“É impossível que um corpo exista sem contrariedade sensível”, disse Aristóteles em “sobre a Geração e a Corrupção”. Entretanto, na presença de um prazer, o seu oposto é sentido minimamente, a ponto de se tornar invisível, enquanto que diante de um desconforto, o seu oposto, seja a paz ou o prazer, avizinha-se afirmando insuportavelmente sua ausência. Nesse momento o filósofo grego diz que “investigaremos mais facilmente os casos particulares quando tivermos, em primeiro lugar, tomado uma perspectiva universal”.
Logo, o universal é mais facilmente percebido a partir do desconforto, visto que aí tanto a tristeza e o seu oposto lutam em arena aberta. Já nos estados de satisfação, somente aquilo que os causam desfilam sublimes aos nossos sentidos. Pode-se deduzir, por conseguinte, que a felicidade é, de certa forma, a ignorância do seu contrário, enquanto a infelicidade é a presença insuportável dos opostos. “Pela reta, conhecemo-la a si mesma e à curva, pois a régua é juiz para ambas, já a curva não é juiz nem para si mesma, nem para a reta”, diz o grego; Portanto, a tristeza é o caminho retilíneo a partir do qual se aprecia tanto a monotonia dolorosa do percurso quanto o movimento promissor da paisagem; e a curva, a felicidade, que não é medida para nada além de si mesma.
Em “Sobre a Alma”, Aristóteles afirma que “o movimento é a atividade do que não alcançou o seu fim”. Então, passar a um estado negativo é provar o lado irrealizável do estágio positivo que o antecedeu. Entretanto, “é necessário que se dê o antecedente para que o consequente ocorra”, diz o filósofo. Porém, a infelicidade é demasiada angusta porque esconde seu propósito ao apontar cruelmente para o que ela não é, ou seja, para um antes ou para um depois dela. O ‘antes’ nos é dado, porém perdido; já o ‘depois’, apesar de desejado, é improvável. Nesse vazio o mestre grego pergunta: “se, por exemplo, para existir uma casa é necessário haver fundações, será também necessário que, uma vez feitas as fundações, a casa venha a existir?” É a impossibilidade de dar essa resposta que preenche a tristeza.
“Convém, com efeito, distinguir em que se transforma aquilo que muda”, adverte o filósofo, pois, segundo ele, a “geração é corrupção do não-ser e a corrupção é geração do não-ser”. Logo, a tristeza é apenas a percepção da felicidade deixando de ser, ao passo que a vida da tristeza é propriamente destruir a felicidade insustentável. Por mais indesejado que seja esse movimento, ele é necessário, pois “o que existe, por necessidade é. O que é necessário não pode não ser”, explica Aristóteles, tal como “a água e o ar, por exemplo, geram-se circularmente, pois se houver nuvens, deverá chover, e se chover, deverá haver nuvens, ao passo que os homens não regressam sobre si próprios”, eles evoluem justamente através dos ciclos de geração e corrupção dos seus estados, sejam os felizes sejam os tristes.
Difícil mesmo é deixar de predicar a felicidade como boa, e mais ainda a tristeza como má, porquanto o bem e o mal, “o verdadeiro e o falso, são uma combinação de pensados”, aponta Aristóteles; e pensar, isto é, ter uma opinião sobre as mudanças de estado, para o grego, “implica ter sido persuadido, e a persuasão implica a palavra”, ou seja, uma imagem humanamente distanciada do real. No entanto, “as sensações são sempre verdadeiras, enquanto as imagens são maioritariamente falsas”, completa o pensador; pois, para ele, “as imagens são como sensações, só que sem matéria”. Portanto, é a razão que, trabalhando sobre a massa de sensações que se lhe apresenta, artesanalmente apropria ou não tudo que é sentido de acordo com fins próprios, em geral, em função da felicidade que lhe serve.
A razão age livremente porque “o sentido é aquilo que é capaz de receber as formas sensíveis sem a matéria”, afirma Aristóteles, e o lado racional do animal que somos converte todos as sensações em distâncias relativas à felicidade. Por isso a tristeza parece não se justificar nem se apropriar à vida, e sem espaço para ser devidamente fruída apenas figura como o intervalo improdutivo e insuportável entre os momentos felizes impostos pela razão. O filósofo grego afirma que “não é o desejo o determinante deste movimento; é que os homens que não sofrem de imoderação [os racionais], embora sintam desejos e apetites, não fazem aquilo de que possuem desejo, eles obedecem, antes, ao entendimento”, ou seja, à razão, e para esta só o prazer tem lugar ao sol.
Dessa forma, o desconforto e a tristeza aparecem sempre alienados dos nossos desejos, isto é, apresentam-se alienígenas, a serem exterminados, e não enquanto movimentos próprios e indispensáveis ao equilíbrio humano. Entretanto, a tristeza é tão necessária quanto a felicidade, pois na grande tela figura-e-fundo, ambas se revelam justamente no contraste entre uma e outra. “Quanto ao desejo, todo ele existe, também, em vista de alguma coisa”, aponta Aristóteles; portanto, alguma coisa qualquer, inclusive a tristeza, só pode ser fruto do desejo, e isso é precisamente o que a razão insiste em esconder. O filósofo conclui que “existem, então, três coisas: uma, o que move; a segunda, aquilo com que move; e ainda uma terceira, o que é movido”. Concluímos aqui que o que move é o desejo; aquilo com que move são as sensações; e o que é movido é a razão. Logo, por ser a única movida, é a razão que deseja voltar ao repouso, à felicidade, ou seja, ao ponto de ignorância do seu contrário, isto é, ao esquecimento da tristeza.