Servidão informacional e a cifra de sua revolução

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A informação na contemporaneidade tem seus céu e inferno na falta de limites. Em primeiro lugar, devido à tecnologia computacional e ao advento da internet que, juntos, permitem que se produza, divulgue e acesse montantes astronômicos de informação, à distância de um clique, bastando apenas uma conexão com a World Wide Web, isto é, a rede. O céu informacional contemporâneo é justamente a democratização da informação aberta pelo mundo da internet. O inferno, em contrapartida, é que tamanha abertura permite que ideologias totalizantes se valham dessa aventurosa horizontalidade democrática para alcançar, ao mesmo tempo e contundentemente, indivíduos do mundo inteiro. Uma boa metáfora para isso é o soldado que, no campo de batalha e de posse de uma metralhadora giratória potentíssima, tem poder para atingir todos a sua volta. Dessa metáfora devemos guardar que, dependendo da munição que é disparada pela potencialidade da comunicação na contemporaneidade internética, podemos conquistar a tão necessária liberdade tanto quanto sermos sujeitados verticalmente à servidão informacional.

Em A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade, Manuel Castells discorre sobre essa ambiguidade inerente às tecnologias da Era da Informação. De um lado, tratando do ideal de liberdade na democratização da informação. De outro, falando do atravessamento de tecnologias de controle -comerciais e governamentais- no sentido vigiar, investigar e identificar todos os terminais envolvidos nessa interconexão democrática. A Galáxia da Internet do sociólogo espanhol refere-se a A Galáxia de Gutenberg, obra em que Herbert Marshall McLuhan, um destacado educador, intelectual, filósofo e teórico da comunicação canadense, conhecido por vislumbrar a Internet quase trinta anos antes de ser inventada, responsável pela célebre máxima: “o meio é a mensagem”. McLuhan dizia que a prensa, na verdade a imprensa, revolucionou o mundo e a comunicação. Castells, por sua vez, e mediante sua referência ao pensamento do canadense, pretende apontar que a Internet é a nova prensa, a nova forma da revolução informacional na contemporaneidade.

Para tanto, Castells investe na análise das interações entre Internet, economia e sociedade que revolucionaram o velho conceito inerente às sociedades, qual seja, a vida em rede. Para o sociólogo, a Internet tem o poder de transformar o conceito de rede, essa antiga e essencial ferramenta de organização humana, seja em um modelo centralizado, vertical e de controle, seja em uma plataforma descentralizada, horizontal e flexível. A ambiguidade da internet e da informabilia que a constitui é tácita ao percebermos que, em rede, tanto se pode manipular as massas –e portanto e a priori cada indivíduo- com doses certeiras de informação a serviço do reacionarismo, quanto abrir um horizonte no qual os indivíduos/usuários podem revolucionar inclusive a proposta inicial em função da qual a própria internet foi criada.

Castells aponta que a livre troca de arquivos tipo MP3 e MP4, que aliena as grandes indústrias fonográfica e cinematográfica da produção, da distribuição e do consumo maciço de música e filmes; a panfletagem política e contracultural ilimitada; bem como a ágora de cultura e de entretenimento que se abre com a proliferação de revistas e jogos on-line, são provas de que os usuários podem fazer da rede -que não existe sem eles- algo que lhes convenha absolutamente. No entanto, é preciso apenas observar, quiçá vencer os poderes totalizantes que ao mesmo tempo e mediante a mesma rede tentam fazer dessa intercomunicação assaz democratizada e de todos os seus terminais/usuários massa de manobra subserviente aos seus interesses.

Em relação a esse inimigo a ser vencido, que com todos os bits tenta fazer da democratização da informação uma ferramenta tirânica sua, vale trazer à discussão a análise que o filósofo Gilles Deleuze fez da diferenciação foulcaultiana entre as sociedades disciplinares e as de controle, ambas tentativas de alcançar os indivíduos que compõe a sociedade. Conforme Deleuze em POST-SCRIPTUM – sobre as sociedades de controle, Foucault situa as sociedades disciplinares desde os séculos XVIII e XIX, cujo apogeu, entretanto, se deu no início do século XX. O que é importante saber dessas sociedades disciplinares é que nelas os indivíduos não cessam de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis inexpugnáveis: a família, escola, a caserna, a fábrica, o hospital, a prisão, e assim por diante. Disciplinados&Confinados, desde a maternidade até o cemitério seria o slogan perfeito para esse tipo de sociedade.

Porém, ressaltam os dois filósofos franceses, a partir do início do século XX, o mundo observa a crise generalizada de todos os meios de confinamento. Em outras palavras, a prisão, a fábrica, a escola, e até mesmo a família passaram a ser “espaços” cujo confinamento, no entanto, viabilizava não a disciplina, mas o seu contraexercício. Esses claustros disciplinares passaram a se comportar como bunkers de resistência que permitiam o exercício da indisciplinaridade. Aqui, basta imaginar um sujeito conectado ao mundo pelo seu smartphone  dentro de um desses espaços das sociedades disciplinares. Como seria controlado se, de fato, ele não está ali, ainda que virtualmente fora dali? A crise das instituições disciplinares tradicionais, portanto, deveria ser superada pela implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. E para Foucault as sociedades de controle foram instituídas para evitar que os indivíduos gozassem plenamente de liberdade. Com efeito, coloca Deleuze, as sociedades de controle substituíram as sociedades disciplinares. Para o filósofo, Foucault identifica o futuro à formas ultrarápidas de controle, não mais claustronômicas, mas agorísticas, capazes de se darem ao ar livre, e por que não dizer wireless, em substituição à antiga disciplinaridade que operava mediante sistemas materiais e fechados.

Com Deleuze podemos perceber que a cada uma destas duas sociedades –a disciplinar e a controladora- corresponde certos tipos de ferramental, instrumento, aparato, maquinário para cumprir seus fins. Não que as máquinas, os aparatos em si mesmos, sejam determinantes, aponta o francês, mas porque são as expressões genuínas das formas sociais capazes de lhes dar nascimento e utilizá-los. A disciplina e o controle são a priori ideológicos. Todavia, imediatamente maquínicos.

As antigas sociedades aplicavam suas soberanias mediante máquinas simples movidas a alavancas, roldanas, cordas. A forca e a espada, em suma, o cadafalso espetacular dos príncipes, bem evidenciado por Foucault em Vigiar e Punir, são exemplos dessa simplicidade instrumental, todavia eficientíssima, nas mãos do poder totalizante. Já as sociedades disciplinares que as sucederam exerciam soberania através de equipamentos menos espetaculares, outrossim suficientemente eficientes,  como a rígida organização dos espaços nos quais os indivíduos todos passavam as suas vidas. Aqui temos o panopticismo disfarçado de escola, de prisão, de igreja e até mesmo de família: equipamentos que tiraram os indivíduos da inobservância pré-punitiva da Era Cadafálsica Principesca para então alocá-los em um sistema de vigilância disciplinar indoor cujo Calcanhar de Aquiles, entretanto, era o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem.

Daí a crise das sociedades de vigilância disciplinar da qual falam os filósofos, e a qual gerou a necessidade que uma nova forma de dominação coletiva: a sociedade de controle. Com efeito, as sociedades de controle se valem de máquinas de uma terceira espécie: máquinas de informática; computadores; a rede em si; cujos calcanhares de fragilidade, todavia, são dois. Passivo: a interferência constante e o registro a priori de todas as atividades -virtuais e reais- dos indivíduos/usuários, o que os vulneralibiliza para qualquer observância e punição a posteriori. E ativo: a pirataria, a introdução de vírus e o hackeamento intempestivo.

Aqui é preciso colocar que a ação das sociedades de controle sobre os indivíduos que a compõem se dá de modo mais efetivo do que nas sociedades disciplinares, e mais ainda que nas punitivas-cadafálsicas, porque o maquinário, o aparato totalizante-controlador é mais obscuro aos terminais individuais. Paradoxalmente, mais obscuros e mais transparentes ao mesmo tempo. Cordas, roldanas, espadas, salas de aula, celas prisionais e torres de vigilância são estruturas de fácil visualização e compreensão. De inimigos físicos/corpóreos podemos fugir mais facilmente. Já de um algoz que virtualiza-se e age mediante trincheira informacionais apenas, fica bem mais difícil escapar, quiçá reconhecê-lo. Ainda mais em uma sociedade para a qual a informação é a um só tempo o chão físico e o éter metafísico que o encima. Eis a contemporaneidade.

Para dar corpo a essa invisibilidade estratégica dos aparatos totalizadores da sociedade de controle é de muita ajuda transcorrer as ideias que Vilén Flusser traz na sua obra Filosofia da caixa preta. Nesta obra temos a análise da informação em forma de imagem, exemplificada centralmente com a fotografia, cuja ideia chave, entretanto, é a da imagem técnica –em contraposição à imagem artística-artesanal-, e cujo aparato é a máquina fotográfica, instrumento que, mesmo desconhecida a sua maquinagem, gera o real que consumimos –imageticamente. Para Flusser, até mesmo o fotógrafo, que domina o aparelho –a máquina fotográfica- na verdade conhece apenas o input e o output dessa caixa preta. Resultado: tanto os produtores quanto os consumidores desse mundo imagem técnica desconhecem o que se passa no interior da caixa preta, do aparato, da máquina central da sociedade de controle contemporânea.

Embora Flusser ressalte que as imagens são mediações entre homem e o mundo, com o propósito de representar esse mundo, as imagens técnicas –produzidas pelas caixas pretas- são janelas e não imagens. O observador-usuário, em vez de enxergar nas imagens técnicas as janelas imagéticas que denotam o aparato misterioso que as produz, bem como as suas pretensões totalizantes, em vez disso trata o real enquanto aquilo que seus olhos veem apenas, como se o que é visto fosse a realidade última, e não o sistema social de controle agindo através dessas imagens. As imagens técnicas, a qualidade e democratização que elas envolvem, têm o poder de fazê-las passar pelo real ele mesmo, fazendo-nos esquecer de que são apenas aparelhos ideológicos fortíssimos. Por isso, salienta o filósofo, “o que vemos ao contemplar as imagens técnicas não é ‘o mundo’, mas determinados conceitos relativos ao mundo”, conceitos esses já ideologizados, instrumentalizados para manter todos os que o observam imageticamente sob controle total; caixapretificados.

Flusser é categórico ao afirmar que a tarefa primordial das imagens técnicas é estabelecer o código geral que reunifique a cultura, que arranque os objetos da natureza e os aproxime dos homens. No entanto, mediante imagens técnicas produzidas por caixas pretas, essa aproximação significa a modificação estratégica de tais objetos. A ponto de, diz o filósofo, a fotografia passar a ser a realidade ela mesma. A um só tempo a desobjetificação dos objetos e a estratégica objetificação de significações que servem ao sistema de controle social. Ademais, tal inversão do vetor da significação caracteriza o mundo pós-industrial, arremata o autor tcheco.

E se na contemporaneidade é a fotografia do real o real ele mesmo, temos que, fiéis a Flusser, a decadência do objeto é a emergência da informação acerca dele. Pragmaticamente: pensamos e vivemos como as imagens técnicas –produzidas sabe-se lá como e por quem. As imagens técnicas pensam por nós; vivem em nós; são o mundo no qual vivemos. Resultado: somos vítimas da caixapretice aparelhística produtora de símbolos de controle. Mas, o filósofo não nos deixa esquecer: “a aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas quanto o são todas as imagens”. Dessimbolizá-las, reificá-las, decifrá-las, portanto, é reconstituir o real que tais imagens significam verdadeiramente. Esse real a ser decifrado, porém, é muito menos os objetos em si que as imagens técnicas representam do que a ideologia de controle por trás dessas representações técnicas do real, justamente o que permanece caixapretificado.

Em um mundo no qual o próprio real outra coisa não é senão as imagens técnicas que o traduzem e reportam massivamente, o real a ser dessimbolizado é justamente a intencionalidade oculta na eleição dos objetos que vivem nas imagens técnicas –que, de um ponto de vista marxista, é o velho fetiche da mercadoria-; os enquadramentos desses objetos nessas imagens técnicas –os rígidos pontos-de-vista que esse fetichismo imagético do real impõe-; e sobretudo a reprodução ao infinito e a distribuição em rede desses produtos técnicos ideologizados e essencialmente caixapretificados. “Toda crítica da imagem técnica deve visar o branqueamento dessa caixa”, indica Flusser.

Para relacionar Flusser à Castells sem muita delonga, uma importante colocação do primeiro: “programaticamente, aparelhisticamente, imageticamente … estamos pensando do modo pelo qual ‘pensam’ os computadores”. E para não deixar Deleuze e Foucault de fora dessa relação, cabe dizer que pensamos e vivemos conforme a nova noção de rede porque a sociedade de controle precisa que assim seja. Aqui vale apontar o alinhamento entre o tcheco e os dois franceses. Se para aquele “a cultura da Internet é a cultura de seus criadores”, é porque, para estes, a internet é o corpo que controla as sociedades contemporâneas. A rede informacional contemporânea, portanto, seria a própria sociedade de controle em forma de realidade, em forma de mundo, de imagem técnica indecifrabilíssima. A caixa-preta-mor, diga-se de passagem. Ou, dizendo melhor com as palavras de Flusser, “complexo de aparelhos, de caixa preta composta de caixas pretas”.

Agora, se, como colocou o pensador tcheco, a tarefa da filosofia da fotografia é apontar o caminho da liberdade em relação às imagens técnicas e à caixapretice do real ideologicamente imageticizado, pois, para Flusser, essa filosofia é a única revolução ainda possível -e urgentíssima!-, podemos dizer, em uma paráfrase, que a tarefa da filosofia da informação é fazer o mesmo, isto é: apontar o caminho da liberdade em relação à caixapretificação da produção e da distribuição da informação, outrossim produto ideológico das sociedades de controle, pois, para essa filosofia da informação, esse é o único movimento verdadeiramente revolucionário, e não mesmos urgente. Como, então, baseados na teoria de Flusser e nos apontamentos de Castells, Deleuze e Foucault, tal filosofia revolucionária é possível, ademais a partir de dentro da sociedade de controle informacional?

A primeira coisa a atentar é que, seguindo a ideia de Flusser, é o homem, e somente ele que pode produzir informação, bem como transmiti-la e guardá-la. E se são os próprios homens que são vitimados pela informação mediada pela sociedade de controle, é porque eles mesmos oferecem munição ao seu algoz. Assim como disse Étienne de La Boétie, qual seja, que os mil olhos e mil braços do tirano não são instrumentos que de fato sejam dele, visto que ele é um homem como qualquer outro, com dois olhos e dois braços apenas, mas são os mil braços e mil olhos dos que são tiranizados por ele, sequer é necessário os tiranizados irem até o forte do tirano para matá-lo. Basta que não mais doem seus braços e olhos, afinal, a arma com a qual a sociedade de controle nos mantém cativos dos seus desígnios e aparelhos, isto é, a informação, é produzida por nós, homens. Somos nós que produzimos as condições para a nossa própria servidão informacional: a informação, os aparelhos e as imagens técnicas com os quais somos subjugados.

Castells, entretanto, nos diz que as novas formas de interação social na Era da Internet têm poder para substituir as comunidades estabelecidas estrategicamente pelas sociedades de controle por comunidades baseadas em afinidades alheias a desígnios ideológicos extrínsecos. Cabe aqui trazer o anarquismo impertinente de Hakim Bey que constitui o seu conceito de TAZ (zona autônoma temporária). Mesmo que a sociedade de controle informacional seja A Zona de Dominação Absoluta na contemporaneidade, dentro dela essas redes sociais baseadas em afinidades alheias a desígnios ideológicos extrínsecos podem funcionar como  TAZes, dentro do inimigo. Senão matando-o, ao menos reduzindo, ainda que efemeramente, sua onipotência.

Para tanto, aponta Castells, é fundamental que a arquitetura de interconexões seja ilimitada, descentralizada, distribuída e multidirecional em sua interatividade; que todos os protocolos de comunicação e suas implementações sejam abertos, distribuídos e suscetíveis de modificação. Claro, não devemos esperar que a própria sociedade de controle faça isso pelos controlados. São estes que, anárquica e coletivamente, devem abrir suas TAZes informacionais impertinentes no cerne da TAZ Totalitária. Afinal, onde há uma zona autônoma, ainda que temporária, na qual a sociedade de controle informacional não pode nem sacar nem incutir informações, tampouco verificar as que estão sendo trocadas lá, há o enfraquecimento do sistema de controle da sociedade contemporânea. Fundamental todavia, é que essa máquina, esse aparato, esse instrumento revolucionário que é a TAZ seja tão caixapretificada à sociedade de controle quanto essa mesma sociedade o é para os indivíduos que ela, por sua vez, controla opacamente. Usar a arma do inimigo contra ele mesmo! Esse é o passo mais econômico para a revolução.

Nesse sentido, o que podemos tirar de Castells é a proposta de redefinição do conceito de comunidade, baseada não mais nos ordenamentos ditados pelos sistemas de controle, mas no apoio aos próprios indivíduos tiranizados por tal ditadura e aos laços informacionais que eles podem travar entre si, a despeito da sociedade de controle que primeiramente os uniu/enclausurou inexoravelmente em torno da informação com o propósito exclusivo de controlá-los. Para o espanhol, o novo padrão de sociabilidade deve ser caracterizado pelo paradoxal individualismo em rede. Esta deve ser a nova forma dominante de sociabilidade contra a dominação das sociedades de controle informacionais. Para o autor, essa revolução pode se dar mediante a cooperação entre leis, tribunais, opinião pública, mídia, responsabilidade coorporativa, agências políticas, e, sobretudo, a partir da restauração da confiança recíproca entre os próprios indivíduos e, universalmente, entre os povos e seus governos. E para Castells isso é possível porque dependem exclusivamente da ação humana.

Deleuze reforça essa revolução dizendo que não devemos desistir porque estamos diante de uma sociedade –de controle- mais opaca que outras –a disciplinar, por exemplo. O francês coloca que em cada uma delas se pode enfrentar as sujeições e construir a liberdade. Portanto, nas palavras de Deleuze, “não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”.

Que armas, todavia, são essas? Ora, se as sociedades disciplinares se estruturavam na assinatura e na localização do indivíduo em uma massa, e nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura nem um número, mas uma cifra, isto é, uma senha, nossas armas contra o controle informacional é, retrazendo Bey à discussão, estabelecermos TAZes cifradas que possibilitem o acesso dos indivíduos anarquistas informacionais à informação que eles criam e que habitam suas TAZes. Contudo, mais importante de tudo, que rejeitem, que vetem, que cifrem o acesso do controle externo sempre que ele tentar adentrá-las. Se nas sociedades de controle das quais queremos nos ver livres os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, nas sociedades revolucionadas pós-controle as TAZes informacionais devem ser indivisíveis, porque caixapfetificadas estrategicamente àqueles que querem tirar delas apenas amostras para dadificá-las. Por quê? Por que dentro da TAZ, assim como dentro da sociedade, é a vida que habita, e é ela que importa e que não pode ser reduzida. Aqui é fundamental saber o que realmente importa e o que é primeiro no conceito “vida em rede”. Vida, obviamente.

Para concluir, a revolução das sociedades de controle começa pela percepção de que, nas palavras de Flusser, “o que vale não é determinado ponto de vista, mas um número máximo de pontos de vista”. Como então instituir essa plurivocidade de perspectivas no cerne das monológicas sociedades de controle? Fixando-nos na metáfora da fotografia que perpassa a Filosofia da caixa preta, contra essa sociedades de controle foucaultianas,  que outra coisa não querem senão fazer do real propriedade sua, a frase do pensador tcheco: “a distribuição da fotografia ilustra, pois, a decadência do conceito propriedade”. Afinal, ainda nas palavras do autor, “a práxis fotográfica é contrária a toda ideologia; ideologia é agarrar-se a um único ponto de vista, e o fotógrafo age pós ideologicamente”, ou seja, para além da ideologia que o quer controlar. Em suma, quanto mais houver indivíduos fotografando, tanto mais o sistema que quer dominá-lo será incapaz de decifrar o mundo de fotografias que eles produzem para si.

Se, como disse Flusser, “fotografias nos cercam”, porém, “toda fotografia individual é uma pedrinha de mosaico”, a Big Picture da realidade outra coisa não deve ser além do resultado mosaico das fotografias do real que cada indivíduo faz. Todavia, se essas imagens-informações que somente nós, homens, trazemos ao mundo, com as quais aliás as sociedades de controle nos dominam, não forem cifradas à essa mesma sociedade tirânica, ela fará, obviamente, com que o real seja ou o recorte, ou a rediagramação desse material que imanentemente produzimos.

Hipostasiando  o que disse La Boétie, que os mil braços e mil olhos do tirano são os braços e olhos dos seus mil súditos, com Flusser podemos dizer que as mil imagens técnicas do sistema de dominação são as mil imagens individuais de cada um dos dominados; com Castells, que os  mil nós da Galáxia da Internet Total são os mil usuários/terminais dessa mesma rede internética; e, por fim, com Deleuze e Foucault, que as mil informações com as quais as sociedades de controle subjugam seus mil controlados são as informações produzidas, mais ainda, encarnadas, imanentemente, por esse mil controlados. Basta, portanto, atendendo ao conselho de La Boétie: não darmos ao tirano nossos braços e olhos, melhor dizendo, nossos nós na rede da internet, nossas imagens individuais, nossas informações. Em uma palavra, devemos cifrar-nos contra os sistemas que tentam nos controlar. Já entre os “anarquistas” beyanos libertos do controle externo no interior seguro de suas TAZes impertinentes, código aberto e infinito, pois assim deve ser a vida.

Consumir o consumismo que nos consome

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iPhones, férias no Caribe, internet de alta velocidade, dúzias de cervejas, é quase impossível não sermos consumidos por tais mercadorias, concupiscentemente tornadas ícones materiais da idealizada realização pessoal. Porém, como nos disse Érico Veríssimo, “o objetivo do consumidor não é possuir coisas, mas consumir cada vez mais e mais a fim de, com isso, compensar o seu vácuo interior, a sua passividade, a sua solidão, o seu tédio e a sua ansiedade”. O tempo e o vento do consumismo nos conclamam convincentemente a tapar o “intapável” buraco humano que somos, mesmo que nessa empresa impossível sejamos consumidos pelo consumismo que consumimos.

E consumindo concupiscentemente, nos alienamos tanto do nosso vazio intrínseco, quanto do fato de que somos consumidos pelo que consumimos.  Acreditamos cegamente que, aqui, uma ou duas mercadoriazinhas à mais darão cabo do nosso tédio, e, ali, que somos somente nós que as consumimos. Realmente, essas são mentiras muito bem contadas, e, ademais, muito bem acreditadas. O capitalismo e Noam Chomsky sabem muito bem que “não se pode controlar o povo pela força, mas se pode distraí-lo com consumismo”. Quem nos distrai: o capitalismo. Qual seu método: o consumismo. E os distraídos, quem são? Ah, estes dispensam apresentação.

Para entender melhor o teatro capitalista que nos distrai do fato de que o consumismo que consumimos nos consome, vale lembrar que “consumir”, derivado do Latim “consumere”, quer dizer destruir, desgastar, desaparecer, sumir. Aqui podemos ver que, consumindo, outra coisa não construímos que um mundo de destruição. Isso fica ainda mais claro quando compreendemos que o sufixo “ismo”, que, indica sistematização, aderido à palavra consumo com uma força histórica tremenda, faz do nosso modus vivendi um sistema de destruição, de desgaste, de desaparecimento. Escaparíamos nós, consumidores, desse aniquilamento consumista?

O consumo, obviamente, não foi inventado pelo capitalismo. Na verdade, é intrínseco à vida, que, de acordo com Nietzsche, é um processo contínuo de destruição (consumo) e criação. A sistematização do consumo, porém, não encontrou melhor expressão do que no universo do capital, a ponto de hoje ser um absurdo negar que capitalismo e consumismo sejam absolutamente consubstanciais. Millôr Fernandes fala bem mais poeticamente da relação desses dois monstros: “quando começou a comprar almas, o diabo inventou a sociedade de consumo”. Não é demais ressaltar que a gestalt poética dessa máxima está precisamente no apelido mui próprio dado ao capitalismo.

O objetivo do casal mais insaciável e prolífico da história econômica mundial não é que as suas muitas filhas-mercadorias desapareçam definitivamente. As mercadorias que consumimos constantemente, embora feitas para serem sistematicamente sumidas por nós, renascem sempiternamente das cinzas, feito Fênix mítica. A destruição envolvida no conceito de consumo, portanto, não as visa centralmente. Tampouco o fim do capitalismo está em foco no desaparecimento das mercadorias, muito pelo contrário aliás. Quem são, então, os sujeitos destruídos nessa conjuntura que, de um lado, conta com a nossa concupiscência, e, de outro, com a ganância capitalista? Há muito a Torá nos diz que “a ganância insaciável é um dos tristes fenômenos que apressam a autodestruição do homem”.

Sim, somos nós, consumidores, que somos consumidos, melhor dizendo, destruídos pelo que consumimos. Não exatamente como queria Leon Tolstoi, que dizia que “para se viver com honra, é preciso consumir-se, perturbar-se, lutar, errar, recomeçar do início, novamente recomeçar e lutar e perder e ganhar eternamente”. A frase do escritor russo é fraca, quiçá utópica, diante de um capitalismo que, sistematicamente, recomeça a sua luta desonrosa para ganhar e ganhar e ganhar, ad aeternum. Quantas gerações não foram consumidas do mapa desde o surgimento do capitalismo senão para que hoje ele estivesse mais vivo e mais  vivo que nunca? E quantas ainda não serão desgastadas em função do ganhar-ou-ganhar capitalista?

Como, entretanto, evitar sermos destruídos pelo capitalismo, ou o que é o mesmo, consumidos pelo consumismo que consumimos? A fórmula de Abraham Lincoln, qual seja, “a melhor forma de destruir seu inimigo é converter-lhe em seu amigo”, poderia ser de alguma ajuda aqui? Para tal, precisaríamos pressupor, como os liberais mais ingênuos, que capitalismo e consumismo podem de fato ser amigos nossos. Agora, isso não seria confiar demais em alguma mão invisível, mais ainda, mágica? Permaneçamos por enquanto com os pés no chão no qual está escrito com o nosso próprio sangue que aquele que nos destrói para construir-se não é nem tem como ser propriamente nosso amigo.

Para ser amigável conosco, o capitalismo precisaria consumir outra coisa que não a nós, seus consumidores. Para tanto, teria de consumir a si mesmo, uma vez que o consumo é a sua essência inalienável. Não obstante, há alguma indicação de que essa ficção possa ser realizável, e ainda assim ser chamada de capitalista? Ou o ato subsequente da longeva ópera humana, no qual o protagonista econômico será mais amigável, já não tem um nome próprio: socialismo? Portanto, desculpe-me Lincoln, essa balela de amizade com o capitalismo está fora de questão.

Desse modo, as opções que nos restam são: ou sermos indiferentes em relação ao capitalismo, e, como em um lugar queria Marx, deixá-lo sucumbir diante de suas próprias contradições; ou, em troca, inimizá-lo radicalmente, e, como em outro lugar também queria Marx, derrotá-lo rápida e violentamente. Agora, se o objetivo principal é findar com o consumo de vidas pelo consumismo capitalista, temos todavia de considerar que lutar contra esse monstro em ambos os casos consumirão milhares de vidas. No primeiro, ao longo do tempo em que o capitalismo se contradirá até sucumbir, e, no segundo, na própria revolução rápida e violenta, haja visto que a besta capitalista é tão ou mais rápida e violenta, sem dizer belicosa até os dentes.

Resta ainda uma terceira via, trilhada por aqueles que acreditam que deixarem-se ser consumidos pelo capitalismo, conforme o próprio capitalismo quer, é uma forma subversiva de fazer com que ele chegue mais rapidamente à sua contradição derradeira. Estes são chamados de aceleracionistas. No entanto, do ponto de vista do capital, no que diferem os consumidores concupiscentes e os aceleracionistas? A fera econômica há de preferir estes últimos inclusive. Para entender o desserviço do aceleracionismo, façamos uma analogia: se o inimigo fosse, digamos, a destruição da natureza pelo homem, o aceleracionista seria aquele que se juntaria aos destruidores dela para, não havendo mais natureza a ser destruída, a destruição enfim cessasse. De que adiantaria tal luta?

O aceleracionista responderia contrariado que a virtude de sua ideologia em relação ao vício concupiscente está em que ser consumido para mais rapidamente destruir daquilo que o destrói é muito mais produtivo e honroso do que ser sumido enquanto se está distraído pelos encantos mentirosos do inimigo. Realmente, há aí uma vantagem, que, no entanto, só não é absoluta porque mais virtuoso é aquele que, sem se permitir ser corrompido, mesmo que subversivamente, rápida e violentamente tenta dar cabo do algoz-mor, ainda que seja o primeiro a ser destruído por ele.

A solução para o problema de sermos consumidos pelo consumismo que consumimos certamente não virá do consumista concupiscente, pois seu consumo não só o aliena de sua própria destruição, como também da destrutividade própria do consumismo. Provavelmente o consumista aceleracionista também não dará conta da questão, pois, embora engajando a sua própria e inevitável destruição na destruição futura do inimigo, enquanto age só fortalece este último. Só o revolucionário ainda mantém alguma possibilidade de vitória em seu horizonte. Duas, aliás. A primeira, na sua morte rápida e violenta em resposta à sua outrossim rápida e violenta ofensiva contra o capital, uma vez que, morto, não mais será consumido pelo consumismo que tenta consumi-lo. Aqui, morrer, é como matar um soldado do inimigo. Já a segunda, mais desejada e substancial vitória está no êxito da revolução que dará cabo do capitalismo.

A conclusão não poderia nem deveria ser outra. Para quebrar o círculo, que para nós é vicioso, mas para o capitalismo é absolutamente virtuoso, que a frase outrossim circular ser consumido pelo consumismo que consumimos expressa, a concupiscência é incompetente. Tampouco o aceleracionista mais empenhado no extermínio do capitalismo demonstra bom rendimento, uma vez que sua estratégia só fortalece o inimigo naquilo que ele quer ser fortalecido. Só mesmo o revolucionário tem a vitória em sua ação, pois só ele sabe, assim como o kamikaze, que a sua eventual morte não significa derrota se algo do inimigo morrer com ele. E também que ser consumido, destruído, derrotado, é sê-lo pelo inimigo, não por sua própria e deliberada ação. Por isso, ‘consumir o consumismo que nos destrói’, para o revolucionário, de outra forma não é lido senão: “destruir a destruição que nos destrói’.

A burrice do luto

(à minha irmã, Graziela)
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Dizem que o homem é o único animal que sabe de sua mortalidade. Se é assim, sabemos da morte, em primeiro lugar, porque vemos outros morrerem, e, em segundo, por vermos tudo o que vive morrer. Tal é a vida da nossa perspectiva. Entretanto, quando é que temos certeza de que, um dia, nós mesmos morreremos? E quando sabemos disso, o que doravante sentimos? Quando alguém próximo a nós morre, e ficamos de luto, a nossa morte também nos toca. O que teria o luto, então, a dizer de nossa própria morte?
 
Quando somos bebês, a morte é só desaparecimento. Parentes, amigos ou animais de estimação, ao morrerem, apenas desparecem das nossas “vidinhas”. Quando crianças, e temos consciência de que a morte existe, ela é somente a morte dos outros. É somente mais tarde na vida, depois de sermos bastante golpeados por ela, que sabemos que também a morte nos golpeará; que é só uma questão de tempo.
 
Entretanto, ter certeza de que vamos morrer é diferente de saber o que é a morte. Para o filósofo grego Epicuro, não temos como saber o que ela é, pois, diz ele, “a morte, não é nada para nós, pois enquanto vivemos, ela não existe, e quando ela chega, não existimos mais”. Segundo o pensador, a morte sequer existe, seja para os vivos, seja para os mortos, pois, para os vivos, é a vida que existe, não a morte, e para os mortos, são eles que não existem mais, e a morte, por consequência, não pode existir para eles.
 
Porém, ainda que o filósofo nos convença graciosamente de que não temos como saber o que é a morte, e que ela sequer existe, temos uma certeza inalienável dela. Temos a ideia da morte. Essa ideia, aliás, como foi dito, é o que nos diferencia dos demais animais. Que ideia então temos da morte uma vez que nunca saberemos o que ela é na realidade?
 
Nosso mais íntimo envolvimento com a morte, em vida, é o luto. Portanto, nesse período/processo que se segue à morte de alguém, geralmente próximo e querido, está o nosso telescópio/microscópio para investigarmos a morte. O que o luto nos diz? Ora, primeiramente, que a morte de uns afeta, entristece a nossa vida. Porém, sob essa tristeza, diz também que, embora aqueles que morreram não mais existam, nós, a despeito da morte deles, seguimos existindo, plenamente vivos.
 
De modo que o luto, ao passo que reflete a morte, também afirma a vida: a vida de quem está de luto. No entanto, por que o luto parece querer dizer apenas de tristeza? Onde colocamos, durante o luto, a alegria por permanecermos vivos, por não termos sido nós as vítimas da morte? Seria impossível, ou ainda desumano assumirmos, de cara, que o fato de não termos sido ainda escolhidos pela “ceifadora” é a melhor coisa da vida? Desrespeitaríamos os nossos mortos com a felicidade de permanecermos vivos?
 
Se, conforme Epicuro, os mortos não podem saber nem o que é a morte, nem mais nada, tampouco do que se passa com os vivos eles podem saber. Entristecendo-nos ou não, nossos sentimentos em nada agradam ou desagradam aos idos. Então, a tristeza do luto é uma estranha homenagem apenas aos que vivem. De que forma? Ora, é porque sabemos que vamos morrer, e que, depois de estarmos mortos, os vivos seguirão vivendo, e, ademais, felizes por estarem vivos, que nos entristecemos.
 
Com o luto, portanto, sofremos a nossa própria morte, todavia por antecipação, através da morte dos outros, pois os que permanecem vivos, embora temporariamente chorosos e vestindo preto, são sempre mais felizes pelas suas próprias vidas do que tristes pela morte dos outros. Tanto que um dia o luto acaba, envolvemo-nos novamente com vida, como se a morte nunca tivesse se aproximado de nós. A tristeza insistente no luto, na verdade, é a consciência de que a nossa morte, quando chegar, será só nossa, de mais ninguém.
 
O que, então, em vida, devemos saber da morte para que não soframos dissimuladamente a nossa morte através da dos outros? Para Epicuro, sábio é aquele que não teme a morte porque crê que não é um mal não mais existir. É burrice, portanto, crer que morrer é ruim. Não existir não é nada! Saber-se mortal e seguir feliz mesmo diante da morte dos outros, é, nas sábias palavras de Epicuro, saber que “nada há de temível na vida, pois nada há de temível na morte”.

Balões cenográficos e a fragilidade humana.

“Conte-me sobre você”, pediu a bailarina ao seu público, em meio a 1500 balões coloridos que compunham o cenário do espetáculo de dança “Sei coisas lindas de ti”. A solicitação dela, obviamente, era retórica. No entanto, a impossibilidade de a plateia efetivamente contar a ela sobre si fez com que o seu pedido permanecesse provocativamente mais vivo e solicitante dentro de cada um dos que ocupavam as poltronas do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Ainda mais depois que a dança, essa poesia que dispensa palavras, como afirmou o poeta Mallarmé, começou a desenhar uma bela história diante de todos.

Como eu sou cenógrafo, desde o princípio fiquei intrigado em descobrir onde tantos balões se encaixariam na dramaturgia cênica que Flávia Tápias, Gaetan Jamard e Romual Kabore começavam a apresentar, pois, afinal, todo cenário deve ajudar senão a contar melhor as histórias que ambienta. Entretanto, a resposta não viria do próprio cenário, mas da vida da qual ele deve ser o meio-ambiente poético-ideal. E justamente por que a dança, felizmente, não segue as mesmas regras lógicas das nossas perguntas e respostas linguísticas, era na lógica da linguagem dos corpos e dos movimentos dos bailarinos que dançavam que eu deveria me ater para fazer deles e dos balões uma única e coesa obra.

“Conte-me sobre você” e “por que balões?” eram as duas ideias que me acompanhavam ao longo do espetáculo. Preciso dizer que a minha disposição para com o que eu via era das melhores, pois Tápias é uma bailarina que, a meu ver, transcende a mesmice entediante que não só a arte contemporânea em geral, mas principalmente a dança contemporânea miseravelmente oferecem às suas audiências. Ela é grande, contumaz, e não menos os seus movimentos e propostas cênicas. Impossível não sentir, diante dela, a multidimensionalidade esquecida dessa coisa chamada corpo que a babilônia informacional da contemporaneidade soterra sob o peso asfixiante da mente. Cada vez mais somos cartesianos. Que droga!

Então, diante de uma retórica coreográfica tão generosa, foi realmente um prazer permanecer com as minha dúvidas. Uma delas: o que eu contaria de mim mesmo a alguém que diz saber coisas lindas a meu respeito. A outra: se aquela infinidade de balões afirmava as coisas lindas que é sabido a meu respeito, ou, em troca, apenas solicitava, ainda mais retoricamente, a minha resposta. De vez em quando, um ou outro balão se desgarrava do cenário e pululava, frágil e suavemente, sobre o imenso palco. Era impossível, em certos momentos, não esquecer da coreografia humana diante das coreografias não coreografadas dos objetos. Mas tudo bem, os balões também eram o espetáculo, e, portanto, também guardavam alguma verdade espetacular.

Então, a certa altura, Tápias volta ao microfone e, ofegante, conta-nos algo lindo dela própria, assim como as tantas coisas lindas que cada um de nós tem para contar, mas que só não são contadas porque não são perguntadas: seu falecido avô, meio brasileiro meio francês, costumava cantar La Vie em Rose para ela. Acompanhando o sincero depoimento da bailarina confessa estava Louis Armstrong, “trompeteando” jazzisticamente a música de Edith Piaf.

Então, com imagem dessa singela memória de Tápias em mente, entristeci-me profundamente pelo fato de a morte do seu avó impedir tal memória de ser outra coisa além de uma memória. Como eu queria que o avô dela pudesse seguir eternamente cantando La Vie em Rose para ela! Mais um balão escapa do cenário e dança pelo palco. A minha imaginação, agora triste, imediatamente fez da frágil bolha a presença memorial do avô de que a bailarina, e doravante eu, jamais esqueceremos. Desejei que o balão não estourasse assim como eu estava desejando que a vida do avô dela não tivesse feito o mesmo.

Voilá! O “espetáculo” do espetáculo se descerrou diante de mim. Tápias, Gaetan, Romual, a dança e os balões estavam dizendo, “melhor dizendo”, dançando: “Conte-me sobre você”, pois “Sei coisas lindas de ti”, mas conte-me agora, aqui mesmo, rápido! A qualquer momento um de nós pode estourar, frágeis bolhas que somos, e então será tarde demais. Depois de estourarmos, infelizmente, será tão difícil recolher as nossas memórias quanto juntar o ar que estava dentro de um balão que estourou.

Flávia, no palco, era mais um balão, absolutamente “en rose”, inflada com suas memórias pessoais que, assim como o vento move um balão, moviam coreograficamente o seu corpo. Eu, na plateia do Municipal, era outro balão, inflado com as minhas próprias memórias, mas agora um pouco mais inflado pela memória de Flávia. Ainda bem que eu não estourei antes de vê-la dançar. Ainda bem que ela não estourou antes de dançar para mim. Entretanto, éramos balões resistentes flanando em torno de um balão há muito estourado, o seu avô cantante.

Então, não só inflada, mas também inflamada pelas belas memórias e arte de Flávia, Gaetan e Romual, a minha tristeza em relação à fragilidade da vida – aliás, muito bem cenografada pela fragilidade dos 1500 balões! – pôde ser poetizada, e portanto, suportada. A poesia que aquela dança “contemporaneizou” em mim foi a seguinte: Não só o avô de Flávia, mas todos nós, depois de “estourados”, não somos memórias perdidas, mas ar memorioso livre, liberto da contingência do corpo. O mesmo corpo que, enquanto dança as suas coreografias em torno e junto dos outros corpos, infla-os, compartilha com eles as suas memórias particulares, e, de certa forma, vive eternamente dentro deles, pelo menos até que estourem.

Por isso, “Conte-me sobre você”, pois afora o fato de que eu “Sei coisas lindas de ti”, você e a sua beleza sempre terão espaço dentro da frágil bolha que eu sou. Mas, por tantas razões, eu posso estourar a qualquer momento. Então, conta-me agora. E se não tiver palavras, dance – ou cante La Vie em Rose – mas faça isso antes do meu “boom” derradeiro. Como foi exatamente isso que os três bailarinos fizeram no palco, eles puderam terminar o espetáculo estourando todos os balões do cenário – espetacular apoteose dionisíaca! -, pois mesmo que as memórias simbolicamente guardadas dentro de cada um deles se desvanecessem no ar, um tanto delas permanecerão vivas dentro de cada balão da plateia que eles, belamente, inflaram.

Dialética do grevista e do kamikaze

Não pude deixar de fazer uma dialética grevista-kamikaze depois de ouvir, de um companheiro de luta, que “grevista tem de estar disposto a arriscar tudo”. Concordaria, entretanto, se ele tivesse dito que grevista tem de arriscar muito. Porém, “tudo”, penso eu, ultrapassa o limite do conceito de grevista. Se os proletários porventura arriscassem tudo, e, por algum revés, tudo perdessem, perderiam, por conseguinte, não só suas vidas, mas inclusive a sua classe. Sendo assim, posso concordar apenas que um grevista tem de estar disposto a arriscar seja lá o que for, porém, até o limite de não arriscar a sua vida, a sua capacidade de estratégia, a resistência que só existe dentro de si, o seu amanhã – revolucionado ou revolucionário.

Se tentássemos ser kamikazes verdadeiros, aqueles cujas vidas são destruídas para que as dos inimigos também o sejam, talvez esse “arriscar tudo” fizesse sentido e fosse eficiente. Vale notar que, na Segunda Grande Guerra, 2500 kamikazes mataram 5000 soldados aliados. O que podemos calcular disso? Que eles tiveram um rendimento de 200%? Entretanto, se ainda para os japoneses suicidas arriscar tudo não fez com que eles ganhassem a guerra, imagine para nós, que não participamos das profundidades aliciantes da cultura oriental, mas sim do individualismo demasiado hedonista da cultura burguesa ocidental?

O grevista, por sua vez, não arriscando tudo, tem a oportunidade de se valer, na hora de dificuldade, pelo menos daquilo que não colocou em risco, sejam forças e estratégias em potencial, seja a própria vida, sem a qual, aliás, nem a luta nem a vitória são possíveis, tampouco fazem sentido sem ela. Aceitar a derrota, e vivê-la, é a ocasião aprender com ela. Todavia, isso é uma coisa que só o grevista vivo tem oportunidade de fazer, mas não o kamikaze morto.

O kamikaze é uma espécie de fundamentalista radical. Aprende uma única lição, para, em seguida, morrer em função dela, mas, infelizmente, somente com ela. Um kamikaze, portanto, não evolui, mas apenas repete o ato radical de sua própria destruição na destruição do oponente – ou de dois deles. Já o grevista deve ter em seu devir o aprendizado de novas lições que só a permanência na vida e na luta pode oferecer. Tais novas lições, entretanto, não podem advir somente de suas vitórias, mas, como a vida em geral não cansa de ensinar, também das derrotas.

Sendo assim, não morrer, ou melhor, não arriscar tudo, é o primeiro passo, e talvez o mais inteligente, para se poder seguir arriscando algo mais. Ademais, a construção histórica de uma classe social, como por exemplo a dos trabalhadores – os grevistas mais legitimados da história -, não se daria caso os seus componentes não tivessem preservado, em primeiro lugar, a si mesmos e, em segundo, algo de suas forças, esperanças, estratégias e potencialidades. Os kamikazes, por suas vezes, nunca evoluíram desse modo porque as suas ações de risco total lhes impediram de aprender o que lhes faltava, qual seja, as fundamentais lições da derrota.

A cegueira fundamentalista de um kamikaze o impede de vislumbrar uma guerra enquanto uma composição de batalhas que, algumas pedidas, algumas ganhas, constroem o resultado final. Perder uma batalha e ainda assim não ter a guerra como perdida é uma ventura possível ao grevista, mas de modo algum ao kamikaze, para quem a guerra – na qual ele se suicida – é composta de uma única batalha, entretanto, e infelizmente, sempre derradeira. O kamikaze, seja ele o clássico japonês da segunda guerra, seja o islamita-bomba, arrisca realmente tudo pela sua causa, mas, com efeito, a deixa, irremediavelmente, na sua primeira e única ação.

Agora, numa guerra, ou numa greve, nas quais cada um precisa sobretudo dos outros, para todos, juntos, vencerem um inimigo em comum, perder companheiros outra coisa não é senão enfraquecer o fronte. Eu, de minha parte, prefiro os meus companheiros de luta vivos, e, ainda que derrotados, com alguma munição guardada, pois, só assim, poderemos, sempre juntos&vivos&parcialmente munidos, sermos capazes de novas batalhas. Se todos eles arriscarem tudo, e perderem a aposta, eu, por minha vez, estaria sozinho diante do inimigo, sem a maior munição da qual dispunha, isto é, dos meus companheiros de luta.

Por isso não posso concordar com a ideia de que que grevista tem de arriscar tudo. Ora, sequer lutamos, quando lutamos, por tudo, mas apenas por algumas coisas. Arriscar tudo, inclusive a própria vida, por algo que constitui somente parte dela, não me parece uma jogada muito inteligente. Porém, de tal inteligência o kamikaze da última grande guerra, que matava duas vidas com a sua, estava privado. Em primeiro lugar, porque esse fundamentalista radical é, juntamente com as suas duas outras vítimas, mais uma vítima fatal de sua única verdade. E, em segundo, porque a sua inteligência, na verdade, é a burrice de arriscar tudo por uma verdade que muito bem pode, logo ali, depois da curva da derrota, ou simplesmente depois da curva da história mesmo, revelar-se absolutamente mentirosa.

O que um soldado aliado faria numa batalha na qual estivesse perdendo? Mataria a si mesmo ou, ao contrário, assumindo o insucesso do embate, recuaria estrategicamente, buscaria reestruturar-se coletivamente, estudaria melhor e novamente o inimigo, descobrindo tanto as fraquezas dele quanto forças suas para embatê-lo mais eficientemente das próximas vezes? Bem, os aliados – vivos – da Segunda Guerra – que não se suicidaram em batalhas – venceram a guerra. Em contrapartida, o que pode um kamikaze morto? Como podem, por conseguinte, os seus companheiros vivos serem reforçados por alguém que arriscou tudo e nem pode mais lutar com eles?

Por isso um grevista deve estabelecer limites diversos, e bem aquém, dos de um kamikaze, ou, do contrário, será um grevista de uma única batalha, sempre desertando, todavia de forma espetacularmente heroica, a luta a qual pertence. Se o kamikaze tem uma inteligência, ela é uma só, e, ademais, finda no seu primeiro ato. Já a inteligência de um grevista pode, e inclusive deve, ser muitas outras, contrárias entre si até, pois, ao permanecer vivo, o indivíduo que eventualmente encarna um grevista pode, atravessando historicamente todas essas inteligências acumuladas, evoluir, e quem sabe, vencer.

Do ápeiron ao não-lugar

Na década de 1990, Marc Augé cunhou o conceito de “não-lugar” para tratar de lugares feitos pelo homem, porém, nos quais não há interação humana, onde ninguém desenvolve atividade alguma. Para entender o objeto do antropólogo francês, basta pensar, por exemplo, num trecho de uma autoestrada, ou no corredor do edifício em que moramos: nós os utilizamos por pouquíssimos segundos, somente o tempo de os cruzarmos, mas nunca fazendo deles cenários autênticos das nossas vidas. Também de não-lugares Augé chamou os saguões dos aeroportos, os corredores dos shopping centers, os estacionamentos, os elevadores, isto é, ambientes pelos quais passamos ou permanecemos efemeramente, porém, quanto mais rápido forem deixados, tanto melhor.

Em defesa dos não-lugares, entretanto, pode ser dito que são espaços de circulação, fundamentais à movimentação contemporânea, sem os quais a vida não teria como acontecer adequadamente. O problema é que os não-lugares estão em toda parte, da porta de nossas casas a praticamente todos os nossos destinos, roubando, por conseguinte, uma considerável parcela do espaço total. O que Augé pretendeu mostrar é que os não-lugares são locais construídos e mantidos pelos homens, todavia destinados à não-vida, ou seja, ao não-desenvolvimento de atividades que tenham significância na vida das pessoas que por eles circulam.

Porém, 25 anos depois de Augé ter conceituado os não-lugares, eles já passaram a ser palco de uma série de atividades novas: os “rolezinhos” fazem dos shopping centers a berlinda da vida de milhares de jovens; o lugar onde se estaciona o automóvel já é tão ou mais importante do que o lugar para onde se vai; e o Facebook faz dos elevadores e das salas de embarque lugares perfeitos para se estar em todos os demais lugares. Talvez Augé tivesse, hoje, de chamar os seus não-lugares de semi-lugares. E, quiçá futuramente, devido ao dinamismo da realidade, de lugares propriamente ditos.

O preço disso, contudo, é a transformação dos lugares onde exercemos nossas atividades genuínas, tais como as nossas casas, as nossas salas-de-estar, os nossos escritórios, etc., em lugares de passagem, em instâncias transitórias entre o shopping e o aeroporto – estes sim, os novos lugares-templos da vida pós-moderna. Ao passo que os não-lugares augéanos ganham estatuto, os lugares propriamente ditos perdem o seu, e todos eles são paulatinamente convertidos em semi-lugares. O tédio sentido por se permanecer muitas horas em casa ou no trabalho prova a crescente insuficiência destes lugares. Somente em trânsito, e em meio ao trânsito constante de muitas outras pessoas, sentimos autenticamente estarmos em atividade.

Há 2.500 anos, o filósofo grego Anaximandro já falava de não-lugar, entretanto, chamando-o de ápeiron, isto é, a indeterminação a partir da qual a realidade era criada, mas também destruída sistematicamente. De acordo com o filósofo, uma determinação qualquer surge e retorna à sua indeterminação inicial. Um lugar determinado, portanto, é o que existe a partir da determinação da necessidade humana por ambiência e que dura até o fim dessa necessidade. Em outras palavras, é como se, dando-se as costas para o lugar onde se está, ele desaparecesse e se reintegrasse imediatamente à indeterminação absoluta do ápeiron, que de modo algum pode ser determinada por lugares. Já os não-lugares são compatíveis com a indeterminação proposta por Anaximandro, existindo enquanto lugares apenas efemeramente, mas condenados a desaparecerem com a mesma efemeridade.

25 séculos depois de Anaximandro dizer que no ápeiron lugar algum tem lugar cativo, Marc Augé, 25 anos depois de edificar o seu não-lugar, deve chegar à mesma conclusão: que lugar algum resiste ao dinamismo da realidade, aos movimentos da existência, à fluidez da vida. Só há, portanto, não-lugares, e qualquer determinação espaço-temporal humana que os converta em, por exemplo, autoestradas, shopping centers ou saguões de aeroportos, está fadada à mudança, à indeterminação. Porém, mesmo na efeméride que são, os nossos lugares conseguem ser os palcos de tudo aquilo que determinamos por vida, muito embora todos eles em outro lugar não estão senão na indeterminação absoluta, no ápeiron, no não-lugar supremo.

Suicídio interditado 

A Cultura, a Lei, e Deus proíbem o suicídio. Mesmo vivendo em um mundo superpopulado, cujos sete bilhões de pessoas exaurem a Natureza a ponto ameaçarmos mortalmente uns aos outros, ainda assim tirar a própria vida é um tabu. David Hume, entretanto, afirmava que “o suicídio é um poder do homem, não mais ímpio que o de construir casas, e que deve ser utilizado em circunstâncias excepcionais”. Da colocação do empirista escocês decorrem duas questões: quais são essas “circunstâncias excepcionais”, e por que é imoral e ilegal elas serem decretadas particularmente pelo indivíduo.

O carma propriamente humano é saber da própria morte, porém, não quando ela acontecerá. Os demais animais, inversamente, vivem sem saber que vão morrer, no entanto, eles têm conhecimento de “quando” isso está para acontecer, visto que abandonam seus grupos, ou mesmo as suas jornadas solitárias, para esperarem, passiva e naturalmente, a morte. Diferente deles, nós, cativos da cultura, perdemos o direito de não cultuarmos a nós mesmos. O tabu do suicídio, portanto, interdita que saibamos ao mesmo tempo “que” e “quando” vamos morrer. A subversiva consciência dos dois, entretanto, ainda é o suicídio.

Deleuze colocou que “a sociedade não pode garantir direitos preexistentes: se o homem entra em sociedade, é justamente porque ele não tem mais direitos preexistentes”. Dentre eles, portanto, o direito de decidir quando morrerá. Seria então o suicídio um comunicado anárquico à sociedade? Como disse Hume, “Todo homem particular tem uma posição particular a respeito dos outros”. Todavia, caso essa posição particular seja de oposição absoluta (circunstâncias excepcionais), só o suicídio para dizer tudo o que em uma vida inteira seria impossível. O silêncio irremediável fala eternamente.

A vontade de morte não é extrínseca às nossas muitas paixões. Segundo Hume, as paixões são existências primitivas, modos primitivos de existência. Seria, então, a paixão pela inexistência, vitoriosa no suicídio, sobrenatural? De acordo com o empirista, obviamente não. Portanto, as paixões naturais não deveriam, logicamente, ser interditadas pela sociedade que lhes sucede cronologicamente. Caso sejam, a alternativa em que se encontram as paixões é satisfazerem-se obliquamente, aponta Deleuze. E qual a mais oblíqua das paixões senão a vontade de não ter mais paixões?

Para Deleuze, o problema do eu sem solução deve solucionar-se unicamente na cultura, e não fora dela. Ou seja, o suicida deve, antes, consumir a própria cultura, até a sua morte, cuja data, entretanto, ele não tem o direito de precisar. Para tanto, psicanálise, medicamentos, eletrodomésticos, turismo, e toda a sorte de recursos artificiais. Por isso deve ser vedado ao indivíduo, mesmo em circunstâncias excepcionais, suicidar-se, pois assim ele deixa de se alimentar do $i$tema, e, consequentemente, de retroalimentá-lo.  E o suicídio é o fim dessa cadeia.

Entrementes, uma vez sistematizados, socializados, “não somos apenas sujeito, somos outra coisa ainda, somos um Eu, sempre escravo de sua origem”, coloca Deleuze. Tornamo-nos escravos da nossa origem cultural assim que abandonamos a nossa origem primeira, natural, animal. Doravante, devemos suprir e cultuar a senhora cultura de acordo com suas regras e necessidades. E ela precisa de escravos vivos, não mortos.

Ter consciência da morte nos alienou, sintomaticamente, da ingerência sobre ela, pois sabê-la passou a significar evitá-la, e, colateralmente, idolatrar a vida, inclusive para além dela mesma. Crer na vida eterna é o que senão a maior e mais artificial idolatria? Contudo, provoca Hume, “o idólatra é o homem das “vidas artificiais”. E uma vida artificial vale a pena ser mantida? Ora, se a vida é a ordem da natureza à qual ninguém que vive teve a oportunidade de descumprir, o suicídio deveria ser uma opção; uma saída de emergência não estigmatizada para escaparmos tanto da naturalidade da vida quanto da artificialidade da cultura.

Laboratorium mortis

Vasculhando pelas causas de uma angustiante apatia profissional que me usucapia há um ano e meio, e que coloca sob suspeita a o artesão que até então eu fui, aproximei-me da ideia do falecimento da minha irmã, também há um ano e meio. Embora eu já tivesse perdido outros familiares, e, racionalmente, muita coisa soubesse sobre a morte, foi no velório da Graziela, contudo, que eu percebi que os meus sentimentos e a morte não estabeleciam diálogo. Desde lá, essa questão-ferida permaneceu aberta. Então, vi-me cativo dessa ideia que atrelava a descoberta da minha ignorância em relação à morte, revelada, infelizmente, pela perda da minha irmã, ao cinismo em respeito ao meu próprio trabalho.

Como nem sempre acreditamos ser verdadeiro tudo que pensamos, visto que nossas ideias podem ser adequadas ou inadequadas, questionei a pertinência da relação entre os dois males estares que há mais e um ano conviviam em mim. Entretanto, uma vez feita tal relação, eu não conseguia mais tirá-la da cabeça: seria a morte da minha irmã a causa do efeito apático que atravessa a minha vida profissional? Mesmo sem essa resposta, mas instigado pela sua necessidade, fui levado a pensar no direito à existência que as ideias, uma vez ideadas, angariam para si.

Depois de anos de psicanálise, aprendi que tudo o que é dito por nós conquista entidade e, a partir de então, passa a existir entre as demais coisas. Inclusive um inocente ato falho, isto é, um equívoco na fala ou na memória, é considerado uma ação precisa do inconsciente no sentido de expressar sentimentos que, sem a inicial aparência de erro, não teriam lugar na realidade. Portanto, tudo o que é falado ou pensado, ou melhor, tudo o que se se estrutura e se expressa através da linguagem, mesmo que, a princípio, pareça uma besteira, põe-se irremediavelmente no mundo, e, doravante, com essa existência temos de lidar.

Entretanto, as ideias ou discursos que pomos no mundo, embora sejam produções nossas, não podem ser tirados com a mesma facilidade com que são colocados. Uma vez pensado que, por exemplo, invejamos ou desejamos determinada pessoa ou coisa, esse ser, de alma sentimental e corpo linguístico, resiste às nossas investidas para “desaparecê-lo”, como se fosse um império autônomo. Sendo assim, de onde tais seres sentimentais-linguísticos angariam independência, a ponto de não poderem mais ser retirados por aqueles que os colocam?

O esquecimento, com efeito, é uma estratégia para lidar, contudo covardemente, com ideias cujos conteúdos são indesejados ou insuportáveis. Esquecer não é padecer passivamente de um logro à memória, mas uma atividade deliberada do inconsciente no sentido de ofuscar uma existência mental determinada. Ora, não é por não mais lembrarmos de alguma coisa que ela não existe! Aliás, o esquecimento depõe conta si mesmo: por um lado, apontando para o vazio deixado por aquilo que foi olvidado, e, por outro, colocando sob terminante suspeita o conteúdo fujão.

Entretanto, se a existência de algum pensamento não pode mais ser tirada por aquele que a pensou – pelo menos sem a covardia engendrada pelo esquecimento -, essa criatura mental ou já é um ser independente do seu criador, ou, ao contrário, é o novo modo de ser desse que a pensa. Na primeira hipótese, a autonomia do ideado nos deixa de mãos atadas. Na segunda, entretanto, o pensado continua sob a jurisdição do pensante, ainda que este não perceba essa intrínseca relação.

Então, não é pela independência, em relação a nós, de um pensamento que queremos ver desaparecido, que ele desaparecerá. Antes, esse é o seu mais subversivo modo de sobrevivência. Inversamente, é concebendo todos os nossos pensados enquanto o rol de argumentos de um único diálogo, íntimo, do pensamento consigo mesmo, que podemos contra argumentar uma ideia ruim, inadequada, e quiçá vencê-la através de ideias melhores, mais adequadas.

Em respeito à morte da minha irmã ser causa do efeito apático na minha vida profissional – ideia que eu não consigo mais fazer inexistir -, decorre uma outra, que tampouco pode ser excluída, e que por isso mesmo deve ser integrada ao diálogo aberto há um ano e meio pela a morte da Graziela, e que permanece inconcluso até aqui, na aparente morte do artesão que eu sou. Essa nova ideia é a seguinte: para entender a morte em si, e assim entender a morte da minha irmã, eu precisava experimentar a morte em mim – porém, obviamente, em vida. Só desse modo eu poderia dar a essa abstração que é a morte uma concretude que lhe fizesse jus.

Logo, para sentir verdadeiramente a morte da minha irmã, foi preciso sentir a morte de algo extremamente vivo e necessário em mim: a minha vida profissional. De fato, apenas a angústia proveniente dessa última morte se aproximou da angústia da primeira, sem, no entanto, abarcá-la totalmente. O falecimento da Graziela tornou tácito que eu nada sabia da morte, mas que precisava saber, pois, apesar da ausência da ideia da morte em si, com a qual eu convivera despreocupadamente por tanto tempo, a presença da ideia da morte da minha irmã não tinha mais como ser tirada, e em relação a esta eu era todo preocupação. Portanto, foi preciso ensaiar uma espécie de morte, em mim mesmo, entretanto, até onde a vida permitiu.

Todavia, a minha conclusão, a partir do laboratório mortífero que durou mais de um ano, é que a morte em vida é muito pior do que a morte em morte. Experimentar a morte em vida só é possível às custas do que vive. Já a morte, na morte, nada mais tem a ver com a vida. Epicuro tinha razão: a morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais. Laboratoriando a morte, eu fui apenas um canastrão, encenando um pós-vida que, no entanto, de forma alguma poderia ser tão sofrível, pois o sofrimento, bem como todos os outros sentimentos, só são na vida, e não na morte.

A matemática dos anos

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É culpa da matemática que se possa fazer da vida um somatório de anos. Alienados do comprometedor sinal de “+”, os anos vividos seriam nada além da vida ela mesma, una, indivisa, indizível e impossível de ser contada numericamente. Entretanto, uma vez no tempo calendário uma vida é partida em anos. Doravante, só colocada nos escaninhos dos anos aniversariados é que ela parece poder ser parabenizada.

Porém, o que trazemos na memória a título de passado, que aniversaria anualmente, é algo sempre vivo e presente: a totalidade dos acontecimentos de uma vida que nunca deixam de ser. Do contrário, o presente não seria. Embora anacronizado, o passado só é porque insistentemente contemporâneo, porque permanece e ignora o passar do tempo, porque se recusa a ficar para trás.

O passado só é um corpo presente porque nunca sabemos muito bem o que fazer com o presente até que ele seja minimamente passado, porém, no presente. O que nos acontece só consegue nos pertencer na medida em que perde o verniz do agora. Para tal, desatualizamos o atual para que ele possa se acomodar ordenadamente em uma sequência causal que chamamos de as nossas vidas. E a cada ano as nossas vidas comemoram um passado um tanto mais gordo.

Os anos aniversariados são nada mais que a organização temporal daquilo que se amontoa no sempiterno presente, mas que tomado sob uma unidade indivisa é incompreensível, principalmente para o aniversariando. Diante da miríade de fatos que constituem uma vida, muitos deles paradoxais, somente distribuindo-os em muitos e afastados anos é que alguém pode ser parabenizado por ser o que é, uma vez ao ano.

Lugar, um ponto arquimediano.

O espaço é o meio físico universal de cujas três dimensões a vida se apropria para devir em experiências, bem como para gerar sentidos e valores inexistentes no universo. Pois bem, a vida, conquistando o espaço, compartimenta-o em lugares. Entretanto, que vandalismo é esse cometido contra a integralidade espacial, cujas ruínas são os lugares a partir dos quais existir passa a significar viver?

Da lei newtoniana, “dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço”, fica claro que lugar não é espaço, mas o que surge da ocupação deste por um corpo. Precisamos, todavia, transcender a ideia primeira de corpo material para comprometer definitivamente a vida com o lugar – no espaço – que ela inaugura, pressupondo também corpos de sentido, de experiência, de valor, etc. Afinal, concordando com Zygmunt Bauman, “é nos lugares que se forma a experiência … , que ela se acumula, e que seu sentido é elaborado, assimilado e negociado”.

Deve ser dito que um ser inanimado, por exemplo, uma pedra, não cria um lugar pelo fato de existir no espaço; simplesmente o ocupa. Somente matéria não é suficiente para gerar um lugar. É preciso corpos com vida, com desejos, com objetivos. Antes, “o lugar das coisas” já é uma invenção da vida: a cartografia do espaço de acordo com as necessidades dela.

Entretanto, a vida está subjugada a outra dimensão universal, qual seja: o tempo. Apesar de tudo o que vive compartimentar o espaço universal a seu bel-prazer – em lugares onde se dorme, bebe, nasce, etc. -, o tempo também é comprometido nesse processo. De modo que o lugar é não é apenas uma impertinência em respeito ao espaço, mas também uma aventura contra o tempo. Isso porque a vida já é uma irreverência em relação à existência.

Para entender a relação que se desenrola entre o espaço e o tempo infinitos e os nossos pontuais e efêmeros lugares, uma afirmação de Bauman: “é nos lugares, e graças aos lugares, que os desejos se desenvolvem, ganham forma, alimentados pela esperança de realizar-se”. Ora, se o desejo compartimenta o espaço em lugares em função de se satisfazer, e se, sobretudo, o desejo é feito para ser satisfeito – portanto suprimido -, então, é no tempo da satisfação do desejo que o lugar solapa e é reintegrado ao espaço indeterminado.

No entanto, porque a vida é uma sucessão ininterrupta de necessidades e desejos, nunca se permanece na abstração espacial. Novos lugares são abertos no espaço no toque de novos desejos. Afinal, somente na ausência de propósito vital há o espaço indiviso. Porém, não a vida. Ela, pois, é a conversão temporânea do espaço integral do universo em pontuais moedas-lugares com as quais negocia, através de suas experiências, sentidos e valores com a existência.

Há, porventura, algo mais concreto do que os lugares onde a vida acontece? Todo resto, com exceção dos desejos, não se colore de contingência diante da determinação espacial? Inclusive o tempo parece escoar em intensidades diferentes de acordo com a dinâmica de cada experiência vivida. Já o lugar, não. Vida, desejo e lugar, contrariando Newton, ocupam sim o mesmo lugar no espaço. Geralmente os homens chamam essa mistura de “Eu”.

Arquimedes, 250 anos antes de Cristo, disse: “Deem-me um ponto de apoio e moverei a Terra.” Pois bem, esse ponto arquimediano não só carece de um lugar, como também representa muito bem a função dos lugares à vida. Basta, portanto, um ponto de apoio, isto é, um lugar apontado, para que a existência possa ser movida de sua indeterminação até uma terra inteira de sentidos, de valores e de experiências determinadas.

Restrição material: fábrica de ideologia

Marx e Engels afirmam que o homem individual para-si não tem em si a essência do homem, mas que esta essência, antes, subsiste apenas na comunidade; o que pressupõe necessariamente o intercâmbio entre os homens para que o próprio homem exista. Os filósofos salientam que, de acordo com Feuerbach, são necessários dois homens para representar “o homem”. Ora, isso diz respeito à transformação da teologia em antropologia, promovida pela modernidade, que deslocou a essência da existência – propriedade medieval de Deus – para o próprio homem; e a essência da existência do homem na relação deste com os seus iguais. Doravante, o Ser não estaria alhures, mas sim onde estivesse o “estômago”. Por conseguinte, a ancestral contradição Deus- homem passou a ser substancial apenas entre os próprios homens, dado que cada um possui o seu próprio “estômago”; e a partir deles, os seus interesses conflitantes.

Antes disso, todavia, a crítica filosófica alemã, de acordo com Marx e Engels, limitava-se à crítica das representações religiosas, isso porque ela não investigava seus pressupostos filosóficos, mas dava continuidade ao idealismo hegeliano que mantinha o paradigma filosófico em terreno místico-religioso. Todas as esferas de interação humana, quais sejam, as jurídicas, morais, políticas, etc., eram subsumidas à esfera da representação teológica, o que, sobremaneira, fazia do homem um ser religioso. Se o domínio da religião era pressuposto, também de forma religiosa eram pressupostas as relações de dominação que, cultuadas ideologicamente, culminaram no culto ao Estado. O idealismo hegeliano clássico sustentava tal estrutura mística-ideológica na medida em que, mantendo teologizadas as representações, os pensamentos e os conceitos, fazia deles, dessa forma, os laços da sociedade humana. Em contraposição, os jovens hegelianos passaram a ver tais laços como grilhões inconvenientes, o que os levou à empresa de romperem tais grilhões, para assim reinterpretarem o existente, ou seja, reconhecer o real através de outras representações.

Porém, ao lutarem contra as representações, estes pretensos revolucionários esqueceram-se do mundo real, permanecendo, como os seus antecessores de escola, atrelados a escopos histórico-religiosos. Nesse sentido, Mark e Engels disseram que faltou aos neo-hegelianos encontrarem uma conexão efetiva entre a filosofia alemã e a realidade alemã, isto é, entre a crítica e a realidade material. Essa realidade de que falam os dois filósofos é a de desenvolvimento sem precedente presenciada pela Alemanha do século XVII, mas que, entrementes, ocorria majoritariamente no terreno do pensamento puro, o que, para Marx e Engels, significava o aprodrecimento em ato do ideal espírito absoluto de Hegel. No entanto, felizmente, tal decadência conduzia a filosofia a experimentar novas combinações de pensados. Já o desenvolvimento material alemão acirrou a concorrência entre os indivíduos e valorizou as conquistas materiais, levando a Alemanha a uma mesquinharia material que, no entanto, era dissimulada pelo falatório idealista vigente. Disseram os filósofos que o hegelianismo não enfrentava o contraste entre realidade material e realidade filosófica, tampouco assumia um ponto de vista intrínseco ao problema.

Entretanto, que problema era esse? Ora, para os materialistas Marx e Engels, o problema resumia-se na sua solução mesma, ou seja, na produção dos meios materiais necessários à sobrevivência do homem; na produção dos meios de vida; na produção da vida material. De modo que a produção material do homem não evidencia outra coisa que o próprio Ser do homem no mundo, pois este depende das condições materiais de sua própria produção para ser. Decorrente dessa produção é a troca, o intercâmbio material entre os homens – aquilo que, segundo Feuerbach, legitima a humanidade. Porém, esse intercâmbio é atrelado à produção, e esta à sobrevivência material do homem. Da mesma forma subsiste o Estado, que tem na sua produção, e no intercâmbio dessa produção com os demais Estados, a condição de sua existência real. Portanto, a força produtiva de um Estado depende do desenvolvimento da sua divisão do trabalho, pois é esse o quesito que o capacita tanto produzir como também intercambiar essa produção em benefício próprio. A divisão do trabalho, no sustento do Estado, separa o produzir industrial do agrícola; estes dois do intercambiar comercial, que, entretanto, articula aqueles outros dois. Por um lado há a cisão cidade-campo; por outro, a cidade em duas – esta última em respeito à propriedade –; e, sobretudo, o comércio interligando todas as esferas produtivas doravante cindidas.

Para entender a existência e a especificidade da propriedade, ou seja, as relações materiais entre os homens em uma sociedade basta contemplar a organização da divisão do trabalho desta sociedade. Onde essa divisão não é desenvolvida, isto é, onde a produção se dá por conta da família ou da mão-de-obra escrava, a propriedade é tribal, não particular. No momento em que, na antiguidade, muitas tribos se organizaram em cidades – por meio de contrato social – a propriedade passou a ser Estatal-comunal, a partir da qual surgem a divisão do trabalho, o intercâmbio e a cisão definitiva entre campo e cidade. Entretanto, desenvolveu-se paralelamente a este tipo de propriedade a privada-individual, cujo crescimento acabou por solapar aquela. Já aí vem ao mundo a cisão de classes, representada, por um lado, pela luta entre cidadãos e escravos; e por outro, entre cidadãos com diferentes propriedades individuais, isto é, cidadãos ricos e cidadãos pobres. Na Idade Média surge outro tipo de propriedade, a feudal, instituída pela decadência das cidades, decorrente das invasões bárbaras que sobremaneira destruíram as forças produtivas urbanas, porém, deixando intacta a estrutura de produção agrícola, locada no campo – estável e desenvolvida por conta das necessidades das urbes que lhe faziam frente. Desse modo, estando a propriedade urbana solapada, a agrícola, intacta, tornou-se a atividade principal deste período.

Portanto, o feudalismo opõe-se à cidade ao mesmo tempo em que dispensa a escravidão, valorizando, doravante, o campo e as relações de servidão. Todavia, a estrutura feudal, a exemplo da comunal, era uma associação oposta á classe produtora dominada; apenas as condições dessa produção foram modificadas. Diferente dos escravos que nada podiam possuir ou acumular, os servos, ligados às corporações urbanas, através do trabalho podiam rascunhar um acúmulo de capital – portanto de propriedade -; o que, de certo modo, ofereceu-os uma espécie de liberdade em respeito à vertical relação que a servidão tinha com os proprietários de terra – o valor real da época. Embora o capital individual tivesse uma inicial presença no feudalismo, a propriedade estruturante dessa sociedade era baseada na extensão territorial, cuja subsistência, por conseguinte, solicitava a existência e a intervenção do governo de um monarca. Na Alemanha, por exemplo, a propriedade feudal, bem como o desenvolvimento material que faria a riqueza da época de Hegel, deu-se por conta de influência ação militar.

Se um modelo de produção e de distribuição determinados gera indivíduos determinados, as relações políticas entre eles seguem esta mesma determinação. Sendo assim, para Marx e Engels, a filosofia, em vez de ficar atrelada ao idealismo hegeliano ou à teologia, deveria explicar, sem mistificação, a conexão real e material entre as determinações sociais, políticas e as produtivas. Os filósofos assim afirmam pois os indivíduos do Estado não podem e não devem ser tomados de acordo como são representados pelos filósofos idealistas, mas como realmente são, ou seja, do modo como produzem materialmente suas condições de sobrevivência, independente do arbítrio de quem quer que seja. Os dois filósofos disseram que se a filosofia basear-se nas representações através das quais toma os homens, ela corre o risco de ter como objeto algo ilusório. E mais, Marx e Engels colocam que tal ilusão, cuja medida única é a distância da consciência humana em relação à realidade também humana, reflete diretamente as restrições materiais e as limitações sociais entre os homens. Aqui sobrevém uma questão: uma representação fiel da realidade requeria, portanto, a condições materiais irrestritas e relações sociais ilimitadas?

Ora, se Marx e Engels colocam que a produção de representações está entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material entre os homens, a ausência de representações, isto é, o real em si, pressuporia a inexistência tanto da produção como do intercâmbio material. Todavia, como foi dito anteriormente, o homem só é através do que produz e do que troca. Logo, a existência humana, por estar atrelada à produção, não tem como existir sem representações. Retomando a crítica de Marx e Engels às representações da crítica filosófica idealista alemã que explicam o homem verticalmente, isto é, do céu para a terra – do mundo das ideias ao mundo real -, os dois filósofos combatem-na veementemente dizendo que a filosofia dever partir do chão mundano real a partir do qual o homem produz materialmente a sua sobrevivência. Só então o filósofo estaria livre, munido e seguro para ascender aos reflexos ideológicos e aos ecos desse processo de vida, sem, contudo, tomá-los pela realidade primeira. Marx e Engels reconhecem que os idealismos cumprem uma função sublimatória, demasiado sintomática, todavia necessária na produção material da sobrevivência humana; empiricamente constatável; ligada, sobretudo, a pressupostos materiais.

De modo que é a vida material que deve determinar a consciência, e não o contrário, como queriam os idealistas hegelianos. Outrossim, não é o Ser que deve determinar o indivíduo, mas o indivíduo o Ser. O pressuposto essencial é e deve ser o homem real, e não as representações a seu respeito; apesar de, segundo os materialistas, as representações, enquanto sintoma do real, devirem a posteriori; para não obstante separarem o homem de sua realidade material – aquela que lhe confere Ser – sempre que esta realidade estiver materialmente restrita ou socialmente limitada. Aliás, o tamanho e a força das representações através das quais o homem é tomado – ao modo de tomar-se a si próprio – é o mesmo das restrições e das limitações a que ele está historicamente acometido. Para Marx e Engels, portanto, a ideologia deve ser condenada porquanto é o que o homem produz a partir do momento em que a produção material humana deixa de refletir e contemplar o genuíno Ser do homem.

Macacos confusos

No Sci-fi “Autómata”, dirigido por Gabe Ibáñes e estrelado por Antonio Banderas, os robôs são a base produtiva de uma nada surpreendente insustentável sociedade humana devassada pela poluição e pelas adversidades da Natureza. Alguns desses autômatos misteriosamente passam a não mais atender às ordens humanas e, doravante, migram para um oásis às avessas nos confins de um deserto criticamente radioativo à biologia.

A princípio, a ideia do filme remete à comumente chamada “inteligência artificial”, porém, ao longo do mesmo, as máquinas deixam claro que esse “algo” específico delas é outra coisa que não inteligência, pois, segundo elas, inteligência é animal, biológica, em cuja contingência se coloca maximamente o homem. Quando Banderas pergunta o motivo da fuga autômata do mundo humanos, um deles responde: “Você não compreenderia”. Banderas não entende o que para a máquina é claro, ou seja, que não havia linguagem compatível entre eles que desse conta do que se passava no além-humano.

A relação entre homem e máquina, no filme, se dá em duplo sentido: o humano sendo interpretado crua e eticamente pelos robôs, e estes interpretados simbólica e esteticamente pelos humanos. Quando perguntado por Banderas sobre o que havia acontecido para que ignorassem os comandos humanos, o autômato sucintamente responde que “isso simplesmente aconteceu”, da mesma forma como outrora ocorreu ao macaco deixar de ser ele mesmo e passar a autodenominar-se homem.

Uma passagem memorável do filme é quando um miliciano pós-apocalíptico, ameaçando um robô com a sua espingarda, solicita-lhe obediência. O autômato retruca dizendo que, segundo essa lógica, o homem deveria subjugar-se ao macaco que lhe deu origem. A perplexidade humana puxou o gatilho contra o “mainframe” rebelde, ouvindo dele, em meio aos tiros: “Você é apenas um macaco” – Bang! – “Um macaco agressivo” – Bang! – “Um macaco violento” – Bang! “Um macaco confuso” – Bang! Bang! Bang! Bang! A confusão humana calou definitivamente a clareza autômata.

Entretanto, o clímax existencial do filme é quando Banderas, ciente de que não sobreviverá à radioatividade assassina daquele confim desértico, ouve do seu interlocutor quântico: “você, humano, foi feito para morrer, é a lógica de vossa existência; por que não aceita o seu próprio ciclo?” Banderas emudece; o autômato prossegue: “importante é existir, não sobreviver; nós existimos, é tudo”. A máquina era mais grata e fascinada pela existência que experimentava que o homem em relação à sua.

A imperiosa necessidade da personagem humana em sobreviver a alienava sobremaneira da graça e da qualidade excepcional do simples fato de existir e do inacreditável universo subsistente entre os palpáveis “ter sido” e “ainda ser”. Ironicamente, foi o robô o herdeiro dessa satisfação descompromissada em relação à existência há muito corrompida pelo modo humano de existir. O problema do homem – não compartilhado pela máquina nem pelo animal – é que apenas ele sabe, sempre, que morrerá. Disso decorre uma angústia em torno de um “quando” que, não obstante, nunca deve ter seu lugar no agora.

A morte animal e a passagem à inexistência autômata são nada mais que possibilidades constituintes do agora vividas não enquanto a negação da vida, mas como sua gratuita mola propulsora. Deixar de ser, para eles, não é o erro da existência, mas o seu acerto maior, ainda que inconsciente, e isso fica claro na não deliberação animal-autômata acerca da morte. Diferente deles, o homem, histórica e impertinentemente, delibera sobre o seu derradeiro de maneira antinatural – comparado aos animais – e ilógica – em relação à superior lógica autômata -, como se a morte invalidasse a vida em vez de chancelá-la categoricamente.

Estamos entre a natureza do macaco que nos criou e a da máquina que criamos, e disso “Autómata” relembra-nos provocativamente a ponto de sugerir que estes três devires espacializados no tempo são apenas os dois horizontes avistáveis de um único devir, maior e inescapável. Por conseguinte, a inconveniência humana parece residir precisamente na sua exclusiva recusa em encaixar-se fatidicamente na macro esfera existencial do universo; a única que há e que necessariamente deve haver. O homem é o ser através do qual surge no universo a consciente recusa à capitulação mediante os inerentes capítulos desse próprio universo. Para isso, a crua e lógica percepção autômata: “vocês são macacos confusos”!

Uma mítica experiência antidepressiva

Depois de 40 anos usando somente antidepressivos orgânicos e culturais, tais como marijuana, amor, arte e filosofia, deparei-me com uma situação aonde nem eles funcionaram mais. Em janeiro do corrente ano perdi a minha irmã, Graziela, e, junto com minha família, entrei na inescapável sensação de luto que acompanha uma perda irreparável. Porém, ao contrário da melhora que a purgação do luto promete, minha tristeza cresceu e se debruçou sobre todas as outras coisas da minha vida, chegando, por fim, a matizá-la negativamente por completo. Apesar do suporte da psicanálise, cuja presença é mais antiga que a morte da minha irmã; da filosofia, que me saca deste mundo, sobrelevando-me acima das suas contingências; da presença dos amigos, com quem divido as minhas dificuldades e, melhor, com quem esqueço prazerosamente delas; eu senti que precisava de ajuda extra, isto é, química.

Minha analista achou uma “boa ideia” eu ir a um psiquiatra que me receitasse um antidepressivo adequado. Embora eu tenha desconfiado de início da sua sugestão, pois parecia-me haver algo de errado no fato de um psico me “enviar” a outro – da mesma forma que desconfiaria do marceneiro que dissesse que eu preciso de um carpinteiro, ou de um ferreiro que indicasse um serralheiro -, fui ter com o neuropsiquiatra. Este, depois de ter perguntado qual era o meu problema, fez uma série de perguntas de ordem pragmática, entre elas, se eu estava me alimentando adequadamente, asseando-me normalmente, cuidando da aparência, tendo com amigos e familiares, e se havia coisas que me estimulavam cotidianamente. Minhas respostas foram todas verdadeiramente afirmativas. Diagnóstico do neuropsiquiatra: “você não está sofrendo de depressão, mas sim de pessimismo”.

Meu viés filosófico-niilista-cético intrigou-se com esta definição que, de fato, surpreendeu-me. No entanto, foi a dogmática pessoa romântica-barroca, de sentimento&osso, que se alegrou por não estar, clinicamente, deprimida. Mesmo assim me receitou um remédio que, segundo ele, melhoraria a minha situação. De posse dos simultâneos tratamentos psicanalítico, psiquiátrico, filosófico e químico, entreguei minhas angústias não nas mãos de Deus – quisera eu acreditar na sua onipotência -, mas sim nas de um panteão intelectual eclético, pupulado por Freuds, Lacans, Platãos, Aristóteles, Coens, Allens, Skrillex e Mozarts. Fui-me antideprimir, portanto, em boas companhias.

Na fase inicial do tratamento químico, que durou umas três semanas, era esperado somente alterações físicas, não psicológicas. Meu primeiro sintoma foi uma constante dor de cabeça que não cedia sob analgésico algum. Era uma cefaleia atípica, não localizada; parecia que a minha cabeça estava sendo insuflada contra o limite rígido e último do meu crânio. Essa pressão interna se espalhou para os membros e, em poucos dias, tinha a forte sensação de que o meu interior desejava explodir para fora da superfície corpórea que o continha. Era como se não houvesse espaço algum entre a minha alma (sem conotação transcendente alguma – alma ou espírito apenas enquanto “ânima”) e a minha pele. Faltava-me espaço entre eu e eu mesmo. Uma intensa e descontrolada sonolência também se fez presente nessa adaptação química, alterando meus regulares horários de sono e vigília. Passei a precisar, nalguns dias, de ir dormir às cinco da tarde; em outros, às onze da manhã. Em cada um daqueles dias as “noites” tinham os seus próprios horários.

Depois de um mês, esses efeitos desapareceram – ou acostumei-me a eles -, e, imediatamente liberto da angústia que vinha me assombrando, a vida se mostrava positiva novamente. Tão positiva que, depois de três meses de comprimidos matinais, percebi, longinquamente, algo estrando, para não dizer paradoxal, acontecendo. Sob a velha sensação de bem-estar com a vida que o antidepressivo trouxe de volta, sintomas fortemente depressivos se arraigavam sorrateiramente no meu dia-a-dia. Embora me sentindo ótimo, percebi que eu não estava me alimentando bem nem regularmente, passava dois ou três dias sem tomar banho nem trocar de roupa – cuja função passou a ser a de roupa-pijama -, havia deixado de socializar com meus amigos, e minha casa deixou de ser limpa e organizada. Espanto!

O paradoxo estava no fato de que, antes, quando estava me sentindo deprimido internamente, minha vida não apresentava sintomas depressivos externos. Porém, uma vez liberto da sensação de depressão, por efeito do remédio, e em paz comigo mesmo, os sintomas indicadores de depressão apontados pelo neuropsiquiatra naquela consulta se faziam materialmente presentes ao meu redor. Consciente disso, eu não pude deixar de me questionar, filosoficamente, sobre o que era melhor – ou, platonicamente, o que era o bem: se sentir-me deprimido sem sê-lo de fato, ou ótimo, porém, sobre um chão imundo de sintomas depressivos. A resposta a essa questão foi a decisão de parar com tratamento químico sob a advertência médica de que isso deveria se dar de forma gradual. Então, passei a reduzir paulatinamente a dosagem do antidepressivo a fim de deixá-lo.

Entretanto, os sintomas físicos decorrentes desse “detox” foram contrários aos do “intox”. Aquela dor de cabeça de antes, isto é, a forte pressão interna em direção ao exterior, se inverteu. Passei a sentir um espaço vazio sob a pele, uma espécie de interstício preenchido de nada entre as duas coisas que chamo de “eu”, isto é, o meu espírito e o meu corpo. Esse “descolamento” de mim percebido logo abaixo da minha pele era incomodamente presente quando eu, de repente, virava a minha cabeça ou movimentava os meus braços, pois, só depois de alguns segundos é que a minha alma parecia seguir, num tempo só seu, a coreografia dos movimentos ordinários. Minha cabeça voltava-se sozinha para algo do mundo e, anacrônica e preguiçosamente, o meu interior a acompanhava. Já aquela impossibilidade de vencer o sono na fase inicial do antidepressivo transformou-se, na final, em uma insônia constante na qual, mesmo exausto, eu não conseguia dormir.

Restaram-me inquietos no pensamento os extremos dessa experiência antidepressiva, tais como a inicial sensação de pressão explosiva, e a final, a de um vazio implosivo. Com a intoxicação química a minha alma insistia em ser maior que o meu corpo, forçando-lhe os limites. Na desintoxicação, não obstante, a alma parecia encolher-se em fuga do mundo e, inclusive, de mim mesmo. Inicialmente, uma certeza de que o espírito e o corpo estavam sendo obrigados a serem um só, e finalmente, a certeza de que eles eram duas coisas claramente distintas, distanciadas por um sensível espaço físico. A presença imperiosa do sono, primeira, e a sua presente ausência derradeira, também dicotomizaram essa experiência antidepressiva. Antideprimindo eu tinha os momentos de paz, e afora estes, o sono absoluto. Já “desantideprimido”, uma vigília ininterrupta que me obrigava a contemplar tanto a paz quanto a guerra, num exercício exaustivo de assunção de que ambas eram, inalienavelmente, uma coisa só.

Após tudo isso, completamente “desantideprimido”, sem mais perceber guerra ou deserção em demasia entre corpo e alma – como as quimicamente dramatizadas na arena do meu ser -, percebo as figuras pelas quais passei nessa experiência como etapas necessárias à vida, tanto a do corpo quanto a da alma. Ser a um só tempo corpo e alma, sem intervalo algum entre eles, até a negação sensível dessa separação; ver a alma sucumbir às necessidades do corpo e cair de sono em pleno meio-dia; usar o tempo apenas em função das coisas prazerosas, a despeito absoluto das tarefas cotidianas; encarnar e habitar o vazio impreenchível que nós, humanos, inventamos e percebemos entre corpo e alma; permanecer acordado indefinidamente, não só para fruir os prazeres, mas também para cumprir com as tarefas mundanas; voltar a cuidar de si e a assear a casa após uma bagunça emergente; tudo isso deve fazer parte da vida simplesmente porque já faz parte dela.

Os “comprimidos” antidepressivos, de certa forma, “descomprimiram” essas múltiplas e contraditórias experiências que, a cada instante, são a vida em sua expressão genuína. Foi quando me escapou a coabitação necessária dessas dimensões da existência, e algumas delas passaram a figurar como impróprias, que fiquei doente. Deprimido porque reprimindo a pluralidade sensível da vida. Os “comprimidos” serviram para mostrar o nível de compressão – e de incompreensão – à qual, eu mesmo, havia me sujeitado diante dos fatos. A química antidepressiva descomprimiu a vida da vida diante dos meus olhos obtusos que outrora passaram a ver, impertinentemente, falta de vida nela mesma. Quimicamente, a vida foi espraiada, e seus momentos foram delongados para além de suas próprias pertinências até que aquele pessimista-deprimido pudesse percebê-los de corpo e alma, sem negá-los; reconduzindo-os harmoniosamente em direção à pequena guerra existencial que reside em cada mínimo instante vivido.

O ciclo de eventos experimentados através dos antidepressivos ao longo de alguns meses restaurou, ao meu corpo e à minha alma, a sã consciência de quão mítica a vida é e deve ser: repetindo-se ao repetir eternamente o melhor e o pior de si, em qualquer fatia de tempo que tomemos. O restauro da minha saúde psíquica passou pela apercepção de que a felicidade é um mito, isto é, um movimento cíclico que, no seu reciclo eterno, não me privaria de todos os seus infinitos pontos. Já a doença, ou no meu caso o pessimismo, era a tentativa de linearizar-me historicamente a partir de um passado idílico que desejava um atalho direto a um futuro utópico, transformando o presente – através dessa projeção linear mesma – numa promenade impossível a separar-me da paz. Historicizando-me, agi como o historiador que comprime a inabarcável miríade de eventos vívidos e concretos em fatos icônicos, abstratos e insuficientes. Para essa compressão absurda, comprimidos antidepressivos! Entretanto, mitificando-me, reinseri na vida a certeza de que tudo passa e fui, não em direção a um desconhecido angustiante, mas às figuras evidentes da vida, que, por piores que sejam algumas delas, desaparecem na eterna curva que é o ciclo da existência, dando, sempre, lugar a outras, inclusive às suas opostas complementares.

O movimento do problema

A felicidade vem e vai ao toque de ser descoberta. Já os problemas nos mantêm cativos de fases mais delongadas. Adentrá-los é uma experiência desconfortante; deixá-los, regozijante. Logo, em relação aos nossos problemas, ou desejamos resolvê-los definitivamente, ou fazemos de tudo para evitá-los. Parafraseando Hegel, não é a vida que se atemoriza ante os problemas e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta os problemas e neles se conserva! Por conseguinte, cabe aqui a pergunta: são os problemas ruins em si mesmos, ou é o que é ruim que é chamado, inadvertidamente, de problema? A abstrata matemática responderia imediatamente com duas negativas; já pessoas concretas ponderariam mais um pouco. Para estas últimas, problemas são as coisas com as quais lidam no intervalo indesejado entre dois momentos solucionados, usualmente chamados de felizes. Contudo, “pela insignificância daquilo com que o espírito se satisfaz pode-se medir a grandeza do que perdeu”, ironiza Hegel.

Em sua origem etimológica grega, a palavra “problema” significa “lançar-se à frente”, ou seja, transpor o aqui e o agora em uma direção nova. Entretanto, uma vez dentro de um problema, de forma alguma sentimos conforme esse significado original. Antes, percebemos uma imobilidade desconcertante de cujos limites é difícil escapar. Caso tivéssemos nos mantido um pouquinho mais gregos, lançar-nos-íamos à frente das agruras presentes para, além de visualizá-las melhor e à distância, deixá-las de imediato para melhor considerá-las. Afinal, quantos problemas só nos pareceram ruins por que claustrofobicamente presentes, porém, uma vez passados, revelam-se proveitosos? Mas, como nos lembra Hegel, “o bem-conhecido em geral, justamente por ser bem-conhecido, não é reconhecido”. Todavia, enquanto não é dado o salto à frente do problema, gradualmente convida-se ao desespero. Assim, de acordo com Hegel, “a impaciência exige o impossível, ou seja, a obtenção dos fins sem os meios”. Entretanto, o problema, isto é, o lançar-se à frente, é a um só tempo o meio e o fim!

Espreita-nos, sorrateiramente, uma insegurança em cada problema, dado que sempre há a possibilidade de sucumbirmos a ele, de não resolvê-lo, e nele permanecermos. Hegel, contudo, sugere algo essencial, perguntando-nos: “por que não cuidar de introduzir uma desconfiança nessa desconfiança, e não temer que esse temor de errar já seja o próprio erro?” Genial! Pode-se, a partir daí, atribuir a dificuldade não às situações ruins percebidas, mas ao modo como as recebemos. A indicação hegeliana seria no sentido de não confundirmos o predicado com o sujeito, pois para este pensador, quando o predicado se assenhora do sujeito, o sujeito é escravizado por esse predicado. Porém, os predicados – e no caso dos problemas, os ruins – são atributos destacáveis e substituíveis, e não o sujeito em si. Qualquer nó górdio atrelando predicado e sujeito não obstante é dado pelo próprio sujeito, pois aquele, diferente deste, não trama a vida. Portanto, as dificuldades não são obras das circunstâncias da vida, mas sim do modo como o sujeito inscreve-se nelas; muitas vezes circunscrevendo-se e aprisionando-se nelas.

Idealizamos que a vida ‘solucionada’ seja o pódio excelente da existência, e talvez isso se dê, como afirmou Hegel, pelo fato de que “o sujeito só está presente como sujeito em repouso”, sendo o movimento a sua ameaça existencial. Assim como erramos ao não significar os problemas como faziam os gregos, outrossim, idealizamos o sujeito como algo estável e aprazivelmente dado, o que o assemelha mais a um objeto! O sujeito, por tautológico que pareça, é muito mais quem “está” absolutamente sujeito às circunstâncias do que aquele que simplesmente o é, absoluto, através delas. “O espírito”, escreveu Hegel, “só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto”. Por conseguinte, estar sujeito diz respeito muito mais àquilo que não se deseja, ou seja, aos problemas, que àquilo que desejamos, isto é, à felicidade. Esta última, dividida em duas, uma antes e outra depois do momento problemático, só nos engana porque equidistante desse centro insuportável ocupado pelo sujeito. Porém, uma vez nela, eis a abertura para todo tipo de novos problemas, e, não menos, a imprópria revelação de que a solução é somente uma ilusão de ótica propulsora do movimento problemático.

O “lançar-se à frente” dos antigos helenos é de grande sabedoria, porquanto é uma ação que gera, no simples problematizar, um movimento descolado tanto da dificuldade presente, ainda que em função desta, quanto do momento futuro que, mesmo desproblematizado, será, inevitavelmente, o berço de novos e desconhecidos problemas. Estar nesse salto, ser esse lançamento, portanto, é livrar-se da dificuldade presente mantendo-se imune das futuras. É só no voo extraordinário que visualizamos, ao modo dos pássaros, a ordinariedade dinâmica e verdadeira da vida à distância de não nos contaminarmos com as nossas próprias mundanidades. Enraizados, resta-nos assistir ao tragidrama vegetal descrito por Hegel, no qual “o botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta”. Para o filósofo, nesse roteiro estão os “momentos da unidade orgânica, todos igualmente necessários”, entretanto, somente lançando-se para além deles, isto é, problematizando-os, é que podemos assistir confortavelmente essa ópera do devir sem que a prima-dona do ser seja abandonada.

Hegel disse que “o anti-humano, o animalesco, consiste em ficar no estágio do sentimento, e em só poder comunicar-se através do sentimento”. Concluo, aqui, parafraseando novamente o filósofo, que o pró-humano, o transcendente, consiste em “lançar-se adiante” do estágio do sentimento, e em só poder comunicar-se através do movimento. Principalmente quando os sentimentos são negativos, devido às circunstâncias dificultosas, lançar-se para além deles é a melhor forma de encará-los. Agarrar-se às dificuldades para resolvê-las é, definitivamente, privar-se de problematizá-las, pois só transformando-as em problemas é que se estará livre delas, um tanto adiante, numa promenade relativizadora, para, quem sabe, fruí-las como fazem os matemáticos. O movimento intrínseco à palavra “problema”, ao qual deveríamos entregar-nos em cada dificuldade percebida, é uma ancestral verdade grega escondida nesse apanhado de letras cujo significado, quando perdido, furta-nos inclusive a ação mais essencial, ou seja, o “lançar-se à frente” das dificuldades.

 

Suicídio roubado

Cultural, legal, religiosamente somos advertidos de que o suicídio é um mal impróprio. Mesmo que vivamos, hoje, em um mundo superpopulado, com cada vez menos oportunidades de uma vida digna, sem falar na exaustão da Natureza que os mais de sete bilhões de humanos promovem, tirar a própria vida ainda é tomado como tabu. Entretanto, como colocou Hume, “o suicídio é um poder do homem, “não mais ímpio que o de construir casas”, e que deve ser utilizado em circunstâncias excepcionais”. Embora o decreto de “circunstâncias excepcionais” extremas tenda a ser uma decisão a partir do coletivo, seu grão menor surge no e pertence ao indivíduo.

Temos o carma absolutamente humano de sabermos da nossa própria morte, porém, não quando ela acontecerá. Sintomaticamente, foi instituído o grande tabu que não permite que a um só tempo saibamos ‘que’ vamos morrer e ‘quando’; e o suicídio é a consciência dos dois! Os demais animais, inversamente, não sabem ‘que’ vão morrer, no entanto, parecem saber ‘quando’, tanto que a maioria deles se isola na percepção da chegada de sua própria morte, sem que esse movimento seja inapropriado ou absurdo para os outros. Ademais, essa é uma prática bastante ecológica. A diferença entre eles e nós é que, uma vez na cultura, nós perdemos o direito de não mais cultuarmos, inclusive a nós mesmos.

Deleuze coloca que “a sociedade não pode garantir direitos preexistentes: se o homem entra em sociedade, é justamente porque ele não tem mais direitos preexistentes”; dentre eles, por conseguinte, o direito individual de atuar no sentido de seu próprio fim. A cultura precisa de cada indivíduo mais que ele dela, por isso é ela que diz como e até quando ele deve viver. Consoando a cultura à poesia através da intuição de Hume, “quanto mais o poeta sabe nos afligir, nos aterrorizar, nos indignar, mais contente [devemos] ficar”, mesmo que este seja um estado ilusório e não genuinamente subjetivo. A “fantasia se encontra na fundação de um mundo, mundo da cultura e mundo da existência distinta e contínua”, afirma Deleuze, e a palavra “contínua” se opões à descontinuação máxima, ou seja, ao suicídio.

Pelas condições sociais de muitos animais, podemos vislumbrar, a partir da nossa, por que eles se retiram dos seus grupos quando vão morrer. Já o homem o faz entre os seus, o que leva à pergunta: seria essa decisão de morte, ao mesmo tempo, um comunicado especial e derradeiro à sociedade? “Todo homem particular tem uma posição particular a respeito dos outros”, disse Hume, e caso essa posição individual seja de oposição absoluta, a morte pode dizer tudo com nenhuma palavra, enquanto que em vida seria impossível dizer tudo; até por que, de acordo com o filósofo, “as palavras produzem um simulacro de crença”, não a verdade do que querem dizer. O silêncio não obstante fala eternamente, porquanto a voz do tempo.

Independentemente de querer expressar mais do que simplesmente ele próprio, o suicídio é uma das paixões dentre as muitas que temos, e reprimi-la deveria figurar tão antinatural quanto a quaisquer outras. O indivíduo é disposto de maneira a produzir paixões, e para Hume “ele apresenta uma disposição própria e particular à paixão considerada”; visto que “uma paixão é uma existência primitiva, um modo primitivo de Existência”. Entretanto, seria a paixão pela inexistência algo de extranatural? As paixões naturais, porventura, não deveriam ter primazia sobre quaisquer instituições posteriores sobrepostas e contrapostas a elas, sejam as culturais sejam as religiosas? Caso percam a batalha, “a alternativa em que se encontram as paixões é esta: satisfazer-se artificialmente, obliquamente”, completa Deleuze, para quem “a cultura é uma experiência falsa”.

Em uma circunstância excepcional, onde o indivíduo se perceba sem soluções disponíveis a não ser suicidar-se, não teria ele o direito de não ser desestimulado nessa empreitada demasiada corajosa? Todavia, quando nessas condições, “o problema do eu sem solução”, afirma Deleuze, “encontra um desenlace moral e político unicamente na cultura”, ou seja, o suicida deve, antes, consumir psicanálise, medicamentos e eletrodomésticos enquanto soluções sintéticas sociais às questões naturais individuais. É vetada ao ser humano, portanto, uma ação que negue e não retroalimente o $i$tema, e o suicídio é essa atuação, e irremediável.

Deleuze sugere que “o poder da imaginação é imaginar o poder”; logo, aventar a própria morte é um poder em potencial em cada homem devido a sua própria imaginação. Entrementes, uma vez sistematizados, “não somos apenas sujeito, somos outra coisa ainda, somos um Eu, sempre escravo de sua origem”, coloca o filósofo; isto é, escravo de uma origem social e cultural, porquanto ostracizados de nossa origem primeira, a saber, a animal. Somos, por conseguinte, obrigados a suprir e a ‘cultuar a cultura’ até um limite que de modo algum pode ser definido individualmente, porém culturalmente, limite esse que é, através da medicina e da ciência, constantemente afastado.

Tomamos o conhecimento da morte e no mesmo instante perdemos a ingerência sobre ela, pois sabê-la tornou-se a obrigação de evitá-la junto com idolatria da vida a qualquer preço. Mas, como concluiu Hume, “o idólatra é o homem das “vidas artificiais”, aquele que faz do extraordinário uma essência”. Atentando para o sentido da palavra ‘extraordinário’, e concebendo a vida enquanto a ordem à qual não tivemos a oportunidade de descumprir, já que vivos, optar por deixar essa condição ordinária deveria, portanto, voltar a ser um direito natural e não estigmatizado, porquanto ele é o único que a cultura não pode nos oferecer.

 

Desejo de tempo

Reclamamos o tempo todo que cada vez mais o tempo nos falta, e culpamos o ritmo frenético da vida contemporânea com suas constantes e excessivas demandas. Porém, esquecemos com isso de que o escravo grego, o servo medieval e o proletário moderno tampouco tinham o tempo necessário para a suposta grande atividade da vida, a saber, realizar os próprios desejos. Não somos, por conseguinte, menos afortunados que os nossos antecessores históricos em matéria de tempo, e se tal miséria nos parece imperiosa, cabe aqui indagarmos sobre a responsabilidade por essa carência.

O tempo, em si mesmo, não pode ser pouco nem muito, visto que puro e infinito. Sua pureza fica evidente ao ser dividido, seja em quantas partes desejarmos, inclusive nas mais ínfimas: o que resta é sempre a mesma coisa, isto é, tempo, nada além dele mesmo, disse Aristóteles em sua “Física”. Já um ser impuro, uma pessoa, por exemplo, quando dividida, torna-se sempre algo de outro: membros, órgãos, células, átomos, etc., pois, ao se dividir algo impuro, o que resta é sempre outra coisa que não o que foi dividido.

Portanto, é do impuro que surgem as quantidades sensíveis, pois, conforme o exemplo acima, uma pessoa se torna quatro membros, dezenas de órgãos, milhões de células, “ad infinitum”, porém, não mais uma pessoa. Enquanto a divisão do que é puro, aqui o tempo, apesar de também gerar quantidades, a saber, anos, dias, horas, etc., não cria diferenças sensíveis em suas partes, porquanto sempre tempo. Isso para dizer que tempos menores não perdem qualidade, apenas aumentam em quantidade, e de forma alguma faltam. Aliás, quanto menores, mais abundantes.

Todavia, o tempo não divide a si próprio, pois é absoluto e impessoal. Quem o partilha somos nós, e qualitativamente. Retornando à perspectiva histórica anterior, o escravo dividia sua vida em quando era livre e quando já não o era mais, de resto, nada mais importava; o servo, entre os meses de trabalho para si e nos devidos ao seu senhor; e o proletário, tão somente no turno da fábrica e no de sono. Hoje em dia, contudo, devido ao espaço oferecido aos nossos desejos, passamos a viver de hora em hora, de instante em instante, tantos quantas forem as coisas que desejamos; e porquanto são muitas, haja tempo para todas!

Logo, não é o tempo que é reduzido, visto que infinito para fora e para dentro de si mesmo, seja em direção ao passado e ao futuro seja em um período determinado qualquer: um dia, por exemplo, pode ser dividido em algumas dezenas de horas ou centenas de milhares de segundos. Por consequência, quanto menores forem os instantes, mais deles teremos, e a intensa subdivisão temporal dos dias atuais não obstante deveria causar sensação de mais tempo, de mais oportunidades, não de menos. Conquanto o tempo nos falta, provavelmente estamos pervertendo sua pureza e infinitude.

A finitude angustiante das nossas horas, contraposta à infinidade temporal disponível, se dá porque, conforme Aristóteles, “no infinito está incluído o finito”; e em relação ao tempo, a escolha de tomar a parte finita em vez do todo infinito não é do próprio tempo, mas exclusivamente nossa. Talvez estejamos, sintomaticamente, reduzindo o tempo infinito à finitude que os nossos desejos encarnam ao se tornarem sequencias, auto-obsolescentes, desconectados da totalidade da vida e cada vez mais confinados ao “tamanho” dos instantes nos quais se mostram a nós.

“Tudo que muda, muda o tempo”, escreveu Aristóteles. Parafraseando aqui o filósofo, no sentido de entender o desejo afetando o tempo, conclui-se que ‘tudo o que deseja, deseja o tempo’. Ainda que o desejo se apresente instantânea e pungentemente, seu desenrolar se impõe temporal, precisamente porque a fruição se dá ao longo do tempo. Consequentemente, a vida de um desejo ocupa mais tempo do que aquele no qual ele se apresenta. Portanto, ao preenchermos todos os instantes com desejos, literalmente roubamos-lhes o tempo de realização. Daí a sensação de falta de tempo, mesmo sabendo que ele é infinito.

 

Escrever na vida

Escrevo quando não sei o que fazer com a vida, e ao começar, a dúvida se transforma nas possibilidades que essa vida em questão comporta, pois, segundo Lukács, “a realidade não é, torna-se – e, para que se torne, é necessária a participação do pensamento”. Permito-me ser encurralado por essa obsessão em escrever acerca da vida que se atravessa no meu viés filosófico por confiar na afirmação de Adorno de que os “pensadores em que falta o elemento paranoico não têm impacto, ou são prontamente esquecidos. A fuga das ideias fixas transforma-se numa fuga do pensar”. E “nada de útil acontece enquanto as pessoas não começam a dizer coisas que nunca disseram antes”, disse o filósofo Richard Rorty.

O mundo globalizado e “hiperinformacionalizado” é uma nova Babel, mais caótico que nunca e resistente em se deixar ser apreendido. É fundamental o uso de mapas supersimplificados e constantemente atualizados a informarem a mutável topografia contemporânea para que se possa, inclusive, permanecer no mesmo lugar; visto que “o mesmo lugar” desloca-se, hoje, na sua relação volátil com todos os outros. Essa mobilidade esquizofrênica da vida se dá, conforme Althusser, porque “os homens expressam não a relação entre eles e suas condições de existência [o que seria uma âncora], mas o modo como eles vivenciam essa relação”, ou seja, uma nau desgovernada.

Pierre Bourdieu criticou nossa sociedade justamente porque os teóricos habilitados a falar sobre o mundo não sabem coisa alguma sobre ele, e as pessoas comuns, que de fato conhecem o mundo, não são capazes disso. Percebe-se aí, com a ajuda do sociólogo francês, que importante é os “comuns” – os verdadeiros sábios – dizerem do que se trata, afinal, o mundo, mesmo que incipientes em relação às “teorias habilitadas”. Hegel já dizia: “temos que ter uma nova mitologia”; pois, ao homem, o mito se oferece como terreno mais firme que qualquer prova científica abstrata, e porque é “o senso comum que cria o folclore do futuro”, disse Gramsci.

Os pensadores autorizados é que, por costume e tradição, desautorizam os outros que não eles próprios, isto é, os “comuns”, de inscreverem-se no mundo que é comum a todos. Entretanto, Terry Eagleton questiona essa relação hierárquica afirmando que “a moral [o costume] é o resíduo fossilizado de uma história anterior”, sendo a primeira a pedir revolução. “O importante é o que podemos fazer para convencer as pessoas a agirem de maneira diferente das que adotaram no passado”, disse o filósofo americano Richard Rorty, e o passado é a concisa torre de marfim residência de poucos e ícones.

A vida, que de todos é posse comum, só pode ser descrita apropriadamente quando todos a descreverem simultaneamente, ainda que isso nos coloque distantes das conceituações acadêmicas e de suas abstrações acerca da estrutura da realidade. Não escrevo para saber o que a vida é, porquanto indefinível, mas para esquecer a necessidade dessa questão sempre que se-me apresenta, talvez por concordar com Zizek quando ele diz que “se viéssemos a saber demais, a desvendar o verdadeiro funcionamento de realidade social, essa realidade se dissolveria”.