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Financeirização da economia e a dominação ilimitada

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Como impedir a classe dominante de dominar? Marx bem tentou responder essa pergunta no seu Manifesto Comunista, que começa afirmando que “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Só que essa tarefa se mostrou bem mais difícil do que o grande filósofo materialista imaginou. Mais ainda depois que o capitalismo se libertou de qualquer limitação material, ou seja, após o presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971, abolir o lastro material do Dólar. Com esse ato, foi dispensado o fundamento material daquela moeda, e por efeito cascata, o de todas as demais. Doravante o dinheiro, e a dominação que ele proporciona, passaram a ser inventados. Claro, quem detém o poder (político e militar) para tal “alquimia” é a classe dominante, que, quanto mais inventa riqueza, mais a inventa para si mesma, e, portanto, mais-domina.

Para inventar sua dominação de modo legal, e além do mais democrático, basta, por exemplo, que as doze famílias mais ricas dos EUA, donas dos doze maiores bancos que formam o Federal Reserv Bank (o banco que cria os dólares para os EUA), enfim, basta que a classe arquitete uma devastadora crise econômica, para a qual apenas alguns trilhões de dólares – que ela mesma pode inventar imediatamente – sejam a solução mais objetiva. O governo então aceita esse dinheiro abstrato e, no mesmo instante, o povo e o futuro desse Estado passam a dever a exata quantia à classe, só que agora, obviamente, em forma de riqueza concreta. Se o lastro para o dinheiro que  a classe inventa findará em barras de ouro ou em mega favelas na África, Ásia e América do Sul tanto faz. A classe cobra concreta e materialmente por centavo que abstratamente inventa.

Só que, dado o montante de dinheiro inventado na nossa economia financeirizada, é impossível lastreá-lo materialmente. Há vários limites. Um deles, o ecológico, é quiçá o que melhor demonstra essa impossibilidade. Há quem diga que seria preciso de seis a dezesseis planetas Terra (em quantidade de ar, água, terra, minérios, etc.) para arrancar, da natureza ao mundo humano, a riqueza material necessária para lastrear a riqueza inventada pela classe. Todavia, embora essa dívida seja de fato material, econômica, social, política e ecologicamente impagável, ela só continua sendo criada porque é logicamente possível fazê-lo. Afinal, nada há de errado em cobrar do futuro, que além do mais é ilimitado, quando se abstrai o fato concreto de que não haverá planeta Terra para tanto.

Para manter essa lógica insustentável funcionando, todos os dominados/endividados que ousam afrontá-la devem ser restringidos legalmente e reprimidos militarmente pela classe. É tão impossível para a humanidade materializar toda a riqueza abstratamente inventada pela classe quanto deter a classe na sua desenfreada financeirização da econômica. Na época de Marx, o capitalismo ainda era refém do mundo material. A mercadoria, misto de matéria-prima e meios de produção capitalistas e de mão de obra proletária, era fundamental no processo de produção de mais-valor que permitia à classe mais-dominar. Na financeirização da economia, entretanto, nada de material precisa ser produzido para que venha ao mundo tanto dinheiro quanto deseja a classe. A produção material, obviamente, não desapareceu. Apenas sobrevive em modo zumbi, mentido caducamente que será através dela que se pagará a dívida à classe.

Agora, por mais perverso que seja, esse sistema no qual a classe minoritária dominante pode inventar, em nome da classe majoritária dominada, uma dívida maior do que o futuro da humanidade, obrigando esta última, legal e militarmente, a pagá-la, materializá-la, lastreá-la com o suor de seus corpos, é de uma estratégia admirável. Nunca foi tão fácil dominar! Žižek bem disse que, desaparecendo a necessidade de fundamento material para a dominação de classe, e bastando a classe inventar quantas vezes quer ser mais rica e dominante, o que resta é a dominação direta e injustificável de uns indivíduos sobre outros, como se se tratasse de uma determinação divina, extra-humana. Inventar dinheiro, no mundo capitalista, é inventar poder. Poder criar uma dívida em nome de outros, portanto, é criar poder sobre eles.

Desfinanceirizar a economia é, portanto, um urgente passo para libertar os povos dessa insustentável liberdade da classe de inventar, desimpedida de qualquer restrição material, a sua dominação. Talvez devamos reconsiderar a velha ideia marxiana segundo a qual o sumo valor é tão somente fruto de trabalho humano, pois ela reata os pés de Ajax da classe no chão material do mundo, impedindo-a de inventar abstratamente sua dominação concreta. O grande problema, contudo, é impedir a classe de se valer compulsivamente de sua maior sofisticação (inventar sua superioridade) uma vez que ela está de posse dos Estados e de seus exércitos.

Uma autêntica revolução seria a solução, pois desfinanceirizaria a economia capitalista ao destruir próprio o cosmo capitalista. Ora, se é para desafiar o Estado burguês e sua opressiva força militar, que seja para a maior das mudanças, pois só ela puxará naturalmente todas as demais necessárias. Entretanto, a revolução parece estar mais desacreditada do que nunca. Todavia, não porque os preceitos socialistas revolucionários tenham perdido sua pertinência, mas porque a classe, estrategicamente, assim como vem inventando a sua dominação, inventa também as pseudo verdades que lhes serve, tal como a ideia de que é melhor o capitalismo do que qualquer outra forma econômica para a humanidade subsistir materialmente.

Se não é possível fazer a revolução agora, pois, novamente, temos os Estados nacionais e os seus exércitos contra ela, ao menos alimentemos a ideia de revolução tal qual se encontra excelentemente em Marx. Que não seja possível mudar o mundo por esta ou aquela contingência não deve significar que a razão da mudança seja inválida. Muito pelo contrário. Talvez seja justamente nessa era de economia financeirizada, na qual a invenção de dominação concreta a partir de uma mera abstração é a regra, que uma simples ideia revolucionária possa, subversivamente, aproveitar a onda e materializar-se. Se não há como vencer uma guerra sem ter ao menos as mesmas armas do inimigo, afrontemos então a classe usando a sua mais sofisticada artilharia: inventemos um mundo sem dominação e exijamos, a qualquer custo, que o mundo material e concreto corresponda a essa justa, e até aqui, abstração.

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Viver sem trabalhar?

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De onde vem a utopia de um mundo no qual as máquinas produzem tudo sozinhas e as pessoas são livres e desocupadas para fazerem o que bem entender senão de um idealismo pequeno burguês alienado da materialidade do capitalismo? Ora, as máquinas não são dádivas da natureza, nem tampouco de algum deus para que os seres humanos sejam perdoados da maldição adâmica de viverem do próprio suor. Com efeito, são armas quiçá as mais objetivas do capital no sentido de possibilitar a obtenção de mais-valor, o objeto capitalista par excellence. As máquinas só passaram a existir, e cada vez mais são aperfeiçoadas e disseminadas worldwide para esse fim. Se não for assim, elas perdem o seu porquê. Como poderiam então prometer liberdade às pessoas?

Como Marx bem mostrou nO Capital, as máquinas existem para reduzir o investimento dos capitalistas em salários. Em suma, para desvalorizar o trabalho. O filósofo mostra que, na aurora do capitalismo, os patrões investiam metade do seu capital em meios de produção (matéria-prima, ferramentas, energia, instalações etc.) e metade em força de trabalho (salários). Com o advento da maquinaria, poucos séculos depois, o investimento em meios de produção era cerca de dez vezes maior do que em salários. As máquinas de fato desvalorizam o trabalho humano. Porém, como a história da miséria moderno-contemporânea comprova, não para valorizar o “livre viver” das pessoas, e sim para fazê-las aceitar salários cada vez menores e exploração cada vez mais maior.

De um lado, o capitalismo desvaloriza sistematicamente o trabalho humano através de crescentes investimentos em tecnologia em função de seu mais-valor. Todavia, de outro lado, o mais-valor é conseguido somente através da exploração do trabalho humano. Ao contrário do que vulgarmente se pensa, máquinas não têm como produzir mais-valor porque não têm como serem exploradas. Elas cobram pelo que produzem exatamente o que custam ao capitalista. Se uma máquina, por exemplo, custa $1 milhão, e ao longo de sua vida útil é capaz de produzir um milhão de sapatos, cada mercadoria individual cobrará exato $1 pelo investimento no meio de produção que é essa máquina. E assim com os demais meios de produção. A única possibilidade de o capitalista lucrar jaz na exploração do trabalho humano, pois só ele pode produzir, em mercadorias, muito mais valor do que custa ao capitalista.

O que a princípio parece ser uma contradição – a busca de mais-valor do capitalista mediante tecnologia que, por sua vez, dispensa a fonte de mais-valor, qual seja, o trabalho humano -, na verdade, é a sui generis estratégia capitalista de, mediante a desvalorização do trabalho, aumentar a exploração sobre esse trabalho desvalorizado. E a crescente massa de desempregados que esse processo gera, chamado de exército industrial de reserva, longe de ser produzido para que esse contingente desocupado se ocupe com o que lhe dá prazer, serve, ao contrário, para comprometê-lo ainda mais com as necessidades do capital. De modo que, em um mundo no qual as máquinas façam tudo, não haverá uma humanidade finalmente livre, mas uma absolutamente desempregada e inescapavelmente subjugada pelos donos das máquinas. Por essa razão, é burrice os trabalhadores utopizarem a substituição do trabalho humano pelas máquinas. Sem dizer que, de sua parte, o capitalismo, para quem o sumo objeto é o mais-valor obtido pelo trabalho humano, tampouco criará tal realidade.

Somente quando a força de trabalho é valorizada há motivo para os capitalistas investirem em tecnologia. Quando, ao contrário, o valor do trabalho cai, a tecnologia se torna cara demais para valer a pena. O geógrafo marxista David Harvey explica isso dizendo que, nos EUA, por exemplo, onde o valor da força de trabalho é alto, é feito de tudo para que o trabalhador seja substituído pela tecnologia com o objetivo de baixar o valor dos salários. Já na China, prossegue Harvey, onde o valor do trabalho é baixíssimo, é mais vantajoso utilizar milhares de trabalhadores produzindo mercadorias com ferramentas manuais do que investir em maquinário tecnológico.

Temos, portanto, uma gangorra na qual, em uma extremidade, está o trabalho humano, e, na outra, a tecnologia, sendo que a subida de uma às custas da descida de outra se dá em função de um centro fixo: o mais-valor. Quando o valor da força de trabalho está em alta, o mais-valor força a sua baixa, elevando a tecnologia. Quando, porém, a tecnologia está em alta e o trabalho em baixa, o mais-valor central percebe que vale mais a pena voltar a usar a força de trabalho desvalorizada e não a tecnologia supervalorizada. Então a gangorra se inverte. E assim sucessivamente, numa dialética infindável que, entretanto, em todos os casos, atende aos interesses do capital tanto quanto é estabelecida por ele. A utopia da libertação definitiva da humanidade mediante a substituição total do trabalho humano pelo das máquinas, da perspectiva do capital, na verdade, é absolutamente distópica.

Do ponto de vista dos trabalhadores, a utopia de viver sem precisar trabalhar deve ser encarada pelo o que é: um ingênuo sintoma causado pelo insuportável e exploratório modo de trabalho imposto pelo capital, e de modo algum como a percepção iluminada de que o trabalho enquanto tal não tem valor e que, portanto, deve ser substituído pela máquina. Aliás, os trabalhadores não percebem a armadilha capitalista na qual caem ao desvalorizarem, eles mesmos, o trabalho, a única fonte material de valor que existe e que jaz em suas mãos. Sonhar com o fim do trabalho humano, com efeito, é realidade sempiterna do capitalismo. Portanto, todo aquele que quiser contribuir com a superação desse vil sistema econômico deve, ao contrário, valorizar cada vez mais o trabalho humano; colocá-lo no centro nevrálgico da vida social; e não colocar a máquina, que é invenção e propriedade dos capitalistas, nesse lugar. A utopia da vida sem trabalho, mais do que ao capital, é distópica sobretudo às pessoas.

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O Conto da Karoshinha Capitalista

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Karoshi, na contemporânea cultura nipônica, significa morrer por excesso de trabalho. Desde 1960 há uma epidemia de japoneses que adoecem terminantemente ou simplesmente se suicidam encurralados pelas demandas de um capitalismo absolutamente desumanizado aliado a uma cultura de disciplina férrea cuja tradição prega que um trabalhador que chega no serviço depois do chefe ou dos colegas, ou sai antes deles, é mal visto e deve ser descartado para dar lugar a alguém que “realmente” honre a empresa. Um lema para o karoshi seria algo como: “Empresa ou morte!”

No Brasil as pessoas não se matam por excesso de trabalho. Bem mais comum, aliás, é o brazuka morrer ou se matar por falta de trabalho. Todavia, as bases para um karoshi tupiniquim foram lançadas pelo primeiro lema do atual governo golpista: “Não pense em crise, trabalhe”. Com o agravamento da crise, contudo, já estamos na fase do: “Não pense em mais nada, apenas trabalhe muito”. E só mesmo muito otimismo ou alienação para não crer que, em breve, seremos cativos da mínima tautológica: “Trabalhe, trabalhe”.

“O trabalho dignifica o homem” é a sui generis mensagem do cristianismo. Todavia, na era pré-capitalista na qual nasceu tal ideia, “capital” era Deus. “O Homem” a ser dignificado pelo trabalho, portanto, era tão somente Ele. Entretanto, a dignificação de Deus mediante o trabalho humano resultava em dignidade humana, pois trabalhar em prol da obra de Deus, o mundo, aumentava a graça divina e, consequentemente, os homens eram agraciados, dignificados através da dignificação dO Homem.

Já na nossa era capitalista, demasiada capitalista, “capital” é só mesmo o capital. Ele é “O Ser Supremo” a ser dignificado pelo trabalho dos homens, mesmo ao custo de toda a dignidade mundana. Ao contrário de Deus, que dignificado pelo trabalho humano agraciava os homens, o capital só faz acumular para si a mais-graça que recebe dos seusb trabalhadores. E não há limite para essa vil liturgia capitalista. Se há, arriscamos dizer que são dois: o Karoshi, a morte dos homens por excesso de trabalho, ou o que é pior, a destruição total do planeta Terra por excesso de capitalismo.

Marx nos fez ver de modo científico que apenas metade de uma jornada de trabalho serve às necessidades do trabalhador. A outra metade existe para gerar mais-valia ao capitalista. Aliás, tudo o que este mais quer daquele jaz nessa segunda metade de jornada explorada! O fato de hoje nós, brasileiros, trabalharmos de janeiro a junho para pagar impostos, e só de julho a dezembro para nós mesmos só reforça a tese de que metade do nosso trabalho é para a benesse de outrem.

Claro, a sagaz ideologia capitalista oblitera sistemática e exitosamente o furto do nosso trabalho e da nossa dignidade, e de modo tão sistemático e exitoso quanto acumula capital. De nossa parte laborante, esperamos que, trabalhando arduamente, obteremos conforto e segurança. Todavia, nesse mundo só há espaço para tal labuta esperançosa porque assim é melhor para o capital, e tão somente para ele. Afinal, metade do nosso trabalho é imediatamente furtado pelo capital enquanto trabalhamos para ele, e a outra metade, aquela que trabalhamos para nós mesmos, é mediatamente furtada ao compramos nossos confortos e segurança dele.

Somos sistematicamente enganados pelo “Conto da Carochinha” capitalista. Roubados em metade do nosso trabalho pelo capital, e devolvendo a ele, aos preços que ele estabelece, a outra metade que ele justamente nos paga, para nós o jogo é um eterno perde-perde. Já para o capital, o jogo é apenas ganha-ganha. E isso é tão verdade que, como os japoneses comprovam de maneira sintomática e epidêmica, os trabalhadores cada vez mais perdem-perdem inclusive as suas vidas para o ganha-ganha do capital.

Sequer pensar na Revolução, mas, antes de tudo, matar a si mesmo em desistência plena diante da ameaça inimiga faz do karoshi nipônico a derradeira e mais vil “mercadoria” produzida pela mentira, pela ideologia, pelo “Conto da Carochinha” do capital. Trabalhar até morrer; morrer por causa do trabalho; não ser humanamente digno da “empresa”; tudo isso é o “Conto da Karoshinha” capitalista insistido worldwide para enterrar uma verdade tão real quanto simbólica, qual seja, a de que o trabalho foi feito para o homem, mas não o homem para o trabalho.

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Crítica da política

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Por que a política ainda promete ser o meio de luta contra os interesses espúrios do capital se é ele, o próprio capital, que sempre vence na arena política todas as batalhas que enfrenta? Está certo que a política é bem mais antiga que o capitalismo, entretanto, desde que este sistema econômico colonizou o mundo, também a política passou a servi-lo subservientemente. Não seria o caso então de realizarmos que a promessa de libertação social via política é apenas mais uma, quiçá a mais sagaz mentira do capital no sentido de mais-dominar?

Karl Marx foi contundente em criticar a política enquanto instrumento revolucionário, apontando que, na verdade, ela é o meio sempre presente de o passado, isto é, a dominação da maioria pela minoria – da totalidade pela parcialidade – prosseguir futuro adentro. A revolução em Marx não se dá apenas com a superação do Estado, mas também com a da política enquanto tal. Para o filósofo alemão, agir no interior de formas políticas pertence à velha sociedade, à sociedade na qual a dominação de uns poucos sobre a maioria é regra.

É imperativo sair da perspectiva meramente política para poder ser verdadeiramente crítico em relação à dominação do capital sobre a sociedade segundo Marx. E isso porque ele anteviu de modo muito profundo que a dominação do capital se dá, imediatamente, por via econômica, e não política. A política, em troca, é o meio, o modo mediato de o capital dar continuidade à sua dominação econômica. Ser fiel à Marx, portanto, significa crer, como ele, que a dominação do capital não tem como ser totalmente destruída no nível político. A política, na verdade, é o bunker social do capital.

Embora a política sirva imediatamente o inimigo capital da sociedade, ela ainda é, contudo, o ringue onde interesses sociais e interesses econômicos se digladiam; uma arena relacional na qual sociedade e capital mantém ao menos uma linguagem em comum, ainda que de modo assimétrico, pois, politicamente falando, trata-se de um diálogo no qual a sociedade, de seu lado, externa sinceramente suas demandas diante do vilipêndio capitalista, ao passo que o capital, ao contrário, é sistematicamente parlapatão em fingir que ouve a sociedade e que moderará o seu ímpeto acumulador em função de algum bem-estar social.

Entretanto, por ainda ser o nível no qual sociedade e capital se comunicam – mesmo que este sempre vença as discussões -, Marx apontava uma dimensão subversiva da política contra o capital: a sua potencialidade negativa. Para o filósofo, a política é adequada para realizar as funções destrutivas da transformação social. Marx não tinha dúvida de que, nas mãos da sociedade, a política pode ser instrumento de crítica no sentido de minar a dominante ideologia capitalista. Também sabia, contudo, que enquanto a sociedade permanecer apenas no âmbito político o seu inimigo capitalista permanece livre e dominante na sua esfera excelente: a economia.

Como o domínio da parcialidade sobre a totalidade é produzido economicamente e mantido politicamente, enquanto age somente politicamente a sociedade permanece no campo de conforto do inimigo. A vitória da totalidade sobre a parcialidade, embora deva começar politica e destrutivamente, só se finalizará, contudo, se depois da destruição for abandonada a esfera política e iniciada uma construção econômica alternativa. A revolução se dará apenas quando os indivíduos sociais operarem econômica e diretamente uns com os outros distantes da liturgia com que o capital segue intermediando vitoriosamente todas as relações humanas.

A verdadeira revolução nunca será simplesmente uma revolução política. Antes de tudo, deve ser uma revolução social que ultrapasse os limites do sistema político que perpetua a exploração econômica capitalista. E isso porque a virtude das revoluções sociais está em minar a contradição entre a parcialidade e a totalidade. Já as revoluções meramente políticas apenas reproduzem a velha hierarquia da parcialidade sobre a totalidade, pois a política, desde que foi usucapida pelo capital, outra coisa não é senão a subjugação das necessidades da totalidade aos arbítrios da parcialidade.

Se para Marx uma revolução social restrita à política é um absurdo, um primeiro passo político, desde que negativo, na medida em que há a necessidade da destruição das formas vigentes, é fundamental. No entanto, tão logo o TNT político da totalidade cause as primeiras rachaduras no bunker da parcialidade, a totalidade deve desinvestir do expediente político e investir no econômico, preenchendo essas rachaduras com novas relações socioeconômicas até que o edifício minado rua por completo.

Essa revolução socioeconômica será a maior transformação positiva da história, na qual a política, contudo, tem a contribuir apenas com sua negatividade imediata e destrutiva. O que Marx ainda tem a nos ensinar é que negligenciar a dimensão socioeconômica e priorizar a dimensão política impossibilita a revolução que fará a parcialidade ser derrotada e absorvida pela totalidade porque tira da política o seu mais revolucionário fim, qual seja: ser apenas o meio de se iniciar a destruição do capital, do Estado e inclusive de si própria.

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Estado de mal-estar capital

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Efêmero e tenso ponto de equilíbrio entre as necessidades básicas das pessoas e os imperiosos interesses do capital encontrado no século XX, o Estado de bem-estar social foi a garantia de serviços públicos e proteção à população mediante a organização da economia; algo como uma visível luva social que vestiu a invisível, porém sempre larápia, mão capitalista. Todavia, nesse início de século XXI, já sentimos na carne que o bem-estar deixou de ser prioridade do Estado, que voltou a ser apenas aquilo que Marx bem disse no Manifesto Comunista: “o comitê executivo da burguesia”.

Por degradar sistematicamente as condições de vida daqueles que lhes vendem força de trabalho, o capitalismo da Belle Époque viu a classe trabalhadora se organizar ameaçadoramente. Porém, pelo fato de não viver sem os trabalhadores – pois é deles que extrai a sua mais-valia – o ímpeto capitalista teve de se refrear. Sem dizer da então presente experiência socialista soviética do início do século XX que obrigou o capitalismo a ao menos fingir que sobre a face da terra havia também as necessidades das pessoas. Do contrário, todas elas poderiam, digamos assim, optar pelo outro sistema econômico que, segundo Marx, superaria(rá) o capitalismo.

Portanto, durante um estratégico período o capital aceitou comprometer parte de seus ganhos com a sociedade que, não obstante, nunca deixou de explorar. O Estado de bem-estar, social cujo apogeu se deu nas décadas de 1960 e 1970 na Europa, com efeito, foi patrocinado pelo capital para que os trabalhadores tivessem o mínimo suficiente para não se revoltarem nem pensarem em Revolução. Com o oferecimento de saúde, educação e segurança públicas mais um punhado de seguridades sociais o capital anestesiou as massas exploradas da dor que provoca nelas.

Como, contudo, a lógica capitalista não pode se privar de aumentar incessantemente a exploração sobre a vida, o Estado de bem-estar social não tinha como durar. Os grandes e decisivos ataques contra o bem-estar social foram cometidos na década de 1980 por Margaret Thatcher e Ronald Reagan. A destruição violenta das organizações e dos direitos trabalhistas, árdua e historicamente conquistados, permitiu que a vida voltasse a ser escravizada pelo capital. O velho liberalismo, de roupa nova, agora neoliberalismo, reconduziu o Estado à sua prévia condição de bureau da burguesia.

O que vemos no Brasil desde o golpe de Estado de 2016 outra coisa não é que o carnaval macabro do neoliberalismo, que para não tolher em nada a sede de lucro do capital destrói, rápida e certeiramente, o público em benefício do privado. As atuais reformas trabalhista e da Previdência, desenhadas golpisticamente para os empresários comprometerem cada vez menos as suas mais-valias com aqueles que as produzem; a drástica redução de investimento público em segurança, saúde e educação, expressa no aumento da criminalidade, das filas do SUS e do sucateamento do sistema de ensino público; tudo isso e muito mais é o fim do Estado de bem-estar social tupiniquim que mal e porcamente foi rabiscado na terra brasilis.

Depois do curto recreio chamado Estrado de bem-estar social que tivemos no curso histórico do capitalismo, estamos de volta à rígida e degradante disciplina de um mundo no qual a economia, para usar a ideia do filósofo alemão Robert Kurz, vence a vida. A destruição neoliberal de quaisquer organizações capazes de fazer frente aos interesses espúrios do capital; a vitoriosa ideologia da classe média, que faz a classe dominada se esquecer de sua real condição e perder sua força revolucionária; enfim, o Estado violentamente usucapido pela classe dominante finalmente reifica o vertical projeto capitalista de um “Estado de mal-estar capital” – sendo que esse mal-estar, obviamente, recai sobre todos aqueles que, com suas próprias vidas, produzem o bem-estar e o mais-valor do capital.

Por mais que o social esteja derrotado pelo capital, não podemos esquecer que no passado a consciência da classe trabalhadora, as grandes greves e o fantasma socialista foram as forças reais que obrigaram o capital a se conter e a devolver à sociedade pelo menos algo daquilo que dela furtava. Contra o Estado de mal-estar capital que se erige, a classe dominada podem muito bem repetir aqueles passos: reconhecendo-se como tal, e não como classe média; lembrando a classe dominante, através de grandes greves, que ela não é nada sem aqueles de quem compra a força de trabalho; e, por fim, mantendo o socialismo no horizonte, se não como realidade, ao menos como ideia ameaçadora.

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O pior pós-capitalismo

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A expressão “pós-capitalismo”, embora seja bastante usada para se referir ao sistema econômico que se seguirá ao capitalismo, ainda é negativa, no sentido de não haver certeza alguma acerca do próximo modus economicus que sistematizará, materialmente, as relações humanas. O pós-capitalismo ainda é apenas um imenso significante vazio, cuja única virtude pseudopositiva quiçá seja indicar que haverá um após em relação ao capitalismo, que, no entanto, não sabemos qual.

Em respeito aos sistemas econômicos, pelo menos os que precederam o capitalismo, sabemos que são históricos e finitos. São, com efeito, sistematizações determinadas dos modos de produção e de subsistência materiais de sociedades humanas outrossim determinadas. Mudando-se a conjuntura social, muda-se consequentemente a forma econômica mediante a qual a sociedade subsiste. E é essa (cons)ciência que nos permite pressupor que o capitalismo, assim como o escravismo e o feudalismo, antecessores seus, morrerá e dará espaço a um novo sistema econômico.

Marx foi o pensador que talvez mais fortemente tenha acreditado nisso, profetizando que o capitalismo ruiria inevitavelmente devido às suas próprias contradições para ser sucedido pelo socialismo, e então pelo comunismo, tanto quanto a sua ciência – autonomeada não-utópica – pôde prescrever. Entretanto, depois de duas experiências históricas marxistas dignas de nota: os comunismos soviético e cubano; aquele, já encerrado, e este, sendo desmontado diante dos nossos olhos; hoje em dia, infelizmente, o marxismo serve muito mais como um farol simbólico do que como o GPS que indica o rumo econômico preciso que nossas sociedades tomarão.

O conceito de pós-capitalismo, em sua abertura indeterminada, de certa forma é um antídoto à febre marxista de prever o futuro em seus mínimos detalhes. Agora, pelo simples fato de indicar um após em relação ao capitalismo, a ideia de pós-capitalismo guarda um quê de Marx pelo simples fato de contar com o fim do capitalismo. Mantendo essa – saudável – “esperança” marxiana, o conceito de pós-capitalismo, no entanto, não deveria nos permitir pressupor nada além de duas opções: ou um após melhor do que o capitalismo, ou um pior.

Todavia, uma terceira opção não pode ser descartada . E se o capitalismo for um sistema econômico sui generis, e, mesmo depois de morto, não dê lugar a nenhum outro? E se não houver nada melhor nem pior do que o próprio capitalismo depois dele, mas apenas a presença eterna de seu cadáver a assombrar morbidamente as nossas sociedades? Para ilustrar essa – terrível – ideia, nada melhor do que o conceito de zumbi. Com efeito, o zumbi é o ser que já morreu mas que, de certo modo, permanece meio-vivo enquanto suga a vida do que vive. Em modo zumbi, o capitalismo pode permanecer como o sistema econômico morto-vivo.

E se o pós-capitalismo, na mais realista das opções, no final das contas, for unicamente o capitalismo zumbi, ou seja, o capitalismo oficialmente morto, mas, sinistra e espectralmente, sugador inarredável e paradigmático da vida das sociedades? Se esse quadro parece demasiado sinistro, isso se deve menos a qualquer pessimismo do que a característica genética e sempiterna do próprio capitalismo de superar e destruir qualquer outra forma de organização econômica.

Outra possibilidade pós-capitalista no mesmo sentido da do zumbi é a fantasmática: o capitalismo enquanto alma penada; enquanto assombração insistente; mantendo-nos aprisionados a ele simplesmente pelo ruído fantasmagórico do arrastar de suas correntes, as mesmas com que até o presente momento nos agrilhoa. Seriam esses os piores pós-capitalismos, o capitalismo zumbi ou o fantasmagórico, que nunca desaparecem completamente, mas sobrevivem indefinidamente mediante seus restos putrefatos ou espectrais?

Pelo andar da carroça capitalista até aqui, não temos motivos para não esperar o pior do capitalismo; sendo esse pior, obviamente, a sua não desaparição das vidas das nossas sociedades. Entretanto, assim como nos filmes de ficção os sobreviventes de apocalipses zumbis se livram dos mortos-vivos destruindo o que resta de vivo nos seus cérebros, assim também devemos estar prontos para atacar o resto vivo do capitalismo assim que morto. E se a mais promissora arma que ainda temos para destruir o cérebro capitalista zumbi for mesmo as ideias do cérebro de Marx, que, até hoje, não só sustentam a morte total do capitalismo, como principalmente preveem um após melhor?

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Ainda é possível uma vitória da vida sobre a economia?

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Para entender a lógica do governo golpista e ilegítimo do Brasil em respeito a tudo o que ele está fazendo/cometendo contra o seu povo, e, ademais, a lógica neoliberal per se, nada melhor do que o título do texto do filósofo alemão Robert Kurz: “A vitória da economia sobre a vida”. Com efeito, é disso que se trata a vertical e imbatível priorização dos interesses econômicos a despeito de quaisquer outros: políticos, sociais, culturais, ecológicos, etc. Se a economia sempre foi determinante na vida das sociedades, e, consequentemente, na dos indivíduos que as compõem, depois de alguns poucos séculos, paramentada com a sua veste história capitalista, a economia reina tiranicamente sobre tudo e todos.

Kurz, em um outro texto seu chamado “A falta de autonomia do Estado e os limites da política”, apresenta de modo muito direto o empecilho indesejável que o Estado, mais especificamente o Estado de bem-estar social é para os propósitos do capital. Embora o capitalismo, em seu nascimento, tenha precisado dos Estados Nacionais – suas estradas, portos, forças militares, leis, etc. – para se alavancar, no seu desenvolvimento, melhor dizendo, na sua globalização, no entanto, os Estados Nacionais findaram como suas novas pedras no caminho. Não à toa, a neoliberália tem por lugar-comum o discurso do Estado mínimo; em termos neoliberais: o Estado que interfere minimamente – que, com sorte, não interfere – nos projetos do capital.

No que tange os cidadãos desses Estados Nacionais – indesejados pela economia capitalista global -, a saúde, a educação, a segurança e toda a sorte de direitos que receberam durante algum tempo do Estado de bem-estar social – e isso para que as massas fossem socialmente contidas, controladas, em suma, entretidas democraticamente para não interferirem decisivamente nos sórdidos movimentos do capital – a estes cidadãos resta engolir “A vitória da economia sobre a vida”, isto é, aceitar o fim do Estado enquanto amortizador/compensador da ignomínia capitalista.

O furto de direitos que nós, brasileiros, estamos sofrendo por parte do governo ilegítimo é a reificação da forma neoliberal que o Estado precisa assumir para não atrapalhar os movimentos do capital em sua forma global. “Esqueçam aquele Estado que se compromete com o socius” – diz-nos secamente o neoliberalismo. “Doravante, saúde, educação, segurança e tudo mais o que precisarem, tratem de vocês mesmos, reles cidadãos, de conseguirem, pois o capital não pode mais perder tempo, quer dizer, lucros sustentando vocês” – completa verticalmente.

Estamos, nós, cidadãos cativos dos nossos Estados Nacionais, definitivamente perdidos e irremediavelmente derrotados pela economia? Aparentemente sim, mas não absolutamente. Por mais que o capitalismo, atualmente, viceje melhor distante de seu velho bureau Estatal Nacional, a democracia ainda lhe é fundamental. Por isso, e talvez somente por isso os Estados Nacionais democráticos ainda não são desinvestidos completamente; são, aliás, mantidos e impostos, mundial e belicamente, como faz o mais capitalista dos Estados Nacionais, os EUA. E uma vez que o capitalismo, até aqui, não pôde prescindir da democracia (moderna/burguesa/representativa) pra se legitimar, e uma vez que a democracia envolve os cidadãos, eis aí a via com que estes ainda podem interferir nos planos daquele.

Um corpo de cidadãos, Estado Nacional e Capital formam o ser histórico moderno par excellence. Entretanto, por mais que o capital esteja vencendo os dois primeiros – melhor dizendo, sequestrando, minimizando o segundo contra os primeiros -, todas as três as instâncias ainda são constituintes essenciais da equação histórica que atende pelo nome de Sociedade Moderna. Outro alemão, o filósofo Jürgen Habermas, no texto “A nova obscuridade”, ressalta a potência revolucionária que os cidadãos ainda têm justamente dentro do Estado democrático imprescindível ao capitalismo. Superando a aparente ingenuidade da proposta de Habermas, ele aconselha o estabelecimento de laços solidários e comunicativos positivos entre os cidadãos, pois isso, e somente isso!, é capaz de fazer com que o Estado não seja tiranizado exclusivamente pelo capital.

O que Habermas propõe é que seja estabelecida pelos/entre os cidadãos, organizados concretamente em esferas subculturais, uma autogestão em resposta ao capital; uma nova organização dos poderes capaz de fazer as vezes do perdido Estado de bem-estar social. O filósofo chama essa nova organização de “sociedade da comunicação”. E como, conforme o provérbio popular, “quem não se comunica, se trumbica”, a sociedade fundamentada na comunicação pode reequacionar a hierarquia do capital sobre a vida, não somente tornando tácito a todos os cidadãos que é mais importante a eles, ou seja, à vida, com principalmente comunicando globalmente os crimes desumanos que comete o capital quando ele não é controlado, contido, como, por exemplo, o foi durante a valência do falecido Estado de bem-estar social.

Nesse sentido, a incontinente sordidez capitalista aclarada, por exemplo, na íntima e criminosa relação entre empresários e políticos no Brasil, apesar de ser um dos males que os cidadãos devem combater, deve, por isso mesmo, servir de carranca insuportável às formações e decisões políticas populares. Se as vilanias político-econômicas como as que estamos conhecendo nos seus mais abjetosdetalhes não servirem ao menos para reunir, política e solidariamente, os cidadãos contra elas, aí sim Kurz terá razão: a economia terá obtido vitória absoluta contra a vida.

Agora, como podem os cidadãos estabelecerem entre/para si uma autogestão democrático-comunicativa em função da vida como um todo e em detrimento da determinação meramente econômica da vida? Minha aposta inicial – em contribuição à proposta habermasiana – é a reconversão dos cidadãos, transformados pela economia em simples consumidores, naquilo que eles nunca deveriam ter deixado de ser, qual seja: indivíduos que constituem, eles mesmos, um Estado, para desse modo usufruírem de direitos civis e políticos. Com efeito, os cidadãos abandonarem o papel de reles consumidores – que o “estado capitalista” os obrigou a encenar para a sua própria bonança – outra coisa não significa, se não o mais certeiro ataque contra esse estado inimigo da vida, ao menos o mais à mão.

Em suma, para que a vida vença a economia dentro de um Estado Nacional, a condição de cidadão não deve mais servir, como vem sendo feito pelos próprios “cidadãos”, para que uns indivíduos se sobrelevem em relação a outros mediante ganhos particulares. Ao contrário, uma cidadania revolucionária em termos habermasianos, isto é, solidária e que se comunique em prol da vida – enfim, que comunique vida! – deve ser aquela que se encontra no pleno gozo de direitos comuns e públicos que permitam, sobretudo comprometam os cidadãos a participarem ativamente da vida política, a fim de que esta não seja mais fraca e derrotada diante do ímpeto da economia, este sim, conhecido de todos.

Destacado

Falácias humanitárias

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Há um ano, quando do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, paralelamente às manifestações populares propriamente políticas contra o democraticídio, houve um evento no Rio de Janeiro chamado “Ioga contra o golpe”. Nada contra as tradicionais disciplinas físicas e mentais indianas, que fazem bem tanto ao corpo quanto à mente dos seus praticantes. Agora, acreditar que cuidar do próprio umbigo físico e metafísico faria qualquer verão contra o inverno golpista que abriu a “era do gelo” ao Estado de bem-estar social brasileiro, convenhamos, é mais do que ingenuidade: é alienação ipsis litteris. E a direita golpista só tem a agradecer às ações “políticas” dos “yoggers contra o golpe”.

Está sendo divulgado um vídeo com o comediante Marcelo Adnet no qual ele convida os cariocas para um evento musical na Fundição Progresso chamado “Rock por Aleppo”, cujo objetivo é destinar 100% do valor arrecadado no festival às crianças afetadas pela guerra civil síria. Até aí nada de absurdo, pois, desde o “We are the world” do pedófilo Michael Jackson, “pela fome na África”, em 1985, assim caminha o humanitário. O que, entretanto, denuncia a imperdoável alienação do “Rock por Aleppo” é o restante do convite de Adnet, que, com seu sorriso falso à la Jim Carrey, diz o seguinte: “Venha se divertir e ao mesmo tempo ajudar as crianças da Síria!” Em outras palavras, “o máscara” tupiniquim convida-nos para assistirmos aos nossos músicos prediletos, bebermos nossas cervejas geladinhas, dançarmos alegremente junto de nossos amigos, e, ainda assim, acreditarmos que estamos fazendo alguma diferença contra o crime quiçá mais hediondo da atualidade: a “explosão” de crianças inocentes em função uma guerra feita por adultos culpados de poder.

O humanitarismo, decerto, chega até nós com muitas e distintas máscaras. Por trás de algumas delas, no entanto, não há nada de humanitário, apenas uma performance vazia, ou, o que pode ser pior, um egoísmo incapaz de se assumir, a não ser sob o espetaculoso disfarce do altruísmo. O filósofo Slavoj Žižek nunca teve papas na língua para denunciar que o real objetivo dos ricos países do primeiro mundo que dispendem vultuosas ajudas humanitárias aos pobres países do terceiro mundo é mitigar a culpa oriunda da consciência de que são precisamente as suas abundantes riquezas que causam, por mil vieses capitalistas, as aviltantes pobrezas em cada vez mais cantos do mundo. Basta estes afortunados países mandarem algumas migalhas aos miseráveis – que só são miseráveis relativamente às fortunas deles – e, voilà, os ricos podem fruir de suas bonanças mais tranquilamente.

Esse expediente dos países ricos de enviarem alguns trocados aos distantes necessitados pobres, com o objetivo de dirimir algo dos males do capitalismo, e que se apresenta sob o manto cada vez mais canastrão do humanitarismo, merece um neologismo só seu, que me arrisco aqui a chamar de “humanetarismo”: um humanitarismo meramente monetário, baseado no envio de algum dinheiro a quem precisa, desde que quem o envie nada mais precise fazer. Claro, o que deveria ser feito, o que realmente resolveria os problemas da miséria e da radical desigualdade socioeconômica mundial, seria o deliberado desinvestimento nesse sistema – capitalista – produtor de desigualdades radicais e de misérias extremas em nome de riquezas cada vez mais astronômicas concentradas em menos mãos.

Todavia, o exemplo do “Rock por Aleppo” mostra que é mais do que apenas enviar algum dinheiro aos desendinheirados o que esse “humanitarismo” está planejando. Ao mesmo tempo que pretende destinar alguns tostões às crianças vitimadas pela guerra síria – movimento no entanto absolutamente paliativo, pois não toca na causa do problema, apenas a remedia -, esse “humanitarismo” quer fazer isso mediante o prazer hedonista dos pretensos “humanitários”; via boa música, boa iluminação, bom ar-condicionado, boas bebidas, tudo isso rodeado de pessoas bonitas e bem vestidas dentro de um espaço devidamente gentrificado e, o que é mais importante, bem distante do real problema que imaginam resolver. Dessa visada, o “humanetarismo” diz pouco desse humanitarismo tacitamente hedonista. Mais apropriado seria outro neologismo, que sou tentado a chamar de “hedonitarismo”: o humanitarismo que se dá mediante o prazer hedonista de quem pretende agir humanitariamente.

O verdadeiramente hedonista e duvidosamente humanitário “Rock por Aleppo”, que nada faz para que adultos culpados deixem de explodir crianças inocentes, apenas pretende enviar “lotes de Band-aid” às feridas delas, pode ser colocado no mesmo saco de alienação do verdadeiramente egoísta e vergonhosamente político “Ioga contra o golpe”, que, através do alongamento muscular e do “equilíbrio do eu alienado”, acreditou que faria alguma diferença contra o democraticídio e o roubo dos direitos sociais que teve e está tendo lugar no Brasil. A Ioga não é uma religião, e sim uma “filosofia”. Entretanto, no caso do “Ioga contra o golpe”, cabe a ele a crítica de Marx segundo a qual “a religião é o ópio do povo”. Só que, nesse caso, em vez de rezar contra os males propriamente humanos do mundo, alonga-se o corpo e relaxa-se a mente; no caso do “Rock por Aleppo”, ouve-se boa música, sacode-se o corpo, bebe-se “bons drinques”, e, para muitos, volta-se desse “hedonitarismo” no ar refrigerado do Uber.

Insisto nessas aberrações que aqui chamo de “humanetarismo” e “hedonitarismo” sobretudo em respeito aos verdadeiros humanitaristas, por exemplo, os do Médicos sem fronteiras e os do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, notadamente aqueles indivíduos que, mais do que apenas dinheiro, levam os seus corpos e tempos a quem deles necessita urgentemente, não para obterem prazeres egoístas e consumistas, visto que estar presente em campos de guerra ou em áreas de catástrofes humanas e ou naturais é qualquer coisa menos ajudar o outro “curtindo a vida”. Os verdadeiros humanitários são aqueles que sabem que a miséria do outro só será realmente reduzida se o conforto deles for realmente comprometido: reduzido na medida do desconforto desse outro. Esse é o humanitarismo real. Envergonhem-se todos os que pensam fazer isso regados a boa música e cerveja ou alongando o próprio umbigo.

A vilania do capitalismo não é patente apenas por produzir sistematicamente miséria e guerras para melhor se manter e crescer. Seu mau também se expressa nessas “mercadorias” que aqui chamei de “humanetarismo” e de “hedonitarismo”, distribuídos worldwide com o rótulo falso do humanitarismo; mas que, como qualquer iPhone ou Uber, “ajuda” necessariamente apenas os próprios capitalistas, e, contingentemente, os indivíduos que os consomem alienadamente. Não, “yoggers contra o golpe” e “rockers por Aleppo”, a potência política e o senso humanitário de vocês, longe de serem a mais pálida solução a qualquer um dos graves problemas atuais, são, no mínimo, a manutenção deles. Mais grave ainda: o seu agravamento.

Fazer história na era da Pós-história

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Vivemos em uma época na qual, como já disse Marx no Manifesto Comunista, “tudo o que é sólido se desmancha no ar”. E a história não escapa a esse destino. Até mesmo o Holocausto, historicizado como o maior crime de que a humanidade foi capaz, pouco mais de meio século depois começa ter essa sua gravidade desintegrada. Basta ver a atual ascensão apologética do neonazismo no mundo. Estamos condenados a ser, como se diz, vítimas das circunstâncias, ou haverá espaço para sermos novamente senhores da história?

Nossa época não só evapora a história consolidada, como também impede que se historicize os novos acontecimentos. Um exemplo disso é o golpe de estado que se deu no Brasil de 2016, que ao mesmo tempo e irredutivelmente significa, para uns, uma “Ponte para o Futuro”; para outros, uma “pinguela” do presente a ele mesmo; e para outros ainda, um tobogã indigesto para o passado. Interpretações incompatíveis que não constituem história, apenas engrossam o falatório perspectivista pós-moderno cujo vício obsceno, contudo, é manter indefinida a univocidade dos fatos.

Superar a impossibilidade de se historicizar fenômenos presentes, portanto, deve trilhar um caminho menos relativista; quiçá nada relativista. Comecemos, portanto, pelo que hoje em dia é universalmente inquestionável: o império do capital que a tudo e a todos engloba e desmancha inequivocamente. A dificuldade de mantermos sólida a história, bem como a de a fazermos está, em primeiro lugar, no próprio capitalismo. Alguém lembra do que disse Francis Fukuyama na década de 1980, que “o capitalismo global é o fim da história”?

Como historicizar justamente em uma era que sustenta ter superado a história; ou, em termos mais precisos, ser pós-histórica? Entretanto, em que sentido o capitalismo é pós-histórico? Slavoj Žižek, em sua obra “Às portas da revolução”, responde essa pergunta dizendo que o capitalismo é “um movimento que nunca atinge a completude … e que sempre posterga o acerto de contas final”. Ou seja, não faz história; apenas repete a si mesmo; leva indefinidamente adiante o presente no qual existe, carregando inconclusivamente consigo todo resto.

A fórmula capitalista par excellence, D-M-D (Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro) exemplifica muito bem a pós-historicidade genética do capital. Formuladas capitalisticamente, não são as muitas e diferentes coisas, e até mesmo os fatos, que são intermediados pelo dinheiro. A função deles, e de tudo o que se possa imaginar, ao contrário, é apenas intermediar o movimento do capital, que é, e deve ser o início e o fim de todas as “histórias”. O que surge com o capitalismo, portanto, é sempre e apenas mais do mesmo. E esse excesso de si atende pelo nome de mais-valia: a mudança apenas quantitativa daquilo que deu origem ao processo, qual seja, o próprio capital. E história do mesmo é tudo menos história.

O nó que impede os fenômenos de serem historicizados nessa conjuntura pós-histórica imposta pelo capitalismo global se forma porque, diante da voracidade do capital, aponta Žižek, “o presente é vivenciado como uma confusa sucessão de fragmentos que se evaporam rapidamente de nossa memória”. Novamente o Marx do Manifesto: “tudo o que é sólido se desmancha no ar”.

“O problema de nossa era pós-histórica”, prossegue Žižek, “não é que não conseguimos nos lembrar do passado … mas sim que não conseguimos nos recordar do próprio presente – não conseguimos historicizá-lo, narrá-lo apropriadamente”. Em relação a qualquer fenômeno, incontáveis causas podem ser elencadas e articuladas de várias maneiras; pode-se investir inclusive o passado inteiro. Não obstante, é o presente na era do capital que não dá suporte a esse tipo de trabalho, que, afinal de contas, é o da história. Desmancha-o! O paradigma capitalista mantém sólido somente a si mesmo.

De modo que a única história que, sem erro, pode ser feita dentro do capitalismo é a seguinte: as causas dos fenômenos se devem às necessidades do capital porque as suas consequências devem satisfazer as necessidades do capital. Simples e solipsista assim! A fórmula mágica do capitalismo, D-M-D, onde o segundo “D” é o mesmo que o primeiro, todavia acrescido de uma certa mais-valia, mutatis mutandis, é a mesma do pós-historicismo. Adaptada ela fica assim: C-F-C (Capital-Fenômeno-Capital), com o capitalismo, obviamente, mais-valorizando-se através dos fenômenos. Entretanto, desvalorizando-os, desmanchando-os.

Como então superar o pós-historicismo estrutural da era capitalista que, se a priori impede que se constitua história, consequentemente furta a possibilidade de que ela seja revolucionada? Devemo resistir e historicizar mesmo assim, malgrado o capitalismo? Žižek, contudo, adverte: “não devemos subestimar a capacidade que o capitalismo tem de colonizar domínios que lhe opõe resistência”. A armadilha de se fazer história no domínio do pós-histórico é que podemos facilmente terminar com histórias que explicam mais os próprios “historiadores” do que os fatos objetivos de que inicialmente pretenderam tratar. E esse ardil, não nos iludamos, é o próprio pós-historicismo.

Žižek, no entanto, aponta um caminho promissor para se driblar a impossibilidade histórica que o capitalismo global impõe, lembrando da hegeliana máxima antievolucionista de Marx, “a anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”. Com ela, o autor pretende reavivar a ideia de que história se faz, não exatamente do presente para o passado, como se se tratasse simplesmente de uma cronologia retrospectiva, mas, antes, das formas mais evoluídas às formas menos evoluídas. Retrospectivamente, sim. Mas de modo lógico; e não cronológico.

E uma vez que, como descreve Žižek, vivemos na era do capitalismo global digital virtual pós-industrial, ou seja, a sua forma mais evoluída, temos nas mãos, portanto, a forma perfeita sobre a qual aplicar a chave lógica e libertar a possibilidade de se fazer história trancada pelo capitalismo global. A partir desse momento, no entanto, o filósofo reaciona a teoria marxista e a pragmática leninista, bem como aciona as suas psicanálise cinematográfica e filosofia anedótica para seguir lidando com a questão.

No que eu lamento ser um afastamento pós-moderno do problema, entretanto, Žižek relembra de uma campanha publicitária de uma selftrade cujo anúncio trazia a imagem da foice e o martelo comunistas feitos em ouro e cravejados de diamantes, encimando o pós-verdadeiro slogan: “E se todo mundo lucrasse com o mercado de ações?”. Sua crítica jocosa à vilania capitalista, cuja pós-historicidade visa justamente apagar, desmanchar a verdadeira história, qual seja, que o capitalismo existe somente se cada vez menos gente lucrar, deu-me, não obstante, a pista da trilha que, creio, o filósofo esloveno deveria ter seguido.

A metafísica de publicitário com a qual Žižek se ocupou, sugeriu-me que, em vez de nos voltarmos contra o grilhão pós-histórico próprio do capitalismo, devemos, em troca, levá-lo absolutamente a sério, mais do que o próprio capitalismo quer que o façamos. E levar o capitalismo a sério é começar pela sua fórmula essencial: D-M-D. Todavia, como o objetivo aqui é a superação do seu pós-historicismo, prosseguiremos mediante a adaptação que dela fizemos: C-F-C (Capitalismo-Fenômeno-Capitalismo).

Ora, se a única “história” que é possível fazer é a do repetitivo, porém mais-valorativo movimento capitalista, e se isso sintetiza tudo, talvez seja essa sintetização mesma a dificuldade que devamos enfrentar. Abramos então a fórmula pós-histórica C-F-C (Capitalismo-Fenômeno-Capitalismo). Seu modo extenso, portanto, é: C-F1-C-F2-C-F3-C … (Cap.-Fen.1-Cap.-Fen.2-Cap.-Fen.3-Capitalismo …).

A chave lógica a ser aplicada é a seguinte: abstrair estrategicamente o “C”, isto é, o capitalismo da sequência. O que resta é, em primeiro lugar, uma sequência de fatos objetivos – objetos concretos à história; e, em segundo e mais importante lugar, um excedente, precisamente a mais-valia que o “C” busca para si mesmo em cada etapa do processo. Excedente esse que, por articular os fatos determinados, afirma-os. Ainda que os desmanche imediata e necessariamente, solidifica-os nos ciclos aos quais eles pertencem. Eis o calcanhar de Aquiles do pós-histórico capitalista: não poder prescindir aqui, daquilo que, ali, ele desmancha.

Talvez só assim seja possível fazer história na era do pós-histórico: historicizando o que é desmanchado sistematicamente. Não a despeito do capitalismo, mas justamente através dele, usando-se subversivamente a sua própria lógica. Assim como não é a mera sequência cronológica de fenômenos que faz história, mas sim a articulação lógica deles, de modo que produzam sentido, assim também, na era do capital, não são os fenômenos em si mesmos que fazem história, mas o entroncamento deles em função da lógica da mais-valia capitalista, que a tudo concatena, inescapável e solidamente.

Ocupemos a nós mesmos!

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As muitas ocupações de escolas e universidades brasileiras seguem firmes e fortes contra a péssima representatividade política que o povo está recebendo. Porém, isso é só parte da luta. A jovem máxima “Ocupa Tudo”, para ser verdadeiramente revolucionária, não deve deixar de fora desse “tudo” a exploração econômica que sistemática e sorrateiramente constitui aquela má representatividade. Ocupemos a nós mesmos! E economicamente.

As ocupações restauram intempestivamente algo da antiga democracia direta grega, na qual é o “demos” que atua a sua “cracia”, sem intermediários. Prática que no entanto foi soterrada pela erva-daninha da democracia representativa, posta em prática pela burguesia e para a burguesia. E é contra esses beneficiários burgueses, os únicos que são devidamente representados por aqueles que na verdade deveriam representar o povo, que as ocupações devem também contemplar. Ora, pouco adianta resistir abertamente aos desígnios dos maus políticos aqui, se, ali, alienadamente, segue-se enchendo os bolsos dos burgueses, os grandes e verdadeiros responsáveis pela má representatividade política.

Se, como dizem, a política apenas faz o trabalho sujo da economia, a ocupação deve ser também e principalmente econômica-estrutural, e não somente política-espacial. Do contrário, a luta que deixa de ser lutada é justamente aquela na qual o inimigo mais oprime. Políticos, como sabemos, vão e vêm. O poder do capital, em contrapartida, permanece e cresce nos bastidores do teatro de horrores político que ele mesmo patrocina, tanto para o povo se alienar do verdadeiro inimigo, como principalmente para que este algoz siga aumentando o seu sórdido poder discretamente.

“Ocupar Tudo”, portanto, é o povo ocupar também o lugar econômico mui ocupado por esse inimigo burguês que, antes, durante e depois de quaisquer manifestações políticas, segue enriquecendo com o mundo de mercadorias que nos oferece em todos os lugares e ocasiões. Mundo  mercadológico que seguimos consumindo ingenuamente, como se isso não fosse precisamente o cerne do problema. Como, porém, ocupar a nós mesmos economicamente? As ocupações políticas podem dar o caminho das pedras.

“Encher um espaço de lugar e de tempo” é uma bela definição de “ocupar”. Todavia, assaz abstrata para o que está se querendo propor aqui. Outra definição, bem mais concreta e pontualmente eficiente no sentido de ocupar-nos economicamente uns aos outros, diz que “ocupar” é: “dar trabalho; empregar”. Voilà! Eis a ocupação com a qual também devemos nos ocupar para enfrentar o inimigo, não em sua aparência política, mas em sua essência econômica. Como, entretanto, ocuparmos economicamente os nossos iguais para com isso enfraquecermos, quiçá falirmos o inimigo burguês que até aqui nos ocupa para o seu próprio fortalecimento?

O primeiro passo, o mais acessível, é a já conhecida “economia colaborativa”, ou seja, a esfera de produção, distribuição e consumo de bens e serviços que dispensa as grandes corporações e prioriza aquilo que os próprios indivíduos têm a oferecer uns aos outros. Pragmaticamente, é preferir a quentinha que a vizinha tem para vender ao BigMac; a costureira da esquina à loja Zara; e por aí vai. Se é para dar os nossos míseros e explorados tostões a alguém, que seja a nós mesmos, e não àqueles que nos exploram, ora bolas!

Este primeiro passo, que  nos leva a comprar coisas uns dos outros, não obstante mantém vivo algo essencial ao inimigo: o dinheiro. Um segundo e mais virtuoso passo, que com certeza pode completar a ocupação, por parte do povo, do belvedere da elite econômica é o escambo, ou seja, a troca direta de bens e serviços entre os próprios indivíduos, sem o intermédio vicioso do dinheiro. Em outras palavras, e usando os exemplos anteriores, trata-se de a vizinha trocar as suas quentinhas pela calça produzida pela costureira da esquina, e assim por diante.

Isso é ocupar economicamente os nossos iguais: dar trabalho a eles, empregá-los. Não para explorá-los, obviamente, uma vez que o escambo aqui proposto visa justamente eliminar os exploradores burgueses das relações econômicas – com a “mais-valia” de golpear os maus políticos que os representam. Sem dizer que, propondo-nos à troca com nossos iguais, cada um de nós tem também de ocupar-se em produzir algo que seja útil a esses iguais, e tão somente a estes. Restaurar o escambo é quiçá a maior rasteira econômica que os indivíduos podem no verdadeiro inimigo, e, de quebra, obsoletar a íntima & vil relação entre o capital e os seus representantes políticos.

O desafio, obviamente, é imenso. Afinal, como trocar quentinhas ou alfaiatarias por aluguel na imobiliária? Como bens ou serviços produzidos diretamente pelas nossas próprias mãos pagarão a passagem do ônibus? Para destrinchar o inimigo econômico-burguês, façamos como Jack, o estripador, façamo-lo por partes. Comecemos por estabelecer algumas relações de escambo com aqueles que nos são próximos e dispostos a tal. Hoje em dia há muitos aplicativos que podem ajudar nessa experiência. Não devemos esquecer de que também é da natureza humana se comprazer com trocar. Durante milênios foi assim. Pelo menos até o capitalismo convencer a todos de que o seu capital deveria intermediar todas as trocas.

Se cada um de nós conseguir fazer com que pelo menos 10% de nossas compras sejam substituídas por escambo, o inimigo-mor será enfraquecido nessa mesma proporção. E, quanto mais não seja, é muito mais fácil aumentar qualquer experiência, de 10 para 20%, e assim sucessivamente, do que pretender começá-la já nos seus 100%. Por partes e com calma; e também com prazer, repete Jack.

Certamente demorará para que a Apple aceite uma torta de maçã ou uma poesia em troca de um iPhone. Contudo, com o tempo, ocupando-nos a nós mesmos em função de nossa sobrevivência e liberdade, e sobretudo desocupando subversivamente os nossos algozes econômicos-políticos da intermediação de tudo o que precisamos para viver, poderemos descobrir que os smartphones deles só valem mais do que as nossas tortas de maçã ou poemas porque assim eles nos fizeram acreditar. Essa ideia aliás é a mercadoria excelente deles; se a desocuparmos, definitiva e coletivamente, todas as outras perdem o valor.

O socialistas ortodoxos de plantão dirão que é ingenuidade acreditar que o caminho da revolução é tão simples. Mais ainda, que não podemos dispensar a velha, todavia respeitável profecia marxista. Nada contra as Bíblias dos revolucionários, muito pelo contrário. Que elas sigam angariando fiéis até completarem a sua mui aguardada revolução. Afinal, a liberdade que elas prometem é mais que necessária. Porém, a candente novidade e promissora efetividade das ocupações nos sugerem, não um atalho, mas um desvio em relação às velhas teorias.

O “Ocupa Tudo” deve: ocupar os espaços onde a representatividade política não se efetua; tomar nas mãos a representação das próprias demandas; perceber que enquanto a economia estiver alienada dos indivíduos ela só produzirá má representatividade política; experimentar-se e fortalecer-se em relações econômicas não alienadas, baseadas em trocas diretas, nas quais o valor não é mais um imperativo extrínseco, mas propriedade daqueles que trocam entre si; e, por fim, fazer essa experiência – que não é nova, apenas obsoletada estrategicamente pelo capitalismo – crescer até ocupar totalmente a vida das pessoas.

Muito embora seja fundamental começar ocupando os espaços que os nossos representantes políticos não estão ocupando conforme prometeram ao se elegerem par tal, é só quando os indivíduos ocuparem a si mesmos, não só política, mas sobretudo economicamente, sem deixar espaço livre para qualquer mediação oportunista. Só então a revolução, senão estará dada, ao menos terá sido devidamente iniciada.

Portanto, ocupemos a nós mesmos. Descubramos o que podemos fazer que sirva somente a nós, e de forma alguma ao sistema que só quer nos explorar e oprimir. Reocupemos o sentido grego, e há muito esquecido, de “oikonomia”: “administração de uma casa, lar”. Desocupemos a macroeconomia! Só assim a má representatividade política será desocupada da sua vil participação nas nossa vidas.

O Estado contra o povo. E este?

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O Estado brasileiro está em guerra contra o povo! Primeiramente, o golpe parlamentar dado por um bando de criminosos cínicos, e, por último, a PEC 241 deles, seguida da tentativa de impedir manifestações e greves contrária a esse mesmo Estado golpista, sugerem que o “PMSDB”, o Frankenstein oligárquico que tomou o país de assalto, seja o grande inimigo. Só que não! Tais políticos golpistas são só a metralhadora giratória do verdadeiro inimigo. Quem é ele, na verdade? O que está fazendo o povo atacado? E se não está, por que essa passividade diante de tamanha violência?

Se, como a práxis liberal não faz questão de esconder, a política apenas faz o trabalho sujo da economia, o monstro que está em guerra contra o povo, portanto, é ninguém menos que o 1% da população que detém 50% da riqueza, como bem nomearam e popularizaram os 99% restantes e manifestantes do  Ocuppy Wall Street de 2011. Sim, é essa minoria, dona espúria de pelo menos metade da riqueza, e que quer mais ainda – desejo sem o qual capitalismo algum se sustenta -, que está em guerra contra o povo.

“O Capital do Século XXI”, livro que Thomas Piketty lançou em 2013, traz informações suficientes para vermos que, atualmente, a concentração de riqueza nas mãos de poucos é maior do que na Belle Époque, período entre o quarto final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial no qual se observou a até então a maior desigualdade socioeconômica da história da humanidade. Cínico mesmo é aquela época seguir sendo chamada de bela. “Belle” para quem, cara pálida&rica? Outrossim cínico é o programa de guerra dos golpistas brasileiros, o “Ponte para o Futuro”, que, entretanto, ao povo outra coisa não diz senão aquele verso de “God Save the Queen”, do Sex Pistols: “No future for you”.

Com efeito, o 1% está mais poderoso – e ávido – do que nunca! E é ele que, na verdade, dispara golpes, PECs, partidos políticos e juízes entogados contra os 99% restantes. De modo que, apesar de ser uma difícil tarefa, não devemos gastar toda a nossa revolta contra os políticos e juízes espetacularmente golpistas, visto que a atual e forte investida destes contra o povo é só o projeto/projétil dos seus discretos patrões neoliberais. Marxianamente falando, o inimigo é essencialmente econômico/capitalista, e só aparentemente político/brasileiro.

Agora, se, como explica Piketty, as astronômicas concentração de riqueza e desigualdade socioeconômica da Belle Époque só foram alquebradas pela primeira grande guerra (1914), assim como a tentativa de retomá-las foi frustrada pelo segundo conflito mundial (1939) – e isso porque, segundo o autor, nessas duas ocasiões a riqueza acumulada foi contragosto “socializada”, tanto no investimento bélico dos Estados antes e durante as guerras, quanto na reconstrução das sociedades, depois delas -, as atuais e ainda maiores concentração de riqueza e desigualdade socioeconômica dos 1% que se voltam política&belicamente contra os “99%”, seguindo a lógica pikettyana só seriam malogradas por uma Terceira Guerra Mundial.

Não obstante a certeza de Piketty de que um terceiro conflito global faria isso, o investimento teórico do economista é em um reformismo social democrata, que, no entanto, como a realidade mostra muito bem, só entrincheira confortavelmente os interesses dos 1%. Portanto, em função dos interesses dos 99%, sigo apostando na violência disruptiva, seja a das grandes guerras, seja ainda, nacionalmente, a da guerra civil.

Se o voto do cidadão já não vale nada, como o atual golpe deixou bem claro, tampouco é possível acreditar em hashtags, como largamente se faz hoje em dia. As #NÃOVAITERGOLPE, #FORATEMER e #NÃOÀPEC214, só para citar três famosas, embora massivas são todavia andorinhas solitárias que, politicamente, não tem capacidade alguma de fazem verdadeiros verões populares. Não os fizeram; não os estão fazendo; e não os farão! Nem mesmo as estratégias clássicas do povo contra a dominação das elites, como megamanifestações populares e/ou greves nacionais, funcionam mais; aquelas facilmente anuladas pela mídia; e estas, despoticamente ameaçadas por juízes golpistas.

Como disse Alain Badiou dos revolucionários de maio de 1968, eles perderam a “guerra” porque insistiram em velhos conceitos e performances da “esquerda revolucionária” que, entretanto, já estavam computados subversivamente pela direita inimiga. Não foram verdadeiramente revolucionários porque não foram suficientemente violentos. Isto é, não violaram o jogo de cartas marcadas imposto a eles pelo inimigo. Da mesma forma, a resistência tupiniquim contra os seus ativíssimos algozes é tão ou mais velha que estes.

Àqueles que sustentam, não sem razão, que as guerras são, em última instância, eficientes ferramentas do capitalismo para, em meio a uma crise, retomar grande e maior fôlego, é preciso contrapor que, se, por um lado, a violência máxima possibilita uma maior dominação do capital, por outro, retomando Piketty, é somente durante e imediatamente às guerras que é impossível para o capital seguir o seu curso natural de acumular-se em cada vez menos mãos, empoderando-as contra o povo. Então, não seria o caso de o povo querer grandes guerras, por exemplo, a cada 20 ou 30 anos?

O problema dessa ideia é o seu radicalismo, principalmente para os sujeitos burgueses&hedonistas, demasiado burgueses&hedonistas que somos. Hoje em dia não há nada mais absurdo do que imaginar arriscar a vida por uma nobre causa. Preferimos ser golpeados, vilipendiados cinicamente em nossos direitos, mesmo com alto e consequente preço de os 1% detentores de 50% da riqueza se tornarem os 0,01% donos de 99,99% da mesma riqueza, do que colocarmos nossos corpinhos lumpemproletarizados, todavia satisfeitos com uma TV de plasma e um automóvel popular, na linha de frente de qualquer guerra. A burguesia foi o berço excelente desse sujeito tão covarde quanto alienado do seu horizonte de respeito e liberdade.

Porém, ainda que, no caso brasileiro, deflagrar uma guerra civil estivesse no horizonte povo, como este se organizaria? Com que armas lutaria conta o violento Estado golpista? Antes que ressurjam velhos AIs ditatoriais ao modo do golpe de 1964, confesso que eu não só empunharia metralhadoras contra o parlamento golpista do meu país, como também, se alvejado fatalmente, nos últimos segundos de existência que me restassem, fruiria o maravilhoso gosto agridoce – que se confunde com o de sangue – de ter dado o valor máximo à minha simples vida.

Todavia, quase todos os meus concidadãos insatisfeitos com a situação do nosso país – com certa exceção aos Black Blocs, é preciso dizer – são tão “esquerda festiva” e “hashtaguicos”, tão pouco dispostos à violência radical, que, como andorinha solitária, é impossível participar que qualquer verão sangrento contra o invernal Estado golpista. Três companheiros do Partido Comunista Brasileiro com quem conversei disseram que não sabem de nenhuma resistência armada sendo formada contra os golpistas de Brasília, nem nada do gênero. Quando aqueles que são radicalmente contra a dominação dos 99% pelos 1% não têm em seu horizonte outras regras que não aquelas ditadas por estes 1%,  a guerra realmente é perdida antes mesmo de ser imaginada.

Talvez o Estado golpista inimigo não tenha até aqui sido tão violento, tão inimigo do povo a ponto de este se organizar, violenta e belicamente, contra ele – por mais que os poucos meses de golpe devessem provar o contrário. Pergunto-me, por conseguinte, quanto tempo levará; quantos direitos os golpistas ainda terão de furtar do povo para que recebam uma contraofensiva radical e mortal?

Espero que a demora do povo brasileiro em aceitar o convite à guerra que o Estado já declarou contra ele seja quiçá o tempo de o povo entrar em constelação em seu atual e absurdo vilipêndio, não mediante hashtags nem passeatas festivas, mas, como a teoria política de Spinoza propõe, em armas. E isso porque, no atual estado da guerra, retórica alguma dá melhor voz ao povo do que muitos e certeiros estampidos de revólver. Basta apenas que o povo perca o seu burguês medo de morrer lutando pelo que lhe é essencial, encarnando algo de uma esquecida antiguidade anterior ao capitalismo, qual seja: o heroísmo inegável de morrer na guerra que não pode deixar de ser travada.

A desafiadora revolução socialista tupiniquim

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Mais uma vez, na história do Brasil, nunca estivemos tão longe da revolução socialista, isto é, do início do fim da exploração da maioria dos indivíduos pela minoria. O mote antissocial da vez, obviamente, é o golpe de estado dado pela oligarquia político-econômica tupiniquim. Antidemocraticamente, medidas reacionárias&austeras estão sendo verticalmente aplicadas contra a população para que a colossal riqueza produzida por ninguém menos que essa mesma população siga sustentando confortavelmente os velhos privilégios das minoritárias classes dominantes.

Será que o povo brasileiro não sabe fazer revolução? Ou será simplesmente porque, conforme diz o historiador, filósofo, sociólogo e economista baiano Edmundo Moniz, “Não há um manual da revolução. A revolução é uma tempestade histórica e as tempestades não se repetem igualmente”? Em uma palavra, o brazuka erra quando tenta revolucionar a sua vil realidade ou não sabe experimentar formas revolucionárias? Ou nem sequer tenta? O que há no “clima” brasileiro que mais facilmente repete os furações reacionários do que precipita a “tempestade” revolucionária de que tanto o povo desse país necessita?

Moniz, corroborando com Marx e Trotsky, entende por “revolução a mudança das estruturas sociais que termina com a exploração do homem pelo homem e cria condições históricas para a passagem da sociedade de classes para a sociedade sem classes”. A teoria marxista, entretanto, baseada na particular evolução histórica do velho continente, enxerga a revolução socialista como um interregno estratégico que procede da escravidão, do feudalismo e do capitalismo, necessariamente nessa ordem, e que precede o comunismo, ou seja, o fim da exploração da maioria pela minoria.

Bela teoria que, não obstante, só não tem como vingar no Brasil porque neste país, que nasceu colônia e que cresceu dependente, as formas econômicas não seguiram a ordem da evolução econômica e social europeia. Usando impertinentemente as palavras de Trotsky, o Brasil é “um amálgama de formas arcaicas e modernas”. Com efeito, temos escravidão, feudalismo e capitalismo convivendo, profunda e desarmoniosamente, na realidade econômica brasileira. Pior ainda, a realidade econômica do Brasil foi construída invertendo-se o processo histórico europeu.

Com efeito, foi o capitalismo, mais evidentemente seu credo econômico mercantilista, que trouxe os portugueses ao Brasil. E uma vez conquistada esta terra, o jovem e vigoroso capitalismo português, anacronicamente, implantou o velho e caduco feudalismo na divisão do território em capitanias e sesmarias, que eram “doadas” a administradores mediante relações pessoais com a realeza portuguesa. E mais anacronicamente ainda, para sustentar seu sistema de relações pessoais, os portugueses encravaram a escravidão no âmago do sistema feudal tropical, em uma tácita inversão do que havia acontecido no velho mundo.

Por isso a revolução socialista tupiniquim não tem como vingar conforme dita o ideário velho-mundista. Se quisermos proceder conforme Marx, são necessárias pelo menos duas revoluções efetivas antes do passo socialista, a feudal, que dá cabo da escravidão, e a capitalista, que por sua vez supera o feudalismo. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), durante muitos anos insistiu nessa lógica, sustentando que primeiro deveríamos superar o feudalismo, depois a democracia burguesa, para só então termos condições históricas para a revolução socialista.

No entanto, dada a particularidade da realidade histórica brasileira, não podemos nos dar ao luxo de priorizarmos uma besta econômica por vez. Lutar frontal e exclusivamente contra o velho e resistente feudalismo, ou contra o maduro e vigoroso capitalismo, separadamente, é dar as costas a um inimigo ou outro. Criticamente, é matar um sistema desigualitário e deixar o terreno livre para o outro. Sinuca de bico! Por isso, na Brasilândia, o fim da exploração das massas pelas elites significa lutar simultânea e frontalmente contra um inimigo múltiplo: a escravidão, o feudalismo e o capitalismo.

Para fazer a revolução socialista no Brasil em um único movimento, temos de esquecer a clássica racionalização estrangeira e inventar formas revolucionárias totalmente nossas, que tenham capacidade para superar de uma só vez os muitos passados e vícios que insistem no mui viciado presente brasileiro, e que impedem a virtuose de um futuro igualitário. Como, então, será possível a revolução socialista no Brasil?

Para, Moniz, isso é possível somente com a organização de um verdadeiro partido de massas, de uma vanguarda consciente que esteja disposta a preparar o povo para a República Democrática Socialista. Entretanto, porventura temos no Brasil um partido que represente plenamente os interesses da maioria explorada? Um partido que assuma a vanguarda das transformações sociais? Infelizmente não.

O PCB, embora dono do melhor ideário, está distante léguas de ter oportunidade de ser pragmático. O pragmatismo do Partido dos Trabalhadores (PT), aventurado nos últimos 13 anos, está longe de ser ideal, visto que engordou tanto as feras exploradoras como as presas exploradas.  Em uma palavra, tornou o lobo mais forte e as lebres mais suculentas. Não temos, no Brasil, portanto, partido ou vanguarda capaz de iniciar a revolução, pois não há força política organizada para efetivamente socializar a terra, os meios de produção, os bancos, a mídia; para romper o monopólio do comércio exterior e implantar a planificação da economia nacional.

Enquanto isso, carentes de um pensamento organizado e vanguardista o suficiente capaz de mobilizar as massas no sentido da prática revolucionária efetiva, e sob as vis égides do desenvolvimento e do crescimento econômico, as velhas estruturas exploratórias dominam o país. E o atual golpe de estado brasileiro é o que senão a dominação do passado sobre o presente? Com efeito, a oligarquia política brasileira ainda encontra terreno livre para, mediante o seu atual golpe, representar os interesses do capital internacional por meio do endividamento do povo local.

Por acaso a atual elite golpista não está repetindo o famigerado “milagre brasileiro” da década de 1970, quando, em nome do desenvolvimento, o Brasil tomou emprestado e enfiou goela-abaixo do povo mais de cem bilhões de dólares? Devíamos três bilhões de dólares em 1964, antes do golpe militar. Duas décadas depois, devíamos cem vezes mais, e em dólares inflacionários! Eis a força reacionária atuando livremente no espaço social que o pensamento e a ação revolucionários ainda não ocupam contundentemente. E como não há força organizada para acabar com a crise, a velha estrutura oligárquica segue administrando o Brasil, sua desigualdade estrutural,  e a crise econômica que, em essência, lhe favorece exclusivamente.

Entretanto, para Moniz, o Brasil tem condições econômicas e materiais para o socialismo. Só não tem ainda condições políticas para tal, pois falta-nos um partido verdadeiramente popular que possa assumir o papel de vanguarda, instituindo conscientemente a república democrática socialista. Esse é o grande impasse do Brasil. Enquanto isso, a oligarquia nacional não resolve as crises social política e econômica do país precisamente porque tais crises lhe engordam e fortalecem.

Uma vez que a prática é o cerne de qualquer revolução, não basta apenas uma ideia revolucionária, por mais perfeita que seja. Aí devemos dispensar, senão toda a teoria marxista, ao menos a parte que não coincide com a evolução histórica brasileira. Do velho mundo, contudo, devemos manter a ideia de que é preciso de uma vanguarda política revolucionária capaz de motivar o povo a finalmente impor seus interesses sobre os das classes dominantes. Aí teremos iniciado a verdadeira revolução socialista, e não só pensado nela. Para tanto, relembra-nos Moniz, é preciso que a teoria coincida com a prática e a prática confirme a teoria”.

Todavia, como dito antes, no Brasil formas econômicas e políticas arcaicas e modernas coexistem desde sua colonização até hoje. Numa metáfora de Trotsky, “os selvagens passaram da flecha ao fuzil de um golpe, sem percorrer o caminho que separa no passado estas duas armas”. Ou seja, os colonizadores portugueses na américa não começaram a história pelo princípio”. Coincidir prática e teoria em terras tupiniquins, portanto, é um desafio sui generis que não pode se pautar por ideários e experiências extrínsecos. Nossas teoria e prática revolucionárias devem ser outras que as do velho mundo, pois a nossa história é outra, muito embora historicamente explorada por aquelas.

Do contrário, em outra metáfora, estaríamos obrigando o índio, nu e oprimido, a usar ou um uniforme soviete, ou a cartola da velha e distante intelectualidade europeia. Ou seja, estaríamos representando uma revolução muito mais do que a praticando. E isso porque, segundo Moniz, “ a essencialidade da revolução encontra-se no conteúdo revolucionário de sua própria essencialidade”. A verdade e a efetividade da revolução socialista tupiniquim, por conseguinte, está na essência da realidade histórica brasileira: a coexistência anacrônica de escravidão, feudalismo e capitalismo em função dos interesses das classes dominantes.

No Brasil, todos esses inimigos históricos do povo devem ser superados de um só golpe. Passo bem maior e hercúleo do que o que Marx profetizou há quase um século e meio para a implantação do socialismo contra um único algoz, o capitalismo. Respeitando-se a essência do que se deu historicamente no Brasil é que encontraremos uma teoria, isto é, um pensamento que ponha as massas a praticar a defesa inarredável dos seus interesses, e em detrimento das velhas elites golpistas, que até hoje roubam a realidade para si. E quando essa teoria de vanguarda coincidir com a prática cotidiana do povo brasileiro, a angusta luta por igualdade será uma coloquial igualdade, não mais na luta, mas na existência.

O “não” suíço ao Renda Mínima

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Em 5 de junho de 2106, 78% dos suíços disseram não à proposta de renda social mínima e universal –aos suíços, obviamente- de cerca de R$ 9 mil por mês, independentemente de quem trabalha e da riqueza de cada um deles. Uma vez que o país europeu produz três vezes mais do que pode consumir, a distribuição dessa riqueza excedente em forma de renda mínima esteve para se tornar um direito. Pretensamente revolucionário, o porta-voz do movimento Renda Mínima, Che Wagner, perguntava: “Por que não tornar a riqueza acessível a todos?”. Agora, o caráter estritamente local dessa proposta já não esteve desde sempre prenhe de velhos vícios? Ao Che (Gue) Wagner suíço –perdoem-me o trocadilho- não caberia também fazer a seguinte pergunta: por que não tornar a excedente riqueza suíça acessível a todos mesmo, não só a eles, os privilegiados moradores do Estado-Alphaville que ocupa a cobertura da Europa, os Alpes?

A ideia que está por trás do projeto suíço Renda Mínima é a desvinculação entre trabalho e renda. A lógica é a seguinte: uma vez que a contemporânea substituição do trabalho humano por tecnologia automatizada já é uma realidade no país -robôs absorvem cada vez mais trabalho-, seria possível “libertar” as pessoas da obrigação de produzirem elas mesmas as condições materiais de suas subsistências. Em outras palavras, todavia críticas, a renda mínima não seria espécie de universalização de um privilégio que historicamente esteve nas mãos de poucos, isto é, viver de renda? Seguir vivendo, consumindo confortavelmente o que se precisa, sem se preocupar um instante sequer em colaborar com a produção dessa vida e desse consumo confortáveis, não é o que todo burguês deseja para si e para os seus? E gozando de parcos 4% de desemprego, sem carecer sequer de políticas públicas de combate à pobreza, a Suíça esteve em condições de aproivar essa controversa utopia.

Tão controversa que 78% da população foi contrária. Em um mundo vitimado pela crise migratória, a maioria dos já altissimamente privilegiados suíços teve medo de estar dando um tiro no pé. Esse medo já era do próprio governo suíço, que primeiramente já era contrário ao projeto, pois, diziam, o benefício seria pretexto para hordas de “imigrantes indesejados” desejarem viver no país da bonança excedente. Caso a renda mínima tivesse sido aprovada em plebiscito, a Suíça teria um insondado desafio no sentido de reformular seu sistema social, pois a universalização, ainda que local, da cisão entre trabalho e renda, concretamente problemática em um mundo já vitimado pelo abismo entre trabalhadores e rentistas,  traria consequências imprevisíveis ao país, muito embora o restante do mundo já soubesse das cruéis consequências dessa aventura.

Os apólogos da renda mínima afirmavam que com as altas riqueza e tecnologia suíças, essa sociedade poderia aventurar-se em “novos conceitos”. Agora, se olharmos para essa particular conjuntura com olhos histórico-materialistas, nada há de novo no aumento de privilégio aos já privilegiados. A promessa de que a renda mínima traria mais “paz de espírito” aos cidadãos suíços, mais tempo para a família, para os amigos, para serem “criativos”, para tentarem “coisas novas” e não se preocuparem com as suas sobrevivências materiais, tudo isso outra coisa não é que o velho e universal projeto burguês tentando ser socializado a um país inteiro, que, pelo jeito, está obesamente aburguesado.

Felizmente, a maioria dos suíços não comprou a utopia da dispensa do trabalho e de que máquinas trabalhando sozinhas seriam o melhor futuro para o país. Será que se lembraram de que os chips e engrenagens dos robôs que os sustentariam nessa impertinente liberdade em relação ao trabalho seguiriam sendo produzidos por mão-de-obra semiescrava chinesa, a partir de matéria-prima cucaracha extraída da natureza por proletários latino-americanos fortemente explorados, e transportados até eles sabe-se lá por quem em containers padrão que bem os alienariam de todo o vil processo produtivo que antecede essa sua automatização “libertadora”. Paz de espírito e tempo livre para quem, caras pálidas?

Obviamente o Renda Mínima não se tratava de um socialismo. Antes, toda uma população bem abastecida de dinheiro, mesmo sem produzir nada, seria a garantia de que o consumo seguiria firme e forte. E o capitalismo agradeceria sobejamente se essa iniciativa do povo aburguesado do país do queijo e do chocolate tivesse sido democraticamente aprovada. Todavia, se fosse espécie de socialismo, seria o famigerado socialismo de uma só nação de Stalin, e não o socialismo universal de Lênin e Trotsky. E a história está aí para lembrar a todos que o socialismo stalinista teve um preço altíssimo e impagável: custou não só uma miríade de bárbaros fuzilamentos coletivos e a morte da democracia como também e principalmente a inviabilidade da verdadeira libertação da classe operária preconizada pelo socialismo leniniano-trotskyniano.

Resta saber se os ricos&tecnologicizados suíços, ao dizerem não ao renda mínima, recusaram-se a serem burgueses preguiçosos que interrompem as suas “nobres” preocupações sociais, a sua “revolução”, no muro que separa o Alphaville suíço do resto do mundo, ou se isso é somente a sempiterna expressão do velho egoísmo burguês. Seria só o medo do “indesejáveis imigrantes” o coletivo não ao Renda Mínima? Se sim, o que é bem provável em se tratando de humanidade e de capitalismo juntos, a grande riqueza deles, que excede três vezes o que precisam, não se reflete em mais humanidade. Mas isso não deveria nos espantar.

Não deve restar dúvida de que o “não” plebiscitário suíço à renda mínima que, segundo muitos, já possibilitaria aos cidadãos desse país viverem bem sem terem de trabalhar, não foi dito para que os excedentes privilégios alpinos fossem compartilhados com a parte do mundo que tem muito menos do que precisa. E que tem muito menos justamente por conta de um sistema global que explora aqui (na América Latina, na Ásia, na África) para fazer sobrar ali (na Suíça –mas não só nesse país). Embora “paz de espírito”, “liberdade” e “tempo disponível para ser criativo” sejam ideais que o mundo precisa um dia ter universalizados, vaticinados por ninguém menos que Marx, o não suíço à sua aplicação local foi mais forte. Os trabalhadores do resto do mundo agradecem.

Obviamente, a utopia da liberdade absoluta em relação à subsistência material é desejabilíssima. Não obstante, não quer dizer que não tenha sido teorizada e tentada ao longo da história. Porém, só seria válida desde que essa ilha libertária fosse possível a todos, e não só aos moradores de um condomínio burguês que se confunde com um país. Caso contrário, estamos falando apenas da velha distopia capitalista na sua melhor e mais cruel forma. O lema comunista popularizado por Marx, qual seja, “de cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, talvez tenha encontrado a sua maior perversão capitalista na propaganda do projeto Renda Mínima suíço, cujo objetivo anunciado era dar a todos (que todos, cara pálida?) uma “vida digna”, baseada na “liberdade de fazer as próprias escolhas”, para que só então “a vida fizesse sentido”. Até parece que a bonança econômica permitiu à sociedade suíça descobrir o metafísico e enigmático “sentido da vida”.

Teria sido muito digno da parte dos suíços apólogos do renda mínima que tivessem esclarecido aos seus concidadãos, bem como ao restante do mundo, o que entendem por “vida digna”, “liberdade”, e “sentido da vida”, por exemplo. Mais ainda, se estes seus belos e utópicos conceitos são possíveis apenas dentro de suas já ricas fronteiras; e, sobretudo, se só são viáveis mediante a manutenção, ou o que é pior, a radicalização da indignidade e da exploração sociais do lado externo e pobre de seu Estado-Alphaville. Os suíços não decidiram contra o Renda Mínima por conta da favela terceiro-mundista que sua fortuna-primeiro-mundo gera antagonicamente. No entanto, esse não coletivo, ainda que egoisticamente entoado, não dará aos já burgueses suíços o excedente direito de serem Burgueses de Estado, com um gordo e indiscriminado depósito estatal de R$ 9mil no final de cada mês, independentemente de suas necessidades. Essa proposta baseada na cisão entre trabalho e renda deveria ser negada mesmo. Mais ainda, que a própria possibilidade de se viver de renda seja negada veementemente, pelo mundo inteiro, e daqui para frente.

 

Tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser

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O ser humano é transição, e, exclusividade sua, consciência disso. Somos a espécie que não só conhece, mas, principalmente, promove a própria evolução. E essa ininterrupta promenade se expressa em todas as dimensões humanas. Economicamente, vemos isso nas transições históricas, por exemplo, do escravismo para o feudalismo; deste para o capitalismo; e deste último para algo que ainda não sabemos o que, mas que até bem pouco tempo se acreditou piamente ser o socialismo. Entretanto, hoje em dia a descrença nas profecias econômicas à lá Marx nos permite chamar o sucessor do capitalismo apenas de pós-capitalismo.

As transições econômicas que fizeram dos escravos servos e dos servos proletários são conhecidas, cognoscíveis, embora sempre abstratas para nós, contemporâneos. Já a transição de igual envergadura na qual estamos compreendidos, essa não nos poupa da angústia concreta em não saber para onde estamos indo. O fato de não conhecermos o que é esse até então tautológico pós-capitalismo, com efeito, é motivo para espécie de angústia histórica. Os conceitos-bengala pós-proletáriado e pós-capitalismo dão conta apenas parcialmente do ainda desconhecido horizonte diante de nós; pouco anestesiam a dúvida do que de fato virão a ser.

Embora não estivesse falando de economia, o filósofo alemão Martin Heidegger expressou o dilema do homem em meio à transição, todavia do realismo ao relativismo, através da seguinte frase: “Chegamos tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser“. O filósofo queria dizer que a sua idade histórica –que ainda é a nossa- perdeu a fé nas verdades absolutas, isto é, nos deuses, mas ainda não sabe lidar com o Ser, ou seja, com a multiplicidade infinita de interpretação do real. Nesse ínterim no qual nem os deuses nem a pluralidade de sentidos do real nos oferece um chão seguro, ou acreditamos que nada é verdadeiro, ou que a única verdade absoluta é o nada. Eis o efeito colateral do niilismo que deu cabo da modernidade e inaugurou a contemporaneidade humana.

Retomando a dúvida e a perplexidade acerca do que será chamado esse pós-capitalismo tautológico-acessório que com efeito capitulará o inconcluso capítulo econômico histórico  do qual somo os protagonistas, a frase do filósofo alemão pode ser de grande ajuda. A transição econômica pela qual passamos não poderia ser expressa assim: chegamos tarde demais para o capitalismo e cedo demais para o ____________? Um marxista, obviamente, completaria a máxima tascando, sem pestanejar, um socialismo. Isso, no entanto, não seria apenas fazer de um fundamento passado a regra para um presente e um futuro outros? Em outras palavras, a reeleição de um velho deus?

Dizer que chegamos tarde demais para o capitalismo significa que, embora ainda estejamos absolutamente imersos nele, não conseguimos mais crer que ele possa dar conta das necessidades econômicas de todos os indivíduos, mas só de uma minoria deles, cada vez mais minoritária aliás. Não há mais dúvida de que a liberdade revolucionária que o capitalismo significou para o servo medieval, hoje em dia, é liberdade apenas para as elites. Nem o jovem deus que prometeu libertar as pessoas das regulações, qual seja, o Neoliberalismo -termo cunhado em 1938 Ludwig von Mises e Friedrich Hayek- consegue mais manter-nos beatos seu.

Quanto mais não seja, porque segundo George Monbiot, no artigot Para compreender o neoliberalismo além dos clichês, a vangloriada liberdade neoliberal resultou na liberdade dos patrões para reduzir os salários e explorar os trabalhadores; a liberdade em relação à regulamentação significou destruição da natureza; e a liberdade para distribuir a riqueza findou como liberdade para não fazê-lo. De fato, conforme aponta Thomas Piketti no seu Capital no século XXI,  hoje em dia a concentração de renda nas mãos de cada vez menos gente é maior do que em qualquer outro período histórico. É de espantar seguir até o final o texto e os gráficos da obra do economista francês!

Muito tarde para o neoliberalismo e muito cedo para o pós-neoliberalismo? Por certo, mas outrossim demasiado tautológico. Muito cedo para que exatamente? Eis a pergunta que não quer calar. Se, entretanto, a difícil transição metafísica de que falava Heidegger era entre os deuses e o Ser, isto é, entra a univocidade e a plurivocidade absolutas do real, a que está sendo abordada aqui deve ser dita entre a univocidade de uma doutrina econômica, cujo vício entretanto é atender cada vez menos indivíduos, e a plurivocidade de um devir econômico no qual o interesse de todos seja contemplado.

Em se tratando de economia, o que seria então o Ser heideggeriano, isto é, a multiplicidade infinita de interpretação do real? Ora, se, como aponta Monbiot, o deus neoliberal elege “a competição como definidora das relações humanas, e os cidadãos como consumidores que decidem democraticamente o seu destino apenas ao comprar e vender“, a pluralidade de sentidos do real pós-neoliberal, por sua vez, deverá no mínimo significar que as relações humanas não sejam pautadas exclusivamente pela competição nem pelo consumo. Não que a plurivocidade do real econômico vindouro deixe de constar dessas práticas, afinal, menos plural o real seria, e, consequentemente, mais próximo dos deuses permaneceria.

Economicamente, pluralidade absoluta, ausência total de deuses e de verdades únicas, portanto, deve ser uma realidade na qual cada indivíduo possa realizar as suas necessidades materiais da forma que melhor lhe convir, sem, contudo, tal liberdade impedir quem quer que seja de realizar o mesmo, da forma que achar melhor. Os críticos da social democracia dirão que tal liberdade repetirá vícios históricos; que atenderá somente os interesses da burguesia; que o neoliberalismo se aproveitará dela para exercer-se imperiosamente sobre todos. E têm certa razão nisso inclusive.

Porém, tal crítica é pertinente até o ponto onde percebemos que o neoliberalismo, encimando imperiosamente a realidade econômica outra coisa não faz senão se colocar como um deus absoluto. O maior problema dessa doutrina econômica é até aqui não ter conseguido compatibilizar-se com a pluralidade absoluta em relação a qual, segundo Heidegger, chegamos cedo demais. Entretanto, como dito antes, a plurivocidade do real à qual chegaremos não será total se a famigerada liberdade neoliberal for excluída desse real. Tarefa difícil conciliar o real todo com suas expressões mais contraditórias! E é justamente essa dificuldade que aponta a nossa precocidade em relação ao Ser!

Nesse sentido, o passo que precisamos dar para, senão estar definitivamente no Ser, ao menos mais próximo dele e mais distantes dos deuses, deve ser fazer com que o neoliberalismo possa não ser absoluto e invencível; impedi-lo de ser um deus ele mesmo. Pensando assim, estar entre o deus capitalista e o Ser pós-capitalista significa que estamos no tempo de furtar do neoliberalismo a sua patológica tendência absolutizante. Os revolucionários radicais, por certo, dirão que se trata de reformismo. Entretanto, até onde podemos garantir que a revolução rápida e violenta do Manifesto Comunista de Marx e Engels, corroborada por Lenin no seu O Estado e a Revolução, seja a melhor saída depois de termos visto que as revoluções russa e cubana em menos de um século ruíram diante dos ditames neoliberais?

Para quem busca o Ser, isto é, a plurivocidade de interpretação do real, insistir na clássica, todavia monológica estratégia que prega que devemos começar com a revolução violenta em função da ditadura do proletariado não seria nos mantermos demasiado próximo dos deuses? A modernidade que levou Marx a escrever tal cartilha, com efeito, estava muito mais próxima das verdades absolutas, ou seja, dos deuses, do que nós, contemporâneos. Embora tenham sido os verdadeiros assassinos de Deus, os modernos ainda estavam com o punhal e com as mãos sujas do sangue divino; demasiado contemporâneos daquilo que nós, contemporâneos, já somos e devemos ser avant garde. Reviver velhas doutrinas apenas nos fará démodés.

Se ainda não conseguimos precisar em relação a que chegamos cedo demais para além das tautologias “pós-capitalismo”, “pós-liberalismo”, se ainda é um enigma que real plural fará com que a competição e o consumo não determinem exclusivamente as relações e a sobrevivência material humanas, é porque ainda não conseguimos nos desvencilhar totalmente dos deuses do passado, das verdades de pretensão absoluta que ainda nos convencem de que devem ser interpretadas univocamente. Aqui podemos parafrasear a máxima heideggeriana novamente para nos encontrarmos na transição histórica em que estamos: chegamos cedo demais para nos desvencilhar totalmente dos deuses e, portanto, muito mais cedo ainda para sermos capazes de encarar o Ser.

A tarefa histórica da nossa particular transição, por conseguinte, deverá ser seguir na cruzada contra as verdades absolutas, aberta todavia antes de nós, justamente porque ela não foi concluída. Isso fica claro quando percebemos que diante do real não vemos muitas alternativas além da permanência do neoliberalismo ou da revolução socialista. Que pobreza imaginativa! Quão pouco plurívocos ainda somos! Ora, duas possibilidades nos afastam quase que diametralmente da pluralidade de interpretações do real que o Ser que deverá se seguir exige. Dois deuses não fazem o Ser. Negam-no duplamente aliás.

Como colocado no início, estarmos livres dos deuses e sermos finalmente contemporâneos do Ser, ou seja, da plurivocidade infinita do real, de forma alguma deve significar sustentar que nada é verdadeiro nem que a única verdade absoluta é o nada. O niilismo é bem mais virtuoso do que isso! Inclusive os monológicos liberalismo e socialismo não devem ser negados, nadificados, mas compreendidos entre muitas outras formas de, economicamente, a humanidade existir no mundo. Só não podemos seguir insistindo somente nessas duas teclas. A história da nossa transição, que dará cabo dos deuses e conta do Ser, exige que usemos todas as teclas disponíveis e que, ademais, inventemos todas as outras que nos faltam. Só então teremos condições de gozar o real em suas infinitas possibilidades.

Capadócias capitalistas

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A Capadócia é uma região montanhosa da moderna Turquia, muito visitada atualmente para a prática do balonismo recreativo. Porém, as mesmas montanhas que, hoje, por um punhado de dinheiro, os turistas podem observar das alturas, antigamente, serviram de esconderijo aos cristãos que fugiam da perseguição religiosa do Império Romano pagão. Dentro delas jazem quilômetros de túneis, milhares de alcovas, e dezenas de capelas-igrejas, nas quais aqueles que ousaram acreditava em um Deus único e bom podiam cultuá-lo em paz.

De certo modo, o labirinto claustrofóbico que aqueles refugiados religiosos abriram dentro pedra natural foi um esboço não só do que seria a organicidade outrossim labiríntica e claustrofóbica da cidade medieval, na qual os cristãos seguiriam cultuando o mesmo Deus, como também das nossas verticalizadas metrópoles contemporâneas, onde vivemos adensados uns sobre os outros cultuando, entretanto, outro deus: o capital, o Senhor absoluto da existência metropolitana.

Na cidade medieval, o Deus cristão ocupava a “laje” mais elevada. Suas fundações, entretanto, já pertenciam, ainda que não claramente, ao florescente capitalismo que precisava adensar e empilhar as pessoas para mais lucrar com elas. Agora, se as vorazes e rizomáticas bases capitalistas ainda permitiam que Deus as encimasse espetacularmente era porque isso interessava senão ao próprio capital. Se assim não fosse, ele teria, desde o início, despejado Deus da cobertura urbana e colocado outro inquilino mais lucrativo no seu lugar, ou ocupado o topo privilegiado ele mesmo.

Para a cidade capitalista nascente, ter Deus dentro de suas fronteiras era tão estratégico quanto o Coliseu era para Roma. Com efeito, a maior edificação da antiguidade foi dada aos cidadãos romanos para que lá eles despejassem catarticamente as suas barbaridades, e, ao deixarem o “Stadium Maximus”, desfilassem pelas “vias ápias” da Cidade Eterna apenas a civilidade que a ela interessava. A diferença, entretanto, é que o ópio do cidadão romano pagão era assistir aos cristão sendo devorados por leões, ao passo que o do cristão medieval era rezar para não ser devorado pelos leões pagãos que impertinentemente rugiam dentro de si.

E enquanto os cristãos medievais se preocupavam em não serem abocanhados pelo pecado, o lobo-capital-em-pele-de-cidade podia devorá-los até se empanturrar, pois os crentes mais se preocupavam com os seus demônios internos do que com a ainda não totalmente conhecida besta capitalista que, cada vez mais, os encurralava nas estreitas vielas do medievo. A fé em Deus, portanto, era uma espécie de Coliseu do capital, dentro do qual os cristãos eram iludidos de que estavam a salvo dos seu próprios leões. No resto da cidade, entretanto, o capital lhes sangrava sem dó nem piedade. Nesse sentido é que a velha esfera divina foi de muita serventia ao jovem capitalismo citadino.

Já o capital adulto, em forma de metrópole contemporânea, fez diferente. Despejou Deus de sua cobertura privilegiada e colocou-se, sem disfarce algum, no lugar dEle. Doravante, o leão que devora seria o mesmo para quem se pede proteção para não se ser devorado. Fidelidade ao onipresente deus metropolitano significa rezar diariamente por cifrões que, entretanto, são simultaneamente profanados e espoliados por esse mesmo deus para quem se reza. A benção do deus-capital, isto é, o dinheiro, é sistematicamente dado por uma mão sua e tirado pela outra. No paraíso metropolitano-capitalista, portanto, quanto mais beato se é, mais condenado se está.

Se, por um lado, a metrópole é o lugar no qual só se está protegido da fome capitalista deixando-se devorar por ela, e, por outro, diferente de Roma, que dava no Coliseu aquilo que não queria fora dele, o absoluto deus-capital tira, em todos os lugares, a mesma e única coisa que exige outrossim em todos os lugares, isto é, dinheiro, então temos aí uma perseguição sistemática que por si só justificaria uma fuga da metrópole a algum esconderijo secreto e seguro, assim como os primeiros cristãos que escaparam da Roma pagã que lhes perseguia.

Agora, uma vez que, hoje, o mundo inteiro é uma conurbação capitalista, não há Capadócia interiorana alguma em cujas montanhas possamos escavar rotas de fuga secretas nem templos alternativos. Em relação à onipresença do deus-diabo-capital, podemos apenas fingir a sua ausência, não obstante, no interior de suas montanhas urbanas feitas de aço, vidro e concreto, dentro das quais estão insculpidos os nossos refúgios-lares-apartamentos, onde, por breves e caros instantes, podemos descrer brevemente do deus-capital absoluto.

Os edifícios de concreto das nossas metrópoles contemporâneas estão para o capitalismo que a todos persegue assim como as escavadas montanhas de pedra da Capadócia antiga estiveram para o paganismo romano que perseguia os cristãos. A diferença, entretanto, é que, para estes, a distância física dos seus perseguidores significava proximidade metafísica com Deus, enquanto nós sequer podemos crer que quaisquer milhas nos afastam do nosso perseguidor onisciente, o capital. E isso porque o nosso algoz supremo é, ao mesmo tempo, o nosso deus absoluto.

Assim com os primeiros cristãos, refugiarmo-nos no interior de montanhas, todavia artificiais e criadas pelo deus-capital, para encontrarmos, a altos preços, diga-se de passagem, alguma paz e liberdade. E quando o capital abunda, podemos inclusive ir à Capadócia, embarcar em um balão, e, das alturas, como se fôssemos deuses nós mesmos, espiar o esboço da nossa civilização naquelas montanhas-refúgios-naturais.

Consumir o consumismo que nos consome

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iPhones, férias no Caribe, internet de alta velocidade, dúzias de cervejas, é quase impossível não sermos consumidos por tais mercadorias, concupiscentemente tornadas ícones materiais da idealizada realização pessoal. Porém, como nos disse Érico Veríssimo, “o objetivo do consumidor não é possuir coisas, mas consumir cada vez mais e mais a fim de, com isso, compensar o seu vácuo interior, a sua passividade, a sua solidão, o seu tédio e a sua ansiedade”. O tempo e o vento do consumismo nos conclamam convincentemente a tapar o “intapável” buraco humano que somos, mesmo que nessa empresa impossível sejamos consumidos pelo consumismo que consumimos.

E consumindo concupiscentemente, nos alienamos tanto do nosso vazio intrínseco, quanto do fato de que somos consumidos pelo que consumimos.  Acreditamos cegamente que, aqui, uma ou duas mercadoriazinhas à mais darão cabo do nosso tédio, e, ali, que somos somente nós que as consumimos. Realmente, essas são mentiras muito bem contadas, e, ademais, muito bem acreditadas. O capitalismo e Noam Chomsky sabem muito bem que “não se pode controlar o povo pela força, mas se pode distraí-lo com consumismo”. Quem nos distrai: o capitalismo. Qual seu método: o consumismo. E os distraídos, quem são? Ah, estes dispensam apresentação.

Para entender melhor o teatro capitalista que nos distrai do fato de que o consumismo que consumimos nos consome, vale lembrar que “consumir”, derivado do Latim “consumere”, quer dizer destruir, desgastar, desaparecer, sumir. Aqui podemos ver que, consumindo, outra coisa não construímos que um mundo de destruição. Isso fica ainda mais claro quando compreendemos que o sufixo “ismo”, que, indica sistematização, aderido à palavra consumo com uma força histórica tremenda, faz do nosso modus vivendi um sistema de destruição, de desgaste, de desaparecimento. Escaparíamos nós, consumidores, desse aniquilamento consumista?

O consumo, obviamente, não foi inventado pelo capitalismo. Na verdade, é intrínseco à vida, que, de acordo com Nietzsche, é um processo contínuo de destruição (consumo) e criação. A sistematização do consumo, porém, não encontrou melhor expressão do que no universo do capital, a ponto de hoje ser um absurdo negar que capitalismo e consumismo sejam absolutamente consubstanciais. Millôr Fernandes fala bem mais poeticamente da relação desses dois monstros: “quando começou a comprar almas, o diabo inventou a sociedade de consumo”. Não é demais ressaltar que a gestalt poética dessa máxima está precisamente no apelido mui próprio dado ao capitalismo.

O objetivo do casal mais insaciável e prolífico da história econômica mundial não é que as suas muitas filhas-mercadorias desapareçam definitivamente. As mercadorias que consumimos constantemente, embora feitas para serem sistematicamente sumidas por nós, renascem sempiternamente das cinzas, feito Fênix mítica. A destruição envolvida no conceito de consumo, portanto, não as visa centralmente. Tampouco o fim do capitalismo está em foco no desaparecimento das mercadorias, muito pelo contrário aliás. Quem são, então, os sujeitos destruídos nessa conjuntura que, de um lado, conta com a nossa concupiscência, e, de outro, com a ganância capitalista? Há muito a Torá nos diz que “a ganância insaciável é um dos tristes fenômenos que apressam a autodestruição do homem”.

Sim, somos nós, consumidores, que somos consumidos, melhor dizendo, destruídos pelo que consumimos. Não exatamente como queria Leon Tolstoi, que dizia que “para se viver com honra, é preciso consumir-se, perturbar-se, lutar, errar, recomeçar do início, novamente recomeçar e lutar e perder e ganhar eternamente”. A frase do escritor russo é fraca, quiçá utópica, diante de um capitalismo que, sistematicamente, recomeça a sua luta desonrosa para ganhar e ganhar e ganhar, ad aeternum. Quantas gerações não foram consumidas do mapa desde o surgimento do capitalismo senão para que hoje ele estivesse mais vivo e mais  vivo que nunca? E quantas ainda não serão desgastadas em função do ganhar-ou-ganhar capitalista?

Como, entretanto, evitar sermos destruídos pelo capitalismo, ou o que é o mesmo, consumidos pelo consumismo que consumimos? A fórmula de Abraham Lincoln, qual seja, “a melhor forma de destruir seu inimigo é converter-lhe em seu amigo”, poderia ser de alguma ajuda aqui? Para tal, precisaríamos pressupor, como os liberais mais ingênuos, que capitalismo e consumismo podem de fato ser amigos nossos. Agora, isso não seria confiar demais em alguma mão invisível, mais ainda, mágica? Permaneçamos por enquanto com os pés no chão no qual está escrito com o nosso próprio sangue que aquele que nos destrói para construir-se não é nem tem como ser propriamente nosso amigo.

Para ser amigável conosco, o capitalismo precisaria consumir outra coisa que não a nós, seus consumidores. Para tanto, teria de consumir a si mesmo, uma vez que o consumo é a sua essência inalienável. Não obstante, há alguma indicação de que essa ficção possa ser realizável, e ainda assim ser chamada de capitalista? Ou o ato subsequente da longeva ópera humana, no qual o protagonista econômico será mais amigável, já não tem um nome próprio: socialismo? Portanto, desculpe-me Lincoln, essa balela de amizade com o capitalismo está fora de questão.

Desse modo, as opções que nos restam são: ou sermos indiferentes em relação ao capitalismo, e, como em um lugar queria Marx, deixá-lo sucumbir diante de suas próprias contradições; ou, em troca, inimizá-lo radicalmente, e, como em outro lugar também queria Marx, derrotá-lo rápida e violentamente. Agora, se o objetivo principal é findar com o consumo de vidas pelo consumismo capitalista, temos todavia de considerar que lutar contra esse monstro em ambos os casos consumirão milhares de vidas. No primeiro, ao longo do tempo em que o capitalismo se contradirá até sucumbir, e, no segundo, na própria revolução rápida e violenta, haja visto que a besta capitalista é tão ou mais rápida e violenta, sem dizer belicosa até os dentes.

Resta ainda uma terceira via, trilhada por aqueles que acreditam que deixarem-se ser consumidos pelo capitalismo, conforme o próprio capitalismo quer, é uma forma subversiva de fazer com que ele chegue mais rapidamente à sua contradição derradeira. Estes são chamados de aceleracionistas. No entanto, do ponto de vista do capital, no que diferem os consumidores concupiscentes e os aceleracionistas? A fera econômica há de preferir estes últimos inclusive. Para entender o desserviço do aceleracionismo, façamos uma analogia: se o inimigo fosse, digamos, a destruição da natureza pelo homem, o aceleracionista seria aquele que se juntaria aos destruidores dela para, não havendo mais natureza a ser destruída, a destruição enfim cessasse. De que adiantaria tal luta?

O aceleracionista responderia contrariado que a virtude de sua ideologia em relação ao vício concupiscente está em que ser consumido para mais rapidamente destruir daquilo que o destrói é muito mais produtivo e honroso do que ser sumido enquanto se está distraído pelos encantos mentirosos do inimigo. Realmente, há aí uma vantagem, que, no entanto, só não é absoluta porque mais virtuoso é aquele que, sem se permitir ser corrompido, mesmo que subversivamente, rápida e violentamente tenta dar cabo do algoz-mor, ainda que seja o primeiro a ser destruído por ele.

A solução para o problema de sermos consumidos pelo consumismo que consumimos certamente não virá do consumista concupiscente, pois seu consumo não só o aliena de sua própria destruição, como também da destrutividade própria do consumismo. Provavelmente o consumista aceleracionista também não dará conta da questão, pois, embora engajando a sua própria e inevitável destruição na destruição futura do inimigo, enquanto age só fortalece este último. Só o revolucionário ainda mantém alguma possibilidade de vitória em seu horizonte. Duas, aliás. A primeira, na sua morte rápida e violenta em resposta à sua outrossim rápida e violenta ofensiva contra o capital, uma vez que, morto, não mais será consumido pelo consumismo que tenta consumi-lo. Aqui, morrer, é como matar um soldado do inimigo. Já a segunda, mais desejada e substancial vitória está no êxito da revolução que dará cabo do capitalismo.

A conclusão não poderia nem deveria ser outra. Para quebrar o círculo, que para nós é vicioso, mas para o capitalismo é absolutamente virtuoso, que a frase outrossim circular ser consumido pelo consumismo que consumimos expressa, a concupiscência é incompetente. Tampouco o aceleracionista mais empenhado no extermínio do capitalismo demonstra bom rendimento, uma vez que sua estratégia só fortalece o inimigo naquilo que ele quer ser fortalecido. Só mesmo o revolucionário tem a vitória em sua ação, pois só ele sabe, assim como o kamikaze, que a sua eventual morte não significa derrota se algo do inimigo morrer com ele. E também que ser consumido, destruído, derrotado, é sê-lo pelo inimigo, não por sua própria e deliberada ação. Por isso, ‘consumir o consumismo que nos destrói’, para o revolucionário, de outra forma não é lido senão: “destruir a destruição que nos destrói’.

Bernie Sanders, o Al Gore da vez?

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Será o discurso ascendente do democrata Bernie Sanders, candidato à candidato às próximas eleições presidenciais americanas, “An inconvenient truth”, isto é, “Uma verdade inconveniente”, nome do documentário sobre alterações climáticas vencedor do Oscar de 2007, estrelado pelo também democrata Al Gore, que, em 2000, foi escolhido pela maioria da população na disputa presidencial, mas que, por conta da obscura estrutura eleitoral daquele país –em bom português: maracutaia- não foi eleito? Sim e não. A plataforma de Sanders, assim como a de Gore, é inconveniente aos interesses imperialistas. Aos anseios populares, entretanto, é absolutamente conveniente.

Entretanto, assim como Gore, cujo ativismo ecológico imporia limites crescentes ao voraz capitalismo americano, mas que, por isso mesmo, foi deposto peremptoriamente de sua vitória, não estará Sanders outrossim condenado à derrota, ainda que angarie a maioria dos votos populares, uma vez que seus ativismo político-econômico de espectro socialista ameaça com análoga intensidade as ambições capitalistas? Não nos esqueçamos de que Sanders, em 1981 quando eleito prefeito de Burlington, cidade do pequeno Estado de Vermont, foi chamado pelos jornais de “O primeiro prefeito socialista da América”.

Seja em 1981, seja em 2016, Sanders não faz questão alguma de se descolar desse rótulo socialista, muito embora sua plataforma seja tipicamente social-democrata. Além do mais, atualmente dividindo palanques com figuras como Donald Trump e Hillary Clinton, Sanders surfa na sua fama socialista a ponto de fazer as vezes de o Robin Hood norte-americano. No entanto, essa poderosa e revolucionária característica pode ser o seu maior calcanhar de Aquiles. Afinal, em se tratando da presidência da maior potência econômica do planeta, nada que seja verdadeiramente inconveniente aos ditames do capital, como por exemplo a frase de Sanders na sua vitória na primária de New Hampshire, qual seja, “o governo pertence ao povo, não a um punhado de bilionários”, é conveniente, a não ser em forma de utopia.

Porém, como os votos dos americanos a Gore em 2000 e as intenções de voto à Sanders em 2016 deixam bem claro, utopias são fundamentais! Embora o significado comezinho de utopia aponte para fantasia, devaneio, ilusão -o que não lhe atribui potencial revolucionário algum-, desde o século XVI, quando Thomas Moore juntou os termos gregos “Ou” (não) e “Topos” (lugar), utopia passou a dizer “em lugar nenhum”. Por isso, o que é utópico não é necessariamente inexistente, fantasioso, ilusório, mas pode ser também algo real, factível, que, entretanto, só não encontrou ainda lugar para ser. A utopia ecológica de Gore, infelizmente, não deixou de ser uma ilusão até hoje, como a marcha da destruição da natureza deixa bem claro. Já a utopia socialista de Sanders ainda é fiel à definição de Moore, e, quem sabe, pode encontrar lugar no mundo. Aliás, já não está encontrando?

Ora, se o real da política norte-americana –mas não só o dela- é o lugar de doações empresariais milionárias às campanhas políticas, a recusa à essa vil fonte atuada por Sanders, que só aceita doações de cidadãos, e no valor máximo de US$ 3, outra coisa não é que uma utopia que encontrou lugar para existir. Outras propostas de Sanders, que a princípio soam utópicas, mas que, oxalá, podem encontrar lugar na realidade, são: resgatar a democracia das mãos dos milionárias e lobistas; aumentar impostos para os mais ricos; fazer Wall Street bancar o ensino gratuito nas universidades públicas; quebrar os grandes bancos em instituições menores; criar imposto à especulação financeira; instituir um sistema público universal e gratuito de saúde; legalizar imigrantes; combater o preconceito e a discriminação às mulheres, aos negros e às pessoas LGBT; só para citar algumas ideias que, para o $istema, é melhor que sejam utopias no sentido corriqueiro do termo.

Entretanto, ainda que a utopia de Sanders pareça um devaneio, é exatamente ela que a população americana mais está querendo que encontre lugar de existência. Nessa onda utópica, Sanders catalisa como nenhum outro candidato a insatisfação popular, dando novo fôlego à velha luta pelos direitos civis que brilhou nos anos 1960, mas que hoje está tão ofuscada, obesa e sedentária quanto o capitalismo precisa que ela esteja. Para animar essa apatia cética, Sanders tenta fazer um novo movimento de massa com o povo americano para produzir uma revolução política que dê cabo da $órdida $ituação que $itua centralmente os interesses capitalistas e que $itia perifericamente os interesses populares.

Agora, não deverá nos surpreender se Sanders tiver a maioria dos votos populares e ainda assim não assumir a presidência dos EUA, uma vez que, como Gore exemplifica melhor que ninguém, a escolha do presidente dos Estados Unidos, na verdade, se dá nas secretas reuniões dos colegiados eleitorais americanos, que outra coisa não devem ser que “lounges” absolutamente gentrificados nos quais petrolíferas e bancos privados decidem verticalmente o que e quem é mais conveniente para eles. Assim como ativismo ecológico de Gore não era conveniente para os peixe$ grande$ de 2000, o ativismo social de Sanders não deve ser menos inconveniente para os lobo$ voraze$ de 2016. Há 16 anos, a virtude ecológica de Gore “foi deposta” pelo vício bélico-imperialista de Bush filho, o idiota. E hoje, a virtude socialista de Sanders sucumbirá diante do vício xenófobo-liberal de Trump, o palhaço?

Foi porque Al Gore tinha em mãos a mais pura verdade –a necessidade da preservação da natureza a despeito dos interesses econômicos- que ele foi considerado absolutamente inconveniente pelo $istema de há década e meia. O fato de não ter sido empossado apesar da maioria de votos populares é a prova cabal e antiecológica disso. Sanders, por sua vez, e a sua popularíssima verdade social-democrata, são outrossim inconvenientes ao $istema, cuja sordidez nos leva a crer inclusive que se o atual Robin Hood americano findar realmente com a faixa presidencial no peito, é porque ele não é tão verdadeiro nem tão Robin Hood assim. Se Bernie Sanders, em troca, findar como Gore, isto é, nas próprias palavras de Gore, como o “ex-futuro presidente dos Estados Unidos da América”, então teremos certeza de que ele “era” absolutamente verdadeiro e conveniente.

 

Antiguidades imediatas

Na contemporaneidade hiper apressada, as coisas não podem mais esperar o tempo passar para serem consideradas antigas. A antiguidade, hoje em dia, é dada pelo ritmo de produção das novidades. Essa pressa em fazer com que o absolutamente recente já seja tomado por antigo traz a seguinte questão: seria a súbita transformação de parte da atualidade em antiguidade o modo do restante dessa mesma atualidade poder ser percebida como novidade? Qual o tempo mínimo necessário para algo ser de fato antigo? Ou, ao contrário, o tempo nada tem a ver com isso?

Há menos de um mês as linhas de ônibus do Rio de Janeiro foram reformuladas; algumas extintas, outras substituídas. Então, de um dia para o outro, uma das novas linhas veio com o seguinte aviso no para-brisa do ônibus: “antiga 125”. Impressionante! Em menos de um dia, a linha 125, de atual, passou a ser antiga. Entretanto, chamar algo que foi ontem com o mesmo nome usado para falar de algo que foi há mil ou dois mil anos, por exemplo, é não querer falar na imensa diferença que o tempo traz às coisas.

Então, que palavra mais adequada poderia ter sido usada no lugar de “antiga” para designar a recente não-atualidade da linha 125 que, outrossim recentemente era absolutamente atual? Difícil! Até agora não encontrei um termo que melhor fale da diferença que o tempo faz nas simultâneas não-atualidades das coisas. Ok, de certo ponto de vista, tudo que não é atual é antigo. Mas, como dito antes, o antigo de há milênios e o antigo de ontem solicitam diferenciação. Seria o caso então de chamar aquele de “muito antigo”, e este de “recém-antigo”? Não. Isso seria fugir do problema.

O ataque aos Charlie Hebdo em Paris, por exemplo, que se deu em janeiro de 2105, em dezembro desse mesmo ano é o quê? Antigo? Atual? Nenhum dos dois exatamente. Antes, é de uma espécie de atualidade, e também de uma espécie de antiguidade que não se encaixa bem em nenhuma das duas definições. Por um lado, devido ao intenso fluxo de acontecimentos que a contemporaneidade nos traz, um mês depois o massacre dos cartunistas já parecia ser parte de um passado quase distante. Agora, por outro, o fato de estarmos ainda no mesmo ano do atentado nos autoriza dizer que é um fato do presente.

O problema é que o presente absoluto, isto é, o átimo temporal no qual o atual performa a sua plena atualidade, é demasiado estreito. Por isso o que aconteceu, digamos, ontem, ou há dois meses, pode ser chamado apressadamente de antigo. E em relação ao ataque aos chargistas franceses, tanto melhor para a mídia que a tragédia figure como artefato arqueológico dias depois de ocorrido. Afinal, desse modo há espaço, melhor dizendo, necessidade de novas mercadorias midiáticas.

Na contemporaneidade hiperinformacional o já estreito presente está sendo cada vez mais estreitado precisamente para que todos os “agoras” sejam cada vez mais carentes de substância, isto é, de acontecimentos, de mercadorias. A obsolescência apressada das coisas, a antiguidade imediata delas, são coprodutoras do presente atualíssimo a ponto de dizermos que só é possível uma atualidade total se espreitada, cada vez mais de perto, por uma antiguidade estrategicamente imputada a tudo que não queremos que seja considerado verdadeiramente atual. Produção de passado, mais do que nunca, é produção de presente!

E como a contemporaneidade não está aí para brincadeira, essa sua sede de atualidade, que converte cada vez mais presente em passado, chega ao extremo de desatualizar completamente o próprio presente em função de um atual ideal que que precisa ocupar o lugar do atual concreto. Hoje em dia, até o presente já é visto como uma espécie de passado que solicita uma atualização do que sequer deixou de ser. E porventura não é exatamente isso que faz o mundo da moda ao lançar uma tendência que, quando chega às lojas e veste as pessoas já traz outra tendência que faz com que a atual seja já antiga?

A antiguidade apressadamente imputada a tudo que recém deixou de ser, ou até mesmo àquilo que ainda é, é o combustível excelente do motor capitalista contemporâneo que não pode se dar ao luxo de esperar que as coisas envelheçam naturalmente, que fiquem antigas “com o tempo”, para só então produzir mercadorias-novidades que preencham os cada vez mais estreitos e exigentes agoras. Antes, tudo o que há deve necessariamente deixar de ser, o mais rápido possível aliás, inclusive enquanto ainda está sendo, para que o novo seja cada vez mais necessário, e o motor capitalista funcione em velocidade máxima, a sua preferida.

Se a contemporaneidade me impressionou ao chamar de antiga uma coisa que há um dia era atual, impressionaria muito mais se, um mês antes de a linha 125 deixar de existir, já trouxesse o seguinte aviso: “esta linha será a antiga 125”. Seria bem mais a cara da contemporaneidade assumir que até o que é plenamente atual, para ela, já é idealmente antigo. Pois, respondendo à pergunta inicial, não é mais questão de tempo a antiguidade das coisas. Na verdade, o que temos é o sórdido projeto capitalista que, de um lado, produz antiguidade, para, de outro, haver necessidade de um outro produto seu, a novidade.

Natureza, morte de Deus e Capitalismo.

Da perspectiva da Natureza, enquanto os homens eram servos obedientes à Deus, seguindo à risca os Seus mandamentos, ela, a Natureza, era mais preservada do que hoje em dia, quando é no capitalismo – e no seu fantástico paraíso tecnológico – que acreditamos piamente. Ao ignorar os Pecados Capitais, nos alienamos apenas dos “pecados”, mas, infelizmente, não do “Capital”… Com ajuda da Ciência Moderna e de sua filha predileta, a tecnologia, o capitalismo desferiu o golpe fatal contra Deus, e, com a arena universal limpa de um “zelador’ transcendente, explorou e destruiu sistematicamente a Natureza. Entretanto, é urgente uma reunião de condomínio na Terra antes que ela seja totalmente destruída pelo seu profano síndico atual, o Capital.

Onde está a ecologia inerente à velha ficção chamada “Deus” que perdemos ao escrever a nova ficção chamada “Modernidade”? Sim, porque a “Moderna Morte de Deus” em outra coisa não resultou senão na morte da ideia de que a Natureza é o que há de divino. A vida simples outrora ditada por Deus direcionava colateralmente os homens a uma relação mais harmoniosa com a Natureza. Com Deus vivo e lá em cima nós, aqui em baixo, éramos mais ecológicos. Sem Ele, entretanto, e com o Capitalismo no seu lugar, ecologia passou a ser apenas mais um objeto-mercadoria inalcançável, senão para que seja compulsivamente consumida e descartada, conforme a cartilha do capital.

Entretanto, o contraponto que poderíamos chamar de divino em relação ao Capeta-capitalismo que destrói perversamente a Natureza só pode ser a Ecologia, uma vez que ela é a única razão que ainda se sustenta contra a imperiosa destruição capitalista da Natureza. O problema dessa nova deidade ecológica, todavia, é que quando no Mármore Ardente do Capital parece tão transcendente quanto o velho Deus que, frisemos, seria bom ela substituir. Afinal, no mundo em que vivemos, que melhor ópio do povo, como um dia Deus foi, que a ecologia?

É Slavoj Žižek que entende que a Ecologia hoje assume a autoridade inquestionável outrora encarnada em Deus, impondo-nos limites inexpugnáveis às nossas ações e nos convencendo da nossa finitude. Com efeito, não seguir a razão ecológica – ou o que é o mesmo, a razão! – é o que nos condena ao inferno (aquecimento global, desertificação das florestas, falta de água etc.). Se, antes, a ideia de Deus de certa forma limitava a destruição da Natureza por nós, hoje “a Ecologia funciona como ideologia no momento em que é evocada como um novo limite”, diz Žižek. Com efeito, é somente ela que nos avisa, o tempo todo, do pecado insustentável da nossa vida consumista-hedonista que só se sacia consumindo descontroladamente a Natureza.

E se, de fato, é bom e racional que a Ecologia seja o nosso novo Deus, é justamente por conta do mar de pecadores antiecológicos perdidos no mundo. Diante do Diabo Capitalista e de sua catástrofe ecológica infernal o maior pecado, largamente cometido aliás, é encobrirmos o Mal justamente com o falso Bem com o qual próprio o Mal nos engana (as nossas desejadas mercadorias!). Ou, como aponta Žižek, o nosso pecado ecológico engendra “até inclusive a vontade direta de ignorância”. Isso porque, conforme o ambientalista Ed Ayres, “o padrão geral de comportamento entre as sociedades humanas ameaçadas é tornar-se mais tacanha, em vez de mais focada na crise, à medida que desmoronam.”

Se há um paraíso, ele é e sempre foi a Natureza, desde muito antes da invenção de Deus por nós. Todavia, a histeria da modernidade nos fez esquecer de que o “Capetal” – perdoem-me o inevitável trocadilho – só reina roubando incessante e perversamente “da” Natureza. Em troca, se queremos ver o Deus Ecológico reinar e engrandecer “a” Natureza, devemos seguir o conselho de Žižek: “tratar a Terra com respeito, como algo fundamentalmente sagrado, algo que não deve ser de todo revelado, que deve permanecer para sempre um Mistério, uma força que deveríamos aprender a confiar, não dominar.”

Para isso, contudo, o luxurioso casamento entre o Capitalismo e a Tecnologia – cuja prole obscena é o mundo de mercadorias que nos aliena justamente da obscenidade dos seus pais prolíficos – deve ser desfeito. Melhor dizendo: “desdivinizado”; “dessacralizado”; reificado a ponto de restar claro que tal casal é a origem do Mal que profana a Natureza. Só não haverá Mal algum em termos matado o histórico Deus cristão se mantivermos intacta a sacralidade da Natureza, que, aliás, é bem mais antiga do que Ele. Eterna até, diz-nos Spinoza, para quem a eternidade, mas também a perfeição, são a própria Natureza.

Entretanto, as “religiosidades” estrategicamente laicas do capitalismo e da tecnologia ou pregam que nada é sagrado, “tudo deve ser descoberto,devassado, profanado!”, ou, o que é muito pior, afirmam mentirosamente que sagrados são exclusivamente eles dois. Diante de vis mandamentos, somos servos do Mal, estamos condenados ao horror de um futuro infernal em pleno paraíso terrestre, o qual, aliás, destruímos em nome desse Deus Mal. As profanações do capitalismo e da tecnologia juntos nos fazem esquecer da maior – e talvez a única! – utilidade do sagrado, qual seja, parafraseando o poeta Rainer Maria Rilke, que “o Sagrado é o último véu que cobre o horror profano”.

#somostodosMadameBovary

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Madame Bovary, personagem do livro “O Romance dos Romances”, de Gustave Flaubert, escandalizou a sociedade de 1850 ao encarnar literariamente o “pathos” da modernidade, devolvendo cruamente aos seus leitores o indesejado sintoma psicológico produzido pela própria modernidade: a histeria. Nós, pós-modernos, não nos escandalizaríamos mais com uma Madama Bovary, não exatamente pelo fato de a histeria ter sido erradicada da nossa contemporaneidade, mas, ao contrário, porque hoje em dia ela é assaz democratizada. Pelo jeito não somos tão pós-modernos assim! Na verdade, ainda somos absolutamente modernos Absolutamente Madames Bovary.

No livro de Flaubert, Emma casou-se com Charles Bovary na esperança da felicidade burguesa-romântica que a sua época vendia como sendo a “verdadeira felicidade”. Porém, seu marido era um médico entediante e simplório. Então, em pouco tempo, ela já estava aborrecida e infeliz por perceber que a tal felicidade sonhada nunca viria, ou o que é pior, sequer existia. A vida interiorana de Emma e de seu esposo só piorava as coisas, principalmente por mantê-la alienada da roda capitalista-hedonista que já alegrava as capitais do mundo, resolvendo histericamente toda sorte de insatisfações individuais. Isso, porém, até um mascate oportunista abrir-lhe o universo das mercadorias refinadas vindas da iluminada Paris e do exótico Oriente.

Na primeira vez que o mascate ofereceu a Emma as caras sedas javanesas e as revistas de moda parisienses, ela, ingenuamente, disse que não podia comprá-las, alegando que o seu esposo não era rico. Aí o capitalismo, sem papas na língua, finalmente se apresentou mediante as palavras do mascate: “você pode ficar com tudo isso, mademoiselle, à crédito”. Ela ainda não tinha a menor ideia do que “à crédito” significava. Não obstante, entendeu rapidinho, sobretudo amou esse modo “a perder de vista” de amenizar a sua angústia pessoal que justamente queria perder de vista. Doravante, a suspensão do seu tédio, ainda que inadvertidamente paliativa, passou a ter o alto preço do que ela podia consumir à crédito.

A insatisfeita pequeno-burguesa, seduzida pelo capitalismo e pelas ilusões das revistas de moda de sua época, fez o mesmo que nós fazemos hoje em dia, seduzidos que somos pelo nosso (mesmo) capitalismo e pelas nossas (outras) modas: sucumbiu diante dos insustentáveis horizontes expandidos oferecidos ao Sujeito Moderno – assim como nós sucumbimos permissivamente aos ilimitados horizontes que a nossa pós-modernidade nos vende. E tanto faz se esse “nós” é burguês ou não, pois, atualmente, até os mais pobres guardam dentro de si um pequeno-burguês histérico, uma vez que todos somos alvos já alcançados e totalmente seduzidos pelo capitalismo e suas modas.

Porém, como o Sujeito Moderno é um saco sem fundo -tal é a histeria-, Miss Bovary não permaneceu feliz por muito tempo com as muitas mercadorias que comprava. Mal sabia ela que as benesses capitalistas nunca visaram a felicidade dos seus consumidores. Então, para dar conta da sua insistente infelicidade que o consumo à crédito sozinho não podia mais remediar, Emma passou a se envolver em relações amorosas-sexuais extraconjugais. Por um átimo, ela parecia ter encontrado a fórmula Moderna da felicidade: consumo&perversão. Ah! Mais um item fundamental: a mentira. Escondia sistematicamente de seu marido tanto os seus extravagantes gastos quanto, e principalmente!, os seus amantes.

Entretanto, como os amantes de Emma também eram Sujeitos Modernos, tampouco eles permaneceriam muito tempo satisfeitos com ela, ou com qualquer coisa que fosse. Nesse meio tempo, a conta que Emma há muito fazia com o mascate teve de ser irremediavelmente paga. Só que nem todos os bens dela e do marido saldavam a enorme dívida que ela havia contraído nos últimos anos. Procurando seus amantes agora também pelo dinheiro que lhe faltava, eles a rejeitaram terminantemente. Novamente sozinha com a sua velha infelicidade, Emma não suportou a situação. Desesperada, bebeu um veneno do boticário do marido-médico, correu para o meio da floresta, e morreu, deixando para trás o Mundo Moderno que sequer o Sujeito Moderno conseguia suportar.

Quão diferentes somos de Madame Bovary? Muito pouco, certamente, visto que só encontramos alívio para o insaciável vórtice pós-moderno no qual estamos imersos nas mentiras do capitalismo, no hedonismo consumista, na perversão sexual e, quando nenhum destes funciona, drogas venenosas. Mas por que Emma e nós precisamos de tudo isso simplesmente para não sermos infelizes? Ora, porque o Sujeito que nasceu na modernidade, e que cresce pujante na pós-modernidade, só faz mentir às pessoas que elas devem, a qualquer preço, ser mais do que são; que a realidade precisa ser mais do que é. Não que na antiguidade as pessoas e a própria realidade não parecessem faltosas. Porém, o advento da modernidade produziu mercadorias e perversões suficientes para estimular infinitamente essa falta fundamental que o ser humano enxerga no real.

#somostodosMadameBovary porque nunca estamos satisfeitos com a realidade ordinária que nos circunda, sobretudo por crermos piamente que a solução para a nossa insatisfação crônica deve sempre vir de fora, custar caro, ser bela, produzir orgasmos constantes e/ou múltiplos ou, na irrealização destes, matar-nos de vez. Emma morreu vítima de sua Belle Époque, mas segue presente na “notre époque postmoderne” nomeando o sintoma moderno por excelência. A psicologia se inspirou em Miss Bovary para cunhar um termo que falasse da insatisfação crônica de um ser humano, do conflito entre suas ilusões e aspirações, e da realidade insuportável que resulta desse embate: “bovarismo”.

Emma Bovary acreditou na ilusão de sua época que mentia que todo Sujeito deve e pode ser mais feliz do que realmente é. Melhor dizendo: tão feliz quanto o capitalismo e as revistas de moda são capazes de mentir. Os nossos capitalismo e modas outrossim nos convencem de uma felicidade sempre maior do que a que experimentamos ordinariamente. Então, compramos à crédito, trepamos constantemente e nos envenenamos alegremente apenas para fazer jus a tal ideal, que, entretanto, está sempre distante de nós alguns cifrões, orgasmos e doses de veneno. Isso que desde a modernidade chamamos “felicidade” é, na verdade, um mito, pois só os mitos nunca têm lugar na realidade. Não é à toa que o bovarismo é caracterizado como uma forma de mitomania. Desse modo, #somostodosMadameBovary porque insistimos no mito feliz que o capitalismo e a modernidade nos fizeram crer que é a realidade.

Imigrantes Clandestinos na Imigração Capitalista

-Quem são vocês? – perguntou o Senhor Capitalismo a milhares de pessoas empoleiradas em uma casca de noz clandestina que boiava na parte mais profunda do Mar que separa os mundos humanos.

-Somos Imigrantes fugindo da guerra e da miséria – disseram eles, amedrontados.

-E para onde vocês pensam que vão? – indagou o Capitalismo.

-Para o Primeiro Mundo – disseram eles timidamente -, o lugar onde a vida é melhor!

-E quem disse que vocês podem zanzar pelo mundo, assim, na hora que lhes dá na telha? – insiste o Capitalismo.

-O próprio mundo, ora bolas. A gente nunca teve internet, sabe, mas mesmo assim ouvimos que o mundo agora é globalizado. Então, achamos que seria natural migrar. Poderíamos até dizer que as migrações sempre foram naturais à humanidade. Entretanto, como sequer estudamos, nunca aprendemos isso – responderam os Imigrantes.

-É, vejo que vocês estão por fora do que é globalização… Mas eu vou explicar. Na verdade, o que é globalizado, minha gente, sou eu. Somente eu posso atravessar todos os mares do mundo sem ser barrado. Sem mais, almoço um “paiseco” latino-americano subdesenvolvido, faço a digestão nos EUA, tomo a Inglaterra no chá das cinco, janto Paris, e, se me parecer mais lucrativo, madrugo nas terras de vocês raspando as migalhas que ainda lhes resta. Isso é globalização, nenéns! – desdenha o capitalismo.

-Ah! Disso nós já sabemos – disseram os pobres coitados. -Mas também sabemos que hoje em dia qualquer pessoa pode viajar pelo mundo. Tá certo que não nessa casca de noz aqui, mas de avião, transatlântico, carros esportivos…

-Hahahaha! – Riu o capitalismo. –Vocês acham que basta ser “pessoa” para poder viajar livremente pelo mundo? Digam-me: sem o quê, exatamente, elas não poderiam deixar os buracos de onde partem e para onde voltam, hein?

-Dinheiro? – perguntaram eles, inseguros.

-Exatamente! – Respondeu o Senhor, seguro de si. – É só por causa do dinheiro, melhor dizendo, do capital, que os viajantes são aceitos. Se gastarem bastante em passagens aéreas, hotéis, restaurantes, turismo sexual, por exemplo, é que podem viajar o quanto quiserem. Agora, sem lenço nem documento, como vocês, não, né!

-Mas Senhor Capitalismo, nós estamos indo para o primeiro mundo justamente para nos capitalizarmos, para podermos viajar na sua primeira classe, hospedarmo-nos nos seus hotéis, comermos decentemente nos seus restaurantes… e também aquilo que o Senhor disse por último também, afinal, também somos gente, né…

-Vejam bem, – o Capitalismo os adverte -, é somente a partir de determinada quantia de money que alguém pode ser considerado “gente”. Com um patrimônio um pouco maior esse alguém até pode comprar os Direitos Humanos Universais. Mas de bolsos completamente vazios, desculpem-me, sem essa de “também somos gente”.

-O Senhor não escutou o que dissemos? Estamos migrando justamente para trabalharmos e juntarmos essas quantias mínimas de dinheiro para assim comprarmos a nossa humanidade! – Disseram eles, começando a perder a paciência.

-Vocês são muito tolos mesmo – diz o Capitalismo, interrompendo os Imigrantes. –Onde vocês ouviram essa besteira de que é através do trabalho que se ganha dinheiro? Essa é boa! Olha, vou falar um vez só, viu, escutem bem: o trabalho é o modo através do qual EU ganho dinheiro. Vocês, reles mortais, e tanto faz se forem africanos subnutridos ou norte-americanos obesos, enquanto trabalham, só fazem me enriquecer. Portanto, esqueçam essa história de irem para o Primeiro Mundo para lá serem “gente”. Vocês, de um jeito ou de outro, terminarão mais miseráveis do que já são. Sem dizer que a miséria de vocês já é bastante lucrativa para mim com vocês no submundo onde nasceram.

-É justamente por isso que estamos indo embora de lá – gritou um dos Imigrantes -, porque quando o Senhor vai lá lucrar com a gente, o nosso muito pouco se transforma em absolutamente nada! Agora, se estivermos ganhando um salário de fome nível Primeiro Mundo, podemos ser melhor explorados pelo Senhor e, quem sabe, com um trocado ou outro que reste, comprarmos alguns Direitos Humanos. Não todos, obviamente, pois sabemos que a humanidade total é coisa de rico.

-Hum… – balbucia o Capitalismo, coçando o seu cavanhaque burguês ao analisar a proposta do lumpemproletário Imigrante. Aproveitando o inesperado silêncio do Capitalismo, os demais Imigrantes suplicam:

-Isso mesmo, seu Capitalismo, deixe a gente seguir viajem, por favor! Faremos qualquer coisa. Juramos que trabalharemos feito escravos seus; pagaremos os altos preços de suas capitais; nos esconderemos em favelas, bem longe dos seus centros gentrificados urbanos; não usaremos os seus hospitais e escolas. Deixa a gente tentar te enriquecer mais um pouquinho, vai…

-Isso começa a cheirar bem – diz o Capitalismo, baixando um pouco a guarda. -Agora vocês estão falando a minha língua! Mas, esperem! Não basta um subemprego e uma vida miserável. Se a gente não pensar muito bem aonde a miséria de vocês é mais lucrativa, vocês acabam me desequilibrando todo. Deixe-me pensar bem para onde eu mando vocês.

-Ué – diz outro Imigrante -, mas o Senhor não contou que está em todos os lugares, que é a globalização em pessoa? Que diferença faz então se a gente for para um lugar ou para outro? Deixe-nos pelo escolher para onde.

-Nã, nã, nã, nã, nã! – falou verticalmente o Capitalismo. Deixe de ser impertinente, menino. Se não, afundo essa casquinha de noz aí de vocês, hein?

-Não, Senhor Capitalismo! Não nos mate, por favor! – gritaram em coro os milhares de Imigrantes. –Tudo bem – disseram alguns deles -, a gente aceita que o Senhor nos leve para onde achar mais adequado. Mas, por misericórdia, não nos faça voltar para casa.

-Ah bom! Assim é melhor – disse o Capitalismo, já pensando qual seria o melhor destino para a cambada de imigrantes clandestinos. Prossegue:

-Não sei se vocês sabem, mas nos países mais ricos do mundo a tecnologia tirou todos os verdadeiros seres humanos das minhas mais desumanas tarefas. A Alemanha, por exemplo, é tão rica que as pessoas não precisam nem mais procriar. A população desse nobre país está encolhendo, o que é um problema sério para mim…

-É para lá que queremos ir então! – Interpelam os Imigrantes.

-Combinado – disse o Capitalismo. -Deixe-me contatar as forças humanitárias para que elas venham com os meus barcos superpotentes, devidamente uniformizadas, e resgatem vocês dessa casca de noz ridícula, antes que vocês se afoguem. Do contrário, vai parecer que sou cruel. Sabe que não precisa muito para os comunistas falarem mal de mim, né

-Isso, tire-nos rápido daqui, Senhor! Por favor.

-Calma, gentalha. Preciso repercutir o problema de vocês antes. Tenho uma voraz mídia sensacionalista que precisa divulgar a miséria de vocês, para lucrar bastante com ela antes de vocês caírem novamente no esquecimento do mundo, e antes que eu siga lucrando com vocês até as suas mortes – pede calmamente o Capitalismo.

-Não, Senhor Capitalismo, nós já estamos expostos demais, não faça troça internacional com a gente – suplicam os Imigrantes.

-Vem cá, vocês não entendem que sem o problema de vocês ser bem banalizado as pessoas do Primeiro Mundo não se sentirão superiores a vocês, privilegiadas a ponto de poderem consumir burguesamente a prática do humanitarismo? Se esquecem de que quando um rico ajuda um pobre, ajudar senão a si mesmo? É que esses burgueses são muito românticos… Veem alguém miserável e já ficam sofrendo só em imaginar o que seria a miséria. Ademais, ser humanitário de vez em quando faz com que os ricos se sintam ricos justamente naquilo em que são absolutamente pobres, isto é, em humanidade. Tá! Vai dizer que vocês acharam que algum rico ia ajudar vocês para que VOCÊS fossem felizes? Façam-me o favor…

-É que estamos com sede, com fome, com sono – explicam os Imigrantes. -Não podemos esperar o mundo ler jornais e rolar os seus feeds de notícias do Facebook até que se torne natural aceitar Imigrantes desesperados dispostos a serem explorados.

-Ui, Ui… Vocês já não estavam com fome, sede, e já suficientemente miseráveis antes? – Pergunta jocosamente o Capitalismo. -Que história é essa de achar isso estranho justamente agora? Eu Hein. Se fosse pela miséria “natural” de vocês eu e burguesada geral já teríamos ido no fim do mundo de onde vocês brotaram para buscá-los.

-E por que não fizeram isso até agora? – perguntam os esfomeados.

-É que… – titubeia o Capitalismo, procurando a melhor maneira de dizer o pior. Todavia, sem conseguir, diz do seu jeito mesmo: -Miséria pouca é bobagem!

-Ah! – exclamam em coro os Imigrantes. Pode crê! Miséria pouca é bobagem. Se a gente for mais miserável do que já somos obviamente as coisas podem ir mais rápido!

-Ignorantes espertos vocês, hein! – completa o Senhor impiedoso.

-Gente, gente! – Gritam os imigrantes uns aos outros. –Vamos pular, uns de nós, no mar e morrer. Assim as notícias correm mais rápido, e mais rápido quem restar chega ao Primeiro Mundo!

-Isso! – diz o Capitalismo. -Se a metade de vocês morrer a outra metade chega mais rápido ao meu destino! Mas, claro, a pressa é de vocês.

-Já sei! – Exclama um dos Imigrantes lá do fundo da casca de noz. –Falta-nos um símbolo universal com o qual o mundo não resista e não demore em nos ajudar.

-Mas nós já estamos morrendo, idiota – diz um Imigrante ao se lançar ao mar. -O que mais podemos fazer?

-É que a morte anda tão banalizada hoje em dia – responde o primeiro -, que precisamos de uma morte que fique bem na foto, abaixo da manchete internacional que somos.

-Estou gostando disso – disse-lhes o Capitalismo. –Posso dar uma sugestão? Afinal, sou um ótimo publicitário…

-Claro, Senhor, ajude-nos!

-Um bebê! – Diz o Capitalismo, como se imaginasse um comercial de TV. – Um bebê imigrante clandestino morto, levado pelas marés, chegando a uma praia europeia, em pleno verão… Voilá! Tenho certeza que com algo assim nós sensibilizamos a insensibilidade do mundo.

-Mas… – dizem os pobres Imigrantes, olhando-se uns nos olhos dos outros, aturdidos com a proposta absurda feita pelo Capitalismo -, ninguém merece isso, nem mesmo os burguesinhos…

-Não interessa! – impõe o Capitalismo.

-Não! Isso nós não aceitamos – dizem os Imigrantes. – Nossos bebês já são maltratados demais pelo Senhor. Poupe pelo menos os nossos bebês!

-Calem a boca vocês que restam vivos e me deem esse bebê aqui – ordena o Capitalismo.

-Não! Não! Não! Tenha piedade de nós! – Pedem os coitados

-Piedade? Vocês não estão trocando os deuses, hein? Piedade é coisa que se pede para o pai ausente daquele hippie crucificado. Como é mesmo o nome dele?

Enquanto os Imigrantes pensavam qual deus seria piedoso para com eles já era tarde demais. O bebê que o Capitalismo escolheu para ser o símbolo de mais recente crise humana já boiava, inanimado, seguindo em direção à uma praia turca.

E não é que o Capitalismo estava certo? Dias depois, a imagem da pobre criança estava na capa dos jornais de todo o mundo, sensibilizando até as almas burguesas mais egoístas, levando-as a terem vontade de consumir a nova mercadoria da moda, qual seja, o humanitarismo para com os Imigrantes Clandestinos. Humanidade paliativa!

O acerto de um erro petista

Realmente, o Partido dos Trabalhadores cometeu um grande erro na esteira da crise internacional de 2008: preservar os trabalhadores brasileiros. Decerto que é um erro gravíssimo para o capital, pois, embora o capitalismo precise de um exército de mão de obra que produza a sua riqueza, carece mais ainda de hordas de trabalhadores desempregados, desvalorizados, disponíveis e, sobretudo, compráveis por qualquer migalha. É com este último time que o capitalismo limita, mas também rouba, o valor do primeiro, pois havendo muita mão-de-obra ociosa no mercado o valor do trabalhado não faz frente ao valor do capital.

Se o governo brasileiro dos últimos sete anos fosse radicalmente liberal, na iminência da crise ele teria não só permitido, mas também articulado o aumento estratégico do desemprego, pois assim o valor dos salários cairia forçosamente – de acordo com a lei da oferta e da procura. Assim os empresários novamente fariam dos trabalhadores a sua vil moeda de negociação com a crise para manterem seus lucros, transferindo os custos senão aos próprios trabalhadores, que teriam ou de se vender por menos, ou produzir mais pelo mesmo salário – apenas para não serem exilados ao estado do desemprego. Isso porque o capitalismo mente muito bem que riqueza significa a grande riqueza de poucos, e não a ausência de miséria da maioria.

Entretanto, depois de 2008 o governo brasileiro fez diferente. Colocou o Estado inteiro na manutenção dos altos níveis de emprego. Isso, por conseguinte, manteve o valor do salário diante o valor do capital, o que afrontou, mas também desvalorizou este último. Sem uma massa desempregada de manobra, o capitalismo tupiniquim, não podendo trocar o valor do trabalho por bônus crísicos, teve de ir beber nos seus próprios lucros, coisa que, historicamente, está desacostumado.

Com efeito, as duas últimas vezes em que, no mundo, o capital foi sistematicamente comprometido no reerguimento e na manutenção social – e, para Thomas Piketty, as duas únicas! – foi durante as grandes guerras e na sequência delas. Do contrário, as sociedades envolvidas nos embates solapariam. Todavia, no mais das vezes, como na crise de 2008, em muitos países o trabalhador é que foi comprometido no salvamento do capital. A dívida que os Estados Unidos, mas não só eles, legou aos seus cidadãos para que os bancos – veja bem, os bancos! – não quebrassem, é o procedimento cotidiano do globalizado sistema econômico.

O “erro” petista em não seguir a vil&pragmática cartilha capitalista, contudo, tem o grande acerto de fazer com que não só os trabalhadores fossem afetados e comprometidos pela crise, mas também os empresários, ou o que é o mesmo, o próprio capital. Se tivesse sido diferente, o vilipêndio dos trabalhadores, tão naturalizado e facilmente “abstraível”, sequer teria sido manchete enquanto os lucros dos capitalistas permanecessem altos. Agora, no momento em que o capital também paga a conta da crise, as manchetes e as ruas com altos IPTUs gritam histericamente o fim dos tempos – ou o impedimento do governo que não os deixou de fora da tempestade.

As manifestações “coxistas” de 2015 expressam sobretudo o descontentamento dos representantes do capital diante da insistência do governo em não desvalorizar os trabalhadores sem antes dispor da riqueza nacional, objeto do desejo dos capitalistas. Como assim gastar com os não-ricos aquilo de que os ricos precisam para serem o que são? Os mais insatisfeitos com o governo petista repetem, sem saber, uma ideia de Aristóteles que, entretanto, faz com que uma democracia seja, de fato, uma oligarquia: “seria ainda mais sábio não obrigá-los [os ricos] a grandes despesas e até mesmo proibir-lhes serem úteis para o povo”

Entretanto, a estratégia de não lançar primeiro os trabalhadores aos leões da crise, para com isso evitar que o capital fosse devorado, mas, em troca, iniciar saciando a voracidade da crise econômica com a própria carne capitalista sempre excedente, para só depois alistar o trabalhador no exército contra a crise, não pode ser visto como erro, principalmente por parte dos próprios trabalhadores. Talvez seja a primeira vez na história brasileira que a classe trabalhadora tenha sido economicamente priorizada em detrimento do capital. Quanto mais não seja porque é obra do Partido dos Trabalhadores.

É natural que a ameaçada oligarquia capitalista bata panela, manifeste incredulidade e insatisfação, afinal, um governo ousou não lhe preferir. Além do que, e a contragosto deles próprios, o país permanece democrático e permeável à manifestações, mas não só às suas. Se desde o início da crise – nascida internacional em 2008, mas só agora naturalizada brasileira – as coisas tivessem ocorrido de acordo com os preceitos capitalistas, como nos EUA, onde os trabalhadores ficaram sem casa e sem emprego para que os banqueiros mantivessem seus bônus estratosféricos, a nossa elite estaria tão preservada quanto satisfeita&silenciosa.

Porém, enquanto a crise mundial desempregava e despejava trabalhadores de vários países, os brasileiros, ao contrário, tiveram seus empregos e salários preservados. Isso, com efeito, afronta qualquer elite! Agora, contudo, como assumiu a nossa presidenta, a coisa mudou. Chegou a hora de todos lutarmos juntos para sairmos da crise, não só os capitalistas, mas também os trabalhadores. Obviamente, não se trata de uma boa notícia, mas nela subjaz uma virtude que não deve passar em branco: a crise está mais democratizada do que nunca, e não são mais os trabalhadores que pagam sozinhos a conta. Se o governo do Brasil errou em não agir de acordo com o “jeitinho capitalista”, essa falha não tem preço! Porém, como há um custo social sempre expresso em cifrões, é melhor que, em uma democracia, ele seja dividido democraticamente.

Artesão e cliente

Como eu sou um artesão, está na essência do meu trabalho considerar diretamente as necessidades dos meus clientes, sejam eles diretores de teatro, coreógrafos de dança, colecionadores de Barbie, ou conhecidos que encomendam de mim coisas de que precisam. Todos dizem, a mim, pessoalmente, o que querem. Eu, do meu lado, ouço o que eles dizem, porém, mais do que captar o que as suas palavras-pedidos tentam explicar, devo encontrar nos seus olhos aquilo que eles querem, mas que suas palavras não conseguem dizer.

Obviamente, uma máquina de Coca-Cola não poder fazer isso, afinal, ela foi programada justamente para não reinterpretar nada além do preciso botão que o seu cliente apertou. Imagine uma máquina dessas decidindo se é Coca Zero o que o cliente precisa ou se sua massa corporal justifica uma Coca “normal”! O artesão, ao contrário, pode fazer isso, isto é, acrescentar algo de humano e de inédito à relação do seu cliente com aquilo de que ele consome.

Quando compramos nossas coisas em lojas, decerto isso nos satisfaz. Porém, as mesmas forças que aqui nos levam às compras, logo ali, obrigam-nos a descartar aquilo que acabamos de comprar. A satisfação desse tipo de consumo, portanto, é criticamente efêmera. Dessa relação, com efeito, somos escravos, todavia ideologicamente iludidos de que somos os senhores da relação. Ilusão oriunda do fato de os escravos nunca olharem nos olhos do verdadeiro senhor enquanto olham para as mercadorias da C&A ou da Coca-Cola.

Agora, quando uma pessoa encomenda de outra, por exemplo, uma roupa, eis uma relação produção-consumo na qual ninguém é escravo nem senhor. Isso suspende virtuosamente o vicioso ciclo capitalista que insiste em fazer do consumo o motor da necessidade. A relação com o artesão coloca em perspectiva não somente o claro e central ponto-de-fuga do consumidor, isto é, o prazer que ele espera do consumo, mas, principalmente, o ponto-de-vista desse consumidor, pleno de desejos – que, entretanto, extrapolam a capacidade de qualquer roupa ou coisa em saciá-los.

Um colega meu soube que eu costurava. Então, encomendou-me uma bolsa. Por um lado, porque precisava, e, por outro, segundo suas palavras, porque preferia dar o dinheiro que essa sua necessidade lhe dispôs a investir a uma pessoa do seu círculo, e não a uma marca internacional&impessoal qualquer. Talvez por ser de outra área de atuação que não a minha, ele, que é músico, não sabia falar de tecidos, de tipos de costura, de aviamentos, ou seja, das concretudes do que ele queria. Em vez disso, dava-me, com suas palavras e mãos, um desenho abstrato, assaz subjetivo, entretanto, daquilo que atenderia a sua necessidade objetiva.

Vi que não era o caso de “brifar” com ele as especificações técnicas da materialidade envolvida no seu pedido. Isso era tarefa da minha arte(sanato). Estava mais nos seus olhos do que em suas palavras aquilo que ele queria. Alguns dias depois, com a sua bolsa em mãos, também dos seus olhos vieram uma gratificação melhor do que o dinheiro que eu recebi por ela. Seu olhar, além de misturar gratidão e satisfação, também era a expressão de uma pequena, porém possível, alforria em relação ao sistema de consumo que, por insistir ser a única opção, nos escraviza.

Trabalhando dessa forma, isto é, diretamente para alguém, reencontro sistematicamente o meu lema preferido, qual seja, o comunista: “de cada qual segundo a própria capacidade, a cada qual conforme a sua própria necessidade”. Do lado do meu cliente, a sua necessidade particular concreta e a sua capacidade de explicá-la. Do meu lado, a necessidade de compreender a particularidade do seu desejo, de acordo, é claro, com a minha capacidade para atendê-lo, quiçá superá-lo. Uma vez que todos nós temos necessidades e capacidades particulares, é apenas com os olhos nos olhos que duas pessoas podem compartilhar as suas sem que uma esteja acima da outra.

Outra subversão impertinentemente mantida viva por alguns artesãos e os seus clientes é a redução do consumo. O destino fatal de qualquer coisa comprada em uma loja é ser substituída por outra de acordo com os ditames do mercado. Afinal, aquilo que compramos, mas que não foi feito especialmente para nós, por não suprir desejo particular algum, não encontra espaço de permanência nas nossas vidas.

Agora, quando temos, por exemplo, uma camisa feita especialmente para nós, nascida de algum desejo nosso e materializada de acordo com as nossas medidas – de corpo, de valor etc. -, substituí-la por algum novo lançamento da moda perde qualquer sentido. Uma bolsa, uma calça, um sapato ou um móvel, desde que feitos de acordo com as nossas necessidades particulares, com efeito nos acompanharão, senão por toda a vida, pelo menos por muitos anos, em saudável detrimento à obsolescência programada da moda consumista-escravizadora.

Infelizmente, o mundo será uma senzala do capital enquanto as máquinas de Coca-Cola e as lojas da C&A produzirem as muitas coisas de que necessitamos para viver. Entretanto, antes de propor que a relação artesão-cliente é solução para esse problema, é preciso ser dito que tal relação é anterior ao capitalismo. Aliás, foi contra esse tipo de organização econômica particular e pessoal que o capitalismo inventou a economia globalizada e impessoal. Sendo assim, a virtuose artesanal não deve ser vista como solução ao capitalismo, mas, ao contrário, este é que deve ser visto como o vício que impede a virtude daquela.

De qualquer forma, comprar pronto aquilo que desejamos, independente de quem o produza e de que necessidades tenham sido levadas em conta nessa produção, outra coisa não faz senão nos manter escravos do capital, o senhor do consumo sistemático. Entretanto, embora eu, no mais das vezes, seja um desses escravizados, quando produzo uma bolsa, uma calça, um móvel ou um cenário para alguém, sinto-me produtor não só de realidades materiais, mas de realidades ideais, nas quais, aliás, eu e o meu cliente somos os senhores, virtuosamente sem escravos.

Um acertado erro petista

Um acertado erro petista

O Partido dos Trabalhadores cometeu um grande erro na esteira da crise internacional de 2008: manter e aumentar os níveis de emprego no Brasil. Mas essa falha, longe de ser contra o povo – aliás, o priorizou -, foi contra o próprio sistema econômico. Ora, o capital precisa de um exército de mão de obra para produzir o seu valor. Entretanto, carece também, senão mais, de hordas de trabalhadores desempregados, disponíveis e, sobretudo, desesperados por trabalho. É com este último time que o capitalismo limita, mas também rouba, o valor do primeiro, pois havendo muita mão-de-obra ociosa no mercado o valor do trabalho não faz frente ao valor do capital.

Se o governo brasileiro dos últimos sete anos fosse radicalmente liberal, na iminência da crise ele teria não só permitido, mas também articulado, o aumento estratégico do desemprego, pois assim o valor dos salários cairia forçosamente – de acordo com a lei da oferta e da procura. Assim os empresários novamente fariam dos trabalhadores a sua vil moeda de negociação com a crise para manterem seus lucros, transferindo os custos aos próprios trabalhadores, que teriam ou de se vender por menos, ou produzir mais pelo mesmo salário – apenas para não serem exilados ao estado do desemprego. Isso porque o capitalismo mente muito bem que riqueza significa a grande riqueza de poucos, e não a ausência de miséria da maioria.

Entretanto, depois de 2008 o governo brasileiro fez diferente. Colocou o Estado inteiro na manutenção dos altos níveis de emprego. Isso, por conseguinte, manteve o valor do salário diante o valor do capital, o que sobremaneira afrontou, mas também desvalorizou este último. Sem uma massa desempregada de manobra, o capitalismo tupiniquim, não podendo trocar o valor do trabalho por bônus crísicos, teve de ir beber nos seus próprios lucros, coisa que, historicamente, está desacostumado. Aí a velha vaca tossiu.

Com efeito, as duas últimas vezes em que o capital foi comprometido, sem escapatória, no reerguimento e na manutenção social – e, para Thomas Piketty, as duas únicas – foram nas grandes guerras. Do contrário aquelas sociedades solapariam. Todavia, no mais das vezes, como na crise de 2008, em muitos países o trabalhador é que foi comprometido no salvamento do capital. A dívida que os Estados Unidos, mas não só eles, legou aos seus cidadãos para que os bancos – veja bem, os bancos! – não quebrassem, é o procedimento cotidiano do atual sistema econômico.

A falha petista em não seguir a pragmática cartilha capitalista, contudo, tem o grande acerto de fazer com que não só os trabalhadores fossem os afetados e comprometidos pela crise, mas também os empresários, ou seja, o próprio capital. Claro, o vilipêndio do proletariado é tão naturalizado que sequer seria manchete caso estivesse mais uma vez sozinho, afinal, conquanto os lucros permaneçam altos apenas à minoria histórica nada há com que se preocupar. Agora, no momento em que o capital também é cobrado pela crise as manchetes gritam histericamente o fim dos tempos – ou o impedimento do governo que não o deixou de fora da tempestade.

As manifestações “coxistas” de 2015 expressam o descontentamento dos representantes do capital diante da insistência do governo em não desvalorizar os trabalhadores sem antes dispor da riqueza nacional, objeto do desejo dos capitalistas. Como assim gastar com os não ricos aquilo de que os ricos precisam para serem o que são? O instituto de pesquisa Index apontou que 70% dos descontentes com o atual governo têm ensino superior, 40% deles ganham mais de dez salários mínimos, e 80% são brancos. Faltou verificar a porcentagem de cristãos coxinhas, mas podemos afirmar de imediato que se trata da classe que historicamente detém o capital.

Entretanto, a estratégia de não lançar primeiro os trabalhadores aos leões do desemprego, para com isso evitar que o capital fosse devorado, mas iniciar saciando a voracidade da crise econômica com a própria carne capitalista “excedente”, e só por último alistar o trabalhador no exército contra a crise, não pode ser visto como erro por parte dos próprios trabalhadores; muito pelo contrário. Talvez seja a primeira vez na história brasileira que a classe trabalhadora tenha sido economicamente priorizada em detrimento do capital. Quanto mais não seja porque é obra do Partido dos Trabalhadores.

É natural que a ameaçada aristocracia capitalista bata panela, manifeste incredulidade e insatisfação, afinal, um governo ousou não lhe preferir. Além do que, e a contragosto deles próprios, o país permanece democrático e permeável à manifestações, mas não só às suas. Se desde o início da crise – que nasceu internacional, mas que não demorou a se naturalizar brasileira – as coisas tivessem ocorrido de acordo com os preceitos capitalistas, como nos EUA, onde os trabalhadores ficaram sem casa e sem emprego para que os banqueiros mantivessem seus bônus estratosféricos, a nossa elite estaria tão preservada quanto satisfeita.

Porém, os trabalhadores brasileiros – ao contrário dos americanos, e a despeito da crise econômica e da assassina bolha imobiliária mundiais – não viram seus empregos minguarem; tiveram investidas “suas casas suas vidas”; e experimentaram um inédito poder de compra – o que afrontou a elite acostumada com a exclusividade de tal poder. Agora, contudo, como assumiu a nossa presidenta, é a inevitável hora de todos lutarmos juntos para sair do buraco. Obviamente, não se trata de uma boa notícia, mas nela subjaz uma virtude que não deve passar em branco: a crise está mais democratizada do que nunca, e não são mais os trabalhadores que pagam sozinhos o pato. Se o governo do Brasil não agiu de acordo com o “jeitinho capitalista”, essa falha não tem preço. Porém, como há um custo expresso em cifrões, é melhor que ele seja dividido democraticamente.

Capital da garoa e congestionamento

A Mobilize – Mobilidade Urbana sustentável, apurou que o custo dos congestionamentos na cidade de São Paulo é de R$ 50 milhões ao dia; isso sem considerar os conhecidos e não menos elevados custos ambientais, sociais e psicológicos que só engordam essa conta. O exorbitante valor apontado nada mais é que a quantia de riqueza que deixa de ser produzida pelos cidadãos da terra da garoa, diariamente, enquanto ficam presos nas ruas, impedidos de produzir esse mesmo montante. Com um perda desse porte é de se perguntar por que motivo o próprio capital ainda não comprou para si a tarefa, até então estatal, de garantir a plena permeabilidade das vias urbanas. Afinal, uma circulação eficiente circularia com ela mais capital, além de evitar tamanho prejuízo.

Em todos os lugares, mas sobretudo nas grandes capitais, o capital vacila entre sua tendência para entesourar-se, expressa urbanamente no seguro patrimônio imobiliário – uma perversão capitalista cuja mercadoria de valor passa a ser o próprio cofre, e não mais o que ele guarda -, e, em contrapartida, a necessidade intrínseca desse mesmo capital de circular para mais-valer. O imperativo dinâmico do capital é uma das forças, senão a maior, a rasgar na massa urbana as vias através das quais mercadorias e consumidores devem ir ao encontro um do outro. Essa realidade, contudo, congestiona a ideologia da promenade urbana, invetada pelos gregos antigos na livre procissão arquitetônica que seus edifícios propunham, e majorada na Belle Époque parisiense com a construção dos generosos bulevares.

Com efeito, para que o capital circule dentro de uma capital o indivíduo cosmopolitano deve perambular por ela, peripateticamente, como mula desses cifrões. Afinal, é nas avenidas através das quais os cidadãos se deslocam que o capital, através deles, circula. Entretanto, quando uma territorialidade capitalista se torna uma urbe babilônica que precisa de 24 milhões de deslocamentos diários, como São Paulo, algo acontece: essa necessária circulação congestiona. Mesmo sendo causado pelos desígnios dinâmicos do capital o engarrafamento urbano acaba sempre na conta do Estado; embora sejam os cidadãos engarrafados os que pagam por isso. Ora, já estamos bem habituados com o fato de o tempo significar dinheiro, porém, é mais recente a ideia de que o espaço, melhor dizendo, a possibilidade de deslocamento nele, também signifique isso.

O capitalismo paulistano, na consideração de tamanho prejuízo, e também diante do risco de se estagnar – a exemplo de suas avenidas -, deveria ser o maior interessado na eficácia da mobilidade urbana. Claro, já se tem capital explorando tal mobilidade, como o das máfias dos transportes, e não menos o das empreiteiras, mas quase nenhum pagando por sua racionalidade e qualidade. Em vez de liberar ele mesmo as vias para si, esse capital ainda prefere ser tesouro imobiliário estático, como um arranha céu, um shopping center ou um grande condomínio, do que o valor em forma de espaço livre no qual circular sem demora. Todavia, enquanto o próprio capital se esquivar de comprar para si a pecha da eficiência da mobilidade urbana, o que só lhe beneficiaria, somente os cidadãos-mulas-de-capital permanecerão batalhando por isso, engarrafados, mas contra um Estado que, não obstante, só responde paliativamente.

Portanto, a estratégica inércia do capital da terra da garoa, pagando a bagatela de 50 milhões/dia, coloca a “paulistanada” inteira exigindo do Estado soluções para o caos do trânsito cuja causa, no entanto, é a própria necessidade de circulação desse capital. Pode-se concluir que o valor que não é convertido em riqueza conquanto os cidadãos que fazem tal conversão estão presos nas ruas deveria ser muito maior para que o capital urbano imobil-iário se mobil-izasse a ponto de pagar pela eficiência da mobilidade. Apesar da amarga conta, ainda vale mais para o capital materializar-se imobiliariamente do que fluir no sentido contrário. O dinamismo da economia virtual globalizada mente uma movimentação ideal ao capital, mas sua circulação física, a despeito de sua disposição para entesourar-se, permanece a finalidade concreta do passeio capitalista. Por isso a congestão urbana nas grandes capitais, essas catedrais concretas do capital.

A face dinâmica do capitalismo, que diz ser a circulação o maior tesouro, cobra seu preço na mesma moeda. Então, as pessoas precisam circular tanto quanto ele. Todavia, na saturação desse ir e vir, como na cidade de São Paulo, o desejo de movimento do capital é frustrado; mais ainda o dos paulistanos. Estes, por sua vez, permanecem nas ruas congestionadas solicitando o restauro de uma mobilidade perdida, iludidos de que clamam por fluidez a si mesmos, mas na verdade, quando conseguem alguma coisa nesse sentido, quem ganha qualquer mobilidade é sempre o próprio capital. Portanto, até o ponto em que o capital paulistano – mas não só ele – lucrar com a miséria de mobilidade que ele mesma gera, nada fará além de obstaculizar ainda mais os cidadãos e, sobretudo, colocá-los num embate que, entretanto, é seu, pois não é das pessoas o imperativo de mais circular para mais valer.

Guerras X capital

Há uma ideia bastante difundida de que a guerra é essencial ao capitalismo. Ao ver, por exemplo, os Estados Unidos se envolverem estrategicamente em tantas delas, sobretudo produzindo e vendendo mercadorias bélicas, é fácil dar crédito à crença de que o capital precisa guerrear para estar em paz consigo mesmo. Entretanto, Thomas Piketty, no seu “Capital do Século XXI”, demonstra justamente o contrário. Ele afirma categoricamente que nada reduziu a importância do capital e de suas rendas ao longo da história como as guerras.

O economista chegou a essa conclusão contrapondo o homogêneo comportamento do capital ao longo da história ao abalo inédito que ele sofreu entre a Primeira Guerra Mundial e o período que se seguiu logo após a segunda. Até 1910, nada indicava uma queda do capital. Muito pelo contrário, a Belle Époque enriquecia como nunca. Porém, em função do primeiro grande conflito a concentração de capital foi obrigada, nas palavras de Piketty, a suicidar-se. O primeiro golpe foi o investimento bélico inicial de cada país, patrocinado pelas grandes fortunas – claro, sob a especulação, imediatamente frustrada, de retornos fortemente capitalizados. Uma virtude pouco apreciada da guerra, portanto, é o uso do capital acumulado por poucos indivíduos em prol – em defesa – da sociedade toda.

Porém, o segundo e maior golpe contra o capital se deu no pós-guerra. Na sequência do conflito a atividade econômica caiu, a inflação aumentou e o poder de compra diminuiu. Só que nesse ínterim os salários mais baixos tiveram de ser valorizados e protegidos da inflação, muito mais do que os mais elevados. Para que a sociedade não colapsasse foi fundamental evitar a queda do poder de compra das massas. Para tanto, os ricos – que não estavam mais tão ricos assim, afinal, gastaram suas fortunas patrocinando a guerra – tiveram de esperar pelo restabelecimento da sociedade para só então recomeçarem recompor seus patrimônios dilapidados. Outra virtude decorrente da guerra, por conseguinte, é a sobrelevação dos interesses sociais em detrimento dos privados.

Com a Segunda Grande Guerra a receita foi a mesma. Depois dela, novamente o capital de cada país teve de arcar não só com os custos da reconstrução de sua nação, mas também com a manutenção dos salários e do poder de compra de sua respectiva população. Numa época em que o capital ainda não brincava de transferir-se virtualmente pelo mundo em busca de segurança máxima, a bancarrota de um país pressupunha o mesmo destino ao seu capital. Então, cativos da geografia, os capitalistas não escaparam de pagar as contas das grandes guerras, sendo obrigados a dividir o que restou de suas fortunas com a sociedade. Piketty prova que “imediatamente após à segunda guerra os Estados Unidos passaram pela fase mais igualitária de sua história”. Tratando-se da América, isso é revolucionário.

Entretanto, a partir de 1950, depois da segunda batalha global, a paz permitiu ao capital ocupar-se novamente de si próprio. Em cada “boom” econômico subsequente os altos salários e rendimentos do capital cresceram e se distanciaram do valor pago aos trabalhadores. Estes, por sua vez, deixaram de ser prioridade numa sociedade de capitalistas em paz consigo mesma. Por isso Piketty afirma que “as guerras mundiais desempenharam um papel central no processo de redução da desigualdade no século XX”, pois interromperam a desigualdade histórica que viveu pujante até a Belle Époque, sendo, entretanto, restituída paulatinamente depois dos conflitos. “No século XX, foram as guerras que fizeram do passado tábula rasa, e não a suave racionalidade democrática e econômica”, insiste o economista.

Por conta das guerras o capital se reduziu a quase nada em comparação com o passado. Diante disso o trabalho individual passou a significar uma possibilida de futuro tão promissora quanto possuir uma herança, por exemplo. Com as fortunas reduzidas a níveis até então nunca vistos a população pode acumular um mínimo de riqueza e, “pela primeira vez, possuir coletivamente uma parte considerável do capital nacional”, completa Piketty. Mas isso só foi possível pelo consumo do capital historicamente acumulado em poucas mãos, tanto em função da guerra quanto do saneamento dos seus efeitos. Foi a força dos choques globais que roubou, temporariamente, o protagonismo do capital dentro da sociedade.

Ora, até o início do século XX o capital teve um sentido muito claro: os interesses das sempre poucas, porém enormes fortunas. Embora o capitalismo tenha sido desvirtuado de seu sentido histórico entre 1910 e 1950 por conta das duas guerras mundiais, depois disso as coisas voltaram a ser como antes. O capitalismo do século XXI repete, portanto, o capitalismo do passado. Agora, uma coisa que o capital aprendeu foi dosar as guerras nas quais se envolve. Hoje em dia elas são cirúrgicas, pontuais; por um lado, mais econômicas que políticas, e por outro, em caso de ação militar propriamente dita, resumem-se em ataques desferidos por “drones” não tripulados à meia dúzia de prédios inimigos. Entretanto, veiculados televisivamente a todo o planeta. Investimento mínimo com retorno máximo. “Eita” Capitalismo!

Obviamente ninguém deseja uma Terceira Guerra Mundial para que a humanidade possa experimentar uma queda da desigualdade como a do entreguerras, evidenciada por Piketty. No entanto, diante da afirmação do economista de que até hoje só as guerras conseguiram quebrar o capital e convertê-lo em benefício da sociedade, como proceder? A teoria pikettiana aponta dois caminhos que devem ser trilhados paralelamente: estabelecer impostos progressivos sobre o rendimento e a acumulação de capital, para evitar assim a desigualdade absurda, como a da Belle Époque, e investir maciçamente em educação, ou seja, na formação da população, dos trabalhadores. Esta última, em termos econômicos, significa converter capital financeiro em capital humano – o melhor investimento de todos, sem dúvida!

Entretanto, não podemos esperar que essa deliberação parta das esferas do capital. É a população, capacitada democraticamente, que deve designar a mudança de paradigma, pois, antes de ser uma questão econômica, essa luta é essencialmente política. Entretanto, ao sustentar que a queda pacífica da desigualdade será um produto da democracia, Piketty nos deixa com um paradoxo a ser resolvido, pois ele prova também que foram as guerras, e não a participação política democrática, que trouxeram, pela primeira vez na história, um horizonte de igualdade à humanidade. Como então trazer ao mundo, pacificamente, a igualdade que somente a guerra pariu? Thomas Piketty, esperançoso diante dessa contradição, diz que a solução ideal ainda está para ser inventada.

O vermelho na Grécia das ruínas apáticas

Um povo que sabe o que fazer com suas próprias ruínas é o grego. Não só as arquitetônicas monumentais, mas também a política cotidiana, ambos, escombros há muito contemporâneos deles. O solapamento daquela antiga e virtuosa sociedade se deu por conta do que podemos chamar de a globalização da época, que fez dos diferentes mundos que cercavam o Mar Mediterrâneo um só. Algum paralelo com a globalização atual que faz da Grécia um depredado terminal capitalista da União Europeia?

A História, matéria na qual a Grécia figura distintivamente, tem a revolucionária virtude de nunca se dar por encerrada. Os gregos, por conseguinte, seguem escrevendo a sua. Porém, a partir da vitória do partido de esquerda Syriza, não mais com a austera mão direita. Embora tal caligrafia canhota signifique um desalinho em relação às planilhas de Excel capitalistas e europeias, os gregos poderão lançar, sobre o seu roto papiro sócio-político, novos e íntimos diálogos, ao bom e velho estilo socrático, que lhes esclareçam o que é o bem e o justo para eles próprios – ainda que, para o resto do mundo, essa comunicação pareça insuportavelmente retórica.

Os gregos inventaram a melhor democracia que o mundo já testemunhou, cujo desmoronamento, entretanto, se deu mediante a capitulação que sofreram de Alexandre, o Grande, no século IV a.C. Então, furtados de seu característico e frutífero sistema de governo, e subjugados a um conquistador estrangeiro, os helenos inventaram formas de lidar com a alienação fortuita em respeito ao seu próprio destino. Uma delas foi o cinismo, isto é, a apatia em relação ao devir da sociedade. Os cínicos, por conseguinte, passaram a pregar a autarquia, ou seja, a autossuficiência diante das vicissitudes da vida.

Ora, a autarquia, a autonomia que o indivíduo institui entre ele e o resto, era o oposto da bela democracia grega, pois esta pressupunha o envolvimento total do cidadão na vida e na saúde da sociedade. Uma vez apático, o cidadão se converte num indivíduo isolado, voltado às suas próprias necessidades. Isso, contudo, em detrimento das necessidades globais. A democracia arruinada, doravante, fez controversa carreira no resto do mundo, mas não somente ela. A transversal apatia cínica também! Quantos de nós não se orgulha de ter votado em branco nas últimas eleições?

É irresistível a hipótese de que a busca da autossuficiência individual, efeito colateral da perda dos desígnios sócio-políticos que estruturavam a sociedade grega, tenha sido o germe – não reconhecido – do capitalismo. Afinal, não é capital galgar autarquia diante dos iguais, e em detrimento deles? Não é precisamente no momento em que o indivíduo passa a se ocupar apenas com suas próprias necessidades, agindo somente no sentido delas, que ele é irreversivelmente capitalizado? Ainda que a reificação do capital tenha se dado muitos séculos mais tarde, foi a partir da alienação daqueles cidadãos gregos em relação ao bem estar global de sua sociedade que a capitalização individual fincou pés no mundo.

Por conseguinte, a apatia que a antiga Hélade legou à posteridade depois do roubo de sua democracia por Alexandre, o Grande, da Macedônia, é novamente encenada diante de uma outra “invasão” que a Grécia vem sofrendo. Hoje, porém, o novo capitulador pode ser simbolizado pela austera Angela Merkel, a Grande, da União Europeia. A diferença, contudo, está em que o cinismo de agora se dirige aos conquistadores estrangeiros, não mais aos próprios gregos. E, principalmente, em função da reestruturação da sociedade grega partida pelos governos forasteiros.

Prova disso é a marola de solidariedade que cresce na península mediterrânea depois do tsunami liberal-europeu. Jon Henley, no artigo “Greece’s solidarity movement: ‘it’s a whole new model – and it’s working”, do jornal The Guardian de 23 de janeiro, revela que os cidadãos gregos vêm empreendendo ações populares e independentes para resolver questões fundamentais, como saúde e alimentação, preteridas pelo governo grego em função das exigências das potências credoras europeias. Pode parecer tímido, mas é um movimento que recoloca as escolhas e as ações necessárias à saúde da Grécia novamente nas mãos dos próprios gregos.

Estaríamos diante do renascimento da antiga e direta democracia grega? É cedo demais para afirmar isso. Afinal, o modo corrompido da democracia, ou seja, seu modelo representativo, ainda é a lei, e não só por lá. Infelizmente, a democracia direta experimentada pela Hélade antiga, hoje é taxada de vandalismo pelos representantes dos cidadãos. Entretanto, a atual escolha democrática grega por um governo de esquerda não deixa de ser um ato cínico diante das imposições estrangeiras.

A forma corrompida – representativa – da democracia primeira ganhou o mundo e o futuro. No entanto, mais parece a involução de sua virtuosidade pressuposta. Já cinismo, o modo grego de lidar com a ruína democrática, evidencia, hoje, uma evolução positiva ao arriscar uma nova autarquia. Todavia, essa autossuficiência não é mais aquela que isola o indivíduo da sociedade, mas a que pretende alienar os cidadãos gregos da tirania do mundo global.

Primeiro, os gregos ensinaram o ocidente a ser sociedade. Depois, o aprendiz capitalizado se voltou contra seus velhos mestres. Agora, a Grécia parece dizer cinicamente a seus pupilos desgarrados que eles entenderam mal seus ensinamentos. Reagrupam-se em assembleia, na ágora abalada pela globalização, para mais uma vez tentarem ser uma grande sociedade. Nós, o resto do ocidente que sempre tentou ser tão genial, autossuficiente e próspero quanto os antigos gregos, devemos ficar atentos a atual performance deles. A Grécia contemporânea, a exemplo da clássica, pode estar prestes a produzir novas lições fundamentais à humanidade, que, no entanto, devem ser aprendidas tanto pelos próprios gregos quanto pelo resto do ocidente cujas bases, entretanto, ainda são gregas.

Next Belle Époque Kapitalist

Para onde caminha a humanidade contemporânea que, a despeito do mais sincero humanismo produzido, se contenta em ser combustível e massa de manobra do capital? Há, porventura, força maior a designar os destinos e as volições individuais, as relações entre indivíduos e entre Estados – inclusive se guerra ou paz -, que o capitalismo? Pelo menos há oitocentos anos a resposta é um tácito não! A humanidade vem sendo, por conseguinte, matéria através da qual esse sistema econômico existe e se expande. Então, guiados sistematicamente pelo capital, caminhamos para onde ele precisa que estejamos. Novamente: para onde?

Thomas Piketty, na sua revolucionária obra “O capital no século XXI”, demonstra que marchamos, sem desvio, para o mesmo vigor que o capital tinha nos anos 1900, ou seja, na Belle Époque – uma bela época apenas para o capitalismo, diga-se de passagem. O economista prova que o desenvolvimento do capital se deu de modo gradual e sem abalos, desde a antiguidade – ou pelo menos desde os primeiros registros seguros de acúmulo de riqueza -, até o início do século passado. Esse pródigo destino teria mantido passo firme até hoje não fossem as duas grandes guerras mundiais.

Ao afrontarem a ascensão histórica do capital, Piketty demonstra que as grandes guerras geraram um duplo desentesouramento das riquezas até então acumuladas. Por um lado, inicialmente, no investimento belicoso que somente os capitalistas podiam fazer, mas não as massas de trabalhadores. Por outro, depois das guerras, novamente o capital foi responsável pela reestruturação das sociedades, sendo, portanto, usado em benefício de todos, e não apenas em função de si próprio. Ainda em detrimento do próprio capital, durante os conflitos, e principalmente depois deles, os salários e o poder de compra das massas, fundamentais para a manutenção e o reerguimento da sociedade, tiveram de ser assegurados por conta do capital.

Entretanto, depois das duas guerras mundiais, isto é, depois de 1945, o capital recomeçou a mesma procissão ascendente de antes dos conflitos, explorando tanto a paz quanto o crescimento econômico. Nos últimos setenta anos, os únicos contratempos significativos à re-acumulação de riqueza foram as guerras de tipo Estado-Estado – porém com menor intensidade, pois tais embates não foram globais -, e, surpreendentemente, assegura Piketty, nos períodos de baixo crescimento econômico nos quais, novamente, o capital teve de arcar com os custos da manutenção social, e não só com sua recapitalização pressuposta.

Com Piketty, portanto, caem por terra duas ideias fortemente estabelecidas. A primeira, que a guerra é o instrumento extremo, porém revigorante, do capitalismo. Antes, é o modo com que o capital é devassado, ou seja, usado, contrassenso seu, em prol do Estado e em benefício da sociedade como um todo. A segunda, e não menos importante, é aquela que insiste que o baixo crescimento econômico é ruim para a sociedade. Ora, a estagnação econômica é ruim para o próprio capital, porquanto é ele que não escapa de ser comprometido – e dilapidado – no necessário custeamento da economia. Já os trabalhadores, num contexto de estagnação, voltam a ser o capital principal sem o qual a sociedade não retomará o desejado crescimento, ou seja, valorizados.

Entretanto, apesar de desejado por todos, o crescimento econômico que, segundo Piketty, não privilegia os assalariados, mas sim a acumulação capitalista, é a meta global do planeta. Triste é ver os “proletários de todo o mundo” em uníssono com a estridente voz do capital que só fala em virtude própria. Todavia, esse é o coro da contemporaneidade globalizada. Então, mais uma vez, para onde caminha a humanidade, recitando a sórdida poesia do capital? De acordo com Piketty, a uma nova Belle Époque, tão desigual e subjugada ao capital quanto a dos 1900’, anterior aos grandes conflitos mundiais.

Então, para diminuir o fôlego do capital e para redistribuir as estratosféricas fortunas reacumuladas nos últimos setenta anos, o ideal seria uma mistura entre outra grande guerra e um baixo crescimento econômico? Difícil responder afirmativamente, pois isso vai contra a verdade que o capital há muito vende juntamente com suas demais mercadorias ideológicas. Entretanto, até então foram estes os dois principais instrumentos históricos capazes de deter o inexorável anseio capitalista de acúmulo – e consequente desigualdade.

Entrementes, se através do devir histórico Piketty descobriu que a guerra e a estagnação econômica são ruins para o capital, tais verdades não permaneceram ocultas para o próprio capitalismo. Por isso a fé e o compromisso de toda a sociedade com o crescimento econômico é metodicamente imputado a todos, indiscriminadamente. Também as guerras que o capitalismo empreende – mas que em verdade o estupram – transmutaram-se no sentido de não mais serem globais; sequer do tipo Estado-Estado. As novas e seguras guerras do capital são contra o terror, isto é, contra grupos terroristas, mas não contra um Estado. Ora, por ameaçadores que sejam, por exemplo, a Al-Quaeda, o Hamas ou o Talibã, uma guerra contra eles não ameaçam nem destroem a sociedade a ponto de o capital ser comprometido além da sua conta.

Desse modo, com a humanidade cegamente em função do crescimento econômico pregado pelo capital, e com a compra generalizada do novo produto capitalista, qual seja, a guerra contra o terrorismo, quem caminha a passos fortes, reinstituindo uma nova Belle Époque para si, é o capital. Entretanto, através do bulevar de uma humanidade sempre preterida em função da marcha dos cifrões. Do jeito que vai, a humanidade não evoluirá, mas permanecerá a via de acesso do capital futuro-adentro. Já este, cada vez mais belo e epocal, reconstrói para si um novo quintal, aos moldes daquele do início dos 1900’.

Medo do terror: produto de Estado

O investimento midiático em eventos terroristas, como os que atualmente explodem nas grandes metrópoles mundiais, antes de apresentar soluções ao problema, causa sobretudo mais terror. Portanto, é bom averiguar se essa “indústria do medo” está aí para nos proteger do terror ou, ao contrário, apenas gerar necessidade de mais mercadorias suas, ou seja, segurança. Outrossim, é preciso recordar daquilo que perdemos na esteira da evolução social que nos protegia dos perigos dos Outros. Confrontando estas duas formas distintas de lidar com o perigo e com o medo, quais sejam, a contemporânea e a ancestral, é que podemos nos proteger, tanto dos medos que se originam em nós, quanto daqueles imputados de fora.

Em primeiro lugar, o sociólogo Robert Castel atribui o medo que assola os habitantes das grandes cidades ao individualismo moderno, à supervalorização do indivíduo. Isso fica claro quando lembramos que o bando foi a primeira instituição erigida – não só pelos humanos, vale ressaltar! – para proteger os frágeis indivíduos das ameaças dos Outros. Porém, no momento em que essa unidade protetora é historicamente desfeita – e a dissolução da família nuclear humana é um exemplo disso -, ficamos órfãos dos ancestrais laços que nos protegiam, inclusive do próprio medo. Ora, se o individualismo fosse uma boa ferramenta para uma sobrevivência segura, a natureza teria se valido dele desde o início. Mas, como podemos ver, o individualismo é um produto tardio e inócuo para tal fim.

A segurança que os bandos ofereciam aos seus indivíduos levou-nos à instituição urbana por excelência, ou seja, à cidade, lugar onde pagamos caro para ter proximidade com tudo aquilo que soluciona nossas necessidades, inclusive a de não sentirmos medo. Todavia, a cidade expressa a contradição entre o intuito de formar um imenso bando capaz de oferecer uma proteção de mesmo tamanho, e a justaposição asfixiante de muitos bandos distintos, cada um deles com necessidades igualmente distintas, o que, sobremaneira, reencena velhas ameaças, justamente aquelas que a cidade prometia resolver. A materialização dessa contradição, por conseguinte, são as nossas casas, que em vez de servirem para integrar-nos à cidade, hoje estão mais para casamatas invioláveis para nos proteger dela.

Nas megalópoles contemporâneas a contradição é maximizada. Nelas, o indivíduo não escapa da ameaçadora e solitária defrontação não apenas com o ancestral perigo do Outro, mas com o inominável terror do mega Outro, isto é, o resto da cidade inteira. A cidade engendra momentos de não-identificação, e neles o medo do Outro é majorado. O sociólogo Zigmunt Bauman começa dizendo que primeiramente “a gente da cidade não se identifica com a terra que a alimenta”; podemos seguir dizendo que tampouco se identifica com a natureza, visto que é sua negação; e terminar inferindo que a cidade é o instrumento através do qual o indivíduo experimenta a não-identificação absoluta, seja em relação a seus próprios pares, e pior ainda, seja consigo mesmo. A megalópole é uma máquina descontrolada que produz um medo até então inexistente na natureza: o medo de ser inadequado!
Como disse Bauman, “as cidades se transformaram em depósitos de problemas causados pela globalização”. E o capitalismo, motor lubrificado desse processo globalizante, fez das antigas e amistosas relações entre iguais uma plataforma de competição individual, na qual a sórdida busca de riqueza pessoal pressupõe antes de tudo que o indivíduo se coloque propositalmente enquanto um Outro ameaçador em relação a todos os demais. Os que enriquecem cumprem essa tarefa; mas, paradoxalmente, são os que mais sofrem do medo do Outro. Podemos ver que a luta que o capitalismo engendra não é só aquela, clássica, entre classes, mas também entre indivíduos de uma mesma classe, ou seja, a luta de todos contra todos. Portanto, no solitário ringue do capital, o medo de ser nocauteado é capitalizado, findando mais aterrorizante que o próprio golpe; e “o medo em si é o pior e mais penoso sofrimento”, completa Bauman.

Em função dos perigos decorrentes do Outro, da cidade e do capitalismo, historicamente foi instituído o Estado, a máquina maior que, entre suas controversas e duvidosas tarefas, tem, segundo Thomas Hobbes, o dever de atender ao anseio máximo dos indivíduos, qual seja: a proteção contra a morte violenta. O Estado é aquele que promete segurança do berço ao túmulo, mesmo todos sabendo que proteção absoluta é tão utópico quanto impossível. Então, para o Estado permanecer como herói possível, a culpa pela insegurança persistente deve ser atribuída a um Outro, isto é, a alguém de fora desse Estado. Quem primeiro recebe essa culpa é o estrangeiro. Para Bauman, a xenofobia serve para alienar os indivíduos da falta de solidariedade local. O Estado, por sua vez, precisa da xenofobia para justificar a sua incapacidade de cumprir a tarefa a que se propõe.

Daí a “indústria do medo”, produzindo e distribuindo massivamente medos-mercadorias objetivos, com os quais dissimula a incapacidade do Estado de suprimir a insegurança e o medo subjetivos. E no mundo capitalista globalizado não é de se espantar que tal mercadoria seja produzida no exterior, mas para o consumo interno. Hoje, o atual medo do terrorismo, que o Estado e o capital produzem para poderem seguir em pé diante de suas próprias e insustentáveis contradições, vem do mundo árabe, mais especificamente das fábricas clandestinas do islamismo radical. Basta ver a declaração do presidente François Hollande na esteira dos atentados que sacudiram recentemente a França: “Uma economia forte é o que precisamos para combater o terrorismo”.

Então, para separarmos o joio do trigo, e identificarmos quais medos provém dos indivíduos, e quais são produzidos e distribuídos pelo Estado capitalista, basta perceber o absurdo que se esconde na expressão-mercadoria “medo do terror”. Medo e terror são sinônimos; ambos apontam para a mesma coisa: a necessidade individual de proteção. Entretanto, a justaposição das duas palavras, em vez de reforçar o conceito, aumenta apenas o efeito. Ora, por que o indivíduo, diante do medo, iria duplicá-lo? Esse “sobre medo” é produzido pelo do Estado, sob o ditame capitalista, em uma época histórica em que a nova guerra contra o terror é mais lucrativa do que a velha guerra contra outro Estados. Isso porque, hoje, um Estado pode entrar em guerra apenas contra alguns indivíduos de outro, sem com isso interromper as fundamentais negociações comerciais entre eles.

O terrorismo que atualmente amedronta os indivíduos das grandes cidades é sintoma tanto de um individualismo supervalorizado, como dizia Castel, quanto da necessidade do capitalismo, encarnado em Estado, de se sustentar economicamente. Entretanto, para um Estado, a guerra contra o terrorismo é menor, mais facilmente administrável e mais barata do que a guerra contra outro Estado. Ao passo que para os indivíduos, essa sórdida estratégia significa uma dupla desvantagem, visto que, primeiro, são eles que objetivamente se defrontam como terror em ação, e não os abstratos corpos do Estado e do capital; e, segundo, mesmo antes de se defrontarem com o evento terrorista em si, os indivíduos já o amargam subjetivamente, conforme o Estado precisa.

Como, então, deixar Estado e capital a sós com os terrores que eles mesmos produzem, visto que ambos são apenas grandes abstrações, oriundas da interação real entre indivíduos concretos? Ora, forçar o terror generalizado apenas aos indivíduos que o geram! Quem são estes, contudo? Os proprietários das grandes fortunas mundiais, ora bolas! Pois são estes que, através do terror imputado aos outros, nada mais fazem do que assegurar suas próprias fortunas, ao lucro de não se aterrorizarem-se por isso. Por conseguinte, é só no descolamento em relação a esse macro terror funcional que os indivíduos podem escapar do “medo do terror”, para assim lidarem apenas com o medo, isto é, com seus medos. Desdramatizando propositalmente Hobbes, tais medos significam os ordinários medos de ser desrespeitado pelo vizinho, ludibriado pelo sócio de empreitada, ir mal de saúde, etc. Esses medos tem grão humano e, mais importante, foram os que primeiro instituíram os bandos, as cidades… e só então esse Estado aterrorizante.

A pele cortada da civilização

Em arquitetura, corte de pele é o desenho que evidencia a presença e a relação de todos os elementos do projeto que são ocultados pelas claras, vendáveis e adornadas plantas-baixas e fachadas. Podemos dizer que o corte de pele é a contemplação de toda a materialidade intrínseca da ideia arquitetônica. Outrossim, um projeto de civilização é formado por uma complexidade de elementos que se inter-relacionam, mas que permanecem ocultos sob a sua promissora ideia geral. Assim como o sujeito que compra uma casa em cujo corte de pele projetual estavam ausentes itens essenciais, digamos, a impermeabilização adequada entre o solo úmido e o piso da sala-de-estar, o indivíduo que “compra” uma civilização para si, alienado dos pormenores subterrâneos que a formam, somente descobrirá os defeitos desse projeto quando o belo e confortável tapete persa comprado num “Mall” em Miami estiver completamente encharcado.

Em respeito ao projeto civilizatório ocidental moderno, vendido através de plantas-baixas e fachadas ideais, graficadas pela mais sórdida especulação cristã-capitalista, não temos ideia de suas falhas estruturais até que se materializem problematicamente no devir dessa civilização. Um exemplo atual e polêmico é o defeito – recorrente e indesejado – proveniente da irredutível relação entre civilização e barbárie. É como se o corte de pele projetual da civilização à qual pertencemos tivesse subestimado a penetrante umidade selvagem, mas mesmo assim tivesse assentado o mais fino assoalho diretamente sobre um pântano movediço ancestral. Agora nossa cara mobília afunda na lama, e em vez de processar os projetistas da frágil casa, atônita e apressadamente demonizamos o lodo. Porém, é no corte de pele detalhado desse edifício que desde o início estava ausente o elemento essencial para conter ou lidar com a areia movediça da selva humana.

Uma vez habitando essa civilização defeituosa, sem que dela se possamos fugir, pois, rejeitando-a somos convertidos em selvagens rebeldes – Edward Snowden que o diga -, e devido ao desejo civilizado de resolver imediatamente tal conjuntura, resta-nos apenas analisar os elementos defeituosos dessa civilização, não no corte de pele do seu projeto, dado que há muito soterrado pelo reboco caído, mas na própria civilização partida. Pois bem, em relação às “goteiras” selvagens que insistem em pingar no meio do salão de espelhos da civilização pode ser dito o seguinte: a civilização, na receita de sua feitura, isto é, no seu corte de pele, não contemplou elementos que pudessem lidar com a intrusão e com a presença do selvagem, do radical, do extremista, sem, no entanto, na presença indesejada deles, agir como um.

Como aquilo que de antemão impediria a selvageria, o radicalismo e o extremismo de corroerem o nosso lar-doce-lar não se fez presente no projeto nem na construção da nossa civilização, talvez pelo fato dessa mesma civilização, desde lá, desconhecer soluções para a sua própria selvageria extrema, nós, civilizados, seguimos sem saber como lidar com ela, findando, por conseguinte, mais vulneráveis à selvageria do que ela a nós.

Hakim Bey, autor que nunca foi visto, sequer confirmado se é uma única pessoa ou um coletivo, colocou(caram) em seu livro, “TAZ – Zona autônoma temporária”, que “qualquer sociedade que você construir terá os seus limites. E para além dos limites de qualquer sociedade, … os selvagens – aqueles que não podem viver sem constantemente planejar novas e terríveis rebeliões.” Entretanto, há um desagradável agravante que sobremaneira nos compromete, pois a pretensa civilização deveria ser capaz de contemplar harmoniosamente o selvagem, coisa de que, logicamente, ele está dispensado.

A falha da má relação entre, por exemplo, o civilizado liberal e o selvagem fundamentalista, portanto, diz respeito mais àquele do que a este. Porém, para nos alienarmos disso, culpamos apenas a selvageria, seja pela sua irrupção impertinentes (fora dos programas da Natgeo ou longe das favelas), seja pela incapacidade da própria civilização em lidar com ela. Isso é evidente quando vemos o líder do “Partido pela Liberdade Holandês”, Geert Wilders, dizer que é preciso “limpar os marroquinos do país”; ou em movimentos nada diplomáticos, porém defendidos por forças de Estado, como o “Patriotas Europeus contra a Islamização do Ocidente”.

Outra coisa que fez falta no projeto da nossa civilização foi algum elemento que soubesse tratar melhor dos os efeitos da globalização de que essa mesma civilização tanto promove. Os primeiros rascunhos do nosso mundo globalizado, feitos sobre a remota e desconexa superfície medieval composta por pontos isolados, separados entre si por milhares de quilômetros, subestimou o potencial problemático de uma interconexão generalizada e ostensiva como a que vivemos hoje. Na separação física e na desconexão estrutural do mundo feudal, os grandes contrastes sociais, embora tão reais quanto os nossos, decompunham-se em cinquenta ou mais tons de cinza até se alcançarem. Porém, na justaposição sufocante do mundo globalizado não há espaço para esmaecimento de opostos, tampouco para uma suave e sustentável transição entre eles.

O preto e o branco, o liberal e o fundamentalista, o civilizado e o selvagem, todos somos confrontados direta e constantemente. Observamos uns aos outros tão proximamente que mais parecemos afrontarmo-nos mutuamente. Em meio a esse intenso e inescapável atrito entre opostos, e órfãos de um projeto de sociedade que contivesse elementos que amortecessem tal atrito, a civilização responde à selvageria de forma igualmente selvagem. Conectamos pessoas e lugares; fizemos do mundo um único vernissage; no entanto, depois de suspender todas as fronteiras, físicas e virtuais, essa civilização globalizante é surpreendida pelo medo e pelo ódio ao estrangeiro invasor. Somos, hoje, vítimas da esquizofrenia que de um lado convida o indivíduo a circular pelo mundo, mas de outro, deseja mais do que nunca ter fechadas as suas fronteiras escancaradas.

O civilizado burguês acredita piamente que a resolução das contradições decorrentes da interação sobressaturada de sete bilhões de homens ao redor do mundo deve seguir os passos da diplomacia tediosa, despótica, e não menos burguesa, que se desenrola em torno da mesa de jantar das tradicionais famílias nucleares. Esquece-se, contudo, que tais núcleos sequer existem mais, solapados que foram pela individualidade pressuposta por essa mesma civilização. Esse lugar ideal, onde as maiores contradições são resolvidas de acordo com um roteiro prévio e acordado, e no espaço de poucas horas, existe apenas nos filmes de Hollywood – essa camelô capitalista de falsificação barata de vida real. Hoje em dia, para um ocidental típico, lidar com a selvageria e com o fundamentalismo significa, antes de tudo, compartilhar “slogans” pré-prontos nas redes sociais, prostrar-se diante da TV ou arrastar seu corpo coberto de mercadorias e desejos insatisfeitos pelos corredores lotados dos “shopping centers”, sem com isso perceber que apenas troca um fundamentalismo selvagem por outro, porém de grife e com nota fiscal.

Salta aos olhos, no corte de pele da civilização, um dispositivo usado sistematicamente, com o qual acreditamos nos livrar da selvageria ameaçadora do mundo, convencendo-nos de que estamos definitivamente protegidos, mesmo que o efeito resulte justamente o contrário do esperado: eleger para nossos governantes indivíduos ricos, que nos prometem proteção contra a selvageria perigosa, mas que na verdade apenas defendem a si mesmos e enriquecem ainda mais. O modo de assegurarmo-nos contra as intempéries indesejadas da extrema proximidade do Outro selvagem nos fez eleger e sustentar um modelo de Estado que, sob o pretexto de nos representar, representa sobretudo o perfeito estado do capital – essa besta selvagem -, utilizando-nos, sórdida e consensualmente, ora como alimento, ora como boi-de-piranha.

Com o Estado, de certa forma, voltamos à vida selvagem cuja proteção se dá através da eleição de um macho alfa, porém, nessa versão sofisticada, tal macho veste Prada e seu falo são cifrões. Nisso nos igualamos aos fundamentalistas religiosos que seguem um Deus onipotente e pleno de ditames que muitas vezes ceifa dos seus crédulos seguidores inclusive suas vidas. A diferença, no entanto é que o fundamentalista não elege novos Líderes a cada quatro anos, o que, paradoxalmente, parece mais lógico do que o hábito laico-democrático de substituir incessantemente um representante do capital por outro.

Mergulhando mais fundo no corte exposto da nossa sociedade, em relação à atual, entretanto recente, “fundamentalismofobia” – o novo “TOC” ocidental -, nem parece que até bem pouco tempo tínhamos um Deus tão onipotente como, digamos, Alá, perpassando todas as nossas instituições e volições. Liberalizamo-nos há pouco, a partir de um projeto europeu de morte de Deus desenhado por meia dúzia de cientistas que nada mais fizeram do que limpar o solo até então sagrado para as antiecológicas e gentrificantes doutrinações capitalistas. Talvez seja a catástrofe ecológica, talvez a social, ou ainda o fato de, na ausência do mandamento de Deus contra a ganância, ser permitido a pouquíssimos indivíduos o acúmulo inimaginável de riqueza – ou provavelmente isso tudo e muito mais -, vá lá: os defeitos do nosso projeto de civilização, antes de serem assumidos e sofridos por nós, devem ser repetidos e sofridos pelo lado do mundo que não matou os seus deuses ainda.

Por conseguinte, exigimos dos fundamentalistas que laicizem-se e se percam, como nós, na selva agnóstica que, entretanto, até hoje, não nos ensinou a lidar com a selvageria. Exigimos a laicização do fundamentalismo menos pela radicalidade de sua relação com o seu objeto fundamental representar uma ameaça a nós do que pela necessidade de vermos esse Outro repetir nosso erro, para assim, quem sabe, observando a sua performance, aprendermos o que não sabemos, isto é, lidar com o lado selvagem substantivo da vida.

Em respeito à liberdade, tão capitalizada nos bulevares ocidentais, há algo de errado na civilização cujo projeto a preconiza, mas que, no entanto, no edifício pronto, ela é sempre insuficiente. Cortemos essa civilização exatamente nesse nó nevrálgico e olhemo-la de face. Por ventura a liberdade invejável e inédita que a maioria dos ocidentais contemporâneos desfruta só se tornaria suficiente se vivida por todos? Ora, “dizer ‘só serei livre quando todos os seres humanos forem livres’ é simplesmente enfurnar-se numa espécie de estupor de nirvana, é abdicar da nossa própria humanidade, é definirmo-nos como fracassados”, responde Hakim Bey. O que podemos espremer dessa resposta? Primeiro, que a liberdade parece funcionar como o capital, ou seja, só tem valor enquanto alguns têm e outros não. Como sabemos, não basta imprimir dinheiro suficiente e distribuí-lo a todos para que impere a riqueza. Afinal, a riqueza só se materializa através de doses maciças de pobreza.

Da mesma forma, a liberdade precisa ser objeto exclusivo de alguns para que seja um valor universalmente reconhecido por quem a possui e por quem não. A falha que o presente corte revela é a seguinte: ao exigir que todos tenham a liberdade de que poucos desfrutam, estes afortunados nada mais fazem do que gerar, nos que carecem dela, esperança e necessidade de tê-la. Mas não para que a possuam de fato. Antes, os que já desfrutam de liberdade precisam que os não-livres, pelo simples fato de desejá-la, capitalizem-na, pois só assim os que já a possuem reconhecem o seu valor. Segundo, baseado numa ideia de Zizek, no momento em que todos os indivíduos tiverem garantia de liberdade, aqueles que já desfrutam dela não correm risco algum de ficar sem esse tesouro, pois, mesmo perdendo-o acidentalmente, ele seria reconquistado, pois garantido a todos.

Pois bem, na dificuldade cortar a pele, isto é, de fatiar o palácio da civilização de cabo a rabo para vascular em suas entranhas em busca de falhas estruturais – seriamos chamados de vândalos por isso -, ao menos podemos olhar para esse interior através das rachaduras provenientes dos seus ferimentos de guerra. De soslaio, uma ferida interna que nunca cicatrizou, porque nunca houve anticorpos que dessem conta dela, chama atenção: a selvageria que subsiste tanto nos cortesões salões da civilização quanto nos seus arrabaldes. E, de acordo com Hakim Bey, reconhecer a selvageria é um ato de desnudamento, o que não pega bem no baile de debutantes liberal, afinal, a nudez expõe o lado horrendo da obesidade burguesa. Sempre que um nobre habitante do condomínio californiano-versailleano revela o roto de suas vestes, ele é imediata e sigilosamente conduzido aos subsolos dos alcoólicos ou narcóticos anônimos, ou aos caros divãs psicanalíticos, mas de forma alguma é livre para ostentar o “botton” da civilização plena.

Todavia, o próprio processo de marginalizar faz com que a margem adquira uma aura mágica, libertária, pois somente nessa excentricidade há a possibilidade de ser aquilo que de fato somos, ou seja, ao mesmo tempo selvagens e civilizados. Ora, não é isso que buscamos nas “Raves” clandestinas? Claro, concorda Bey: “vamos admitir que temos frequentado festas onde, por uma breve noite, realizamos um império inteiro de desejos gratificantes. Não devemos confessar que a política daquelas noites têm mais realidade e força para nós do que, digamos, todo o governo dos Estados Unidos?”. Todavia, a dialética irredutível entre civilização e barbárie, encerrada em nós pelo projeto civilizatório mesmo, e que só aparece depois de um corte de pele ou de uma rachadura profunda, rouba-nos a liberdade de escolher livremente somente a “Rave” lisérgica.

Antes, somos obrigados a comparecer e a nos comportarmos civilizadamente no tedioso baile de máscaras do Rei para quiçá sermos homeopaticamente liberados à selvageria gratificante das festas clandestinas. Essa é a normalidade esquizofrênica do nosso meio-ambiente cultural civilizado. Entrementes, se o traslado entre civilização e selvageria dos Outros foge das regras do nosso, pronto, selvagens são eles e civilizados somos nós! Difícil é perceber que “no momento que a humanidade for obrigada, toda ela, a seguir uma regra geral, estabelece-se automaticamente uma escravidão igualmente generalizada”, assegura Hakim Bey. Se a contradição selvageria-civilização pudesse chegar a uma síntese, logicamente já teria feito. Se não fez até hoje é porque não pode. Então, vale a pena seguir exigindo dos Outros que erijam arquiteturas de vida livres dessa contradição se nós mesmos somos incapazes disso?

Crianças-bomba no mercado mundial.

Dez de janeiro de 2015, um mercado no norte da Nigéria, vinte mortos e quase o mesmo número de feridos. O mais chocante de tudo: uma criança-bomba. Esse último atentado do ano novo que começou ensanguentado do velho terror afronta a sociedade dos direitos humanos com uma imagem de difícil digestão: uma criança usada como arma de guerra. Na esteira do assassinato dos doze Charlies em Paris, o ocidente se prostra mais uma vez, atônito e indignado, como que novamente estuprado pelo despótico falo islamita. No entanto, a contragosto e contrassenso nosso, da parte dos extremistas radicais há razões para tal ato. Concordando ou condenando tais razões, é melhor ao menos considerá-las, afinal elas também povoam o nosso mundo – e num globalizado, cada vez mais proximamente.

Uma criança usada como bomba, que para nós representa uma barbárie duplamente inadmissível, para um radical fundamentalista, no entanto, significa uma dupla vitória. Para um muçulmano radical, dar a vida por uma causa santa é obter de Alá a garantia de um lugar cativo no mais elevado paraíso eterno. No caso das crianças é a mesma coisa. Pelo que se sabe, as crianças-bomba são preparadas por suas próprias famílias, em rituais nos quais seus parentes as vestem para o derradeiro, ao mesmo tempo em que rezam e agradecem a Deus a oportunidade de servirem a Ele, bem como a de, através do oferecimento da vida dessas crianças a Ele, livrá-las desse mundo de pecado em direção ao paraíso livre de qualquer mal.

O controverso sacrifício de crianças por causas espirituais, entretanto e infelizmente, não é exclusividade dos islamitas radicais, mas também de muitas rodas ocidentais, não menos radicais. No final de 2014, no livro “Tudo o que vi e vivi”, Roseane Malta, ex-Collor, contou que seu ex-marido, o nosso ex-presidente da república, praticava rituais macabros, em busca de força e proteção, envolvendo fetos comprados exclusivamente para esse fim. Embora não fossem ainda crianças, tais fetos seriam caso o político-marajá não os tivesse utilizado. Ademais, não nos esqueçamos de que o nosso pujante capitalismos contemporâneo, em épocas não muito distantes se utilizou – e em alguns lugares ainda se utiliza – de suas crianças, não como bombas, mas como combustível ao funcionamento de sua sórdida engrenagem.

Parafraseando Aristóteles, a morte se diz de muitas maneiras. Basta ver a diferença com que os ocidentais e os muçulmanos a encaram. O que para um é o fim, para outro é só o começo da vida que vale a pena ser vivida. Duelar com um radical fundamentalista, por conseguinte, traz uma desvantagem inglória: nós tentamos evitar a morte tanto quanto possível, nos aterrorizamos com ela, enquanto para muitos deles é o atalho para a mais digna e desejada evolução espiritual. Cada um dos dois lados se aferra às suas próprias verdades. Do nosso, adoraríamos que a radicalidade islâmica se dobrasse à diplomacia ocidental burguesa, aguerrida aos prazeres mundanos, iphones e gordura-trans. Para isso, entretanto, seria necessário suspender o Alcorão e reescrevê-lo, coisa que eles não parecem estar dispostos a fazer. O Islã, por sua vez, usa de todas as suas armas – inclusive suas crianças – para que os infiéis ocidentais abdiquem do seu “way of life” e reconheçam as fundamentais leis de Alá. Outrossim, precisaríamos reescrevermo-nos completamente.

Todavia, ao lado da realidade radical que veste crianças com coletes-bomba está a realidade ocidental que veste as suas com outros “coletes”, não menos radicais, perigosos e reprováveis. Muitas famílias burguesas não se importam em vestir os seus pequenos com “coletes” adidas feitos por mão-de-obra escrava infantil asiática, por exemplo. Porém, nesse caso, a bomba explode bem longe dos shoppings centers – os templos sagrados da sociedade ocidental – nos quais compram e desfilam tais “coletes”. Sem falar nos apertados “coletes” da anorexia e da bulimia; nos largos, da obesidade; ou ainda nas vestes obrigatórias do consumismo massivo e antiecológico que cada vez mais nossas crianças de olhos azuis são obrigadas, pelo radicalismo da publicidade capitalista, a digerirem. Uma diferença entre as bombas-relógios com as quais os ocidentais democráticos e os muçulmanos radicais vestem as suas crianças é que as daqueles explodem futuramente, enquanto as destes, imediatamente.

Paralelo ao ódio que a sociedade ocidental tem do terror está o seu inalienável deleite com imagens de morte, destruição e mutilação que povoam as suas produções hollywoodianas. Porém, quando elas se materializam pelas mãos dos seus inimigos, mesmo que vistas apenas pelo Youtube, essa mesma sociedade odeia e condena tais imagens. Impossível não citar a dupla complementar “Independence Day” x 11/9. Sobre a tão falada e ameaçada liberdade de expressão ocidental, símbolo do atentado aos doze Charlies, nossa sociedade capitalista só nos oferece tal liberdade, e prima por ela, porque tudo o que podemos dizer, de antemão já foi tornado insípido, inofensivo, laicizado. Ora, não nos iludamos, pois foi só depois de esvaziado e monitorado o perigo residente no ato de expressar-se livremente que nós ganhamos tal liberdade! Lembremos de Edward Snowden: um ocidental admirável que não pode usufruir da liberdade de expressão pressuposta no seu mundo livre, que teve de se refugiar dele devido ao terror que sofreu – e sofre – por conta do radicalismo ocidental – da CIA.

Alheios ao nosso contraditório “way of life”, porém contrapostos a ele, estão os muçulmanos, mais ainda os radicais, tão cegos e contraditórios em relação às suas próprias verdades quanto nós em respeito às nossas. De qualquer forma, eles repudiam e se horrorizam com as bombas de gordura-trans com as quais explodimos as nossas crianças, ou com as implosões de frustração que as ensinamos sofrer por não terem, por exemplo, o iphone ou o “App” da vez. Aterrorizam-se com o que fazemos das nossas crianças da mesma forma como nós nos aterrorizamos com o TNT e com a promessa de paraíso ideal com os quais explodem as suas. É muita parcialidade e inadvertência acreditar que o inimigo contra o qual o ocidente livre, expressivo e democrático já luta não existe nocivo dentro dele mesmo. No entanto, a psicanálise explica, é mais fácil colocar a culpa no Outro, pois assim flutua-se sobre uma superfície ilusória e funcional, cuja profundidade, necessária e caótica, no entanto, esconde a difícil verdade: “eles” e “nós” somos a um só tempo uma única coisa, seres humanos.

Do nosso lado, dissimulamos o caos do mundo através do insustentável “romantic consumerism”, da histérica magreza anoréxica-bulímica, de padres-banqueiros-cantores-pedófilos, do sucesso-riqueza a qualquer custo, já que o custo irá aglutinar-se bem longe, em favelas da América Latina, Ásia ou África. Do lado dos islamitas radicais – esses indesejados interlocutores justapostos a nós pelo mundo globalizado – o caos é melhor resolvido através de guerras santas – coisa que o ocidente cristão fez muito no passado -, da adesão aos mandamentos fundamentais do seu profeta, mas de forma alguma na alienação em relação a esse caos, como nós fazemos diante da TV ou no shopping. Como ficar espantado pelo fato de os radicais quererem resolver imediata e definitivamente as suas questões mais fundamentais? Isso só se explica porque o ocidente está burguesamente condicionados a empurrar esse caos com a sua gorda barriga para as gerações futuras, para a natureza ou para os países pobres. Nós tentamos mudar o mundo explodindo-nos, seja em postagens no Facebook, seja no McDonald’s seja . Eles, por sua vez, explodindo próprio mundo a ser mudado, ainda que eles mesmos ou as suas crianças sejam explodidos junto.

O ocidental pós-Deus acredita que o tempo profano terminou com o fim da Idade Média, e por isso permite que tudo seja profanado, inclusive ele mesmo, apático e desiludido que está. Mas para o outro lado da moeda-mundo a profanação vive e é um mal a ser evitado a qualquer custo, inclusive ao custo de vidas infantis, aprovemos ou não. Seria ideal se “eles” mudassem ao toque das nossas mudanças. Todavia, o mundo é real, não uma ideia-projeto ocidental de condomínio californiano, em cujas alamedas crianças gordas correm e se expressam livremente, correndo o risco máximo de serem molestadas por algum padre católico, ou de sofrerem um “bullyingzinho” dos seus colegas de escola. Esse terror é o nosso, e em relação a ele nos acostumamos, sustentando o Vaticano e mandando de volta as crianças à escola. Já o terror dos outros, ah, esse não aceitamos! Condenamo-lo veementemente. Que delícia uma Fera que nos faça parecer Bela! Que ilusão boa o Monstro reforçar o nosso ideal de Médico!

No entanto, a perversão que faz da monstruosidade do Outro um reflexo da nossa perfeição tem uma imagem real do lado de cá do espelho. Atenção! O Outro apenas espelha o nosso Ser; afinal, é só para nós mesmos que olhamos. Ao mesmo tempo, esse Outro é a testemunha indesejada do que realmente somos; por conseguinte, completa nosso Ser; ainda que parte desse ser que somos não nos caia muito bem e distorça a imagem que desejamos projetar no espelho do mundo. A criança-bomba islamita que explodiu na Nigéria tem seu correlato do nosso lado livre-democrático do mundo, tenhamos nós capacidade – ou estômago – para assumir isso ou não. Porém, ao fazermos daqueles que explodem as suas crianças em mercados públicos o mal absoluto, dissimulamos a explosão de obesidade, de consumo e de hiperatividade a que submetemos as nossas, pois são bombas que não explodirão agora, mas logo mais, em outros mercados. Nesse lapso insustentável que produzimos, vestimos o “colete” de qualidades ocidentais com os quais queremos explodir as diferenças do mundo, colonizá-lo e pasteurizá-lo ao nosso modo.

Seria ideal que mais nenhuma criança fosse explodida nos mercados no mundo, seja por TNT, seja por valores burgueses decadentes. Ora, não há nada de errado em buscar tal ideal, afinal, essa parece ser a sina do real. Entretanto, para mudar o real há que primeiro conhecê-lo, aceitá-lo, entendê-lo; assumi-lo em sua absurdidade, sem com isso isentar-se dessa absurdidade ou cindi-la maniqueistamente, escolhendo o melhor lado para si. Pouco importa como crianças são explodidas, se lenta e privadamente ou repentinamente e publicamente. Esse bicho que povoa a terra contemporânea só será realmente humano quando encontrar – ou reencontrar – um modo de vida que o dispense de explodir a si mesmo ou aos outros, principalmente os seus filhotes, os menos responsáveis pelo caos produzido, entretanto não suportado, pelos seus progenitores. Por maior que seja a sujeira que “eles” e “nós” atualmente vemos um no outro, e por mais apressados que estejamos para limpá-la, somente as ondas da história lavarão esse presente imundo. Quiçá restará uma memória plana e totêmica a aterrorizar o ser humano sempre que ele pensar explodir alguém ou alguma coisa pelo simples fato de suas diferenças em relação aos seus iguais.

A luta da classe

Da afirmação de que “capital não é o capitalismo, mas a liberdade”, veio a pergunta: “seria a luta de classes o ‘meio’ para alcançar tal liberdade?” Pois bem, dando corpo à utopia de Marx e Engels, certamente sim. Para estes dois, o capitalismo cria duas classes essenciais, quais sejam, a dos capitalistas e a dos trabalhadores, aonde a primeira explora necessariamente a segunda. Entretanto, como os dois já sabiam, “a exploração de uma parte da sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos anteriores”. Sendo assim, a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas é apenas mais do mesmo, visto que o antagonismo entre classes não foi abolido nas relações capitalistas.

Porém, de acordo com os autores do Manifesto Comunista, uma diferença essencial é introduzida pelo capitalismo: a simplificação desse antagonismo em dois campos opostos, o que dramatizou sobremaneira a histórica relação de exploração de uns sobre outros. Segundo Marx e Engels, a classe da “burguesia colocou uma exploração aberta, direta, despudorada e brutal”, diretamente sobre o proletariado. Isso revela que o antagonismo entre ricos e pobres não aconteceu por acidente, não sendo, assim, facilmente revolucionável. Antes, é uma estrutura historicamente construída para figurar dessa forma, ou seja, desigual, a cujos explorados a revolução é sistematicamente bloqueada.

Se para Marx a luta de classes daria conta de libertar os trabalhadores da exploração, era porque ele entendia, de acordo com suas palavras, que “só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária”. Todavia, por que essa verdade locada pelo filósofo na classe explorada não foi capaz de realizar a revolução? A resposta talvez esteja em uma outra afirmação dele que, no entanto contradiz a primeira: “a burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente [as] relações sociais”. Ora, como pode “só” o proletariado ser revolucionário se a burguesia também o é, e “incessantemente”? Seria a classe proletária a possuidora do direito à revolução, mas somente a capitalista a que a efetua como modus oprerandi?

Se ambas as classe são de fato revolucionárias como as frases do filósofo apontam, diante do devir do capitalismo até aqui, resta dizer, portanto, que o potencial revolucionário dos trabalhadores, apesar de existente, é inócuo; ao passo que o dos capitalistas, vitorioso. Então, a promissora luta de classes preconizada por Marx parece ser o meio dos explorados submeterem-se ainda mais à exploração, e não o meio de libertarem-se dela. A luta contra o capitalismo parece acabar sempre em favor do próprio capitalismo! Marx não estaria falando também da classe proletária ao dizer que “a aristocracia feudal não é a única classe arruinada pela burguesia”?

Entretanto, qual foi, e qual é, até hoje, a luta real entre as classes dos trabalhadores e a dos capitalistas que, não obstante, só fez aumentar o poder destes sobre aqueles? Essa luta, materialmente, vem sendo nada além da relação comercial na qual o trabalhador vende a sua força de trabalho para esta ser explorada pelo capitalista, porém, unicamente de acordo com as necessidades deste. Essa relação, todavia, começa e finda com o trabalhador perdendo e o capitalista ganhando. Primeiro, o trabalhador produz para o capitalista por, digamos, um mês, para só então receber o seu salário. Nesse processo, o capitalista usa de graça o trabalho que produzirá não só o dinheiro que irá pagar tal trabalho, como também o seu lucro pessoal. Segundo, e mais importante, o salário recebido pelo trabalhador pela exploração é todo gasto na compra de mercadorias vendidas pelos capitalistas, devolvendo-lhes, assim, a miséria que receberam pela exploração mensal. Ou seja, é o trabalhador que de um lado paga a si mesmo com o seu trabalho, e por outro, enriquece o capitalista comprando as suas mercadorias; fazendo assim com que tudo o que o capitalista investe retorne “engordado” para ele.

Então, Marx pergunta: “O trabalho do proletário […] cria propriedade para o proletário? De modo algum. Cria o capital, isto é, a propriedade que explora o trabalho assalariado”. Está aí o tendão de Aquiles da luta-relação real entre a classe dos capitalistas e a dos trabalhadores. Disso Trotsky já sabia ao afirmar que “o proletariado não pode conquistar o poder dentro do sistema legal estabelecido pela burguesia”. O “capitalismo têm minado em todos os aspectos a construção de uma consciência revolucionária”, reitera o sociólogo James Petras.

A expressão “luta de classes” significa coisas diversas, e inclusive contraditórias. Para os trabalhadores, tal luta, enquanto relação material significa a venda constante da sua força de trabalho a ser explorada, ou seja, a subjugação diante do capitalista; mas, enquanto utopia significa uma inversão disso, em cuja vitória sua seria a classe capitalista a subjugada – o que, no entanto, não aconteceu até hoje. Do lado dos capitalistas, por sua vez, a luta enquanto relação material é a compra da força de trabalho por menos do que ela vale, já com o intuito da obtenção da mais-valia que desemboca na riqueza; porém, para estes, enquanto utopia revolucionária, na qual essa mais-valia permaneceria nas mãos dos trabalhadores que a produziram, essa luta não lhes oferece risco real algum.

O que os capitalistas querem mesmo – ao modo de já desenvolvê-la – é apenas uma relação material e ordinária com os trabalhadores, na qual estes permaneçam oferecendo-se à exploração, sem as lutas de classe realmente revolucionárias como as utopias sustentam. Basta, por conseguinte, não entrar em luta contra os trabalhadores. A classe detentora dos meios de produção usa o seu poder para salvaguardar tal poder mais do que tudo; produzindo, junto com as demais mercadorias, uma fundamental à sua sobrevivência: a repressão à ideias e valores que a ameacem. As lutas que o capitalismo empreendeu, na verdade, foram apenas duas: uma contra a aristocracia feudal, da qual saiu o vitorioso histórico; e outra, que constantemente desenrola, contra ela própria, isto é, a disputa interna entre os capitalistas por mais mercados.

Por conseguinte, a luta de classes que usualmente temos em mente entre capitalistas e trabalhadores, do lado dos capitalistas resume-se em uma relação cotidiana, isto é, na própria ordem do capital, que, sobretudo, deve permanecer ad aeternum. Já para os trabalhadores, essa luta que de um lado é uma relação real, na qual ele jaz subjugado, de outro, enquanto utopia revolucionária, na qual o subjugado é o capital, tal luta é o horizonte do qual o trabalhador, por conta da exploração que sofre, não consegue – e talvez não deva mesmo – desviar os olhos. Por conseguinte, a luta de classes, enquanto embate, é só dos trabalhadores, e não dos capitalistas. Estes, antes, querem a sua ausência. Se uma classe está bem, por que desejar inimigos? Desse modo, a luta que promete libertar os trabalhadores da exploração é apenas a luta de uma classe, a dos próprios trabalhadores.

A luta que envolve as duas classes, a dos capitalistas e a dos trabalhadores, já é o próprio capitalismo em sua saúde plena, de forma alguma aquilo que causaria o seu fim. O capital, em luta, é sempre vitorioso, pois o campo de batalha, as armas e o exército, simbolizados pela fábrica, pelas máquinas e pelos trabalhadores, respectivamente, desde o início do embate já são dos capitalistas. O trabalhador, nessa guerra, só entra para morrer. A luta de classes, portanto, é a expressão de um otimismo que favorece duplamente o capitalista, pois mantém os trabalhadores imersos em uma utopia até aqui inefetiva que, por conseguinte, os submerge cada vez mais fundo dentro do oceano capitalista que, como podemos perceber historicamente, não tem fundo.

O capital prossegue fortalecendo-se, seja na luta que os trabalhadores intentam contra ele, seja na sua relação “tradicional” para com eles. Inversamente, na única relação que o capital lhes oferece, os trabalhadores, infelizmente, são paulatinamente furtados tanto de sua força trabalho quanto da possibilidade de venderem essa força. A instituição materializada disso são as megafavelas que crescem ao redor do mundo, nas quais o proletário explorado entra para, em pouco tempo, tornar-se o “lumpemproletário” sem condições sequer de dispor ou de vender a sua força de trabalho. De acordo com a obra de Mike Davis, “Planeta favela”, na China, 40% da população é favelada; na Índia, 56%; na Nigéria, 80%; em Bangladesh, inacreditáveis 85% da população é favelada, estando abaixo da linha que lhes permitiria participar ativamente da sórdida roda exploratória do capitalismo. Um dos produtos do capital, talvez o mais cruel e desumano, é uma classe trabalhadora cada vez mais incapaz de enfrentá-lo.

A crença revolucionária de Marx de que “a burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros” cada vez mais revela seu teor utópico, pois “hoje os capitalistas não “arregimentam os homens que manejarão as armas” que desferirão o golpe mortal no capitalismo [como pensavam Marx e Engels]. Eles criam milhões de trabalhadores temporários, instáveis, amedrontados, amarrados ao nexo monetário”, aponta Petras. Desse modo, Marx estava errado ao dizer que “o proletariado, como resultado da sociedade moderna, traz em si a missão de suceder a burguesia”. Antes, a missão histórica do proletariado parece ser a vivificação cada vez mais intensa da burguesia; e o ideal da luta de classes, a sucessão dessa vida.

A classe capitalista, atualmente, se reproduz e se fortalece cada vez mais por intermédio de movimentos – investimentos – virtuais que paulatinamente a dispensam tanto da relação com o proletariado quanto da luta deste contra ela. Aliás, como bem ressaltou Petras, “a concentração e centralização de capital em escala global e o desenvolvimento de novas tecnologias são acompanhadas pelo ressurgimento de modos de produção pré-capitalistas baseados na exploração intensiva do trabalho”. A classe do capital, portanto, em vez de enfraquecer-se mediante a luta dos trabalhadores contra ela, nada mais faz que renovar incessantemente o germe de seu reaparecimento. Os enfrentamentos que recebe só a fortalecem.

Trotsky já havia percebido a ingenuidade de Marx e Engels em acreditarem que o capitalismo estaria liquidado antes de passar à sua fase de absoluto reacionarismo. Na verdade, segundo Petras, “hoje, a burguesia conta com o véu de uma retórica “pós-capitalista” para se referir a formas primitivas de exploração”, como que voltando à sua juventude, à incontrolável potência que reside em todo germe. Por outro lado, a globalização do capital fez do trabalhador um corpo global e amorfo, que somente agindo coordenada e também globalmente poderia revolucionar a realidade que o explora. Porém, a dificuldade de concatenar um exército mundial de trabalhadores à revolução é mais um produto do capitalismo que garante a sua perpetuação.

Consoante a isso, a luta de classes revolucionária – que a esta altura deve ser vista como a luta solitária da classe oprimida – é enfraquecida ainda mais devido ao fato de que o trabalhador atual não quer dar cabo do o burguês capitalista. O consumismo, produto essencial do capital, na verdade, faz do rico capitalista o sonho individual e a meta da maioria dos trabalhadores. A luta dos trabalhadores se dá mais no sentido de abandonar a classe a que pertencem, para então emergirem à classe dos seus algozes, do que no intuito de todos, capitalistas e trabalhadores, migrarem para uma classe única, intermediária, e sem desigualdade, como prega a utopia comunista. No capitalismo, ora bolas, todos querem ser capitalistas! O capital só é porque capitalizado por todos!

Infelizmente, a consciência de classe que guiaria os trabalhadores a uma luta realmente eficaz à revolução é sistematicamente solapada pela consciência maestra da classe capitalista. Esta sabe como, além de possuir os meios para capitalizar a sua própria realidade, transformá-la em mercadorias – no mais das vezes ideológicas – que, levadas ao mercado, retiram dos trabalhadores não só a miséria com a qual estes foram pagos para produzirem tais produtos, mas também a força de suas utopias e da realidade de suas necessidades, colocando, por conseguinte, as suas no lugar. A luta dos trabalhadores, até aqui, não é a de classes, mas sim a de uma única classe, a sua própria. Também não é contra os capitalistas, mas contra si mesmos. Em respeito a isso, Marx disse a eles: “Vós tereis de passar por quinze, vinte, talvez cinquenta anos de guerras civis e internacionais, não somente para mudar as condições sociais, mas [principalmente] para mudar a vós mesmos, e tornar-vos aptos a assumir o poder”.

Capital não é o capitalismo, mas a liberdade.

Muita coisa pode ser dita a respeito do “capital”, pois o seu “ser”, bem como todos os demais, conforme a metafísica aristotélica, “se diz de muitas maneiras”. Ora, se o ser do capital tem múltiplos sentidos (históricos, filosóficos, econômicos, etc.), um, dentre esta multiplicidade, merece destaque especial, qual seja, o seu ser primeiro. Então, subsistente ás muitas vozes que expressaram o capital – todas dignas de nota, porquanto expressões através das quais ele vem se revelando a nós – é na sua expressão primeira que reside algo de necessário, a partir do que as demais contingências a seu respeito ganharam vida.

Uma das primeiras investigações acerca do capital vem dos fisiocratas (fisiocracia = o governo da natureza). Ícone deste movimento teórico, François Quesnay, já no início dos 1700, afirmava que a riqueza máxima era a terra, mais especificamente as terras agrícolas, pois era a partir delas que a subsistência humana era produzida. Para a fisiocracia, portanto, capital era possuir e administrar a terra de forma produtiva, visando lucro. Na esteira aberta pelos fisiocratas, se colocaram David Ricardo e Adam Smith, descobrindo que o capital era mais do que simplesmente aquilo (a terra) a partir do que o valor – por conseguinte o lucro – se dava. Suas ideias revelaram um valor até então marginal ao capital: o trabalho e o interesse humanos.

Ricardo modificou o corpo do capital, fazendo dele também a força de trabalho do homem, bem como a produção dela proveniente. Porém, sua grande contribuição foi descobrir o valor que era gerado na circulação dessa produção, teoria ulteriormente desenvolvida por Marx. Smith, por sua vez, dizia que era o auto-interesse, isto é, o egoísmo dos indivíduos o capital que movia a sociedade toda. Para este pensador, seria uma “mão invisível” o que, por um lado, levava os indivíduos a buscarem o que antes não era do interesse deles (lucro, fortuna); e por outro, esta mesma “mão invisível” regularia os auto-interesses globais, baixando o preço dos produtos e aumentando o salário dos que os produziam.

Marx, um dos mais notáveis pensadores da história, iniciou sua teoria criticando Smith devido à sua ingenuidade em crer que era invisível e individual a força do capital; e também a Ricardo, pois este, apesar de considerar a produção humana e a sua circulação o capital da sociedade, pregava que o valor monetário do dinheiro gerado e acumulado dessa circulação não representava o capital. O pensador alemão foi o primeiro a enxergar que capital era a relação do homem com a produção da sua sobrevivência material. Entretanto, de Ricardo, Marx carregou consigo os valores do trabalho e da circulação dos produtos dele provenientes. Em respeito a Smith, sua “mão invisível” transformou-se, nas mãos de Marx, no colapso inevitável do capitalismo, gerado por ele mesmo no seu devir, independente das ações individuais.

Hoje, na teoria econômica da moda, produzida por Thomas Piketty, o capital volta a ser dito enquanto riqueza ela mesma, seja ela em forma de patrimônio imobiliário, ações financeiras, renda ou herança. Interessante é perceber que Piketty não considera a força de trabalho como capital, pois, para ele, capital é o que pode ser “comprado” definitivamente, como as riquezas supracitadas. A força de trabalho, portanto, fica de fora do capital porque, de acordo com os preceitos clássicos do capitalismo reiterados por Piketty, ela pertence inalienavelmente ao trabalhador, podendo ser “comprada” apenas por horas, dias ou meses, retornando sempre à posse do trabalhador no fim do negócio. Caso contrário, tratar-se-ia de escravidão, aonde o comprador, ao adquirir o indivíduo, leva junto, até a morte deste, a sua força de trabalho.

Entretanto, ao excluir a força de trabalho da essência do capital, elegendo a riqueza comprável e armazenável como tal, Piketty diminui, a um só tempo, o valor da força de trabalho ricardiana e a relação marxiana desta com o capital social. Resta o quê? A invisível mão smithiana, porém pikettyanamente pervertida, aumentando o preço dos produtos e reduzindo o valor dos salários. Por isso Piketty visualiza centralmente a acumulação de riqueza como “O capital do século XXI”. Ora, se somente aquilo que pode ser comprável e armazenável é capital – ainda que virtual (ações, investimentos e especulações financeiras) -, a força de trabalho dos homens, apenas “alugável”, deixa de ser o valor principal e, por conseguinte, essa força preterida jaz incapaz de revolucionar a realidade econômica que a pretere.

Tendo percorrido, ainda que superficialmente, algumas das mais conhecidas teorias econômicas que tentaram dar conta do capital, contemplando de certa forma as suas congruências e inevitáveis divergências, o que é, enfim, capital? O passado nos legou muitas ideias sobre isso. Outrossim, o futuro trará muitas outras. Todavia, se muitas coisas podem ser ditas acerca do capital, essa plurivocidade, por sua vez, significa contingência ou necessariedade? Aristóteles responderia que significa esta última, por certo. Assumindo então a visão do antigo grego, de todas as formas que o ser do capital já se disse, das que atualmente se diz, bem como das que ainda se dirá, qual é a mais essencial?

O capital – e a sua majestosa sistematização histórica, o capitalismo – não teria, antes, a sua forma essencial justamente na sua origem, porquanto descontaminado das contingentes especulações científicas que tentaram – e ainda tentam – reificá-lo, sem, no entanto, dar cabo dessa tarefa? Em caso afirmativo, a visão fisiocrata está mais próxima da essência do capital que a pikettyana. A fisiocracia, por contemplar centralmente os valores agrícolas e fundiários característicos do feudalismo, manteve no conceito do capital àquilo contra o que ele veio a ser, isto é, a sua causa. Não podemos deixar de fora do ser as suas causas! Do contrário trataremos apenas de efeitos, e, no final das contas, de contingências. Se o ser do capital é, aristotelicamente falando, tudo o que pode ser dito a seu respeito, aquilo que ele primeiramente foi, mas que ainda pode ser dito, é, portanto, a sua substância máxima.

O modelo econômico feudal foi o solo concreto a partir do qual o capitalismo germinou de forma irreversível. Portanto, algo de essencial ao capital há no feudal. Os desdobramentos históricos pelos quais o capitalismo passa e, sobremaneira, através dos quais ele se diz – ao modo de gerá-los nesse devir discursivo mesmo -, embora guardem verdades acerca do capital, são afastamentos da verdade primeira, mais substancial, do capital. A maior verdade sobre o capitalismo, portanto, contempla o feudalismo, pois foi este que, em sua saturação absoluta, o gerou. Todo resto é ou desdobramento ou interpretação de uma forma inicial essencial.

Logo, o capital foi a forma de valor que o homem inventou-produziu para comprar-pagar um futuro novo para si, livre das estagnadas relações de servidão do feudalismo. Não é que a força de trabalho tenha sido descoberta no ocaso do feudalismo e na aurora do capitalismo. Os escravos antigos e os servos medievais já eram essa força; e os senhores já a exploravam! O que houve foi a invenção da posse e da portabilidade, nas mãos dos indivíduos, de tal força; doravante, negociada e comercializada por eles com a nova classe dos capitalistas. Por conseguinte, capital, essencialmente, foi a necessidade dos homens, todos eles, de se libertarem da intransponibilidade social necessária ao feudalismo, para então experimentarem um destino outro, ainda que ninguém soubesse no que daria.

Porém, antes de afirmarmos no que isso deu, é no vazio dessa resposta que se encaixam todas as interpretações filosófico-econômicas sobre o capital feitas até aqui. Todavia, essencial mesmo foi o passo inicial, ou o empurrão, que deu início à caminhada! Do contrário, nada poderia ter sido dito. Sendo assim, foi quando o homem experimentou uma liberdade até então inexistente, isto é, a liberdade de possuir em si a força que gera a riqueza e que move a sociedade toda, que ele, assenhorando-se diante do seu senhor, pode usar tal força como moeda de troca para usufruir dessa liberdade. Esse homem, portanto, foi a primeira encarnação do capital. Disso decorre que capital é a liberdade ela mesma, independente da forma econômica através da qual se apresente.

Por mais que o sistema feudal possa ser visto como a prisão de cujas muralhas o capitalismo libertou os homens, o feudalismo em si não significava apenas isso. Antes, o regime feudal, por sua vez, também representou uma liberdade inédita, pois ofereceu aos homens um modo de sobrevivência que não a escravidão da antiguidade. Sendo assim, o capital transcende as formas econômicas, inclusive o capitalismo, pois capitais foram todos os movimentos no sentido de o homem conquistar maior liberdade na produção de sua sobrevivência; seja a liberdade em relação às vicissitudes da natureza que a escravidão legou aos nômades; seja a liberdade que a servidão ofereceu aos escravos; e ainda, seja em respeito à liberdade que o capitalismo proporcionou aos servos medievais.

Entretanto, a ideia de Marx de que o capitalismo geraria, com as suas próprias contradições, a sua estagnação, solicitando assim um sucessor histórico-econômico necessário, tal ideia subjaz genérica em todas as formas econômicas experimentadas pela humanidade, dado que todas elas nasceram de um germe essencial e necessário, floresceram, estagnaram e solaparam sob o seu próprio peso. Com o capitalismo não há de ser diferente, ainda que sua força-juventude atual desminta tal destino. O que acontece é que, ao nos afastarmos da essência primordial do capitalismo, afastamo-nos também da liberdade que ele outrora representou. Com isso, nos aproximamos cada vez mais dos efeitos de sua saturação e experimentamos o sabor intenso de suas contradições, o que, historicamente, acaba por figurar como novos grilhões a serem rompidos.

Ora, se capital é a liberdade do homem em respeito à sua sobrevivência, o inicialmente libertário capitalismo, ao aproximar-se de sua saturação histórica, assemelha-se a todos os sistemas econômicos anteriores quando em suas próprias saturações. Portanto, será – se é que já não o é – capital libertarmo-nos do próprio capitalismo! Isso porque o que é capital ao homem, ou seja, a sua liberdade, transcende as páginas históricas pelas quais ele passa. De um ponto de vista diametralmente oposto, a própria história em si é a imanência da liberdade humana, capitalizada. Novamente, em algum momento será capital libertarmo-nos do próprio capitalismo. Capital será, um dia, o pós-capitalismo, ainda que não saibamos, agora, a forma que esse capital tomará no futuro, não obstante, significando essencialmente liberdade. Mantendo proximidade com a essência primeva do capital, liberdade para sobreviver fisiocraticamente, ou seja, apenas sob o governo eterno da natureza.

Marx no BRS carioca

Se Marx viesse passear no Rio, nos dias de hoje, seria bom ele tirar a barba, e isso por dois motivos. Primeiro, seria confundido com um “hipster”, o que lhe desagradaria sobremaneira. Segundo, por conta do calor da cidade, que faria do microambiente sob a longa barba, encharcada de suor, um potencial criadouro do mosquito da dengue. Jocosidades à parte, se o filósofo alemão passeasse pela capital fluminense, teria de fazê-lo de ônibus, pois, de táxi, pela zona sul carioca, geraria uma série de novas jocosidades.

O motivo do anacronismo de colocar Marx em um ônibus carioca se dá por conta de uma exceção que o pensador encontrou, lá no século XIX, no modo capitalista de produção. A partir da percepção de que há uma tendência imanente de que a oferta e a demanda capitalistas se afastem uma da outra, para que a produção da mais-valia trabalhe confortavelmente, a produção e o consumo devem aparecer, para a ventura do capital, como dois atos separados no espaço e no tempo. Porém, o filósofo percebeu que na indústria dos transportes – que traslada homens e coisas – estes dois atos se confundem.

Ao consumir uma viagem de ônibus, por exemplo, tal mercadoria é consumida no mesmo instante em que ela é produzida, pois, a viagem, isto é, o consumo do movimento espacial, é justamente o processo de produção sendo contemporaneamente consumido, sem distância alguma. Ora, isso porque a mercadoria que a indústria dos transportes produz e coloca no mercado é o próprio deslocamento. Como é sabido, o tempo entre a produção e o consumo mede a velocidade com que o mais-valor retorna às mãos do capitalista. Disso decorre que quanto mais rápido é consumido aquilo que é produzido, melhor. Porém, em geral, é necessário um lapso entre esses dois momentos, pois o capital, metamorfoseando-se temporalmente, de meios de produção + força de trabalho (produção) à mercadoria consumida (consumo), tem nesse processo etapas essências de mais-valia. Suprimindo esse devir absolutamente, e ainda assim querendo enriquecer, somente achando ouro.

Na contramão desse processo, a indústria que leva viagens ao mercado, ao sincronizar a produção com o consumo, dissimula um no outro. Nesse movimento, tanto faz a mercadoria, dado que, ao passo em que é produzida, já é consumida, antes mesmo de estar acabada. Diferente das demais mercadorias industriais que se oferecem ao consumo como produtos prontos, e que por isso podem ser analisados previamente, oferecendo liberdade ao consumidor para consumi-las ou não, a mercadoria da indústria dos transportes é vendida antes mesmo do consumidor saber o que consumirá.

Um negócio nesses moldes é ouro certo para o capitalista, pois ele só precisa começar produzir a mercadoria no momento em que ela começa a ser consumida. Por conseguinte, nessa confusão, não há mais necessidade de produzi-la com a qualidade ofertada, dado que o fim do processo, o dinheiro, já se encontra seguro nas mãos do capitalista. Marx, portanto, intuiu que tal processo é, assim, quase a mesma fórmula da produção dos metais preciosos, não obstante com o minerador encontrando ouro em todas as escavações, sem erro.

Embarcando num transporte carioca, o filósofo alemão poderia comprovar, como em nenhum outro lugar do mundo, a exceção-engodo capitalista decorrente da sincronia entre produção e consumo presente na indústria do transporte. Se a mercadoria em questão fosse um iphone, por exemplo, e se ele apresentasse algum problema crônico, simplesmente o consumidor poderia optar por não consumi-lo, sem custo algum, pois o investimento inicial referente ao produto falho não foi do consumidor, mas do capitalista; este teria de arcar sozinho com o custo do seu erro. Isso só é possível porque, neste caso, o consumo está bem distante da produção, descolado dela.

Já a mercadoria-transporte, cujo diferencial é a mistura de produção e consumo, inicia-se não somente com o investimento do capitalista, mas também com o dinheiro do consumidor – um investimento no valor da passagem. Assim, o ônus de uma mercadoria sem qualidade não recai apenas sobre o capitalista, mas é dividido com o consumidor; que neste caso, e em todos os outros, não tem compromisso algum com o que é produzido. A indústria do transporte, depois dessa parceria na qual o consumidor participa inadvertido, pode produzir o que ela quiser, com a qualidade que lhe convir, pois o lucro será só dela, e os prejuízos, divididos com o “sócio-consumidor” desavisado.

Em se tratando da indústria do transporte carioca, mais conhecida como “máfia do transporte” – e considerada por muitos a pior do universo -, o consumidor é a vítima sempre lograda. O infeliz diferencial do consumidor do transporte carioca está menos no desagrado depois de a mercadoria ter sido totalmente consumida do que no desagrado que se estende desde o momento em que tal mercadoria começa a ser produzida e entregue; isso em todas as etapas de sua produção – o que, na verdade, figura como um pacote de mercadorias produzidas-consumidas, todas dentro da mesma viagem.

Marx disse que, no dinheiro, toda distinção entre mercadoria é apagada porque ele é justamente a forma equivalente comum a todas elas. Já no Rio, quando o dinheiro compra uma passagem de ônibus, o que ele apaga é justamente a distinção entre uma mercadoria boa e uma ruim; entre a mercadoria pela qual pagou o consumidor e aquela pela qual ele nunca pagaria. Isso se dá porque, depois que o capitalista está com a sua mais-valia segura na mão, o consumidor deixa de ser consumidor, e é tratado como um proletário cuja exploração é o meio excelente da mais-valia findar sempre nas mãos capitalistas.

Por outro lado, se o processo do capital é a unidade de três elementos essenciais, quais sejam, produção, circulação e consumo, como afirmou o alemão, as transportadoras, em especial as cariocas, embaralham esse processo capitalista, produzindo algo que não precisa ser propriamente circulado, pois o consumo já se dá imediatamente à produção, não obstante a circulação já sendo o consumo mesmo. Isso confunde sagazmente produção e circulação de mercadorias com as próprias mercadorias. Nesse movimento, o consumidor que deveria estar no fim do processo, isto é, na foz da circulação das mercadorias – para então consumi-las ou não -, é confundido com a mercadoria produzida e circulada pelo capitalista.

Seguindo à risca as premissas capitalistas, embora, segundo Marx, sendo a exceção, a produção de transporte, especialmente a da cidade do Rio de Janeiro, é um mal necessário ao único processo que importa, ou seja, fazer dinheiro. Nessa indústria dos deslocamentos, como em nenhuma outra, o consumidor ora é tratado como o proletário produtor, visto que está na linha de montagem, oferecendo não a sua força de trabalho, mas outra, a força do seu dinheiro, na forma de passagem, para só então essa produção começar a produzir aquilo pelo qual ele já pagou; ora é visto como mercadoria, porquanto é o consumidor que é “circulado” na batida da produção – porém, a mercadoria é um consumidor insatisfeito.

Etapas necessárias ao sistema capitalista, produção, circulação e consumo, apesar de formarem um todo, cujo pressuposto é o capital, dissociam-se temporalmente, por questões logísticas-materiais. Nessa metamorfose pela qual passa o capital, o mais-valor, objeto do capitalista, vai sendo gerado, sugado de cada etapa. Entrementes, quando esse devir é suspenso, e a produção é misturada com a circulação e com o consumo, o que acontece na indústria do transporte, o mais-valor deve se dar de uma só vez. Como isso é possível?

Ora, estando o capitalista com a mercadoria vendida antes mesmo de produzi-la, portanto com a necessidade de satisfazer o consumidor preterida – ainda que este seja “circulado” junto com a mercadoria ainda incompleta e em produção – a mais-valia se dá na produção de mercadorias de baixa qualidade. No caso das fábricas-ônibus cariocas, cuja mercadoria é o deslocamento, deslocamentos de péssima qualidade: sem segurança aos usuários; sem cumprimento de horários; etc. A indústria dos transportes, ao perverter a perversão que o próprio capitalismo já é, fazendo do tripé capitalista (produção-circulação-consumo) uma única estaca certeira, converte, pelo tempo da viagem, os consumidores das suas mercadorias em mercadorias e trabalhadores seus, pois, uma vez presente na produção, o consumidor, sem distância dela, não escapa da exploração que ela engendra.

Maquiavel e Marx contra a muralha do poder

Uma leitura transversal de “O Príncipe”, de Maquiavel, mostra que a obra dirige-se àqueles que pretendem conquistar e manter o poder. Entretanto, o filósofo não teorizou no sentido de trazer à luz do mundo receitas utópicas através das quais os príncipes podeiam, a partir da leitura, galgar algum poder ainda não alcançado. “O Príncipe” é muito mais a reificação das velhas formas com as quais os soberanos capitalizavam o poder para si. Esse caráter técnico – e não teórico – da obra redefine sobremaneira a sua pertinência.

“O Príncipe” maquiavélico não traz nada de novo àqueles que atendem pelo nobre título, apenas “manualiza” suas realidades incontestes. Há que se perguntar a quem toda essa informação estratégica serve. Antonio Gramsci, na sua leitura de “O Príncipe”, revelou o caráter revolucionário da obra, dizendo que ela se dirigia ao povo, aos moldes de um manifesto invertido, e não àqueles que intentam subjugá-lo. De que modo um texto remetido aos soberanos endereçar-se-ia, em verdade, ao povo, visto que este é a massa de manipulação daqueles?

A propriedade da interpretação gramsciana de “O Príncipe” reside na inutilidade que o teor da obra tem àqueles que já são esse teor – essa teoria – na prática. O que fica claro através da visão de Gramsci é que as realidades dos príncipes, e os seus ardis modos de ser, são levados pela primeira vez ao conhecimento do povo, justamente os que estiveram alienados desse “modus operandi” soberano. Sendo assim, o ouro da realidade descrito por Maquiavel, de acordo com Gramsci, é útil exclusivamente ao povo, porquanto é este a vítima primeira da inadvertência acerca da forma com a qual é dominado.

Abrindo ao mundo a realidade crua com que o poder é conquistado e mantido pelos príncipes, Maquiavel revela o escopo laico e pragmático das suas práticas. É aí que “O Príncipe” serve melhor ao povo que aos soberanos, pois, uma vez esclarecido o modo com o qual estes manipulam aqueles, a soberania do príncipe é ameaçada, não por algum inimigo externo, mas justamente pela verdade intrínseca do seu ser. Logo, uma vez revelada a mística com a qual o poder historicamente se camuflava para melhor inscrever-se sobre o povo, este tinha em mãos a chave para revolucionar as tradicionais estruturas do edifício do poder.

Outra obra histórica que, sob o título do vilão, dirige-se às suas vítimas, é “O Capital”, de Karl Marx. Nesta obra, o filósofo, ao falar da sordidez eficiente do capital em conquistar e manter o seu poder, não teoriza no sentido dos capitalistas, visto que estes são o teor vivo e consciente da realidade d’O Capital. Antes, a obra de Marx revela aos inadvertidos o agir do capital em seus secretos modos de ser. A diferença entre “O Príncipe” e “O Capital” é que aquele não se assume revolucionário; ao contrário, é imediatamente reacionário em benefício do poder estabelecido, porém, de acordo com Gramsci, absolutamente subversivo sub-repticiamente; enquanto “O Capital” é uma chave declarada à revolução, desde o início desnudo, direto e escrito ao proletariado.

O contexto histórico de cada um dos dois autores determinou sobremaneira a apresentação do teor revolucionário de suas obras. Maquiavel escreveu em um mundo no qual homens eram punidos severamente pelo que diziam, como seus contemporâneos Giordano Bruno, queimado vivo, e Galileu Galilei, declarado herege. Portanto, caso Maquiavel quisesse comunicar a revolução que Gramsci viu nos seus escritos, não poderia fazê-lo abertamente, apenas subversivamente. Já Marx experienciou um momento histórico que só não pode ser chamado de totalmente laico por conta do abstrato Deus Capital. Todavia, o poder capitalista contemporâneo de Marx não ameaçava a sua vida por que desnudado por ele.

Tomando o escopo revolucionários de “O Príncipe” e o de “O Capital” – aquele maquiavelicamente subversivo, e este marxianamente revolucionário -, ambos revelaram as faces sórdidas subjacentes às suas realidades históricas. No entanto, os súditos dos príncipes e os proletários do capital, ainda que conscientizados das astúcias de seus carrascos, não puderam revolucionar a realidade em benefício próprio. Tanto o poder dos príncipes, como o do capital, souberam cooptar com maestria a sua evidenciação pública, usando seu ser desnudo como combustível de sua manutenção, dado que o povo seguiu sujeito ao poder. A diferença é que hoje sabemos cientificamente como o poder nos coopta.

Seria a evidenciação da realidade suficiente para revolucioná-la, ou essa assunção, ao contrário, seria a forma, doravante laica, de a realidade perpetrar-se? Se atentarmos ao devir histórico no qual Maquiavel e Marx se atravessaram, perceberemos que as verdades incontestes dos dois filósofos serviram muito mais ao arvoramento do poder estabelecido que ao seu solapamento. Portanto, sobrevém a pergunta: seria mais revolucionário deixar o poder dos príncipes e o poder do capital mistificados, ocultos em si mesmos, a fim de que suas ruínas pudessem lhes pegar de surpresa?

Marx dizia que o capitalismo tem o seu ponto de saturação máxima a partir do qual solapará irreversivelmente. Difícil é estabelecer esse limite e o início desse processo… Porém, Marx, ao abrir o ser do capital ao mundo, abriu-o também ao próprio capital, ou pelo menos à sua face inconsciente de si. A partir daí o monstro pode psicanalisar-se e encontrar formar de permanecer sendo. Caso o alemão não tivesse revelado o ser do capitalismo tão objetivamente, estaria o capitalismo mais vulnerável a si mesmo e, portanto, mais suscetível ao destino que o próprio Marx previu para ele?

Desde a antiguidade o homem investe na crença de que é a verdade o caminho a ser seguido por ele, e a ciência desenvolvida desde lá é o edifício absoluto dessa crença. Estaria, contudo, essa fé na verdade, fazendo o desserviço em relação àquilo promete? Se a verdade maquiavélica e a marxiana serviram muito mais ao fortalecimento e à manutenção das sórdidas realidades estabelecidas, antes ocultadas das pessoas por suas místicas abstratas, é de concluir que a fantasia com a qual o poder se reveste é o seu primeiro e maior inimigo, e não a verdade que brinca de desnudar o seu ser. Nu, o poder é ele mesmo, tem menos a perder e menos franjas suas nas quais tropeçar.

Portanto, a melhor estratégia para vencer o inimigo é muito menos conhecê-lo pormenorizadamente, pois assim o conhecedor, no ato do conhecimento, entende o ser investigado e torna-se, inadvertidamente, aquilo que conhece, aumentando-lhe o ser. Por ventura não foi assim que o poder soberano esmiuçado por Maquiavel encontrou forças para sobreviver até hoje? E não foi a ciência que o capitalismo pode ter de si próprio a sua maior mola propulsora? De que modo o povo, vítima constante do poder, poderia revolucionar a sua crítica realidade a despeito das verdades dos poder que o domina? Marx, no Manifesto comunista, disse que violenta e repentinamente, sem procurar negociar com o poder estabelecido nem entendê-lo, pois esse diálogo enfraqueceria a voz revolucionária e manteria vivo algo do inimigo.

Então, buscar conhecer o poder que nos oprime é um dos modos de ele ganhar nova vida, porquanto essa verdade é apenas o funcional deslocamento do poder do plano ininteligível e místico do real, passando pela semi-inteligibilidade manipulável da realidade, e cristalizando-se eternamente no busto de seu próprio conceito científico. Seria o poder menor se menos tematizado? Ou, caso permanecesse alienado dos despoderados, envolto nos seus próprios misticismos primordiais, sucumbiria ele mais rapidamente às suas próprias contradições? Entrementes, a verdade do poder, a exemplo das verdades maquiavélicas e marxianas que não mataram o poder de uns sobre todos, é melhor que permaneça mística, pois, reificada, acaba se tornando tijolos novos na velha muralha com a qual o poder resiste ao tempo.

Nobre parasitismo

Antes de ser tardiamente estigmatizada, a palavra “parasita” foi cunhada para nomear uma das mais nobres funções que um homem podia exercer nas cidades do mundo antigo ocidental. Etimologicamente, “parasita”, em grego, “parásitos”, é a junção de “pará”, que quer dizer “ao lado”, ou “junto de”, e “sito”, que significa “comida”, “alimento”. Com esta definição sentimo-nos em casa com o significado atribuído ao ser que se coloca junto do seu alimento, por interesse próprio, e em detrimento absoluto do seu desavisado anfitrião. No entanto, embora com significância negativa para nós, pós-modernos, cabe investigar em que sentido “parasitar” ainda carrega algo de positivo e sustentável ao sistema social atual.

Na antiguidade grega, de acordo com o historiador Fustel de Coulanges, as divindades eram os centros gravitacionais da existência individual, familiar e, inclusive, social. Para estes ancestrais, era impensável, portanto inexistente, a ideia de um Deus único e onipresente, ao molde do deus cristão. Antes, cada família tinha as suas próprias divindades particulares, que eram seus mortos, enterrados sempre junto do lar, e que exigiam atenção e culto constante. O “Sacrifício”, como era chamada a oferenda oferecida aos idos, tratava-se da comida preferida do morto; e os vivos, atendendo aos desejos daquele, acreditavam arrancar-lhe, sobrertudo, bem-aventurança na vida.

Quando os grupos familiares, isto é, as fratrias, agruparam-se em número maior, carecendo de um novo conceito de grupamento e, portanto, de um novo nome – polis – esta nova instituição social precisou de uma justificação divina, aos moldes da familiar, em torno da qual os cidadãos fundamentassem sua convivência em comum. Logo, necessitava-se de um morto, geralmente o primeiro morador daquela região, o fundador da polis, que doravante era cultuado, solicitando assim sacrifícios dos vivos. Sem a graça desse morto aqueles antigos não acreditavam que teriam sorte suficiente para que sua cidade vingasse. Então, uma vez ao ano, todos os cidadãos reuniam-se para oferecer e comer o sacrifício junto desse morto.

O dever cívico-religioso era tão importante que, para isso, inventaram e instituíram o censo, pois era nesse sagrado dia que eram contadas as pessoas para que ninguém deixasse de sacrificar-se, o que comprometeria a bem-aventurança de toda a cidade. Como as demandas de uma cidade são bem maiores que as de uma família, esta divindade unificadora da polis deveria ser mais paparicada que as outras, as particulares. Por conseguinte, acreditavam os gregos, eram necessários sacrifícios diários para que a divindade estivesse sempre satisfeita e nunca se esquecesse dos vivos cultuadores. Aos deuses, banquetes diários.

Porém, se reunissem a população diariamente a cidade se tornaria improdutiva e insustentável. Portanto, sorteavam rotativamente alguns poucos homens cidadãos que se reuniam, todos os dias, para, simbolicamente, sacrificarem-se em benefício de toda a cidade. Estes foram chamados de parasitas, aqueles que estavam sempre junto da refeição sagrada sem a qual as divindades enfurecer-se-iam e, por consequência, a desgraça abateria toda a polis. Era inclusive crime um cidadão recusar-se a parasitar os deuses comuns! Aqui está esclarecida a nobreza e essencialidade desse nome e dessa função para aqueles antigos em sua comunhão cidadã. Mesmo sendo os gregos animais fortemente políticos e sociais, estes não se davam separados das forças divinas, sendo estas as mais importantes, unificadoras e justificadoras de todas as outras.

Na Idade Média, o cristianismo tratou de desqualificar e aniquilar todo o politeísmo customizado individualmente pelas famílias e cidades e colocou um Deus único, onipotente&onisciente, em todos os lugares, isto é onipresente. O Deus cristão era infinito, coisa inimaginável para os gregos que viam no infinito algo de monstruoso e sem função alguma para eles. Logo, a igreja tratou de estigmatizar aqueles que ainda mantinham-se fiéis a deuses particulares e aos sacrifícios-banquetes. Parasitar tornou-se pecado, algo feio e a ser eliminado em prol de um Deus único e supremo que impunha um ritual só seu, a ser cumprido por todos, o tempo todo, tornando inócuo o antigo parasitismo simbólico mantido por um pequeno grupo em favor da coletividade. Doravante, todas as pessoas, diariamente, deveriam sacrificar-se, elas mesmas, por esse Deus único que não aceita terceirização.

De certa forma, o cristianismo transformou todos os homens em parasitas, menores, visto que todos eles deveriam parasitar a observância e a fome insaciável do Deus único, só que sob um novo nome, fiéis; e o banquete reduziu-se à insossa hóstia. Entretanto, com a moderna morte de Deus alardeada por Nietzsche, essa instituição parasitária cristã, escavada no cerne de cada sujeito, ficou esvaziada e ecoou carente por um objeto de adoração. A mesma modernidade tratou de industrializar ídolos e de distribuí-los mercadologicamente para preencher o vácuo do espaço que recentemente fora preenchido pelo imenso Deus cristão. Os velhos sacrifícios que cada sujeito deveria prestar ao absoluto foram monetarizados e reificados num devotado consumismo que, atravessando os séculos, vive resplandecente até o momento atual.

Uma visão histórica, partindo dos antigos gregos parasitando suas divindades particulares, passando pela sintetização cristã de um Deus uno reduzindo e portabilizando o parasitismo à medida dos sujeitos, e findando no moderno esvaziamento do sagrado, sem com isso acabar com esse espaço parasitário inculcado nas pessoas, essa visão, portanto, sugere um sistemático reaproveitamento desse sagrado espaço de culto que instituiu primeiramente a socialização humana. Historicamente fomos condicionados a parasitar os deuses, depois um Deus, e por fim, as múltiplas coisas terrenas. Isso mostra, grosso modo, o empobrecimento espiritual dos ídolos que nos movem.

Parasitar, apesar do estigma adossado a essa atividade, é uma das mais nobres funções humanas, pois, desde os antiquíssimos gregos, é colocar-se junto daquilo que é mais importante e fundamental, sem o qual não há bem-aventurança nem união. A negatividade da atividade em questão advém, não obstante, do caráter dos objetos que parasitamos: se são ancestrais deuses familiares ou se são produtos da Apple. Parasitar obsolescentes produtos em série é, por conseguinte, de uma baixeza gêmea ao contemporâneo teor da palavra “parasita”. Entretanto, o parasitismo politeísta antigo ainda é mais nobre e essencial do que o egoísta e monoteísta cristão e do que o liberal moderno-contemporâneo deificador do abstrato capital.

Porém, essa divina abstração capitalista é muito mais aparentada com o politeísmo grego do que com o monoteísmo cristão, porquanto este universaliza concretamente uma abstração única, enquanto que os outros dois particularizam a concretude no mesmo movimento de torná-la abstrata a quem não comungue desse parasitismo particular. Estaríamos, por ventura, retornando sintomaticamente às nossas origens nessa liberdade contemporânea de cultuar a quem, ou a que, bem se deseja? Hoje somos livres para parasitar qualquer coisa que divinizamos, e é essa velha-nova gravidade que nos coloca na órbita de outras pessoas cujos cultos são os mesmos que os nossos, formando, assim, novos grupamentos, novas polis, cada uma com seus próprios deuses e seus nobres parasitismos.

 

Cobaias de Zuckerberg

Nessa semana foi divulgada uma experiência que o Facebook fez com 700 mil de seus usuários sem o conhecimento nem o consentimento deles. Metade deles recebeu somente postagens positivas nos seus “feeds”, enquanto a outra metade, negativas. Cada um dos dois grupos, depois do teste, seguiu postando e se envolvendo com material de mesma qualidade da experimentada nele. O site fez 350 mil pessoas mais felizes e, em mesmo número, mais tristes, sem que nenhum deles soubesse dessa manipulação que, segundo a empresa, trata-se de pesquisa para testar novos produtos. Até aqui, os produtos testados estão sendo os próprios usuários.

Somos os produtos-mercadorias do Facebook, e devemos estar tristes ou alegres conforme a necessidade dele, não mais de acordo com as nossas. “Quando uma nova forma de vida social surge, derrubam-se os velhos deuses”, disseram Adorno&Horkheimer; e, nas mãos de Zuckerberg, aquele deus que designava nossos sentimentos, ou seja, nós mesmos, é mercadologicamente derrubado. Por conseguinte, no Facebook, econômica e culturalmente “os homens tornam-se uma espécie de material, como é a natureza inteira para a sociedade”, como já haviam apontado os filósofos alemães, para quem “as particularidades do eu são mercadorias socialmente condicionadas, que se fazem passar por algo de natural”.

Ao equalizar sorrateiramente os sentimentos e as tendências dos seus usuários, o Facebook assegura-se de um mercado consumidor ainda mais alienado das próprias necessidades. Da publicidade Zuckerberg pescou o essencial: criar uma situação na qual desejamos exatamente aquilo que ele precisa que desejemos; e consoante à afirmação de Adorno, “o aparelho econômico já provê espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento humano”. Logo, nos nossos “news feed” facebookianos, esse vil estratagema capitalista é perfeitamente dissimulado sob as “selfies” e as opiniões dos nossos amigos.

O que Facebook quer é a mesma coisa que a igreja cristã e os psicanalistas já queriam dos seus seguidores, isto é, o conhecimento e o controle sobre aquilo que há de mais íntimo neles, ou seja, seus sentimentos. No antigo confessionário, secreta e seguramente os indivíduos ofereciam seus pensamentos e sentimentos à análise do padre. A psicanálise sintomaticamente ampliou e capitalizou o confessionário, Hoje, contudo, confessamo-nos virtualmente nas “timelines” que não guardam segredo algum – pelo contrário, é para que sejam públicos que publicamos nossos pensamentos e sentimentos. Isso “porque os indivíduos não são mais indivíduos, mas sim meras encruzilhadas das tendências do universal”, contribuem Adorno&Horkheimer. Assim, Mark domina o mundo.

O Facebook analisou secretamente as ações dos seus usuários, manipulou-as, e quando finalmente a estratégia é descoberta, ele reabsorve a reação das pessoas em relação à sua ação indevida para, então, retornar ao laboratório com mais propriedade. Afinal, conforme escreveu Adorno, “a falta de consideração pelo sujeito torna as coisas fáceis para a administração”. Na natureza zuckerberguiana nada se perde, nada se cria, tudo se capitaliza! E porque não dizer: se canibaliza? Sim, trata-se de um canibalismo rede-social que se alimenta de sua própria matéria, ou seja, nossos desejos, pensamentos e sentimentos. Essa autofagia potencializa-se no fato de, segundo Adorno, “o sujeito recriar o mundo fora dele a partir dos vestígios que o mundo deixa em seus sentidos”.

“Todo gozo é um abandono de si mesmo a uma outra coisa”, disseram Adorno&Horkheimer. Por consequência, a tática facebookiana subversivamente apraz a seus seguidores no sentido de que “a decisão que o indivíduo deve tomar em cada situação não precisa mais resultar de uma dolorosa dialética interna; as decisões são tomadas pela hierarquia, pelo esquema da cultura de massa”, colocaram os dois pensadores. Isso se dá, segundo eles, porque “a regressão das massas, de que hoje se fala, nada mais é senão a incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos”, e de nos entregarmos cegamente às mediações objetificadoras em toda e qualquer interação a que nos propomos.

Os dois filósofos da Escola de Frankfurt há muito nos alertaram de que “o próprio acaso [já] é planejado; ele serve como álibi dos planejadores e dá a aparência de que o tecido em que se transformou a vida deixa espaço para as relações espontâneas e diretas entre os homens”. No entanto, acreditamos piamente que o acaso a Deus pertence e que as relações “espontâneas entre os homens” pertencem aos homens e às suas espontaneidades. A fortuna de Zuckerberg ri da ingenuidade de seus mais de um bilhão de usuários mundo afora. O ser humano, contudo, “só se reencontrará consigo mesmo”, dizem Adorno&Horkheimer, “quando renunciar ao último acordo com esses inimigos e tiver a ousadia de superar o falso absoluto que é a dominação cega”. 

Mal Belo

O “Belo” tem sua própria história, e é independente das “coisas” que o recebem ocasionalmente; existindo, definitivamente “nos olhos de quem vê”. Belo é o que tem a capacidade de oferecer uma experiência de prazer ou satisfação, ou seja, algo completamente subjetivo. A beleza, portanto, pode ser encontrada em qualquer lugar, época ou circunstância onde haja um sujeito. Uma expressão intrigante do Belo apareceu recentemente nalguns jornais e nas redes sociais na figura de “um dos criminosos mais violentos na região de Stockton”, segundo a Polícia da Califórnia. Jeremy Meeks, 30 anos, preso após uma série de tiroteios e roubos, instantaneamente atraiu 30 mil “likes” apaixonados no Facebook.

Umberto Eco, no livro “A História da Beleza”, afirma que criamos o belo à nossa imagem e semelhança da forma como nos vemos e representamos a nós próprios, isto é, uma auto-homenagem. Consoante a essa teoria, cabe aqui perguntar: o que no belo criminoso de Stockton, que encheu de beleza milhares de olhos, auto-homenageia os próprios admiradores dessa beleza? Já que, para Eco, a beleza é uma projeção da forma como o homem vê a si mesmo, o que estariam os admiradores do criminoso, por conseguinte, vendo de “si mesmos” ao projetarem nele tanta beleza?

A pergunta acima deve necessariamente levar em conta as declarações públicas ao belo presidiário: “estou apaixonada por um criminoso”, “podemos ser algemados juntos?”, “ele pode me sequestrar qualquer dia”, “ele deveria estar modelando e ganhando milhões?”, etc. Versace e Dolce & Gabbana já disputam o bonitão, pois estas grifes investem em modelos masculinos de rostos fortes e marginais, menos angelicais. Tendência internacional essa que já colocou nas passarelas o filho do pedreiro desaparecido Amarildo, referência desse padrão de beleza. Mesmo destino teve o modelo mendigo de Curitiba, que foi sacado da miséria por conta de sua beleza rapidamente publicizada.

Hegel, no texto “Quem Pensa Abstratamente?” traduzido por Charles Feitosa, cita uma circunstância similar à do belo criminoso americano: “Para o povo em geral, trata-se somente de um criminoso e nada mais. Algumas damas comentam que ele é um homem forte, belo e interessante. O povo reage com repulsa: ‘o quê?’ ‘um assassino belo?’ ‘Como se pode pensar tão equivocadamente a ponto de chamar um assassino de belo?”. Para Hegel, “ver no assassino somente o fato abstrato de que ele é um assassino e, através dessa simples qualidade, anular toda a essência humana ainda remanescente nele”, é reduzi-lo abstrata e desumanamente. Pensar concretamente como Hegel, no caso do californiano, seria, por conseguinte, não condicionar as qualidades do criminoso à sua condição legal, porquanto sua beleza é! independente de ser marginal ou não. E não foi isso que fizeram todos os seduzidos por Meeks?

Para os antigos gregos o belo formava uma unidade indissociável como bom e o verdadeiro, e nada que fosse mal ou falso merecia título de beleza; Meeks, portanto, não receberia tantos “likes” na polis grega quanto os que recebeu na nossa urbe contemporânea. O divisor destas águas está, no entanto, mais próximo dos gregos que de nós, visto que foi Aristóteles quem se encarregou da ruptura entre o belo e a ideia de perfeição, condicionando a beleza à mundanidade. Portanto, é longa a história da beleza alienada do bom e do verdadeiro; o que nos permite, hoje em dia, naturalmente elevar “um dos criminosos mais violentos” a objeto de consumo da beleza. Meeks, concretamente, tem feições físicas conforme a necessidade estética do momento, e são todos os seus “likes” que atestam isso.

Porém, num outro sentido, abstraindo aqui os belos atributos físicos de Meeks, estaríamos nós, de alguma forma, enxergando beleza na exclusão social e econômica sofrida por ele? Haveria algo de belo em ser esquecido pelo sistema, vingar-se desse sistema no mesmo ato de relembrá-lo de si, e por final fracassar nessa tentativa de revolução? Se para Eco a beleza é uma projeção da forma como o homem vê a si mesmo, podemos, inadvertidamente, estar projetando sobre Meeks o esforço de sobrevivência a que todos estamos submetidos na excludente selva capitalista atual. Vencer, no mundo de hoje, é uma necessidade imperiosa e não um estado do espírito relacionado à beleza. Talvez seja o próprio fracasso de Meeks que tanto sensibilize esteticamente as pessoas. Concretamente: mesmo criminoso, pode-se ser belo!

Para concluir, vale a pena enfocar etimologicamente o “belo” que, para os gregos, é um adjetivo que vem da palavra “hora”, de tempo. Eurípedes já dizia que ter beleza é “estar em sua hora/seu momento”. O nosso criminoso de Stockton, por conta dos periódicos e das redes sociais, nunca esteve mais “em sua hora/seu momento” do que agora; e segundo Eurípedes, só isso é necessário para que a beleza seja. Da exclusão socioeconômica às capas de revistas, Meeks é um modelo “da hora”, um belo exemplo daquilo que todos somos em potencial, ou seja, pessoas cuja beleza, interior e/ou exterior, excede sim qualquer um dos nossos atos individuais, mas que, ela mesma, não pode impedir de sermos excluídos e/ou criminalizados. Todorov escreveu: “A beleza salvará o mundo”. Meeks está usando sua beleza para salvar seu próprio mundo. Todavia, invertendo Todorov: o mundo salvará a beleza?