentem nos salvar daquilo que na verdade nos dana. Porém, afirma Bey, “devemos ser salvos de todas as salvações que querem salvar-nos de nós mesmos, do animal que é também nossa anima”. Deixemos então esse animal explodir na sua raiva natural, com toda a sua potência e capacidade transformadora. Basta que o nosso terror seja mais poético do que despótico; mais positivo do que negativo; mais convidativo do que repugnante; mais aplaudido do que condenado.

Misture terror e poesia e perceba onde você e seu mundo chegam. “Não apenas sobreviva enquanto espera que a revolução de alguém ilumine suas ideias… Aja como se já fosse livre… Carregue seu passaporte mouro com orgulho… Dance antes que fique calcificado… Acenda seu cigarro com a espoleta chamuscada de um rojão negro”, intima Bey. Realize seus sonhos; faça a sua revolução; pois, se for virtuosa, será a revolução de todos nós. Em uma palavra: realize-se. Até porque, como bem disse Bey, “o único conflito verdadeiro é entre a autoridade do tirano & a autoridade do ser realizado –todo o resto é ilusão, projeção psicológica, verborragia”.

Confie na virtude que a poesia traz ao terror. Embebede-se com o seu próprio potencial poético-terrorista. Isso já é revolução. “Um bronco não percebe eros nenhum num champanhe fino; um feiticeiro pode se embriagar com um copo d’água”, diz Bey. E se você não for capaz de se inebriar com um ato terrorista-poético como o que o pensador anarquista descreve no seu livro, qual seja: “cole em lugares públicos um cartaz xerocado com a foto de um lindo garoto de 12 anos, nu & se masturbando, com o título bem à vista: ‘A FACE DE DEUS’”, desculpe-me, você nunca será revolucionário, tampouco poético, somente um mau-terrorista. E isso porque a carência de poesia outra coisa não significa que a incapacidade de pôr um mundo novo e melhor no lugar de um velho e pior.

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Texto publicado em: https://gz.diarioliberdade.org/opiniom/item/45060-poesia-e-terror-alquimia-revolucionaria.html

Até mais, civilização!

até mais

Como se não bastasse o crescente estímulo capitalista à velha exploração do homem pelo homem; a pandemia individualista hedonista a qual as pessoas se entregam entusiasticamente; o esgotamento sistemático da natureza para sustentar tanta exploração e tanto entusiasmo; sem dizer do vigoroso fôlego que a xenofobia, o fascismo e o terrorismo tomam pelos quatro cantos do mundo; tudo isso já seria suficiente para nos perguntarmos: estamos marchando a passos firmes de volta à barbárie? A ode norte-americanas a “Donald Trump para presidente da maior potência econômica mundial” ao menos traz uma certeza inegável: queremos debandar da civilização.

Ascendendo politicamente como ninguém poderia imaginar, todavia não por virtude sua alguma, o bilionário topetudo, infelizmente, é a escolha de milhões de norte-americanos que se dizem desiludidos, pasmem, com o modo “polido de se fazer política”. Uma superficial análise etimológica já mostra que essa preferência impõe um desafio impossível a qualquer intelecto civilizado, pois, na verdade, significa “queremos política sem política”. A alienação das cabeças ocas e aburguesadas dos norte-americanos homens brancos heterossexuais de classe média, eleitores de Trump, no entanto, passa longe dessa questão.

Claro, somente por isso não podemos concluir que que os rebentos do Tio Sam querem a barbárie pura e simples. Cabe ainda lembrar que entre ela e a dimensão política há o limbo despotismo. O déspota de antes da invenção da política pelos antigos gregos era um semibárbado/semicivilizado através de cuja força física impunha sem escapatória as suas vontades sobre o seu núcleo familiar, sem se valer de racionalidade alguma, e o que é menos polido que tudo, sem a palavra. Mutatis mutandis, o despotismo pré-político por acaso não é o nosso bem conhecido fascismo, todavia, sem o disfarce das Instituições civilizadas?

Seria o caso então de concluirmos que os EUA, e por “efeito rebanho” o restante mundo, estão querendo líderes despóticos para si mesmos? Se sim, resta saber todavia se tirânicos -os mais próximos da barbárie-, ou, em alternativa, “esclarecidos” -característicos na Europa do século XVIII; mistura contraditória de absolutismo real com ideais de progresso. As bestas políticas contemporâneas, pela simples sonoridade da palavra “progresso”, dirão que é a segunda opção. No entanto, podem estar desejando inadvertidamente, e sobretudo merecendo a primeira.

Mesmo que o progresso seja uma seta estridente e imperiosa que aponta da barbárie para a civilização, ele tem o poder de, estratégica e dissimuladamente, realocar-nos no passado, e ainda por cima deixar-nos com um falso gosto de futuro na boca. Prova disso é a Igreja Católica Apostólica Romana, hoje em dia nas mãos do “Pop” Francisco, ter o surpreendente sabor de instituição progressista. Essa aparência de progresso, no entanto, é apenas uma prova amarga de que todas as demais instituições que lhe superaram historicamente estão aquém dela! Por certo que a “Apostólica” já foi a instituição mais sofisticada do mundo. Porém, esse tempo atende pelo nome de passado.

Talvez os efeitos colaterais das doses cavalares de progresso que desde a modernidade vêm sendo aplicadas no mundo pela “halopatia” capitalista tenham nos tornado insensíveis, quiçá alérgicos à civilização, à política, até mesmo ao futuro. Só que “supositórios” tipo Trump, por exemplo, não são antídoto contra esse mal. Longe disso, são antes a evidenciação inegável dos seus sintomas. No entanto, o mundo, mais evidentemente os eleitores de Trump, parecem com aquele indivíduo que, morrendo de câncer de pulmão devido ao tabagismo, gasta o seu último sopro de vida para pedir o cigarro derradeiro.

Ícone do contemporâneo desejo de passado é o famigerado muro que Trump quer construir entre os EUA e o México caso seja eleito. Decerto que muralhas -e fossos com crocodilos até- são estratégias de defesa, mas, como sabemos, as que restaram há muito jazem apenas enquanto peças de museus urbanos, símbolos do que a humanidade deixou para trás na sua senda civilizatória. Entretanto, nem mesmo “A Queda do Muro de Berlin”, tão recente, é capaz de frear o ímpeto neo-bárbaro de fronteiras intransponíveis no seio da era globalizatória.

Na verdade, sob o pretexto de barrar a imigração clandestina para preservar emprego aos norte-americanos, o que o muro de Trump traz ao mundo, muito antes de significar mais empregos e mais dólares no lado mais rico, é a impertinente separação da civilização em duas. E como o outro alienado da civilização sempre foi a barbárie, eis o que teremos de um dos lados do muro. Só que os bárbaros da vez não serão os mexicanos “xeno-rejeitados”, mas os pretensos civilizados apólogos da neo-muralha. Oxalá um dia os “cucarachas” possam agradecer esse isolamento deliberado das bestas norte-americanas.

Menos espetacular, mas nem por isso menos retrógrada, é a recusa ao outro imigrante em muitos e ricos países europeus. Comparados com estes, a distopia de Trump tem ao menos a virtude de ser declarada, uma vez que não se esconde atrás de covardes canetadas institucionais igualmente intransponíveis, todavia invisíveis. O topetudo quer instituir materialmente, tijolo por tijolo, a sua “solução xenófoba-econômica” em torno de si. Como, por conseguinte, é mais fácil “cortar a cabeça” de inimigos concretos e visíveis, a ópera dantesca trumpeana poderá muito bem estar sendo o seu próprio réquiem.

Não que Hilary Clinton, se vencer Trump nas eleições desse ano, representará a vitória da civilização sobre a barbárie. Sua longeva fidelidade às forças capitalistas, de qualquer modo, senão construirá novos muros, com certeza reforçará os que já existem, translúcidos, mas que nem por isso deixam de separar dramaticamente o mundo em dois: de um lado os ricos, e de outro os pobres. Novamente, Trump parece ser, não a “menos pior”, mas a “melhor pior opção”, pois a vilania de um déspota declarado é bem mais fácil de ser reconhecida e combatida do que a de uma burocrata do mal fantasiada de democrata.

Por mais que Donald Trump seja um letreiro luminoso ofertando o passado, todavia travestido de progresso, e que a sua paradoxal e cada vez mais popular “política sem polidez” outra coisa não seja que o modus operandi da barbárie assumindo o controle do escritório climatizado da civilização, a civilidade, por sua vez, como aconteceu no passado, é cada vez mais necessária à medida que a presença da barbárie se torna insuportável. Hilary, “a” opção contra o déspota Trump, no entanto só manterá invizibilizada a barbárie que já nos acossa. Nesse sentido, e talvez somente nesse, Trump seja uma vantagem, uma vez que dá carne, osso, tijolo e “insuportabiliade” a esse espectro maléfico como ninguém.

Mas isso, claro, só se vaticinarmos que, haja o que houver, a civilização adoecida vencerá a o vírus da barbárie. Do contrário, Trump será o neo-Hitler icônico da morte daquela. Entretanto, se a humanidade é mesmo uma sempiterna dialética barbárie-civilização, não é o caso de querer hipostasiar um vencedor final. Essas duas dimensões existenciais como que dão força e significado uma à outra. Assim como a fina-flor da civilização foi capaz de produzir um Trump, assim também a erva-daninha que ele encarna é capaz de estimular a civilização.

E porventura o efêmero e agorafílico fenômeno Bernie Sanders não deve muito de sua força à agorafobia bárbara de Trump? Com quantos Trumps imperialistas então faremos um Sanders socialista presidente dos Estados Unidos? Mas não nos esqueçamos, muitos Sanders, por suas vezes, trarão um novo Trump! Tal é a dialética entre as forças que eles representam; basta olhar a gangorra democrata-republicana naquele país -ainda que no playground do Tio Sam, Sanders seja como que alienígena. Por isso, Por mais que Trump seja uma ameaça à civilização, não temos motivos para dar um terminal adeus a ela.

Antes de concluir, não dá para não falar do movimento brasileiro em direção ao passado, ironicamente nomeado pelos seus apólogos golpistas de “Ponte para o Futuro”. O governo de esquerda que em pouco mais de uma década produziu a maior inclusão social da história do Brasil -sem dúvida um passo civilizatório por excelência!- no entanto, recentemente levou um golpe baixo da direita reacionária. E para dizer a que veio, e principalmente para onde quer levar-nos todos, de pronto os golpistas se apresentaram em forma de um ministério exclusivamente masculino, rico, branco e -até onde dizem- heterossexual. E isso em pleno Século XXI…

Obviamente, os golpistas brasileiros não reinstituíram a barbárie ela mesma, mas, sem dúvida, pavimentaram o primeiro quilômetro de uma ponte que, sem empecilho, pode levar até ela. E ao povo brasileiro, que deveria ser “o” empecilho àqueles, mas que no entanto está dócil e melancolicamente retrocedendo por essa via impertinente -e aqui se alinha às bestas norte-americanas-, resta ao menos, na esperança de poder um dia retornar ao virtuoso estágio civilizatório no qual se encontrava, dizer: “Até mais, civilização”.

Homem lobo solitário do Homem

solus lupus

Homo homini lupus”, ou seja, o homem é o lobo do homem, disse o dramaturgo romano Tito Mácio Plauto em 200 a.C., máxima que o filósofo inglês Thomas Hobbes, dezoito séculos depois, usou para justificar o contrato social que institui o Leviatã, isto é, o Estado, cuja função primordial é a de proteger os homens da morte violenta. As palavras de Plauto e o posterior uso que Hobbes fez delas, a meu ver, explicam muito melhor o fenômeno assaz contemporâneo, bastardo do terrorismo, encarnado nos “lobos solitários” do que a ideia fácil que diz apenas que “os lobos caçam solitariamente”.

Quanto mais não seja, porque a recência dos “solus lupus” na arena contemporânea ainda nos deixa com muito mais perguntas do que respostas. Pois bem, que o lobo solitário age desconectado de organizações terroristas, digamos assim, oficiais, é óbvio pelo próprio nome. Obscuras, todavia, são as ideias que o movem. Provavelmente, a ideologia insólita do lobo solitário seja um híbrido de psicopatologia, ignorância, frustração pessoal e informações desconexas que ele saca da mídia e das redes sociais, porém, e tal hibridez infeliz o impele incontrolavelmente ao terror. Afinal, é aterrorizante mesmo tamanha confusão. A sombra ideológica sob a qual vive o lobo solitário faz com que entendê-lo seja tão difícil quanto prever um ato seu.

Agora, se, como dissemos no início, afirmar que “o homem é o lobo do homem” é uma metáfora para o fato de o homem ser o seu próprio e maior inimigo, quem, então, seria seu amigo? Impossível não lembrar do provérbio popular “o cachorro é o melhor amigo do homem”. Não podemos esquecer que esse amigão canino, como sabemos, não existia na natureza até a existência do homem em sociedade primitiva. O lobo é um produto genuinamente humano, a partir da matéria prima do lobo selvagem, ou seja, do seu inimigo simbólico. Essa gradual e real domesticação, do lobo selvagem em cachorro amigável, representa a questão hobbesiana da instituição do Estado Absoluto: o “homo homini lupus”, pelo chicote do Leviatã, tornado o “homo homini canis”.

Tanto da perspectiva de Hobbes, como dessa imagem acima, a do lobo feito cão pelo homem socializado, o lobo solitário terrorista pode estar querendo mostrar algo dos imensos canis que são os nossos Estados: em primeiro lugar, que a segurança que os Estados deveriam assegurar não está mais funcionando. O terror que esses lobos trazem ao mundo dá o seu recado, efetivamente, por mais amargo que seja. O recado: voltamos a ser lobos de nós mesmos. Ou, ao menos, um: “Olhem! Vejam como é fácil ser Lobo de nós mesmos!” O protesto radical do Lobo Solitário traz uma imagem: a do cachorro, frustrado e desesperado, em pele de lobo valente e revolucionário diante do lobo do Estado, violento e dominador, em pele de cachorro, fingindo melodramaticamente que é amigo.

Pensando nos lobos solitários, é impossível também não lembrar da “Idade do Lobo”, expressão usada para falar da fase da vida na qual certos homens, por volta dos 40 anos, entram na famigerada “crise de meia idade”. A psicologia explica que na Idade do Lobo os homens percebem que não viveram as suas vidas conforme desejaram porque seguiram apenas as regras da sociedade. Isso os leva então a querer fazer tudo o que nunca fizeram, e com pressa, pois sentem que não lhes resta mais muito tempo. A patologia a ser percebida aqui é a seguinte: o Lobo busca desesperadamente “fazer as coisas que não fez” em vez de simplesmente “fazer o que gostaria de fazer”.

A analogia entre o lobo solitário e o homem na Idade do Lobo é válida. O terrorista insólito seria aquele que, a certa altura de sua vida, percebe que é escravo de um sistema opressor muito maior do que ele; que é vítima de imperativos que não o satisfazem, nem tampouco o satisfará. Então, a certeza de que sucumbirá o leva a fazer coisas que nunca fez.

A expressão Idade do Lobo, todavia, é inspirada no conflito psicopatológico analisado por Freud e nomeado por ele de “O Homem dos Lobos”. O Lobo freudiano é o indivíduo vítima de um excesso pulsional causado pela sensação de castração devido à sempiterna “ausência do pai ideal”. Como essa falta é cada vez mais insuportável, ele se vê num processo vicioso de, por um lado, admiti-la e, por outro, negá-la. Em suma, esse dilema resulta na “divisão do eu”, ou seja, a divisão do ego como forma de defesa. Um “eu”, resignando-se à falta, renuncia ao seu desejo frustrado, frustrando-se em definitivo, e o outro “eu”, em contrapartida, desmente o primeiro; nega a realidade, e se recusa a aceitar qualquer limitação.

O lobo solitário terrorista, da perspectiva do “O Homens dos Lobos” freudiano, seria o indivíduo cujo “pai ideal” faltante se apresenta enquanto “o mundo ideal ausente”. Orbita obsessivamente esse seu mundo ideal, sem, no entanto, alcançá-lo. Tal é a estrutura da pulsão. Se, ao contrário, atingisse a sua meta, isto é, o centro da órbita onde esse objeto idealizado foi colocado por ele mesmo, no caso, a conquista de seu mundo ideal, teria a frustrante visão de que tal mundo, assim como o pai ideal, não existe. E para evitar essa sobrefrustração, a velha sensação de castração lhe convence do contrário, e assim o lobo solitário reintroduz-se em sua mórbida órbita pulsional.

Então, o “Solus Lupus”, egoicamente, divide-se em dois: um dos quais, aceitando a falta insanável e renunciando ao desejo frustrado, foge da inexistência desse mundo idealizado; enquanto o outro, negando a realidade e se recusando a limitar o seu desejo, segue obsessivamente na sua busca. Ao mesmo tempo nega e afirma o mundo ideal. Só mesmo a forma pulsional para sustentar esse problema: orbitar em torno do mundo ideal faltante, tanto para assumir centrifugamente a incapacidade de tocá-lo, quanto ainda para mantê-lo centripetamente no seu horizonte de possibilidade. A tensão é grande. Só que a tentação de seguir buscando o objeto impossível é maior do que a resolução de abandoná-lo definitivamente.

Lacan diz muitas coisas muito importantes acerca da pulsão. Uma delas, que o objeto que jaz no centro da meta pulsional, para ele o “petit objet a”, é desde sempre algo a nunca ser alcançado. A meta principal da pulsão é nunca alcançar as suas metas secundárias. E isso porque o gozo da pulsão é tão somente a busca, não aquilo que é buscado. Compreender essa paradoxal dinâmica é fundamental para entender o lobo solitário. Decerto ele sabe que, no fundo, o terror que promove é tudo menos a realização de quaisquer mundos ideais. Mas como o “petit objet a” do lobo solitário, qual seja, o mundo ideal, não é para ser alcançado, apenas buscado, o mundo real piorado que o seu ato terrorista produz acaba sendo espécie de altar e  adubo para o seu mundo ideal impossível

A violência e a morte que o lobo solitário traz ao mundo real, com efeito, é a tentativa de convencer todos à sua volta de que a busca obsessiva da qual ele não consegue se ver livre é mais que necessária. Sua solidão quer atenção mundial! A contundência de seus atos, sem dúvida, só reforça a ideia de que um mundo melhor precisa ser construído. Só que ele, vítima da pulsão, antes de todos já sabe que tal mundo não existe, que é só um fantasma: o negativo, real e coletivizado, de sua presente e insuportável frustração por ter sido castrado do mundo que idealizou, abstrata e solitariamente.

Para Freud, “O Homem dos Lobos” seria o “Édipo invertido”, isto é, aquele que, em vez de matar o pai e casar com a mãe, acabou desejando o pai, todavia sob o preço de se colocar no lugar da mãe. E para se ver livre, tanto desse desejo homossexual pelo pai, que ele percebe não ter espaço na realidade, quanto da identificação com a mãe, que por seu turno estimula aquele desejo problemático, o Édipo invertido se esconde atrás de um fetiche/máscara cujo objetivo é ocultar dele próprio a imagem da sua irrealização sexual. Por trás do semblante viril com que “O Homem dos Lobos” se apresenta jaz, no entanto, a triste sensação da sua distância em relação ao seu desejo desde sempre impossível.

Seria demais, contudo, investigar aqui a possível homossexualidade do lobo solitário. Basta que tenhamos em mente o seguinte: a frustração diante da impossibilidade do seu grande desejo, nesse caso, o mundo ideal, ou ao menos idealisticamente melhor; a angústia de permanecer em um lugar que é o seu, mas que não é desejado que seja, pois é ruim; e, sobretudo, o mascaramento dessa tensão mediante uma virilidade radical, que em seu extremo pode sim ser vista na adesão insólita do Lobo Solitário ao terror. O fetiche do lobo solitário terrorista deve ser a destruição pública e violenta do mundo real para com isso dar realidade ao seu mundo privado e idealizado.

Por certo que a belicosidade destrutiva do Homem dos Lobos freudiano é bem menor que a do lobo solitário terrorista. E isso porque objetos que o primeiro elege como responsáveis por suas frustrações são mais concretos e tangíveis: sua sexualidade, seu corpo, sua profissão, sua família, etc. Já os do segundo são assaz abstratos, e por isso mesmo, dificilmente alcançáveis: a humanidade, a sociedade, o Estado, o capitalismo, e por aí vai. Contra estes, cuja medida obviamente escapa a qualquer indivíduo isolado, pois só começam a ser tanto perceptíveis quanto atacados a partir da perspectiva de uma coletividade, o lobo solitário, que se opõe à coletividade, só pode agir desmedidamente. Nesse sentido, e talvez somente nesse, alistar-se ao terror do Estado Islâmico pudesse ser menos infeliz do que investir insolitamente no terror.

Porém, terror algum será capaz de fazer do mundo um lugar melhor.  “O Homem dos Lobos” deve aceitar a sua homossexualidade para então se ver livre da asfixiante pulsão de mascarar a sua frustração sexual. Do mesmo modo, o homem da Idade do Lobo deve deixar de perder tempo com o que até então não fez, mas compreender que há, de um lado, coisas que jamais realizará, e, de outro, realizações possíveis que ele bem gostaria de fazer; assim também o Lobo Solitário deve aceitar a sua irremediável limitação individual diante dos grandes problemas mundiais e dos desmedidos desafios que impõe a si mesmo.

Em outras palavras, o lobo solitário precisa mais que tudo rever a sua meta, redimensioná-la à modéstia do indivíduo que é. Participando de uma organização terrorista, ele seria apenas menos patético, porém, igualmente patológico, monstruoso e condenável. Sem dizer que não estaria reduzindo os problemas do mundo que ele mesmo percebe e contra os quais protesta. Muito pelo contrário, aliás. A modéstia que seria bom o lobo solitário adquirir é a consciência de que a saída para o problema que lhe afeta é cada vez mais coletiva e positiva, e não solitária e negativa. Ou seja: cada vez mais política. E é muito mais fácil um déspota solitário se convencer disso do que um Estado despótico todo.

A psicologia diz que a “Idade do Lobo” pode ser uma crise importante na vida de alguém, uma vez que envolve tomadas de consciência próprias do humano, tais como das rígidas imposições sociais; dos limites próprios da vida; da desmedida dos desejos individuais; e sobretudo da necessidade de se produzir um futuro com mais liberdade e oportunidade de realização. Da mesma forma, para o que aqui eu chamo de “A Idade do Lobo Solitário”, ou seja, o momento crísico e individual no qual alguém cogita ser um terrorista insólito, pode também ser positivo, porém, se, e apenas se, for o átimo no qual esse indivíduo finalmente toma consciência, digamos assim, do mal da sociedade a ser combatido sem trégua, não solitária e barbaramente, mas coletiva, política e civilizadamente.

Ora, não é alienígena para ninguém aquela vontade de, como se diz, “chutar o balde”, isto é, explodir o patrão capitalista, jogar os homofóbicos na fogueira, metralhar os racistas, socar os machistas etc. Decerto que sempre nos depararemos com o semibárbaro que se jaz incorrigível sob a nossa pele civilizada. Porém, civilização é superar as nossas resistências bárbaras constantemente, e nunca replicá-las. É nesse sentido que até mesmo o lobo solitário terrorista, porque também está com um pé na civilização e outro na barbárie, tem a oportunidade de saltar o lodo bárbaro que vê diante de si para quiçá alçar um patamar mais elevado de civilidade.

E o leviatã hobbesiano, que fez do “homem lobo do homem” o “cidadão amigo do cidadão”, é talvez a maior encarnação da civilização. Barbárie alguma pode oferecer produto melhor. Se alguns discordam disso, trata-se, novamente, apenas de uma combinação confusa de psicopatologia, ignorância, frustração pessoal e informações impróprias. O lobo solitário, se tomasse consciência disso, perceberia que é mais fácil desfazer essa sua confusão e, com calma, tratar de suas mazelas pessoais, do que, antes, sair solitária e desesperadamente tentando mudar o mundo. Afinal, coagir os outros à mudança para não precisar mudar nada em si mesmo é o espírito mais primordial do despotismo.

Esse ensaio sobre os lobos mais simbólicos do mundo, contudo, ficaria incompleto se não falássemos do Lobo Mau de “A Chapeuzinho Vermelho”. Nas palavras do seu autor, o francês Charles Perraut, “o Lobo é um tipo com uma disposição receptiva – sem rosnado, sem ódio, sem raiva, mas dócil, prestativo e gentil, seguindo as empregadas jovens nas ruas, até mesmo em suas casas. Ai de quem não sabe que esses lobos gentis são de todas as criaturas as mais perigosas!” A moral perraultiana da estória é trazida aqui para refletirmos sobre muitos dos depoimentos de parentes e amigos de lobos solitários terroristas. Em suma, geralmente ouve-se daqueles que estes são pessoas boas, trabalhadoras, divertidas, amigáveis, amáveis até.

É perturbador confrontar tal dimensão, digamos assim, civilizada dos lobos solitários com a barbárie que promovem. A solução, obviamente, não é evitar aqueles que se aproximam receptivamente, como disse Perrault, “sem rosnado, sem ódio, sem raiva, mas dócil, prestativo e gentil” só porque podem ser “criaturas as mais perigosas”. Isso seria se privar das benesses da civilização elas mesmas. Talvez a moral desse ensaio queira apenas concluir que o lobo solitário, bastardo de um mal muito maior e anterior a ele, é apenas uma pessoa como qualquer outra, como eu e você, com suas humanas frustrações, desejos e limitações, que, entretanto, em determinado momento patológico, erra o passo e se atola no lodo da barbárie, que, de certa forma, está sempre logo abaixo da porcelana da civilização.

Porém, qual gelo fino, essa civilidade de onde nos aterrorizamos com os lobos solitários e os criticamos, assim como aconteceu com eles, pode ruir sob os nossos pés. Então, enquanto estamos no privilegiado belvedere civilizado, seria bom que nos empenhássemos na construção um mundo melhor, oxalá capaz de dar vida ao clássico lema anarquista “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, pois só mesmo um ambiente assim dispensará qualquer pertinência ao terrorismo.

Poesia e filosofia, ontem, hoje e amanhã.

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“No princípio era o Verbo”, diz a abertura do Evangelho de João sobre a criação do universo. O cosmos sobre o qual nos debruçaremos doravante, todavia, não é o bíblico, mas o poético e o filosófico. Foi em relação a estes, aliás, a frase do apóstolo. A poesia e a filosofia têm um extenso ontem a ser rememorado; um justo hoje a ser intuído; e um aberto amanhã diante do qual, no entanto, podemos apenas vaticinar. Pensar a poesia e a filosofia, a relação de cada uma delas com a vida e sobretudo entre si, eis o que este ensaio pretende fazer.

Sabemos que a poesia precedeu a filosofia. Então, se “no princípio era o verbo”, esse verbo primordial foi poético. Muito antes de homens filosofarem naquelas ilhas gregas da antiguidade, Hesíodo, um camponês que vivia nas proximidades de Téspias, na Beócia, em suas próprias palavras, uma aldeia amaldiçoada, cruel no inverno, penosa no verão, jamais agradável, já poetizava sobre a vida simplesmente ao dizê-la. Homero, autor da Ilíada e da Odisseia, foi outro antigo grego que verbalizou poeticamente o mundo.

E a poesia bastava! Mais do que isso, fazia sobrar interfaces para a humanidade entender o real e para este compreendê-la. Tanto que os primeiros homens que, posteriormente, foram chamados de “os primeiros filósofos”, quais sejam, os pré-socráticos, muitos deles se valiam do assaz naturalizado estilo poético para dizerem da realidade por uma via outra que não mais estritamente poética. Estes, todavia, poetas não eram mais.

Essa hibridismo entre poesia e filosofia fica claro no poema do filósofo Parmênides de Eléia, Sobre a natureza, no qual o pré-socrático valeu-se da tradição poética de seu tempo para iniciar sua conversa com o leitor e desse modo apresentar a questão filosófica da qual trataria sem, digamos assim, causar estranheza. Não esqueçamos, estamos falando de uma sociedade absolutamente tradicional, na qual a mudança era vista com maus olhos .Tanto chamavam-na de corrupção!

Entretanto, imediatamente ao preâmbulo poético, Parmênides, sem dó nem piedade, revoluciona o mundo discursivo, e porque não dizer a história do pensamento, ao escrever argumentativamente, num ato de invenção da prosa lógica que dispensou não só os elementos míticos como o estilo poético de forma geral. A passagem desse segundo movimento do poema parmenídico que melhor representa essa revolução é: “o que é, é, e não é para não ser … o que não é, não é, e tem de não ser”.

Não obstante, antes de dizermos que essa invenção do pensador de Eleia foi uma apunhalada no coração da poesia, o importante aqui é ressaltar apenas que ela perdia o seu longevo e exclusivo belvedere a partir do qual humanidade e realidade eram mediados. Doravante, nunca mais o pensamento se restringiria apenas ao modo poético para dizer o que era e o que se passava como mundo.

Parmênides, no entanto, foi um revolucionário deveras respeitoso, pois mesmo tendo demarcado uma rígida fronteira entre os dois modos de dizer o real, a poesia e a prosa argumentativa, na terceira e última parte de seu “poema filosófico” o grego faz uma cosmologia que mistura os dois estilos anteriores, como que para tentar juntar novamente o que acabara de cindir tão evidentemente. Depois dele, porém, a filosofia como a conhecemos não se privou de trilhar um caminho cada vez mais apartado da poesia e cada vez mais próximo da lógica.

Antes de separarmos de vez poesia e filosofia, cabe todavia lembrar dos sofistas, homens que circulavam pela Grécia antiga, cuja produção intelectual era algo entre poesia e filosofia. Desde sempre híbrida, a sofística dizia o que se passava com o homem e com seu mundo. De um lado, com uma liberdade aparentada à poesia. Porém, de outro, com uma objetividade assaz pragmática, própria do pensar filosófico. Com efeito, os sofistas criavam e vendiam discursos de verve poética, contudo estrategicamente políticos, que até o vertical verbo platônico se voltar contra eles, eram confundidos com filosofia, mas que depois jazeram estigmatizados.

O pai da filosofia negava pertinência, não só às produções sofísticas, mas também às poéticas, alegando que estas não tratavam do que realmente importava, ou seja, daquilo que é necessária e universalmente válido, isto é, o Ser. Para o daddy-cool da filosofia, as ideias: o real mais real do que qualquer outra coisa, não podem ser conhecidas e fruídas de outro modo senão filosoficamente. E para Platão, poesia e sofística, ao tentarem falar das coisas, quando muito dizem apenas de suas corrupções terrenas, uma vez que não as atingem em suas origens, isto é, nas alturas celestes e ideais onde elas vivem eternas e incorruptíveis.

Como sabemos, o idealismo platônico nega a sensibilidade e o mundo dinâmico que ela revela aos homens, pois tudo o que é sensível diz apenas daquilo que será corrompido pelo devir. Expressar-se a partir do que se percebe sensivelmente, para Platão, outra coisa não era que ler a sentença de morte dos objetos dessa expressão. A realidade imediata, material, sensível, no entanto, era a matéria prima com a qual os poetas e os sofistas se aventuravam discursivamente. Mas para Platão, o voo que alçavam não se aproximava do que mais importava, das ideias das coisas a respeito das quais falavam.

Tanto que em vários de seus famosos diálogos Platão se empenhou em mostrar a limitação dos poetas e dos sofistas. Em Hípas Maior, evidenciou a impertinência do fazer sofístico de modo contundente. E na sua maior obra, a República, não se privou de banir a poesia de sua sociedade ideal. Justiça seja feita, Platão poupou apenas a poesia homérica, e isso porque ela relatava os grandes feitos heroicos do passado que, a seu ver, eram dignos de sobreviverem enquanto exemplos aos gregos. Dizia Platão que qualquer outra poesia causava apenas sensações, e mais afastava do que aproximava o homem da verdade e da virtude, objetos excelentes da sua República.

Com Platão, portanto, temos a ereção de um muro intransponível onde Parmênides havia apenas deitado uma fronteira. Diferente do pré-socrático, o pai da filosofia não aproximou filosofia e poesia em cosmologia alguma, uma vez que avizinhá-las apenas corromperia a sua filha preciosa, a filosofia. A poesia, marginalizada, só mesmo travestida de tragédia manteve lugar cativo na sociedade grega. Porém, em se tratando de verdade, a poesia nada mais podia.

Aluno de Platão, Aristóteles comprou a filosofia absolutamente. Aqui todavia vale ressaltar que o pupilo foi mais filosófico que o mestre, uma vez que a dialógica platônica carregava um certo verniz poético que de forma alguma reluziu no racionalismo aristotélico, profundamente mais prosaico, chamado por muitos de tedioso até. Talvez a sensação de tédio que o racionalismo de Aristóteles cause seja a marca da distância instituída entre poesia e filosofia.

Digna de nota é a diferença entre Platão e Aristóteles no tratamento da poesia. Aquele, como vimos, condena-a na República. Todavia, na forma de diálogo essa condenação ainda é de certa forma poética porque vivazmente encarnada nas vozes e gostos de Sócrates e seus companheiros. Já Aristóteles, na sua Poética, mesmo na intenção de apologizar a poesia o faz racional, metódica e tecnicamente, tratando dela como se de política ou de biologia fosse.

Saltando da antiguidade ao medievo, na chamada Idade das Trevas a poesia não reconquistou lugar excelente algum. O mundo medieval-cristão não podia deixar-se seduzir pela poesia sem o terrível risco de incorrer em pecado devido à dimensão sensual a que ela expõe os homens. Ademais, nenhuma poesia poderia nem deveria estar no lugar da palavra de Deus. Sensações e tergiversações como os que a poesia é capaz de causar eram a senda para se desencaminhar do paraíso prometido no fim de uma vida de privações.

A poesia e a sensibilia que ela envolve, portanto, permaneceram marginalizadas no mundo medieval. Até mesmo a filosofia, por ser um método humano de se alcançar a verdade, desafiava os preceitos cristãos, uma vez que o caminho, a verdade e a luz eram tão somente Deus, e só através da palavra dEle poderiam ser alcançados. Para sobreviver na Idade Média, a filosofia como os gregos a faziam teve se ser mutilada. As obras de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, por exemplo, levaram Platão aonde ele sequer poderia imaginar. Muitos dizem que o platonismo no medievo foi espécie de estupro ao seu criador.

Todavia, a modernidade irrompeu com muitos cristãos filosofando sem que a fé ou a palavra de Deus os intimidassem tanto. Muito pelo contrário. Provar a existência, a perfeição e a infinidade de Deus de modo filosófico de certa forma foi o estopim da modernidade. A prova ontológica de Deus cartesiana é o ícone do casamento perfeito de Deus e o pensamento humano. Pensar o infinito sem o qual Deus não é passou a ser o desafio filosófico por excelência. A poesia, obviamente, nada podia nessa empresa. Sobreviveu enquanto entretenimento burguês. Porém, tampouco a filosofia se mostrou capaz de dar conta da infinidade.

Então entrou em cena a ciência moderna, que longe de se pautar pela sensibilidade poética, e ciente da impotência dos argumentos metafísicos, se valeu da matemática euclidiana e da física newtoniana para explicar o real infinito. Se restava alguma dúvida de que a filosofia era incapaz de tocar a verdade, Immanuel Kant, na sua Crítica da Razão Pura, deixou isso irreversivelmente claro. O filósofo evidenciou os limites da razão metafísica e estabeleceu que somente a ciência e a matemática podiam tratar da verdade, não obstante ao modo de produzi-la.

Apesar de ter apunhalado definitivamente a metafísica, o filósofo alemão deixou os campos da ética e da política ao encargo dela.  Porém, ela não poderia mais versar sobre o que válido necessária e universalmente, apenas sobre a dinâmica das relações sociais e dos valores morais, contingentes por natureza. E na sua Crítica da Faculdade do Juízo, a última de sua trilogia, Kant, tratando da beleza, outro lugar não reservou à poesia além de uma contingência particular de pretensão universal.

Contra essa herança inglória legada à filosofia por Kant, o filósofo alemão Friedrich Hegel empreende seu contundente sistema de pensamento, cuja pretensão era não deixar nada do que já havia sido produzido pelo homem de fora. Muitos dizem que Hegel tentou salvar a filosofia. Todavia, sua dialética “espiral histórica” que compreendia todo e qualquer movimento da razão não foi suficiente para tirar da ciência moderna seus cetro e coroa no reinado da verdade.

Outro filósofo alemão, Karl Marx seguiu o caminho hegeliano, todavia modificando o idealismo de Hegel no seu materialismo histórico. Marx, dando sobrevida ao pensar filosófico, revolucionou o pensamento ocidental ao propor que a filosofia não devia apenas seguir interpretando o mundo, como tinha sido feito até então, mas sim modificá-lo. Filosofia = revolução! Foi mais profético do que poético todavia. E, fazendo a crítica da economia política de seu tempo, mais economista do que filósofo. Entretanto, é considerado um dos filósofos mais influentes da história da humanidade.

Foi só com Friedrich Nietzsche que a ciência encontrou resistência à sua confortável exclusividade em relação à verdade. Filosofia e poesia receberam o vigoroso impulso do martelo nietzschiano e foram reapresentadas como expressões capazes de tocar e produzir o real. Para tanto, o filósofo, que na verdade era filólogo, teve de retornar às origens míticas dos antigos gregos para, de lá, intempestivamente, dizer à sua modernidade demasiado historicista que a ciência era mais um vício temporal do que uma virtude sempiterna. A destruição niilista nietzschiana dos fundamentos que deu cabo da modernidade não poupou a onipresença e a onipotência científica e função da vida, da vontade de potência, e, o que importa aqui, da poesia e da filosofia.

E o método de Nietzsche para relativizar tanto a ciência quanto a história, consideradas por ele de as prisões da modernidade, valeu-se da intempestividade, que sustentava que devemos sair do nosso tempo, sem no entanto deixá-lo totalmente, para, de outros tempos e com outras perspectivas, tratarmos dos assuntos que nos tocam, trazendo o passado ao presente com roupagens que a contemporaneidade ela mesma não conseguiria cozer. E mediante essa extemporaneidade estratégica e libertadora, a poesia e a filosofia puderam reingressar dignamente no pensamento e na expressão humanas.

Com a contemporaneidade a ciência não morreu, obviamente. Porém, a poesia e a filosofia se viram como que revivificadas. Claro, há quem diga que o que realmente estrutura a vida contemporânea é a ciência mesmo; que não há um espaço ou atividades humanos que não sejam atravessados completamente pelas produções científicas; blá-blá-blá… Não obstante, esquecem-se de que filosofia e poesia outrossim atravessam e constituem todos os espaços e atividades humanas, e cada vez com mais força aliás. Para ver somente a primazia da ciência há mesmo que se fazer um forte exercício de abstração para desconsiderar as esferas metafísicas e poéticas que atravessam o mundo.

Um belo exemplo disso é explicitado pelos próprios cientistas, mais especificamente os físicos quânticos que, tocando as fronteiras últimas do átomo, depararam-se com a dualidade partícula-onda na qual ora uma existência é partícula, ora onda; nunca as duas coisas, todavia, sem deixar de sê-las simultaneamente. Cada um desses dois modos existenciais, para esta ciência, se dá de acordo com o modo como se observa a realidade. Para então poderem falar dessa dualidade insuperável referente às partículas subatômicas, muitos cientistas afirmaram que a física quântica fez desaparecer a diferença entre ciência e poesia. Se non è vero, almeno è poetica!

O filósofo esloveno Slavoj Žižek segue mantendo aberto espaço para a poesia na compreensão da realidade para muito além de sua predileção por filmes hollywoodianos e anedotas demodês. Em sua obra A Visão em Paralaxe, o filósofo relembra a invenção renascentista da perspectiva que cartografou com precisão matemática a condição do sujeito moderno. A característica central da perspectiva medievalista era o estabelecimento rígido do ponto-de-vista (o sujeito), e do ponto de fuga (o infinito ao qual todas as paralelas convergem). Com essa apresentação, Žižek prepara o terreno para as imagens contemporâneas evidenciarem algo muito diferente: não mais o estabelecimento de um ponto-de-vista e de um ponto-de-fuga relacionados inexpugnavelmente entre si, mas, em vez disso, uma miríade de pontos-de-fuga e pontos-de-vista, misturados e alheios uns aos outros, todos ao mesmo tempo constituindo a superfície imagética do real.

A pertinência da poesia em respeito ao real que o pensador esloveno quer evidenciar está justamente no fato de que a liberdade do observador em relação ao que vê (resultado virtuoso da crise dos fundamentos; fruto do niilismo nietzschiano), se dá porque que não estamos mais presos a um ponto-de-vista e condicionados a um ponto-de-fuga determinados, mas, em troca, diante de infinitos pontos, que tanto podem ser tomados como sendo de fuga como de vista. Podemos, com efeito, montar tantas relações imagéticas perspectivadas quantas forem as nossas tomadas do real: poesia que ciência alguma é capaz de produzir.

Uma vez que a contemporaneidade niilizada dispensa qualquer hipóstase, qualquer substancialização, qualquer absoluto prévio de onde adviria alguma verdade eterna a ser capturada somente pela ciência e doravante deificada, é nessa livre verificação que a nós se apresenta a partir de infinitos pontos-de-vista-e-de-fuga-ao-mesmo-tempo que surge o que podemos chamar de verdade, se assim quisermos, ou, dependendo da verve com o qual nosso olhar se lança sobre o real, de poesia ou de filosofia.

Considerando as promenade históricas da poesia e da filosofia, em suma: o surgimento da poesia e o seu ultrapassamento pela filosofia ainda na Antiguidade; as trevas que ambras enfrentaram no Medievo; a superação delas duas pela ciência na Modernidade; e as suas intempestivas recuperações Pós-modernas; podemos até pensar que esse devires continuam obedecendo à espiral hegeliana. Se é assim, a poesia reinará absoluta novamente até que a filosofia lhe ultrapasse mais uma vez, e, decerto, a ciência supere ambas de novo. Hegel, então, repousaria eternamente em paz no seu túmulo.

Hipostasiar o movimento proposto pelo filósofo idealista alemão, entrementes, seria fazer do passado, melhor dizendo, de um pensamento passado, um claustrofóbico logos para o pensamento futuro. Vício indesejável que, se parece aparentado à virtuosa extemporaneidade nietzschiana, é porque se confunde regra com referencial. O futuro, se livre, não mais hierarquizará poesia e filosofia, mas, provavelmente, aumentará não só a pertinência de cada uma delas, como também a tensão entre elas duas, a ponto de cada vez mais ambas serem capazes de propor, senão dois ou mais reais distintos, ao menos muitos e distintos modos de pensar o único real que há.

A beleza salvará o mundo

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Parafraseando o poeta Vinícius de Moraes, os revolucionários que me perdoem, mas a beleza é fundamental. Esse perdão parafraseado, na verdade, é um pedido de paciência àqueles que, não sem razão, enxergam os perigos da frivolidade e da alienação na beleza, afinal, a besta capitalista há muito a sequestra para melhor e mais dissimuladamente agir contrarevolucionariamente. “Hesitamos a aprovar tal fascinação pelo belo: sabemos que ela dissimula a face atroz da realidade” diz o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov no seu livro intitulado com uma frase de Dostoievsky, que é o cerne do que se quer pensar aqui, qual seja: “A Beleza Salvará o Mundo”.

Em primeiro lugar, os revolucionários que não acreditam que a beleza nos salvará da vilania do inimigo capitalista deveriam saber que o “amigo” fiel, não só deles, mas em verdade de todos nós, qual seja, o comunismo, não é e não deve ser refratário ao belo. Afinal, “a beleza não conhece privilégios sociais e nem de classe”, diz Todorov, para quem “todos são iguais diante da beleza, e podem participar dela nas mesmas condições”. Mais ainda, de acordo com o filósofo alemão Immanuel Kant na sua “Crítica da faculdade do juízo”, o belo é alavanca do sentimento de comunidade; nas palavras dele: do sensos communis.

Antes, porém, de trazermos os argumentos de Kant e de seguirmos nos de Todorov e outros pensadores, o amor ao conhecimento, ou seja, a filosofia exige que comecemos pela investigação sobre o belo por excelência, o diálogo socrático escrito por Platão, “Hípias Maior”. Nele, o filósofo Sócrates pede ao sofista Hípias uma definição do belo. As respostas do sofista ao filósofo sobre a beleza são as seguintes: uma bela jovem; o ouro e o marfim com que se adorna as coisas; ser rico, respeitado e tratado com honrarias; o que é útil; o que é bom; o que agrada os sentidos; e, finalmente, que a Beleza é a salvação proveniente de um discurso bonito.

Não obstante, todas as tentativas do sofista não convencem o filósofo, afinal, Sócrates quer saber, não o que por acaso é belo, mas o que é “o belo”, isto é, aquilo que faz com que as coisas sejam, possam ser belas. A grande questão, infelizmente, permaneceu sem resposta. Não só porque o sofista sequer compreendeu o ponto do filósofo, uma vez que só pensou em coisas e ações belas em vez do belo-em-si, como também porque até mesmo Sócrates não sabia defini-lo. Em vez disso, mediante o seu paradoxal “só sei que nada sei”, o filósofo conclui o diálogo dizendo apenas: “o belo é difícil”.

Vinte e dois séculos depois, na modernidade, Kant encontrou uma solução para a questão irresoluta da beleza das mais elegantes. O alemão concorda com Sócrates em que o belo não está nas coisas belas, que não é uma propriedade que exista nelas independentemente da percepção humana. Porém, o filósofo moderno supera o antigo ao entender que o belo é um produto da nossa faculdade de ajuizar as coisas, que em si mesmas não são belas, mas sim a nossa disposição subjetiva diante delas.

Para Kant, quando nossos sentidos, mais privilegiadamente a visão, percebe um objeto que lhe causa espécie de prazer e, diante dessa complacência subjetiva espontânea, resistimos, de um lado, a conceituar tal objeto e, de outro, a dar-lhe qualquer utilidade, mas permanecemos apenas nessa relação de prazer contemplativo com ele, eis o belo: não o objeto, não a nossa capacidade para contemplá-lo complacentemente, mas a relação com ele livre dos conceitos e do pragmatismo humanos.

Porém, para entender como “a beleza salvará o mundo”, é preciso compreender que, para Kant, não basta um objeto, um indivíduo e o prazer subjetivo deste. Chave para o belo kantiano é uma paradoxal universalização desse particular subjetivo. Funciona assim: quando me comprazo contemplativamente com determinado objeto, o meu juízo só pode sustentar que ele é belo se, antes, eu pressupor que qualquer pessoa que porventura entre em contato estético, isto é, sensível com este mesmo objeto o ajuizará da mesma forma que eu.

Em suma, kantianamente falando, eu só consigo achar que uma coisa é bela ao presumir que ela será bela para todos. Mesmo que posteriormente certos indivíduos não concordem com o meu ajuizamento de gosto -o que é bem provável aliás- ainda assim esse meu juízo só é possível se a priori eu pressupuser que ele será universalmente considerado belo. Nas palavras do filósofo, “em todos os juízos pelos quais declaramos algo belo não permitimos a ninguém ser de outra opinião, sem com isso fundarmos nosso juízo sobre conceitos, mas sobre nosso sentimento: não como sentimento privado, mas como um sentimento comunitário.”

Espero que a esta altura o revolucionário refratário ao belo já possa baixar sua guarda, pois se o belo, por um lado, exige a pressuposição de um gosto comum, nas palavras de Kant, um sensus communis, isto é, um sentido comunitário, a beleza -embora fortemente coagida pelo capitalismo para alienar-nos da vil realidade que ele mesmo impõe-, por outro lado, é a essência daquilo pelo qual este revolucionário desde sempre esteve em luta, qual seja, o comum. E para quem acha que a revolução é antes racional, intelectual do que sensorial, Kant tem a dizer que “a faculdade de juízo estética, antes que a intelectual, pode usar o nome de um sentido comunitário”.

E isso porque a faculdade de ajuizamento estético, isto é, o gosto considera, e a priori, o gosto de todos os demais. Quando, ao contrário, tenho certeza de que algo é prazeroso apenas para mim, levo em consideração somente a minha sensibilidade, impossível de ser universalizada. Esse não seria o horizonte intransponível do burguês? Quando, ainda, o que me compraz parece que causará o mesmo somente em determinados indivíduos, isso se dá porque levo em consideração certos valores. Nesse sentido, se meu prazer, parecer-me, será igualmente prazeroso à maioria, meu sentimento subjetivo dirá que o objeto que o causa é bom. Então sou moral. Aqui não estamos no limite socialdemocrata?

Agora, enquanto pressuponho que todos terão prazer com aquilo que me apraz, o belo, que é o que surge dessa reflexão, é a ideia de que a mais espontânea e menos interesseira disposição subjetiva que eu posso experimentar não se dá sem a consideração de que a humanidade é uma só. Com efeito, coloca Friedrich Schiller, outro filósofo alemão, “a beleza revela nossa humanidade, ela é o nosso ‘segundo criador’”. E uma segunda criação seria o que senão a primeira revolução humana? A beleza, e o communis sem a qual ela não é, deve ser um princípio ao revolucionário.

“Não podemos ser um sem o outro; só a comunidade exprime a humanidade”, diz Feuerbach. Rousseau diz o mesmo, todavia de modo mais poético: “para conhecer seu coração é preciso começar por ler o coração de outrem”. E a beleza, segundo Kant, mutatis mutandis não exige o mesmo de cada indivíduo? Sem ela, ou temos o individualismo, cujo vício é o de remeter todos os prazeres somente a quem os sente, e dane-se o resto, ou, com sorte, a democracia, cuja pseudovirtude é se satisfazer com o prazer da maioria, não com o de todos.

Reduzindo a verticalidade entre a torre de marfim filosófica kantiana e o chão comum do revolucionário, Schiller afirma que, se a revolução se perdeu, é porque seus atores não estavam maduros para a liberdade. Seria preciso, portanto, proceder à educação desses atores; transformá-los em seres morais. E essa educação, garante o filósofo, é estética. Nas suas palavras, “é pela beleza que nos encaminhamos para a liberdade”. Grosso modo, para Schiller, submeter a vida às exigências do belo é o verdadeiro caminho para a liberdade.

Aqui já podemos ver, não a vitória, mas a dianteira do estético em relação ao político, e até mesmo ao ético. O escritor britânico Oscar Wilde concordava com isso. Para ele, a estética é um enriquecimento da ética e da política, muito mais do que a substituta alienante delas. Na sua controversa apologia à beleza, o antológico “O retrato de Dorian Gray”, Wilde sugere que “é melhor ser belo do que ser bom”, uma vez que a beleza não é apenas preferível ao bem, mas também “a única capaz de perdoar o mal”.

Dandismos à parte, o que o revolucionário deve tirar dessa ideia wildeana é que o bem não é tão potente quanto o belo no sentido de “perdoar toda a humanidade”, quer dizer, de contemplá-la em uma só disposição prazerosa de espírito. Ora, o bom, o moral, é aquilo que seria melhor em dada circunstância e em função de determinado fim. Nessa dimensão, entretanto, há espaço por exemplo até mesmo para o capitalismo passar por um bem, por fim a ser perseguido. Sua força e incontáveis apólogos worldwide provam isso muito cruelmente.

Já o belo é a perfeição incondicional! Há na sua contemplação um prazer que, embora produzido subjetiva e individualmente, todavia porque só se finaliza na contemplação a prior de todas as demais subjetividades, ou seja, da humanidade inteira, assalta-nos a nós próprios e faz com que sintamos que a perfeição só é produzida coletivamente, comunitariamente. O belo, para ser, sopra ao mesmo tempo duas coisas maravilhosas no nosso ouvido: um gratuito e espontâneo prazer contemplativo, e a certeza de que temos um gosto em comum com a humanidade inteira. A beleza e o communis sem o qual aliás ela não é, é essencial ao comunismo.

Kant, além de resolver elegantemente a antiga questão socrático-platônica acerca do belo, com a sua “Crítica da Faculdade do Juízo” também dá o caminho das pedras ao revolucionário, evidenciando que o indivíduo, diante de seu gosto, para poder ajuizar que algo é belo, precisa se colocar em pé de igualdade com todos os gostos do mundo. Claro, o comunismo tem muitos outros e dificílimos desafios. Todavia, sem esse princípio prazeroso, universalizante, comunitário envolvido na beleza, sequer poderia pensar em um primeiro passo.

A revolução, portanto, é primeiramente estética. Só depois pode ser ética, moral, política, econômica, científica etc. Pois, como já disse o ensaísta francês Michel de Montaigne, “no estado estético, todo mundo, mesmo o trabalhador que é um mero instrumento, é um cidadão livre cujos direitos são iguais aos do mais alto nobre”. Ao contrário do que disse Sócrates à Hípias, não é o belo que é difícil. Ele é fácil e acessível a qualquer um. Mudar o mundo, fazer a revolução é que ainda seguem complicados para nós. Talvez porque ainda acreditemos que esses desafios não têm e não devem ter nada a ver com a beleza.

Escola sem Partido: ex-cola

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O que quer para o Brasil o Senador Magno Malta, do Partido da República, com o seu “Programa Escola sem Partido”, Projeto de Lei do Senado (PLS nº 193 de 2016) cuja diretriz é a erradicação da crítica política na educação brasileira? Ora, cidadãos mais mal-educados politicamente, e portanto mais manipuláveis –e por que não dizer golpeáveis-, do que os que o país já tem em abundância. Com efeito, se já foi fácil para um bando de oligarcas corruptos dar um golpe de estado em um país semialfabetizado politicamente, imagina então em um analfabetizado estrategicamente desde o bê-a-bá.

Se o “Programa Escola sem Partido” fosse um empreendimento da Igreja não teríamos nada de novo, somente mais da mesma e velha batalha contra um força reacionária cuja doutrina sempre andou alienada do pensamento crítico. Agora, vindo de um político cujo partido pelo menos no nome carrega a República, o “Programa Escola sem Partido” é de uma vilania digna de nota. Só mesmo um rol de objetivos espúrios, que podem ser sintetizados na imbecilização de um povo inteiro para que a velha elite possa mais facilmente e mais intensamente dominá-lo, para explicar o projeto de Malta.

Inimigo declarado do “Escola sem Partido”, o historiador brasileiro Leandro Karnal ressalta que nenhum evento social é bem compreendido senão através da crítica política. Relembrando-nos da decapitação do rei da França Luís XVI, um dia depois de sua deposição em 1792, e de sua esposa, Maria Antonieta, também guilhotinada um anos depois, Karnal pergunta o que pode ser dito de tais acontecimentos sem analisá-los politicamente: “Coitados dos reis da França?”, ironiza.

Precisamos nos perguntar: por que Malta e os seus, do centro do próprio sistema político, projetam a apolitização dos estudantes brasileiros se desde a Grécia antiga o indivíduo político é a base da nossa civilização (pelo menos a ocidental), e o que é mais importante frisar, em solução ao modus operandi despótico, e por que não dizer bárbaro, que lhe antecedeu historicamente. Seria a despolitização sistematizada um projeto de barbárie 2.0, um “New despotism”?

Se sim, então o Senador Malta não é somente um político mal-intencionado, mas um terrorista radical, e o que é pior, um que ainda por cima goza do privilégio de ter sido eleito política e democraticamente. Assim como o “golpe branco” tupiniquim é a mais nova sofisticação em matéria de golpes de estado, assim também o projeto do Senador republicano é uma requintada forma de terrorismo. Observando a escalada do terror no mundo, não é de espantar que ele se fantasie com a vil sutileza do “Programa Escola sem Partido”.

Para entender melhor o que ganhamos e perdemos com a destruição do ser político dentro de uma sociedade, vale remontarmos a antes da Atenas de 500 a.C. para entendermos a transição do ser despótico em ser político. Pois bem, “despótes”, isto é, déspota, era o pai de família, senhor, dono e soberano da esfera doméstica, cujo poder ilimitado atendia às necessidades materiais de sobrevivência do seu “génos”, ou seja, do núcleo parental (daí genética). As querelas entre os diferentes “génos” eram resolvidas na desmedida da potência física de seus “despótes”, isto é despoticamente.

Porém, na Grécia Clássica, com o advento da “pólis”, ou seja, a cidade-estado, esses “despótes” instituíram entre si e para si um outro modo –pelo jeito mais eficiente e sem dúvida mais sofisticado- para resolverem as dificuldades referentes à sobrevivência material de seus “génos” particulares. A “pólis”, portanto, partindo da matéria bruta do “despótes”, fez o “politikos”, o homem  político propriamente dito, cuja característica essencial era colocar-se diante dos demais mediante racionalidade e discurso crítico, e não mais através da força e do embate físico.

Importante ressaltar que este “homem” grego político não é o genérico de ser humano, mas exclusivamente os indivíduos do sexo masculino, os únicos que tinham o direito de serem “politikos”, pois, lembremos, estamos falando de uma sociedade absolutamente sexista. E a exclusão da mulher da esfera política levou mais de vinte séculos para ser superada. Todavia, tanto a batalha quanto a vitória feminina no campo da política só foi possível porque o “despótes”, lá atrás, instituiu uma ágora política aonde a brutalidade física não tinha mais vez. Uma vez aberto esse horizonte às relações entre os indivíduos, era só uma questão de tempo até as mulheres conquistarem igualdade com os homens na administração da vida coletiva.

Já aqui podemos ver que um dos resultados do “Escola sem Partido” é destruir o ambiente político que possibilitou às mulheres se libertarem do jugo despótico masculino. Em primeiro lugar, portanto, o “Escola sem Partido” é machista. Afinal, sem dimensão política disponível, os indivíduos buscarão a realização de seus objetivos e resolverão as suas diferenças de que forma senão mediante a força física, a única aparente vantagem -todavia não substantiva- do homem sobre a mulher? Não deveria nos surpreender, por consequência, que o autor do “Escola sem Partido” seja um homem, e, ademais, tão machista quanto a ideologia reacionária do seu Partido.

A possibilidade do sexismo da Antiguidade, porém, não é o único passado que ganharemos do “Escola sem Partido”. Também a medieval submissão do servo ao senhor é mais um distópico horizonte aberto pelo projeto de Malta. Só que nesse caso, não só as mulheres, mas também os homens jazem alienados do controle da vida social, pois na Idade Média reis e senhores feudais decidiam tudo. Tanto a terra necessária à subsistência, quanto a proteção militar fundamental à sobrevivência, eram favores daqueles aos camponeses, isto é, ao povo apolitizado.

Também o passado que ganhamos de presente com projeto de Malta é mais da moderna exploração da burguesia sobre o proletariado. Passado que, todavia, não é tão passado assim… Ora, um povo acrítico politicamente de modo algum chegará à revolucionária consciência de classe. O “Escola sem Partido”, portanto, é um tobogã quase vertical à alienação em respeito à exploração das classes dominantes. Sem saber se relacionar politicamente, seja entre eles mesmos, os explorados, seja com os detentores dos meios de produção, seus exploradores, a massa de trabalhadores que sairá da “Escola sem Partido” não tem outro destino senão permanecer subjugada.

Afora os grilhões que o despolitizante projeto de Malta ressuscita da antiguidade, do medievo e da modernidade, recontemporaneizando impertinentemente um passado que com muita luta foi superado, o “Escola sem Partido”, por outro lado, quer tornar passado talvez a maior virtude do presente: a crescente politização dos estudantes. Ação política das mais elogiáveis, as ocupações que os estudantes brasileiros têm feito em suas escolas frente o descaso dos nossos representantes políticos são os atos mais efetivos da distópica arena social.

Da perspectiva de uma oligarquia dominante, permitir que as escolas sigam formando jovens cidadãos com tal virtude e potência política com efeito é assinar a própria sentença de morte. Para tanto: “Escolas sem partido”. Dito de modo bastante dramático: Escola sem Escola; afinal, sem ensinar aos jovens aquilo de que eles mais precisarão vida-adentro, qual seja, a capacidade de criticar politicamente o mundo desde sempre opressor no qual vivem, e consequentemente politizarem em busca de uma maior liberdade, escola para quê?

Desconsiderando o conteúdo programático que cada um dos nossos estudantes bem ou mal levará consigo para a ágora brasilis, na resolução das questões sociais mais pungentes os seres apolitizados oriundos do “Escola sem Partido” serão ou uma massa idiotizada e subserviente, ou um bando de bárbaros que para realizarem seus objetivos pessoais poderão no máximo atuar despoticamente. Tire-se a política e o que teremos é o despotismo. Dito de outro modo: prive as pessoas da fina flor da civilização, a política, o que sobra são as raízes podres da barbárie.

Segurança vs. Liberdade em tempos de terrorismo

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Diante do avanço dos atentados terroristas worldwide, a velha busca humana por segurança cresce mais do que nunca. Passo tupiniquim dessa empresa, as novas e mais rígidas normas nos aeroportos brasileiros, há 18 dias do início das olimpíadas, passam a exigir nos voos domésticos a mesma vistoria de segurança que nos internacionais. Com isso acredita-se que estaremos mais seguros com relação aos terroristas. Não, contudo, sem pagarmos um alto preço. Além da taxa de embarque das mais caras do mundo, agora também é cobrado compulsoriamente dos passageiros mais tempo. E se, como dizem, tempo é dinheiro, o terror é realmente um negócio bastante lucrativo.

A Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) declarou, todavia, que “esses procedimentos têm como único objetivo zelar pela segurança de todos os passageiros e seus familiares no transporte aéreo brasileiro”. Paradoxal, no entanto, é perceber que, quanto mais normas e procedimentos de segurança são instituídos e aplicados nos quatro cantos e quase 44 mil aeroportos do mundo, mais os atos terroristas são presentes e destruidores. A França e os EUA são os exemplos mais dramáticos dessa desastrada homeopatia preventiva do medo do terror.

Será mesmo que a busca por segurança tem por consequência inevitável abrir espaço para o seu outro, a insegurança? Se, conforme analisou o sociólogo francês Robert Castel, “nós vivemos em sociedades que sem dúvida estão entre as mais seguras que já existiram”, porém, como percebeu outro sociólogo, o polaco Zigmunt Bauman, “esse ‘nós’ sente-se mais inseguro, ameaçado e amedrontado; mais inclinado ao pânico que nunca”, então a resposta é um angusto e alarmante sim.

Deveríamos então abandonar a ideia de segurança para então nos vermos livres da insegurança? Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Basta que não sejamos demasiado idealistas em relação à segurança que devemos buscar. E porventura não é essa a advertência de Bauman ao dizer-nos que “a aguda e crônica experiência da insegurança é um efeito colateral da convicção de que é possível obter uma segurança completa”? Que completude seria essa senão o mais ilusório idealismo?

Não estamos decerto em condições de abandonar tal céu ideal, onde a segurança mente que pode reinar pura e absoluta, para aterrissarmos definitivamente no chão do real, no qual segurança e insegurança digladiam-se sempiterna e dialeticamente. Cegueira voluntaria ao que já anteviu Bauman, que “o processo da barbárie para a civilização não é uma conquista definitiva, mas uma permanente luta cotidiana”. Insegurança e segurança, outrossim, é bom que saibamos que não podem existir separadamente ou uma excluir a outra, mas que subsistem em constante e presente relação.

Porém, pelo jeito, é o oposto disso que gostaríamos de ver. Prova disso foi a resposta da opinião pública ao que disse o primeiro ministro francês Manuel Valls depois do atentado terrorista em Nice, qual seja, que “a França terá de aprender a conviver com o terrorismo”. Mutatis mutandis, que a segurança terá de se habituar à insegurança, e, mais dramaticamente ainda, que a civilização terá de se acostumar com o seu outro, a barbárie. Mas isso, a começar pelos franceses, parece absurdo!

Diante dessa recusa, sobredoses do mesmo e fracassado remédio: mais excepcionalidade ao terrorismo, mais investimento em segurança, mais apologia à civilização, cujos sobre-efeitos colaterais e viciosos, contudo, são a banalização do terror, o crescimento da sensação de insegurança e o cada vez mais forte grito da barbárie sempre que sufocada. Antídotos que, na verdade, funcionam como venenos, pois nas suas promessas de trazer “segurança completa”, no fim das contas acabam tornando atraentes válvulas de escape, como por exemplo a xenofobia, que estimulam colateralmente a insegurança da qual gostaríamos de nos ver livres.

Só que esse “irremédio”, que torna irremediável a presença daquilo que ele pretende eliminar, é espécie de elixir da juventude ao monstro chamado Indústria do Medo, cujos muitos braços/mercadorias vão desde cercas eletrificadas para residências à massiva produção bélica mundial. Como bem disse Bauman, “o ‘capital do medo’ pode ser transformado em qualquer tipo de lucro político ou comercial”. Ah, e não nos esqueçamos de que as já altíssimas taxas de embarque dos aeroportos brasileiros, com suas novas e “promissoras” normas de segurança, irão se elevar mais ainda, pois tal é a fome da besta industriosa do medo.

Se, como Bauman afirmou, “o medo em si é o pior e mais penoso sofrimento”, o medo do terrorismo do qual padecemos atualmente é o sofrimento com a veste do terror. E diante de tal mal, parece que não temos outra escapatória a não ser consumir hipocondriacamente doses cavalares e constantes dos remédios venenosos da Indústria do Medo. Só que o efeito deles não é o paraíso da tranquilidade e da segurança, mas, no melhor dos casos, o colateral limbo do tédio -como o que doravante sentiremos nas filas de embarque de cada viagem doméstica-, e, no pior deles, o inferno da insegurança crônica.

Fechar fronteiras nacionais ou recrudescer penosamente a vigilância nos aeroportos, por exemplo, enquanto promessas de segurança frente ao terrorismo; cujas realizações, todavia, são sempre e cada vez mais adiadas para que nesse meio tempo infindável se lucre bastante com a insegurança generalizada; tais promissões de forma alguma resolvem aquilo em torno de que sociólogos e sociedades de todos os tempos orbitaram sem, no entanto, até hoje, encontrarem um centro de gravidade ideal: a equação perfeita entre segurança e liberdade.

Com efeito, a insegurança, produto do medo, cobra caro por seu outro, a segurança. E é a nossa liberdade o que hipotecamos em troca de proteção. A tendência a retirar-se dos espaços públicos para refugiar-se em ilhas de protegidas, diz Bauman, rouba-nos a possibilidade de vivermos com o outro, com a diferença. Só que desse modo nos alienamos da possibilidade de diálogo e de pacto justamente com quem porventura pode ser uma ameaça. Então, resta-nos apenas um(ns) outro(s) ameaçador(es) a uma proximidade angustiantemente muda, cuja transposição, não obstante, só é possível por meio do ruído ensurdecedor do terror.

Porém, relembra-nos Bauman, “somos feitos apenas de diferenças… E não importam quais sejam essas diferenças, o que as determina é a natureza das fronteiras que traçamos. Cada fronteira cria suas diferenças”. O Brexit grã-bretão foi a demarcação de uma Europa inteira, quiçá um mundo de outros, tão potencialmente ameaçadores quanto atualmente indesejados. Explodir os aeroportos brasileiros agora não é só projeto utópico de terroristas fundamentalistas, mas também desejo distópico de centenas de pessoas entediadas pelas horas de espera e indignadas pelo tanto de seus tempos que terão de ceder em nome da segurança.

A irracionalidade da barbárie terrorista não é outra que a da civilização aterrorizada. Antes, é a mesma desmedida de um mundo que vive entre fechar-se em fronteiras cada vez mais justas e intransponíveis, por um lado, e abrir-se para a globalização, por outro. Esquizofrenia social sempiterna, a até então não equacionada relação entre segurança e liberdade de forma alguma encontra equilíbrio na redução do acesso à países e aeroportos. Mas, como vimos antes, a irresolução dessa questão é a manutenção e a potencialização do medo generalizado com o qual o capitalismo engorda destemidamente.

Barbárie pouca é civilização

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“Besteira pouca é bobagem”, diz um provérbio português, que nesses nossos tempos de cotidianização de atentados terroristas bem poderia ser parafraseado da seguinte maneira: ‘barbárie pouca é bobagem’. Quem iria imaginar que no cume de sua civilização o ser humano fosse ressuscitar de forma tão banal modos tão primitivos de ser no mundo?

A atual barbarização da nossa “nobre” civilização, todavia, não é tão surpreendente assim se relembrarmos do ensaísta político francês Pierre Drieu la Rochelle, que, no início do século passado, de sua vista privilegiada para a Belle Époque, já dizia que “a civilização extrema gera a barbárie extrema”. Essa máxima de la Rochelle tem a virtude de apontar algo de que estamos esquecidos há muito: a viciosidade disso que chamamos evolução.

Desde que o cristianismo se tornou o paradigma da nossa civilização, e depois a ciência, acreditamos piamente que o tempo é histórico, isto é, que o passado corrompido só faz ficar cada vez mais para trás em detrimento de um futuro sempre e cada vez novo e melhorado. O brilho ofuscante da barbárie na berlinda da nossa contemporaneíssima arena histórica, porém, põe em cheque justamente essa visão, melhor dizendo, essa previsão.

Mesmo com a mui martelada e centenária “Morte de Deus” nietzschiana, mantemos cegamente o vaticínio da evolução em coma assistido. E isso quiçá para não reencontrarmos uma sabedoria da Antiguidade, aliás, própria do estoicismo, vertente filosófica fundada em Atenas por Zenão no início do século III a.C., que propunha a mítica repetição do mundo. Esta concepção afirmava que o mundo retorna sempre à sua origem para que os mesmos atos ocorram novamente, ad aeternum.

Da perspectiva estoica pelo menos, não há nada de errado no retorno da barbárie no sofisticado lounge da civilização. Antes, é a sempiterna dinâmica do mundo ele mesmo. Afinal, o que viria após a civilização senão o seu outro alienado? Por mais que tenhamos afastado estrategicamente barbárie e civilização uma História inteira, a Antiguidade tem a nos relembrar que entre aquelas duas não há mais do que um passo; e que, passo-a-passo, passamos de uma a outra, sem escapatória.

Por isso, o fato de nós, civilizados, estarmos aterrorizados com a barbárie que explode na contemporaneidade é espécie de ingenuidade, para não dizer ignorância; seja porque nunca nos alienamos completamente de nossa essência bárbara, mas apenas a encobrimos com a fina seda da civilização, seja ainda porque nos esquecemos da sabedoria dos antigos, que diz que o mundo é um circuito fechado no qual nada que aconteceu desaparece, mas retorna, eternamente.

Como não esperar que a barbárie e o terror que ela suscita reocupem a arena mundial, por exemplo, no reinado do não menos bárbaro e aterrorizante capitalismo, sistema econômico que, mantendo-se e crescendo mediante a desigualdade entre os agentes sociais, e estimulando a competição desenfreada entre eles, estabelece espécie de inimizade irrecuperável -e lucrativa- entre todos?

Aqui vale a pena relembrar o que disse o italiano Umberto Eco, que “o fim do terrorismo não é somente matar cegamente, mas lançar uma mensagem para desestabilizar o inimigo”. O terrorismo, com efeito, é a mensagem que, uma vez enviada, inimigo algum tem como dar “unfollow”. É lê-la ou lê-la. Ou, do contrário, ignorá-la e ser morto. E nesse ciclo do mundo no qual até mesmo continentes inteiros são transformados em inimigos pelo aterrorizante, cego e surdo capitalismo, mensagens inalienáveis e igualmente aterrorizadoras são cada vez mais trocadas.

E se, como colocou Edward R. Murrow, comentarista e repórter americano do meio do século passado, “nada pode aterrorizar toda uma nação a menos que todos nós sejamos cúmplices”, temos que a barbárie que o mundo assiste atualmente e da qual padece aterrorizado outra coisa não é que o produto coletivo desse mesmo mundo, dito civilizado. Ingenuidade ou ignorância, e por que não dizer covardia, é sustentar que são apenas os bárbaros fundamentalistas muçulmanos ou a besta capitalista os apólogos do eterno retorno da barbárie no cerne da civilização.

Levando em conta a infindável dialética entre barbárie e civilização, cuja única síntese possível repousa sob o signo do mito, isto é, da perpétua superação de uma pela outra, porventura podemos concluir que o investimento cego na civilização, paradoxalmente, é a preparação do mundo para mais um retorno da barbárie? Se é assim, então, um estratégico estímulo à barbárie, por sua vez, faria com que a civilidade se fizesse mais presente?

O que está se desenhando aqui? Que a barbárie é o caminho para a civilização? Esse rascunho, todavia, não deveria parece absurdo, uma vez que, anteriormente, como ninguém há de questionar, foi exatamente assim que se deu. Se em determinado momento do circuito fechado do nosso mundo partimos da barbárie para a civilização, não há motivos para crer que tal procedimento seja, digamos assim, alienígena nem tampouco irrepetível.

Só mesmo uma fé cega na ladainha cristã que prega há pelo menos dezesseis séculos que o tempo e a história são lineares, que nada do passado retorna, que há um fim da história mundana no paraíso celeste, blá-blá-blá, para não esperar que, sim, podemos passar, mais ainda, que passaremos muitas vezes, miticamente, pelo processo de encontrar e abandonar certa barbárie para encontrar e abandonar certa civilização, e assim por diante.

Então, aqui, chegou a hora de reencontrarmos o título desse ensaio, qual seja, “barbárie pouca é civilização”, ou o que é o mesmo, “civilização pouca é barbárie”, se se preferir, afinal, se, miticamente, uma e outra se sucedem dialeticamente, a humanidade é as duas em uma infindável relação. Compreender a humanidade, portanto, é saber, em cada momento, a diferença de nível de uma balança que em um prato carrega a barbárie, e, no outro, a civilização.

Dessa visada -e de forma alguma de uma perspectiva idealista que pressuporia barbárie e civilização como formas puras e hipostáticas capazes de existirem separadamente-, somos, materialmente falando, sempre e ao mesmo tempo semibárbaros e semicivilizados. Aqui vale repetir o que escreveu o pós-romancista português José Valentim Fialho de Almeida no final do século XIX, que “dar a um semibárbaro as regalias de um ser culto e consciente é pôr a civilização na contingência de um regresso brutal à barbárie”.

A solução que se rabisca aqui em respeito ao levante intempestivo da barbárie na contemporaneidade civilizada, cujo ícone último, excelente e espetacular é o terrorismo -muito embora, a meu ver, a sistematizada exploração capitalista seja infinitamente mais bárbara; afinal, quantas mortes contam nas costas do capitalismo e quantas nas dos terroristas?-, em suma, essa solução talvez possa parecer radical demais para ser considerada “politicamente correta”. Todavia, ao menos enquanto proposta deve ser pensada até o final.

Parafraseando o provérbio “besteira pouca é bobagem”, propôs-se outros dois, quais sejam seja, “barbárie pouca é civilização e “barbárie pouca é bobagem”. Colocando estes dois últimos como premissas de um silogismo, temos que, conclusiva e logicamente, “civilização é bobagem”. E isso, todavia, para reforçar a ideia de que investir na civilização contra a barbárie é tolice, pois é nada além de dar acesso privilegiado, melhor dizendo, privilegiar a barbárie.

Então, se é assim que dialeticamente a coisa funciona, deveríamos ser promotores, não da civilização, mas da barbárie ela mesma, pois assim ganharíamos aquela no final do empreendimento desta. No caso do maior problema do mundo atual, o terrorismo, sua solução seria levá-lo ao seu extremo, para que, finalmente, tendo dado tudo de si, sido esgotado, e o que é mais importante, aterrorizado absolutamente a humanidade, não houvesse mais espaço algum para ele, somente para o seu outro, a paz, ou a tranquilidade, se se preferir.

Aqui lembro da controversa afirmação dada pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek, que Hitler não foi mau o suficiente. O que o filósofo quis dizer com isso -e que muitos não entendem- foi que se o líder nazista tivesse sido absolutamente mau, não haveria, hoje em dia, não só os neonazistas, que ainda veem pertinência nos ideias genocidas da Segunda Grande Guerra, como também a crescente xenofobia que, galopante, redesenha as fronteiras do mundo em descarada recusa ao outro estrangeiro imigrante.

Seguindo a lógica žižekiana, se Hitler tivesse sido absolutamente mau, isto é, se seu ódio aos judeus tivesse restado universalmente monstruoso, ou seja, absolutamente inaceitável para todas as pessoas e tempos futuros, os ódios mortais e insuportavelmente quje vemos presentemente, como aos estrangeiros, negros, homossexuais, mulheres etc., certamente não teríamos ainda hoje solo fértil para a erva daninha da intolerância radical em relação ao outro seguir lançando tantas e profundas raízes.

Seria o caso então de contribuirmos, no núcleo duro e aterrorizado do agora, com espécie terrorismo absoluto, um terror maior que todos os terrores, em suma, uma barbárie totalmente monstruosa que doravante universalizasse uma recusa definitiva ao terror? Em outras palavras, a pergunta que cabe respondermos é a seguinte: será que só o terrorismo é capaz de dar cabo de si próprio? Vendo a atual impotência das movimentações políticas nesse sentido, é de se pressupor que só mesmo a sua versão prévia, o despotismo, primogênito da barbárie, possa realizar tal empresa.

Lembrando da máxima de Paracelso, médico e físico suíço-alemão do século XVI, qual seja, “a diferença entre um remédio e um veneno está só na dosagem”, é preciso investigar qual seria a dose precisa de terror para que ele fosse um veneno a si próprio, ou, tanto faz, um remédio para a paz mundial. Um elixir paradoxal que, aplicado comedidamente, fizesse com que a quase banalizada ignomínia terrorista esgotasse seu “potencial mensageiro” -como colocaria Eco- e que deixasse irremediavelmente claro a todos porque este tipo de “conversa” não deve mais ter lugar nem vez no nosso mundo.

Colocar-se e responder essa pergunta, porventura, não seria a maior vantagem da civilização em relação à barbárie? Ou, em troca, seria a vantagem desta sobre aquela? Linha tênue essa que separa a barbárie da civilização! Outrossim delicada é a dinâmica que faz com uma suscite a outra, dialeticamente, como viemos tentando pensar até aqui. Dando uma passo além de Paracelso, é preciso dizer que não só a dose do “remédio/veneno terrorisa” a ser aplicado contra o terror real é fundamental. Também a fórmula específica dessa paradoxal “poção” é importante, pois assim como o atual mal terrorista é peculiar, outrossim específico deve ser o veneno/remédio contra ele.

Somente me privo de vaticinar que terror e que dose seriam os mais adequados por dois motivos. Em primeiro lugar, porque decerto já me expus e contrariei o senso comum em demasia fazendo do terror a solução ao problema que ele mesmo é, sem dizer da fé no investimento na barbárie como via à civilização. E, em segundo e último lugar, porque mesmo entendendo que sou bárbaro e civilizado ao mesmo tempo, a pequena vantagem que, em mim, a civilização ainda tem sobre a barbárie é suficiente para impedir-me de ser um terrorista ipsis litteris.

“Uma única andorinha não faz verão”, diz o provérbio popular. Do mesmo modo, um bárbaro solitário –hoje em dia um “lobo solitário”- não faz a revoada bárbara capaz de produzir o verão civilizado de que tanto necessitamos. O paradoxal passo civilizatório que viemos tentando pensar até aqui se dará somente quanto tanto o terror quanto a sua dose, digamos assim, medicinais, forem prescritos e administrados coletivamente. Do contrário, teremos um mundo de semicivilizados aterrorizados por um único semibárbaro terrorista. A balança então penderia para a civilização, todavia,  com esta sendo apenas peso morto na sempiterna dinâmica da humanidade.

#NãoVaiTerGolpe Vs. #DarbeDeğil

Turkish people gather to react against uprising attempt

“Quando o machado entrou na floresta, as árvores disseram: o cabo é dos nossos”, diz um antigo provérbio turco. Os cidadãos/árvores do estado/floresta chamado Turquia certamente reatualizaram essa sabedoria popular ao impedirem o machado golpista de, em 15 de julho de 2016, depor à força Recep Tayyip Erdogan, presidente democraticamente eleito por mais de 54% daquela população. O já caduco e desde sempre impotente #NãoVaiTerGolpe tupiniquim tem muito do que se envergonhar, e mais ainda o que aprender com o neonato e vitorioso # DarbeDeğil (#GolpeNão) da Ásia-menor.

Porém, uma diferença é crucial entre a tentativa de golpe turca e o atual golpe brasileiro que, de certa forma, facilitou as coisas para aqueles. Lá, o levante foi militar, aqui, parlamentar; lá, vermelho da cor do sangue (265 mortos e 1.440 feridos), aqui, branco da cor dos colarinhos dos oligarcas golpistas; lá, valente, aqui, covarde. Com efeito, o fato de os golpistas turcos terem começado a ação deles presente nas ruas e de modo violento já deu os termos da luta a quem quisesse tentar impedi-los. Bastava portanto estar presente e agir com violência contra os golpistas. E não é que bastou? Já no Brasil, a sofisticação acovardada do golpe jurídico-político foi a de usar armas das quais a população não dispunha (estratagemas sórdidos de poder, influência midiática etc.), com as quais, infelizmente, ela não poderia voltar-se contra ele, mas, conforme critica o filósofo brasileiro Vladimir Safatle, apenas melancolizar-se passivamente.

Diante de que tanques nos prostrarmos, como fizeram os turcos, e contra que inimigos assumidos iconicamente uniformizados nos voltarmos, se o golpe brasileiro foi dado por uma cambada quase que incontável de políticos corruptos entrincheirados em suas legitimidades representativas e, ademais, que fizeram de um objeto inexistente, o crime de responsabilidade fiscal de Dilma Rousseff, que cada vez mais claro resta que nunca houve, o equipamento bélico com o qual derrubaram não só a presidenta, mas, de quebra, a democracia no Brasil? Os turcos ao menos tiveram esses inimigos concretamente presentes diante de si, pois um golpe militar tem ao menos a virtude de ser físico; visível, tocável, portanto, atacável e assassinável. Já a sua versão branca/parlamentar se viabiliza mediante um pretensioso vício, digamos assim, metafísico, isto é, para além da materialidade mundana capaz de contê-lo.

Já aqui podemos concluir que o golpe militar é melhor ao menos em um sentido: nele o inimigo e suas ações são desde o princípio evidentes e reconhecíveis e, por consequência, mais fáceis de serem contragolpeados. No caso dos turcos, a força que mostraram diante dos seus algozes já estava desde há muito em um dito popular deles: “a arma é o inimigo de quem a tem”. Enquanto que o dito golpe branco de que os brazukas padecem, sorrateiro que só ele e, é muito mais pernicioso porque age em trincheiras assaz alienadas daqueles que não o aceitam. E essa alienação pode ser simbolizada por um provérbio bem brasileiro: “em rio que tem piranha, jacaré nada de costas”. Em suma, jacaré brazuka ameaçado dá as costas aos seus inimigos, não os confronta.

Desse ponto de vista fica um pouco mais fácil entender a preferência de alguns pela tirania em relação à democracia. Um tirano e um representante democraticamente eleito podem, ambos, ser bons ou maus governantes. A diferença, não obstante, está em que, caso sejam maus, aquele pode ser assassinado e o estado viciado cair imediatamente, ao passo que em uma democracia, uma simples morte de forma alguma elimina o núcleo do problema. Matar Mussolini e Hitler foi suficiente para libertar a Itália e a Alemanha do fascismo e do nazismo. Agora, matar Barak Obama, por exemplo, por acaso livraria os EUA da ignomínia da tirania capitalista? Infelizmente, não.

De forma alguma a ideia aqui é fazer uma apologia à tirania. A intenção, todavia, é ressaltar que a tácita evidência do inimigo, como se dá no velho golpe militar, é muito mais favorável ao contragolpe do que a semi ocultação do algoz, como acontece no golpe estilo “branco”, dividido por cabeças demais para serem decapitadas. Erdogan, embora eleito democraticamente, nos primeiros passos dos golpistas agiu com pitadas de tirania: destituiu, despótica e imediatamente, cinco generais e 29 coronéis, prendeu dois 2.800 militares envolvidos no golpe, e, o que chega a dar inveja aos brasileiros golpeados, afastou 2.745 juízes e cinco membros do alto conselho judicial do país.

Eis a diferença entre os turcos quase golpeados e os brasileiros há meses golpeados: aqueles foram valentes, tanto quanto os seus golpistas fracassados. Do nosso lado, os brasileiros golpeados foram covardes porque assim agiram os seus golpistas. Caberia dizer aqui que cada povo tem os golpistas que merece? Se Aristóteles está certo, e “a qualidade de um estado é a qualidade de seus cidadãos”, não seria um absurdo pensar que a qualidade de um golpe de estado, por sua vez, deverá ser a qualidade dos seus cidadãos golpeados.

De acordo com outro provérbio turco que pelo jeito vive forte dentro daquele povo, qual seja, “um leão dorme no coração de todo homem corajoso”, os militares golpistas turcos foram vencidos porque tiveram de enfrentar o exército de feras selvagens que constitui aquele país. Agora, se lembrarmos, conclusivamente, do provérbio tupiniquim que diz que “é melhor não cutucar a onça com vara curta”, é fácil perceber porque nós, brasileiros, fomos e seguimos golpeados. Na terra brasilis, a onça oligarca de dentes e história longos ainda é a rainha da selva. Não exatamente porque os brasileiros têm vara curta, mas porque não articulam suas varas individuais a ponto de, somadas, formarem uma vara longa o suficiente para cutucar e sobretudo matar a onça golpista.

V de Vindima

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Em recente entrevista à revista brasileira Carta Capital, o filósofo esloveno Slavoj Žižek, criticando a paralisia da esquerda atual diante das forças imperialistas e retrógradas, diz que nem mesmo eventos como a manifestação de 1 milhão de pessoas na Praça Tahir, no Egito, em 2011, são verdadeiramente revolucionários. “Eu não me importo com esse tipo de conquista”, diz o filósofo, para quem “a revolução não é o porre, a revolução está na ressaca do dia seguinte”. Žižek então reconta uma piada sua sobre o filme V de Vingança, de 2005: “o filme termina com cidadãos mascarados tomando o Parlamento. Eu adoraria mesmo é assistir V de Vingança, parte 2. O que eles fariam no dia seguinte, como reorganizariam a vida cotidiana?”, pergunta o filósofo, pragmaticamente.

O mais próximo que eu cheguei de manifestações como a egípcia foi o junho de 2013 brasileiro, do qual eu era participante ativo e crédulo. O porre de 2013, para não deixarmos a piada de Žižek, foi intenso, promissor, festivo até. Sua ressaca, no entanto, foi insuportável. Não deu a mínima continuidade à miríade de demandas de seus manifestantes. Muito pelo contrário, um anos depois, em 2014, ganhamos das eleições nacionais um congresso e um senado mais retrógrado e fundamentalista do que podíamos imaginar. Retrospectivamente não é difícil concluir que a chamada “primavera brasileira” foi um desserviço invernal.

O desfavor da bebedeira revolucionária das flores de 2013, porém, não parou por aí. Sua ressaca insuportável foram também as populosas marchas pró-impeachment, pró-ditadura militar e, pasmem, pró-monarquia que ocuparam as ruas brasileiras em 2015 e 2016, cujo resultado amargamente concreto foi o afastamento de uma presidenta democraticamente eleita e a tomada do poder por uma corja de oligarcas corruptos que, se não estão levando o país de volta para o tempo do Império, como queriam alguns, ao menos reinstauraram a Velha República de antes de 1930, ambiente excelente dos resistentes oligarcas tupiniquins.

Diante dessa ressaca revolucionária brazuka, é impossível não concordar com a piada de Žižek. Tanto que não pude deixar de rever o filme em questão: V for Vendetta. Depois de reassisti-lo, no entanto, a piada do filósofo me pareceu mais pertinente ainda. Paradoxalmente, tanto melhor porque mais sem graça. Embora o herói do filme, mascarado de Guy Fawks, rascunhe na superfície do real distópico a mais utópica anarquia revolucionária, cujo ícone certamente é o terrorismo poético da explosão de símbolos do estado opressor ao som de Tchaikovsky, tudo o que vemos –Žižek tem razão!- é apenas o delicioso porre; nada da necessária administração da ressaca revolucionária subsequente.

É frustrante ver que, em vez de o herói mascarado usar a sua verve revolucionária para fazer dos cidadãos os agentes efetivos e sempiternos da mudança, ele os mantêm como espectadores passivos o tempo todo. Anuncia, em um hackeamento televisivo, que explodirá o parlamento dentro de um ano. Solicita aos seus telespectadores apenas que compareçam na data marcada. Nesse meio tempo, sai à caça de políticos e empresários corruptos, e, como assinatura de seus atos, deixa uma rara rosa vermelha sobre os corpos assassinados. O público, no entanto, segue alienado de seu trabalho revolucionário, uma vez que a mídia divulga sempre outros motivos para as tais mortes e atentados. E também sobre a rara flor, nada.

Dias antes do agendado atentado ao parlamento, o mascarado envia, pelo correio, máscaras e roupas teatrais negras como as suas à população, para que as usem durante o espetáculo terrorista final. No dia “D”, melhor dizendo, no dia “V”, milhares de pessoas vestidas de Guy Fawks marcham em direção ao parlamento. O Estado opressor, que cerca o prédio do poder ao modo de proteger a si próprio, fica apenas confuso com a multidão de mascarados. Enquanto isso, subterrânea a solitariamente, o herói mata o chanceler do mal, contudo, pagando por esse penúltimo ato com sua vida.

Morto e coberto com centenas das suas raras rosas vermelhas, o mascarado repousa sobre as toneladas de explosivos que destruirão o parlamento. Novamente Tchaikovsky invade as ruas da cidade. O símbolo máximo do poder é então explodido espetacularmente. Mistura de ópera, implosão e Réveillon de Copacabana. Os milhares de cidadãos mascarados assistem entusiasmados. Porém, mais uma vez, apenas assistem. Nenhuma envolvimento prático. Somente mais do mesmo exercício contemplativo, impotente por natureza, com o qual, aliás, estão bem acostumados. E essa contemplatividade coletiva, é preciso lembrar, é o espaço de conforto excelente à atividade dos opressores.

Agora, se o herói mascarado, em vez de presentear os milhares de cidadãos com um belo figurino, tivesse lhes ensinado o caminho da revolução; em vez de meramente ter vestido adequadamente a plateia, tivesse feito dela a atriz coletiva e dona do palco da mudança; em outras palavras, se tivesse dividido entre todos eles as toneladas de explosivos que destruiriam o poder opressor, para que cada um levasse consigo e detonasse uma parcela da pólvora, certamente teria feito deles parceiros, senão da mudança efetiva, ao menos de sua tentativa. Não obstante, o mascarado-mor, desde o início do filme, monopolizou toda a ação e manteve aqueles a quem a revolução realmente interessava nos assentos de suas reacionárias passividades contemplativas. O V de Vingança bem poderia ser de Vaidade.

É óbvio que no dia seguinte, no dia “R” de Ressaca, essa multidão alienada, porém entretida, não saberia o que fazer com a ruptura produzida pelo espetáculo que, em verdade, apenas assistiram. Se o tivessem produzido e encenado ativamente, isto é, se tivessem se embebedado com a revolução e explodido eles mesmos o poder que lhes oprimia, haveria alguma esperança. Entretanto, ineptos à manutenção de uma mudança que sequer foram capazes de propiciar, quem os comandará no “day after” será o poder atingido, pois este sabe muito bem como emendar fraturas, tal é a perícia da reação.

Porventura não aconteceu o mesmo na famigerada primavera brasileira de 2013, com milhares de cidadãos ironicamente usando a mesma máscara de Guy Falks e querendo o mesmo fim do estado explorador, mas que, no entanto, tiveram o seu dia seguinte reconquistado e a sua ressaca administrada justamente pelos poderes que queriam ver destruídos? Quem foi o mascarado solitário que incitou as hordas de brazukas a vestirem e desfilarem sua máscara para que realizassem a “revolução” dele, e não a que os próprios brasileiros necessitavam empreender coletivamente? Se atentarmos ao dia seguinte, e a quem o dominou e domina até aqui, temos que é a direita brasileira.

Žižek, na mesma entrevista, diz que, na disputa eleitoral americana, o absurdo imperialista de Donald Trump tem ao menos a virtude de ter fortalecido o socialismo de Bernie Sanders. Sem Trump, os esquecidos ideais socialistas não teriam sido reacesos com tanta intensidade no coração do debate político daquele país. E isso porque que toda ação tem uma reação de igual intensidade, porém, de sentido contrário. As flores de 2013, ingenuamente, desconsideraram essa dinâmica. Sua explosiva pretensão revolucionária, no dia seguinte, foi confrontada por uma tensão reacionária contrária, e o que é pior, de maior intensidade. E para não dizer que a metáfora da lei da física não se aplica aqui, esse diferencial desfavorável à revolução atina justamente à ingenuidade dos pretensos revolucionários em respeito à sempiterna dialética da luta.

A atual vitória da direita brasileira, todavia, não é o fim da história. Se a ação de 2013 acendeu a reação de 2016, a “ação reacionária” de 2016, por sua vez, outra coisa não é que o germe de uma “reação revolucionária” próxima, assim como, diz-nos Žižek, o capitalismo galopante de Trump foi capaz de recolocar o socialismo de Sanders em marcha no núcleo duro e capitalista que são os Estados Unidos. Agora, uma coisa é fundamental: só haverá uma verdadeira revolução que atravesse o porre da ruptura inicial e prossiga virtuosa na ressaca subsequente se ela for empreendida ativamente pelos que dela precisam. Do contrário, se confiarmos em heróis mascarados espetaculares e promissores somente, outro destino não teremos que o de espectadores passivos de uma revolução que apenas mentirosamente era para ser nossa.

Atualmente, as mais expressivas, todavia ainda ineficazes, reações da esquerda em relação à ostensiva “ação reacionária” da direita oligárquica brasileira são as milhares de hashtags-redes-sociais e os sobretudo recreativos encontros do tipo OcupaMinc, nos quais um artista ou um intelectual qualquer -que bem pode estar fazendo o papel do revolucionário mascarado solitário de V de Vingança- coloca suas palavras de ordem enquanto a massa o assiste e aplaude, passiva e contemplativamente. As hashtags mentem muito bem que somos nós que estamos discursando, e para o mundo todo; os shows musicais das ocupações nos iludem de que estamos todos afinados em um objetivo único. No entanto, os selfies que de lá saem direto para as timelines individuais e a conta da cerveja pós-manifestação depõem contra essa pretensa harmonia.

E isso porque essas ações são mais estéticas do que políticas, o que, mutatis mutandi, é o calcanhar de Aquiles das esquerda atual. A dimensão estética é a da sensibilidade, ou o que é o mesmo, a da subjetividade. Envolvidos subjetivamente com a revolução, somos apenas uma multidão de exércitos de um indivíduo só, cada um lutando solitariamente por seus próprios ideais, e, muitas vezes, uns contra os outros. Já o envolvimento objetivo com a mudança, esse é e só pode ser político. Quanto mais não seja, porque a política nasce da superação do solipsismo subjetivo, estético, em função de uma objetividade capaz não só de compartilhar universalmente a condição particular de cada um, suas necessidades e potencialidades individuais, como também e principalmente, de planificá-las todas em busca de suas realizações. Afinal, a essencialidade da revolução não está na ruptura que promove, mas nas vindimas que é capaz de oferecer, uma vez que a vindima engloba o período entre a colheita das uvas -o porre revolucionário- e o inicio da produção do vinho -a ressaca da reorganização da vida cotidiana, como gostaria Žižek.

 

Uma reflexão sobre a banalidade da corrupção

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A corrupção estrutural do sistema político brasileiro nunca esteve tão desnudada. Não que os brasileiros não soubessem dela, mas até bem pouco tempo ainda era mistério para a maioria seu modus operandi detalhado e, principalmente seu alcance. Essa parcial ignorância, por sua vez, mantinha silenciosa espécie de permissividade em relação à corrupção. Não foi à toa que os brasileiros cunharam e repetiram resignadamente por muito tempo a famigerada máxima “rouba, mas faz”.

Hoje, porém, com investigações como a Lava Jato, e com a  massiva divulgação midiática dos esquemas de corrupção entre a classe política e grandes empresas, como empreiteiras e a Petrobras, a permissividade da população em respeito à corrupção -a dos políticos, diga-se de passagem- se reduziu drasticamente. Afronta-nos profundamente, aliás. Arrisco dizer inclusive que há uma perigosa histeria instantânea ao menor indício de envolvimento de qualquer político nesse velho esquema corrompido.

Já não era sem tempo! Entretanto, há certa desmedida, altamente alienante, é preciso frisar, nessa radicalidade coletiva contra a corrupção. Tanto que milhares de brasileiros, indignados com a evidenciada corrupção sistêmica, de uma hora para outra foram às ruas, de verde, amarelo e panelas ruidosas, contra uma presidenta suspeita de crime fiscal, ao lado, e o que é pior, sob ordens implícitas de políticos deslavadamente corruptos. Note-se, a presidenta em questão, até aqui, não consta em nenhuma das longas listas de ladrões e propineiros, estes sim apólogos do impeachment daquela! A desmedida da indignação popular produz esse absurdo: crucificar uns para que paguem pelos “pecados” de outros, muito mais “pecadores”.

A histeria é uma patologia. Sua presença não faz com que se pense ou aja de modo racional. Sem dizer que, por outro lado, a recência do conhecimento pormenorizado da corrupção sistêmica confronta o brasileiro com a incapacidade de lidar com ela de modo objetivo. Não que se deva perdoar os corruptos. Isso seria justificar o injustificável. Todavia, para agirmos com justiça, melhor dizendo, para que justiça seja feita, é fundamental que entendamos, e coletivamente, não só o que a corrupção tem de mais evidente e recente, mas, principalmente, suas velhas e ocultas raízes.

Tarefa difícil que, não obstante, eu tive necessidade de praticar por conta de um situação particular e contingente. Diferente da maioria da população, que vê nas redes sociais, nos jornais e na televisão um político atrás do outro ser incriminado por recebimento de propina e desvio de verba pública, e que a esta distância midiática resta somente o ódio e o desprezo a eles, eu conheço intimamente um dos envolvidos e punidos na operação Lava Jato. Para evitar expor o meu conhecido ainda mais –e uma vez que um nome em particular nada altera o que se quer pensar aqui- irei chamá-lo de X.

X é um pai de família, educado, gentil, carinhoso, atencioso e com um bom coração. Quando eu, certa vez, atravessava uma grande dificuldade na vida, X, sem que eu pedisse, e sem exigir nada em troca, salvou-me do apuro. Minha gratidão só não é constante porque eu me esqueço dela no prazer de estar com ele e com sua família em aniversários, natais, réveillons etc. Foi essa particular conjuntura, portanto, que impediu que eu fosse histérico, isto é, cegamente taxativo em relação ao crime de que X foi primeiramente acusado, e pelo qual, atualmente, paga pena.

Novamente, não que a minha intenção seja a de justificar o fato de X estar envolvido nos esquemas de corrupção. Desde o princípio, porém, minha tendência foi a de entender porque cargas d’água uma pessoa com tantas boas qualidades se envolve em procedimentos, hoje em dia, inaceitáveis. Algumas pessoas que conhecem minha relação com X costumam perguntar: “será que ele não se arrepende de ter roubado?”. Ou ainda: “valeu a pena ser preso e sujar o nome da sua família por dinheiro?”

Obviamente, ser preso, afastado da família e estigmatizado nacionalmente é terrível, seja para quem de fato roubou, seja para qualquer um. Só mesmo um psicopata para não se sentir péssimo e extremamente arrependido com tal situação. Mas, como eu sei muito bem, X não sofre de psicopatologia alguma. Muito pelo contrário. Reforço: é uma pessoa bastante sensível, amorosa e gentil. Como, então, entender o envolvimento dele em um universo tão vil e condenável?

Para tal entendimento, o título desse relato, qual seja, “Uma reflexão sobre a banalidade da corrupção”, faz referência à obra de Hannah Arendt chamada “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, na qual a filósofa reflete sobre as responsabilidades individuais no moderno estado burocrático a partir das ações de Adolf Otto Eichmann, político/militar da Alemanha nazista, responsável por organizar o transporte de judeus para os campos de concentração. Em suma, para a morte. E por tentar entender os atos de Eichmann para além do próprio Eichmann, Arendt foi extremamente criticada ao desenvolver a sua tese sobre a “banalidade do mal”.

Eichmann, segundo Arendt, não demonstrou ser um homem violento, rancoroso nem sanguinolento. Em suma, não era nem de perto o monstro que todos esperavam que fosse. E questionado sobre sua consciência, se se arrependia do genocídio com o qual colaborou, o nazista afirmou que, de início, até se sentia inseguro, mas ao perceber que todos os seus pares vivenciavam com honra a construção do extermínio judeu -e isso porque todos acreditavam que se tratava objetivamente da recuperação econômica da Alemanha-, suas dúvidas se dissiparam.

No controverso livro, Arendt evidencia que o mal, uma vez banalizado, pode ser cometido inadvertidamente por pessoas comuns, que nunca optaram por ser más nem fazer mal a alguém, mas que, diante de imperativos circunstanciais, pela necessidade de cumprir certas regras urgentes, agem maleficamente, todavia, sem ter a menor consciência disso. Por isso a filósofa foi criticada, afinal, como é possível entender um genocida afirmando ele não tinha consciência do mal que praticava, mas estava apenas seguindo cumprindo a burocracia?

Assim como Arendt em relação ao suposto mal de Eichmann, eu recebo críticas por tentar entender o meu amigo X diante do crime pelo qual paga. Não obstante, outrossim como a filósofa alemã sabia que o mal genocida de Eichmann precedia e superava o próprio Eichmann, eu sei que o mal da corrupção na qual X esteve envolvido precede e supera em muito X. Isso, aliás, não é mistério para brasileiro algum. Afinal, tanto faria se X fosse ciente do mal que seu envolvimento com a corrupção traria ou a ele ou ao Brasil. Se ele tivesse se recusado desde o princípio a participar do círculo corrompido, certamente teria sido substituído por alguém que não se negasse ao velho modus operandi do real político tupiniquim. O mal da corrupção teria seguido com passos firmes. Suas pegadas, porém, apenas não seriam as de X, mas as de Y, Z, etc.

Demonizar histericamente X pela corrupção estrutural do Brasil que hoje está desmascarada, portanto, é uma dupla injustiça. Em primeiro lugar, contra o próprio X, que, individualmente, não inventou a corrupção generalizada nem tampouco seria capaz de fazer com que ela desaparecesse com virtude individual de consciência alguma. E em segundo lugar, com a própria corrupção sistematizada, pois, uma vez ela disfarçada com a máscara de X, mais facilmente prosseguiria firme e forte, corrupta como sempre, e o que é pior, impune. Entender isso é evitar fazer do boi-de-piranha a voracidade mortífera da piranha ela mesma.

Assim como Arendt, que por ser judia ficou presa em um campo de concentração, viu o mal de perto e pôde observar como ele consegue ser banal, X, por sua vez, porque estava imerso no corrompido campo político brasileiro, também viu o mal da corrupção banalizado, a ponto de sequer percebê-lo como tal, mas, culpa da banalização, como procedimento de rotina. Do mesmo modo como foi assombroso entender que o mal genocida nazista não tinha a intenção da maldade pura e simples, é chocante ter consciência de que o mal da corrupção tupiniquim não tinha, até bem pouco tempo, o propósito da corrupção ela mesma. Antes, era dissumuladamente o modo como as coisas sempre foram.

Sobre o genocídio nazista, as leis eugênicas de Hitler, conta-nos o filósofo Michael Sandels, foram muito elogiadas na época, inclusive pelos EUA. A morte de milhões de judeus pelos nazistas, pasmem, atendia a um objetivo progressista, racionalizado e por isso mesmo banalizado, capaz de ser compreendido e admirado internacionalmente. Tanto que, para Eichmann, cuidar do transporte de milhares de judeus à Auschwitz ou Treblinka era uma simples questão de logística, devendo ser realizado com competência e presteza. Só para termos noção da banalização, Eichmann confessou que ninguém nunca lhe disse que isso era errado ou que poderia ser questionado futuramente.

Disso devemos concluir que, assim como o genocídio não era considerado uma monstruosidade até o extermínio dos judeus pelos nazistas, participar da estrutura corrupta brasileira, até bem pouco tempo, também não era o fim do mundo. Na verdade, culturalmente, até significava espécie de esperteza, de senso oportunidade, muito mais que uma vergonha a ser evitada a qualquer preço. Assim como o monstro genocida como o conhecemos foi inventado após 1945, a monstruosidade escancarada e imperdoável dos políticos corruptos brasileiros é um produto da década de 2010.

Arendt fez questão de frisar que Eichmann não se arrependia do genocídio do qual era cúmplice porque não se considerava culpado. O político-militar alemão via a si mesmo apenas como um soldado patriota cumpridor de seus deveres. Tanto que era chocante ver a frieza e indiferença com que narrava suas cruéis práticas genocidas, como se se tratasse apenas do cumprimento de um cronograma, tamanha a banalização. E independentemente de o meu amigo X ter se arrependido ou não – posição subjetiva de que não tenho como saber verdadeiramente-, chamou-me atenção suas descrições, na delação premiada que fez para reduzir a sua pena, das transações ilegais, seja das quais participou, seja das quais tinha conhecimento, de forma corriqueira, como se se tratasse de procedimentos convencionais. E isso porque eram convencionais até então.

A banalidade do mal de Arendt ensina a entender que quando algo é praticado em larga escala, seja a morte de milhões de judeus, seja o roubo de bilhões de reais, o mal acaba se tornando coisa habitual, e ninguém mais dá a ele a devida atenção. Depois de algumas centenas de judeus mortos na Segunda Guerra, o extermínio do restante dos cinco milhões pelos nazistas foi fruto de uma automaticidade, de uma banalidade. Da mesma forma, depois que a corrupção já era uma velha senhora na terra brasilis, participar dela era banal. Outrossim, depois que meia dúzia de negros pobres são assassinados pela polícia carioca, suportamos sem alterar a nossa rotina o fato de, no Brasil, ocorrem quase 60.000 homicídios por ano. O mal é facilmente banalizável.

Por isso, quando penso no meu amigo X, esse pensamento é e deve ser duplo e distinto. Por um lado, pelo crime particular em função do qual foi condenado, acho ele deve sim pagar a pena devida. Disso resulta o grão mínimo de justiça no nosso país. Por outro lado, porém, não deve ser sobrecarregado com a corrupção sistêmica que o precede e supera em muito. E isso porque, demonizando-o pelo que existe a despeito dele, o grande demônio da corrupção generalizada escapa, pois se disfarça com máscara de X -ou de Y, ou de Z. Essa segunda consideração, por sua vez, traz a possibilidade de uma justiça em nível macro.

A histeria de se mascarar o mal com o rosto de alguém especifico, na verdade, pode ser o desesperado daqueles que não querem ver nesse grande mal os seus próprios rostos. E isso porque, como diz o historiador brasileiro Leandro Karnal, “não existe país com governo corrupto e população honesta”. Também pelo que disse Aristóteles, qual seja, que “a qualidade de um estado é a qualidade de seus cidadãos”. Tal é a patologia envolvida na histeria da maioria da população brasileira em relação à corrupção que, somente para além de suas auras pessoais é aceita que seja “generalizada”. Fazer de X o rosto do mal da corrupção brasileira outra coisa não é que dar prosseguimento ao longevo baile à fantasia da corrupção política tupiniquim.

Exigir que Eichmann soubesse que o genocídio viria a ser considerado um mal absoluto antes dessa maldade absoluta ser histórica e coletivamente construída, é uma injustiça individual. Claro, sua ignorância em relação aos conceitos e valores futuros não deve justificar perdão algum, mas certa compreensão. Puni-lo, exclusiva e espetacularmente, apenas dissimulou a origem e a responsabilidade do mal genocida. Tanto que até hoje vemos grupos nazistas em vários lugares do mundo cometendo, em menor escala todavia, absurdidades como as que Hitler acreditava serem fundamentais.

Aqui lembro de uma polêmica afirmação do filósofo Slavoj Žižek, qual seja, que Hitler não foi mau o suficiente. O que Žižek queria dizer com isso é que se Hitler tivesse sido absolutamente mau, não teríamos até hoje pessoas e instituições achando que a solução de certos problemas é a morte de judeus –ou negros, ou gays, ou muçulmanos. Mas como a persistência do pensamento nazista é algo real, Žižek tem razão: faltou Hitler ser mau a ponto de sua maldade ser universalmente considerada inaceitável. E a demonização particular de Eichmann, de certo modo, é a parcial absolvição de demônios maiores: o próprio espírito nazista.

Mesmo que Eichmann tivesse se recusado às ordens de Hitler, no melhor dos casos ele teria sido substituído, e, com certeza e infelizmente, nenhum dos judeu mortos teria escapado da ignomínia nazista. Igualmente, se meu amigo X tivesse se recusado a participar da velha e corrompidíssima máquina política brasileira, outro faria isso no seu lugar, pois o verdadeiro problema é a estrutura, e não uma ou outra engrenagem sua, todas banalmente substituíveis. Sendo assim, meu amigo X deve pagar o seu quinhão, porém, não mais que isso. Do contrário, estigmatizado pela longeva corrupção brasileira, pagará sozinho por um crime muito maior do que ele. E assim a grande corrupção segue parcialmente ocultada e, consequentemente, parcialmente livre. E enquanto isso, não há justiça, tampouco o fim da corrupção no Brasil.

Filosofia pop: utopia do pensamento?

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Diante da filosofia secular&acadêmica, qualquer outra forma de pensar que se pretenda filosófica tem a receber apenas um lugar indevido. Um não-lugar. Em uma palavra: atopos. Quem quer que seja que busque lugares outros para o pensamento que não o tradicional acadêmico é chamado ou de incompetente, por não pensar com eficiência nem com cientificidade, passaportes V.I.P à Torre de Marfim filosófica, ou, no melhor dos casos, de utópico, uma vez que utopia é o que não tem lugar ainda –mesmo que não haja nada nela mesma que a impeça de ter lugar na realidade.

Como a incompetência, porém, não é exclusividade somente de pensadores marginais e alternativos, mas também é compartilhada por muitos dos que povoam e povoaram as academias de todos os tempos e lugares, o pensar para além dos muros acadêmicos não é essencialmente incompetente, ficando a cargo de cada pensador realizar sua tarefa pensante com a envergadura de que é capaz. Sendo assim, ao pensar alternativo resta a dignidade de ao menos ser utópico: um pensamento que, se não encontra lugar ainda, não é por culpa sua, mas por responsabilidade desse “ainda” até então refratário ao novo. O que seria essa utopia do pensamento em alternativa à realidade acadêmica?

O filósofo brasileiro Charles Feitosa, na mesa de discussão chamada “A terceira margem da cultura”, aponta um caminho interessante para acossarmos uma outra via de pensamento que não a academicista,  nem tampouco a popular -de que os acadêmicos tradicionais aliás têm aversão declarada. Antes, porém, de nos debruçarmos no que Feitosa coloca de interessante a respeito de um pensar diverso do tradicional e do popular, é preciso frisar que “A terceira margem da cultura” faz alusão óbvia à “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, conto que participa de “Primeiras Estórias”, publicado em 1962.

Na narrativa rosiana, um homem manda construir uma canoa para habitar a famigerada terceira margem do rio. Depois de se isolar do mundo em sua canoa terceiro-marginal, isto é, de deixar as duas velhas margens do mundo, este homem, na verdade, passa a habitar a categoria do diferente, do insólito, da estranheza, aspectos recorrentes da literatura de Rosa. De modo geral, os personagens de Primeiras Estórias são sempre seres de exceção, de atitudes surpreendentes, que transgridem as regras sociais ou apresentam anormalidades físico-psíquicas.

Entretanto, segundo a teórica e crítica literária Linda Hutcheon em sua obra “Poética do Pós-modernismo”, os personagens de “Primeiras Estórias”, e consequentemente o canoeiro marginal de “A terceira margem do Rio”, mesmo manifestando suas excepcionalidades e estranhezas contundentemente, são dotados de intrigante coerência, ainda que tal pertinência não seja percebida imediatamente por aqueles que os margeiam. Daqui já podemos reservar a ideia de que qualquer que seja a terceira-marginalidade, seja a do rio, seja a da cultura, seja ainda a do pensamento, a este estranho topos devemos resguardar seu potencial lógico e racional, por mais aberrativo que a princípio possa parecer.

Hutcheon ressalta que “A terceira margem do rio” apresenta a imagem da travessia como alegoria do viver. Uma vez que essa imagem traz consigo a simbologia da existência humana, a escolha do personagem pela terceira margem é a escolha de um espaço de exceção, marcada pela eleição do insólito, do entrelugar, do não-lugar que é uma terceira margem em relação às duas que formam qualquer rio. Mais ainda, a autora aponta que a simbologia do três indica a fase final de um conflito, a sua resolução dialética.

Desse modo, a canoa insólita é o não-lugar que recusa tanto o lugar do uno, do absoluto, como também o lugar da bipolaridade. A terceira margem, na qual a canoa ancora ao modo de ser o próprio ancoradouro, é o topos terceiro no qual as contradições e opostos estão reunidos. Em um termo filosófico: o momento de síntese. Preferir continuar na canoa, e não nas margens que o mundo oferece gratuitamente, fala da “consciência do aspecto mutável da existência. Se a travessia representa a vida, a embarcação seria o próprio meio de conduzi-la”, reitera Hutcheon.

Então, para nos aproximarmos do que seria uma terceira margem ao pensamento, comecemos pela pergunta de Feitosa: “Qual seria a terceira margem da cultura?” . O filósofo, todavia, começa lembrando quais são as primeiras duas. “Então –diz ele- eu tô [sic] partindo do pressuposto que as primeiras duas margens da cultura são a divisão entre o erudito e o popular. E a busca de uma terceira margem é uma tentativa de escapar desse antagonismo, dessa oposição, e provavelmente de uma hierarquia que costuma existir entre esses dois polos: de um lado, a cultura acadêmica … de outro lado, a cultura de massa e a arte popular”.

E Feitosa assim coloca para lembrar que em filosofia essa dicotomia também é muito presente. De um lado, o erudito, de outro, o popular. Sem deixar-nos esquecer de que em filosofia o popular é visto como muito negativo. “Tudo que tá [sic] ligado ao cotidiano é visto como algo inferior. E todas as tentativas de popularização da filosofia são consideradas simplificações e empobrecimentos”, aponta o filósofo. Talvez o rigor acadêmico pense assim porque de sua Torre de Marfim não mais possa enxergar que, nas palavras de outra filósofa brasileira, Marcia Tiburi, “o verdadeiro pensamento é sempre orgânico, ele nasce da vida vivida de cada um”.

Com um pé na soleira da Torre Erudita e Marfínea, e outro no chão nômade e popular do pensamento comum, Feitosa diz: “a minha tentativa é experimentar um caminho que escape dessas duas margens e tente uma terceira, que eu chamo -quer dizer, na verdade eu roubo o conceito do Deleuze, filósofo francês- de filosofia pop, uma experiência de pensamento que tá [sic] tentando desrespeitar os limites dessas duas margens tradicionais”.

“Mas aquele que se dedica à filosofia também deve ter alma de um engenheiro e de um arquiteto. Deve ser um bom construtor de pontes. A ponte é o método, o caminho, capaz de ligar territórios isolados”, diz Tiburi. A terceira margem do pensamento, aqui a filosofia pop, seria uma estranha arquitetura do pensamento, uma insólita engenharia do desejo de conhecer, que deve ser capaz de pensar/unir o que até então está cindido. Nas palavras de Feitosa, ser “capaz de falar sobre o uso de controle-remoto, tanto como falar também de um conceito como liberdade em Hegel … capaz de entrar tanto em diálogo com Kant como com Lupicínio Rodrigues … de dialogar com Shakespeare quanto com as letras da Legião Urbana.

Depois de navegarmos pela terceira margem do rio de Rosa, onde está atracada a estranheza, todavia coerente e vivaz, distante da normalidade duas margens; pela terceira margem da cultura, que entremeia a cultura erudita valorizada e a popular desvalorizada; e aqui o que mais importa, pela terceira margem do pensamento, que na lógica de Hutcheon equivaleria à superação da rivalidade dialética entre as duas margens pensantes, a erudita/acadêmica e a popular/comum, temos que a filosofia pop, em uma imagem, é a canoa rosiana que se recusa a ancorar definitivamente nas duas margem tradicionais do rio do pensamento.

Canoa nômade. Ancoradouro clandestino e semovente. Ilha utópica. Tudo isso cabe como metáfora para a filosofia pop. Se o pensamento erudito e o pensamento popular são os dois lugares de onde costumeiramente se pensa, a filosofia pop não deve ver problema em ser o não-lugar da perspectiva daqueles.

Antes, porém, de nos perguntarmos o que afinal é filosofia pop?, cabe nos familiarizarmos com esse estranho lugar chamado não-lugar que estamos fazendo ser o lugar mesmo do pensar pop. “Não-lugar” é um termo cunhado pelo antropólogo francês Marc Augé no início da década de 1990 para designar os espaços de passagem incapazes de dar forma a qualquer identidade. Como exemplo fáceis de não-lugares Augé cita as auto-estradas, os aeroportos, os supermercados, os estacionamento, os elevadores. Em suma, lugares nos quais os indivíduos permanecem em trânsito, em espera ou apenas estão de passagem.

Não obstante, antes de deduzirmos que o não-lugar augéano está mais próximo do atopos ou do distopos do que do utopos, o que definitivamente aridificaria este estranho lugar à harmonia a que se pretende a filosofia pop, é fundamental ressaltar que para o antropólogo é através dos não-lugares que se revela um mundo provisório e efêmero, envolvido com o transitório e, em plena consonância com a terceira margem rosiana. Em suma, os não-lugares são os topos excelentes para uma época que se caracteriza pelo excesso de fatos, de espaços e de referências.

Talvez somente nessa esquisita ilha/canoa chamada filosofia pop possamos pensar de um só golpe, e sem sermos devorados pela complexíssima esfinge da contemporaneidade, a existência do controle-remoto nas nossas vidas, a liberdade em Hegel, o moralismo político de Kant, o sentimentalismo rasgado de Lupicínio Rodrigues, o estilismo supérfluo porém genial de Shakespeare, a melancolia Rock and roll das letras da Legião Urbana –para ficarmos nas imagens de Feitosa-, e todo o resto que nos cerca excessivamente.

Insistindo um pouco mais na nas ideias de Augé, seus não-lugares, por essência, promovem tanto o abandono quando o retorno a elementos de nossa cultura. Aqui reencontramos as pontes arquiteturais-filosóficas de que falava Tiburi. O filosofo pop, habitué dos não-lugares, mantém o privilégio de poder pensar, se assim desejar, só em Kant, ou só em Beyoncé, por exemplo, e o que é mais importante, daquele a esta, ou vice-versa, uma vez que não se desconecta definitivamente de nenhum dos dois.

Dando mais uma e última volta no parafuso augéano, o autor avisa que o usuário do não-lugar -para nós o filósofo pop-, infelizmente tem a tarefa inglória de provar constantemente a sua inocência. E isso porque quem frequenta os não-lugares está sempre voltando aos lugares com palavras e noções estranhas que, no entanto, como os estranhos personagens rosianos de Primeiras Estórias, fazem pleno sentido aos que nunca deixaram tais lugares. A estranha experiência de explicar o óbvio!

Porque embarca na canoa/utopia do pensamento novo, e se afasta deliberadamente dos “continentes” do pensamento tradicional, o filósofo pop, em qualquer retorno, não escapará de pagar pedágio epistemológico aos que nunca saíram de suas zonas de conforto. Essa é a estranheza, para muitos incompreensível, do não-lugar de Augé, que é a mesma tanto para o personagem de A terceira margem do rio quanto para o filósofo pop: a experiência solitária da comunhão de todos os destinos. Mas isso somente porque não está em destino algum, mas no trânsito infindável entre todos eles.

Agora chegou a hora de aportarmos na ilha utópica da filosofia pop, que transita clandestinamente entre o erudito e o popular, e fazermos a pergunta que Feitosa usa para intitular seu manifesto: “O que é isso – Filosofia Pop?” Abstratamente, “trata-se de uma maneira de ler, de escrever, de pensar”, coloca o filósofo. Todavia, de modo mais concreto, “a filosofia pop cumpre o que a sua época exige; busca atender as tarefas que a sociedade lhe impõe”.

Entretanto, no seu manifesto Feitosa adverte que se a tarefa da filosofia pop for simplesmente tratar do que está em voga, ou seja, daquilo que é “urgente”, e não do que é “essencial”, sendo que, para o filósofo, “urgente é tudo o que pertence à ordem do imediato”, e que “o essencial de um problema pertence a um outro plano, para além dos ditames da moda”, então não estamos falando de uma nova forma de pensar, mas de outros modos preexistentes de falar do real, como o jornalismo, ou de produzir realidades acessórias, como a propaganda.

Feitosa, não obstante, adverte que “a filosofia pop não é ‘filosofia engajada’, mas é micropolítica, promove e permite desterritorializações. Abandonar o território, com suas regras, repressões e microfascismos e reterritorializa-se, quer dizer, buscar alternativas dentro do sistema, abrir linhas de fuga”, e não vias absolutas e impositivas. “Na verdade a filosofia tem um que de antimoda, de extemporâneo, de não-pop”, coloca Feitosa.

Mas se a filosofia em si mesma não pode prescindir do extemporâneo, do não-pop, a filosofia pop, por ser também filosofia, tem uma tarefa árdua, qual seja, ser pop e anti-pop ao mesmo tempo. Até onde ser atual e até onde não? A partir de que ponto assumir o urgente e em que estágio descartá-lo para suprassumir o essencial? Certamente os filósofos tradicionais e acadêmicos não se deparam com este dilema, uma vez que tratam do que é universal e necessário. Tampouco os pensadores populares, cujo universo de pensamento orbita em torno do que é particular e contingente. Aliás, de outra perspectiva, não seriam estas as duas margens, a da universalidade e necessidade e a da particularidade e contingência, em relação às quais a filosofia pop é e deve ser a terceira e estranha?

A pop filosofia não teria a tarefa de pensar, por exemplo, a liberdade, de um lado, em sua forma necessária e universal -e aí entram Hegel, Kant, e quem quer que seja da Torre de Marfim filosófica-, e, de outro, não deixar de fora desse pensamento as experiências particulares e contingentes envolvidas na privação da liberdade, para, mediante um hibridismo demiúrgico e intempestivo, não emudecer diante de um real contemporâneo que ao mesmo tempo em que ordena que as pessoas realizem os seus desejos livremente, também contém regras e privações que vão justamente no sentido contrário?

Podemos ou não dizer que a filosofia pop é uma ilha utópica onde se harmoniza a esquizofrenia que nasce da oposição das duas margens do real, que tanto podem ser as do erudito e do popular como também as do certo e do errado, do livre e do interdito, do bem e do mal? Arquipélago relacionista? Essa dicotomia claustrofóbica da contemporaneidade, com cada polo jazendo irredutível em cada uma das duas sempiternas margens, porventura não seriam horizontes distópicos em meio aos quais a terceira margem pop transitaria utopicamente?

Para entender melhor a questão entre filosofia pop e filosofia tradicional vale percorrer a relação que Feitosa faz entre a filosofia pop e a arte pop. Assim como os pensadores pop se libertam do pensamento tradicional, os artistas pop também experimentaram uma impertinente liberdade, por exemplo, em relação ao expressionismo abstrato da arte moderna, considerado por eles demasiado intelectual, e o que é pior, alienado da realidade. Nas palavras de Feitosa, os artistas pop “ajudaram a consolidar o conceito ‘pop’ como algo imaginativo, rebelde, original, irreverente, crítico e alegre. Era uma nova estética, uma nova sensibilidade, enfim, uma linha de fuga de dentro do sistema”.

Aqui é inevitável não fazer um paralelo entre essa “linha de fuga” justamente de “dentro do sistema” e o conceito de TAZ (zona autônoma temporária), cunhado pelo pensamento filosófico-anárquico-poético, e por que não dizer, pop, de Hakim Bey. De fato, a TAZ é um espaço de não-sistema. Em uma palavra, um não-lugar necessariamente originado dentro do lugar em relação ao qual a autonomia se faz necessária, ainda que efemeramente. A TAZ seria uma ilha intempestiva e utópica dentro do continente temporal e distópico do real. Aliás, esse real distópico a ser “desaparecido” local e efemeramente é o princípio ativo das TAZes! Sendo assim, tanto a arte pop quanto a filosofia pop seriam zonas autônomas temporárias que irrompem de dentro do sistema estabelecido para dar origem ao novo, ao estranho, ou mais generosamente, ao que é reprimido.

Entretanto, adverte Feitosa, “a filosofia pop segundo Deleuze não pretende ser apenas uma forma de tolerância com o não-filosófico, mas é um assumir com dignidade a dimensão não-filosófica que está no coração mesmo da filosofia”. Na metáfora da ilha/terceira-margem utópica, em distinção às duas margens/continentes distópicos, a filosofia pop seria o não-lugar harmônico onde tanto a filosofia tradicional poderia reencontrar algo de sua essência perdida, quanto o pensamento vulgar avistar horizontes mais expandidos. E uma TAZ onde o pensamento se reconcilia com todas as suas possibilidades é o que senão a mais necessária utopia?

É de suma importância atentar ao que coloca Feitosa, que “a filosofia pop segundo Deleuze caracteriza-se justamente por colocar em relação constante a filosofia e a não-filosofia, deixando assim que diferentes saberes se interfiram, ressoem, repercutam entre si”. Por isso, diz Deleuze, todavia nas palavras Feitosa, “uma maior preocupação com a forma do que com o conteúdo”. E isso porque, trazendo Tiburi para corroborar com os dois filósofos, “quando falamos em filosofia o importante é entender caminhos, não simplesmente conteúdos”.

Feitosa encerra o seu manifesto à filosofia pop contando de sua apreciação por uma expressão inglesa, qual seja: “to pop the question”, usada para se “propor em casamento”, mas que, literalmente, significa “explodir a questão”. E isso para dizer que “talvez a filosofia tenha que ser sempre e de cada vez ‘pop’ no sentido de deixar explodir as questões que são essenciais, ex-vertendo e reorganizando insolentemente as distinções e hierarquias entre conceito e imagem/som; ciência e arte; profundo e superficial”, coloca Feitosa.

Desse modo, “to pop the question”, isto é, “explodir a questão”, seja, tanto para Deleuze, Feitosa e Tiburi, dar forma a um conteúdo de maneira que este conteúdo seja pensado, pensável, não estritamente de modo filosófico, mas sem deixar de sê-lo, todavia num hibridismo com o popular que não torna nem esse conteúdo nem essa forma alienígenas à filósofos e não-filósofos. Afinal, a utopia de uma filosofia terceiro-margista institui um topos para si quando o não-filósofo aprende a pensar filosoficamente porque o filósofo reaprendeu a pensar não-filosoficamente.

 

Pós-humanidade: a quarta ferida narcísica da humanidade

pos-humano

O ser humano está fadado a ser ferido por si próprio? Pelo menos é o que nos conta a história das três feridas narcísicas da humanidade, quais sejam, a copernicana, a darwiniana e a freudiana. E não temos motivo algum para concluir de que esse devir, digamos assim, “fera-ferida” tenha chegado ao seu fim com o pai da psicanálise.

Depois que Copérnico, no século XVI, mostrou que a terra não era o centro do universo, e que sequer o universo tinha centro, a humanidade perdeu a segurança do cosmos fechado para ser jogada sem referencial algum na agorafobia irrecuperável do universo infinito. O primeiro golpe. Com Darwin, no século XIX, a humanidade soube que não era a suma obra-prima do seu divino criador, mas, como todas as demais espécies animais, tinha evoluído, particularmente, e mais traumaticamente ainda, do macaco. O segundo golpe. E o domínio absoluto da realidade pela razão humana, porto há muito assegurado pela metafísica e mais recentemente pela ciência, perdeu sua segurança com a descoberta do inconsciente, por Freud, no século XX. O terceiro golpe. Se o nosso destino realmente é auto-golpear-nos , qual será o próximo golpe, isto é, nossa quarta ferida narcísica?

A revolução cibertecnológica que estamos experimentando nas últimas décadas pode já estar sendo essa nossa “próxima” ferida. A ensaísta e pesquisadora argentina Paula Sibilia, em O Homem Pós-Orgânico, fala do homem diante de sua experiência com uma gama de investimentos antes inimagináveis, tais como a manipulação protética localizada, isto é, os biochips, e sobretudo a inteligência artificial. Para a autora, evoluções como estas estão levando -ou já nos trouxeram- às novíssimas experiências do homem “pós-orgânico” e da evolução “pós-humana”. Não seriam a entrada absoluta na pós-humanidade e o abandono completo da organicidade, ambas, senão a maior e derradeira, ao menos a próxima grande e irrecuperável ferida da humanidade?

A cientista de comunicação brasileira Lucia Santaella, em Pós-humanismo – por quê?, também aponta os novos e desconhecidos horizontes que a humanidade abre para si com as cibertecnologias. Para ela, as sociedades humanas complexas resultam em uma babilônia informacional que faz do mundo uma gigantesca rede de troca de informações. Ressalta ainda que o conhecimento humano duplica a cada dez anos, e que a revolução tecnológica que estamos atravessando no momento é muito mais profunda e modificadora do que a revolucionária invenção do alfabeto, há cerca de 4000 anos.

Humanos, demasiado humanos, nosso moderno esforço para dominar tecnicamente a natureza mediante o conhecimento foi, para Sibila, a versão prometeica de nossa evolução. Na mitologia grega, Prometeu foi um defensor da humanidade, conhecido por sua astuta inteligência, responsável por roubar o fogo de Héstia, deusa virgem do lar, da vida doméstica, da família e do estado, e o dar aos mortais. Nas próprias palavras de Sibilia, “o progresso dos saberes e das ferramentas prometeicas redunda em um certo ‘aperfeiçoamento’ do corpo, porém este será sempre naturalista e não-transcendentalista; ou seja, não pretenderá ir além dos limites impostos pela ‘natureza humana’”. Vemos aqui que evoluindo prometeicamente não cruzaríamos as fronteiras da humanidade, apenas as expandiríamos aos infinitos cantos do universo outrossim infinito.

Entretanto, a partir de século XX, o infinito pareceu justo demais. A paulatina e tecnocientífica dominação humana da natureza se expandiu também para a dominação da própria natureza humana. Nas palavras de Sibilia, “tanto para o exterior quanto para o interior do corpo humano”. Prometeu se perdeu na sua velha fronteira. Esse novo movimento, que a autora chama de era fáustica, outra coisa não é que a mudança paradigmática que desbancou as antigas e conhecidas dicotomias metafísicas entre mente-corpo, espírito-matéria, sujeito-objeto, natureza-artifício.

 Como sabemos, Fausto é o protagonista de uma popular lenda alemã que conta de um pacto com o demônio, baseada na magia e na alquimia do alemão Dr. Johannes Georg Faust. Essa movida fáustica, que para Sibilia é a superação da “condição humana”, inaugurou o que ela chama de “’falências do corpo orgânico’, dos ‘limites espaciais e temporais ligados à sua materialidade’”. Melhorar a condição da existência humana contra as vicissitudes da natureza, até então esforço prometeico, passou a ser a transcendência do ser humano, o empreendimento fáustico por excelência.

O momento fáustico da humanidade, mutatis mutandi,  é o cruzamento da fronteira humana para a pós-humana. E nessa pós-humanidade cibertecnológica imediata, o pós-homem primeiro é o ciberpunk: ser híbrido fascinado pelas interzonas; bastardo do “casamento da subcultura high-tech com as culturas marginalizadas das ruas”, aponta Santaella. Ainda que o ciberpunk seja o colonizador primário dessa realidade fáustica, o primeiro a viver esse “novo continente” deslimitado, mesmo ele já teve de se deparar com a angusta questão, bem colocada por Santaella: “o que é autenticamente humano quando se tornam indefinidas as fronteiras entre humanidade e tecnologia?”

Se o punk cibernético, aventureiro colonizador da fáustica ciber-realidade humana, não conseguiu dar essa resposta de modo satisfatório, os primeiros neonatos desse novo continente pós-humano, para Santaella os “ciborgues”, não têm como escapar da pergunta, também feita pela autora: “o que é identidade humana, se ela for programável?” Afinal, o que resta dos conceitos de autenticidade e identidade na mistura desenfreada de tecnologia e ser humano? Melhor dizendo, o que surge daí?

O termo “ciborgue”, na verdade, foi cunhado  por Manfred Clynes e Nathan Kline, em 1960, para dizer da mistura entre cibernética (cyb) e organismo (org), ou seja, hibridismo do humano com algo maquínico-informático, que estende o humano para além de si mesmo. No entanto, o ciborgue, para Santaella, é melhor dito “biocibernético”, pois, de um lado, “bio”, de biológico, apresentaria significados mais abrangentes do que “org”, de organismo. De outro, porque “biocibernético”, em vez de “autômato bioinformático”, “biomaquinal” ou “pós-biológico”, exporia “a hibridização do biológico e do cibernético de maneira mais explícita”.

 Essa hibridização, de acordo com Sibila, denota que o corpo humano em sua configuração meramente biológica está obsoleto. As cada vez mais intensas pressões de um meio ambiente amalgamado com o artificial faz com que os corpos humanos contemporâneos não consigam mais existir sem o as dores e as delícias do upgrade. O imperativo da ciberorganicidade está internalizado: a necessidade de compatibilidade total com o tecnocosmos digitalizado. E esse ininterrupto upgrade da humanidade em vista de uma pós-humanidade já é a cultura na qual vivemos: a cibercultura.

Santaella, no entanto, diz que esse universo cibercultural não significa a superação das fragilidades e vulnerabilidades de nossa condição humana. “A meu ver –coloca a autora-, além de simplista, reducionista, essa compreensão é ilusionista”, e isso porque “tais delírios pseudointelectuais, evidentemente, não podem ser tomados como definidores da problemática do pós-humano”. Santaella diz que embora a condição pós-humana e a revolução biotecnológica coloquem a humanidade diante de dilemas éticos inéditos, hipostasiar a distinção entre evolução biológica e evolução tecnológica pode não ser pertinente, afinal, pressupondo que ambas as evoluções são uma e a mesma, a atual aceleração tecnocientífica, que faz do humano pós-humano, poderia ser apenas mais um ciclo evolutivo da própria e mesma humanidade.

A brasileira é contundente ao sugerir que a condição pós-humana pôde desde sempre ter estado inscrita no programa genético da espécie humana. Com efeito, Santaella fala da perspectiva de que a técnica, hoje encarnada na cibertecnologia, remete às origens da constituição do ser humano como ser simbólico: animal de linguagem; a ponto de as tecnologias atuais serem nada mais que a continuidade e a complexificação do que já havia na instauração do humano.

Santaella diz ainda que falar nunca foi natural, pois naturais são apenas as funções de sobrevivência básicas, como comer, dormir, beber etc. Para a autora, a fala já é um artifício: “o artifício da maquinaria simbólica que está instalada em nosso próprio corpo”. Todas as demais maquinarias, técnicas, artifícios ou tecnologias, para Santaella, são o desenvolvimento daquilo que já irrompeu em nós quando começamos a falar.

Santaella vai mais longe ao pensar que até mesmo a nossa contemporaneíssima Internet já estava em latência quando o ser humano se tornou bípede; quando teve pela primeira vez as mãos livres para comunicar, à distância, o que se passava no “lugar”. Com efeito, e-mail e Whatsapp são formas bem mais sofisticadas, no entanto, para a ancestral artificialidade humana envolvida na comunicação. Sofisticações digitalizadas daquilo que o homem, uma vez em pé, já podia fazer analogicamente.

Só que essa sofisticália, indo muito além do mero gestual corporal, exige suportes cada vez mais capazes. Essa exigência, por sua vez, potencializa as nossas comunicação, expressão e criação, e assim por diante, num ciclo ascendente que se resolve apenas com mais tecnologia. Santaella evidencia que os prolongamentos do nosso corpo e da nossa mente na evolução do gesto e da fala em e-mails e telefones celulares, por exemplo, promovem um crescimento do nosso neocórtex. Só que esse órgão, por razões estritamente biológicas, tem seu limite de expansão. “Não pode continuar crescendo dentro da caixa craniana”, aponta a autora, para quem “o neocórtex vem crescendo, expandindo-se na biosfera, fora da caixa craniana”. Aí os chips, os bancos de dados, e, hoje em dia, a infinita nuvem.

Esse seria o pós-humanismo propriamente dito, a existência humana para além do corpo humano. O homem não mais sendo ele mesmo no seu solipsismo biológico, se é que podemos falar assim, que durante milhares de anos foi o seu horizonte intransponível. O pós-humano, por sua vez, só é se for também, ou quiçá definitivamente, fora de si mesmo. Mais ainda, se o universo inteiro for o suporte dessa pós-humanidade: o infinito prolongamento externo do que a humanidade é internamente: uma evolução ilimitada e desenfreada.

Talvez esteja aí a quarta ferida narcísica pela qual estávamos procurando. Retomando: primeiro, perdemos o centro do universo com Copérnico; depois, despencamos do centro da criação divina com Darwin; para, em seguida, perdermos o controle da nossa razão em face do insondável inconsciente evidenciado por Freud. E, por fim, em quarto lugar, no pós-humanismo, a própria humanidade deixa de ser o locus de si mesma, tendo de ocupar o universo ao seu redor para poder viver a sua própria evolução. Só que agora, pós-humanamente.

A pseudomelancolia da intelectualia de esquerda

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“Melancolia de esquerda” é o nome de um ensaio de Walter Benjamin, escrito na década de 1930, a respeito da “poesia de esquerda” do alemão Erich Kästner, mas que, de modo geral, trata da pretensa intelectualidade revolucionária de sua época. Prestes a fazer noventa anos, o texto de Benjamin, no entanto, tem uma juventude assaz pertinente, senão à conjuntura mundial, pelo menos a todos os que são afetados negativamente pela crísica realidade política brasileira.

Vladimir Safatle, filósofo brasileiro, disse recentemente que a melancolia dos brazukas diante do atual Golpe Branco de Estado é mais do que uma simples reação triste e impotente diante de algo que foi perdido. Antes, e estrategicamente, é o afeto mais conveniente aos “Golpeadores Brancos”, pois melancólicos podemos muito menos contra eles. Por isso Safatle coloca que, diante do golpe, “nós precisamos fazer uma crítica dos nossos afetos”, mais especificamente da melancolia, pois sem esse trabalho crítico seguiremos afetados negativamente, isto é, melancólicos e golpeados, e os nossos algozes, realizados e potentes.

As manifestações contrárias ao atual golpe brasileiro que mais chamam a atenção, tais como os virtuais&hashtaguicos #nãovaitergolpe, #foraTemer e #voltaDilma, ou os presenciais-quase-hedonistas shows de artistas consagrados da MPB em prol da democracia por exemplo -sem dizer dos alienantes encontros do tipo Ioga ou pedalada contra o golpe-, por mais entusiasmantes e revolucionários que possam parecer, na verdade, são apenas formas coletivas através das quais a melancolia individual, portanto a impotência, é cultivada inadvertidamente. Em primeiro lugar, porque enquanto nos deliciamos ouvindo juntos boas e clássicas músicas e digitamos hasthtags indignadas nas redes sociais virtuais, os golpistas, na “rede social real”, seguem nos golpeando. E, em segundo, durante essa deliciosa alienação, não exercitamos, muito menos inventamos, formas verdadeiramente revolucionárias e afetos efetivamente potentes capazes de rebater os nossos reais inimigos com a força necessária.

Em uma palestra na Favela da Maré, no Rio de Janeiro, a filósofa brasileira Marcia Tiburi chamou de “esquerdo-fofos” aqueles que, contrários à adversidade da realidade política brasileira, agem de forma “cool”, puramente estética e subjetivamente gratificante, em vez de agirem coletiva e objetivamente de modo efetivo. A filósofa fala de uma “esquerdo-fofice” que, mutatis mutandi, é a crítica que Benjamin faz à inefetiva literatura da esquerda burguesa alemã de seu tempo, encarnada na obra de Erich Kästner, demasiado comprometida com os interesses hedonistas das classes média e alta e, por isso mesmo, melancólica. Ou seja, impotente. Por isso, a impotência dos brazukas diante do atual golpe pode encontrar na crítica de Benjamin à “esquerdo-fofice” alemã do início do século passado pistas para deixar esse espaço melancólico, melhor dizendo, de impotência contemplativa, no qual nos encontramos.

Assim como para Benjamin a “poesia radical de esquerda” de Kästner era um mero objeto de consumo destinado “à fruição diletante de sujeitos sem a menor capacidade política”, a esquerdo fofice das nossas atuais hashtags e ocoolpações é a mercadoria mais consumida por quem, antes de mudar o mundo, quer primeiramente um ambiente agradável em volta de si, mesmo que essa fronteira alienante não seja maior do que poucos passos, sejam eles reais ou virtuais. Em ambos os casos, o efeito é um só: sob a entusiasmante aparência da atividade, a vil essência da paralisia melancólica. O que a “poesia de esquerda” de  Kästner criticada por Benjamin e a “esquerdo fofice” tupiniquim denunciada por Tiburi trazem é somente a impotência travestida de um falso sentimento de humanidade. Mas para Benjamin, que aqui não se afasta um passo de Marx, a verdadeira humanidade só deve ter um discurso, e este é sobre a luta de classes.

Sem encarnarmos essa questão pungente, somos apenas uma humanidade alienada de si própria. Crentes de que hashtags virtuais e deliciosos shows musicais presenciais são manifestações políticas efetivas, que resolverão “o problema”, somos apenas animais entretidos por um cenário mentiroso que, com efeito e paliativamente, mantém longe dos olhos a única verdadeira cena do espetáculo do mundo de até então, que deveria ser vivenciado por nós se quisermos que seja revolucionado. E essa ópera dantesca que não enxergamos enquanto vestimos a “esquerdo-fofice” é o sempiterno protagonismo dos interesses opressores das elites, que produzem “non stop” uma realidade social cruel e estrategicamente injusta, versus o antagonismo dos interesses populares, outrossim sempiternamente oprimidos e injustiçados.

“Melancolia de esquerda”, de Benjamim é extremamente útil nesse nosso momento crísico para relembrar-nos de que, nas nossas atuais manifestações políticas, hashtaguicas&ocoolpatórias, a própria revolta que proclamamos contra a “burguesia dominante” tem um dissimulado aspecto pequeno-burguês. A pseudoliberdade em postar hashtags nas redes virtuais e em gritar “Fora Temer” nas ocoolpações, embora minta alguma efetividade e prazer, é o meio melancólico mediante o qual permanecemos aprisionados pela classe dominante. Pior ainda é quando essas práticas esquerdo-fofas melancólicas viram rotina, pois, nas palavras de Benjamin, “estar sujeito à rotina significa sacrificar suas idiossincrasias e abrir mão da capacidade de sentir nojo. Isso torna as pessoas melancólicas”. Sobre a rotina virtual da esquerda brazuka, o ativista do movimento 15M espanhol Javier Toret disse que a esquerda brasileira perdeu as ruas porque é ruim na internet. E pela pouca potência das ocoolpações presenciais, podemos dizer que inclusive na rua ela é ruim…

E melancólicos, isto é, envolvidos com a tristeza e a lembrança do que não mais temos, deixamos de enxergar o que temos agora, melhor dizendo, o que nos têm, qual seja, a luta de classe, aquilo de que não deveríamos nos alienar em hipótese alguma. Hashtags e ocoolpações tem pouquíssimo a ver com a luta de classes, ou quase nada. Na verdade, diria Benjamin, “são a mímica proletária da burguesia decadente. Sua função é gerar cliques, e não partidos; sua função literária é gerar modas, e não escolas; sua função econômica é gerar intermediários, e não produtores”. Para o ensaísta alemão, essa “política revolucionária” é apenas a “conversão de reflexos revolucionários em objetos de distração, de divertimento, rapidamente canalizados para o consumo”, isto é, ao modus operandi que fortalece justamente aqueles contra os quais devemos nos revoltar objetivamente.

Quase cem anos antes de Safatle propor que precisamos mais que tudo fazer uma crítica dos nossos afetos melancólicos, Benjamin já nos propunha a seguinte questão: “o que encontra a ‘elite intelectual’ ao confrontar-se com esse inventário dos seus sentimentos?”. O alemão é cruel ao responder que “eles já foram vendidos, a preço de ocasião”. E aqui, reforço, as ocasiões mais escancaradas nas quais nos vendemos ao inimigo são os precisos momentos em que, postando uma “hashtag-de-ordem” a mais, no imenso mar hashtaguico da contemporaneidade-em-rede-social, ou estando nos shows-dos-nossos-artistas-prediletos-contra-o-golpe, achamos que estamos produzindo alguma revolução. Assim deixamos de ver que, na verdade, estamos consumindo, ao modo de lamber os beiços, a nossa própria servidão. E o que é pior, a mercadoria mais conveniente produzida pelos nossos opressores: a impotência, essencialmente melancólica, muito embora travestida de alegria evolucionária.

“Hoje as pessoas afagam estas formas ocas, com gestos distraídos”, relembra-nos Benjamin, mesmo que o seu hoje não seja o mesmo que o nosso. Ou será que ainda não saímos daquele hoje quase centenário? Observando a população brasileira, golpeada antidemocraticamente indo trabalhar todos os dias e pagando subservientemente os altíssimos e injustos impostos que seus inimigos lhe impõem, e, contra o golpe, apenas postando hashtags cantando boas canções, Benjamin é assustadoramente atual: “nunca ninguém se acomodou tão confortavelmente numa situação tão inconfortável”. E essa comodidade é o sacrifício covarde da verdadeira ação política. Benjamim dizia que a esquerda de seu tempo não estava “à esquerda de uma ou outra corrente, mas simplesmente à esquerda do possível. Porque desde o início não tem outra coisa em mente senão sua autofruição”. Autofruímos nossa esquerdo-fofice, não à esquerda, mas de fato aquém de qualquer possibilidade, e, enquanto isso, sem perceber, transformamos aquilo que deveria ser luta política em objeto de prazer. Só que o verdadeiro prazer, não nos enganemos, é daqueles que seguem golpeando-nos cotidianamente: a classe dominante.

Benjamin, em outro ensaio, chamado “O autor como produtor”, fala da esquerdo-fofice dos teóricos revolucionários de esquerda de sua época “para mostrar que essa tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contrarrevolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor”, que em verdade é o que o proletariado oprimido é. Produzir, e não apenas pensar eventualmente sobre a produção e a exploração, não é o que Max quis dizer nas suas “Teses sobre Feuerbach”, qual seja, que “os filósofos até aqui limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa é modificá-lo”? Enquanto apenas pensamos, diz Benjamin, o que temos é uma “logocracia”, isto é, “o reinado dos intelectuais”. E como até aqui a intelectualidade ainda é privilégio das elites, o investimento no império solitário do logos é a manutenção do velho império burguês, opressor e vendedor de melancolia e impotência.

Não que pensar não seja fundamental. Porém, só o pensamento não basta. No mínimo ele deve produzir pensamento. E por acaso não é isso o que quis dizer o dramaturgo alemão Bertold Brecht ao afirmar que “o decisivo na política não é o pensamento individual, mas sim a arte de pensar na cabeça dos outros”? Slavoj Žižek, recentemente, desdisse a máxima de Marx, sustentando que, hoje em dia, importante mesmo é pensar, apenas pensar, e não agir. Se esse só pensamento ao menos pensar na cabeça dos outros, Brecht não se revirará na sua tumba, pois sua pax aeterna será mantida conquanto o intelectual não abasteça o aparelho de produção sem modificá-lo num sentido socialista. Todavia, para o ensaísta alemão, “o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado, ou escolhido, em função de sua posição no processo produtivo”. E produção, materialmente falando, é ação, não somente pensamento.

Abastecer um aparelho produtivo sem modificá-lo é a aparência revolucionária por excelência. Quanto mais não seja, porque “o aparelho burguês de produção … pode assimilar uma surpreendente quantidade de temas revolucionários, e até mesmo propagá-los, sem colocar seriamente em risco sua própria existência”, diz Benjamin, para quem “isso será verdade enquanto esse aparelho for abastecido por escritores rotineiros [isto é, melancólicos], ainda que socialistas”. A rotina melancólica das nossa hashtags de protesto e ocupações em forma de festivais culturais é a transformação não só do golpe, mas também das velhas exploração e miséria em objeto de fruição estética. Nas palavras de Benjamin, é “abastecer um aparelho produtivo sem modificá-lo”. Em outras, é ser reacionário, e não revolucionário. Um belo exemplo disso é a obra do grande fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que, sob a superfície hipnotizante de seus preto&branco antologizados, cheios de camponeses e garimpeiros miseráveis, faz da miséria humana a mais refinada mercadoria para o consumo burguês.

Mais ainda, Benjamin diria de Salgado que ele “transformou em objeto de consumo a luta contra a miséria”. E como a roda capitalista exploradora funciona melhor com o consumo ininterrupto e crescente, a manutenção da miséria por meio do seu consumo exige a manutenção da própria miséria, não a sua superação. E Benjamin diria a nós que nossas hashtags e ocoolpações outra coisa não são senão “a metamorfose da luta política … em objeto de prazer contemplativo”, melancólico. Novamente, sua função política é gerar cliques, e não partidos, a única organização capaz de revolucionar verdadeiramente a vil realidade. A esquerdo-fofice tupiniquim diante do golpe é a sensação de liberdade aonde ela não existe. A “produção” de hashtags em favor da democracia e de deliciosos shows contra o golpe, diria Benjamin, “não é um instrumento a serviço do produtor, e sim um instrumento contra o produtor”.

Recusando-nos à imediatidade inócua das nossas hashtags e à espetacularidade disfarçadamente hedonista das nossas ocoolpações haverá mais sobriedade àqueles que verdadeiramente querem mudar alguma coisa. Para Benjamin, deveríamos manifestar a  nossa solidariedade com o proletariado do modo mais sóbrio possível. Ao criticar os intelectuais de esquerda de sua época, o ensaísta traz uma boa resposta, dada pelo advogado e filósofo René Maublanc, à pergunta lançada pelo jornal francês Comune à intelectualidade revolucionária da época, qual seja, “Para quem você escreve?”. Essa resposta seria bom que todos os esquerdo-fofos tupiniquins mantivessem viva enquanto retuítam hashtags e vocalizam com seus artistas prediletos nos recreios que chamam de ocupações. A resposta de Maublanc:

“Escrevo quase que exclusivamente para o público burguês. Em primeiro lugar, porque tenho que fazê-lo e, em segundo lugar, porque sou de origem burguesa, de educação burguesa e venho de um meio burguês, e, por isso, tenho uma tendência natural a dirigir-me à classe a que pertenço, que conheço melhor e que posso entender melhor. Mas isso não significa que escrevo para agradar a essa classe, ou para apoiá-la… O proletariado precisa hoje de aliados no campo da burguesia do mesmo modo que no século XVIII a burguesia precisava de aliados no campo feudal. Gostaria de estar entre esses aliados”.

Dessa resposta podemos tirar a seguinte lição: os esquerdo-fofos precisam jogar fora a ilusão de que são a classe oprimida em luta. Não o são! Tanto que podem se dar ao luxo de seguir postando hashtags e cantando às sextas-feiras à noite com seus artistas de estimação mesmo que esses protestos pretensamente revolucionários não tirem do poder aqueles que, intocáveis, oprimem a verdadeira classe oprimida. Os fofo-revolucionários seriam bem mais úteis, e estariam à esquerda de algo real, se assumissem sem disfarce as suas burguesias e as colocassem, como Maublanc, a serviço consciente e efetivo da luta de classes, a verdadeira e inalienável luta do proletariado. Porém, mais sobriamente, como gostaria Benjamin, para quem “a proletarização do intelectual quase nunca faz dele um proletário”.

Usar o tempo e a força física disponíveis para caminhar com professores em greve; segurar cartazes e gritar ao lado de operários nas portas das fábricas; compartilhar presencialmente conhecimento com os bravos estudantes que ocupam suas escolas para que o inimigo não as ocupe; em suma, não deixar os verdadeiros oprimidos sozinhos e em menor número na “rede real” enquanto postamos hashtags em favor deles nas redes virtuais, isso sim é colocar a intelectualidade a serviço da revolução. Permanecer no gabinete, escrevendo manifestos revolucionários, é tão velho quanto a própria opressão que esse manifestos intelectuais pretendem destruir. E isso porque, diz Benjamin, “a luta revolucionária não é entre capitalismo e inteligência, mas entre o capitalismo e o proletariado”. Esquerdo-fofice-mor é achar que a verdadeira luta é a primeira. Tolice alienante, pois ela é a segunda, a luta de classes, que só não resta clara e absolutamente necessária porque gastamos tempo e atenção com hashtags diárias e protestos-shows nas nossas horas livres.

Melancólicos por perderem os direitos de que necessitariam caso fossem a verdadeira classe oprimida, mas que de fato não necessitam por conta dos privilégios ainda envolvidos no elitismo resistentemente inerente à intelectualidade, os nossos intelectuais de esquerda nada mais são que pseudorevolucionários. Por isso a crítica dos afetos de que fala Safatle, pois só ela mostrará que o que com efeito afeta essa intelectualidade de esquerda não é o medo de seguir sendo explorada, coisa que ela nunca foi, mas, covardemente, a angústia de, de algum modo, ser juntada, contragosto seu, à verdadeira classe oprimida. A melancolia das manifestações políticas esquerdo-fofas é pseudomelancólica: é o sentimento de perda de algo que os esquerdo-fofos nunca perderam.

De qualquer modo, não carece que percam algo para se juntarem à luta dos que realmente perdem e perderam sempre, seja com as velhas exploração e miséria, seja com o jovem golpe brasileiro. A privilegiada intelectualidade revolucionaria de esquerda pode contribuir com os desprivilegiados sim. Em primeiro lugar, socializando com eles o privilégio de que sempre dispôs, e, em segundo e mais desafiador lugar, aceitando “ser socializada” na miséria que eles, contragosto deles próprios, sempre estiveram expostos.

 

Brexit: covardia transparente

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A Primeira Guerra Mundial, antes de acontecer, disse o filósofo Henri Bergson, era “ao mesmo tempo provável e impossível”. Depois de eclodida, entretanto, ela se mostrou absolutamente possível; e a sua probabilidade, apenas a limitação das análise conjunturais prévias. Conforme outro filósofo, Slavoj Žižek, “do ponto de vista retroativo o mesmo processo parece inteiramente determinado e necessário, sem abertura para alternativas”.

Com o Brexit é a mesma coisa, muito embora a saída do Reino Unido da União Europeia tenha sido fruto de uma escolha popular, portanto contingente, com a justíssima vitória de 51,9% dos votos. Porém, como disse Žižek, “essa aparência de escolha não deveria nos enganar, pois trata-se da aparência do seu verdadeiro oposto: da ausência de escolha real quanto à estrutura fundamental da sociedade.” Melhor seria se os britânicos tivessem se recusado à escolha, pois, “hoje, a ameaça não é a passividade, mas a pseudoatividade, a ânsia de ‘ser ativo’, de ‘participar’”, coloca o filósofo. E isso porque a elite que realmente decide a realidade precisa da participação popular. Assim, todos se sentem responsabilizados pelas decisões que ela, a elite, toma vertical e despoticamente em benefício exclusivo de si própria.

Na verdade, os súditos do United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland foram escolhidos para “escolher”, em um teatro espetacular é preciso dizer, o que as elites inglesas sorrateiramente já tinham escolhido para si mesmas diante da crise econômica internacional, dos refugiados, do terrorismo, só para citar alguns dos motivos inegáveis. Quanto mais não seja, nas palavras de Žižek, “é assim que cada vez mais funciona a democracia no primeiro mundo, ‘terceirizando’ seu avesso sórdido para outros países”. Nesse tipo de democracia, segue o filósofo, “uma escolha é sempre uma meta-escolha, uma escolha da modalidade da própria escolha”.

Entretanto, mesmo que os interesses das elites não sejam segredo de estado, o mundo estarrece diante do Brexit. Não só porque a União Europeia pode estar diante do início de sua ruína, durante tantos anos “ao mesmo tempo provável e impossível” para repetir Bergson, como também, e mais objetivamente, porque de um dia para o outro o valor da libra esterlina despencou ao seu menor nível desde 1985, levando consigo as bolsas internacionais. E, pergunta Žižek, “haveria prova melhor do caráter não substancial da realidade além da fortuna gigantesca que pode ruir e desaparecer em poucas horas?”

Sem dizer que o próprio Reino Unido também tem com o que se preocupar, afinal, inicia hoje uma experiência com a qual não tem intimidade há 43 anos: manter-se um Estado-nação forte capaz de sustentar o Estado de bem-estar social dos britânicos sem a ajuda da tecnocracia financeira que, em verdade, a União Europeia sempre foi. Para começar, o Banco da Inglaterra se prepara injetar 250 bilhões de libras na economia para dar conta da decisão do plebiscito de 23 de junho de 2016. As elites locais, que administrarão esse montante, não deram tiro no pé…

O que significa concretamente o Brexit para os britânicos, para a Europa, e inclusive para o mundo? Resposta difícil, uma vez que, conforme o matemático e filósofo inglês Brian Rotman, “o significado é algo sempre emprestado do futuro, que confia num pagamento futuro sempre adiado”. E ainda que arriscássemos em vaticinar um significado ao Brexit, mais difícil ainda seria encontrar um sentido para ele, pois, nas palavras de Žižek, “o capitalismo é a primeira ordem socioeconômica que destotaliza o sentido”. A melhor coisa que temos a fazer, portanto, é esperar para ver no que essa mudança resultará.

Das crises mundiais que já têm significado e sentido conhecidos, reduzir fronteiras vem em solução imediata, todavia covarde e desumana, à incontrolável crise migratória internacional que tanto preocupa os países europeus. As palavras do político holandês Geert Wilders, abertamente anti-imigração, deixam isso claro: “Queremos ser donos de nosso próprio país, de nosso dinheiro, nossas fronteiras e nossa política imigratória.” Para dar mais uma volta no parafuso anti-imigração, uma manchete do El País: “Votação a favor do ‘Brexit’ anima os xenófobos europeus”.

Eis o velho e perigosíssimo populismo nacionalista de direita exibindo sua revigorada força. Aqui é preciso ressaltar que foram os mais velhos os que mais votaram pelo Brexit. Parafraseando Žižek, será que não conseguimos ver o germe de um “nazismo 2.0” somente porque ele ainda é transparente, porque vemos através dele sem vê-lo diante de nós? Aqui é bom atentar ao que disse filósofo alemão Thomas Metzinger, que “o grau de transparência fenomenal é inversamente proporcional ao grau introspectivo da disponibilidade de atenção dos estágios de processamento anteriores”.

Baseados nessa ideia, devemos perguntar se o possível ressurgimento de fascismos de Estado –ainda transparentes na cada vez mais naturalizada xenofobia- só é invisível ainda porque não estamos atentos ao seus “estágios de processamento” atuais. Se no antissemitismo, que teve seu apogeu no nazismo, o medo da crise econômica e da degradação moral foram trocados estrategicamente pelo medo do judeu, é de se questionar se no “antiuniãoeuropeísmo” encarnado no Brexit, cujos medos não são muito diferentes, não está a semente ainda oculta de uma “erva daninha genocida” contra os imigrantes e os pobres.

Lacan já disse que uma coisa é a sua melhor máscara. Com os radicais-nacionalismos não é diferente. É isso que devemos deduzir do twitt de Marine Le Pen, política francesa declaradamente contra os imigrantes, imediatamente ao resultado do plebiscito britânico: “A Liberdade venceu”. A coisa por trás da máscara nesse caso é a velha e paradoxal autonomia kantiana: o estabelecimento de um limite firme (o fechamento das fronteiras europeias), que realmente convence ser libertador, porém, no intuito de dar cabo da angústia que é a falta de limites (a abertura irrestrita aos imigrantes, aos pobres etc.).

Verdadeira liberdade é ter capacidade para ver que, como disse Žižek, “cada campo da ‘realidade’ (cada ‘mundo’) é sempre já emoldurado, visto através de uma moldura invisível”. Essas molduras transparentes são produtora de pseudoliberdades. E o Brexit é apenas mais uma dessas molduras, nem tão invisível é verdade, que no entanto consegue mentir a milhões de britânicos que eles estão mais livres. Só que dos estrangeiros, dos pobres, da austeridade fiscal. Em suma, da crísica realidade mundial que eles mesmos coproduzem cotidianamente.

O Brexit, portanto, é a covardia dos britânicos que querem escapar das crises globais que o seu Estado de bem-estar social particular ajuda a produzir. Coragem seria manter-se envolvido com as tragédias mundiais, não reduzir suas fronteiras até que elas fiquem do lado de fora. Žižek lembra que “a tragédia grega, a experiência trágica da vida, assinala a aceitação da lacuna, do fracasso, da derrota, do não fechamento como horizonte único da vida humana, ao passo que a comédia cristã se baseia na certeza de que Deus transcendente garante o final feliz, a superação da lacuna, a reversão do fracasso em triunfo final. Mas a transcendência sempre foi a estratégia cômica e covarde de quem não consegue lidar com a imanência.

Os invisíveis poderes que levaram os britânicos a votarem pela saída do Reino Unido da União Europeia quiseram, entre outras coisas, esconder do povo uma coisa que o filósofo francês Étienne Balibar deixou bem claro, que “o homem é feito pela cidadania, e não a cidadania pelo homem”. Os cidadãos e cidadãs do United Kingdom não serão homens e mulheres melhores nem mais felizes por não fazerem mais parte da European Union. Podem ser mais ricos? Claro que podem, afinal, essa é uma das metas centrais. Todavia, ao altíssimo preço de serem mais fechados, isolados, xenófobos, retrógrados e desumanos.

Žižek coloca que “o Estado-nação não é o verdadeiro instrumento para confrontar a crise dos refugiados, o aquecimento global e outras questões urgentes que se colocam”. O Brexit, portanto, que é a sede radical por um Estado-nação, outra coisa não é que a invisível decisão de se manter as crises das quais, opacamente, os britânicos disseram que querem se afastar. Mantê-las, sim, porém, imediatamente do lado de fora de suas fronteiras. Afinal, na realidade capitalista a crise é sempre muito lucrativa. Basta saber manter certa distância dela. Na dificuldade, recuar; reduzir fronteiras.

Não obstante, segue Žižek, “nossa única esperança é agir em nível transnacional – só assim teremos a chance de fazer frente ao capitalismo global”. A permanência do Reino Unido na União Europeia manteria essa esperança mais viva? Para o filósofo comunista Alain Badiou, não, pois para ele a esperança reside longe desses conglomerados burgueses. Mais especificamente, pasmem, nas favelas. Nas suas palavras, “as favelas são um dos poucos ‘lugares factuais’ autênticos da sociedade atual; os favelados são, literalmente, uma coleção dos que não fazem ‘parte de parte alguma’”.

Algum velho burguês&xenófobo britânico, apólogo do idealista e insustentável isolacionismo, poderia imaginar que as sementes do futuro estão justamente nas favelas das quais aliás ele quer distância absoluta, e não no seu, hoje, mais restrito e aburguesado condomínio/Estado-nação? Claro que não. Por quê? Ora, porque todo idealismo –e o Brexit é o mais espetacular da atualidade- serve apenas para alienar a realidade. Eis a realidade da qual o Reino Unido se alienou ao se afastar mais um pouco do mundo: que o maior problema é justamente a riqueza e a desumanidade que sobra dentro de suas fronteiras cada vez mais reduzidas.

Tecnobarbárie

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Assistir “Eye in the sky” (olho no céu), de 2015, filme inglês que trata de uma operação militar internacional de captura de terroristas no Quênia, é ter a rara oportunidade de ver os pretensos civilizados ocidentais dizerem a si mesmos que são mais bárbaros do que os bárbaros que costumam atacar em nome da “civilização”.

O filme começa com um general inglês em uma loja chique comprando uma boneca para a sua neta. A segunda cena é a de uma menina muçulmana pobre brincando com um bambolê que seu pai acabara de fazer. Brincadeira todavia secreta, autorizada somente dentro dos muros domésticos, pois para os muçulmanos brincar é pecado. No outro canto do quintal, sua mãe, diante de um forno à lenha, assa pães que em seguida serão vendidos pela menina nas vielas da cidade. Trabalhar publicamente pode, brincar não.

Enquanto isso, um drone inglês que sobrevoa a cidadela da África oriental tem sob mira uma outra casa onde estão cinco muçulmanos se preparando para um ataque terrorista em um shopping center de Nairóbi, capital do país. Do outro lado da câmera e dos mísseis “drônicos”, em escritórios confortáveis e seguros locados em Londres e nos Estados Unidos, estão generais, coronéis, tenentes, secretários de estado, e primeiro ministro, todos prontos para autorizar o bombardeio da residência em questão.

Porém, no momento em que o tenente que opera o drone recebe a ordem de iniciar o bombardeio, a menina da abertura do filme monta uma barraquinha para vender os pães feitos pela mãe justamente do outro lado do muro da casa a ser alvejada. O operador, ciente de que a menina será explodida junto com o alvo, recusa-se a lançar o míssil e pede por nova avaliação de risco, uma vez que, agora, nas baixas constará também uma criança que nada tem a ver com o ataque ao grupo terrorista.

Incrédulos, os seus superiores “worldwide” não entendem o drama de consciência do tenente. Alegam que se não bombardearem os terroristas naquele exato momento o ataque que em seguida praticarão matará cerca de oitenta pessoas no shopping center. Poupar a vida de uma criança, portanto, não justificaria a consequente perda de dezenas de outras vidas segundo a lógica civilizada dos ingleses. Os americanos, como era de se esperar, são mais insensíveis ainda, dizendo que se os ingleses declinassem da operação os Estados Unidos os retalhariam.

Entretanto, a lógica sensível do tenente operador do drone é comprada por uma política inglesa envolvida no caso. Porém, por outra razão. Temendo que a notícia da morte de uma criança inocente mobilize negativamente a opinião pública mundial, a política tenta convencer os grandões do poder internacional de que se eles bombardearem os terroristas e a menina morrer, os terroristas vencem. Para ela, seria mais vantajoso os terroristas explodirem o shopping center lotado, pois assim a sensibilização internacional seria contrária aos terroristas, e não aos ingleses e americanos.

Para resolver a situação, a coronel responsável pela avaliação de risco da operação secretamente forja um risco bem menor do que o real, reinformando a todos que a probabilidade de a garota morrer é de apenas 45%. De posse desse novo e falso dado, a casta político-militar chega à conclusão de que vale a pena seguir com o bombardeio. Então, reordenam ao tenente que controla o drone que prossiga. Com lágrimas nos olhos, e ciente de que a garota morrerá, ele aperta o botão. Nos quarenta segundos entre o disparo pelo drone e a explosão da casa terrorista, não só ele, mas todos os militares e políticos do filme fixam seus olhares exclusivamente na menina diante dos pães.

O alvo é explodido espetacularmente. A menina é arremessada para longe junto com escombros do muro que a separava da casa alvejada. A atenção de todos segue sobre a garota ensanguentada e estirada no meio da rua até que os pais dela chegam correndo, desesperados, e se debruçam sobre ela. Só que os militares “civilizados” percebem que um dos bárbaros terroristas ainda estava vivo. Sem pestanejar, e sem darem espaço de manobra ao operador do drone, ordenam que seja lançado mais um míssil, dessa vez sem avaliação de risco algum.

Nova explosão. A menina, que já estava ferida e inconsciente por conta da primeira explosão é atingida novamente, só que dessa vez seus pais também. Já a cúpula político-militar internacional, preocupa-se em confirmar visualmente apenas as mortes dos terroristas. Fora do quadro filmado pelo drone, os aliados locais dos terroristas mortos esvaziam um jipe cheio de armamento para levarem a garota seriamente ferida a um hospital. Não obstante, a garota morre assim que lá chega. Seus pais, outrossim feridos, só podem chorar sem entender o que aconteceu.

No lado civilizado do mundo, mesmo com a vitória técnica da “civilização” contra a “barbárie”, os europeus e americanos não conseguem olhar nos olhos uns dos outros. Resta silenciosamente no ar “civilizado” e refrigerando que os envolve a desconfortável certeza de que eles são mais bárbaros do que os bárbaros que atacaram. O general da abertura do filme deixa seu escritório com a boneca que comprou e segue cabisbaixo para presentear a neta. Encerrando o longa-metragem, a cena da garota brincando alegremente com o seu bambolê secreto horas antes de morrer. Morrer, pública e espetacularmente, pode. Brincar, não.

A “história para inglês ver”, que deliberadamente inverte a arraigada certeza sobre quem são os verdadeiros e mais cruéis bárbaros, mesmo que não tenha vindo às telas para mudar o mundo, tem ao menos a virtude de denunciar que sob os mantos científico, técnico e burocrático a barbárie ocidental ainda consegue mentir para si mesma, e para quase todo o mundo aliás, que é civilização. De acordo com essa lógica mentirosa, matar à distância segura e covarde de um drone é civilizado. Já na intimidade corajosíssima de um colete-bomba, barbaridade.

Morte cerebral mundial

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Imagem: divulgação CBS

Braindead (morte cerebral) é uma série produzida pela americana CBS que começou a ser exibida há duas semanas. Na ficção, um meteoro cai na Rússia, é recolhido do fundo de um lago e é enviado a um laboratório em Washington para análises. Em uma noite, quando nenhum cientista estava por perto, milhares de “formigas” alienígenas saem da rocha e sorrateiramente invadem a capital norte-americana. Os “insetos” entram nos lares, penetram nos ouvidos das pessoas e dominam seus cérebros, alterando e controlando seus atos. Não escapam dessa dominação os grandes políticos nem seus eleitores. Na verdade, as absurdidades que aqueles passam a realizar são passivamente chanceladas por estes. Caos na terra?

Bem, a humanidade nunca precisou nem de ficção nem de alienígenas para criar o caos. Basta olhar para os lados e perguntar se as absurdidades que nos cercam atualmente já não atenderam desde sempre pelo nome de mundo. Por acaso deveríamos nos alarmar com o as desumanidades que estamos assistindo “worldwide  ou apenas assumir que o “american dream”, internacionalmente “broadcasted”, apenas nos alienou dessa vil&alarmante realidade que nunca deixou de estar “out there”?

Aqui vale lembrar o episódio de outra série mundialmente famosa, House of Cards, no qual um terrorista muçulmano diz que eles explodem e explodirão sistematicamente os americanos porque a missão deles é lembra-los de que a vida não é, nunca foi e nunca será esse sonho dourado livre da dor e da miséria que os americanos experimentam alienadamente e a altos custos mundiais. O radicalismo terrorista pode ser condenado por muitos aspectos, obviamente. No entanto, uma virtude ele carrega: a assunção de que o real não pode e não será ser roteirizado indefinidamente conforme as aspirações burguesas ocidentais.

O ocidente poderia perfeitamente dispensar os terroristas islamitas para encarar seu “american nightmare” como obra sua. As vigorosas ascensões fascista e fundamentalista; a xenofobia explicitada pela crise migratória internacional; a devastação da natureza que o nosso consumismo estrutural produz diariamente; sem dizer, no Brasil, do golpe de estado dado pela corrupta oligarquia financeira e, no México, das atuais mortes e desaparecimentos de professores manifestantes; tudo isso é a nossa realidade/pesadelo, produzida e vivida por nós mesmos, sem máscara ficcional ou estrangeira alguma.

Basta atentar às metralhadoras giratórias intolerantes e reacionárias de Donald Trump, nos EUA, e de Jair Bolsonaro, no Brasil, por exemplo. Ambos os bárbaros-políticos desrespeitam fascistamente a alteridade, e o que é pior, arrecadam para si hordas de indivíduos que compram e levam adiante os seus discursos desumanos, demasiadamente desumanos. E contra tais absurdidades o que temos? Infelizmente, impotentes hashtags e lágrimas virtuais em forma de postagens no Facebook e no Twitter. Trumps e Bolsonaros, agindo barbaramente na vida real, devem adorar a oposição virtual que recebem.

Novamente: chegamos a um ponto crísico onde o “mal” pode ser proposto deslavadamente e assistido passivamente, ou o mundo desde sempre foi essa crise? Fomos atacados por espécie de insetos que nos tornaram mais reacionários e passivos, assim como os personagens de Braindead, ou será que, diferente do seriado, essas formigas caóticas somos nós mesmos? Na ficção americana, isto é, dentro do “american dream”, os humanos são apenas as vítimas do mal, que pode vir tanto em forma alienígena, como muçulmana ou comunista, tanto faz. Fora da ficção, todavia, não há ser externo algum a nos obrigar a produzir e a disseminar o mal que vemos por aí todo o dia. Esse mal, desde sempre, é a própria humanidade em seu caótico devir.

Todavia, para nos alienarmos dessa realidade periclitante, muita ficção. Ou o que é o mesmo, muita mentira para transformar alguns de nós em um “outro” culpado pelos problemas de todos. Aí está o muçulmano, o imigrante, o gay, a mulher, o índio, o negro, o pobre, a esquerda, etc. Todos politicamente roteirizados para representarem os alienígenas problemáticos que descem ao mundo para acordar a elite ocidental do seu delicioso, porém insustentável, “american dream”. Se essa elite acordasse, veria claramente que seu inimigo íntimo é ela própria; o inimigo real que produz seus tantos inimigos ficcionais.

Braindead e suas formigas alienígenas fascistas são apenas mais uma tentativa de, mediante ficção, o ocidente seguir se alienando da verdade cada vez mais tácita, qual seja, que seu maior e mais calamitoso problema é ele mesmo, e não seus outros espetaculares. Em resposta a esse mundo de sonhos, pesadelos reais: terrorismo, crise ambiental, imigrantes clandestinos, miséria, etc. Afinal, a barbárie não desaparece sob os alienantes roteiros hollywoodianos. Como o terrorista islamita de House of Cards disse aos americanos, nós, os seus outros malditos, estamos aqui para não deixá-los esquecer do real.

 

A desafiadora revolução socialista tupiniquim

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Mais uma vez, na história do Brasil, nunca estivemos tão longe da revolução socialista, isto é, do início do fim da exploração da maioria dos indivíduos pela minoria. O mote antissocial da vez, obviamente, é o golpe de estado dado pela oligarquia político-econômica tupiniquim. Antidemocraticamente, medidas reacionárias&austeras estão sendo verticalmente aplicadas contra a população para que a colossal riqueza produzida por ninguém menos que essa mesma população siga sustentando confortavelmente os velhos privilégios das minoritárias classes dominantes.

Será que o povo brasileiro não sabe fazer revolução? Ou será simplesmente porque, conforme diz o historiador, filósofo, sociólogo e economista baiano Edmundo Moniz, “Não há um manual da revolução. A revolução é uma tempestade histórica e as tempestades não se repetem igualmente”? Em uma palavra, o brazuka erra quando tenta revolucionar a sua vil realidade ou não sabe experimentar formas revolucionárias? Ou nem sequer tenta? O que há no “clima” brasileiro que mais facilmente repete os furações reacionários do que precipita a “tempestade” revolucionária de que tanto o povo desse país necessita?

Moniz, corroborando com Marx e Trotsky, entende por “revolução a mudança das estruturas sociais que termina com a exploração do homem pelo homem e cria condições históricas para a passagem da sociedade de classes para a sociedade sem classes”. A teoria marxista, entretanto, baseada na particular evolução histórica do velho continente, enxerga a revolução socialista como um interregno estratégico que procede da escravidão, do feudalismo e do capitalismo, necessariamente nessa ordem, e que precede o comunismo, ou seja, o fim da exploração da maioria pela minoria.

Bela teoria que, não obstante, só não tem como vingar no Brasil porque neste país, que nasceu colônia e que cresceu dependente, as formas econômicas não seguiram a ordem da evolução econômica e social europeia. Usando impertinentemente as palavras de Trotsky, o Brasil é “um amálgama de formas arcaicas e modernas”. Com efeito, temos escravidão, feudalismo e capitalismo convivendo, profunda e desarmoniosamente, na realidade econômica brasileira. Pior ainda, a realidade econômica do Brasil foi construída invertendo-se o processo histórico europeu.

Com efeito, foi o capitalismo, mais evidentemente seu credo econômico mercantilista, que trouxe os portugueses ao Brasil. E uma vez conquistada esta terra, o jovem e vigoroso capitalismo português, anacronicamente, implantou o velho e caduco feudalismo na divisão do território em capitanias e sesmarias, que eram “doadas” a administradores mediante relações pessoais com a realeza portuguesa. E mais anacronicamente ainda, para sustentar seu sistema de relações pessoais, os portugueses encravaram a escravidão no âmago do sistema feudal tropical, em uma tácita inversão do que havia acontecido no velho mundo.

Por isso a revolução socialista tupiniquim não tem como vingar conforme dita o ideário velho-mundista. Se quisermos proceder conforme Marx, são necessárias pelo menos duas revoluções efetivas antes do passo socialista, a feudal, que dá cabo da escravidão, e a capitalista, que por sua vez supera o feudalismo. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), durante muitos anos insistiu nessa lógica, sustentando que primeiro deveríamos superar o feudalismo, depois a democracia burguesa, para só então termos condições históricas para a revolução socialista.

No entanto, dada a particularidade da realidade histórica brasileira, não podemos nos dar ao luxo de priorizarmos uma besta econômica por vez. Lutar frontal e exclusivamente contra o velho e resistente feudalismo, ou contra o maduro e vigoroso capitalismo, separadamente, é dar as costas a um inimigo ou outro. Criticamente, é matar um sistema desigualitário e deixar o terreno livre para o outro. Sinuca de bico! Por isso, na Brasilândia, o fim da exploração das massas pelas elites significa lutar simultânea e frontalmente contra um inimigo múltiplo: a escravidão, o feudalismo e o capitalismo.

Para fazer a revolução socialista no Brasil em um único movimento, temos de esquecer a clássica racionalização estrangeira e inventar formas revolucionárias totalmente nossas, que tenham capacidade para superar de uma só vez os muitos passados e vícios que insistem no mui viciado presente brasileiro, e que impedem a virtuose de um futuro igualitário. Como, então, será possível a revolução socialista no Brasil?

Para, Moniz, isso é possível somente com a organização de um verdadeiro partido de massas, de uma vanguarda consciente que esteja disposta a preparar o povo para a República Democrática Socialista. Entretanto, porventura temos no Brasil um partido que represente plenamente os interesses da maioria explorada? Um partido que assuma a vanguarda das transformações sociais? Infelizmente não.

O PCB, embora dono do melhor ideário, está distante léguas de ter oportunidade de ser pragmático. O pragmatismo do Partido dos Trabalhadores (PT), aventurado nos últimos 13 anos, está longe de ser ideal, visto que engordou tanto as feras exploradoras como as presas exploradas.  Em uma palavra, tornou o lobo mais forte e as lebres mais suculentas. Não temos, no Brasil, portanto, partido ou vanguarda capaz de iniciar a revolução, pois não há força política organizada para efetivamente socializar a terra, os meios de produção, os bancos, a mídia; para romper o monopólio do comércio exterior e implantar a planificação da economia nacional.

Enquanto isso, carentes de um pensamento organizado e vanguardista o suficiente capaz de mobilizar as massas no sentido da prática revolucionária efetiva, e sob as vis égides do desenvolvimento e do crescimento econômico, as velhas estruturas exploratórias dominam o país. E o atual golpe de estado brasileiro é o que senão a dominação do passado sobre o presente? Com efeito, a oligarquia política brasileira ainda encontra terreno livre para, mediante o seu atual golpe, representar os interesses do capital internacional por meio do endividamento do povo local.

Por acaso a atual elite golpista não está repetindo o famigerado “milagre brasileiro” da década de 1970, quando, em nome do desenvolvimento, o Brasil tomou emprestado e enfiou goela-abaixo do povo mais de cem bilhões de dólares? Devíamos três bilhões de dólares em 1964, antes do golpe militar. Duas décadas depois, devíamos cem vezes mais, e em dólares inflacionários! Eis a força reacionária atuando livremente no espaço social que o pensamento e a ação revolucionários ainda não ocupam contundentemente. E como não há força organizada para acabar com a crise, a velha estrutura oligárquica segue administrando o Brasil, sua desigualdade estrutural,  e a crise econômica que, em essência, lhe favorece exclusivamente.

Entretanto, para Moniz, o Brasil tem condições econômicas e materiais para o socialismo. Só não tem ainda condições políticas para tal, pois falta-nos um partido verdadeiramente popular que possa assumir o papel de vanguarda, instituindo conscientemente a república democrática socialista. Esse é o grande impasse do Brasil. Enquanto isso, a oligarquia nacional não resolve as crises social política e econômica do país precisamente porque tais crises lhe engordam e fortalecem.

Uma vez que a prática é o cerne de qualquer revolução, não basta apenas uma ideia revolucionária, por mais perfeita que seja. Aí devemos dispensar, senão toda a teoria marxista, ao menos a parte que não coincide com a evolução histórica brasileira. Do velho mundo, contudo, devemos manter a ideia de que é preciso de uma vanguarda política revolucionária capaz de motivar o povo a finalmente impor seus interesses sobre os das classes dominantes. Aí teremos iniciado a verdadeira revolução socialista, e não só pensado nela. Para tanto, relembra-nos Moniz, é preciso que a teoria coincida com a prática e a prática confirme a teoria”.

Todavia, como dito antes, no Brasil formas econômicas e políticas arcaicas e modernas coexistem desde sua colonização até hoje. Numa metáfora de Trotsky, “os selvagens passaram da flecha ao fuzil de um golpe, sem percorrer o caminho que separa no passado estas duas armas”. Ou seja, os colonizadores portugueses na américa não começaram a história pelo princípio”. Coincidir prática e teoria em terras tupiniquins, portanto, é um desafio sui generis que não pode se pautar por ideários e experiências extrínsecos. Nossas teoria e prática revolucionárias devem ser outras que as do velho mundo, pois a nossa história é outra, muito embora historicamente explorada por aquelas.

Do contrário, em outra metáfora, estaríamos obrigando o índio, nu e oprimido, a usar ou um uniforme soviete, ou a cartola da velha e distante intelectualidade europeia. Ou seja, estaríamos representando uma revolução muito mais do que a praticando. E isso porque, segundo Moniz, “ a essencialidade da revolução encontra-se no conteúdo revolucionário de sua própria essencialidade”. A verdade e a efetividade da revolução socialista tupiniquim, por conseguinte, está na essência da realidade histórica brasileira: a coexistência anacrônica de escravidão, feudalismo e capitalismo em função dos interesses das classes dominantes.

No Brasil, todos esses inimigos históricos do povo devem ser superados de um só golpe. Passo bem maior e hercúleo do que o que Marx profetizou há quase um século e meio para a implantação do socialismo contra um único algoz, o capitalismo. Respeitando-se a essência do que se deu historicamente no Brasil é que encontraremos uma teoria, isto é, um pensamento que ponha as massas a praticar a defesa inarredável dos seus interesses, e em detrimento das velhas elites golpistas, que até hoje roubam a realidade para si. E quando essa teoria de vanguarda coincidir com a prática cotidiana do povo brasileiro, a angusta luta por igualdade será uma coloquial igualdade, não mais na luta, mas na existência.

Uma verdadeira ponte para o futuro

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Diante da atual divulgação de alguns dos muitos e velhos esquemas de corrupção entre o Estado e as grandes empreiteiras tupiniquins, que outra coisa não são senão a estrutura criminosa instituída para distribuir propinas astronômicas –leia-se o dinheiro do povo – a uma porção de políticos e empresários não menos corrompidos, fica cada vez mais difícil engolir a mentira de que o Estado está aí para servir o povo. Aliás, o que vemos hoje com o golpe de estado dado pelo PMDB e pelo PSDB é justamente a proteção e a manutenção espetacular dessa estrutura político-econômica corrompida.

E os golpistas ainda têm a desfaçatez de chamar o golpe que deram na democracia brasileira de “Ponte para o futuro”. Só mesmo muita alienação para não ver que essa “ponte”, na verdade, é um tobogã oligárquico, imposto de modo antidemocrático, para retrazer sistematicamente os vícios do passado ao presente, uma vez que o passado viciado é precisamente o espaço de mobilidade excelente das oligarquias.

Entretanto, nem tudo está perdido. O povo, esse corpo manipulado e vilipendiado pelo Estado e sua corja corrupta, deu um belo exemplo de como a realidade pode funcionar melhor sem a intervenção e a exploração estatais. No Rio de Janeiro, mais especificamente na cidade de Barra Mansa, a população não só idealizou, como também realizou o que devemos chamar de uma verdadeira Ponte para o futuro.

Os moradores barra-mensenses dos bairros de São Luiz e Nova Esperança, há duas décadas solicitando a construção de uma ponte que ligasse os dois bairros, sem no entanto serem atendidos, juntaram dinheiro eles mesmos para que sua ponte finalmente fosse erguida. A imagem que ilustra este texto é a da ponte em questão. Mas o que é realmente impressionante nesse ato popular é que a estrutura, que de acordo com o Estado custaria R$270 mil, nas mãos do povo saiu pela bagatela de R$5 mil.

Importantíssimo aqui é frisar que o custo da ponte orçada pelo Estado ficaria 5.400% mais cara do que a realizada pelos moradores de Barra Mansa. E esse astronômico superfaturamento estatal outra coisa não diz do custo, ao povo, que é a manutenção do velho esquema corrupto entre Estado e empreiteiras. No exemplo fluminense, se a ponte real custou 5 mil, temos que, dos 270 mil orçados pelo Estado, 265 mil servem apenas a interesses não populares. Não precisaríamos nem das atuais crises econômica e política para lançar a seguinte pergunta: não viveríamos melhor sem a descarada exploração do Estado?

Não podemos deixar de lembrar da ciclovia carioca que se projetava sobre o mar da praia de São Conrado e que recentemente desabou, pasmem, três meses depois de sua inauguração. A estrutura em forma de ponte, mesmo tendo custado ao povo R$44 milhões, não atendeu à população. Muito pelo contrário, dois dos cidadãos que pagaram por ela morreram na tragédia. E aplicando o superfaturamento estatal da ponte de Barra Mansa à ciclovia da capital, o custo real da estrutura estaria por volta de 800 mil. O que significaria que mais de 43 milhões seriam tirados do povo para engordar os bolsos oligárquicos de meia dúzia de políticos e empreiteiros.

Só que o caso da ciclovia carioca é mais cruel justamente porque não se trata apenas de superfaturamento, mas de um roubo de estado cuja cereja-podre-do-bolo foi um duplo assassinato. Os moradores barra-mansenses, nas mãos do Estado, ficaram vinte anos sem poder atravessar o córrego que separa os dois bairros. Já os cidadãos cariocas mortos no desabamento da ciclovia, esse nada mais tem a esperar nem receber do Estado. E não é demais dizer que o partido político que administra tanto a capital quanto o Estado do Rio de Janeiro é o mesmo do golpe de estado brasileiro: o PMDB

E é esse o tipo de ponte que os golpistas da “Ponte para o futuro” ou não dão à população -o caso de Barra Mansa -, ou, se dão, o fazem da pior maneira possível –o caso da ciclovia carioca -, isto é, embolsando criminosamente 98% do valor total, jogando no lixo os 2% reais usados na sua construção, e ainda por cima colocando as vidas dos que pagaram pelo montante superfaturado em risco. Novamente, para que precisamos de um Estado como esse?

Contra os crimes e a ineficiência do Estado na administração dos interesses do povo, temos, por exemplo, o Orçamento Participativo (OP), mecanismo governamental de democracia participativa que permite aos cidadãos influenciar ou decidir sobre os orçamentos públicos, retirando-se assim o poder de uma elite burocrática e repassando-o diretamente para a sociedade. Política virtuosa, o OP foi adotado por várias cidades brasileiras. Sua origem, porém, foi em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 1983, com o prefeito Bernardo de Souza, paradoxalmente também do PMDB -que eu tive o estranho prazer de conhecer pessoalmente apenas no seu enterro, em 2010.

Entretanto, a cada vez mais evidenciada corrupção da estrutura política brasileira talvez exija um passo popular mais drástico que o OP. Em vez de a população decidir a partir dos orçamentos estabelecidos pelo Estado, todos tacitamente superfaturados pela ganância oligárquica, melhor seria se cada indivíduo não mais deixasse a riqueza que produz sob administração a priori do Estado para só a posteriori decidir, junto com seus pares, o que fazer com essa riqueza. Algo como não esperar ser assaltado para só então solicitar justiça e ressarcimento, mas, de princípio, não dar o ouro ao ladrão.

Anarquia? Do ponto de vista do Estado, certamente. Mas não nos esqueçamos do que disse Marx, que o Estado moderno não é senão um comitê administrativo dos negócios da classe burguesa. Da perspectiva do povo, o fim do Estado, ou o que é o mesmo, o fim da ditadura das elites, seria a oportunidade de a população gerir-se a si mesma, sem precisar da estrutura política, corrompidíssima, que está em pé unicamente para defender os interesses de um minoria historicamente favorecida.

A ponte barra-mansense porventura não é um monumento anárquico? Em parte sim, mas não totalmente, afinal, aqueles cidadãos ainda seguem pagando os não menos superfaturados impostos cobrados pelo Estado para, entre outras explorações, deixá-los duas décadas sem a ponte de que tanto careciam. Se não mais alimentassem o Estado usurpador com a riqueza que produzem coletiva e cotidianamente, e usassem-na eles mesmos na resolução de suas necessidades imediatas, suas vidas seriam mais prontamente e menos superfaturadamente beneficiadas.

Anarquia virtuosa é o desabamento, não das pontes populares obviamente, como a barra-mansense, que se mostrou mais viável, sólida e barata dos que as produzidas pelo Estado, mas das velhas e oligárquicas “Pontes para o futuro” estatais, que não se levantam contra o povo somente durante os golpes de estado, como o atual  brasileiro, mas, muito mais perniciosamente, no dia-a-dia dessa besta burguesa e corrupta que é o Estado em si mesmo.

 

Servidão informacional e a cifra de sua revolução

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A informação na contemporaneidade tem seus céu e inferno na falta de limites. Em primeiro lugar, devido à tecnologia computacional e ao advento da internet que, juntos, permitem que se produza, divulgue e acesse montantes astronômicos de informação, à distância de um clique, bastando apenas uma conexão com a World Wide Web, isto é, a rede. O céu informacional contemporâneo é justamente a democratização da informação aberta pelo mundo da internet. O inferno, em contrapartida, é que tamanha abertura permite que ideologias totalizantes se valham dessa aventurosa horizontalidade democrática para alcançar, ao mesmo tempo e contundentemente, indivíduos do mundo inteiro. Uma boa metáfora para isso é o soldado que, no campo de batalha e de posse de uma metralhadora giratória potentíssima, tem poder para atingir todos a sua volta. Dessa metáfora devemos guardar que, dependendo da munição que é disparada pela potencialidade da comunicação na contemporaneidade internética, podemos conquistar a tão necessária liberdade tanto quanto sermos sujeitados verticalmente à servidão informacional.

Em A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade, Manuel Castells discorre sobre essa ambiguidade inerente às tecnologias da Era da Informação. De um lado, tratando do ideal de liberdade na democratização da informação. De outro, falando do atravessamento de tecnologias de controle -comerciais e governamentais- no sentido vigiar, investigar e identificar todos os terminais envolvidos nessa interconexão democrática. A Galáxia da Internet do sociólogo espanhol refere-se a A Galáxia de Gutenberg, obra em que Herbert Marshall McLuhan, um destacado educador, intelectual, filósofo e teórico da comunicação canadense, conhecido por vislumbrar a Internet quase trinta anos antes de ser inventada, responsável pela célebre máxima: “o meio é a mensagem”. McLuhan dizia que a prensa, na verdade a imprensa, revolucionou o mundo e a comunicação. Castells, por sua vez, e mediante sua referência ao pensamento do canadense, pretende apontar que a Internet é a nova prensa, a nova forma da revolução informacional na contemporaneidade.

Para tanto, Castells investe na análise das interações entre Internet, economia e sociedade que revolucionaram o velho conceito inerente às sociedades, qual seja, a vida em rede. Para o sociólogo, a Internet tem o poder de transformar o conceito de rede, essa antiga e essencial ferramenta de organização humana, seja em um modelo centralizado, vertical e de controle, seja em uma plataforma descentralizada, horizontal e flexível. A ambiguidade da internet e da informabilia que a constitui é tácita ao percebermos que, em rede, tanto se pode manipular as massas –e portanto e a priori cada indivíduo- com doses certeiras de informação a serviço do reacionarismo, quanto abrir um horizonte no qual os indivíduos/usuários podem revolucionar inclusive a proposta inicial em função da qual a própria internet foi criada.

Castells aponta que a livre troca de arquivos tipo MP3 e MP4, que aliena as grandes indústrias fonográfica e cinematográfica da produção, da distribuição e do consumo maciço de música e filmes; a panfletagem política e contracultural ilimitada; bem como a ágora de cultura e de entretenimento que se abre com a proliferação de revistas e jogos on-line, são provas de que os usuários podem fazer da rede -que não existe sem eles- algo que lhes convenha absolutamente. No entanto, é preciso apenas observar, quiçá vencer os poderes totalizantes que ao mesmo tempo e mediante a mesma rede tentam fazer dessa intercomunicação assaz democratizada e de todos os seus terminais/usuários massa de manobra subserviente aos seus interesses.

Em relação a esse inimigo a ser vencido, que com todos os bits tenta fazer da democratização da informação uma ferramenta tirânica sua, vale trazer à discussão a análise que o filósofo Gilles Deleuze fez da diferenciação foulcaultiana entre as sociedades disciplinares e as de controle, ambas tentativas de alcançar os indivíduos que compõe a sociedade. Conforme Deleuze em POST-SCRIPTUM – sobre as sociedades de controle, Foucault situa as sociedades disciplinares desde os séculos XVIII e XIX, cujo apogeu, entretanto, se deu no início do século XX. O que é importante saber dessas sociedades disciplinares é que nelas os indivíduos não cessam de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis inexpugnáveis: a família, escola, a caserna, a fábrica, o hospital, a prisão, e assim por diante. Disciplinados&Confinados, desde a maternidade até o cemitério seria o slogan perfeito para esse tipo de sociedade.

Porém, ressaltam os dois filósofos franceses, a partir do início do século XX, o mundo observa a crise generalizada de todos os meios de confinamento. Em outras palavras, a prisão, a fábrica, a escola, e até mesmo a família passaram a ser “espaços” cujo confinamento, no entanto, viabilizava não a disciplina, mas o seu contraexercício. Esses claustros disciplinares passaram a se comportar como bunkers de resistência que permitiam o exercício da indisciplinaridade. Aqui, basta imaginar um sujeito conectado ao mundo pelo seu smartphone  dentro de um desses espaços das sociedades disciplinares. Como seria controlado se, de fato, ele não está ali, ainda que virtualmente fora dali? A crise das instituições disciplinares tradicionais, portanto, deveria ser superada pela implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. E para Foucault as sociedades de controle foram instituídas para evitar que os indivíduos gozassem plenamente de liberdade. Com efeito, coloca Deleuze, as sociedades de controle substituíram as sociedades disciplinares. Para o filósofo, Foucault identifica o futuro à formas ultrarápidas de controle, não mais claustronômicas, mas agorísticas, capazes de se darem ao ar livre, e por que não dizer wireless, em substituição à antiga disciplinaridade que operava mediante sistemas materiais e fechados.

Com Deleuze podemos perceber que a cada uma destas duas sociedades –a disciplinar e a controladora- corresponde certos tipos de ferramental, instrumento, aparato, maquinário para cumprir seus fins. Não que as máquinas, os aparatos em si mesmos, sejam determinantes, aponta o francês, mas porque são as expressões genuínas das formas sociais capazes de lhes dar nascimento e utilizá-los. A disciplina e o controle são a priori ideológicos. Todavia, imediatamente maquínicos.

As antigas sociedades aplicavam suas soberanias mediante máquinas simples movidas a alavancas, roldanas, cordas. A forca e a espada, em suma, o cadafalso espetacular dos príncipes, bem evidenciado por Foucault em Vigiar e Punir, são exemplos dessa simplicidade instrumental, todavia eficientíssima, nas mãos do poder totalizante. Já as sociedades disciplinares que as sucederam exerciam soberania através de equipamentos menos espetaculares, outrossim suficientemente eficientes,  como a rígida organização dos espaços nos quais os indivíduos todos passavam as suas vidas. Aqui temos o panopticismo disfarçado de escola, de prisão, de igreja e até mesmo de família: equipamentos que tiraram os indivíduos da inobservância pré-punitiva da Era Cadafálsica Principesca para então alocá-los em um sistema de vigilância disciplinar indoor cujo Calcanhar de Aquiles, entretanto, era o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem.

Daí a crise das sociedades de vigilância disciplinar da qual falam os filósofos, e a qual gerou a necessidade que uma nova forma de dominação coletiva: a sociedade de controle. Com efeito, as sociedades de controle se valem de máquinas de uma terceira espécie: máquinas de informática; computadores; a rede em si; cujos calcanhares de fragilidade, todavia, são dois. Passivo: a interferência constante e o registro a priori de todas as atividades -virtuais e reais- dos indivíduos/usuários, o que os vulneralibiliza para qualquer observância e punição a posteriori. E ativo: a pirataria, a introdução de vírus e o hackeamento intempestivo.

Aqui é preciso colocar que a ação das sociedades de controle sobre os indivíduos que a compõem se dá de modo mais efetivo do que nas sociedades disciplinares, e mais ainda que nas punitivas-cadafálsicas, porque o maquinário, o aparato totalizante-controlador é mais obscuro aos terminais individuais. Paradoxalmente, mais obscuros e mais transparentes ao mesmo tempo. Cordas, roldanas, espadas, salas de aula, celas prisionais e torres de vigilância são estruturas de fácil visualização e compreensão. De inimigos físicos/corpóreos podemos fugir mais facilmente. Já de um algoz que virtualiza-se e age mediante trincheira informacionais apenas, fica bem mais difícil escapar, quiçá reconhecê-lo. Ainda mais em uma sociedade para a qual a informação é a um só tempo o chão físico e o éter metafísico que o encima. Eis a contemporaneidade.

Para dar corpo a essa invisibilidade estratégica dos aparatos totalizadores da sociedade de controle é de muita ajuda transcorrer as ideias que Vilén Flusser traz na sua obra Filosofia da caixa preta. Nesta obra temos a análise da informação em forma de imagem, exemplificada centralmente com a fotografia, cuja ideia chave, entretanto, é a da imagem técnica –em contraposição à imagem artística-artesanal-, e cujo aparato é a máquina fotográfica, instrumento que, mesmo desconhecida a sua maquinagem, gera o real que consumimos –imageticamente. Para Flusser, até mesmo o fotógrafo, que domina o aparelho –a máquina fotográfica- na verdade conhece apenas o input e o output dessa caixa preta. Resultado: tanto os produtores quanto os consumidores desse mundo imagem técnica desconhecem o que se passa no interior da caixa preta, do aparato, da máquina central da sociedade de controle contemporânea.

Embora Flusser ressalte que as imagens são mediações entre homem e o mundo, com o propósito de representar esse mundo, as imagens técnicas –produzidas pelas caixas pretas- são janelas e não imagens. O observador-usuário, em vez de enxergar nas imagens técnicas as janelas imagéticas que denotam o aparato misterioso que as produz, bem como as suas pretensões totalizantes, em vez disso trata o real enquanto aquilo que seus olhos veem apenas, como se o que é visto fosse a realidade última, e não o sistema social de controle agindo através dessas imagens. As imagens técnicas, a qualidade e democratização que elas envolvem, têm o poder de fazê-las passar pelo real ele mesmo, fazendo-nos esquecer de que são apenas aparelhos ideológicos fortíssimos. Por isso, salienta o filósofo, “o que vemos ao contemplar as imagens técnicas não é ‘o mundo’, mas determinados conceitos relativos ao mundo”, conceitos esses já ideologizados, instrumentalizados para manter todos os que o observam imageticamente sob controle total; caixapretificados.

Flusser é categórico ao afirmar que a tarefa primordial das imagens técnicas é estabelecer o código geral que reunifique a cultura, que arranque os objetos da natureza e os aproxime dos homens. No entanto, mediante imagens técnicas produzidas por caixas pretas, essa aproximação significa a modificação estratégica de tais objetos. A ponto de, diz o filósofo, a fotografia passar a ser a realidade ela mesma. A um só tempo a desobjetificação dos objetos e a estratégica objetificação de significações que servem ao sistema de controle social. Ademais, tal inversão do vetor da significação caracteriza o mundo pós-industrial, arremata o autor tcheco.

E se na contemporaneidade é a fotografia do real o real ele mesmo, temos que, fiéis a Flusser, a decadência do objeto é a emergência da informação acerca dele. Pragmaticamente: pensamos e vivemos como as imagens técnicas –produzidas sabe-se lá como e por quem. As imagens técnicas pensam por nós; vivem em nós; são o mundo no qual vivemos. Resultado: somos vítimas da caixapretice aparelhística produtora de símbolos de controle. Mas, o filósofo não nos deixa esquecer: “a aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas quanto o são todas as imagens”. Dessimbolizá-las, reificá-las, decifrá-las, portanto, é reconstituir o real que tais imagens significam verdadeiramente. Esse real a ser decifrado, porém, é muito menos os objetos em si que as imagens técnicas representam do que a ideologia de controle por trás dessas representações técnicas do real, justamente o que permanece caixapretificado.

Em um mundo no qual o próprio real outra coisa não é senão as imagens técnicas que o traduzem e reportam massivamente, o real a ser dessimbolizado é justamente a intencionalidade oculta na eleição dos objetos que vivem nas imagens técnicas –que, de um ponto de vista marxista, é o velho fetiche da mercadoria-; os enquadramentos desses objetos nessas imagens técnicas –os rígidos pontos-de-vista que esse fetichismo imagético do real impõe-; e sobretudo a reprodução ao infinito e a distribuição em rede desses produtos técnicos ideologizados e essencialmente caixapretificados. “Toda crítica da imagem técnica deve visar o branqueamento dessa caixa”, indica Flusser.

Para relacionar Flusser à Castells sem muita delonga, uma importante colocação do primeiro: “programaticamente, aparelhisticamente, imageticamente … estamos pensando do modo pelo qual ‘pensam’ os computadores”. E para não deixar Deleuze e Foucault de fora dessa relação, cabe dizer que pensamos e vivemos conforme a nova noção de rede porque a sociedade de controle precisa que assim seja. Aqui vale apontar o alinhamento entre o tcheco e os dois franceses. Se para aquele “a cultura da Internet é a cultura de seus criadores”, é porque, para estes, a internet é o corpo que controla as sociedades contemporâneas. A rede informacional contemporânea, portanto, seria a própria sociedade de controle em forma de realidade, em forma de mundo, de imagem técnica indecifrabilíssima. A caixa-preta-mor, diga-se de passagem. Ou, dizendo melhor com as palavras de Flusser, “complexo de aparelhos, de caixa preta composta de caixas pretas”.

Agora, se, como colocou o pensador tcheco, a tarefa da filosofia da fotografia é apontar o caminho da liberdade em relação às imagens técnicas e à caixapretice do real ideologicamente imageticizado, pois, para Flusser, essa filosofia é a única revolução ainda possível -e urgentíssima!-, podemos dizer, em uma paráfrase, que a tarefa da filosofia da informação é fazer o mesmo, isto é: apontar o caminho da liberdade em relação à caixapretificação da produção e da distribuição da informação, outrossim produto ideológico das sociedades de controle, pois, para essa filosofia da informação, esse é o único movimento verdadeiramente revolucionário, e não mesmos urgente. Como, então, baseados na teoria de Flusser e nos apontamentos de Castells, Deleuze e Foucault, tal filosofia revolucionária é possível, ademais a partir de dentro da sociedade de controle informacional?

A primeira coisa a atentar é que, seguindo a ideia de Flusser, é o homem, e somente ele que pode produzir informação, bem como transmiti-la e guardá-la. E se são os próprios homens que são vitimados pela informação mediada pela sociedade de controle, é porque eles mesmos oferecem munição ao seu algoz. Assim como disse Étienne de La Boétie, qual seja, que os mil olhos e mil braços do tirano não são instrumentos que de fato sejam dele, visto que ele é um homem como qualquer outro, com dois olhos e dois braços apenas, mas são os mil braços e mil olhos dos que são tiranizados por ele, sequer é necessário os tiranizados irem até o forte do tirano para matá-lo. Basta que não mais doem seus braços e olhos, afinal, a arma com a qual a sociedade de controle nos mantém cativos dos seus desígnios e aparelhos, isto é, a informação, é produzida por nós, homens. Somos nós que produzimos as condições para a nossa própria servidão informacional: a informação, os aparelhos e as imagens técnicas com os quais somos subjugados.

Castells, entretanto, nos diz que as novas formas de interação social na Era da Internet têm poder para substituir as comunidades estabelecidas estrategicamente pelas sociedades de controle por comunidades baseadas em afinidades alheias a desígnios ideológicos extrínsecos. Cabe aqui trazer o anarquismo impertinente de Hakim Bey que constitui o seu conceito de TAZ (zona autônoma temporária). Mesmo que a sociedade de controle informacional seja A Zona de Dominação Absoluta na contemporaneidade, dentro dela essas redes sociais baseadas em afinidades alheias a desígnios ideológicos extrínsecos podem funcionar como  TAZes, dentro do inimigo. Senão matando-o, ao menos reduzindo, ainda que efemeramente, sua onipotência.

Para tanto, aponta Castells, é fundamental que a arquitetura de interconexões seja ilimitada, descentralizada, distribuída e multidirecional em sua interatividade; que todos os protocolos de comunicação e suas implementações sejam abertos, distribuídos e suscetíveis de modificação. Claro, não devemos esperar que a própria sociedade de controle faça isso pelos controlados. São estes que, anárquica e coletivamente, devem abrir suas TAZes informacionais impertinentes no cerne da TAZ Totalitária. Afinal, onde há uma zona autônoma, ainda que temporária, na qual a sociedade de controle informacional não pode nem sacar nem incutir informações, tampouco verificar as que estão sendo trocadas lá, há o enfraquecimento do sistema de controle da sociedade contemporânea. Fundamental todavia, é que essa máquina, esse aparato, esse instrumento revolucionário que é a TAZ seja tão caixapretificada à sociedade de controle quanto essa mesma sociedade o é para os indivíduos que ela, por sua vez, controla opacamente. Usar a arma do inimigo contra ele mesmo! Esse é o passo mais econômico para a revolução.

Nesse sentido, o que podemos tirar de Castells é a proposta de redefinição do conceito de comunidade, baseada não mais nos ordenamentos ditados pelos sistemas de controle, mas no apoio aos próprios indivíduos tiranizados por tal ditadura e aos laços informacionais que eles podem travar entre si, a despeito da sociedade de controle que primeiramente os uniu/enclausurou inexoravelmente em torno da informação com o propósito exclusivo de controlá-los. Para o espanhol, o novo padrão de sociabilidade deve ser caracterizado pelo paradoxal individualismo em rede. Esta deve ser a nova forma dominante de sociabilidade contra a dominação das sociedades de controle informacionais. Para o autor, essa revolução pode se dar mediante a cooperação entre leis, tribunais, opinião pública, mídia, responsabilidade coorporativa, agências políticas, e, sobretudo, a partir da restauração da confiança recíproca entre os próprios indivíduos e, universalmente, entre os povos e seus governos. E para Castells isso é possível porque dependem exclusivamente da ação humana.

Deleuze reforça essa revolução dizendo que não devemos desistir porque estamos diante de uma sociedade –de controle- mais opaca que outras –a disciplinar, por exemplo. O francês coloca que em cada uma delas se pode enfrentar as sujeições e construir a liberdade. Portanto, nas palavras de Deleuze, “não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”.

Que armas, todavia, são essas? Ora, se as sociedades disciplinares se estruturavam na assinatura e na localização do indivíduo em uma massa, e nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura nem um número, mas uma cifra, isto é, uma senha, nossas armas contra o controle informacional é, retrazendo Bey à discussão, estabelecermos TAZes cifradas que possibilitem o acesso dos indivíduos anarquistas informacionais à informação que eles criam e que habitam suas TAZes. Contudo, mais importante de tudo, que rejeitem, que vetem, que cifrem o acesso do controle externo sempre que ele tentar adentrá-las. Se nas sociedades de controle das quais queremos nos ver livres os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, nas sociedades revolucionadas pós-controle as TAZes informacionais devem ser indivisíveis, porque caixapfetificadas estrategicamente àqueles que querem tirar delas apenas amostras para dadificá-las. Por quê? Por que dentro da TAZ, assim como dentro da sociedade, é a vida que habita, e é ela que importa e que não pode ser reduzida. Aqui é fundamental saber o que realmente importa e o que é primeiro no conceito “vida em rede”. Vida, obviamente.

Para concluir, a revolução das sociedades de controle começa pela percepção de que, nas palavras de Flusser, “o que vale não é determinado ponto de vista, mas um número máximo de pontos de vista”. Como então instituir essa plurivocidade de perspectivas no cerne das monológicas sociedades de controle? Fixando-nos na metáfora da fotografia que perpassa a Filosofia da caixa preta, contra essa sociedades de controle foucaultianas,  que outra coisa não querem senão fazer do real propriedade sua, a frase do pensador tcheco: “a distribuição da fotografia ilustra, pois, a decadência do conceito propriedade”. Afinal, ainda nas palavras do autor, “a práxis fotográfica é contrária a toda ideologia; ideologia é agarrar-se a um único ponto de vista, e o fotógrafo age pós ideologicamente”, ou seja, para além da ideologia que o quer controlar. Em suma, quanto mais houver indivíduos fotografando, tanto mais o sistema que quer dominá-lo será incapaz de decifrar o mundo de fotografias que eles produzem para si.

Se, como disse Flusser, “fotografias nos cercam”, porém, “toda fotografia individual é uma pedrinha de mosaico”, a Big Picture da realidade outra coisa não deve ser além do resultado mosaico das fotografias do real que cada indivíduo faz. Todavia, se essas imagens-informações que somente nós, homens, trazemos ao mundo, com as quais aliás as sociedades de controle nos dominam, não forem cifradas à essa mesma sociedade tirânica, ela fará, obviamente, com que o real seja ou o recorte, ou a rediagramação desse material que imanentemente produzimos.

Hipostasiando  o que disse La Boétie, que os mil braços e mil olhos do tirano são os braços e olhos dos seus mil súditos, com Flusser podemos dizer que as mil imagens técnicas do sistema de dominação são as mil imagens individuais de cada um dos dominados; com Castells, que os  mil nós da Galáxia da Internet Total são os mil usuários/terminais dessa mesma rede internética; e, por fim, com Deleuze e Foucault, que as mil informações com as quais as sociedades de controle subjugam seus mil controlados são as informações produzidas, mais ainda, encarnadas, imanentemente, por esse mil controlados. Basta, portanto, atendendo ao conselho de La Boétie: não darmos ao tirano nossos braços e olhos, melhor dizendo, nossos nós na rede da internet, nossas imagens individuais, nossas informações. Em uma palavra, devemos cifrar-nos contra os sistemas que tentam nos controlar. Já entre os “anarquistas” beyanos libertos do controle externo no interior seguro de suas TAZes impertinentes, código aberto e infinito, pois assim deve ser a vida.

Defendendo nossos próprios algozes

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A democracia brasileira foi golpeada. O Estado brasileiro foi furtado. E o que é pior, por um bando de oligarcas corruptos que só fazem desgovernar o país. Apesar do calamitoso desgoverno golpista, o povo, golpeado e furtado, segue trabalhando, pagando suas contas, dando aulas nas escolas e universidades, dirigindo ônibus e metrôs, ou seja, tocando o Brasil. Agora, imaginemos que se não houvesse esse deliberado desgoverno golpista, isto é, se essa corja corrupta que só visa seus interesses opressores e minoritários não estivesse no comando do país, quão melhor seria o Brasil nas mãos dos brasileiros? Indo mais longe, se desinvestíssemos completamente da própria democracia e do Estado, quão menos oprimidos estaríamos?

A população brasileira que reclama por “sua democracia” golpeada e por “seu Estado”  assaltado age mais por ignorância do que por conhecimento do que, em essência, são a democracia e o Estado modernos. Se entendesse que ambas as instituições são instrumentos excelentes e históricos da burguesia e para a burguesia, e intempestivamente deixasse de clamar pela restauração dessa democracia e desse Estado, certamente enfraqueceria os seus algozes no que eles têm de mais estratégico.

Como, por conseguinte, tornar tácito que o Estado, na sociedade capitalista, assegura apenas o lucro e a acumulação do capital nas mãos da burguesia? Como entender definitivamente que a democracia é a forma através da qual todos são convencidos a lutar pelos interesses de uma minoria empoderada? Por que ainda fazermos questão de nos alienar do fato de que a burguesia não é democrática altruisticamente; que somente investe na democracia enquanto lhe é conveniente? Porventura o golpe tupiniquim não deixa isso escancaradamente claro a todos?

Parece que ainda não, visto as defesas da democracia e do Estado cada vez mais presentes nas ruas do Brasil depois do golpe. Entretanto, se déssemos ouvido ao que disse Marx, por exemplo, que o Estado moderno não é senão um comitê administrativo dos negócios da classe burguesa, ou mesmo ao que sugeriu Lenin posteriormente, que, para a burguesia, a democracia é apenas a melhor máscara para a sua sempiterna tirania econômica, certamente não teríamos tantos clamores populares em favor desses opressores Estado e democracia burgueses.

Por que então ainda protestamos massivamente em favor de instituições que outra coisa não fazem senão institucionalizar a exploração da maioria em função dos interesses da minoria? Alienação é a melhor resposta. De que outra forma estaríamos tão eficazmente ignorantes do fato de que Estado significa ditadura; de que a democracia representativa que defendemos é a ditadura da burguesia; de que somos tão subjugados aos interesses burgueses quanto as sociedades feudal e escravocrata eram em relação aos interesses dos nobres e dos escravagistas, respectivamente?

A democracia representativa e o Estado moderno, obras primas da burguesia, servem apenas para administrar a crise permanente que é o capitalismo, sua essência. É necessário muita alienação para não ver que, democraticamente e instituído em Estado, o capitalismo primitivo da livre concorrência cresceu em forma de capitalismo monopolista; para então engordar e se tornar capitalismo monopolista de Estado; e, por fim, hoje em dia, viver em um corpo praticamente invencível chamado capitalismo monopolista de Estado transnacional? Ignorando as verdadeiras essências das instituições burguesas, clamando por democracia e defendendo o Estado, o povo só faz vitaminar o seus atuais opressores: a burguesia e o seu capitalismo.

Como agir diferente? Parece-nos radical demais fazer como os anarquistas, isto é, ser contra a existência do Estado, uma vez que, para eles, o Estado é o instrumento de opressão? E se entendêssemos que o Estado surgiu da divisão da sociedade em classes; que só com a extinção do Estado as pessoas não mais estarão cindidas da riqueza que elas mesmas produzem coletivamente; ser anarquista ainda assim pareceria tão impertinente? Um futuro livre da exploração do homem pelo homem, que deixe tanto os passados escravocrata e feudal quanto o presente capitalista para trás, exige que desinvestamos absolutamente das instituições exploratórias desse nosso presente, quais sejam, a democracia e do Estado. Só assim deixaremos de vez a nossa pré-história social.

Quais são, portanto, as nossas melhores armas contra a exploração do homem pelo o homem que até aqui fez a história da humanidade, e que hoje, nas vestes democráticas e no corpo do Estado, segue firme e forte? Pensar e agir, por certo. Todavia, há que se pensar e agir conjuntamente. Do contrário, sem perceber, não mais pensamos e apenas agimos de acordo com a cartilha dos nossos tiranos alienadores. Aqui é inevitável lembrar do que disse Marx nas suas Teses sobre Feuerbach, que “os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo de diversas formas, mas agora o que importa é transformá-lo”. Como pode o pensamento, melhor dizendo, a teoria, colaborar a prática revolucionária?

“A teoria é seca”, dizia Goethe no seu Fausto. O autor parece querer dizer que o pensamento não pode revolucionar a realidade, muito embora seu pensamento tenha sido inegavelmente revolucionário. Marx, entretanto, na sua Introdução à crítica da filosofia de Hegel, abre todos os caminhos revolucionários ao sustentar que “a teoria se converte em poder material logo que se apossa das massas”. Com efeito, para este filósofo, as massas tem poder de agir contra a exploração do homem pelo homem somente quando teoria e prática atuam em conjunto. Melhor dizendo, quando a teoria coincide com a prática e a prática confirma a teoria.

Por isso, diante do golpe brasileiro e do desgoverno que ele institui, pensar em outro regime que não o democrático e em outro corpo social que não o Estado, uma vez que são instrumentos essencialmente burgueses e opressores, é fundamental. São instituições outras –hoje ainda ideais, mas, oxalá, amanhã reais- que nos trarão a possibilidade de ação coletiva contra a exploração e o assalto que são o Estado e a democracia juntos. O povo brasileiro, que produz toda a riqueza do Brasil, mesmo golpeado e com um bando de ladrões incompetentes no governo, toca diariamente o país. De ação entendemos muito bem. Falta aliar essa ação impávida, colossal e cotidiana a um pensamento que lhe guie virtuosamente contra a opressão. E que pensamento é esse? Que democracia representativa e Estado não devem ser defendidos, mas superados.

Salve-nos quem puder ser culpado no nosso lugar

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A corrupção política brasileira cada vez mais se revela estrutural. Entretanto, em vez de assumirmos imanentemente nossa participação nessa vil realidade, a maioria dos cidadãos ainda prefere iludir-se -não sem a parcialíssima “ajuda” da mídia- de que são apenas determinados indivíduos, de um partido político ou outro, os responsáveis pela corrupção generalizada. Necessitamos desesperadamente de um ou uns culpados espetaculares, para que assim a culpa deles nos aliene do fato de que nós, os cidadãos indignados, somos participantes dessa corrupção estrutural que nos indigna. Em respeito ao grave problema, queremos transcendentalizá-lo a qualquer custo, e pouco importa se através das mentiras midiáticas que com sagacidade elegem de bois-de-piranha estratégicos.

Em contrapartida, quando se trata não do que corrompe a sociedade, mas do que a mantém em pé, isto é, o poder, o povo inteiro não se roga em responsabilizar-se por ele. Tanto que a Constituição brasileira é aberta com o seguinte artigo: “Todo poder emana do povo”. Aí é fácil participar imanentemente da estrutura da sociedade! Agora, se a Carta Magna explicitasse outra verdade, qual seja, que “toda corrupção estrutural também emana do povo”, ou seguiríamos ignorando-a, ou a riscaríamos de vez da Constituição.

Cabe aqui atentar ao que disse o filósofo francês Michel Foucault em Microfísica do Poder, qual seja, que o poder circula, que se exerce em rede, sendo que cada um de nós de certa forma e em certa medida é titular desse poder. Daí podemos concluir que o poder dos políticos corruptos, tanto os que seletivamente sacamos da estrutura corrompida para representante no lugar de todos a corrupção estrutural, quanto os que são “deixados em paz”, mesmo sendo tão ou mais corruptos que aqueles, esse poder é dado a eles por nós, o povo, isto é, a origem da qual todo poder emana. Mesmo que não queiramos assumir que a corrupção dos nossos representantes políticos jaz a priori no próprio povo, ao menos deveríamos aceitar o fato de que o poder com que eles corrompem a sociedade é dado a eles pelo povo mesmo, e no caso brasileiro, democraticamente.

Para entender melhor isso, vale lembrar outro francês, o humanista Étienne de La Boétie. Este filósofo dizia que o poder do tirano, seus mil braços e mil olhos, não são seus, visto que é um homem como qualquer outro, com seus dois braços e dois olhos apenas; mas que estes mil braços e mil olhos são deles somente na medida em que seus mil súditos cedem seus braços e olhos a ele. Moral da história: não precisamos ir até o castelo do tirano para matá-lo e para nos livrarmos dos seus mil braços e mil olhos tirânicos; basta que simplesmente não mais demos os nossos para ele. Afinal, segundo Foucault, não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele apartados”.

Da mesma forma, as mil e uma corrupções que espoliam e envergonham os brasileiros não são exclusividade dos seus representantes políticos corruptos. Eles apenas podem praticá-las descaradamente porque seus mil e um representados, nas suas mil e uma corrupções cotidianas -não solicitar ou não fornecer nota fiscal nas compras e vendas; baixar indevidamente músicas e filmes na internet; beber, dirigir e escapar da Lei Seca; estacionar automóvel em vaga para deficientes etc.- já criam os subterrâneos e a priori alicerces corrompidos sem os quais a evidente e a posteriori estrutura da corrupção não teria como sustentar-se. Aplicando aqui a fórmula boétiana, contra a corrupção estrutural bastaria que o povo não mais desse fundamento à corrupção, isto é, que não mais fosse corrupto na parte da estrutura que lhe cabe?

Alguns podem dizer que, mesmo que o povo seja probo, sempre haverá representantes impertinentes corruptos. Abstratamente isso pode até convencer. Porém, se a abstração a posteriori que é a sociedade só existe por conta dos seus indivíduos concretos e a priori, uma sociedade lisa somete existirá se os indivíduos que a compõem forem lisos em primeiro lugar. Do contrário, se os cidadãos já forem corrompidos, a sociedade só será íntegra mediante a argamassa da alienação, o reboco da mentira, o papel-de-parede da manipulação midiática. O “Brasil para todos” de Michel Temer é o exemplo concreto e atual dessa ruína social corrompidíssima disfarçada de nova “Ponte para o Futuro”: presidente, ministros, senadores, deputados, vereadores, e até mesmo o povo, todos profundamente estruturados na corrupção, no entanto, superficialmente tentando fazerem crer o contrário.

É preciso comprometer o Brasil consigo mesmo em função do fim da corrupção estrutural. Não só os políticos que escolhemos para representantes da corrupção que atravessa de cima a baixo e do passado ao presente a torre brasilis, mas também todos os demais. Tampouco devemos deixar-nos, o próprio povo, de fora desse comprometimento. Em primeiro lugar, mantendo o pedacinho do Brasil que ocupamos livre da erva-daninha da corrupção, pois só assim não nascerá nenhum jatobá corrompido insuportável. Em segundo, recusando-nos a separar o joio do trigo somente de quatro em quatro anos, nas urnas, mas participando direta, cotidiana e intempestivamente no governo do país. E em terceiro e mais importante lugar, nunca gritando: “salve-nos quem puder ser culpado no nosso lugar”; afinal, se algum corrupto é punido no lugar de outro, a corrupção segue tendo lugar cativo dentro sociedade.

O “não” suíço ao Renda Mínima

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Em 5 de junho de 2106, 78% dos suíços disseram não à proposta de renda social mínima e universal –aos suíços, obviamente- de cerca de R$ 9 mil por mês, independentemente de quem trabalha e da riqueza de cada um deles. Uma vez que o país europeu produz três vezes mais do que pode consumir, a distribuição dessa riqueza excedente em forma de renda mínima esteve para se tornar um direito. Pretensamente revolucionário, o porta-voz do movimento Renda Mínima, Che Wagner, perguntava: “Por que não tornar a riqueza acessível a todos?”. Agora, o caráter estritamente local dessa proposta já não esteve desde sempre prenhe de velhos vícios? Ao Che (Gue) Wagner suíço –perdoem-me o trocadilho- não caberia também fazer a seguinte pergunta: por que não tornar a excedente riqueza suíça acessível a todos mesmo, não só a eles, os privilegiados moradores do Estado-Alphaville que ocupa a cobertura da Europa, os Alpes?

A ideia que está por trás do projeto suíço Renda Mínima é a desvinculação entre trabalho e renda. A lógica é a seguinte: uma vez que a contemporânea substituição do trabalho humano por tecnologia automatizada já é uma realidade no país -robôs absorvem cada vez mais trabalho-, seria possível “libertar” as pessoas da obrigação de produzirem elas mesmas as condições materiais de suas subsistências. Em outras palavras, todavia críticas, a renda mínima não seria espécie de universalização de um privilégio que historicamente esteve nas mãos de poucos, isto é, viver de renda? Seguir vivendo, consumindo confortavelmente o que se precisa, sem se preocupar um instante sequer em colaborar com a produção dessa vida e desse consumo confortáveis, não é o que todo burguês deseja para si e para os seus? E gozando de parcos 4% de desemprego, sem carecer sequer de políticas públicas de combate à pobreza, a Suíça esteve em condições de aproivar essa controversa utopia.

Tão controversa que 78% da população foi contrária. Em um mundo vitimado pela crise migratória, a maioria dos já altissimamente privilegiados suíços teve medo de estar dando um tiro no pé. Esse medo já era do próprio governo suíço, que primeiramente já era contrário ao projeto, pois, diziam, o benefício seria pretexto para hordas de “imigrantes indesejados” desejarem viver no país da bonança excedente. Caso a renda mínima tivesse sido aprovada em plebiscito, a Suíça teria um insondado desafio no sentido de reformular seu sistema social, pois a universalização, ainda que local, da cisão entre trabalho e renda, concretamente problemática em um mundo já vitimado pelo abismo entre trabalhadores e rentistas,  traria consequências imprevisíveis ao país, muito embora o restante do mundo já soubesse das cruéis consequências dessa aventura.

Os apólogos da renda mínima afirmavam que com as altas riqueza e tecnologia suíças, essa sociedade poderia aventurar-se em “novos conceitos”. Agora, se olharmos para essa particular conjuntura com olhos histórico-materialistas, nada há de novo no aumento de privilégio aos já privilegiados. A promessa de que a renda mínima traria mais “paz de espírito” aos cidadãos suíços, mais tempo para a família, para os amigos, para serem “criativos”, para tentarem “coisas novas” e não se preocuparem com as suas sobrevivências materiais, tudo isso outra coisa não é que o velho e universal projeto burguês tentando ser socializado a um país inteiro, que, pelo jeito, está obesamente aburguesado.

Felizmente, a maioria dos suíços não comprou a utopia da dispensa do trabalho e de que máquinas trabalhando sozinhas seriam o melhor futuro para o país. Será que se lembraram de que os chips e engrenagens dos robôs que os sustentariam nessa impertinente liberdade em relação ao trabalho seguiriam sendo produzidos por mão-de-obra semiescrava chinesa, a partir de matéria-prima cucaracha extraída da natureza por proletários latino-americanos fortemente explorados, e transportados até eles sabe-se lá por quem em containers padrão que bem os alienariam de todo o vil processo produtivo que antecede essa sua automatização “libertadora”. Paz de espírito e tempo livre para quem, caras pálidas?

Obviamente o Renda Mínima não se tratava de um socialismo. Antes, toda uma população bem abastecida de dinheiro, mesmo sem produzir nada, seria a garantia de que o consumo seguiria firme e forte. E o capitalismo agradeceria sobejamente se essa iniciativa do povo aburguesado do país do queijo e do chocolate tivesse sido democraticamente aprovada. Todavia, se fosse espécie de socialismo, seria o famigerado socialismo de uma só nação de Stalin, e não o socialismo universal de Lênin e Trotsky. E a história está aí para lembrar a todos que o socialismo stalinista teve um preço altíssimo e impagável: custou não só uma miríade de bárbaros fuzilamentos coletivos e a morte da democracia como também e principalmente a inviabilidade da verdadeira libertação da classe operária preconizada pelo socialismo leniniano-trotskyniano.

Resta saber se os ricos&tecnologicizados suíços, ao dizerem não ao renda mínima, recusaram-se a serem burgueses preguiçosos que interrompem as suas “nobres” preocupações sociais, a sua “revolução”, no muro que separa o Alphaville suíço do resto do mundo, ou se isso é somente a sempiterna expressão do velho egoísmo burguês. Seria só o medo do “indesejáveis imigrantes” o coletivo não ao Renda Mínima? Se sim, o que é bem provável em se tratando de humanidade e de capitalismo juntos, a grande riqueza deles, que excede três vezes o que precisam, não se reflete em mais humanidade. Mas isso não deveria nos espantar.

Não deve restar dúvida de que o “não” plebiscitário suíço à renda mínima que, segundo muitos, já possibilitaria aos cidadãos desse país viverem bem sem terem de trabalhar, não foi dito para que os excedentes privilégios alpinos fossem compartilhados com a parte do mundo que tem muito menos do que precisa. E que tem muito menos justamente por conta de um sistema global que explora aqui (na América Latina, na Ásia, na África) para fazer sobrar ali (na Suíça –mas não só nesse país). Embora “paz de espírito”, “liberdade” e “tempo disponível para ser criativo” sejam ideais que o mundo precisa um dia ter universalizados, vaticinados por ninguém menos que Marx, o não suíço à sua aplicação local foi mais forte. Os trabalhadores do resto do mundo agradecem.

Obviamente, a utopia da liberdade absoluta em relação à subsistência material é desejabilíssima. Não obstante, não quer dizer que não tenha sido teorizada e tentada ao longo da história. Porém, só seria válida desde que essa ilha libertária fosse possível a todos, e não só aos moradores de um condomínio burguês que se confunde com um país. Caso contrário, estamos falando apenas da velha distopia capitalista na sua melhor e mais cruel forma. O lema comunista popularizado por Marx, qual seja, “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, talvez tenha encontrado a sua maior perversão capitalista na propaganda do projeto Renda Mínima suíço, cujo objetivo anunciado era dar a todos (que todos, cara pálida?) uma “vida digna”, baseada na “liberdade de fazer as próprias escolhas”, para que só então “a vida fizesse sentido”. Até parece que a bonança econômica permitiu à sociedade suíça descobrir o metafísico e enigmático “sentido da vida”.

Teria sido muito digno da parte dos suíços apólogos do renda mínima que tivessem esclarecido aos seus concidadãos, bem como ao restante do mundo, o que entendem por “vida digna”, “liberdade”, e “sentido da vida”, por exemplo. Mais ainda, se estes seus belos e utópicos conceitos são possíveis apenas dentro de suas já ricas fronteiras; e, sobretudo, se só são viáveis mediante a manutenção, ou o que é pior, a radicalização da indignidade e da exploração sociais do lado externo e pobre de seu Estado-Alphaville. Os suíços não decidiram contra o Renda Mínima por conta da favela terceiro-mundista que sua fortuna-primeiro-mundo gera antagonicamente. No entanto, esse não coletivo, ainda que egoisticamente entoado, não dará aos já burgueses suíços o excedente direito de serem Burgueses de Estado, com um gordo e indiscriminado depósito estatal de R$ 9mil no final de cada mês, independentemente de suas necessidades. Essa proposta baseada na cisão entre trabalho e renda deveria ser negada mesmo. Mais ainda, que a própria possibilidade de se viver de renda seja negada veementemente, pelo mundo inteiro, e daqui para frente.

 

Cosmonoopolitismo

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Noopolítica é um conceito cunhado pelos cientistas informacionais estadunidenses John Arquilla e David Ronfeldt que junta a palavra grega “nous”, que pode significar tanto inteligência quanto pensamento, mas que para Platão era a faculdade humana capaz de captar verdades fundamentais por uma via intuitiva, à palavra política, que embora bem conhecida de todos, é problematicamente pragmatizada pela maioria.

Noopolítica, portanto, seria uma política inteligente baseada no conhecimento direto, claro e imediato dos indivíduos e de suas questões coletivas. Para ser mais preciso, no reconhecimento intuitivo do que, em verdade, é a sociedade à qual esses indivíduos pertencem. Filha hipercontemporânea e virtuosa da biopolítica foucaultiana, a noopolítica é caminho para se reencontrar a harmonia –alienada pela política tradicional- entre homem, sociedade, natureza e conhecimento. Em particularíssima instância, indivíduo e vida.

Para tanto, a noopolítica se funda na livre comunicação entre os indivíduos, na eleição do conhecimento que melhor serve à coletividade, e no repudio à violência e à arbitrariedade dos interesses supra individuais que negam este melhor conhecimento. Valoriza a expressão individual enquanto “grão de areia” essencial e a priori de uma “duna social” não opressora a ser alcançada. Utopia? Considerando-se que utopia é o que apenas não existe ainda, e não o que não tem como existir de forma alguma –atopia-, a noopolítica é o caminho da verdadeira revolução.

Com efeito, a noopolítica se contrapõe à realpolitik, isto é, à velha e reacionária política cujo objetivo é assegurar o interesse e a estabilidade nacionais, supra individuais, e que muitas vezes exige inclusive a violação dos direitos humanos. Enquanto a realpolítica se fundamenta em uma forma hierárquica de organização encimada pelos interesses imperiosos do Estado, em vertical oposição às instâncias imanentes dos indivíduos que o compõem, a noopolítica, em troca, pretende solapar esse desumano edifício mediante uma organização em rede, horizontal, na qual os indivíduos e suas relações sejam o paradigma social: “a verdade, o caminho e a luz” da sociedade.

E se a realpolítica, que atende prioritariamente aos interesses transcendentes do Estado, em um mundo assaz globalizado exige que seus atores sejam primeiramente cosmopolitas, isto é, cidadãos do mundo antes de serem cidadãos locais, a noopolítica, em contrapartida, por priorizar a vida e as questões que afloram na rede coletiva imediata, solicita de seus atores o cosmonoopolitismo, ou seja, uma cidadania imanente cuja única universalidade válida é aquilo que melhor atende aos interesses de seus próprios atores, a ser conhecido por meio da intuição.

O cosmopolita é impotente no enfrentamento dos desafios mais importantes porque politiza primeiramente com o mundo, com o outro mais distante. Assim, expatria, ainda que inadvertidamente, aqueles que, imediata e imanentemente, estão relacionados em rede com ele. Já o cosmonoopolita, porque se pauta no conhecimento, sobretudo no reconhecimento mútuo, tem por princípio não preterir os terminais individuais imediatos da rede a que pertence. Em primeiro lugar, porque não tem como negá-los, a não ser por força de grande abstração. Em segundo, porque uma relação política é tão melhor quanto mais concreta for. Desse modo, o cosmonoopolismo é a virtude de não se alienar do que mais proximamente importa: as relações concretas e evidentes entre os indivíduos, e a deles todos com a vida.

Se Platão definia o “nous”, ou seja, a inteligência, como a parte racional e imortal da alma, e a política enquanto a arte de saber conduzir os homens, podemos tirar do pai da filosofia que a noopolítica, mistura virtuosa dos dois conceitos, seria a parte racional e imortal do espírito coletivo -que aliás só vem ao mundo em rede-, qual seja, o conhecimento humano, na excelente condução dessa coletividade humana.

O cosmopolita, porque equivale os terminais da rede mais distantes aos mais próximos, não é um bom artesão político. Sem cerimônia ou por inadvertência confunde ecos distantes com vozes próximas, deixando estas sem a devida atenção. O cosmonoopolita, em troca, politiza primeiro com os que imediatamente se relacionam com ele. E ciente de que esse é o conhecimento mais importante, tanto para ele quanto para os demais, encarna a melhor cidadania de todas.

Democracia em desencanto

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Diante do atual golpe de estado, o Brasil clama pela sua democracia furtada. Aparentemente, essa pecha parece ser a mais digna de ser empreendida diante do assalto oligárquico à “cracia do demos”, isto é, ao “governo do povo”. Entretanto, seria a democracia inquestionavelmente a nossa melhor opção? Sem essa resposta, nosso presente clamor corre o risco de ser um tiro no pé. Pior ainda, se a democracia com efeito não for a melhor forma de governo, outra coisa não estamos sendo senão massa de manobra a quem realmente esta forma de governo interessa, senão ao povo, que é a maioria, paradoxalmente às minorias.

Antes de atravessarmos esse aparente paradoxo envolvido na nossa democracia, vale relembrar que Aristóteles, na sua Política, disse que a democracia é, ao mesmo tempo, a pior das formas boas de governo, mas a melhor entre as más. Nossa contemporânea luta por ela parece se fixar somente nessa segunda definição. Agora, se atentássemos à primeira, é tácito que é uma burrice lutar por ela. A Aristóteles, portanto, a melhor pergunta que poderíamos fazer é: quais são então as boas formas de governo em relação às quais a democracia é a pior? Dessa resposta depende uma busca mais inteligente.

Para o filósofo grego, as boas formas de governo são a monarquia (o governo de um só em favor de todos); a aristocracia (o governo dos mais virtuosos em prol de todos); e a “politeia”, a parente virtuosa da democracia (o governo de muitos em benefício de todos). Já as más formas de governo, que na verdade são as degradações destas três, correspondem, respectivamente, a tirania (o governo de um só em função de interesses privados), a oligarquia (o governo de uns poucos em prol de si próprios) e a democracia propriamente dita (o governo do povo em função de si mesmo).

Com efeito, a democracia comparada com as duas outras formas degradadas de governo sustenta um verniz de virtude. Seu vício oculto, entretanto, é esclarecido por Aristóteles: a democracia “surgiu quando, devido ao fato de que todos são iguais em certo sentido, acreditou-se que todos fossem absolutamente iguais entre si”. Aplicando esse vício à realidade tupiniquim, se todos são absolutamente iguais entre si, e portanto todos merecedores de terem seus interesses contemplados, como conciliar, democrática e satisfatoriamente, um povo tão plural quanto antagônico, que em última e trágica instância, diante do golpe de estado, se separa em duas forças inconciliáveis, quais sejam: a liberal-oligárquica-fundamentalista, e a social-democrata-laica?

Não podemos deixar de considerar, portanto, que, democraticamente, uma pode, legitimamente, se impor contra a outra. E porventura não foi exatamente isso que aconteceu no Brasil com a minoritária elite oligárquica-fundamentalista do “PMSDB” (o Frankenstein formado pelo PMDB e o PSDB), que afastou do poder os majoritários 54 milhões de votos legítimos do governo do petista, legados a esse partido por conta dos 12 anos de governo prévio à reeleição Dilma que revolucionaram o conceito de povo, fazendo participar dele não só os homens velhos brancos ricos, mas também as mulheres, os jovens, os negros, os pobres, os LGBT, em suma, os historicamente excluídos sociais em geral?

O atual caso brasileiro é a prova de que a democracia é o meio de uma minoria -novamente, os homens velhos brancos ricos- se impor sobre a maioria. Mas isso não é novidade, pois no seu berço grego a democracia já era exclusivista. Dela participavam apenas indivíduos livres (não-escravos) do sexo masculino. Dos 300.000 habitantes de Atenas, somente 30 mil desfrutavam da democracia. Algo como 10% da população.

Na sua versão moderna-representativa-burguesa, que ainda é a nossa contemporânea, a democracia outrossim é para pouquíssimos, embora minta muito bem que é para a maioria. Considerando que, infelizmente, é o capital que com efeito melhor garante direito de participação ativa no governo de uma sociedade, –vide os astronômicos e lucrativos investimentos empresariais nas campanhas políticas-, e sem deixar de fora o fato de que quem financeiramente comanda o mundo composto por sete bilhões de indivíduos são mais ou menos trinta milhões de pessoas consideradas ricas, algo menos que 0,005% da população mundial, temos que a modernidade transformou a já contraditória democracia da Grécia antiga em algo profundamente mais desigualitário.

É esse o sistema de governo que estamos defendemos com unhas e dentes no Brasil diante do golpe, a democracia, esse ambiente político onde qualquer barbaridade pode ser viabilizada, bastando que uma minoria com potencial financeiro ideologize a maioria em função de seus interesses? Não nos esqueçamos de que foi a democracia que colocou Adolf Hitler no poder! E porque, democraticamente, o genocida alemão ideologizou eficaz e estrategicamente sua nação inteira, o extermínio da raça judaica passou a ser um projeto racional. Pior ainda, “o” projeto perfeito para salvar a Alemanha. A democracia nas mãos da burguesia consegue ser catastroficamente pior do que nas mãos da antiga aristocracia grega.

Agora, se não é pela democracia que devemos lutar, uma vez que ela é a forma de governo que concretamente privilegia a minoria já privilegiada, em qual forma de governo devemos investir coletivamente? Ora, se o PMDB e o PSDB, ambos com a palavra democracia nos seus nomes – o questionável “D” que os antepenultimalizam-, tiraram do poder justamente o governo petista cujo mérito inegável foi ter aproximado mais do que qualquer outro a maioria da população brasileira não só do conceito de povo brasileiro, como também e principalmente do governo do Brasil, ser antidemocrático, nessa conjuntura, é lutar pelo interesse da maioria, do povo de verdade. Tarefa aparentemente paradoxal, contudo, uma vez que até mesmo o PT golpeado defende a democracia.

Entretanto, retomando Aristóteles, e concebendo a democracia enquanto a pior das melhores formas de governo, e isso comparativamente à monarquia e à aristocracia, seria investir em uma dessas duas a coisa mais racional a se fazer no Brasil? O problema é esses conceitos estão viciadíssimos. A monarquia jaz atrelada à moderna ideia de um rei absolutista que prefere construir palácios espetaculares para si mesmo em vez de pensar no bem de seus súditos. E isso porque a confundimos com a tirania. E a aristocracia, o governo dos melhores, soa como se esses “melhores” se referisse à qualidades naturais de certos indivíduos. Outrossim a confundimos com a oligarquia (o governo de poucos). Não sabemos mais diferenciar as formas de governo em suas expressões virtuosas e viciosas.

O governo petista, cujos vícios políticos e econômicos são evidentes, ao menos tem a notória virtude de ter feito o melhor governo desse país, afinal, nenhum outro tirou 36 milhões de pessoas da pobreza extrema, 42 milhões da pobreza dita “normal”, levou saúde a 50 milhões que não a tinham, 7 milhões às universidades, só para citar as mais objetivas inclusões sociais dos últimos 14 anos, se não é democrático, sem a menor sombra de dúvida é aristocrático no que esse conceito tem de mais probo. Não, obviamente, que os “indivíduos petistas” sejam melhores que os dos outros partidos. Inegavelmente melhores, entretanto, são os resultados sociais dos governos do PT. Aí é que entra a virtude do conceito de aristocracia: o governo de um grupo cuja excelência é alcançar o melhor, não para si mesmos, obviamente, mas, senão para todos, ao menos para a maioria absoluta.

No sentido de encontrarmos algo melhor que a democracia que vive na boca da elite golpista brazuka, resta, das boas formas de governo aristotélicas, a monarquia. Lula, por sua vez, não seria o bom governo encarnado em uma única pessoa, uma vez que fez mais e melhor por todos se o compararmos a todos os presidentes que oi precederam? Podemos dizer que sim na medida que tirano ele não foi, isto é, não governou para interesses privados. Afora os assaz classe média tríplex de Guarujá e sítio de Atibaia, que dizem ser as suas “conquistas” pessoais indevidas, mas que até aqui não há prova de que sejam de fato seus, Lula não governou para enriquecer-se, como a maioria dos representantes declaradamente democratas que deram o golpe no Brasil.

Tudo isso para dizer que, baseados, de um lado, nas formas mais virtuosas de governo identificadas por Aristóteles há mais de vinte séculos, e, de outro, na atual conjuntura brasileira, na qual partidos democratas roubaram o poder para si, há formas de governo melhores pelas quais lutar nesse momento crísico que não a democracia. Seja o governo de alguns melhores, uma aristocracia, seja o de um homem só, a monarquia, todavia em suas saúdes aristotélicas plenas, isto é, não corrompidas em tirania e oligarquia, respectivamente, se servirem de fato à maioria, quiçá a todos, são muito mais dignos de serem buscados por nós, o povo, do que a democracia, que, se literalmente significa “governo do povo”, pragmaticamente tem significado o contrário.

Seja na Grécia antiga, naquela democracia direta-oligárquica, seja hoje em dia, na nossa democracia representativa-burguesa, em ambos os casos temos que esta forma de governo é feita para poucos governarem a maioria em função de seus interesses privados. 10% antigamente, 0,005% atualmente, são as parcelas da população beneficiadas pela democracia ao longo do tempo. E se hoje compramos massivamente a pecha da “restauração da democracia brasileira”, outra coisa não estamos fazendo que lutar por uma forma de governo que, historicamente, vem reduzindo a centralidade dessa mesma massa, isto é, do povo, na governança que deveria ser para todos, mas que apenas mentirosamente sobrevive na palavra democracia.

Se, conforme Aristóteles, das melhores formas de governo a democracia é a pior, ainda que das piores seja a melhor, seguir batendo nessa tecla democrática -tecla com a qual aliás a minoria mais bate na maioria do que o contrário-, é ou burrice, ou masoquismo. Inteligência seria lutarmos pelas formas mais virtuosas definidas pelo maior gênio da história da humanidade: a aristocracia ou a monarquia; seja em forma de partidos políticos socialistas, seja em forma de um rei político e carismático ao bom estilo Lula, pois mediante tais governanças certamente o “todos” ao qual as virtuoses políticas aristotélicas necessariamente se referem não será alienado em função de poucos ou de um só.

Para tanto, precisamos desencantar a democracia, superá-la, e finalmente aceitarmos o que a filosofia política de Aristóteles diz há mais de vinte séculos. Senão para nos livrarmos da ambiência próxima da tirania e da oligarquia e nos aproximarmos de formas mais virtuosas tais como a aristocracia e a monarquia, o que já seria um avanço, ao menos, e com sorte, para introduzirmos no presente a velha, porém alienígena para nós, “politeia” grega, a melhor das melhores formas de todos serem governados

Estupro coletivo ou criminalização da ninfomania?

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Depois de o Brasil ter se sensibilizado coletivamente com a jovem carioca de 16 anos estuprada por 30, 33 ou 36 homens em uma favela do Rio de Janeiro, e se apavorado com as centenas de comentários misóginos pró-estupro que pipocaram nas redes sociais –espécie de sobre estupro contra as mulheres em geral-, relatos de alguns dos envolvidos no estupro coletivo e de amigos da vítima põe em cheque a veracidade do fato. Não que o estupro em si mesmo deva ser relativizado, barbárie machista e extrema que é e sempre será. Porém, a sensibilização imediata e massiva da sociedade brasileira ao estupro que pode nem ter ocorrido revela uma ferida machista viva e exposta em torno desse assunto que, ao menor toque, dói muito, e coletivamente.

Um áudio que circulou na internet depois da manchete do “estupro coletivo”, no qual um dos supostos estupradores diz que a garota em questão não foi estuprada, mas deliberadamente quis transar com o ainda não definido contingente masculino, desafia nossa compreensão. Segundo o suposto estuprador, mas também depoimentos de conhecidos da garota, e inclusive postagens que a própria jovem costumava fazer nas redes sociais, ela gostava de fazer sexo com um grande número de homens, ademais, envolvidos no tráfico de drogas. Afirmam que ela trocava sexo por drogas, ou seja, espécie de prostituição. No entanto, que o suposto estuprador queria dizer no seu depoimento, mesmo sem dar o nome certo ao boi, é que a garota era uma ninfomaníaca –como a personagem do filme de Lars von Tries que o mundo não se privou de prestigiar massivamente.

Para evitar confusão, contudo, é preciso já esclarecer que tal preferência sexual, bem como qualquer outra, de forma alguma justifica um estupro, como muitos dos comentários perversos que se seguiram nas redes sociais tentavam dizer. Com efeito, não é porque a garota gostava de fazer sexo com muitos homens – tampouco porque não estava em casa, na igreja, na escola; nem porque usa drogas ou por ter engravidado aos 13 anos- que podia ser estuprada. Nada justifica tamanha barbárie. É preciso sustentar isso absolutamente.

Não obstante, pelo menos três informações devem ser avaliadas para não deixarmos nossos sentimentos e opiniões denominarem de estupro o que pode ter sido um ato de liberdade sexual plena de uma mulher. A primeira delas, disseram o suposto estuprador delator e alguns conhecidos da garota, é que ela costumava fazer sexo, e com certa frequência, com muitos homens ao mesmo tempo. Postagens no Facebook da própria menina deixam isso claro. Quais sejam: “hoje vou dar geral”, “se eu der pra três hoje vai ser pouco”. Novamente, tais atitudes de forma nenhuma justificam estupro, mas devem nos levar a considerar que o que ocorreu foi sexo coletivo consensual.

A segunda informação, dada pelo suposto estuprador, e que é bem plausível, é que, nas palavras dele, “não rola estupro na favela”. Com efeito, e felizmente, estupro é uma barbaridade imperdoável não só no “asfalto”, mas também na “favela”. Qualquer sujeito acusado de estupro nas comunidades é torturado e morto pelas milícias –assim como os estupradores presos são espancados e sodomizados até a morte nos presídios. Então, é muito improvável que alguns dos 30, 33 ou 36 supostos estupradores tenham postado vídeos e fotos da garota após o ato sexual coletivo se se tratasse de estupro. Ao contrário do que a opinião pública imediatamente pensou, que os vídeos, fotos e comentários eram troféus fálicos e perversíssimos dos estupradores, tais publicações, em caso de estupro, seriam, para o modus operandi das milícias, espécie de carta de morte.

A terceira informação a qual vale atentar é que, segundo relatos, o sexo grupal e consensual só foi chamado de estupro coletivo pela garota e por sua família porque os tais vídeos e fotos se tornaram públicos. Amigos dela dizem que os pais da menina sabiam da preferência ninfomaníaca da filha, embora desaprovassem, mas que, no momento em que todos estavam sabendo disso, por vergonha e para preservarem a imagem da garota e da família, mudaram o nome do que de fato ocorreu. Já não devia ser fácil para estes pais conviverem privadamente com a sexualidade excêntrica da filha, Imagina então terem de fazer o mesmo publicamente. Para restaurarem a reputação da filha diante da opinião pública, não é absurdo conceber que tenham dito que ela foi forçada ao que deliberadamente costumava fazer. Apesar de mentirosa, tal estratégia é humana, demasiado humana.

Porém, antes dessas informações, a ideia de estupro coletivo chocou a sociedade imediata e violentamente. Inclusive resiste em deixar de ser chocante mesmo depois de aclarado que a garota desejava e procurava experiências de sexo com muitos homens. Essa possível tática dos pais da garota de 16 anos de chamarem de estupro a consequência concreta da ninfomania da filha seja talvez a expressão particular de um tabu universal da nossa sociedade: negar às mulheres em geral a liberdade total em relação aos seus próprios desejos. Para a tacanhice machista da nossa sociedade, se se tratasse de um garoto de 16 anos que deliberadamente tivesse transado com 30, 33 ou 36 mulheres, de modo algum dele seria dito que padece de satiríase –o correlato masculino da ninfomania- nem que foi estuprado, mas que é um sortudo, ou o que é pior, homem de verdade. E por acaso o harém não é a instituição criada especialmente para os mais poderosos satiríacos?

É preciso considerar que, assim como os pais da garota se alienam da manifesta e radical ninfomania da filha ao dizerem publicamente que ela foi violentada, o restante da sociedade, que se chocou instantaneamente com o dito “estupro coletivo”, também prefere ver estupro – crime- onde há, na verdade, o exercício irrestrito da liberdade de um mulher em relação aos seus desejos. Como a nossa sociedade machista dormiria em paz se o que foi chamado de “estupro coletivo” de uma menina de 16 anos fosse de fato apenas mais uma e corriqueira experiência sexual de uma jovem mulher? “Não” -grita a fálica opinião pública- “isso é estupro. Afinal de contas, mulher alguma pode desejar isso para si”. Fica escondido aí, contudo, que é a própria sociedade machista que não quer isso para as mulheres.

Não podemos esquecer de que, atualmente e por conta da intercomunicação virtual, a sociedade brasileira se sensibiliza e se expressa coletivamente em relação a tudo que lhe desagrada e choca – e as polêmicas nas redes sociais acerca da crise política e da corrupção tupiniquins são provas concretas disso. Das duas possibilidades do real envolvendo a menina carioca de 16 anos, quais sejam, a) ela foi estuprada por 36 homens; e, b) desejou sexo com 36 homens, a primeira certamente congrega melhor essa sociedade machista, todavia traumaticamente, em função da manutenção de um tabu que visa justamente proibir e ocultar a segunda.

Estabelecer peremptoriamente que a menina de 16 anos foi estuprada por 36 homens, e não que ela quis transar com todos eles, portanto, é a histeria coletiva que melhor mantém a sociedade machista estupradora como ela é. Infelizmente, até aqui, a nossa sociedade sabe lidar melhor com a barbaridade do estupro de uma mulher e com a satiríase do que com a liberdade feminina radical envolvida na ninfomania. A realidade, bem como os sentimentos e opiniões comuns que ela gera, ainda seguem a cartilha machista-satiríaca. Aos sátiros toda liberdade e honra. Das ninfas, em contrapartida, quando praticam a mesma liberdade e honram seus desejos com a mesma desmedida, delas é dito que foram violentadas, estupradas. Por que? Ora, porque o macho-satiríaco também é um sádico narcisista: se a fêmea goza tanto ou mais que ele, é por causa de sua macheza e violência, e não porque ela é capaz disso.

Apesar das diferentes versões, não se tem certeza se a menina foi de fato estuprada ou se, como em outras vezes, propôs-se ao sexo coletivo apenas. Particularmente, prefiro que seja a segunda opção, e isso por dois motivos. Em primeiro lugar, porque a garota em questão deixa de ser uma vítima da barbárie do estupro para ser dona de suas escolhas sexuais, inclusive a de transar com dezenas de homens de uma só vez. Nada deve haver que prive as mulheres de realizarem seus desejos sexuais, por excêntricos sejam -se é que este conceito tem alguma realidade. Sem dizer que já é uma violência nominar a realização sexual plena de um mulher de violência. E em segundo lugar, é melhor que ela seja uma ninfomaníaca porque a sociedade tem de se habituar que a mulher pode ser, como muitas vezes é, tão ou mais livre, desejosa e ativa sexualmente do que um homem. Mas isso a nossa sociedade machista não pode aceitar, apenas criminalizar. Remédio perverso que nunca cicatrizará a ferida social aberta pelo machismo.

Homens são políticos; mulheres, cosmopolíticas.

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Imagem: Rosie Tasman Napurrurla

Lugar de mulher é na política? A resposta a essa pergunta é desafiadoramente afirmativa na contemporaneidade. Entretanto, ao longo da história, a coisa foi bem diferente. Desde o seu surgimento, na Grécia antiga, a política sempre foi coisa de homem. E se hoje a política não mais é exclusividade masculina, temos aí a prova material de que as mulheres tem plena capacidade para revolucionar a realidade. Não à toa, atualmente, metade do governo do Canadá é composto por mulheres. Sem se intimidar com o peso fálico do passado, o primeiro ministro canadense, Justin Trudeau, tem orgulho em dizer que no seu país é assim “porque estamos no século XXI”.

Etimologicamente, política vem de “pólis”, que em grego significa cidade. “Polites”, portanto, era o indivíduo que constituía a “pólis”. Não obstante, naquela época, somente os homens –brancos, livres e gregos- tinham o direito de ser “politikos”. E isso porque, como o poeta Hesíodo (750-650 a.C.) fez entender, o surgimento da política no mundo grego fundamentou-se nos ideais de homens e filósofos (atividade que também era exclusivamente masculina).

Antes da “pólis”, todavia, a vida se dava em núcleos familiares, os “genos” (daí genética), que outrossim eram comandados apenas por homens. Não é preciso dizer que nessa organização social ancestral a condição da mulher era igualmente restrita. A elas restava apenas seguir subservientemente os desígnios despóticos dos “seus homens”, os “despótes” (em grego: senhor, mestre). E ser um déspota significava impor, sem escapatória, suas vontades aos demais, principalmente à mulheres, independentemente da consistência ou da compreensibilidade dessas vontades. Autoritarismo puro que, entretanto, só não deve ser chamado de machismo por conta da extemporaneidade desse conceito –moderno- em relação aos gregos antigos.

A transformação do “despótes” em “polites”, isto é, do déspota em político, não significou a abertura de espaço social efetivo algum às mulheres gregas. Todavia, foi um primeiro passo no sentido de reduzir o abismo que separava os sexos. Como? Ora, mesmo permanecendo despóticos na esfera doméstica, os homens, no exercício político, tinham o desafio de lidar com a alteridade -ainda que esses “outros” fossem somente homens. Com a política, o homem teve de aprender outra maneira de fazer valer as suas vontades que não pela força física nem por misticismo algum, fundamentos do despotismo. E o “polités”, ao regressar ao mundo doméstico no qual era “despótes”, não tinha como evitar trazer consigo a ideia de que sua vontade pessoal não era universal.

Aqui cabe a pergunta: por que os homens investiram em uma organização social, a “pólis”, e em uma maneira de organizá-la, a política, se nessa esfera eles desfrutavam de menor poder do que nos “genos”? Marx diria que foi o preço a ser pago para eles e suas famílias subsistirem materialmente. Idealistas dão outras razões. A indefinição da resposta, contudo, não nos priva de enxergar na política o exercício masculino de redução de seu poder absoluto, despótico. É como se na assembleia política, ainda que inadvertidamente, o homem experimentasse, um pouco que seja, a impotência de qualquer mulher diante de qualquer homem; o gosto amargo de ter de calar diante da força de um outro homem, coisa que o déspota, no seu reino genético, nunca teve de fazer.

Todavia, o fato de a ágora política ser o espaço no qual os homens não mais podiam ser despóticos -para um macho uma ferida- pode muito bem ter convertido essa nova experiência masculina de não-potência absoluta em mais opressão doméstica contra as mulheres. Não à toa, na decadência da política grega, séculos depois de seu surgimento, Aristóteles ainda sustenta que as mulheres estavam mais próximas dos escravos e dos cachorros do que dos homens. A política, no seu nascimento grego, portanto, foi apenas um movimento masculino mediante o qual os próprios homens reconheceram, uns perante os outros, que, na cidade, nenhum deles era nem podia ser despótico.

E a política seguiu como um playground estritamente masculino por séculos. Levou mais de dois mil anos para que as mulheres pudessem fazer política ao lado dos homens, todavia com um poder mais simbólico que efetivo. Não é mistério para ninguém que até hoje em dia -e o Brasil golpeado é um exemplo disso- as maiores decisões políticas ainda são sistematicamente sequestradas pelos homens. Tanto que em pleno século XXI ainda causa certo espanto em muita gente metade de um governo, o do Canadá, ser composto por mulheres.

Dizer que “lugar de mulher é na política” é verdadeiro apenas parcialmente, pois o gene grego da política ainda insiste em fazer dela um exercício masculino de relativização do poder dos próprios homens diante de si mesmos. Se o “lugar da mulher é na política”, o é apenas para revolucioná-la, para fazer a política deixar de ser o que é: um reduto resistentemente masculino. Levando ao extremo, obrigar às mulheres somente ao espaço político criado pelos homens é como querer que a elas tenham um espaço confortável dentro do machismo.

Com efeito, as mulheres têm direito, dever e capacidade para compartilharem o comando da nau da realidade ao lado dos homens. A ideia aqui, entretanto, é justamente a de fazer pensar se na esfera política como a conhecemos –esse ambiente viciado, criado pelos homens e para eles mesmos- as mulheres não permaneceriam lutando ingloriamente em terra inimiga. Ora, se a política de fato foi a “brincadeira” masculina na qual o todo-poderoso déspota doméstico viu o seu poder ser confrontado e reduzido, fazer essa mesma política só levará as mulheres a experimentarem mais do mesmo, isto é, a limitação do seu poder, justamente o contrário do que a atual “jihad” contra o machismo exige.

As mulheres precisam de práticas e ambientes deliberativos que lhes empoderem. O saneamento do abismo entre os sexos, despoticamente criado e encimado pelos homens, não se dará através da velha cartilha política criada por eles e mantida em suas mãos por milênios. À mulher é fundamental um espaço político outro que não o criado pelos homens; um ambiente para além da política no qual nunca entre em discussão a presença e a pertinência da mulher no comando da vida coletiva; um lugar no qual a alteridade que a mulher sempre foi em relação aos homens esteja desde sempre na essência, pois só assim o jogo despótico masculino não terá como excluí-la despoticamente, como aconteceu recentemente com a presidenta Dilma Rousseff.

Qual seria então esse espaço ainda político, mas essencialmente além-político, no qual as mulheres estarão finalmente livres do despotismo masculino? Se a política é o velho e resistente “clubinho dos garotos”, a nova forma de organização social da qual as mulheres serão inalienavelmente partes essenciais merece outro nome, ou ao menos a modificação desse. Ora, se a palavra grega “cosmos” designa o universo em seu conjunto, a estrutura universal em sua totalidade, “o lugar da mulher” deve ser na cosmopolítica, uma política que não deixa nenhuma parte do todo social de fora da manutenção desse todo. Não há dúvida de que a presença efetiva da mulher nas deliberações sociais explode a velha e viciada roda política masculina. Mais ainda, inaugura um círculo virtuoso do tamanho da humanidade. Às mulheres, portanto, a cosmopolítica.

Machismo extremo: estupro

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Foto: Piotr Ciuchta – br.freepic.com

Uma menina brasileira de 16 anos foi à casa do namorado que havia conhecido na escola fazia três anos. Era sábado. Ela lembra de estar à sós com o garoto e de, de repente, acordar nua e dopada, em uma outra casa, com 33 homens armados que, não satisfeitos em terem-na estuprado coletivamente, ainda por cima a fotografavam e filmavam para então postarem esses “troféus” imagéticos perversíssimos nas redes sociais. Já era domingo. Porém, somente na terça-feira a garota voltou para casa, descalça, descabelada e com uma roupa masculina toda rasgada, sem dizer nada aos seus pais, tamanha a vergonha que sentia.

Depois de sofrer a barbaridade cometida pelos 33 homens, que são melhor definidos como monstros, não só a menina estuprada, mas também seus familiares e amigos, todos profundamente abalados, ainda tiveram de se confrontar com os vídeos e fotos do estupro postados nas redes sociais pelos próprios estupradores. Como se não bastasse, nessas postagens perversas e em muitas outras que polemizavam o terrível estupro, muitos dos comentários ainda culpavam a menina pelo acontecido. Essas barbáries subsequentes diziam absurdos tais como: se estivesse em casa, se estivesse na igreja, se não usasse drogas; se usasse roupas decentes etc., não teria sido estuprada.

Aqui vale lembrar o que disse a filósofa Marcia Tiburi, que “pela lógica do estupro, pensa-se mais no ‘erro’ da vítima do que no ‘erro’ do criminoso”. É exatamente essa lógica perversa que, por um lado, levou os 33 estupradores a se sentirem livres para estuprar a garota, pois certamente tinham certeza de que o “erro” dela seria mais evidenciado e condenado do que o deles, e por outro, “autorizou” centenas de pessoas a “estuprarem-na” posteriormente com vis comentários nas redes sociais. Grosso modo, o que estes “estupradores-comentadores” fizeram foi dizer que a menina estuprada é a culpada. Seja por não ter escapado, seja por não ter desconfiado da barbaridade que lhe aconteceria. Ou o que é pior, como coloca Tiburi, “por ter ‘parecido’ mulher demais”.

Tanto os 33 estupradores quanto as centenas de comentadores perversos agiram do modo que agiram porque, conforme a filósofa, “o status da mentalidade brasileira relativamente à questão do estupro define a vítima como culpada … É a mesma lógica que permitia que brancos privassem de liberdade, espancassem e matassem pessoas negras”. Embora o Brasil ainda seja um país fortemente machista e racista, o racismo, entretanto, é mais facilmente detectável e condenável do que o machismo extremo, qual seja, o estupro.

Mas por que um estuprador, um machista extremo, ainda goza de tamanho e abjeto privilégio? Porque “um estuprador não consegue isso sozinho … Ele precisa do apoio de uma sociedade inteira”, ressalta a filósofa. E essa sociedade que apoia estupradores é bem conhecida de todos. Quem não está habituado com a realidade machista na qual o pai tem mais poder que a mãe; o irmão, mais liberdade que a irmã; o homem, maior salário que a mulher etc.?

Sem esquecer que essa “sociedade protetora dos estupradores” é a mesma que ainda não conseguiu –talvez porque não queira- deixar de fazer piadas machistas. Barbaramente, a sociedade machista ainda ri, diverte-se com o seu próprio machismo. E essa lógica perversa, levada ao extremo, isto é, o estupro de uma mulher, chega a prometer espécie de “diversão” maior. Como se não bastassem as velhas jocosidades machistas contra as mulheres, temos agora o rol de comentários nas redes sociais a darem nova e altamente publicizada roupagem ao machismo extremo. Somado ao machismo em forma de piadas de mau gosto, temos hoje toda sorte de “opiniões machistas” deliberadamente vomitadas na internet.

E quando a garota de 16 anos estuprada disse em recente entrevista que “não dói o útero e sim a alma”, certamente não se referia apenas ao que os 33 bárbaros estupradores fizeram com seu corpo e espírito, mas também às centenas de comentadores perversos” que, ao culpá-la por ter sido estuprada, absolvem os verdadeiros algozes e a si mesmos pelo machismo extremo que ainda resiste na nossa sociedade. Pois, nas palavras de Tiburi, “na lógica do estupro toda e qualquer culpa recai sobre a vítima … o estuprador não é responsabilizado por seu ato”.

Não é à toa que em uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), realizada em 2014, 60% dos entrevistados -homens e mulheres- concordaram totalmente com a frase: “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Não que a maioria das pessoas seja a favor da violência pura e simples contra as mulheres. Não obstante, essa mesma maioria entende o estupro enquanto um violência menor, de certa forma justificável em algo de errado que as próprias vítimas dos estupros -as mulheres- fazem.

Afora o estupro em si, um mal abominável, as mulheres sofrem ainda uma segunda e talvez mais brutal violência, vinda da sociedade, que afirma contra elas que mereceram o estupro que sofreram. Essa sobre violência é a inversão perversa da vítima em culpada, para, desse modo, os estupradores poderem permanecer impunes e estuprando, alimentando o machismo extremo que resulta no que hoje está em todas as bocas e manchetes: “a cultura do estupro”. Nessa “cultura”, ou nas palavras de Tiburi, “na lógica perversa do estupro, ‘ser mulher’ é condição ontológica passível do estupro”.

Para os estupradores, as mulheres são objetos estupráveis porque eles ainda cultuam a si mesmos como os únicos e verdadeiros sujeitos da realidade. Com efeito, para um “sujeito machista”, o outro -a mulher- é apenas mais um objeto; uma coisa que pode lhe satisfazer. Tiburi deixa isso bem claro ao dizer que “o estuprador é aquele que se vê tendo um estranho ‘direito ao estupro’ … Paranoico, ele se sente o centro do mundo, o mundo no qual ele é o rei e a mulher é, quando muito, uma serva”. A relação entre homem e mulher enquanto relação entre sujeito e objeto ou rei e servo é a lógica do estupro, ou, como se diz hoje, a “cultura do estupro”, em sua perversa e vigorosa forma; ainda faz com que, no machismo extremo, as vítimas –mulheres- sejam mais “criminosas” que seus algozes –os estupradores.

A particular tragédia da carioca de 16 anos vítima de 33 estupradores e de centenas de “comentadores perversos”, todos machistas extremos, está dizendo em alto, universal e bom tom que a nossa sociedade precisa urgentemente ser revolucionada. Os homens precisam deixar de achar que são mais sujeitos que as mulheres. Essa resistente ficção é talvez o nosso mais abjeto fundamentalismo social. Revolucionar a sociedade machista extrema, todavia, não é tarefa fácil. Exigirá muitas batalhas. Uma delas é confrontar o macho com o seu insustentável mito de superioridade. A outra, forçar o macho à verdade social mais necessária à nossa época, qual seja: a igualdade entre os sexos. Por quê? -perguntaria o conservador criacionista. Porque estamos no século XXI, responde a parte sã da sociedade que já está na guerra contra o machismo, seja ele brando, seja extremo.

 

Lógica do golpe / lógica do estupro

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A primeira mulher eleita presidente do Brasil sofreu um golpe branco. Em bom português, um golpe baixo. Afastada do seu cargo devido à práticas financeiras as mais corriqueiras, cometidas fartamente inclusive por aqueles que a afastaram, Dilma Rousseff se diz vítima de violência e injustiça brutais. Como, porém, violência e injustiça contra as mulheres ainda são coisas assaz naturalizadas na nossa brutal sociedade, o país seguiu adiante como se Dilma fosse apenas mais uma histérica a reclamar indevidamente da vida; da vida “como ela é”; e como muitos ainda insistem, como ela deve ser. Não à toa o jornal britânico The Guardian ressaltou em manchete que “Machismo e rancor da direita pesaram em queda de Dilma”.

Metaforicamente podemos dizer que Dilma foi estuprada jurídica e politicamente pelos “falos golpistas” que a cercavam, muito embora a definição estrita de estupro seja: crime que consiste no constrangimento a relações sexuais por meio de violência. Essa definição, todavia, não generaliza quem comete nem quem sofre o estupro. Entretanto, se considerarmos a misoginia institucionalizada que impera no Brasil – e de forma geral no ocidente pelo menos desde a Grécia antiga-, temos que as mulheres sempre foram as maiores vítimas do estupro, e os homens, seus grandes algozes. Tanto que a filósofa Marcia Tiburi, no ensaio “Como conversar com um fascista”, pôde dizer categoricamente que “na lógica perversa do estupro, ‘ser mulher’ é condição ontológica passível de estupro”.

Dilma, ainda que não tenha sido estuprada stricto sensu no golpe político que sofreu, como ela mesma disse, foi “vítima de uma violência brutal”, e ademais cometida por uma cambada de homens para os quais o poder deve ser deles somente. Para pensarmos a violência da qual Dilma não foi poupada, considerando que foi maior pelo fato de ela ser mulher, doravante trataremos o golpe como se estupro fosse. E para penetrarmos mais fundo nessa violência misógino-política que vitimou a presidenta vale atentar à “lógica do estupro” ensaiada por Tiburi, segundo a qual “a vítima – uma mulher – não tem saída: de qualquer modo ela será condenada quando, de antemão e sem análise, ela já foi julgada.”

Dilma foi acusada por “pedaladas fiscais”, algo que seus acusadores – homens – praticam corriqueiramente. Primeira injustiça: homens podem “pedalar” fiscalmente, uma mulher, não. E de nada adiantou Dilma defender-se dizendo que os homens que a acusavam faziam o mesmo; que para eles não era nem nunca foi crime o que para ela estava sendo. Por que, analogicamente, isso representa um estupro? Ora, porque, segundo Tiburi, “o estupro é o ato em que a outra – a estuprada – não tem nenhuma chance de defesa porque a priori está condenada”. Com efeito, Dilma estava condenada ao afastamento independentemente do que dissesse ou provasse. Os “machos golpistas” apenas queriam que ela caísse fora. E conseguiram.

Agora os “golpistas estupradores” estão presidindo despótica e odiosamente o país, e o que é pior, sem nenhuma mulher por perto. Eis o absurdo: um ministério sem nenhuma presença feminina em pleno século XXI. Violência universalizada contra a mulher. Mas não só contra elas. Também de fora do governo golpista estão negros, gays, índios, e qualquer um que não seja homem, branco, rico e evangélico. Tiburi tem toda razão ao afirmar – todavia parafraseando Aristóteles em relação ao ser – que “o ódio ao outro se diz de muitas maneiras” Porém, segue a filósofa, “as mulheres sempre foram vítimas especiais desse ódio”.

Se, na lógica do estupro de Tiburi, “o estuprador é aquele que se vê tendo um estranho ‘direito ao estupro’ … Ele só pode pensar assim porque é uma personalidade autoritária, que, como tal, não tem capacidade de ver o ‘outro’”, na lógica do golpe contra Dilma, os golpistas são os que se veem tendo um estranho “direito ao golpe”. E eles pensam assim porque são personalidades autoritárias, que, outrossim, não tem condições de ver o “outro”. No caso, as mulheres – mas também os negros, os pobres, os gays, os índios etc.

E por que os “golpistas estupradores” de Dilma gozam de tamanhas liberdade e ela não? Segundo Tiburi, na lógica do estupro é a vítima – a mulher – que é sempre questionada. Na lógica do golpe contra Dilma, portanto, foi somente ela que foi questionada, e por uma corja de machos que há muito mais tempo que ela habita a mesma questão, sem, contudo, ser confrontada com ela. E assim podem agir porque “o criminoso [o homem] não é questionado, porque ele é homem e, segundo a lógica do estupro, não se objetifica o homem”, completa a filósofa. Já a mulher é o ser que os homens – mas também a sociedade – primeiramente transformam em objeto útil.

E no Brasil o abismo entre a inquestionabilidade masculina e a a priori suspeição feminina é mais dramático ainda, país subdesenvolvido que ainda somos. Assim como, nas palavras de Tiburi, “o status da mentalidade brasileira relativamente à questão do estupro define a vítima como culpada”, na lógica do atual golpe de estado o status da mentalidade golpista definiu Dilma como culpada por algo que, no entanto, aqueles que a culpam são tão ou mais culpados que ela. E isso porque, diz-nos a filósofa, “pela lógica do estupro pensa-se mais no “erro” da vítima do que no “erro” do criminoso”

Tiburi segue dizendo que na lógica do estupro “é como se a vítima fosse culpada por não ter escapado … por não ter desaparecido antes”. Na lógica do golpe tupiniquim, com efeito, os golpistas, antes de vestirem essa sórdida carapuça, bem que tentaram fazer com que Dilma renunciasse; que desaparecesse da cena política da qual eles pensam serem os donos exclusivos. Mas ela resistiu. E, segundo a lógica golpista, Dilma só fez por merecer ser afastada, “estuprada”, por ter peitado os déspotas da oligarquia política tupiniquiim. “O estuprador, autoritário e irresponsável, reivindica a supremacia masculina na qual ele se compraz. Ainda vivemos na idade Média”, conclui Tiburi.

Os “golpistas estupradores” da presidenta conseguiram culpá-la e afastá-la, para então gozarem de uma anacrônica e inacreditável liberdade, porque já na lógica do golpe/estupro que ainda subjaz na mentalidade machista brasileira o golpista/estuprador projeta sua culpa nas suas vítimas para só então poder gozar. Entretanto, esclarece Tiburi, “um estuprador não consegue isso sozinho. Ele precisa do apoio de muita gente. De uma sociedade inteira” aliás. Aqui é impossível não lembrar das hordas de paneleiros que gritaram “fora Dilma” nas ruas, dos 367 deputados que disseram “tchau querida” na votação na câmara federal, e dos 55 senadores que, um pouco mais sóbrios, mas nem por isso menos machistas, admitiram o processo de impeachment contra Dilma.

Sim, a nossa sociedade é tão culpada pela lógica do estupro que vitima milhares de mulheres brasileiras quanto pela lógica do golpe que injustamente vitimou Dilma, a despeito mesmo de sua honestidade e dos 54.501.118 de cidadãos que a elegeram presidenta. E essas vis lógicas são tão naturalizadas que mesmo depois da tremenda violência imputada contra Dilma o sórdido e imediato gozo do criminoso governo Temer foi governar sem mulher alguma por perto.

Confrontados com esse abominável machismo, os golpistas bem que tentaram se desvencilhar do estupro político que foi não darem espaço algum no governo deles para uma mulher sequer – a não ser, obviamente, para a jovem, “bela, recatada e do lar” esposa de Temer. Porém, como estupro e golpe são crimes sim para além da “macholândia” golpista, os criminosos “estupradores”, bem representados pelo Chefão do DEM, o senador José Agripino Maia, não escaparam de ouvir da jornalista Mariana Godoy a alfinetada: “não tem mulher no governo Temer porque não tem mulher precisando de foro privilegiado”. Contra essa verdade, que talvez só uma mulher pudesse perceber e afirmar, mais violência. Agripino então disse: “boa piada”. Ou seja, mulher, quando fala a verdade para um homem, é chamada de palhaça.

 

Contra o golpe, qual o melhor afeto?

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Tristeza é o sentimento confesso de grande parte dos brasileiros diante do golpe de estado dado pelo “PMSDB” (o Frankenstein antidemocrático formado pelo PMDB e pelo PSDB). Tristeza maior, todavia, é que seja justamente tristeza o afeto mais afirmado em resposta ao golpe. Sentir outra coisa porventura é possível nesse momento? Como não estarmos tristes perante tamanho assalto? Mais ainda, poderia a alegria ser de alguma serventia contra os golpistas? Baruch Spinoza, o filósofo dos afetos, pode mostrar que sim, e como.

Para Spinoza, a tristeza seria um afeto inútil no enfrentamento do golpe tupiniquim porque ela outra coisa não é senão a passagem de um estado de potência maior para um menor. Ou seja, quanto mais tristes estamos, menos potentes somos. A tristeza, portanto, é o afeto que nos fragiliza ainda mais frente ao que já nos fragilizou. Os brazukas que desejam dar cabo dessa até aqui venturosa empreitada da oligarquia política tupiniquim devem cultivar outro afeto, pois, tristes, menos podem contra a besta “peemeessedebista”. Qual seria, entretanto, este outro afeto?

Desprezo? Spinoza diria que não, pois este afeto nos leva a imaginar mais o que a coisa desprezada não tem do que aquilo que ela tem. Quando desprezamos algo, portanto, lidamos mais com inimigos imaginários do que com o verdadeiro e real. Temer e sua tropa golpista agradeceriam que os desprezássemos apenas, pois assim permaneceríamos ocupados com a nossa ignorância, e quanto mais ignorantes, mais vulneráveis.

E o ódio aos golpistas, substituiria melhor a tristeza? Também não, uma vez que para o filósofo dos afetos o ódio outra coisa não é que uma tristeza que aponta uma causa externa. Ao odiar ainda permanecemos tristes, consequentemente menos potentes, e o que é pior, tornamos transcendente, isto é, absolutamente separado de nós a causa da nossa tristeza. E sem poder afetá-la, não temos como vencê-la. O ódio, viciosamente, só aumenta a nossa impotência.

Indignados seriamos mais potentes contra a elite golpista? Infelizmente não. Spinoza diz que a indignação é o ódio por alguém que fez mal a um outro. Aqui temos dois problemas. Primeiro, sendo ódio, a indignação ainda assim é uma tristeza, ou seja, uma forma de impotência. Segundo, em se tratando de um golpe de estado, isto é, de algo que afeta a todos simultaneamente, afetarmo-nos pela ideia de que esse mal foi causado a um outro é ignorar que esse mal nos afeta igualmente. E ignorância definitivamente não é a melhor arma.

Vergonha também não é um afeto que aumenta nossa potência contra os golpistas nem diminui a potência deles, uma vez que, para Spinoza, a vergonha ainda é uma tristeza, e além do mais, acompanhada da ideia de que alguma ação nossa foi desaprovada pelos outros. Ora, o afeto que devemos cultivar diante dos golpistas para que eles não sejam mais potentes que do nós é um que reforce que a ação imprópria, condenável, foi cometida por eles, e desaprovada por nós! Do contrário, culparíamos a nós mesmos, cidadãos golpeados, pelo ato dos golpistas.

A vingança, que por ódio nos leva a fazer mal a quem nos causou algum dano, e a ira, que nos leva a fazer mal a quem odiamos -ambos afetos que parecem cair muito melhor ao revolucionário do que a tristeza-, também não seriam indicados por Spinoza para nos tornarmos mais potentes do que a elite golpista que negativamente nos afeta. Sendo espécies distintas de ódio, vingança e ira ainda assim são formas de tristeza. No fim das contas, de impotência.

Podemos ainda ser afetados pelo temor, pavor, aversão, escárnio, decepção, sevícia etc., porém, são todos formas diversas de tristeza. Nada nos ajudam nesse momento no qual precisamos aumentar a nossa potência contra os golpistas oligarcas. Com efeito, nenhuma espécie de tristeza serve ao brasileiros golpeados

Em oposição à tristeza, Spinoza coloca a alegria: a passagem de um estado de potência menor a um maior. Alegres, portanto, nos fortalecemos. O problema é conseguir ser afetado de alegria diante de um golpe de estado… Dita simplesmente, alegria pode parecer abstrata demais para encontrar lugar na angusta realidade brasileira. Porém, assim como a tristeza é bem mais palpável para nós em forma de desprezo, ódio, indignação, vergonha, vingança, ira etc., a alegria outrossim tem suas expressões mais concretas, tais como: a admiração, a segurança, o reconhecimento, a satisfação etc.

No rol das alegrias spinozanas temos ainda a esperança. Para o filósofo, entretanto, trata-se de uma alegria instável, pois acerca de algo, passado ou futuro, de cuja realização não temos como ter certeza. Pseudo alegria, a esperança, como o desprezo, nos mantém atentos mais à nossa imaginação do que à realidade. Nutrir esperança de que venceremos os golpistas, portanto, é deixar o real para eles enquanto permanecemos no mundo dos nossos sonhos. Categoricamente, Spinoza diz que a esperança é o refúgio da ignorância. Por isso é uma péssima arma na guerra contra o golpe.

Agora, se quisermos ser efetivamente potentes contra os golpistas, devemos ter em mente que, para Spinoza, a mais virtuosa forma de alegria, portanto de potencialização, é o amor. Nas palavras do filósofo, “o amor é uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior”. Dito de outro modo, o amor é a passagem de um estado de potência menor a um maior do qual, no entanto, pensamos não ser os responsáveis. Amando, o aumento de nossa potência parece vir de fora, como se fosse uma dádiva. E como não temos consciência de que somos nós que o produzimos, mas algo externo, tampouco sabemos como parar essa afetação. Eis a virtuose do amor.

De modo algum estamos falando aqui do amor cristão, aquele que se é obrigado a cultivar aqui na terra para que se tenha direito à eternidade celeste. Aos golpistas, obviamente, ninguém deve oferecer a outra face ao tapa. O amor spinozano não visa futuro transcendente algum, mas, ao contrário, recuperar, presentemente, a imanência perdida entre parte e todo. E no caso do golpe brasileiro, o amor deve recuperar a harmonia rompida entre o cidadão e o seu Estado.

Como, então, vencer a adversidade do golpe com o amor? De que causa externa devemos ter ideia para que seja aumentada a nossa própria potência no sentido de não sermos afetados negativamente pela potência dos golpistas? Mais ainda, que ideia deve nos acompanhar para que sejamos mais potentes que os golpistas; para que os vençamos definitivamente? Obviamente não é a ideia do golpe ela mesma, visto que apenas nos causa a pá de tristezas que vimos anteriormente, e que estas apenas nos tornam mais impotentes.

Portanto, se em Spinoza o amor recupera melhor do que qualquer outro afeto a perfeita ordem entre parte e todo, na luta contra o golpe, que é a recuperação da ordem entre o cidadão e o seu Estado, o nosso amor deve ter um objeto definido. Considerando que o Estado brasileiro é composto por 200 milhões de outros cidadãos, e que estes também são vítimas do mesmo golpe, tenham consciência disso ou não, é a eles que devemos amar, isto é, tê-los enquanto a ideia externa que acompanha uma alegria potencializadora em nós mesmos.

Assim, fazendo com que estes outros milhões de cidadãos golpeados sejam a causa, não de uma imensa tristeza, raiva, ódio ou indignação, mas de uma alegria suprema em nós mesmos –como nas vezes nas quais nos alegramos por haver “o povo brasileiro”-, enfim, quando conseguimos amar o todo-povo é que a parte-cidadão que cada um de nós é adquire potência e virtude suficientes para lutar contra o inimigo comum sem se entristecer, ou seja, sem se despotencializar inadvertidamente.

Em suma, não é porque os golpistas afetam negativamente a mim, particularmente, que devo lutar contra eles. Meu desagrado privado é assaz impotente contra inimigos públicos. Em troca, é porque o golpe de estado do “PMSDB” afeta negativamente todas as demais partes-cidadãs do meu país que eu, uma dentre elas, devo lutar contra os oligarcas golpistas. Afinal, só no dia em que todos os cidadãos brasileiros estiverem finalmente livres desse inimigo é que eu também estarei. Virtuose absoluta, obviamente, é quando todas as partes agem assim, e em função da alegria do todo, pois quando o todo está alegre, potente, cada parte não tem como  não estar. Contra o golpe, portanto, amor ao povo golpeado.

 

Dois projetos de sociedade, dois logotipos

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Um governo é um projeto de sociedade. E a “cara” desse governo está em todo e cada ato dele, inclusive na publicidade que o inaugura. O logotipo-lema com o qual um governo se apresenta à sociedade já diz quem ele é e com quem deseja falar. Nesse momento brasileiro de transição de governos, somos apresentados ao logotipo-lema do governo -de exceção, golpista- de Michel Temer, que ilegitimamente afastou o governo Dilma Rousseff, que outrossim iniciou seu governo com seu logotipo-lema próprio. Então, vale analisar a primeira “cara” com que cada um deles se apresentou à sociedade brasileira, suas logo-lemas inaugurais, pois já aí podemos ver o que está e o que não mais está em jogo na mudança de projeto de sociedade que golpe o tupiniquim inaugura.

Como a proposta aqui é analisar o que simbolizam os logotipos de apresentação dos governos Dilma e Temer, estaremos no terreno da semiótica, ciência dupla que estuda os símbolos relacionando a “forma” com o “conteúdo”. Em outras palavras, a relação do “o que é mostrado” com o “o que se quer mostrar”. Para tanto, vale dedicar um instante estético à imagem que ilustra esse texto, que traz os dois logotipos em questão. Na parte superior da imagem, o logo-lema com o qual o governo Dilma se apresentou à sociedade. Na inferior, o do governo Temer. Para simplificar a leitura, doravante serão usadas as expressões “logo Dilma” e “logo Temer” para falar dos logotipos-lemas inaugurais dos dois governos.

Em primeiro lugar, chama a atenção a oposição entre a policromia do logo Dilma e a proposta monocrômica do logo Temer. Ora, do Brasil é dito que é uma país de muitas raças, crenças, credos. Simbolicamente, de muitas cores. Já aqui podemos ver que o logo Dilma se preocupou em contemplar essa diversidade. O logo Temer, por sua vez, elegendo prioritariamente o branco e o azul , não tem intenção alguma de ressaltar a pluralidade que vive na nossa terra. Como não lembrar aqui do velho mito desigualitário do sangue azul dos brancos ricos aristocratas? A palheta de cores através a qual um governo se apresenta, portanto, já é um filtro, crômico, que informa semioticamente com quem e para quem está falando. Dos dois logos, o de Dilma, obviamente, é bem mais democrático.

Em segundo lugar, temos a distância entre a proposta naif do logo Dilma e o tecnicismo “corelDRAW” do logo Temer. Naif, que em francês significa ingênuo, no mundo da arte fala de uma produção alheia ao academicismo tradicional e se caracteriza, digamos assim, pela simplicidade popular. O logo Dilma traz a ideia de que, senão é feito à mão, ao menos poderia sê-lo, e por qualquer um. A irregularidade do desenho da bandeira brasileira no centro do logo Dilma diz que o Brasil também é o que até mesmo uma criança consegue desenhar. Em contraste, o design assaz digitalizado do logo Temer, com sua esfera e estrelas perfeitas e dispostas em função de uma rígida simetria, é coisa que somente um já iniciado e já equipado tem condições de produzir. Agora, infelizmente, o “logotipus brasilis” fala mais de meritocracia do que de democracia.

Em terceiro lugar, se pensarmos em que nível os dois logotipos pressupõem os seus observadores, temos que o logo Dilma, por ser deliberadamente chapado no plano de apresentação, não se coloca nem acima nem abaixo de quem o vê. Tampouco propõe distorção de perspectiva, uma vez que para o “Brasil” ser efetivamente um “País de Todos” o lema não deve parecer outro em função da posição do observador. O logo Temer, em troca, coloca o “Brasil” e o “Governo Federal” vistos de baixo para cima e em dramática perspectiva, fazendo com que o observador nunca esteja à altura deles. E, pior ainda, para se estar em pé de igualdade com o Brasil de Temer a escalada é árdua.

Em quarto lugar, vemos que em oposição à garatuja de bandeira brasileira que “ingenuamente” compõe a letra “A” da palavra Brasil, o logo Temer mutila a bandeira Brasileira, trazendo somente o seu centro, a bola azul e as estrelas brancas, deixando claro que a bandeira nacional, com a riqueza e diversidade que ela representa, não tem mais lugar junto ao “BRASIL” e ao “GOVERNO FEDERAL” golpista. Mais ainda, que esse centro azul estrelado propositalmente alienado de sua periferia verde e amarela se coloca na frente do Brasil, gerando inclusive uma sombra sobre o nome do país. Vale ressaltar também que o logo Dilma dispensa a frase positivista “Ordem e Progresso”, enquanto que o logo Temer, com seus jogo de profundidades, coloca esse questionável positivismo em primeiríssimo plano.

Em quinto e último lugar, todavia deixando o plano semiótico e caindo no linguístico, não poderiam ficar de fora da presente análise os textos dos dois logotipos. Afora a presença de “Brasil” e de “Governo Federal”, comum aos dois, temos no logo Dilma a ideia de “um país de todos”, e no logo Temer, a de “ordem e progresso”. Um país historicamente estruturado na desigualdade -social, econômica, racial, de gênero- é revolucionado ao ser lematizado “de todos”, ao passo que, ressuscitando os velhos ordem e progresso o logo Temer apenas dá, de modo reacionário, continuidade à produção da desigualdade estrutural da qual o logo Dilma já pretendia se ver livre. Que ordem e que progresso são esses do logo Temer? Melhor dizendo, quem dita essa “ordem” e esse “progresso” que se coloca de modo vertical na já “cara” com que esse governo golpista se apresenta?

Em suma, o logo Dilma tem a virtude de contemplar a diversidade étnica e religiosa brasileira com suas muitas cores; o espírito popular livre de qualquer “academicismocentrismo” com a proposta naif; um país de todos com a horizontalidade com que esse lema é apresentado; e a liberdade em relação aos velhos dogmas com a eliminação dos positivistas ordem e progresso. Em contraste, o logo Temer é assaz vicioso ao contemplar os brancos de sangue azul com a eleição quase exclusiva dessas duas cores; o espirito meritocrático-tecnicista que melhor atende os Senhores do Liberalismo; o desnível social com a perspectivação do Brasil e do Governo Federal a ponto de todos estarem bem abaixo deles; e, por fim, a revivificação de velhos dogmas com a, digamos assim, “primeiro-planização” do “Ordem e Progresso”.

Mais triste do que ver o elitista logo Temer substituir o democrático Logo Dilma, no entanto, é saber que, em se tratando de propostas para o Brasil, a de Temer afastou a de Dilma. E com esse afastamento, a alienação, para fora da arena social -assim como para fora do logotipo golpista-, da diversidade étnica, do espírito popular, da horizontalidade social, e da possibilidade de seguirmos adiante livres de um lema importado do velho mundo por uma elite que outra coisa não quer senão que o passado “progrida” futuro adentro, segundo as suas “ordens”, sem pedágios sociais, e carregando consigo velhas desigualdades e privilégios. Mesmo substituído, que a ideia por trás do primeiro logotipo do governo Dilma ao menos permaneça viva como a memória de uma proposta de um novo Brasil, que, em 2016, entretanto, ainda pode ser afastada pelo velho Brasil.

 

O preço de ser mídia golpista

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A grande mídia brasileira é não só o arauto, mas também coprodutora do quase finalizado golpe tupiniquim de 2106. E o jornalismo da Rede Globo merece destaque nesse poderoso, ilegítimo e antidemocrático projeto para o Brasil. O alto preço dessa espécie de vitória dos “jornalistas” Globais, contudo, é que, após ter vendido sistematicamente o golpe, ao vivo em e em cadeia nacional, a emissora fica impossibilitada de voltar, melhor dizendo, de começar a fazer jornalismo de verdade.

Mesmo com Dilma Rousseff e o PT afastados, e os velhos Michel Temer e PMDB ocupando o poder, a Globo não tem como começar a reportar a realidade conforme ela se apresenta. Como falar da absurda ausência feminina no ministério golpista, da inacreditável eliminação do Ministério da Cultura, do impopularíssimo fim da valorização do salário mínimo e da austera redução das aposentadorias sem com isso dizer que foi justamente o golpe que ela ajudou a instalar o produtor dessa angusta distopia?

O que resta para o jornalismo da Rede Globo nessa, digamos assim, saia-justa é seguir sendo parcial, isto é, continuar manipulando o real até que ele se pareça com o ideal desejado. Novamente, isso significa não poder polemizar, quiçá condenar o machismo, o racismo, a homofobia, o elitismo e o vil liberalismo que estão no cerne da “Ponte para o futuro” golpista vendida espetacularmente pela emissora. Ou seja, a impossibilidade de fazer algo a que eles se propõem: jornalismo.

Será que a Rege Globo sabia que não tem como apenas alugar a alma ao diabo pelo tempo que o pecado for conveniente, para, em seguida, recuperá-la incólume? Ou a emissora aprenderá somente agora que ao Mal só se vende definitivamente o espírito; patrimonialista egoísta e irrecuperável que é o Capeta? De qualquer forma, estranha virtude essa a do Diabo de não permitir o fim dos seus contratos.

Não totalmente virtuosa porque a impossibilidade de deixar de produzir uma propaganda ideológica disfarçada de jornalismo outra coisa não é que a permanência da mentira onde poderia começar a haver o ideal objetivo do jornalismo: o aclaramento do real. Não totalmente viciosa, todavia, porquanto é bom que o mentiroso-criminoso não possa se alienar oportuna e estrategicamente de sua vil essência.

Não é mistério para ninguém que alma da Globo está com o Diabo desde o seu princípio, filha da ditadura iniciada em 1964 que é. No século XXI, entretanto, a empresa repactuou fortemente com a Besta. E um dos principais motivos desse bestial estreitamento de relação é que a concessão do Estado que permite à Globo ser o império midiático que é expira em 2018. São, portanto, os interesses imperialistas da empresa que estão em jogo.

Por isso é mister para a empresa que à época de repactuar a sua concessão haja um Estado tão avesso à verdade, à democracia e à descentralização da mídia quanto ela. E se a velha oligarquia derrotada na eleição presidencial de 2014 não for o Estado em 2018, a emissora terá de se curvar, um pouco que seja, ao projeto de Brasil um tanto mais democrático eleito diretamente por 54 milhões de cidadãos naquela mesma eleição. Era agora ou nunca mais o golpe da Globo!

Desde sempre contrária a governos verdadeiramente democráticos, a Globo, desde a redemocratização do Brasil, fez de Lula e do seu Partido dos Trabalhadores os seus espantalhos reacionários espetaculares. Quem não lembra da Global manipulação da realidade nas eleições presidenciais de 1989? Até o então diretor de programação da Globo, o Boni, admitiu publicamente que a emissora armou contra Lula para eleger Collor. Mea culpa que, entretanto, demorou 22 anos para acontecer.

O apoio irrestrito aos vinte anos de ditadura militar no Brasil; a assunção de Boni de que a Globo elegeu o presidente que ela queria em 1989; a atual colaboração no ilegítimo afastamento de uma presidenta democraticamente eleita em 2014 -só para citar os golpes mais espetaculares da emissora nos últimos 50 anos-; de um ponto de vista minimamente democrático são razões mais que suficientes, senão para cancelar, ao menos para rever duramente a concessão dada pelo Estado, diga-se de passagem, à empresa.

Só restava à Globo vender o que restava de sua fétida alma ao Diabo. E o plano parece estar dando certo. A vitoriosa investida da empresa contra Dilma e o PT, que no final das contas visa ninguém outro que o velho Lula e a sua histórica popularidade, é o projeto em curso da emissora para que na renovação de sua concessão, em 2108, o PMDB e PSDB sejam os Diabos com os quais ela renegociará. O Mal cobra fidelidade!

Poderosa, mais forte do que 54 milhões de cidadãos juntos, a Globo mais uma vez coloca no poder quem que mais lhe interessa. Passivo, o povo brasileiro assiste em cadeia nacional à emissora realizando seus desígnios particulares. Tal vitória, entretanto, é um lento tiro-no-pé, pois na mesma telinha poderosa podemos assistir à Globo cada vez mais impossibilitada de tratar do real: “jornalistas” mulheres sem poder criticar o machismo do golpe que ajudaram a construir; “economistas” sem poder avaliar os danos do projeto econômico do governo Temer que viabilizaram; “comentadores” de cultura sem poder dizer do absurdo do fim de um Ministério da Cultura; e por aí vai.

Pelo andar da carroça brasilis, em 2018 a Globo ainda não precisará se confrontar com as cada vez mais tácitas contradições nas quais o seu projeto imperialista a coloca. Contudo, se restar alguma coisa de democracia no Brasil, chegará o dia em que o Estado, melhor dizendo, os cidadãos que o constituem, não renovarão a concessão de uma empresa que trata apenas de si mesma e não da realidade comum. Para isso, todavia, precisamos ao menos manter viva a utopia de um mundo no qual 54 milhões de votos tenham mais poder do que uma dúzia de falsos jornalistas.

Tiraram Dilma para Cristo

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Foto: Lula Marques / Fotos Públicas

“Honesta, Dilma pode ser afastada por criminosos”, dizia o The new York times em 13 de abril de 2016. E foi! Um mês depois da manchete do jornal americano, em 13 de maio, a presidenta democraticamente eleita pelo voto direto de 54.501.118 de cidadãos brasileiros está afastada. Nem foi difícil. Bastaram precisos 422 votos golpistas -367 de deputados federais e 55 de senadores da república- para anular os mais de 54 milhões de votos com os quais Dilma se elegeu. Os vitoriosos votos golpistas são pouquíssimos, porém, temos de reconhecer, têm poder: o poder da velha oligarquia política-econômica tupiniquim.

A estratégia do golpe: ter transformado em crime uma prática corriqueira de governança, muito usada pelos golpistas aliás, seja em governos passados, seja nos atuais. Estamos falando de manobras fiscais, que, entretanto, na linguagem do golpe é chamada de “pedaladas fiscais”. Crime, obviamente, não para todos, muito menos para os próprios golpistas, mas apenas para Dilma. E para quê? Ora, para que eles, e somente eles, possam seguir “pedalando fiscalmente”, contudo, diferente de Dilma, é preciso frisar, contra os interesses populares.

Agora, sejamos sinceros: quem, cotidianamente, não comete espécie de “pedaladas fiscais” com suas finanças pessoais? O crédito, essência do mundo capitalista, é a “pedalada fiscal” legal e institucionalizada por excelência. A mais democrática aliás. E para que não seja crime, basta pagar em tempo o que se tomou a crédito. Para Dilma, entretanto, essa regra universal não deve funcionar. A presidente afastada, em 2015, fez manobras fiscais, isto é, pegou dinheiro de onde tinha, colocou onde não tinha, e, antes da conta vencer, pagou 72,4 bilhões de reais, saldo acumulado até dezembro de 2015. Mas…

Para a primeira mulher a governar o Brasil, contudo, é negado aquilo que nossos cartões de crédito e cheques especiais nos oferecem insidiosamente. Mais grave, a espetacular criminalização das manobras fiscais de Dilma é a magia política que não só oblitera o fato de que os criminosos golpistas que afastaram a presidenta sempre agiram da mesma forma, como também, e principalmente, purifica-os estrategicamente, para que, doravante, eles possam seguir manobrando o fisco brasilis do seu modo antidemocrático de sempre. Só que agora com o privilégio de um Cristo político espetacularizado, Dilma, que passa e incorporar simbolicamente os pecados deles.

Dilma, com efeito, foi transformada em espécie de Cristo. Pagou com a sua carne política os pecados fiscais de todos, não só os dos que vieram antes dela, mas também os de seus contemporâneos “pedaladores”. Assim como Jesus, que na cruz redimiu a humanidade da inobservância às leis e à existência de Deus, a crucificação política de Dilma outrossim redime os golpistas da velha inobservância às leis que os fazem ser quem são. Agora, a corrupta oligarquia política brasileira pode mentir a si mesma e ao povo brasileiro que está limpa, purificada justamente pelo banho de sangue com o qual inundou a arena política do país e mediante o qual afastou Dilma do lugar que a maioria dos cidadãos a colocaram.

Dilma Rousseff, crucificada e destituída, traz uma mensagem universal: pedaladas fiscais, na verdade, nunca foram, não são, nem serão crime. Basta ver os antecessores e os atuais crucificadores da presidenta afastada. Todavia, criptografado nessa antidemocrática mensagem está que tais manobras financeiras serão crimes sim, oportuna e pontualmente, para alguns bois-de-piranha simbólicos, senão para que a manada “pedalante” e golpista siga atravessando ilesa –pela tal “Ponte para o futuro”-  o mar de lama que ela mesma produz e onde se sente em casa.

Entretanto, se há uma verdade duramente aclarada com a “crucificação” de Dilma, é que, a despeito dos nossos ideais democráticos, no fim das contas governa quem tem mais poder, que, com efeito, no mundo capitalista, é quem tem mais dinheiro, e não mais votos. Essa é a intragável verdade à qual devemos atentar se quisermos que, no futuro, 422 votos oligarcas&golpistas não tenham mais poder que 54.501.118 votos cidadãos. Melhor dito, se realmente desejarmos viver em um verdadeira democracia, e não em uma oligarquia plena cujo apelido estratégico, não obstante, calhou de ser “democracia”. Até lá, infelizmente, Dilma e outros iguais a ela serão Cristos funcionais aos novos projetos da velha oligarquia brasileira.

54.501.118 + 1 golpes sob a “Ponte para o futuro”

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Foto: Roberto Stuckert Filho – Fotos Públicas

O novo golpe da velha oligarquia brasileira contra a presidenta democraticamente eleita, que, hoje, 12 de maio de 2016, afasta-a oficialmente do seu cargo por seis  meses, não faz de Dilma Rousseff a maior vítima desse momento farsesco. A atual senhora, que quando jovem foi torturada pela ditadura militar por lutar pela democracia, outro destino não terá senão a absolvição histórica. As maiores vítimas, na verdade, estão antes e depois dela: em uma ponta, os 54.501.118 de cidadãos que votaram em Dilma e no seu projeto de país, e, na outra, a própria democracia. Eu, cidadão brasileiro que votei em Dilma, não tenho como deixar de pensar e sentir que o golpe é contra mim.

Se em 2104 o meu voto nas políticas de distribuição de renda e de inclusão social foi vitorioso, e deveria ser respeitado até 2108, o impedimento desse projeto de país  por golpistas que pretendem fazer justamente o contrário é um atentado pessoal, no entanto nas vestes de uma manobra democrática. O pior de tudo é que, hoje, há no mínimo 54.501.118 vítimas como eu. E os algozes dessa violência são, de um lado, golpistas abstratos, tais como: o capital ele mesmo, a velha oligarquia brasileira, o PMDB, o PSDB; e, por outro, golpistas concretos, quais sejam: Michel Temer, Renan Calheiros, Eduardo Cunha, mais 367 deputados federais e 55 senadores que votaram pelo afastamento de Dilma.

Os oligarcas golpistas, essencialmente reacionários, ilegitimamente deram um golpa porque não mais suportaram a evolução pela qual passou o Brasil nos últimos 13 anos, desde que Lula e o PT chegaram ao poder. Acostumada com privilégios históricos, a elite tupiniquim finalmente conseguiu viciar a democracia a ponto de ela, paradoxalmente, ser capaz de dar cabo de incontestáveis virtuoses sociais, como por exemplo, a valorização do salário mínimo e a universalização do acesso ao ensino superior. O golpe encerra precisamente esse projeto de país: no lugar do melhor para a maioria, o melhor para quem sempre teve mais do que a maioria. Em suma, a retomada e a radicalização da desigualdade social que vinha sendo amenizada pelos governos petistas.

Intrigante é o nome do projeto que a elite reacionária e golpista quer para o Brasil: “Ponte para o futuro”. Só mesmo que não consegue transpor o passado em direção ao futuro com horizontalidade precisa de uma “ponte” entre estes dois. A metáfora da ponte é a assunção de que para os reacionários há um abismo a separá-los do futuro. E para não precisarem trilhar o desafiador presente em toda sua complexidade e diversidade, pulam-no mediante a construção de uma “ponte” que dá acesso privilegiado do passado ao futuro. O problema é que o presente é o chão não só dos quase 55 milhões de eleitores de Dilma, mas de 200 milhões de brasileiros que ficarão debaixo dessa ponte golpista vendo a elite desfilar vitoriosa a manutenção do seu velho modus operandi.

Desde a primavera brasileira de junho de 2013 muito de fala na tal crise de representatividade, que, entretanto, até aqui ainda figurava assaz abstrata. Agora, porém, ela se mostra mais concreta do que nunca, amargamente concreta aliás: centenas de representantes políticos democraticamente eleitos, com nomes, rostos e partidos bem definidos, que descaradamente representam não a manutenção dos interesses populares que os elegeram, mas apenas os seus interesses pessoais e partidários. O golpe representa espetacularmente a péssima qualidade da representatividade dos nossos políticos; um suspeito de tráfico internacional de droga, outro acusado de ser dono de contas ilícitas no exterior, e a maioria deles investigados por receberem propinas milionárias. Destruindo a democracia, os “representantes” golpistas constroem a “ponte” que os aliena da Lei que, não obstante, deveria valer para todos, indiscriminadamente.

“Corruptos querem depor uma presidenta honesta” é frase que corre desde a boca de Dilma às manchetes dos mais renomados jornais internacionais. Oxalá o teor dessa declaração não cesse de repercutir não só nesses seis meses de afastamento ilegítimo que a presidenta enfrenta, mas, principalmente, história adentro, sendo Dilma deposta definitivamente ou não. Que a injustiça que Dilma sofre hoje, que ela tem dignidade suficiente para declarar abertamente em alto e bom tom, de fato faça história. O futuro, que nunca precisou de ponte alguma para se conectar com presente, certamente agradecerá essa memória.

E o que é importante não esquecer é que Dilma está sendo tirada do poder para que a elite reacionária possa levar o passado adiante mediante a sua natimorta  “Ponte do futuro”. Todavia, afastada, Dilma em outro lugar não está que no cru chão do presente, desapoderada, certamente, porém, absolutamente horizontalizada com no mínimo os 54 milhões de cidadãos que a elegeram e que tiveram seus votos jogados no lixo pela farsa jurídico-política de algumas centenas de oligarcas golpistas. A “ponte” deles, mesmo que leve algo ao futuro, não tem como levar todos a esse destino. Ponte alguma permite que todos sigam lado a lado em direção ao outro lado; a estreiteza de qualquer ponte apenas coloca uns na frente dos restantes e outra coisa não faz senão permitir que somente uma minoria chegue primeiro onde todos temos direito de chegar simultaneamente: num futuro mais igualitário.

Novamente, só precisa de uma “Ponte para o futuro” quem não consegue caminhar pelo chão do presente. E só não consegue trilhar o presente quem não tem capacidade conviver com a horizontalidade da realidade, mas só com a verticalidade social que sobreleva uns poucos em relação à maioria. Sem dizer que quem erige uma ponte pode cobrar o pedágio que bem intender para quem quiser cruzá-la. Desse modo, estreitando o acesso ao futuro à largura de sua “ponte elitista”, os golpistas reservam o futuro para si, para que ele seja sempiternamente o velho passado que pretere a maioria das pessoas em benefício de uma minoria. E quando essa “Ponte para o futuro” estiver terminada, e o futuro for tal qual o velho passado oligárquico, aí sim o povo poderá chegar nele, entretanto, para estar subjugado às elites, como sempre. Eis a razão do golpe e dessa ilegítima “Ponte para o futuro”.

 

Hashtagtivismo: preguiça revolucionária?

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arte: Rafael Silva – imagem base: Banksy – publicdomainpicture

 

A experiência da vida-em-rede-social tenta, por todos os links, nos convencer de que tudo o que queremos e precisamos está à distância de um click, inclusive, pasmem, mudar o mundo. Porém, as desventuras éticas, políticas, econômicas, ecológicas, etc. desse mesmo mundo mostram que, em se tratando dele, o buraco é mais em baixo. Sua revolução não está disponível às pontas dos nossos cursores e nas poucas polegadas dos nossos smartphones. O que, entretanto, conseguimos tentando revolucionar a realidade por meio de cliques?

No Facebook, uma postagem que prometia a cassação de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos deputados do Brasil, dizia o seguinte: “Clique aqui para depor Cunha”. Ora, Cunha tem contra si não só a opinião pública, mas também, e há anos!, inúmeros crimes e suspeitas gravíssimas que, entretanto, em nada impediram a sua ascensão e permanência no poder. Pior ainda, ele está depondo Dilma, presidenta democraticamente eleita. Como crer que apenas “clicando aqui” tiraremos o poderoso Cunha de onde ele está? O deputado corrupto, ao contrário, parece se fortalecer com as ofensivas do exército de “clickinimigos” que tem.

Banalíssimo hoje em dia também é o uso das hashtags. Algumas letras e palavras se seguindo de um “jogo-da-velha”, e “tudojunto”, fazem com que anseios e descontentamentos individuais sejam imediatamente coletivizados e pareçam ter algum lugar e potência no mundo. Fala-se aqui de um “hashtagtivismo”, isto é, de um ativismo de hashtag! #occupywallstreet, #vempraruavem, #nãovaitergolpe, são alguns exemplos desse tipo de manifestação-rede-social que, virtualmente, convencem muitas pessoas de que estão engajadas em alguma mudança real.

Para entender melhor o que é o “hashtagtivismo” é preciso conhecer o seu pai, o “clicktivismo”, algo como “ativista de clique”, expressão cunhada para dizer daqueles que usam as redes sociais como forma de organização e protesto. Indo mais fundo, chegamos ao seu avô, o “slacktivismo”, termo criado em 1995 que significa “ativismo preguiçoso” (slack, em inglês, significa folga, preguiça). Compreendendo a “árvore genealógica” do nosso banal “hashtagtivismo” podemos concluir que ele descende da preguiça revolucionária.

Ainda contra o presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, podemos perceber a impotência das hashtags. O memético #ForaCunha que se enfileira nas timelines tupiniquins desde 2015 em nada impediu o corrupto indesejado não só de permanece até agora no seu cargo, como também, na sua empresa para depor uma presidenta democraticamente eleita, desmontar a própria democracia da qual, aliás, depende a pretensa potência do “hashtagtivismo”.

O que estaria por trás desse ativismo virtual em forma de “cliques preguiçosos” que pouco ou nada pode contra a tenacidade de seus inimigos reais? Seria a insuficiência das manifestações tradicionais, aquelas formadas pela presença física de manifestantes munidos de gritos de ordem, cartazes e faixas, nas ruas e praças públicas? Destas, contudo, temos de admitir que não têm mais como alcançarem seus objetivos sem o seu outro virtual, “clickico”, “hashtaguico”, uma vez que virtualidade e realidade cada vez menos se distinguem na contemporaneidade.  O buraco, porém, é mais embaixo do que se pode supor.

A filósofa Marilena Chaui, no Ato pela democracia, realizado em março de 2016 na PUC paulistana em decorrência da tentativa de golpe contra a presidenta Dilma, chega a dizer que sequer a presença física dos manifestantes nas ruas serve de alguma coisa enquanto suas performances políticas se resumirem no repetitivo grito “Não vai ter golpe!”. Podemos dizer inclusive que essa frase-grito é tão inócua contra o real inimigo que simultaneamente golpeia Dilma e a democracia brasileira quanto a sua versão-rede-social, antecedida de uma hashtag e replicada aos milhões.

Sequer as duas formas de protesto juntas, a presencial, com milhares de pessoas nas ruas, e a virtual, com milhões de pessoas clicando e hashtaguiando compulsivamente, estão dando conta do problema. O que Chaui quer evidenciar com o apontamento desse impasse é que, se não queremos que os canalhas e corruptos que ocupam o poder usem-no contra nós, devemos nós mesmos preencher este lugar de poder no qual eles estão. Ora, de nada adianta protestar, seja virtualmente, seja presencialmente, se, antes, permitimos que os canalhas e corruptos ocupem o poder. Uma vez eles lá, e suas canalhices e crimes cometidos, protestar é paliativo; apenas a “slack” liturgia da nossa impotência.

Óbvio é que uma hashtag não faz revolução. Menos claro, todavia, é que sequer milhões delas cumprem essa tarefa. Mais indigesto ainda é perceber que, hoje em dia, no Brasil, o hashtagtivismo virtual e o ativismo presencial juntos não estão conseguindo fazer o “Não vai ter golpe!” funcionar. Cunha, o PMDB, o PSDB, e toda a elite tupiniquim estão surfando, e vitoriosamente, a onda “hashtagtivista” contrária a eles. E pouco importa que as marés anti-golpe, tanto as virtuais quanto as presenciais, tenham extrapolado o território nacional e ganhado o mundo. O golpe segue firme e forte.

Parece que tudo o que entendemos por ativismo político, seja o clássico, presencial, seja o contemporâneo, virtualizado, seja ainda os dois combinados, se mostra ineficiente diante do poder contra o qual temos de lutar atualmente. Gritar nas rua ou lotar as timelines com hashtags, com efeito, ainda hoje faze barulho. O problema, no entanto, é que esse ruído é imediatamente ouvido pelo poder contra o qual se volta e, sem mais, facilmente abafado por este. Muitos dizem inclusive que o formato “protesto”, seja ele presencial, seja virtual, é apenas a performance que aqueles que detêm o poder permitem às pessoas para que nada realmente mude.

Por isso, enquanto chorarmos hashtags nas redes sociais ou gritarmos frases de efeito nas ruas depois do leite derramado, isto é, depois de sermos transformados em massa subserviente de políticos, juízes, delegados e policiais canalhas e corruptos, aquilo que queremos mudar permanecerá onde está, incólume. Marilena Chaui aponta a solução; temos de ouvi-la: os cidadãos que estão insatisfeitos e que se sentem ultrajados pelos desfeitos dos seus representantes devem ocupar esse lugar de representação eles mesmos. Ativismo político virtuoso, para quem não quer corrupção nem impunidade no mundo em que vive, é participar direta e lisamente das esferas do poder.

A ineficiência dos “slacktivismos”, isto é, dos “ativismos preguiçosos” apenas revela uma outra face da já conhecida crise de representatividade política. O “hashtagtivismos”, temporão da preguiça revolucionária, é só mais uma expressão dessa crise: a incapacidade de inclusive os indivíduos se representarem eficientemente. Enfieiramos algumas letras depois de uma hashtag, postamos esse neoativismo no oceano virtual das redes sociais, e esperamos dele o mesmo que dos canalhas corruptos que elegemos nossos representantes: a solução dos nossos problemas.

O “hashtagtivismo” preguiçoso pode render centenas de “likes” e, mais ainda, a bela ilusão de que somos um exército imenso, forte, imbatível até. Porém, lembrando que a hashtag não foi criada para ser arma revolucionária, mas para indexar conteúdo digital existente, podemos concluir que ela, na verdade, é uma ferramenta reacionária: trata verticalmente do que já há. As hashtags por meios das quais cremos agir politicamente, portanto, outra coisa não fazem que nos colocar nos índices contemporâneos da falta de potência e da incapacidade de representarmos a nós mesmos de modo eficiente e revolucionário.

Utopia e revolução

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O ser humano precisa da utopia”, afirma o sociólogo Antônio Ozaí da Silva no seu artigo Ideologia e Utopia. Isso porque o homem é um ser imaginativo, o único capaz de pensar realidades para além da realidade imediata. E quando essas realidades imaginadas passam a ser habitadas por outros que a partir de então começam a sonhar o mesmo sonho, as utopias são passíveis de serem realizadas. Importante é saber que o pensamento utópico que transcende o status quo não pode se efetivar solitariamente, pois utopias estão relacionadas a grupos sociais, e enquanto não forem incorporadas por eles não terão efeito. Qual é, então, o papel da utopia e da coletividade que ela engendra na esperança de construção de um futuro melhor?

Outro sociólogo, Karl Mannheim, autor do clássico Ideologia e utopia, sustenta que “a desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático em que o próprio homem se transforma em coisa”. Ou seja, sem imaginar outras realidades ele apenas é essa coisa chamada realidade. Por isso é fundamental manter aberto um espaço para as utopias, pois elas renovam a possibilidade para os indivíduos insistirem em um outro mundo. Quanto mais não seja, para Mannheim, “A erradicação da utopia só é possível com a sua realização”. Pragmaticamente falando, mesmo que derrotada em suas respectivas épocas, as utopias sobrevivem e são incorporadas pelas gerações vindouras.

Marilena Chaui, nas suas Notas sobre utopia, esclarece que a utopia nasce na renascença como um gênero literário — a narrativa sobre uma sociedade perfeita e feliz — e um discurso político — a exposição sobre a cidade justa. Porém, para vir ao mundo seu percurso foi longo. Chaui conta que, primeiro, teve de haver o colapso do teocentrismo medieval para que o homem tivesse participação no destino do mundo e para que percebesse que é dotado de capacidade e força não só para conhecer a realidade, mas sobretudo para transformá-la. Aqui vale citar o adágio celebrizado por Francis Bacon: “o homem é o arquiteto da Fortuna”. Em segundo lugar, fundamental para o vir-a-ser do pensamento utópico foram as viagens marítimas iniciadas no século XV e a descoberta de novas terras e povos que inspiraram fantasias de sociedades perfeitas vivendo em plena harmonia com a natureza.

E dizendo que, etimologicamente, utopia significa não lugar ou lugar nenhum, Chaui quer reforçar não só que utópico é o lugar que nada tem em comum com o lugar em que vivemos, como também e principalmente que “utopia significa, simultaneamente, lugar nenhum e lugar feliz … Ou seja, o absolutamente outro é perfeito”. Afirmando a perfeição do outro, o utópico outra coisa não faz que propor uma ruptura com a totalidade existente. Para a filósofa, a sociedade imaginada pode ser vista como negação completa da realidade existente ou como visão de uma sociedade futura a partir da supressão dos elementos negativos da sociedade existente. Temos aqui a utopia compreendendo tanto o horizonte revolucionário quanto o reformista? Chaui corrobora com isso dizendo que “o utopista é um revolucionário ou um reformador consciente do caráter prematuro e extemporâneo de suas ideias”.

Mannheim aqui é de grande ajuda, pois, para ele, a mentalidade utópica deve ser compreendida segundo maneiras de pensar, sentir e agir que são coletivamente determinadas no sentido de transformar a realidade dominante de acordo com as aspirações do próprio grupo que deseja transformá-la. O sociólogo compreende essas formas de pensar, sentir e agir no mundo ou como ideológicas, ou como utópicas; Ambas, porém, motivações coletivas que determinam a forma como os indivíduos agem e pensam. A diferença principal, entretanto, é que ideologia identifica-se com conservação, e utopia, com mudança. Fazer de ideologia e de utopia sinônimos é um erro, mais difícil de ser percebido na expressão ideologia revolucionária do que no absurdo utopia conservadora. Utopias são contestatórias por natureza; colocam a revolução diante da ordem estabelecida; apontam a possibilidade do não-lugar justamente no lugar que não dá lugar a ela.

Com efeito, são os grupos dominantes que determinam o que será utópico no ato de criticar as concepções dos grupos que lhe são opostos. Em contrapartida, são os grupos que fazem oposição aos grupos dominantes que determinam como ideológicas as concepções destes. Em suma, as ideologias refletem a ordem social dominante, e as utopias, um futuro almejado que supera essa ordem dominante. Mannheim exemplifica isso relembrando-nos de que no momento histórico em que a burguesia se fortalecia economicamente, suas aspirações eram consideradas utópicas pela aristocracia feudal dominante. Porém, uma vez que a burguesia conquistou o poder, isto é, realizou a sua utopia, a sua concepção de mundo passou a ser dominante, e, doravante, o grupo que passou a ser oprimido por ela, o proletariado, passou determiná-la de ideológica.

Chaui corrobora com Mannheim afirmando que a utopia surge como possibilidade objetiva, inscrita na marcha progressiva da história. A filósofa esclarece, contudo, que nenhuma utopia mudou o curso da história por seu realismo, mas, ao contrário, pela negação radical das fronteiras do real instituído e por oferecer aos agentes sociais a visão de inúmeros possíveis. Segundo a filósofa brasileira, “O utopista desloca a fronteira daquilo que os contemporâneos julgam possível”, e que ao passar do u-tópos ao tópos, isto é, do não-lugar a um lugar na história, a utopia se transforma em ideologia.

A crítica de Engels e Marx ao socialismo utópico não escapa das considerações de Chaui sobre utopia. Segundo ela, para os dois filósofos alemães a utopia socialista “é um pressentimento ou uma prefiguração de um saber sobre a sociedade … Assim como da alquimia se passou à química e da astrologia à astronomia, assim também é possível passar do socialismo utópico ao socialismo científico”. Passagem do afetivo ao racional, do parcial ao totalizante, do pressentimento à revolução, o socialismo utópico é o primeiro movimento contra a opressora ordem estabelecida. O socialismo científico, por sua vez, é o passo derradeiro: o conhecimento racional das causas materiais da humilhação e da opressão, ou seja, o modo de produção capitalista.

O pensamento utópico, seja em que área for, é a assunção da incapacidade de diagnosticar corretamente a realidade na qual pensa. Entretanto, tem a virtude de dirigir a ação coletiva. Utopia não é exatamente um vir-a-ser, mas um não-ser-que-não-obstante-já-é, uma vez que o lugar do não-lugar é justamente a resistência do real em ceder lugar a outra coisa que não ele mesmo. Por mais que as utopias, de certa forma, sejam discursos sobre o não existente, com isso não podemos dizer que são quimeras, delírios de indivíduos incapazes de ver a realidade. O que o utopista pensa é a mudança, a revolução, pois se o pensamento humano permanecesse prisioneiro da realidade as sociedades estariam condenadas a permanecerem estacionadas no que já são.

Vale seguir as principais características de uma utopia feita por Chaui, feita a partir da Utopia de Thomas More. Segundo a filósofa, uma utopia: é normativa na proposição de um mundo tal como deve ser; é sempre totalizante, pois utopia é criação de um mundo completo; é a visão do presente sob o modo da angústia e da crise; busca a liberdade e a felicidade totais graças à reconciliação entre homem e natureza, indivíduo e sociedade, sociedade e Estado, cultura e humanidade; busca combinar o irrealismo com o realismo; não ocultar nem dissimular nenhum de seus mecanismos e nenhuma de suas operações (ou seja, não é ideológica!); é um discurso de fronteiras são móveis, isto é, pode ser literária, arquitetônica, religiosa, política, etc. Mais do que um programa de ação, uma utopia é um exercício de imaginação, permanecendo assim no plano potencial e hipotético.

Na sequência, Chaui enumera o conjunto de aspectos utópicos que passaram a operar como modelo para obras e discursos utópicos posteriores. Quais sejam: a busca pela cidade feliz ou justa se encontra na excelência da legislação, na estabilidade social, política e institucional; a identificação de cada indivíduo com  a lei ou com o Estado, o desaparecimento da família, da propriedade privada, do dinheiro, da desigualdade social e da competição; a escolha de uma locus insular e isolado de todo o restante do mundo, cuja localização, por segurança, permanece secreta; o planejamento geométrico, urbanístico e arquitetônico enquanto produto da razão que organiza o espaço segundo exigências sociais, políticas e econômicas; demarcação do lugar do poder; a beleza e a salubridade da cidade ideal; e, seguindo Platão na sua utópica República, a recusa do isolamento engendrado na escrita e na leitura solitárias em proveito dos encontros, conversar e debates coletivos.

Foram esses aspectos que, a partir do século XVI, fizeram da utopia um jogo intelectual que passou a combinar a nostalgia de um mundo perfeito porém perdido com a imaginação de um mundo novo instituído pela razão. Francis Bacon se vale disso para criar a sua ilha utópica, Nova Atlântida, na qual projeta todas suas expectativas de um futuro baseado em uma nova racionalidade. Sem duvidar um momento sequer de que o homem pode se tornar “ministro e intérprete da natureza”, Bacon descreve uma espécie de utopia da ciência futura. Seu esforço fez dele profeta da sociedade moderna.

Por que nova Atlântida? Bacon faz alusão à civilização Atlântida, formulada por Platão no diálogo Crítias, enaltecida pelo grego pelas belas instituições e feitos de seus habitantes, sobretudo pela valorização da filosofia, da ciência e pela virtude e sabedoria. O inglês buscou no ideal platônico o protótipo de uma sociedade paradisíaca a ser seguida, modelo, segundo ele, capaz de tornar seres humanos perfeitamente virtuosos. A nova Atlântida de Bacon é uma sociedade harmônica, feliz e próspera, na qual o conhecimento e sua aplicação superaram as limitações da condição humana. As virtudes cívicas não são religiosas; a civilidade ideal nasce do conhecimento e não da fé. Ou seja, Nova Atlântida é a utopia da ciência.

Chaui ressalta que depois de Nova Atlântida o racionalismo e o experimentalismo científicos passam a integrar o discurso utópico. A utopia de Bacon exalta as artes liberais e o trabalho manual e técnico. Nova Atlântida é uma civilização do trabalho; antecipa a sociedade racional produtora de sua própria felicidade mediante a instalação de uma ordem social perfeita. E para não esquecer do que coloca Mannheim, qual seja, que as utopias falam da realidade ao negá-la, que propõem justamente o que não tem lugar na realidade imediata, é importante frisar que Bacon transferiu para sua utopia aquelas aspirações suas que a ordem econômica e política de sua época impediam de serem realizadas. Com efeito, a Nova Atlântida de Bacon era uma crítica à sociedade medieval tardia da qual o pensador gostaria de se ver livre. O pensar, sentir e agir contemporâneos a Bacon, senão romperam com o passado, ao menos revelaram a ruptura sócio histórica que estava em curso.

Com efeito, a utopia de Bacon serviu de paradigma para o pensamento utópico posterior. Tanto que, aponta Chaui, a partir do século XIX a utopia deixa de ser apenas um jogo intelectual-imaginativo para se tornar projeto político no qual o possível se insere na história e constrói o futuro. Doravante a utopia passa a ser deduzida de teorias sociais e científicas. É tida como inevitável porque a marcha da história baseada no conhecimento garante sua realização. A utopia deixa de ser apenas literatura contestatória e se torna prática organizada. A cientifização das utopias resultam em um projeto de reforma global como ciência aplicada.

O problema da viabilidade das utopias mediante a racionalidade e a técnica humanas, entretanto, é que elas passam a ser encaradas pelos poderes dominantes reacionários, isto é, ideológicos, como perigo real. Começam a ser censuradas, desacreditadas e abafadas por bombas de gás lacrimogêneo pelo poder que elas ameaçam. Todavia, a virtude subversiva das utopias está em que, conforme destaca o sociólogo Antônio Ozaí da Silva, a sociedade que nega veementemente uma utopia outra coisa não faz senão produzir as condições para a sua realização. Mais ainda, com Mannheim podemos dizer que é a própria ordem existente, absoluta e ideologicamente contrária à sua própria ruptura, que, entretanto, dá vida a utopias que rompem com o real, abrem a história, possibilitam a mudança, seja ela revolucionária, seja reformista. A utopia, portanto, é uma não-ordem que, na marcha da história e por força de uma coletividade, possibilita as ordens seguintes.

 

A uma periferia da verdade

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O desejo de alcançar a verdade, seja sobre o cosmos, seja sobre si mesmo, levou o homem a criar os mitos, isto é, relatos fantásticos protagonizados por seres que encarnam as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana. Foi preciso milhares de anos para que a mitologia perdesse seu posto de locus da verdade e fosse irreversivelmente substituída pela ciência que, com precisão matemática, acredita-se dizer o que e como as coisas são. Agora, seria um absurdo perguntar se a ciência, em vez de efetivamente tocar a verdade, não estaria apenas inventando as ficções mais efetivas da história da humanidade?

Os mitos lidavam com personagens e situações particulares para, todavia, dizer do universal, ou seja, daquilo que sempre foi, é, e será. O mito de Prometeu, por exemplo, contando a história da sabedoria roubada de Zeus para que os homens pudessem viver longe do paraíso, conta, na verdade, de nós, seres humanos, e da necessária sabedoria que a cada instante devemos furtar para vivermos na natureza. Sendo assim, somos todos nós os eternos larápios, porém, projetados miticamente em Prometeu, pois só a certa distância podemos vislumbrar, sem padecer, aquilo que eternamente somos.

O mítico Édipo Rei, cuja eternidade, todavia, é trágica, só revelou a verdade sobre os desejos incestuosos que todo os homens têm em relação aos seus progenitores à distância de uma plateia e sob o pretexto de um texto. Ora, se se disser a uma pessoa qualquer que ela de fato deseja matar o seu pai e ter relações sexuais com a sua mãe, de forma alguma compreenderia, tampouco aceitaria tais desejos. O mito tem a capacidade de torna o difícil fácil; o inaceitável, palatável. A história da capacidade humana para lidar com o insuportável, não obstante, é contada por outro mito, o de Ulisses e as sereias, que, nas palavras de Adorno, outra coisa não é senão a história da invenção da plateia, ou seja, da distância contemplativa segura.

Por conseguinte, o primeiro passo do homem para além da arena mítica foi trágico. As tragédias gregas, espetáculos nos quais a mitologia seguiu performando a sua pretensão de ser o veículo da verdade, outra coisa não foram que uma nova proximidade, uma nova segurança, em relação àquilo que da natureza e de si mesmo o homem não tinha condições de suportar. Entretanto, o passo derradeiro que definitivamente negou ao mito a posse da verdade foi científico. O tipo de verdade que a ciência inaugurou não carecia, ao contrário do mito, de crença nem de repetição, pois, por um lado, não se corrompe longe da audiência humana, e, por outro, não deseja ser descoberta, dado que aguardou, paciente e incólume, os milênios de protagonismo mítico.

Porém, assim como a tragédia foi um dos veículos da mitologia, é justo desconfiar que a ciência, embora afirmando-se alheia às fantasias, veicule, contudo, algo delas. Ora, os cientistas contemporâneos, diante de equações matemáticas elegantérrimas, no final das contas falam delas mediante enunciados assaz poéticos tais como buraco de minhoca, buraco negro, partícula de deus, etc. Não parece mitológico os nossos físicos dizerem que “uma partícula subatômica ora é onda, ora matéria”? Não estariam eles assumindo que não sabem o que ela de fato é, sempre, e, para remediarem essa incerteza, contam uma boa história?

Portanto, mítica ou cientificamente, estamos condenados a projetar em todas as nossas questões centros de verdade a serem alcançados, contudo, a partir da imensa circunferência das nossas próprias dúvidas. Porém, dessa periferia não escapamos. Prometeu nos dirá sempre que precisamos furtar a sabedoria de que necessitamos, pois ela não nos pertence. Édipo repetirá eternamente que desejamos matar os nossos pais e casar com as nossas mães, pois somos sempre ignorantes em relação aos nossos desejos primordiais. Ulisses, por sua vez, narrará sempiternamente que apenas à distância de uma plateia podemos suportar a verdade, observá-la.

Imaginemos que a relação do homem com a verdade tem a forma de um círculo, a verdade ocupando o centro e o homem a circunferência. O raio desse círculo pode ser de qualquer tamanho e, partindo do centro, apontar para qualquer um dos infinitos pontos que formam a circunferência, mas será sempre uma distância determinada a afastar o homem da verdade central. Podemos nos aproximar desse centro, mas como o raio que nos separa dele é uma reta, isto é, é constituído de infinitos pontos, chegar ao centro verdadeiro exigiria que transpuséssemos o infinito. Tarefa impossível para seres finitos como nós!

Podemos perambular peripatética ou histericamente ao longo da circunferência curiosa na qual estamos, qual o desejo lacaniano em torno do seu pequeno objeto a, que, se tocado, é destruído. Pensando em aproximação em relação ao centro no qual jaz a verdade, podemos inclusive fazer uma gradação entre as infinitas periferias que se estabelecem em relação à verdade central: o mito um círculo maior, a filosofia, um menor, e a ciência, o menor deles, um tanto mais próxima da verdade. Porém, o homem é de uma natureza que estabelece raios irredutíveis entre as verdades centrais e a sua vontade de conhecê-las, Se o homem conseguisse abandonar a periferia de suas dúvidas e conquistar o centro da verdade, não mais a veria, mas somente ele mesmo, um outro mito.

Amor e medo urbanos

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Imagem de domínio público

 

A essência da vida urbana está na constante relação com o Outro. Essa proximidade causa grandes prazeres, mas também medos intensos. Estes dois sentimentos extremos são chamados de mixofilia e mixofobia, amor à mistura e pavor da mistura, respectivamente, pois da mesma forma que a cidade virtuosamente conecta o cidadãos com os demais e com a realização de suas próprias necessidades, também pode, viciosamente, roubar tal conexão. Na urbe, portanto, vive-se a mais intensa experiência de amor e medo em relação à alteridade.

 

Entretanto, o amor e o pavor que o Outro-cidadão pode causar, muito antes de figurarem na heterogênea big picture urbana, são afetos individuais, produzidas pela população de desejos e medos que residem dentro de cada indivíduo. Isso porque uma pessoa só pode nutrir pelos outros sentimentos que ela tenha primeiramente experimentado por si mesma. De que outra forma a subjetividade angariaria objetividade? Antes de amar ou se amedrontar com o exterior, o próprio sujeito já é um mundo simultaneamente amado e amedrontado interiormente, por ele próprio. Todavia, na urbe amor e medo se evidenciam grandemente, e deles pode ser dito que são causados pelos outros.

 

No germe da cidade está a mixofilia, pois ela tem a virtude de aproximar os indivíduos, fazendo brilhar o prazer e a vantagem da presença do Outro. O carnaval, por exemplo, é um evento mixofílico por excelência. Da mixofobia, entretanto, não pode ser dito o mesmo, pois o medo do outro é sistematicamente convertido em isolamento, distanciamento, exclusão; o que desdiz sobremaneira o propósito citadino. Para esse medo: muros, câmeras de vigilância, condomínios e semblantes fechadíssimos!

 

Porém, o medo do Outro não desaparece apenas ao se adquirir distância dele. Essa distância, aliás, é o medo realizado, espacializado: a sua medida urbanizada. Ainda mais angustiante é perceber que esse Outro de quem se tem medo e de quem se deseja separação é um concidadão: foge-se dele dentro da mesma gaiola. O maior problema da mixofobia urbana é que ela institui o não-diálogo entre quem se sente atemorizado e quem causa tal temor. Felizmente, a mixofilia, o amor à mistura, é cidadã a priori da cidade. Pode e deve ser trazida à ágora urbana sempre que o pavor da mistura estiver tiranizando os cidadãos. Na praia, nas festas ou nos estádios de futebol, por exemplo, nos misturamos com prazer, sem o medo ditador imperar.

 

Lutar contra a mixofobia diante da massiva alteridade urbana, imanentemente, é transformar a sempre vulnerável individualidade em uma cidadania mais forte, acolhedora, mixoifílica. Afinal, não foi por segurança que o homem se aglomerou em cidades? Paradoxalmente, o medo de perder tal segurança é que cinde a cidade a partir de dentro. Cada cidadão, portanto, deve encontrar um semovente lugar afetivo dentro da urbe que lhe disponha a cultivar e a viver mais o amor à mistura que à separação. Somos mais cidadãos agrupados no passeio público do que segregados no Alphaville, ora bolas!

 

É na relação mixofílica que somos capazes de estabelecer com o Outro-cidadão que reside a arte de viver na cidade. Até porque, é bom não esquecer, cada cidadão também é um Outro em relação aos demais. Desse modo, o melhor remédio para o cidadão amedrontado com a  presença e com a proximidade do Outro é investir no amor à mistura. Afinal, essa atitude outra coisa não faz senão dizer para esse Outro que ele também amará se misturar, e o que é melhor, sem medo.

Tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser

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O ser humano é transição, e, exclusividade sua, consciência disso. Somos a espécie que não só conhece, mas, principalmente, promove a própria evolução. E essa ininterrupta promenade se expressa em todas as dimensões humanas. Economicamente, vemos isso nas transições históricas, por exemplo, do escravismo para o feudalismo; deste para o capitalismo; e deste último para algo que ainda não sabemos o que, mas que até bem pouco tempo se acreditou piamente ser o socialismo. Entretanto, hoje em dia a descrença nas profecias econômicas à lá Marx nos permite chamar o sucessor do capitalismo apenas de pós-capitalismo.

As transições econômicas que fizeram dos escravos servos e dos servos proletários são conhecidas, cognoscíveis, embora sempre abstratas para nós, contemporâneos. Já a transição de igual envergadura na qual estamos compreendidos, essa não nos poupa da angústia concreta em não saber para onde estamos indo. O fato de não conhecermos o que é esse até então tautológico pós-capitalismo, com efeito, é motivo para espécie de angústia histórica. Os conceitos-bengala pós-proletáriado e pós-capitalismo dão conta apenas parcialmente do ainda desconhecido horizonte diante de nós; pouco anestesiam a dúvida do que de fato virão a ser.

Embora não estivesse falando de economia, o filósofo alemão Martin Heidegger expressou o dilema do homem em meio à transição, todavia do realismo ao relativismo, através da seguinte frase: “Chegamos tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser“. O filósofo queria dizer que a sua idade histórica –que ainda é a nossa- perdeu a fé nas verdades absolutas, isto é, nos deuses, mas ainda não sabe lidar com o Ser, ou seja, com a multiplicidade infinita de interpretação do real. Nesse ínterim no qual nem os deuses nem a pluralidade de sentidos do real nos oferece um chão seguro, ou acreditamos que nada é verdadeiro, ou que a única verdade absoluta é o nada. Eis o efeito colateral do niilismo que deu cabo da modernidade e inaugurou a contemporaneidade humana.

Retomando a dúvida e a perplexidade acerca do que será chamado esse pós-capitalismo tautológico-acessório que com efeito capitulará o inconcluso capítulo econômico histórico  do qual somo os protagonistas, a frase do filósofo alemão pode ser de grande ajuda. A transição econômica pela qual passamos não poderia ser expressa assim: chegamos tarde demais para o capitalismo e cedo demais para o ____________? Um marxista, obviamente, completaria a máxima tascando, sem pestanejar, um socialismo. Isso, no entanto, não seria apenas fazer de um fundamento passado a regra para um presente e um futuro outros? Em outras palavras, a reeleição de um velho deus?

Dizer que chegamos tarde demais para o capitalismo significa que, embora ainda estejamos absolutamente imersos nele, não conseguimos mais crer que ele possa dar conta das necessidades econômicas de todos os indivíduos, mas só de uma minoria deles, cada vez mais minoritária aliás. Não há mais dúvida de que a liberdade revolucionária que o capitalismo significou para o servo medieval, hoje em dia, é liberdade apenas para as elites. Nem o jovem deus que prometeu libertar as pessoas das regulações, qual seja, o Neoliberalismo -termo cunhado em 1938 Ludwig von Mises e Friedrich Hayek- consegue mais manter-nos beatos seu.

Quanto mais não seja, porque segundo George Monbiot, no artigot Para compreender o neoliberalismo além dos clichês, a vangloriada liberdade neoliberal resultou na liberdade dos patrões para reduzir os salários e explorar os trabalhadores; a liberdade em relação à regulamentação significou destruição da natureza; e a liberdade para distribuir a riqueza findou como liberdade para não fazê-lo. De fato, conforme aponta Thomas Piketti no seu Capital no século XXI,  hoje em dia a concentração de renda nas mãos de cada vez menos gente é maior do que em qualquer outro período histórico. É de espantar seguir até o final o texto e os gráficos da obra do economista francês!

Muito tarde para o neoliberalismo e muito cedo para o pós-neoliberalismo? Por certo, mas outrossim demasiado tautológico. Muito cedo para que exatamente? Eis a pergunta que não quer calar. Se, entretanto, a difícil transição metafísica de que falava Heidegger era entre os deuses e o Ser, isto é, entra a univocidade e a plurivocidade absolutas do real, a que está sendo abordada aqui deve ser dita entre a univocidade de uma doutrina econômica, cujo vício entretanto é atender cada vez menos indivíduos, e a plurivocidade de um devir econômico no qual o interesse de todos seja contemplado.

Em se tratando de economia, o que seria então o Ser heideggeriano, isto é, a multiplicidade infinita de interpretação do real? Ora, se, como aponta Monbiot, o deus neoliberal elege “a competição como definidora das relações humanas, e os cidadãos como consumidores que decidem democraticamente o seu destino apenas ao comprar e vender“, a pluralidade de sentidos do real pós-neoliberal, por sua vez, deverá no mínimo significar que as relações humanas não sejam pautadas exclusivamente pela competição nem pelo consumo. Não que a plurivocidade do real econômico vindouro deixe de constar dessas práticas, afinal, menos plural o real seria, e, consequentemente, mais próximo dos deuses permaneceria.

Economicamente, pluralidade absoluta, ausência total de deuses e de verdades únicas, portanto, deve ser uma realidade na qual cada indivíduo possa realizar as suas necessidades materiais da forma que melhor lhe convir, sem, contudo, tal liberdade impedir quem quer que seja de realizar o mesmo, da forma que achar melhor. Os críticos da social democracia dirão que tal liberdade repetirá vícios históricos; que atenderá somente os interesses da burguesia; que o neoliberalismo se aproveitará dela para exercer-se imperiosamente sobre todos. E têm certa razão nisso inclusive.

Porém, tal crítica é pertinente até o ponto onde percebemos que o neoliberalismo, encimando imperiosamente a realidade econômica outra coisa não faz senão se colocar como um deus absoluto. O maior problema dessa doutrina econômica é até aqui não ter conseguido compatibilizar-se com a pluralidade absoluta em relação a qual, segundo Heidegger, chegamos cedo demais. Entretanto, como dito antes, a plurivocidade do real à qual chegaremos não será total se a famigerada liberdade neoliberal for excluída desse real. Tarefa difícil conciliar o real todo com suas expressões mais contraditórias! E é justamente essa dificuldade que aponta a nossa precocidade em relação ao Ser!

Nesse sentido, o passo que precisamos dar para, senão estar definitivamente no Ser, ao menos mais próximo dele e mais distantes dos deuses, deve ser fazer com que o neoliberalismo possa não ser absoluto e invencível; impedi-lo de ser um deus ele mesmo. Pensando assim, estar entre o deus capitalista e o Ser pós-capitalista significa que estamos no tempo de furtar do neoliberalismo a sua patológica tendência absolutizante. Os revolucionários radicais, por certo, dirão que se trata de reformismo. Entretanto, até onde podemos garantir que a revolução rápida e violenta do Manifesto Comunista de Marx e Engels, corroborada por Lenin no seu O Estado e a Revolução, seja a melhor saída depois de termos visto que as revoluções russa e cubana em menos de um século ruíram diante dos ditames neoliberais?

Para quem busca o Ser, isto é, a plurivocidade de interpretação do real, insistir na clássica, todavia monológica estratégia que prega que devemos começar com a revolução violenta em função da ditadura do proletariado não seria nos mantermos demasiado próximo dos deuses? A modernidade que levou Marx a escrever tal cartilha, com efeito, estava muito mais próxima das verdades absolutas, ou seja, dos deuses, do que nós, contemporâneos. Embora tenham sido os verdadeiros assassinos de Deus, os modernos ainda estavam com o punhal e com as mãos sujas do sangue divino; demasiado contemporâneos daquilo que nós, contemporâneos, já somos e devemos ser avant garde. Reviver velhas doutrinas apenas nos fará démodés.

Se ainda não conseguimos precisar em relação a que chegamos cedo demais para além das tautologias “pós-capitalismo”, “pós-liberalismo”, se ainda é um enigma que real plural fará com que a competição e o consumo não determinem exclusivamente as relações e a sobrevivência material humanas, é porque ainda não conseguimos nos desvencilhar totalmente dos deuses do passado, das verdades de pretensão absoluta que ainda nos convencem de que devem ser interpretadas univocamente. Aqui podemos parafrasear a máxima heideggeriana novamente para nos encontrarmos na transição histórica em que estamos: chegamos cedo demais para nos desvencilhar totalmente dos deuses e, portanto, muito mais cedo ainda para sermos capazes de encarar o Ser.

A tarefa histórica da nossa particular transição, por conseguinte, deverá ser seguir na cruzada contra as verdades absolutas, aberta todavia antes de nós, justamente porque ela não foi concluída. Isso fica claro quando percebemos que diante do real não vemos muitas alternativas além da permanência do neoliberalismo ou da revolução socialista. Que pobreza imaginativa! Quão pouco plurívocos ainda somos! Ora, duas possibilidades nos afastam quase que diametralmente da pluralidade de interpretações do real que o Ser que deverá se seguir exige. Dois deuses não fazem o Ser. Negam-no duplamente aliás.

Como colocado no início, estarmos livres dos deuses e sermos finalmente contemporâneos do Ser, ou seja, da plurivocidade infinita do real, de forma alguma deve significar sustentar que nada é verdadeiro nem que a única verdade absoluta é o nada. O niilismo é bem mais virtuoso do que isso! Inclusive os monológicos liberalismo e socialismo não devem ser negados, nadificados, mas compreendidos entre muitas outras formas de, economicamente, a humanidade existir no mundo. Só não podemos seguir insistindo somente nessas duas teclas. A história da nossa transição, que dará cabo dos deuses e conta do Ser, exige que usemos todas as teclas disponíveis e que, ademais, inventemos todas as outras que nos faltam. Só então teremos condições de gozar o real em suas infinitas possibilidades.

O socialismo negativo de Lula

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Foto: Rodrigo Stuckr / Instituto Lula

 

O socialismo, essencialmente, é a doutrina política e econômica que prega a coletivização dos meios de produção e de distribuição da riqueza através da supressão da propriedade privada e das classes sociais. Entretanto, muitos dos que tentaram implantá-lo cometeram o pecado de sobrelevar a teoria em detrimento da prática. Em outras palavras, preferiram o ideal ao real. Lula, o maior líder político da história do Brasil, em recente entrevista ao jornalista Glenn Greenwald, deixou bem claro que o seu projeto socialista para o Brasil tem ao menos a virtude de não incorrer nesse pecado.

A certa altura da entrevista, Greenwald afirma que o PT é parecido com os partidos da esquerda da Bolívia, Venezuela, Cuba, Equador, e que Lula e Dilma querem colocar o Brasil no mesmo caminho. Lula então protesta: “não seja injusto com o PT, pelo amor de Deus, porque o PT tem muita ligação com o SPD alemão; com o partido trabalhista inglês; com o partido socialista francês; com o partido socialista espanhol.”

O ex-presidente metalúrgico assim rejeitou a afirmação do jornalista americano para esclarecer que o percurso socialista que ele abriu no Brasil não se deu de modo autoritário como nas demais repúblicas latino-americanas. A diferença que Lula aponta entre o projeto socialista do PT para o Brasil e os dos demais países hermanos fica ainda mais clara quando ele assume que “o PT nem sequer definiu o tipo de socialismo que quer, porque o PT diz que o socialismo será a construção; será construído pelo povo; não será o PT que terá meia dúzia de intelectuais e dirá que tipo de socialismo NÓS queremos. O PT é um partido muito mais aberto do que outros partidos que existem na América Latina”.

Está precisamente aí a virtude esquerdista do partido do presidente proletário: não eleger teorias socialistas abstratas e de pretensão universal como regra para a realidade brasileira concreta e particular. Em outras palavras: não subjugar a construção ao construto; a prática à teoria; em suma, o real ao ideal. Quando diz que não será meia dúzia de intelectuais nem o PT que dirá que tipo de socialismo o Brasil terá, Lula coloca o futuro da sociedade brasileira acima dos interesses do seu partido e dos da intelectualidade em geral.

Proletário durante anos, Lula foi vítima concreta da histórica divisão social que desvaloriza do trabalho braçal diante do trabalho intelectual. E foi contra essa sobrevalorizada intelectualidade que não só no Brasil se confunde com a aristocracia que o metalúrgico teve de lutar para provar que um trabalhador comum não vale nem pode menos do que qualquer doutor? Não foi exatamente isso que ele provou contra seu antecessor de governo, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso?

Recusando-se implantar no Brasil teorias socialistas pré-fabricadas, ademais escritas em língua estrangeira, e ao mesmo tempo assumindo que o PT nem sequer definiu o tipo de socialismo que quer, sem, contudo, deixar o horizonte socialista de lado, o que Lula faz é defender um socialismo negativo. O que seria então esse socialismo negativo?

Ora, se em sua forma positiva o socialismo é a implantação, imediata ou gradual, da doutrina socialista em uma determinada sociedade em função da coletivização dos meios de produção e das riquezas sociais, sua versão negativa há de ser apenas a exclusão sistemática daquilo que em uma sociedade a impede de realizar tal coletivização. O socialismo negativo é mais o esvaziamento de entraves contrários à socialização da riqueza do que o preenchimento da sociedade com novas e impositivas ordens.

O socialismo negativo não é a negação do socialismo, mas a não positivação de teorias socialistas historicamente construídas, a maioria delas eurocêntricas, passadistas. Até mesmo a mais cultuada delas, o socialismo científico/profético de Marx e Engels deve receber a mesma crítica que o filósofo Baruch Spinoza, duzentos anos antes deles, fez às escritura das grandes religiões monoteístas, qual seja: que estes livros são verdadeiros e úteis somente enquanto registros históricos de épocas e povos determinados.

Por mais que a teoria marxista seja uma excelente chave para se pensar a dinâmica do capital em determinada conjuntura histórica, querer que ela valha para além do seu tempo é como querer que a Bíblia, a Torá ou o Alcorão sejam fundamentais ao tempo que lhes sucede. Em outras palavras, é ser fundamentalista. Não é à toa que o marxismo é chamado por muitos de religião.

É para evitar tal fundamentalismo, que também é anacronismo, que Lula não quer enfiar goela abaixo dos brasileiros teorias socialistas que em nada tem a ver com a particular realidade social brasileira nem com as atuais aspirações do povo desse país. Não, obviamente, que o conhecimento pregresso deva ser desconsiderado. Lula não faz apologia à ignorância. Antes, seu projeto socialista sustenta que é o próprio povo brasileiro que, no andar de sua carruagem, descobrirá de que modo quer que se dê a coletivização dos meios de produção e de distribuição da riqueza.

Para tanto, o que Lula fez no Brasil nos seus oito anos de governo foi investir profundamente na inclusão social, aliás, como nunca antes na história desse país, para que mais pessoas, quiçá toda a população tenha oportunidade de participar dessa construção que deve ser coletiva, democrática, e não autoritária, fundamentalista.

Se ao tomar o poder em 2003 Lula tivesse perguntado à sociedade brasileira de que modo ela gostaria de distribuir a sua riqueza, muito menos vozes ouviria, pois a sociedade na época era mais refém das elites do que agora. Hoje, 14 anos depois de iniciado o socialismo negativo de Lula, mesmo que a resposta da sociedade brasileira à mesma pergunta ainda não seja o socialismo, o coro no entanto é muito maior e múltiplo.

Depois do presidente metalúrgico as elites brasileiras já não são mais a única voz. Também os trabalhadores, os nordestinos, os gays, as mulheres, os negros e os pobres têm condição e força para participar coletivamente da construção do futuro do Brasil, pois com grande esforço foi retirado, melhor dizendo, foi negativado muito do que os impedia de ser, de fato e de direito, a sociedade brasileira.

Uma das maiores críticas à Lula se dá porquanto seu governo mais estimulou o consumo do que investiu na formação de uma consciência de classe trabalhadora que, para a teoria socialista clássica, é a chave para a revolução. Mas aqui não reencontramos a questão da impertinência prática do metalúrgico em relação às teorias estrangeiras?

Entretanto, até mesmo a teoria marxiana que diz que o socialismo sucederá o capitalismo no momento que este se tornar insustentável corrobora com o investimento de Lula no consumo. Afora o fato de que ainda há muito ranço feudal a ser erradicado por essas terras, o próprio capitalismo tupiniquim está longe sucumbir diante de suas próprias contradições. Investir todas as fichas numa revolução socialista imediata nessa conjuntura não seria de certa forma repetir os fracassos das revoluções russa e cubana que tentaram tornar economias, se não ainda feudais, ainda jovens capitalistas, em socialistas, isto é, sem, experienciarem o vil ciclo completo do capitalismo?

Por isso o investimento de lula no consumo não merece tamanha crítica, sequer dos marxistas, mas compreensão particular. O que o ex-presidente fez erradicando a pobreza do Brasil e dando condições para a maioria das pessoas consumir foi botar a sociedade brasileira inteira, e não só as classes mais abastadas, a girar a roda capitalista. Investir no consumo de massa como acelerador do esgotamento do sistema econômico que impede a coletivização dos meios de produção e a distribuição da riqueza não deixa de ser socialismo, só que em sua forma negativa.

O socialismo negativo de Lula tem a primeira virtude de não pré-estabelecer verticalmente um tipo de socialismo ao povo brasileiro. Em última instância, significa liberdade não só para esse povo decidir quais são suas atuais necessidades e desejos, como também para construir ele mesmo o futuro que quer para si. E o que é mais importante, a despeito de teorias que apenas nos livros são infalíveis e de teóricos que no passado convenceram muita gente intelectualizada.

Graças ao socialismo negativo de Lula o futuro do povo brasileiro e o modo como se dará a coletivização dos meios de produção e a distribuição da riqueza no Brasil não foram outorgados nem pelo PT nem, nas palavras do metalúrgico, “por meia dúzia de intelectuais”. O socialismo negativo, portanto, é a forma menos autoritária e fundamentalista de socialismo. E é por isso que o ex-presidente pode dizer que “não tem nenhum partido no mundo que seja democrático e aberto como o PT”.

Metafísica da saideira

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Foto:Marcos Santos/USP Imagens

Saideira é o nome dado à última bebida que se pretende tomar antes de se deixar um bar. Porém, quem já viveu uma boa mesa de boteco com amigos sabe muito bem que a saideira pode ser várias. Daí a necessidade de uma metafisica a seu respeito, pois se a saideira, fisicamente, em nada difere da bebida que a antecede, nem sequer precisa ser a última, algo além dela mesma, ou seja, algo metafísico, a define e qualifica.

Mesmo que a saideira, em seu sentido estrito, seja uma só e a última bebida antes de se deixar o bar teríamos a seguinte questão: ela é a antecipação do fim da bebedeira ou, ao contrário, o seu adiamento? O fato de ser várias em nada facilita a resposta, pois, digamos, três saideiras ao mesmo tempo que são a antecipação da antecipação da antecipação do fim, podem ser também o seu triplo protelamento.

Considerando a primeira opção, isto é, que a saideira é a antecipação do fim, temos que quem está bebendo não gostaria de parar de beber, mas já sabe que deveria fazê-lo. E para que esse fim esteja definitivamente no horizonte, mais uma(s). Já a segunda opção, qual seja, a saideira enquanto adiamento do fim, temos que quem está bebendo também tem ideia de que deveria parar de beber, só não sabe ou não importa quando. E enquanto isso, mais uma(s).

Em ambos os casos a saideira se relaciona com o fim da bebedeira. É esse fim, aliás, que metafisicamente faz com que a mesma bebida passe a ser outra coisa que não o que vinha sendo até então. Os experts em saideiras sabem muito bem que a saideira, embora fisicamente a mesma bebida, tem um gosto só seu. E esse gosto especial é justamente o sabor de transgredir a ideia que mais hora menos hora ocorre a quem está bebendo, qual seja: que deve parar.

A saideira, portanto, tem o gosto do excesso. Não o excesso cometido pelo alcoolista, pois esse sabe de antemão que, se depender dele, não terá fim a sua bebedeira. Chamar as doses que bebe de saideiras é apenas a desculpa do alcoolista para não parar de beber. Sem dizer que para ele todas as doses têm um e mesmo gosto.

Para concluir essa pequena metafísica é preciso ressaltar que a saideira não diz respeito somente ao excesso de bebida, isto é, às doses a mais além daquela que deveria ser a última. A saideira se relaciona sobretudo com prazer de cometer deliberadamente um excesso etílico sem, contudo, esse ato excessivo ser fruto de uma patologia, como no caso do alcoolista.

A saideira, portanto, é muito mais o amor ao beber do que à bebida. E é esse amor que, metafisicamente, converte qualquer bebida em saideira. Até mesmo Cristo, que por amor às pessoas que se divertiam em um casamento que estava prestes a ser encerrado porque o vinho estava acabando, fez seu primeiro milagre: transformou água em vinho. Oxalá a nossa mundanidade pudesse ser milagrosa assim! Caídos no mundo, entretanto, podemos pelo menos pedir ao garçom mais uma(s) saideira(s).

 

A cidadania da impotência e uma outra cidadania

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Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Os verdadeiros cidadãos brasileiros, aqueles que são contrários ao impeachment de Dilma Rousseff porque sabem que, na verdade, trata-se de um golpe contra o Estado brasileiro, sua jovem democracia e sobretudo contra as políticas sociais implantadas no Brasil a despeito dos interesses da velha oligarquia tupiniquim, estes cidadãos experimentam perplexos a impotência dessa instituição chamada cidadania em uma democracia representativa.

O fato de as discussões acerca do golpe contra Dilma estarem tergiversando mormente sobre a divisão da opinião pública, as crises política e econômica e sobretudo a corrupção generalizada, entretanto, tem o vício de fazer-nos esquecer do cerne da questão, trazido à luz pelas manifestações brasileiras de junho de 2013, mas que parece ter “saído de moda” já em 2016, qual seja: a crise de representatividade política no Brasil.

Para o cidadão revolucionar essa crise, contudo, é fundamental que ele tome responsabilidade na insatisfatória representatividade que recebe dos seus políticos eleitos. Afinal de contas, os péssimos representantes estão onde estão, inclusive votando contra a democracia que os elegeu, por conta do voto direto e secreto dado a eles pelos próprios cidadãos brasileiros. Vitimarmo-nos pela presença deles, portanto, é colocar a culpa bem longe dos verdadeiros culpados.

Para tanto, precisamos, por um lado, responsabilizar-nos pela eleição desses vis representantes, e, por outro, e mais importante, encontrar, em nós mesmos, cada um dos cidadãos brasileiros, “o grão” maldito de uma representatividade ineficiente que, seja nas urnas, seja na atividade política cotidiana de cada um de nós, resulta na “duna” da má representatividade generalizada, muito mais fácil de enxergar no topo do que na base da pirâmide política.

Com efeito, o povo não ser capaz de auto-representar-se politicamente com qualidade e eficiência resulta em representantes políticos que outra coisa não fazem senão repetir essa má qualidade representativa que, é importante manter em mente, nasce no grão-cidadão. Dois exemplos disso, todavia os mais extremados, mas por isso mesmo bastante evidentes, são os Blakc bloc de 2013 e os coxinhas de 2015/2016.

Representando as suas insatisfações em relação a representatividade política brasileira estiveram os radicais de 2013 que negavam a política partidária mediante uma miríade de pautas difusas e em um cenário de quebra-quebra de equipamentos públicos e bancos e lojas privadas. Também os radicais de 2015-2016, batendo panela em função da monocórdica pauta golpista, e outrossim mediante um quebra-quebra, só que da própria democracia, estes também estão reclamando uma representatividade política que não lhes convém.

Agora, falemos sério, quando cidadãos começam manifestar suas insatisfações em respeito à representatividade que recebem de seus governantes representando-as e a si mesmos dessas maneiras, de uma coisa podemos ter certeza: a crise de representatividade não nasce nem oprime os cidadão de cima para baixo, transcendentemente, mas ao contrário, imanentemente, é a crise da própria cidadania como a conhecemos.

Os cidadãos menos radicais outrossim não escapam de representarem a si mesmos de modo lamentável. Os mais de dez milhões de votos em branco que tivemos nas eleições de 2014 atestam isso. Como reclamar dos representantes políticos eleitos quando sequer se participa da eleição deles? Dito de outro modo, como querer ser bem representado politicamente sem no entanto contribuir para a eleição de representantes que possam realizar esse desejo?

Fazendo um virtuoso contraponto a essa representatividade crísica que, disfarçada ou descarada, é a crise político-institucional pela qual o Brasil passa, estão as ocupações das escolas brasileiras feitas por estudantes insatisfeitos tanto com a precárias situação do ensino como sobretudo com os projetos governamentais para suas escolas e para a educação de um modo geral.

Estes estudantes, que ainda não são eleitores, nem, portanto, cidadãos “ipsis litteris”, não fizeram como a maioria dos cidadãos “oficiais” que esperam dos seus representantes políticos soluções para os seus problemas e insatisfações. Em troca, ocupam, com seus corpos e discursos, por semanas e meses até, a ágora crítica que querem ver revolucionada. Não ficam em casa diante da TV ou do Facebook reclamando do sucateamento da educação, mas, em troca, não deixam as escolas, fazendo delas seus bunkers de protesto.

Tais “jovens ocupadores” nos oferecem uma via para se revolucionar a crise de representatividade que assola o nosso país, qual seja: a assunção de que a boa representatividade política não vem de cima para baixo, mas deve nascer precisamente nos grãos cidadãos, para quiçá “contaminar” virtuosamente a estrutura política que se sobrepõe a todos eles. Estes estudantes, sabendo ou não disso, corroboram com a máxima de Aristóteles: “a qualidade de um estado é a qualidade de seus cidadãos”.

Intuitivamente bem fundamentados, os estudantes ocupantes das escolas paulistas tiveram no início de 2016 uma vitória considerável -ainda que não definitiva- contra o monstro peessedebista de Geraldo Alckmin e a sua reorganização escolar. A atual ocupação das escolas no Rio de Janeiro, pelo ativismo e resistência que esses jovens estudantes estão demonstrando, é bem possível que consiga o mesmo ou maior feito contra a besta peemedebista que muito mal os representa.

Não que essa tática de ocupação direta seja inédita. A política dos antigos gregos é reconhecidamente virtuosa justamente porque nela os cidadãos atuavam direta e presentemente nas deliberações coletivas. A vantagem da tática dos ocupantes escolares, todavia, está em que o sistema político atual, demasiado representativo, não sabe mais lidar com cidadãos que representam a si mesmos diretamente.

Nesses casos, o Estado ou bombardeia moral e “lacrimogeneamente” os que se manifestam diretamente contra ele, como manda sua vertical cartilha, ou, em troca, tem de ceder à diretiva manifestante, como pudemos ver em São Paulo. Ora, o Estado sufocar jovens estudantes com bombas de gás seria assumir uma intransigência e uma desumanidade que voltaria toda a opinião pública contra ele.

Eis a vantajosa estratégia que esses jovens ocupantes de suas escolas oferecem como opção aos cidadãos brasileiros que se sentem impotentes diante dos alienados desígnios de seus representantes: manifestar-se de modo que uma ofensiva do Estado contra essa manifestação seja o fim do próprio Estado. Em suma, fazer com que o Estado seja novamente os seus cidadãos, e não os seus representantes políticos que, na verdade, apenas tentam fazer do Estado o meio para realizarem seus interesses particulares.

Os jovens ocupantes de escolas mostram melhor do que ninguém que a democracia representativa com a qual estamos habituados é o espaço onde se cultiva a impotência cidadã e onde os representantes políticos torna-se livres daqueles que os elegem. Mostram também uma outra política na qual a cidadania significa potência, pois substitui a desacreditada esperança depositada na representatividade política pela potência de uma cidadania presente e direta na construção de uma sociedade que é e que deve ser dos cidadãos.

Os cidadãos ocuparem a política toda, desde as câmaras municipais até o Congresso Nacional, seria essa a venturosa ação política que os jovens estudantes de suas escolas tem a nos sugerir? Apesar de radical, essa tática ou garantiria menos insatisfação em relação à representatividade política no Brasil, ou, imanentemente, evidenciaria que a má qualidade da representatividade que vemos somente nos nossos políticos não é outra que a nossa, a de cada um dos cidadãos. Neste último caso, se o problema nunca deixou de estar conosco, tanto mais fácil revolucioná-lo.

PMDB, o Leviatã brasileiro.

Foto José CruzAgência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Etimologicamente, Estado vem do Latim “status”, e significa a condição ou situação do que está, do que fica de pé. E diante da turbulência política e da fragilidade institucional que o Brasil enfrenta, que tem como ícone maldito o golpe do PMDB contra a presidente Dilma Rousseff, é inevitável perguntar: o que “ficará de pé” no Estado brasileiro?

Instituição soberana, o Estado é composto por uma série de outras instituições hierarquizadas em cuja base estão os cidadãos. De uma perspectiva materialista, a cidadania é instituição primeira, pois erigida a partir de indivíduos concretos, em função do quais aliás um indivíduo supremo e abstrato, o Estado, existe.

Todavia, depois de instituído, o Estado se transcendentaliza em um indivíduo primeiro e absolutamente necessário que passa a contingenciar os cidadãos e suas necessidades.  Tal é a força do ser que o teórico político inglês Thomas Hobbes chamou de Leviatã: indivíduo soberano, resultado do contrato social travado por todos os indivíduos que o compõem em busca de segurança e justiça.

O Estado hobbesiano angaria extrema substancialidade, em outras palavras, “fica em pé” porque, embora resultado de um contrato coletivo, não fez trato com ninguém. O Leviatã é absolutamente único, portanto livre. Segundo Hobbes, cria e anula as leis que comandam os cidadãos conforme sua necessidade de “permanecer estando”.

O filósofo inglês coloca inclusive que é burrice os cidadãos tentarem revolucionar o Estado, pois quando este é golpeado são os seus cidadãos, melhor dizendo, o trato que travaram entre si que recebe tal golpe. Ora, se o Estado não mais está, tampouco estão os cidadãos, e o que se tem doravante é uma situação onde não mais há segurança nem justiça.

Pois bem, pensando a partir da teoria de Hobbes, o golpe de Estado que está em curso no Brasil outra coisa não trará aos cidadãos brasileiros senão insegurança e injustiça. Sendo assim, estaríamos chamando os cidadãos brasileiros de espécie de kamikazes ao sustentar que são eles os arquitetos desse golpe.

Dito isso, temos de responder à seguinte pergunta: quem no Brasil não se autodestruiria com o golpe? Solapar o Leviatã tupiniquim só não será considerado burrice, ou melhor, significará inteligência para aqueles que têm certeza de que não padecerão de insegurança e de injustiça.

De grande segurança, pelo menos desde a redemocratização do Brasil em 1985, goza o PMDB, partido político sem o qual nenhum outro chegou ao poder, e, como estamos podendo observar, tampouco se mantém aí sem ele. Então, se há um indivíduo a quem o golpe não afeta, mais ainda, interessa, esse deve ser o PMDB.

Agora, se falarmos de justiça a coisa se complica, pois o golpe que o PMDB tenta dar no Leviatã petista serve justamente para escapar à justiça deste, procedimento que Eduardo Cunha, peemedebista presidente da Câmara dos Deputados em cujas costas pesam muitos crimes e suspeitas criminosas, deixa bem claro. Cada vez mais claro também é que, para o PMDB, escapar à justiça do Estado petista, depondo-a, é a manutenção da injustiça que oferece ao PMDB a segurança de que goza há cinquenta anos.

Todavia, se o PMDB tem poder para depor o Leviatã petista para não estar sujeito à lei deste, o verdadeiro Leviatã é o próprio PMDB, pois, conforme Hobbes, quem cria ou infringe a lei ao seu bel-prazer e necessidade é o poder absoluto. O PMDB é o Leviatã, muito embora o jogo democrático dos últimos 26 anos tenha nos convencido de que foram e de que poderiam ser outros.

Em se efetivando o que Dilma e o PT estão chamando de golpe, resta a eles assumirem que outra coisa não foram nestes últimos 14 anos além de operários convenientes do poderoso Leviatã peemedebista enquanto, e somente enquanto, o trabalho que ideologicamente vinham fazendo não ameaçou a injustiça que dá suprema segurança ao indivíduo mais poderoso do Brasil, o PMDB.

Brasília, muito mais do que 50 anos.

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Foto: Ricardo Penna/Fotos Públicas

Brasília, a capital do Brasil completa hoje 56 outonos. Construída em cinco anos, cumprindo o aventureiro lema de Juscelino Kubitschek,  “Cinquenta anos em cinco”, foi entregue ao povo brasileiro a sua nova capital nacional, novíssima em folha, moderníssima; modernista aliás. Agora Brasília é cinquentona, justamente o tempo que foi comprimido nos cinco de sua feitura. Ela pagou a conta da aventura histórica que foi?

JK sabia que tempo é dinheiro, e que não se cria aquele sem este. Antes, os cinquenta anos que ele “fez ser” em apenas cinco haveriam de ser pagos no futuro, pelo futuro, e com capital. De acordo com a lógica do lema da construção de Brasília, os “Cinquenta anos em cinco” deveriam ser pagos em cinquenta anos. Muitos percalços históricos –na verdade a história ela mesma– fizeram com que ainda estejamos pagando o “sonho” kubitschekiano.

Por ser uma cidade planejada Brasília já merece muita atenção. Tal urbanidade perverte o modo como historicamente as cidades se fizeram, pelo menos até a Modernidade, momento a partir do qual o mundo não pôde mais esperar que as cidades surgissem espontaneamente e se consolidarem historicamente, pois, novamente, tempo é dinheiro. Para os Modernos, mais ainda para os modernistas, a urbe é mercadoria; deve ser produzida pelo preço que for, mesmo que custe, em capital, uma década/ano.

A urbanidade tradicional se deu com famílias que passaram a moram próximas umas das outras, gerando vilas, que, várias delas, muito próximas umas das outras, geraram centros, periferias, densidades, necessidades diversas porém conjuntas, ou seja, as cidades como as conhecemos. Porém, para ser uma capital nacional, como o Rio de Janeiro antes da inauguração de Brasília, era necessário mais: décadas ou até mesmo séculos de centralidade econômica e política para um mero agrupamento humano ter o privilégio de hospedar o Estado.

O preço a ser pago em cada etapa do desenvolvimento urbano, digamos assim, natural, contudo, foi alto. Os interesses da família foram atravessados pelos da vila assim como a liberdade da vila foi reduzida desde que passou a ser somente mais uma dentre as que compõem a cidade. Outrossim a cidade que é capital nacional é oprimida por compartilhar seu território com o tirânico Leviatã. Com efeito, é uma aventura “sobreurbana” uma cidade-capital-nacional administrar satisfatoriamente a si mesma e o Estado ao mesmo tempo. Só mesmo muito capital nessa causa. Não é à toa que a cidade que é capital de uma nação recebe -e consome- a verba de um estado.

Não por amor ao Rio de Janeiro, obviamente, mas por amor a si mesmo, o Leviatã-tupiniquim-kubitschekiano construiu, no solo seco e ermo do cerrado, um castelo urbano novinho em folha, no melhor estilo ficção científica dos anos cinquenta, com a justificativa de “interiorizar” o Brasil até então demasiado litorâneo. Só que o “Cinquenta anos em cinco” de Kubitschek foi tão poético quanto cruel. Playtime, a utopia cinematográfica dirigida e atuada por Jacques Tati em 1967 que tergiversa mudamente sobre as cidades modernas sequer chegou perto de representar o preço que é comprimir cinco décadas de um país em cinco anos.

E o Leviatã brasileiro JK, que construiu para si uma “cidade ideal”, no final das contas gerou um monstro urbano real que consome muito mais do que esses cinquenta anos usados nos cinco de sua feitura. Tal é a “capitalidade” de Brasília! Quando, afinal, essa capital começará a dar lucro? Brasília: “Muito mais do que cinquenta anos de capital em cinco para fazer uma capital”, esse sim teria sido um lema mais honesto. De qualquer forma, parabéns, capital do Brasil!

Analfabetismo político: capítulo ou capitulador da era Lula?

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Foto Lula Marques/Agência PT

Senso comum esses dias é que a era Lula chegou ao fim. Concordam com isso a esquerda e a direita brasileiras. Sendo que esta última contribuiu muito com esse ocaso, como atestam os trabalhos iniciados pelo PSDB do perdedor Aécio já nas eleições presidências de 2104 e os quase finalizados trabalhos do PMDB do gangster Cunha no processo de impeachment de Dilma Rousseff. O deputado federal Jean Wyllys, do PSOL, contudo, tenta mostrar a responsabilidade da própria era Lula com a sua alardeada capitulação.

Reconhecendo que a maioria da população brasileira esteve desde sempre “alijada do direito a uma educação de qualidade que lhe faça cidadã com capacidade de pensamento crítico”, Jean esclarece o cenário que Lula encontrou ao tomar o poder, o qual, aliás, o ex-presidente se propôs revolucionar.

Porém, para o deputado, na era Lula a ampliação do acesso ao sistema formal de educação, principalmente ao ensino superior, não resultou em uma educação de qualidade, mas na produção em larga escala de “diplomados analfabetos funcionais”. O mui criticado aumento do consumo, investimento central de Lula para que, com o crescimento econômico, políticas sociais pudessem ser implantadas sem tanta resistência por parte das elites, resultou, no entanto, na educação enquanto mercadoria.

E para Jean essa reificação da educação levou esse contingente de novos estudantes precarizados a aderir mais facilmente a “discursos demagógicos e manipuladores que interpelam preconceitos e sensos comuns históricos e propõe soluções fácies, mas mentirosos e/ou autoritárias para as questões complexas que nos envolvem diariamente.” Ou seja, para o deputado, a era Lula criou analfabeto políticos.

E Jean relembra-nos de que, conforme afirmou Bertold Brecht, “o pior analfabeto é o analfabeto político”. Nas palavras do dramaturgo alemão, esse tipo de analfabeto “é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política”. Porém, ressalta o deputado, o diferencial do “analfabeto político da contemporaneidade” é que este, mesmo odiando a política, participa ativamente dos acontecimentos políticos, sobretudo nas redes sociais digitais, mas sem qualquer cuidado crítico.

O exemplo concreto que Jean oferece do que ele chama de analfabetismo político contemporâneo é um comentário em uma postagem sua no Facebook quando da aprovação do Marco Civil da Internet. Qual seja: “o marco servil [sic] vai acaba [sic]com o Facebook e traze [sic] o comunismo vai manda [sic] mata [sic] todo mundo começando por você seu viado filhodaputa  [sic]”.

Com efeito, o exemplo dado por Jean leva-nos a pensar que a alienação orgulhosa do analfabeto político da época de Brecht produziria uma realidade muito menos miserável do que o impertinente “ativismo” dos “analfabetos políticos contemporâneos”. Entretanto, são com estes que temos de lidar em vias de uma educação política de qualidade superior.

Agora, lidar com o analfabetismo político contemporâneo passa necessariamente por entender as suas causas. E, como apontou Jean, uma delas, a mais contemporânea e universal aliás, foi justamente a universalização a qualquer custo de uma educação-mercadoria de baixa qualidade que criou cidadãos-embalagens em cujo interior qualquer conteúdo pode ser acriticamente inserido.

E a elite brasileira, afrontada não só por essa universalização da educação, mas também e principalmente pela todavia tímida distribuição de renda garatujada pela era Lula, se aproveitou desse “analfabetismo político contemporâneo” produzido pela própria era Lula para capitulá-la. Os elitistas-oligárquicos PSDB de Aécio e PMDB de Cunha sequer precisaram produzir a massa de analfabetos-invólucros acríticos nos quais incutir as suas ideologias golpistas que, massificadas, estão dando cabo da era Lula.

Justiça seja feita, os atuais analfabetos políticos tupiniquins são apenas massa de manobra nas mãos da reacionária elite brasileira. Mais ainda, Jean não nos deixa esquecer de que “o analfabeto político é uma vítima daquele Brecht considera o pior de todos os bandidos: o político vigarista, desonesto intelectualmente, corrupto e lacaio das grandes corporações”.

Os peessedebistas e peemedebistas todos –mas não só estes, obviamente- parecem se encaixar perfeitamente nesse perfil corrupto, vigarista e pelego das grandes corporações traçado por Brecht que tanto vitima os analfabetos políticos. Até mesmo Lula e o seu PT encontram dificuldade em demonstrar que não participam dessa vitimização, uma vez que a corrupção e a subserviência à grandes corporações também brilhou forte desde que o poder esteve com a estrela vermelha petista.

Entretanto, uma diferença deve ser feita entre o “modus operandi” elitista e o petista. Quando Jean sustenta que  “é preciso ter alguma compaixão pelo analfabeto político: insistir na luta para que ele tenha acesso a educação de qualidade”, ainda temos que foi na era Lula que essa “compaixão”, melhor dizendo, essa consideração com os analfabetos, sejam eles políticos ou não, se deu de maneira mais efetiva, ainda que a realidade esteja distante da idealidade. Realidade e ou projeto que, é importante frisar, nunca foi nem será pauta da elite.

A tão criticada produção lulista do que Jean chamou de “diplomados analfabetos funcionais” que hoje são um exército de analfabetos políticos, entretanto, participa ativamente da rendição do que resta do lulismo mais pela manipulação golpista da elite reacionária do que pelo próprio projeto iniciado por Lula. Até onde podemos sustentar que a falência da era Lula não é precisamente a interrupção a qualquer custo, pelas elites, do projeto do presidente metalúrgico?

As palavras de Jean Wyllys sobre do que deve ser feito com os analfabetos políticos, quais sejam, “é preciso ter alguma compaixão pelo analfabeto … insistir na luta para que ele tenha acesso à educação de qualidade”, mutatis mutandi, não cabem perfeitamente na boca e nos feitos de Lula? Só é possível negar isso, contudo, estabelecendo-se para essa desafiadora revolução histórica um prazo menor do que 14 anos – o tempo de vida do projeto de Lula- e, ao mesmo tempo, esquecendo-se do “Brasil, Pátria Educadora” de Dilma.

Não fosse a apressada sede golpista das elites em retomar o poder e a exclusividade no acesso à educação de qualidade no Brasil, do projeto educacional de Lula poderia ser dito apenas que está longe de ser concluído. Transformar milhões de analfabetos em cidadãos alfabetizados que, no entanto, ainda são analfabetos políticos, mas que, compreendidos em um processo histórico-geracional contínuo, futuramente formará uma população mais educada, inclusive politicamente. Eis o caminho que a era Lula abriu no Brasil.

Essa senda só não pode ser considerada utópica porque a própria vida de Lula é um exemplo concreto dessa revolução. Nordestino pobre e analfabeto, Lula alfabetizou-se minimamente para exercer sua profissão de torneiro mecânico em São Paulo. Essa parca e funcional alfabetização, em meio à exploração da indústria paulista que ele e os seus iguais sofriam, mas que ele ansiava reduzir, levou-o a perceber seu analfabetismo político e a desejar saná-lo. E a virtuosidade desse processo pessoal fez com que ele se tornasse não só presidente do Brasil como também Doutor Honoris Causa em 27 universidades ao redor do mundo.

Em se tratando de alfabetização política, como então acreditar mais no vil projeto histórico e desigualitário das elites, hoje mascarado de impeachment e que de forma alguma pretende democratizar o acesso à educação, do que no revolucionário, todavia inconcluso projeto educacional da era Lula, que segue insistente com Dilma no seu “Brasil, Pátria Educadora”? À boa crítica de Jean Wyllys à educação da era Lula, a seguinte pergunta: em se tratando de educação, a pressa não é inimiga da perfeição?

 

“Cidadãos em branco” e o impeachment

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Ilustração: Rafael Silva

Dado que cidadania é a participação ativa de um indivíduo na vida e no Governo que tem em comum com os demais, eleger representantes políticos, isto é, votar, é condição para se ser cidadão. No Brasil essa participação é obrigatória inclusive. Muitos brasileiros, entretanto, por opção política votam em branco. Esses, digamos assim, “cidadãos em branco” argumentam, por exemplo, que o sistema eleitoral é uma farsa, um jogo de cartas marcadas, da qual, portanto, melhor é não participar.

Quando criticados, dizem de pronto que se mais da metade das pessoas fizessem como eles, isto é, votassem em branco, uma eleição seria seria cancelada. Acreditam que assim os políticos seriam confrontados com a insatisfação popular e, mais ainda, com seus próprios desgovernos.

A anulação de uma eleição devido a uma maioria de votos brancos, por um lado, não existe, é apenas um boato. Por outro, há formas mais efetivas de demonstrar descontentamento aos políticos do que deixar que menos pessoas os escolham. Sem dizer que é muita ingenuidade esperar que mais da metade dos eleitores abram mão desse direito que constitui não só a cidadania, mas também a própria democracia na qual vivemos.

Mais ainda, o voto em branco, por mais que se tergiverse, nada pode contra os votos efetivos dados aos candidatos que não se quer ver eleitos. Muito pelo contrário, deixam os demais eleitores sozinhos na decisão do futuro que, com efeito, será comum a todos. E, por fim, votar em branco é um “tiro no pé”, pois de forma alguma dispensa os “eleitores em branco” de estarem sujeitos aos resultados das eleições.

Dito isso, os “eleitores em branco”, por coerência, não deveriam se importar nem com os representantes efetivamente escolhidos, nem com a performance deles no poder. Um voto em branco é uma mensagem em branco que não tem como ser preenchida posteriormente. Todavia, não é isso o que acontece.

O mais recente exemplo da incoerência que os “cidadãos em branco” cometem pôde ser visto em seguida da votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff dia 17 de abril de 2016. Depois de 367 deputados federais votarem a favor do impeachment com discursos e justificativas absurdas e vergonhosas, muitos dos que votaram em branco na eleição deles, em 2014, criticaram-nos, e, o que é pior, aos que os elegeram.

Aqui é preciso colocar que no Brasil foram mais de 10 milhões de votos em branco em 2014. Só no Rio de Janeiro foram 1.701.650 votos para ninguém. Considerando-se que Jair Bolsonaro recebeu 464.572 votos, Clarissa Garotinho 335.061, Eduardo Cunha 232.708, Felipe Bornier 105.517, só para citar os que mais precisavam não ter sido eleitos, os “cidadãos em branco” e seus votos imprestáveis poderiam sim ter feito uma gigante diferença. E a certeza é matemática!

A tática dos “cidadãos em branco, portanto, foi um “tiro no pé”, mas não só no deles. Também no de milhões de “cidadãos válidos” e lúcidos que usaram seus preciosos votos para eleger Jeans Willys, Chicos Alencares e Jandiras Feghalis que na mesma vergonhosa sessão do impeachment foram um farol de esperança ética e política na escuridão em meio ao mar de lama comandado por Cunha.

De modo que a péssima qualidade da Câmara do Deputados que a todos envergonhou em abril de 2016 também é responsabilidade dos que se abstiveram de escolher deputados federais decentes em 2014. E a péssima qualidade dos deputados que foram eleitos porque dez milhões de votos foram desperdiçados se refletiu diretamente na péssima qualidade dos discursos pró-impeachment e no absurdo antidemocrático que foi a abertura impeachment de Dilma.

Para aqueles que votaram válida e inteligentemente nas eleições de 2014, mas que estão tendo seus votos impeachmados juntamente com o impeachment de Dilma, os “cidadãos em branco” devem ser os alvos de crítica preferenciais. Mais do que os que votaram em Bolsonaros e Cunhas da vida até, pois são justamente os que poderiam ter contribuído para uma Câmara dos Deputados mais representativa, mas que nada fizeram além de reclamar, primeiro, que não havia candidatos a altura de suas expectativas nas eleições passadas, e, agora, dos que foram eleitos e que votaram antidemocraticamente na sessão do impeachment.

Oxalá Jaires Bolsonaros e Eduardos Cunhas da vida, eleitos e empoderados por quem vota, possam convencer os “cidadãos em branco” de que mais produtivo do que seus inúteis votos brancos é não ter a preguiça de escolher, se não ótimos representantes, que nem sempre há, pelo menos os menos piores. Espero que a revoltante sessão do impeachment tenha podido convencer os “cidadãos em branco” dessa necessidade, pois diante da miséria representativa que todos vimos na sessão mais longa e polêmica da história da Câmara dos deputados o menos pior é o novo melhor. Se é que, politicamente, não foi sempre assim.

 

O atual Leviatã brasileiro

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Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O filósofo Thomas Hobbes, autor de o Leviatã, uma das obras mais importantes sobre o pensamento político, fala da sociedade enquanto um contrato social travado por todos os cidadãos com o objetivo de dar cabo da “eterna luta de todos contra todos”. Para Hobbes, essa tarefa só pode ser realizada pelo governo de um soberano absoluto: o Leviatã.

Dono das leis e do destino de seus súditos, o Leviatã, criado e empoderado por estes, representa uma força invencível à qual todos os súditos devem se curvar obrigatoriamente. Já o Leviatã, ao contrário, por não ter feito trato algum com quem quer que seja, mas ser o resultado desse trato, não deve nada a ninguém. O Leviatã, portanto, é absolutamente livre, seja para criar leis, seja para desrespeitá-las quando achar necessário.

Novamente: o Leviatã é invencível! Quando é vencido, entretanto, é porque o verdadeiro Leviatã é outro: justamente o vencedor.

Algum paralelo com que aconteceu na Câmara dos Deputados da República Federativa do Brasil em 17 de abril de 2016 na aprovação do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, até então a figura soberana do Estado, ou seja, “A” Leviatã? A vitória do presidente da Câmara e articulador central do golpe, Eduardo Cunha, cujo poder iniciou a subjugação de Dilma, não o coloca como o verdadeiro Leviatã Tupiniquim?

Dilma, a soberana oficial, está sendo acusada, acuada, e já começou a ser punida pela lei por um crime que muitos dizem sequer existir. Cunha, o Leviatã intempestivo em cujas costas pesam muitas suspeitas e investigações, que, diga-se de passagem, em nada diminuem seu poder, parece não ser tocado pela lei, mas, em troca, toca-a ao seu bel-prazer e interesses particulares. Como em Hobbes não há dois Leviatãs, mas um só, quem então é o verdadeiro Leviatã tupiniquim esses dias?

Considerando a teoria de Hobbes, não é que Cunha tenha saído do meio do povo e, por força e poder próprios, tenha se colocado acima da lei e contra os interesses do povo. Na teoria hobbesiana, é sempre o próprio povo que erige seus Leviatãs. Cunha, portanto, é o soberano que, ainda que indiretamente, foi posto lá por todos os cidadãos brasileiros. Não aceitar o poder e a liberdade política de Cunha é uma coisa. Outra bem diferente, todavia, é não se colocar como responsável por tal empoderamento e liberdade.

Com efeito, a escolha democrática que cada um de nós cidadãos faz nas urnas tem a perigosa capacidade de mentir que aqueles que ocupam o poder mas que não receberam o nosso voto não são produtos nossos. Isso, porém, é “o” ledo engano no ambiente democrático. Na verdade, todos os que votam, não importando em quem, constituem o contrato único que coloca alguns no poder. Por mais amargo que seja essa engolir essa verdade, todos nós fizemos de Cunha o Leviatã que ele goza ser.

Menos difícil de enxergar, contudo, é que fomos nós, o povo brasileiro, que elegemos, com nossos votos, os 367 deputados que, ao votarem em favor do impeachment de Dilma, outra coisa não fizeram que corroborar o poder de Cunha. Entretanto, o processo que colocou os 367 golpistas no poder é o mesmo que fez de Cunha o detentor de um poder leviatãnico capaz de depor a Leviatã Dilma.

Para os que não votaram nesses 367 deputados golpistas nem em Cunha não é difícil restar a sensação de traição, de tristeza. Tais sentimentos, no entanto, são infrutíferos, covardes até, pois além de nublarem o fato de que a eleição dos golpistas e de Cunha foi uma produção coletiva, alienam-nos do verdadeiro inimigo: nós mesmos, o povo, os eleitores dos nossos próprios algozes.

Essa indigesta verdade está muito bem contemplada pela frase de Plauto, escrita em 200 a.C., que Hobbes tornou célebre no século XVII: “O homem é o lobo do homem”, que significa que o homem é o maior inimigo do próprio homem. Para adequá-la ao “momentum brasilis”, entretanto, o célebre lema fica melhor assim: o eleitor brasileiro é o lobo do próprio eleitor brasileiro. Depois da votação do dia 17 quem não iria concordar com isso?

Atentar para a filosofia de Thomas Hobbes, portanto, é o difícil exercício de não transcendentalizarmos os revezes da sociedade que nós, imanentemente, constituímos. Enquanto culparmos Cunha, os 367 deputados golpistas e os seu eleitores apenas, e nos colocarmos como vítimas deles todos, cometemos um duplo erro. O primeiro é esquecer de que o nosso inimigo é também produção nossa. O segundo, e mais importante, é deixar de considerar que se o inimigo é produto nosso, sua deposição outrossim permanece nas nossas mãos.

Embora Cunha seja o maior candidato a Leviatã tupiniquim, mais poderoso que a própria Leviatã eleita democraticamente, uma vez que a está depondo, ele só goza de tanto poder porque fomos nós, o povo, que demos, pelos longos e tortuosos caminhos da nossa democracia representativa, tal poder a ele. Sem esse poder, contudo, Cunha é só mais um de nós, tão impotente quanto os que se frustram por nada poderem contra o golpe que o próprio Cunha comanda soberanamente.

O golpe de Cunha contra Dilma, na verdade, é um golpe contra a democracia, e, portanto, contra o poder que os cidadãos historicamente conquistaram para não estarem absolutamente sujeitados a um poder supremo e invencível que Hobbes chamou de Leviatã. E Eduardo Cunha é esse projeto em curso de Leviatã tirânico. Dilma, em troca, por estar se sujeitando à lei brasileira e aos seus procedimentos, é uma melhor encarnação do poder soberano, pois veste a toga do Leviatã sem com isso se esquecer de que essa veste é apenas seu uniforme de trabalho. Dilma, portanto, é uma Leviatã democrática.

Agora, por que o Leviatã tirânico Cunha está vencendo a Leviatã democrática Dilma? Ora, se atentarmos ao princípio que institui o Leviatã apontado por Hobbes: “a eterna luta de todos contra todos”, e ao lema que o filósofo celebrou: “Homo homini lúpus” (o homem é o lobo do homem), o Leviatã Cunha, enquanto encarnação do “Lúpus Máximus”, aliena mais eficazmente os seus súditos da verdade mais difícil de suportar, qual seja: que eles mesmos são os seus próprios e únicos inimigos, afinal, Cunha permanece o Grande Lobo espetacular!

Já Dilma, mediante a democracia que há décadas defende, que inclusive lhe custou sessões de tortura na ditadura militar, faz questão de não esconder essa sempiterna guerra de todos contra todos. Suas políticas sociais, tais como, o Bolsa Família, o Minha Casa Minha vida,  o PROUNI que universaliza o acesso à universidade pública, só para citar alguns, tudo isso, apesar de extremamente necessário e venturoso, é a impertinência de não esconder que, sim, há fortes e históricos lobos sociais que abocanham lobos mais fracos e que é preciso aclará-los e encará-los se quisermos exterminá-los.

A tirania leviatãnica de Cunha, por seu lado, visa justamente esconder essa guerra. Não, obviamente, para que ela seja amenizada, mas, ao contrário, para que os lobos fortes como ele se fortaleçam mais ainda e para que os fracos se tornem mais inofensivos, e, portanto, mais facilmente abocanháveis. Fazer de Cunha o Leviatã é coisa de quem tem medo de aceitar a verdade hobbesiana da guerra de todos contra todos. Manter Dilma no lugar da figura mítica e poderosa, em troca, é enfrentar essa guerra corajosamente. Não é à toa que ela é chamada de coração valente. Oxalá o Leviatã democrático vença o tirânico!

A democracia brasileira e seus novos inimigos

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Neste domingo 17 de abril de 2016, durante a votação para aprovação do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, estarão finalmente sendo preenchidas as vagas para inimigos políticos da democracia brasileira abertas há pouco mais de um ano pelos perdedores das últimas eleições presidenciais.

Com efeito, ainda que compor o golpe possa imediatamente render muito a muito poucos, estratégia que sempre foi o projeto histórico das elites, a verdadeira História, que não permanecerá dando destaque apenas para os interesses antidemocráticos atuais, não permitirá que a posteridade se esqueça destes criminosos ou defensores de criminosos que pretender incriminar uma presidente democraticamente eleita, contra quem, até aqui, nenhum crime foi comprovado.

Assim como muitos dos militares que compuseram o golpe de 64, que até recentemente nomearam ilustremente ruas, praças, hospitais e escolas brasileiras, mas que com o andar da carruagem histórica foram desmascarados como assassinos e torturadores, e que tiveram seus nomes retirados de espaços públicos, estes que votarão para o impeachment não deverão tem destino diferente.

Ainda que Temer, Cunha e Aécio ganhem a antiética batalha que travam contra a democracia e a legalidade, a guerra da História eles não tem como ganhar. A frase de Abraham Lincoln é pertinente aqui: “pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo”.

O intrigante na atual situação tupiniquim é que os golpistas candidatos a inimigos históricos da democracia brasileira sequer enganam todos por algum tempo nem alguns por todo o tempo. São, tacitamente, muito menos críveis do que a vítima do golpe que montam a qualquer preço. Apesar disso seguem na farsa que pretende  chamar ilegalidade de legalidade, corrupção de solução à corrupção, tirania de democracia.

Do outro lado, Dilma, que durante a ditadura militar aberta pelo golpe contra a democracia brasileira no recente milênio passado, foi presa e torturada por lutar justamente contra a ditadura e em favor da democracia. Ela, ainda que seja deposta e imediatamente estigmatizada pela irracionalidade golpista, em troca, é a figura da atual distopia tupiniquim que mais tem chances de ser absolvida pela imperiosa História e ser inclusive considerada a vítima deste conturbado período.

Inevitavelmente, à desumanidade e à tirania sofridas por Dilma na ditadura militar serão somadas a ilegalidade e a antiética que ela sofrerá caso os poderosos golpistas que tentam depô-la tenham sucesso. Talvez o único “pecado” histórico de que Dilma não consiga e nem deva ser “perdoada” seja não ter conseguido manter o Brasil na ascensão econômica aberta por Lula e desejada por todos.

Entretanto, um governo problemático nunca motivo para um presidente ser estigmatizado eternamente, tampouco deposto. Maus governos, até Lula, foram a realidade do nosso país. Seja o oligarca maranhense do PMDB, seja o sociólogo paulista do PSDB, só para falar dos mais recentes, sucatear um pouco mais a histórica “sucata brasilis” nunca fez deles inimigos da democracia no Brasil. Dilma, portanto, simplesmente por ser a atual protagonista da crise econômica, nunca será inimiga histórica do povo nem da democracia brasileira.

Já aqueles que votarem em favor do impeachment dela, ainda que não sejam vitoriosos, jazerão estigmatizados enquanto inimigos da democracia. Sem dizer que votar pública e abertamente em favor do golpe é defender interesses elitistas, os verdadeiros produtores da corrupção sistêmica do nosso país. Desse modo, os golpistas são duplamente antidemocráticos.

Que o estigma de inimigo da democracia que doravante estará com todo aquele que votar a favor do impeachment de uma presidenta que não cometeu o polêmico e pouco claro “crime de responsabilidade” tenha o peso dessa postura duplamente antidemocrática. De pronto, serão duplamente inimigos da democracia e do futuro sócio igualitário que a maioria absoluta dos brasileiros mais precisa, e que somente há pouco tempo começaram a ser afetivamente realizados.

Depressão pré-golpe

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Quem prima pela democracia não pode estar tranquilo esses dias no Brasil. Muito pelo contrário! O golpe parlamentar que está sendo montado há mais de um ano por grupos oligárquicos que, é importante frisar, não conquistaram democraticamente o direito de comandar o país, está chegando ao seu clímax neste domingo 17 de abril de 2016 com a votação da câmara deputados para que, finalmente, seja enviado ao senado a proposta de impeachment contra Dilma Rousseff.

 

E o fantasma golpista é ainda mais assombroso porque sobre as costas daqueles que o encenam pesam crimes e suspeitas criminosas gravíssimas. A falta de tranquilidade, melhor dizendo, a depressão pré-golpe pela qual muitos de nós está passando esses dias, portanto, advém desse horizonte distópico no qual o golpe que está para ser votado não é outro que o golpe da corrupção, o golpe da velha, mui corrompida e arraigada elite brasileira contra a igualdade social que finalmente começou a ser construída no Brasil desde que o PT assumiu a presidência do Brasil há 14 anos.

 

Para dramatizar ainda mais a depressão democrática pela qual o Brasil passa, a vítima espetacular do golpe, em primeiro lugar, é uma cidadã e política brasileira contra quem nenhum crime foi provado, que não enriqueceu ilícita nem suspeitamente, e que não apareceu em nenhuma das muitas e longas listas de propina que elencam os verdadeiros nomes da corrupção tupiniquim. E, em segundo e mais importante lugar, o golpe é justamente contra a presidenta que investiu como nenhum outro líder nacional na investigação e na punição da corrupção que, mais do que ter feito história “no” Brasil, fez “a” história deste país.

 

Como não estar deprimido diante de tamanho absurdo? Porém, o que realmente deprime os espíritos democráticos no golpe que está nesse horizonte próximo? Em primeiro lugar, a perda da nossa jovem democracia, como muito se fala hoje em dia. Entretanto, algo mais angustiante se evidencia nesse processo golpista. Todos aqueles que se indignam profundamente com o possível golpe forjado pelo PSDB de Aécio e levado adiante pelo PMDB de Cunha –estes sim nomes constantes em muitas das listas de propina- são golpeados na intempestiva crença de que a ação política precisa ser também ética.

 

Se há algo que o presente momento político brasileiro tem para cruelmente relembrar a todos é que, como bem esclareceu Maquiavel lá na renascença da humanidade, o poder político não é e não deve ser ético se de fato visar o poder efetivo. Tanto lá e antes como aqui e agora, trata-se somente da vil luta pelo poder, na qual quaisquer valores éticos que porventura venham moderar esta luta devem ser, como de fato são, descartados sistematicamente.

 

Talvez a não eticidade intrínseca do jogo político pelo poder há muito evidenciada pelo autor de O Príncipe e atualmente escancarada pelos golpistas tupiniquins seja o maior golpe contra os jovens e utópicos ideais democráticos contemporâneos, pois sujeita-os verticalmente ao velho e distópico jogo-a-qualquer-custo pelo poder que atravessa incólume os tempos e as aventuras de cunho socialista.

 

Realmente, para muitos é bastante difícil aceitar que uma presidenta (até aqui) honesta e democraticamente eleita pelo povo seja deposta por indivíduos e grupos políticos e midiáticos corruptos que querem tomar o poder e presidir o brasil ilegitimamente. Entretanto, o que vemos é justamente isso: a luta pelo poder completamente alienada da ética.

 

Diante dos fatos, devemos nós, que estamos sofrendo de depressão pré-golpe, abandonar a utopia na qual a política deve se pautar eticamente para, finalmente e a contragosto, aceitarmos a insanável alienação da política em relação a ética? Para os democratas angustiados resta somente a distopia da luta a qualquer preço pelo poder?

 

É preciso, contudo, esclarecer que custo é este. A aventura política-antiética-golpista brasileira começa cobrando o seu alto preço da própria democracia, fazendo-a valer muito menos, quase nada, para findar exigindo não menos da igualdade social que com muito esforço, mas também com muita ventura, começou a ser construída no Brasil nos últimos quatorze anos. O preço do golpe, portanto, é o fim do projeto sócio igualitário e da democracia que, somente ela, pode realizar maximamente.

 

Estar deprimido pela possibilidade de um golpe no Brasil, por mais alienado que seja em relação ao que esclareceu Maquiavel, não é insanidade nem ignorância. Ao contrário, é o sentimento lúcido de quem não aceita que as coisas devam ser eternamente como já foram. Desacreditar do teórico político medieval que mostrou a cisão irreconciliável entre política e ética, portanto, é acreditar na revolução. Cultivar a depressão pré-golpe é insistir que a política deve sim estar sujeita a princípios éticos.

 

E que essa depressão pré-golpe de tantos, no pior cenário, isto é, no sucesso do golpe, torne-se a depressão pós-golpe de muitos, quiçá de todos, pois mesmo que o presente projeto sócio igualitário brasileiro seja golpeado inoportuna e injustamente, pelo menos o futuro tupiniquim não estará totalmente escravizado pelo passado. Maquiavel está certo e é absolutamente manualesco para os golpistas, mas não para todos aqueles que querem igualdade social e uma verdadeira democracia para si.

 

 

Capadócias capitalistas

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A Capadócia é uma região montanhosa da moderna Turquia, muito visitada atualmente para a prática do balonismo recreativo. Porém, as mesmas montanhas que, hoje, por um punhado de dinheiro, os turistas podem observar das alturas, antigamente, serviram de esconderijo aos cristãos que fugiam da perseguição religiosa do Império Romano pagão. Dentro delas jazem quilômetros de túneis, milhares de alcovas, e dezenas de capelas-igrejas, nas quais aqueles que ousaram acreditava em um Deus único e bom podiam cultuá-lo em paz.

De certo modo, o labirinto claustrofóbico que aqueles refugiados religiosos abriram dentro pedra natural foi um esboço não só do que seria a organicidade outrossim labiríntica e claustrofóbica da cidade medieval, na qual os cristãos seguiriam cultuando o mesmo Deus, como também das nossas verticalizadas metrópoles contemporâneas, onde vivemos adensados uns sobre os outros cultuando, entretanto, outro deus: o capital, o Senhor absoluto da existência metropolitana.

Na cidade medieval, o Deus cristão ocupava a “laje” mais elevada. Suas fundações, entretanto, já pertenciam, ainda que não claramente, ao florescente capitalismo que precisava adensar e empilhar as pessoas para mais lucrar com elas. Agora, se as vorazes e rizomáticas bases capitalistas ainda permitiam que Deus as encimasse espetacularmente era porque isso interessava senão ao próprio capital. Se assim não fosse, ele teria, desde o início, despejado Deus da cobertura urbana e colocado outro inquilino mais lucrativo no seu lugar, ou ocupado o topo privilegiado ele mesmo.

Para a cidade capitalista nascente, ter Deus dentro de suas fronteiras era tão estratégico quanto o Coliseu era para Roma. Com efeito, a maior edificação da antiguidade foi dada aos cidadãos romanos para que lá eles despejassem catarticamente as suas barbaridades, e, ao deixarem o “Stadium Maximus”, desfilassem pelas “vias ápias” da Cidade Eterna apenas a civilidade que a ela interessava. A diferença, entretanto, é que o ópio do cidadão romano pagão era assistir aos cristão sendo devorados por leões, ao passo que o do cristão medieval era rezar para não ser devorado pelos leões pagãos que impertinentemente rugiam dentro de si.

E enquanto os cristãos medievais se preocupavam em não serem abocanhados pelo pecado, o lobo-capital-em-pele-de-cidade podia devorá-los até se empanturrar, pois os crentes mais se preocupavam com os seus demônios internos do que com a ainda não totalmente conhecida besta capitalista que, cada vez mais, os encurralava nas estreitas vielas do medievo. A fé em Deus, portanto, era uma espécie de Coliseu do capital, dentro do qual os cristãos eram iludidos de que estavam a salvo dos seu próprios leões. No resto da cidade, entretanto, o capital lhes sangrava sem dó nem piedade. Nesse sentido é que a velha esfera divina foi de muita serventia ao jovem capitalismo citadino.

Já o capital adulto, em forma de metrópole contemporânea, fez diferente. Despejou Deus de sua cobertura privilegiada e colocou-se, sem disfarce algum, no lugar dEle. Doravante, o leão que devora seria o mesmo para quem se pede proteção para não se ser devorado. Fidelidade ao onipresente deus metropolitano significa rezar diariamente por cifrões que, entretanto, são simultaneamente profanados e espoliados por esse mesmo deus para quem se reza. A benção do deus-capital, isto é, o dinheiro, é sistematicamente dado por uma mão sua e tirado pela outra. No paraíso metropolitano-capitalista, portanto, quanto mais beato se é, mais condenado se está.

Se, por um lado, a metrópole é o lugar no qual só se está protegido da fome capitalista deixando-se devorar por ela, e, por outro, diferente de Roma, que dava no Coliseu aquilo que não queria fora dele, o absoluto deus-capital tira, em todos os lugares, a mesma e única coisa que exige outrossim em todos os lugares, isto é, dinheiro, então temos aí uma perseguição sistemática que por si só justificaria uma fuga da metrópole a algum esconderijo secreto e seguro, assim como os primeiros cristãos que escaparam da Roma pagã que lhes perseguia.

Agora, uma vez que, hoje, o mundo inteiro é uma conurbação capitalista, não há Capadócia interiorana alguma em cujas montanhas possamos escavar rotas de fuga secretas nem templos alternativos. Em relação à onipresença do deus-diabo-capital, podemos apenas fingir a sua ausência, não obstante, no interior de suas montanhas urbanas feitas de aço, vidro e concreto, dentro das quais estão insculpidos os nossos refúgios-lares-apartamentos, onde, por breves e caros instantes, podemos descrer brevemente do deus-capital absoluto.

Os edifícios de concreto das nossas metrópoles contemporâneas estão para o capitalismo que a todos persegue assim como as escavadas montanhas de pedra da Capadócia antiga estiveram para o paganismo romano que perseguia os cristãos. A diferença, entretanto, é que, para estes, a distância física dos seus perseguidores significava proximidade metafísica com Deus, enquanto nós sequer podemos crer que quaisquer milhas nos afastam do nosso perseguidor onisciente, o capital. E isso porque o nosso algoz supremo é, ao mesmo tempo, o nosso deus absoluto.

Assim com os primeiros cristãos, refugiarmo-nos no interior de montanhas, todavia artificiais e criadas pelo deus-capital, para encontrarmos, a altos preços, diga-se de passagem, alguma paz e liberdade. E quando o capital abunda, podemos inclusive ir à Capadócia, embarcar em um balão, e, das alturas, como se fôssemos deuses nós mesmos, espiar o esboço da nossa civilização naquelas montanhas-refúgios-naturais.

Taxistas cariocas contra o Uber

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Em 1º de abril, mais conhecido como o dia internacional da mentira, os taxistas do Rio de Janeiro fizeram um mega manifestação contra o Uber, sistema de transporte privado que se coloca como alternativa para deslocamentos urbanos. Oxalá fosse mentira o bloqueamento surpresa que os manifestantes fizeram nos acessos aos dois aeroportos cariocas e nas principais vias do centro e da zona sul da cidade que, na verdade, bloqueou milhares de cidadãos, uns de pegarem seus voos marcados, outros de circularem pela cidade, outros ainda de chegarem aos seus trabalhos.

No entanto, a verdade da manifestação foi nada menos que 125 quilômetros de congestionamento urbano, ademais, em uma cidade normalmente já muito engarrafada, dita, recentemente, a mais congestionada do mundo. Para alguns veículos da imprensa, o engarrafamento provocado pelos taxistas foi maior da história da capital fluminense.

A fação taxista da “máfia” dos transportes cariocas se insurgiu contra o Uber porque este serviço não está sujeito às mesmas exigências legais que os taxistas. Com efeito, a autonomia do Uber em relação a determinados impostos e vistorias de rotina, no final das contas, permite um serviço de melhor qualidade e mais barato. Obviamente isso afeta diretamente os lucros dos taxistas. Porém, esse revés não autoriza a categoria taxista a prejudicar a cidade como bem entender

Sem dizer que o Uber se afirma oficialmente enquanto uma “tecnologia disruptiva”, isto é, uma inovação, produto, ou serviço que pretende derrubar uma tecnologia existente e dominante no mercado. Diante de tal “ofensiva”, os taxistas não mediram esforços para resguardar o seu, digamos assim, lugar de conforto há muito conquistado pela força e estratégia de sua “máfia”.

Entretanto, são dois os problemas da manifestação dos taxistas cariocas nesse 1º de abril que valem ser apontados. Primeiro, o fato de essa categoria não querer aceitar concorrência no serviço que presta. Ora, em um mundo liberal, demasiadamente liberal, a concorrência é motor inalienável. Tem jeito não! Eu mesmo, e, aposto, você que me lê, não temos tal privilégio, tampouco a pretensão de tê-lo. O longevo modo “máfia” dos taxistas cariocas, porém, faz com que a concorrência pareça um absurdo para eles. Já não era sem tempo uma disrupção!

Outro problema da manifestação, e o mais grave, foi a não organização, dentro da Lei, do protesto da categoria. De qualquer grupo trabalhista que queria se manifestar –bem como de qualquer outro- é exigido que comunique seu pretenso ato à prefeitura, que negocie os termos da ação, e que receba autorização para tal. Caso contrário, bombas de gás lacrimogênio e de efeito moral são despejados desmesuradamente até que a “ordem” se restabeleça.

A “mafiosidade” da categoria dos taxistas, no entanto, parece autodispensá-los de tal protocolo. Por isso, sem aviso nem medição de consequências alguma, eles simplesmente pararam a cidade quando, onde e como bem intenderam. E o que é pior, não sofreram violência do estado além de parcas 180 multas individuais. Por muito menos, a categoria dos professores, em suas manifestações devida e previamente autorizadas pela prefeitura, receberam muito mais violência e bombas morais.

O que os taxistas fizeram com a cidade e com milhares de cidadãos, portanto, foi um crime claramente contemplado pela lei. Não obstante, como se trata de uma máfia o tratamento que receberam foi diferenciado. A prefeitura, ainda fraca diante da “categoria”, estava mais preocupara com o restabelecimento da ordem do que com a punição dos desordeiros. Algo como varrer o lixo para debaixo do tapete. Tal privilégio não é somente dos taxistas, mas também das empresas de ônibus, metrô, trem e barcas da cidade.

Porém, de nada adianta a população que ficou horas imobilizada no meio da cidade reclamar enquanto o resistente poder da máfia dos transportes carioca não for submetido às leis que valem para todas as demais categorias trabalhistas e cidadãos. E não estou falando somente da inacreditável manifestação de 1º de abril, mas também do serviço destes taxistas que, cotidianamente, flerta despreocupadamente com a ilegalidade.

Não é de hoje que cariocas e turistas sabem muito bem que nas portas dos aeroportos cariocas, ou mesmo em dias de Natal, Ano Novo e carnaval, os taxistas se recusam a cobrar viagens conforme o taxímetro, ou seja, conforme a lei, obrigando as pessoas a pagarem valores previamente estabelecidos por eles mesmos, de acordo com sua velha régua mafiosa. Sem dizer dos muitos taxímetros que, quando usados, são “viciados” para cobrarem mais que o devido.

Afora o prejuízo social e econômico que os taxistas causaram na cidade do Rio de Janeiro nesse 1º de abril, o fato terem escolhido justamente o dia internacional da mentira para se manifestarem é simbólico. É como se a lei, a mais universal verdade para um sociedade, nesse dia pudesse ser tradada como contingência, mentira, algo que pode ser desconsiderado ao sabor de seus clandestinos anseios “categoriais”.

Já o Uber, o “vilão” segundo os taxistas cariocas, além de disruptivamente ameaçá-los com serviço e preços melhores, só tem a lucrar com a ilegalidade intempestiva desses taxistas. Não foi à toa que nas redes sociais o que mais se viu foi cariocas postando mensagens em apoio ao Uber e contra os taxistas baderneiros. Embora fosse 1º de abril, essas manifestações virtuais foram verdadeiras. Tanto pior para os taxistas.

A miserável saída de cena do PMDB

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O presentíssimo espetáculo político brasileiro, ao contrário do que as telas de TV golpistas mentem, não terá um final feliz com um golpe, mesmo que “branco”, isto é, político-jurídico. Em primeiro lugar, porque o que teremos em seguida será algo que atenderá ainda menos pelo nome de democracia, e, em segundo, porque a “morte” em cena aberta dos seus protagonistas, quais sejam, Dilma Rousseff e o PT, apenas deixará o palco livre para atores muito menos virtuosos e muito mais descompromissados com o bem-estar da plateia-povo-brasileira, tais como, Michel Temer e Eduardo Cunha, do PMDB.

Entretanto, não é outro o triste “working process” que o PMDB está produzindo para reestrear centralmente na Broadway política tupiniquim. Tão triste que nem um dos seus maiores roteiristas teve coragem de estar presente na cena-ensaio na qual o partido anunciou que estava abandonando o governo. Temer foi  o charlatão-mor que, de um lado, articulou diretamente o abandono do Planalto para chegar enviesadamente à presidência, mas que, de outro, não compareceu ao ato do abandono para não escancarar o fato de que, na verdade, quer nada mais nada menos que a presidência da república, enviesadamente mesmo.

Porém, à plateia que permanece atenta, não é difícil observar o que quer o espetáculo peemedebista com os gritos de “Fora PT”  e “Brasil pra frente, Temer presidente” que ecoaram rapidamente na sessão de três minutos realizada na Câmara dos Deputados, dia 29 de abril de 2016, na qual o partido, por aclamação, decidiu abandonar o governo Dilma. Tampouco as palavras de Eliseu Padilha, quais sejam, “temos de ter o partido fora da base do Governo para nos tornarmos um player em 2018” afastam a certeza de que não é o distante 2018 que visa o PMDB, mas esse mesmo 2016 crísico&agonístico.

E o patrocínio intensivo e apressado do PMDB a esse ato crísico&agonístico da “ópera brasilis” outra coisa não busca senão nublar o que disse o líder do PSOL, Ivan Valente, que “não podemos aceitar um impeachment sem argumentos jurídicos da forma como está ocorrendo”. Isso porque, embora o processo de impeachment exista na legislação brasileira, ele não foi concebido para funcionar como arma política. Nas palavras da própria Dilma: “nós estamos discutindo impeachment concreto sem crime de responsabilidade. E impeachment sem crime de responsabilidade é golpe”.

A declaração da controversa Marina Silva em relação ao desembarque do PMDB do governo tem ao menos a pertinência de relembrar-nos de que o PMDB é o mesmo partido de sempre, que decide romper com o Governo sem dar satisfação à sociedade nem pedir desculpas por ter sido um dos responsáveis pela atual crise. A política em cima do muro de Marina é virtuosa ao menos em sustentar que o PMDB quer apenas “se descolar da crise política e reinventar-se como solução. Continua o mesmo e velho PMDB tentando renascer das cinzas da fogueira que ele ajudou a atear”.

Não obstante, o tiro já saiu pela culatra peemedebista. A ordem do partido para que todos os cargos públicos, inclusive os ministérios da Ciências e Tecnologia, Aviação Civil, Minas e Energia, Agricultura, Saúde e Portos, sejam entregues não foi, nem tem como ser cumprida. Os seis ministros peemedebistas estão dispostos a continuar em seus respectivos cargos no governo de Dilma. Sem dizer que Temer, o articulador do desembarque, não desembarcou nem desembarcará de sua vice-presidência tacitamente acessória.

E para que as contradições peemedebistas não parem por aí, basta dizer que 24 horas depois do espetacular teatro de três minutos do PMDB, o senador Roberto Requião, do mesmo partido!, disse que Temer, na verdade, estava aplicando um golpe no próprio PMDB, pois, segundo o senador, não havia quórum para deliberar a saída do governo Dilma. Sugeriu ainda que era “só conferir nos vídeos”. Talvez por isso tenham escolhido nada claro sistema de aclamação, onde não se apura voto a voto a decisão da maioria. Um grito basta para fazer “democracia” para esse partido.

O PMDB, portanto, está aplicando um duplo golpe: o primeiro, na democracia que outrora ajudou a construir, e o segundo, em si mesmo, rachando-se em peemedebistas que concordam e peemedebistas que discordam do próprio PMDB. Dilma, a protagonista do primeiro golpe, acaba se beneficiando com o segundo. Rousseff, em vez de renunciar, como quer desesperadamente o PMDB, se aferra ainda mais às suas obrigações. Como ela não fez questão de esconder, não renuncia, “não desembarca” em hipótese alguma.

Dilma cancelou inclusive a sua viagem para os Estados Unidos na próxima quinta-feira para não passar temporariamente o comando do país ao seu vice, mentirosamente desembarcado, Temer. Como deixar seu objeto mais precioso, isto é, a nação que governa, nas mãos de um “companheiro” tão vil e tão pouco democrático?

E o tiro que já saiu pela culatra peemedebista findará como um legítimo tiro no pé se, como falou Marco Aurélio Mello, ministro do STF, não houver fato jurídico que respalde o processo de impedimento da presidenta Dilma, pois, nesse caso, “esse processo não se enquadra em figurino legal e transparece como golpe”. O problema, entretanto, é que esse tiro no pé atinge o povo brasileiro, visto que uma das estratégias golpistas é fazer com que a economia nacional, que afeta a todos, acompanhe os mesmos acordes sombrios da crise política que conta com a colaboração espetacular do PMDB.

O conselho de Mello, de que “agora precisamos aguardar o funcionamento das instituições … precisamos nessa hora de temperança”, parece não fazer parte do contemporâneo ideário peemedebista, que em parcos três minutos, e por razões que nem mesmo dentro do próprio partido encontram eco universal, saiu da cena que ocupa há trinta anos. Cena esta aliás que só está tão desagradável por conta da “coadjuvância” do próprio PMDB.

E agora o partido, esquecendo-se estrategicamente de sua velha e cada vez menos crível fala democrática, covardemente acusa a parceira de cena, Dilma, de ter errado a sua. Mas ela, como bem disse, jamais desembarcará deliberadamente da complexa e nem sempre agradável ópera histórica que no momento protagoniza, qual seja, o governo do Brasil. Bem diferente do PMDB…

Que “nós” para o futuro?

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Em vez de passiva&alienadamente perguntarmos “que futuro nós precisamos?”, a questão deveria ser colocada de forma mais ativa&responsável: que “nós” precisamos ser presentemente para que tenhamos o futuro de que precisamos? Quanto mais não seja, porque a qualidade do futuro será a qualidade do seu passado, isto é, disso que agora é presente.

A radical questão ecológica que a contemporaneidade enfrenta seja talvez a que mais indique que a preocupação com o futuro não engendra a preocupação com o presente. Se engendrasse, veríamos que a nossa preocupação como futuro é a nossa não preocupação presente com a poluição e a devastação da natureza que produzimos indiscriminadamente.

E como esse “nós” presente não consegue preservar o planeta para o seu próprio futuro, exige que o futuro faça isso por ele. Esse ponto-de-vista, entretanto, emoldura apenas alienação. E, no centro da “Big Picture” da natureza, um ponto-de-fuga-buraco-negro-humano, que suga não só as retas paralelas, mas a natureza toda e o próprio presente caótico para si, e futuro adentro. Nesse futuro, no entanto, outra coisa não estará presente que a nossa insustentabilidade atual.

A ciência, com o seu imenso poder para modificar o mundo, que deveria produzir senão vida e sustentabilidade, tem mais êxito em destruir a natureza em em mensurar em enésimo grau essa destruição do que em evitar com todas as suas forças a catástrofe ecológica. Cientistas antiecológicos esses da nossa História! Sintomático é o fato de cada vez mais pessoas estarem sendo cientistas, doutores, pós-pós-doutores.

Se lembrarmos que a ciência nasceu na modernidade com o lema, assaz burguês aliás, de espremer a natureza para fin$ humano$, e compararmos com o quadro ecológico atual, no qual a natureza posa pálida&espremida depois de parcos séculos escravizada pelo devir científiuco, a produção de mais cientistas só aponta um futuro ainda mais preocupante.

Entretanto, que tipo de cientistas e de doutores precisamos nos preocupar em produzir hoje para nos ocuparmos verdadeira e eficientemente do futuro? De cientistas especializadíssimos cujas produções, entretanto, atendam melhor a uma ou duas megacorporações capitalistas do que à natureza e ao futuro comum?

Não! Isso já era. Precisamos de super intelectuais competentes o suficiente para produzirem, nas suas lidas diárias, sustentabilidade à insustentabilidade que todos produzimos, inclusive à da própria ciência. Produzir “cientificamente” apenas o veneno, mas não o antídoto, desculpe-me, faz da ciência a maior burrice. Ciência deveria ser a não produção de venenos, para que não fosse necessário antídoto algum.

Realmente, nós não podemos ter qualquer tranquilidade em relação ao futuro enquanto não tivermos uma intelectualidade ativa&inventiva no sentido de reconstruir a harmonia perdida entre o homem e a natureza, espremida, no entanto, por essa mesa intelectualidade ativa&inventiva.

Que os números da física dos multiversos se materializem em mais natureza. Que os “papers” dos doutores pelo menos resultem em mais lixo reciclado. E que em vez de nos perguntarmos como o futuro deverá ser para que “nós” não precisemos deixar de ser como somos atualmente, isto é, absolutamente insustentáveis, nos ocupemos com aquilo do nosso presente que causa a preocupação com o futuro, qual seja, esse “nós” presente e insustentável!

Ora, o futuro outra coisa não será além de outras e novas relações que não as de agora. Porém, os objetos das relações futuras são produzidas antes de serem relacionados, ou seja, agora. Se for uma natureza degradada um dos objetos que o presente legará ao futuro, é com esta degradação que todas as partes da natureza, desde as bactérias, os animais, os homens, e inclusive os cientistas, estarão relacionadas e se relacionando.

Agora, se a herança do presente ao futuro imediato for a consciência de que para o homem existir ele deve espremer não a natureza, mas aquilo que, nele mesmo, leva-o a espremê-la, os próximos tempos antes do futuro que tanto nos preocupa poderão ser mais promissores e livres de preocupação. Portanto, plenos de vida. Para tanto, um “nós” melhor, e imediatamente!

Filosofia e palhaçada

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Da filosofia, na sua séria investigação do real, não se espera que brinque em serviço. Por isso, antes de qualquer coisa, a palhaçada é descartada enquanto uma das faces da realidade. Agora, e se a face do real não se fechar sem a máscara de um palhaço, não estariam os filósofos fechando os olhos justamente para aquilo que mais querem enxergar? Como então experimentar a dimensão palhaça da filosofia sem, contudo, ela deixar de ser o que é, ou seja, amor à sabedoria? Ou só será possível amar a sapiência seriamente?

Aqui, os filósofos de plantão devem estar se perguntando sobre a definição de palhaçada, obviamente. Pois bem, segundo Renato Ferracini, o palhaço é aquele que não interpreta; simplesmente é a sua própria ingenuidade patológica em ato. Portanto, é absolutamente verdadeiro. Temos aqui a primeira coincidência do objeto do palhaço e o da filosofia: a verdade!. A palhaçada, portanto, reconecta o indivíduo com a verdade subcutânea que culturalmente somos levados a esconder, a fingir que não existe em nós. Ou seja: a nossa patologia inerente.

Sócrates, por exemplo, foi uma espécie de palhaço. Ora, o filósofo grego começava perguntando aos seus interlocutores – supostos sabidos – coisas de que não sabia. Porém, sistematicamente refutava as respostas que recebia até deixar claro que ninguém sabia do que ele também não sabia. Quando Sócrates iniciava seus diálogos, tinha-se um ignorante (um palhaço), o próprio Sócrates, e um sabido (sofista) qualquer. Porém, quando terminava, eram dois os ignorantes; dois os palhaços! Não seria a maiêutica socrática também a técnica de parir palhaços?

A palhaçada da filosofia socrática veio ao mundo por uma aventura dialógica. Entre outras coisas, um diálogo é a relação de dois “pathos”. E a patologia que desses encontros decorre só não é considerada uma das verdadeiras expressões do real caso lhe seja negada tal dimensão. Contudo, o palhaço é justamente aquele que revela, ademais graciosamente, a patologia que vem ao mundo senão a partir da existência humana. Prova: não vemos palhaçada nos demais animais, somente em nós mesmos.

Diógenes, o cínico, uma espécie de sábio-bufão que habitava um barril na aristocrata e cosmopolita Atenas, quando perguntado por Alexandre, o Grande, o que mais gostaria de receber dele, disse-lhe: “quero de volta aquilo que tu não podes me dar”. Na verdade, pediu para que Alexandre saísse da frente do sol que antes lhe banhava gratuitamente. Ora, fazer troça do homem mais poderoso do mundo e não ser morto, escravizado, mas, pelo contrário, ter sua sabedoria reconhecida, não é para simples filósofos, mas somente para aqueles que também são grandes palhaços.

Bufonesco também foi o bigodudo Nietzsche. O Filósofo restaurou não só a dimensão trágica da filosofia como também relembrou a todos a esquecida e inalienável esfera dionisíaca da vida. Vale ressaltar que Dionísio, ao contrário do equilibrado Apolo, representa justamente a desmedida, ou seja, o “pathos”. E Nietzsche se esforçou em filosofar zaratustronescamente, em dançar com o seu martelo niilista em torno dos rígidos fundamentos morais, religiosos, culturais de sua época como um Clown Augusto. Por isso, talvez, desde lá seja um dos filósofos mais populares.

Contemporaneamente, Slavoj Žižek é considerado o grande clown da filosofia. Seu muitos cacoetes e tiques nervosos, sua fala duplamente enrolada – de um lado a língua eslovena, de outro, a língua presa -, sem falar da sua predileção por ideologias desacreditadas, anedotas démodés e filmes de quinta categoria a partir dos quais filosofa, tudo isso saca Žižek desse lugar demasiadamente sério, e por que não dizer apolíneo, que se espera que os filósofos habitem exclusivamente. O filósofo, entretanto, defende-se: “chamam-me de clown para não levarem a sério a minha filosofia”.

Não está justamente nessa resposta de Žižek o lado negro da questão entre filosofia e palhaçada? Melhor dizendo: não seria precisamente quando um filósofo ou uma filosofia revelam algo demasiado sintomático e problemático, e por isso mesmo insuportável, seja da condição humana, seja da realidade mesma, que decidimos não levá-los mais tão a sério? Ora, um palhaço não é perigoso. Dele podemos rir despreocupadamente, pois o filtro da palhaçada transforma as profundidades mais angustiantes da existência em superfícies cômicas, inofensivas.

Porém, o lado iluminado da relação entre filosofia e palhaçada brilha quando um filósofo sabe da impossibilidade de se alienar totalmente da patologia inerente à existência humana, e, por conta disso, não confia somente na sua pretensa seriedade, na sua monocórdica retidão. Novamente: Sócrates e a sua suma sabedoria: “só sei que nada sei”; o cínico Diógenes, que, com o império aos seus pés, pede somente pelo sol que sempre teve; Nietzsche, o sábio que criticou a modernidade como ninguém, mas que, entretanto, terminou a vida completamente dominado pela demência; e, por fim, Žižek, para quem a verdade é nervosa e se revela justamente através das ficções da realidade.

A seriedade, na filosofia, funciona como as viseiras colocadas ao lado dos olhos dos cavalos de tração, para que, em vez de olharem tudo o que tem para ser visto, foquem somente naquilo que “querem” que eles vejam. A seriedade, portanto, deve dispensar a visão periférica. A palhaçada, ao contrário, é a arte de evidenciar justamente os detalhes excêntricos e patológicos que resistem em se harmonizar nos centros dos quadros mais pretensiosos. Aliada à filosofia, isto é, ao amor à sabedoria, a palhaçada outra coisa não faz senão dar a ser amado tudo o que até então não é objeto de amor justamente porque não é visto.