Às vezes nenhum conteúdo do mundo se encaixa nas nossas formas de ser, então nos sentimos vazios. Outras tantas, enquanto conteúdo, não encontramos nenhuma forma capaz de nos receber, e aí a sensação é orfandade. Ambos os casos, por conseguinte, geram tristeza. Todavia, para escapar disso ora violentamos o nosso conteúdo amorfo até que ele se encaixe numa forma qualquer, ora pervertemos a nossa própria forma de ser para acomodar nela conteúdos que, no entanto, a ela não se adaptaram espontaneamente.
Em contrapartida, felicidade significa encontrar ou conteúdos que preencham as nossas formas vazias, ou formas possíveis aos nossos conteúdos individuais. Contudo, não há garantia alguma de que o conteúdo permaneça indefinidamente satisfeito sob determinado formato nem que, com o tempo, tal forma continente careça de mais ou de menos matéria. Por isso a felicidade é um evento que dura enquanto conteúdo e forma se embocam adequada e naturalmente.
O problema é que, por um lado, só vivemos os conteúdos conquanto eles se apresentem formalmente, e, por outro, as formas somente se preenchidas por alguma coisa. Pudéssemos nós viver o amorfo ou o vazio, sem angústia, com efeito seríamos gratuitamente felizes. Porém, sem uma forma específica e um conteúdo dado, e sobretudo sem um conluio entre eles, há somente a sensação de falta, portanto, de infelicidade.
Aquele jogo feito com crianças – e também com macacos -, no qual são encaixados objetos de diversos formatos, como quadrados, círculos, estrelas, etc., nos seus respectivos nichos, e que, em caso de êxito, trazem ao jogador incentivo – no caso dos símios, ração -, tal jogo evidencia a nossa obsessão em casar forma e conteúdo. Inversamente, se brincássemos desde cedo de libertar os conteúdos de suas formas e os formatos daquilo que os preenchem, a nossa felicidade saberia ser informal e sem objeto.
Mais feliz é o artista cujos conteúdos e formas brincam de liberdade vida adentro, pois, de um lado, ele não submete inadvertidamente seus inquietos conteúdos à formas pré-fabricadas, ao contrário, as cria – e belamente. De outro, as formas através das quais o artista é não se realizam mediante conteúdos dados, mas inventados, até que as formas de suas obras não careçam mais de substância alguma, e doravante se deem apenas à apreciação, dele mesmo e das outras pessoas.
Entretanto, embora a habilidade do artista em trabalhar criativamente o amorfo e o oco seja uma vantagem em relação àqueles que não inventam formas nem conteúdos para si, isso não significa garantia de felicidade absoluta. A diferença, todavia, é que aqueles contam passivamente com as formas e os conteúdos do mundo para suprirem a volatilidade de seus próprios conteúdos e vacância de suas formas individuais, enquanto que artisticamente essa busca não se afasta do sujeito dessa carência; e se nada é encontrado ele mesmo as produz.
Aqui, contudo, o artista parece com aquele que, na fuga da tristeza, violenta seu conteúdo em benefício de formas quaisquer ou que perverte uma forma existente até que ela receba seu volúvel conteúdo. Entretanto, a virtude artística é aquela na qual o sujeito encaixa os seus conteúdos órfãos de formas na suas próprias formas carentes de conteúdo, e vice-versa, num solipsismo cujo perdão jaz na não perversão do mundo e no acréscimo de uma solução nova e possível às sempiternas histeria das formas vazias e angústia dos conteúdos amorfos.
Claro, não é o caso de somente o artista ser capaz de criar a feliz harmonia entre conteúdo e forma senão que essa paz está aí não para ser encontrada nalgum canto, mas criada por quem a persegue. Um instante de felicidade, portanto, é quando uma forma vaga e um conteúdo disforme pertencentes a um mesmo sujeito se encaram, superam a unidade perdida e finalmente se completam. Fugir desse processo interno e atalhar por formas e conteúdos quaisquer pode muito bem afastar a tristeza, mas com certeza não leva à felicidade.