Destacado

Financeirização da economia e a dominação ilimitada

financeirizaçao.jpg

Como impedir a classe dominante de dominar? Marx bem tentou responder essa pergunta no seu Manifesto Comunista, que começa afirmando que “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Só que essa tarefa se mostrou bem mais difícil do que o grande filósofo materialista imaginou. Mais ainda depois que o capitalismo se libertou de qualquer limitação material, ou seja, após o presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971, abolir o lastro material do Dólar. Com esse ato, foi dispensado o fundamento material daquela moeda, e por efeito cascata, o de todas as demais. Doravante o dinheiro, e a dominação que ele proporciona, passaram a ser inventados. Claro, quem detém o poder (político e militar) para tal “alquimia” é a classe dominante, que, quanto mais inventa riqueza, mais a inventa para si mesma, e, portanto, mais-domina.

Para inventar sua dominação de modo legal, e além do mais democrático, basta, por exemplo, que as doze famílias mais ricas dos EUA, donas dos doze maiores bancos que formam o Federal Reserv Bank (o banco que cria os dólares para os EUA), enfim, basta que a classe arquitete uma devastadora crise econômica, para a qual apenas alguns trilhões de dólares – que ela mesma pode inventar imediatamente – sejam a solução mais objetiva. O governo então aceita esse dinheiro abstrato e, no mesmo instante, o povo e o futuro desse Estado passam a dever a exata quantia à classe, só que agora, obviamente, em forma de riqueza concreta. Se o lastro para o dinheiro que  a classe inventa findará em barras de ouro ou em mega favelas na África, Ásia e América do Sul tanto faz. A classe cobra concreta e materialmente por centavo que abstratamente inventa.

Só que, dado o montante de dinheiro inventado na nossa economia financeirizada, é impossível lastreá-lo materialmente. Há vários limites. Um deles, o ecológico, é quiçá o que melhor demonstra essa impossibilidade. Há quem diga que seria preciso de seis a dezesseis planetas Terra (em quantidade de ar, água, terra, minérios, etc.) para arrancar, da natureza ao mundo humano, a riqueza material necessária para lastrear a riqueza inventada pela classe. Todavia, embora essa dívida seja de fato material, econômica, social, política e ecologicamente impagável, ela só continua sendo criada porque é logicamente possível fazê-lo. Afinal, nada há de errado em cobrar do futuro, que além do mais é ilimitado, quando se abstrai o fato concreto de que não haverá planeta Terra para tanto.

Para manter essa lógica insustentável funcionando, todos os dominados/endividados que ousam afrontá-la devem ser restringidos legalmente e reprimidos militarmente pela classe. É tão impossível para a humanidade materializar toda a riqueza abstratamente inventada pela classe quanto deter a classe na sua desenfreada financeirização da econômica. Na época de Marx, o capitalismo ainda era refém do mundo material. A mercadoria, misto de matéria-prima e meios de produção capitalistas e de mão de obra proletária, era fundamental no processo de produção de mais-valor que permitia à classe mais-dominar. Na financeirização da economia, entretanto, nada de material precisa ser produzido para que venha ao mundo tanto dinheiro quanto deseja a classe. A produção material, obviamente, não desapareceu. Apenas sobrevive em modo zumbi, mentido caducamente que será através dela que se pagará a dívida à classe.

Agora, por mais perverso que seja, esse sistema no qual a classe minoritária dominante pode inventar, em nome da classe majoritária dominada, uma dívida maior do que o futuro da humanidade, obrigando esta última, legal e militarmente, a pagá-la, materializá-la, lastreá-la com o suor de seus corpos, é de uma estratégia admirável. Nunca foi tão fácil dominar! Žižek bem disse que, desaparecendo a necessidade de fundamento material para a dominação de classe, e bastando a classe inventar quantas vezes quer ser mais rica e dominante, o que resta é a dominação direta e injustificável de uns indivíduos sobre outros, como se se tratasse de uma determinação divina, extra-humana. Inventar dinheiro, no mundo capitalista, é inventar poder. Poder criar uma dívida em nome de outros, portanto, é criar poder sobre eles.

Desfinanceirizar a economia é, portanto, um urgente passo para libertar os povos dessa insustentável liberdade da classe de inventar, desimpedida de qualquer restrição material, a sua dominação. Talvez devamos reconsiderar a velha ideia marxiana segundo a qual o sumo valor é tão somente fruto de trabalho humano, pois ela reata os pés de Ajax da classe no chão material do mundo, impedindo-a de inventar abstratamente sua dominação concreta. O grande problema, contudo, é impedir a classe de se valer compulsivamente de sua maior sofisticação (inventar sua superioridade) uma vez que ela está de posse dos Estados e de seus exércitos.

Uma autêntica revolução seria a solução, pois desfinanceirizaria a economia capitalista ao destruir próprio o cosmo capitalista. Ora, se é para desafiar o Estado burguês e sua opressiva força militar, que seja para a maior das mudanças, pois só ela puxará naturalmente todas as demais necessárias. Entretanto, a revolução parece estar mais desacreditada do que nunca. Todavia, não porque os preceitos socialistas revolucionários tenham perdido sua pertinência, mas porque a classe, estrategicamente, assim como vem inventando a sua dominação, inventa também as pseudo verdades que lhes serve, tal como a ideia de que é melhor o capitalismo do que qualquer outra forma econômica para a humanidade subsistir materialmente.

Se não é possível fazer a revolução agora, pois, novamente, temos os Estados nacionais e os seus exércitos contra ela, ao menos alimentemos a ideia de revolução tal qual se encontra excelentemente em Marx. Que não seja possível mudar o mundo por esta ou aquela contingência não deve significar que a razão da mudança seja inválida. Muito pelo contrário. Talvez seja justamente nessa era de economia financeirizada, na qual a invenção de dominação concreta a partir de uma mera abstração é a regra, que uma simples ideia revolucionária possa, subversivamente, aproveitar a onda e materializar-se. Se não há como vencer uma guerra sem ter ao menos as mesmas armas do inimigo, afrontemos então a classe usando a sua mais sofisticada artilharia: inventemos um mundo sem dominação e exijamos, a qualquer custo, que o mundo material e concreto corresponda a essa justa, e até aqui, abstração.

Destacado

Crítica da política

crírtica a política.jpg

Por que a política ainda promete ser o meio de luta contra os interesses espúrios do capital se é ele, o próprio capital, que sempre vence na arena política todas as batalhas que enfrenta? Está certo que a política é bem mais antiga que o capitalismo, entretanto, desde que este sistema econômico colonizou o mundo, também a política passou a servi-lo subservientemente. Não seria o caso então de realizarmos que a promessa de libertação social via política é apenas mais uma, quiçá a mais sagaz mentira do capital no sentido de mais-dominar?

Karl Marx foi contundente em criticar a política enquanto instrumento revolucionário, apontando que, na verdade, ela é o meio sempre presente de o passado, isto é, a dominação da maioria pela minoria – da totalidade pela parcialidade – prosseguir futuro adentro. A revolução em Marx não se dá apenas com a superação do Estado, mas também com a da política enquanto tal. Para o filósofo alemão, agir no interior de formas políticas pertence à velha sociedade, à sociedade na qual a dominação de uns poucos sobre a maioria é regra.

É imperativo sair da perspectiva meramente política para poder ser verdadeiramente crítico em relação à dominação do capital sobre a sociedade segundo Marx. E isso porque ele anteviu de modo muito profundo que a dominação do capital se dá, imediatamente, por via econômica, e não política. A política, em troca, é o meio, o modo mediato de o capital dar continuidade à sua dominação econômica. Ser fiel à Marx, portanto, significa crer, como ele, que a dominação do capital não tem como ser totalmente destruída no nível político. A política, na verdade, é o bunker social do capital.

Embora a política sirva imediatamente o inimigo capital da sociedade, ela ainda é, contudo, o ringue onde interesses sociais e interesses econômicos se digladiam; uma arena relacional na qual sociedade e capital mantém ao menos uma linguagem em comum, ainda que de modo assimétrico, pois, politicamente falando, trata-se de um diálogo no qual a sociedade, de seu lado, externa sinceramente suas demandas diante do vilipêndio capitalista, ao passo que o capital, ao contrário, é sistematicamente parlapatão em fingir que ouve a sociedade e que moderará o seu ímpeto acumulador em função de algum bem-estar social.

Entretanto, por ainda ser o nível no qual sociedade e capital se comunicam – mesmo que este sempre vença as discussões -, Marx apontava uma dimensão subversiva da política contra o capital: a sua potencialidade negativa. Para o filósofo, a política é adequada para realizar as funções destrutivas da transformação social. Marx não tinha dúvida de que, nas mãos da sociedade, a política pode ser instrumento de crítica no sentido de minar a dominante ideologia capitalista. Também sabia, contudo, que enquanto a sociedade permanecer apenas no âmbito político o seu inimigo capitalista permanece livre e dominante na sua esfera excelente: a economia.

Como o domínio da parcialidade sobre a totalidade é produzido economicamente e mantido politicamente, enquanto age somente politicamente a sociedade permanece no campo de conforto do inimigo. A vitória da totalidade sobre a parcialidade, embora deva começar politica e destrutivamente, só se finalizará, contudo, se depois da destruição for abandonada a esfera política e iniciada uma construção econômica alternativa. A revolução se dará apenas quando os indivíduos sociais operarem econômica e diretamente uns com os outros distantes da liturgia com que o capital segue intermediando vitoriosamente todas as relações humanas.

A verdadeira revolução nunca será simplesmente uma revolução política. Antes de tudo, deve ser uma revolução social que ultrapasse os limites do sistema político que perpetua a exploração econômica capitalista. E isso porque a virtude das revoluções sociais está em minar a contradição entre a parcialidade e a totalidade. Já as revoluções meramente políticas apenas reproduzem a velha hierarquia da parcialidade sobre a totalidade, pois a política, desde que foi usucapida pelo capital, outra coisa não é senão a subjugação das necessidades da totalidade aos arbítrios da parcialidade.

Se para Marx uma revolução social restrita à política é um absurdo, um primeiro passo político, desde que negativo, na medida em que há a necessidade da destruição das formas vigentes, é fundamental. No entanto, tão logo o TNT político da totalidade cause as primeiras rachaduras no bunker da parcialidade, a totalidade deve desinvestir do expediente político e investir no econômico, preenchendo essas rachaduras com novas relações socioeconômicas até que o edifício minado rua por completo.

Essa revolução socioeconômica será a maior transformação positiva da história, na qual a política, contudo, tem a contribuir apenas com sua negatividade imediata e destrutiva. O que Marx ainda tem a nos ensinar é que negligenciar a dimensão socioeconômica e priorizar a dimensão política impossibilita a revolução que fará a parcialidade ser derrotada e absorvida pela totalidade porque tira da política o seu mais revolucionário fim, qual seja: ser apenas o meio de se iniciar a destruição do capital, do Estado e inclusive de si própria.

Destacado

Empresário-de-si-mesmo versus Proletário-mesmo

maxresdefault.jpg

A expressão “proletário-de-si-mesmo” seria algo redundante, uma vez que o proletário, de certa forma, já é um “si-mesmo”: aquele que, solitariamente, vende sua força de trabalho para sobreviver, e assim mesmo permanece, mais ainda, assim deve permanecer para o bem do capitalismo. Se aqui invisto nesse pleonasmo é para criticar o contemporâneo, e cada vez mais investido, conceito de “empresário-de-si-mesmo”: sujeito que, como o proletário, também vende a sua força de trabalho no mercado, mas que, antes disso, e sobretudo para isso, já “trabalha”, investe, árdua e não-remuneradamente, para estar a altura das necessidades daqueles que, com sorte, comprarão a sua força de trabalho para explorá-la.

Antes de prosseguir, é importante percorrer os significados históricos da palavra “proletário”. A expressão “proletari” surge na Roma antiga para designar os cidadãos da classe mais baixa que, despossuídos de quaisquer bens materiais, tinham por única função social gerar prole para ser usada pelos exércitos. Muitos séculos mais tarde, Karl Marx reutiliza o termo para, comezinhamente, diferenciar os trabalhadores dos burgueses capitalistas, porém, mais especificamente, para diferenciar os trabalhadores conscientes do seu papel social e histórico daqueles que não adquiriram tal consciência.

Marx, compreendendo, de um lado, que o motor da História é a luta de classes – como lemos no “Manifesto Comunista” -, e, de outro lado, que a riqueza social é medida com base no tempo de trabalho necessário para produzir mercadorias – ideia presente em “O Capital” -, enxergou nos trabalhadores, os indivíduos despossuídos de bens que no entanto produzem a riqueza, a classe que tem por destino vencer a substantiva luta das sociedades humanas. Mas isso, prega Marx, somente se o trabalhador se proletarizar. O eternizado lema dessa revolução jaz no Manifesto: “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”

Dessa perspectiva, é fácil entender porque, atualmente, a “identidade proletária” é sistematicamente desmantelada pelo sistema capitalista, afinal, este sabe, como Marx, que se seguir comprando a força de trabalho daqueles que, unidos, irão derrotá-lo, estará com isso dando um tiro no próprio pé. O ideal de “empresário-de-si-mesmo”, ao contrário, cinde os trabalhadores em unidades autônomas e competidoras entre si, destruindo assim qualquer possibilidade de uma consciência global entre aqueles que produzem a riqueza das suas sociedades.

O problema mais grave, contudo, é o fato de os próprios trabalhadores contemporâneos rejeitarem a sui generis identidade revolucionária que tão somente lhes cabe. Vestidos com o sofisticado uniforme de “empresários-de-si-mesmos”, são, na verdade, demasiadamente reacionários: reencarnam os seus antigos ancestrais romanos que, assim como eles, não são senhores da riqueza social, permanecendo como meros “produtores de população”, só que agora para a “guerra mundial” do capital. Rejeitar a identidade proletária tem um amargo preço: abrir mão da revolução.

Marx cunhou a expressão “lumpenproletariat” (lumpemproletariado) para designar os trabalhadores que, sem consciência de classe, ou o que é o mesmo, sem unirem-se a outros trabalhadores em um grande corpo proletário consciente, atendiam subservientemente aos interesses da burguesia. Se em alemão “lumpen” significa “trapo”, “farrapo”, a sua célebre significação marxiana é: “seção degradada e desprezível do proletariado”. A radical escolha do trabalhador, portanto, é, ou unir-se, conscientizar-se, proletarizar-se, ou, em vez disso, desunir-se, ser eternamente explorado, lumpemproletarizar -se.

Essa besta capitalista chamada “empresário-de-si-mesmo” tem o vício de fazer da virtude proletária um trapo, um farrapo. Hoje em dia, cada vez mais vence a ideia de que é degradante para um trabalhador identificar-se com a condição de trabalhador, e, pior ainda, com a de proletário. Só que, sendo absolutamente marxista, não é difícil concluir que essa “nova ideologia” esconde o fato de que o “empresário-de-si-mesmo”, essencialmente, é um lumpemproletário: aquele que mais subservientemente está a serviço da burguesia.

Sem embargo, aqueles que gastam, em média, trinta anos de suas vidas, sem dizer uma imensa quantidade de dinheiro, para estudarem, especializarem-se, falarem no mínimo três idiomas, vestirem-se adequadamente, responsabilizarem-se privadamente pelos seus planos de saúde e de aposentadoria, e tudo isso apenas para poderem vender as suas forças de trabalho à burguesia para, doravante, serem explorados por ela como qualquer trabalhador, são o que senão a “seção degradada e desprezível do proletariado” que, lumpenproletariamente, faz tudo o que seus opressores burgueses mais querem?

O “empresário-de-si-mesmo” é um monstro social do mesmo calibre que a “classe média”. A classe dominante, para mais-dominar, precisou nublar o fato de que as sociedades são constituídas por duas únicas classes: a dominante e a dominada. Então, inventou essa “classe” intermediária, que, na verdade, é constituída por indivíduos da classe dominada, que, entretanto, não mais se reconhecem como tais. São realmente dominados, porém, ideologizadamente dominantes. Não se unem mais aos interesses de seus pares, mas, burra e manipuladamente, aos de seus ímpares.

O pecado capital do “empresariado-de-si-mesmo” está em desistir do poder sui generis que Marx enxergou no proletariado, esse corpo de trabalhadores autoconsciente do seu papel histórico e essencialidade social que, somente enquanto proletariado, unido, é o agente da revolução que dará cabo da exploração que sofre. O “empresário-de-si-mesmo”, com efeito, está muito mais próximo do baixo cidadão romano, cativo da rígida e tradicional estratificação social antiga, que se já não tinha chance de mudar a sua condição, menos ainda podia revolucionar a sua sociedade.

Agora é a ocasião de desinvestirmos de vez a redundante expressão “proletário-de-si-mesmo”, usada inicialmente para criticar a besta social chamada “empresário-de-si-mesmo”. E isso para defender que enquanto “si-mesmo” um trabalhador é apenas um lumpemproletário. É precisamente por deixar de ser “si-mesmo” para formar um corpo unido e consciente com os demais “si-mesmos” como ele que o trabalhador deixa de ser um “lumpen”, um trapo velho e desprezível nas mãos daqueles que compram a sua força de trabalho, e veste a farda com a qual revolucionará a sociedade.

Já o “empresário-de-si-mesmo”, ao contrário, é um “si-mesmo” deliberada e demasiadamente ensimesmado; isolado dos seus iguais, e o que é pior, concorrente deles. Em outras palavras, é um lumpemproletário que se enxerga como burguês – assim como a classe média é a classe dominada que se vê como dominante. O único “si-mesmo” que pode existir com alguma dignidade social é o trabalhador. Não obstante o sistemático furto dessa dignidade pelos “detentores dos meios de produção”, isto é, os burgueses, os trabalhadores deve proletarizarem-se. Por isso, em vez de “proletários-de-si-mesmos”, e de modo algum “empresários-de-si-mesmos”, todos nós que trabalhamos devemos ser, em primeiro lugar, “proletários-mesmos”!

Limitação da internet e hacktivismo naif

inter naif.jpg

Não é de hoje que querem limitar a internet dos brasileiros. O último capítulo dessa novela, contudo, foi do naipe do governo golpista que temos: se não podem limitar mais ainda os direitos e interesses do povo, ao menos declaram inconsequentemente que o farão. O ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Roberto Kassab, “mal-entendendo” a superior determinação da Anac, declarou publicamente que em 2017 o governo federal limitaria a internet no Brasil, para, pasmem, “beneficiar os usuários”. Será que não se enganou nisso também, e na verdade queria dizer usurários? Um dia depois, no entanto, teve de desmentir a si mesmo e confirmar que, pelo menos por enquanto, “não haverá mudanças no modelo atual de planos de banda larga fixa”.

Ufa! O Brasil continuará tendo a segunda internet mais cara do mundo! Só para se ter ideia do custo da internet ao consumidor brasileiro, hoje temos de trabalhar 5 horas por mês para tê-la, abaixo somente dos argentinos, que precisam dispender 15 minutos a mais pelo serviço. Se os portugueses, por exemplo, pelo fato de precisarem de 50 minutos de trabalho por mês apenas para estarem conectados, parecem-nos privilegiados, o que dizer então dos chineses, que com seis minutos de trabalho já têm acesso mensal à rede?

Cena intermediária entre a mentira e a desmentira de Kassab – entre a sua pós-verdade e a verdade da Anac – foi a do grupo hacktivista Anonymous Brasil. Essa, do naipe do povo brasileiro golpeado: performática, porém de futuro duvidoso. O grupo hacktivista protestou nas redes sociais contra a limitação da internet com a seguinte mensagem: “Acabou a novela. Ministro diz que haverá, sim, limite na internet fixa no Brasil. Chegou a hora da internet dizer aos novos governantes quem é que manda nessa porra! Não se atrevam. Com amor, O povo”.

Muito mais do que interferir efetivamente no macroprojeto golpista de limitação ilimitada dos direitos e interesses do povo, desavergonhadamente empreendido pelos “novos governantes”, a declaração dos hacktivistas teve ao menos a virtude de tentar representar a indignação popular. Entretanto, oxalá um mero “Não se atrevam” pudesse algo contra os mui atrevidos golpistas. Se o “Não Vai Ter Golpe!” foi tão impotente quanto hashtaguizado, acreditar que um “Não Se Atrevam!”, antecedido ou não de uma hashtag, faça verão no presente inverno golpista é no mínimo ingênuo.

Façamos como Jack, o estripador; tomemos por partes a nota dos hacktivistas para ver quão naif ela é na conjuntura pós-golpe. O “Acabou a novela” pressupõe que a caneta que escreve o drama brasileiro esteja, ou na mão do Anonymous Brasil, ou ainda nas do “povo”, conforme a nota nos leva a concluir. Não obstante, o jovem golpe, entre outras péssimas notícias, está aí para nos informar que são os golpistas os dramaturgos oficiais do nosso presente folhetinesco. Acabou a novela não, Anonymous bebê! Ela prossegue. A diferença é que, agora, mais que nunca, os seus protagonistas são os antagonistas do povo

A parte da mensagem hacktivista que realmente impressiona, não pela ameaça que representa, mas pela patética ingenuidade, é: “Chegou a hora da internet dizer aos novos governantes quem é que manda nessa porra!”. Não está um pouco tarde para quem quer que seja dizer aos golpistas “quem manda nessa porra”? A contemporaneidade vitoriosa dos “novos governantes” é que manda; e mais, manda beijinho no ombro para a extemporaneidade alienada do “hacktivismo naif” dos Anonymous tupiniquins.

Então vem o acorde trágico: “Não se atrevam”! “Atrever-se”, do latim adtribuere, significa “achar-se capaz de fazer algo”. O que os hacktivistas estão dizendo na sua “ameaça”, portanto, é apenas para o governo não pensar que pode limitar a internet. Agora, vamos combinar, de quem pensou em roubar, e levou esse pensamento a cabo, furtando publicamente um país inteiro para si, desses não devemos esperar que limitem seus demais pensamentos golpistas em função de apelo popular algum.

E para terminar, os fofotivistas assinam: “Com amor, O povo”. Faltou só o emoticon respectivo, o do coraçãozinho! Fala sério… Esquecem-se de que a presidenta deposta, apesar de sua “cara de poucos amigos”, usou e abusou, desesperada e estrategicamente, do apelo amoroso nas mídias brasileiras, juntando suas mãos torturadas em forma de coração em inúmeros selfies, e que isso de nada adiantou contra o odioso tsunami golpista? Que papo é esse de amor em um momento no qual estamos e devemos estar consumidos pelo ódio?

Onde está a violência, “porra”? 2013, com o seu lema, tão fofo quanto antirrevolucionário, “Sem-vi-o-lên-cia!”, está grudado em nossas peles qual sarna. Muito antes dos golpistas pensarem em limitar a nossa internet, limitamo-nos a nós mesmos naquilo que mais pode ameaçá-los: a violência. Se, por nossa própria conta, passamos a achar politicamente incorreto socializar fortuitamente a violência monopolizada pelo Estado, não é ameaçando o Estado golpista com um patético monopólio do amor que os direitos e interesses do povo deixarão de ser limitados.

Folks, a democracia está limitada; os direitos dos brasileiros estão limitados; a participação popular está limitada; o que restava da esquerda tupiniquim, coitada, sobrelimitada. Só mesmo as limitações ao povo andam ilimitadas no Brasil pós-golpe. Não é idealista demais esperar que a internet não o seja? Ou é o caso de os golpistas entenderem que podem limitar-nos tranquilamente em quase tudo: direitos trabalhistas, previdência social, saúde, educação, escolha direta de presidente da república etc.; mas só não na nossa internet?

Vamos agora chorar por migalhas? Pedir para que ao menos não limitem o ópio internético do povo? Com efeito, se fosse limitada a internet, isso afetaria negativamente mais de 100 milhões de nós. Mas, como diz o escatológico provérbio: “O que é um peido para quem já está cagado?”. A limitação da internet que tentaram, e que, estejamos certos, seguirão tentando, de forma alguma será a gota d’água. A “porra” já derramou toda! Mas o talento popular para fazer garoar no inundado é tão reconhecível quanto patológico.

Aproveitando-me do fato de que hoje em dia pode-se dizer qualquer coisa, e mais ainda, sem medo de ser infeliz, confesso que, sinceramente, cogito a possibilidade de uma limitação fortuita da internet ser bem-vinda. Não porque beneficiaria os usuários, conforme mentiu o ministro, muito menos porque o benefício maior seria aos usurários, dentre os quais o próprio ministro se encontra, mas, ao contrário, porque afrontaria ainda mais o povo; traria mais ódio a ele; faria com que ele desinvestisse de seu pretenso “amor”, tão inócuo à luta política quanto pós-verdadeiro. E isso porque o ódio suscita melhor a violência que merecem receber os nossos violentos algozes golpistas.

Sem dizer que menos internet sacar-nos-ia um pouco que fosse da letárgica alienação com a qual a própria internet limita a nossa potência cívica sob suas centenas de selfies e seriados da Netflix. Se as nossas mais estimadas hashtags apenas nos deixam na mão; se a memetização facebookiana bem-humorada da nossa própria miséria não serve para freá-la; em suma, se a internet mais virtualiza a nossa potência política do que nos leva à luta real e presencial; o projeto de limitação da internet dos golpistas bem poderia ser um paradoxal tiro nos próprios pés deles.

Uma coisa o Anonymous Brasil tem razão: se há alguém que pode e deve conter o ímpeto dos golpistas, esse alguém é “O povo”. Mas, ao contrário do que disseram, não em nome do “amor”. Antes, o povo só exercerá seu ímpeto se estiver insuportavelmente estimulado para tal. E, maquiavelianamente falando, esse estímulo só pode vir dos golpistas mesmo, mediante uma opressão tão excessiva e inaceitável a ponto de o povo explodir violentamente: violando de vez as regras do jogo no qual os golpistas estão vencendo por vis ardis.

Só assim, mediante uma violência que não deixe outra escolha senão uma mudança radical, haverá a possibilidade de ser instituído um Estado no qual os anseios e necessidades populares tenham vez. Mas aqui, porventura, já não estamos falando de Revolução? Claro que sim! Todavia, sendo bem realista, o povo brasileiro parece tão incapaz de revolucionar a sua realidade quanto o foi para evitar que a sua democracia fosse destruída pelos golpistas.

E se esse é o triste papel do povo brasileiro na sua atual e fatídica novela, ao menos deveríamos evitar a charlatanice de fingir uma potência que ainda não temos. Um “Não se atrevam” popular nunca esteve tão desacreditado! Assim como um ator convence muito melhor a plateia se estiver intensa e verdadeiramente mobilizado por tais e quais afetos, assim também o povo, no palco do conflito social no qual se encontra, se quiser vencer os golpistas deve ser mobilizado pelos afetos certos. E, definitivamente, não é o amor o melhor afeto à guerra. Amar, no campo de batalha, é naif demais.

Talvez a internet tenha nos tornado ingênuos a ponto de os nossos ódios, raivas, espantos, tristezas, etc., e até mesmo nossos amores, serem tão superficiais e pouco mobilizadores quanto os “botões de emoção” que se oferecem ao lado do botão de curtir nas postagens dos Facebook. Agora, mais do que se limitassem a nossa internet, se de fato os golpistas nos privassem completamente dela, aí sim o anjo esquecido da Revolução seria relembrado por nós, um pouco mais intensamente que fosse. Mas, ao contrário, tanto o povo, quanto principalmente os seus hacktivistas, pelo jeito preferem as “revoluções” virtuais à real. E para quem limita a si próprio desse modo, o que é uma limitação de internet?

Entre a Cruz e a Revolução

cruz-revolucao

Se a classe dominante brasileira está, como se diz, “livre, leve e solta”, fazendo a sua “festa da opressão” sobre a classe dominada, isso se dá exatamente por quê? Antes de responder, vale lembrar que, marxianamente falando, a sociedade é o resultado da luta entre as classes dominante e dominada; e que, sob uma lente maquiaveliana, essa luta – que nas palavras do italiano é dita entre grandes e povo – é amoral, ou seja, não há nada de errado nem de mau no fato de qualquer uma das classes obter vitória sobre a outra, afinal, trata-se apenas do sempiterno jogo de forças que, para os dois filósofos, constitui o socius.

Apontadas essas ideias, recoloco a pergunta inicial em outros termos: o que a classe dominante brasileira está fazendo suficientemente, dentro da luta substantiva, para obter tamanha ventura, ou, o que é o mesmo, o que a classe dominada não está fazendo suficientemente, dentro dessa mesma luta, para padecer de sua atual desventura?

A ideia de suficiência, assaz apropriada à luta política, é trazida aqui por conta de uma conclusão teológica de Slavoj Žižek, qual seja: a de que “não fomos cristãos o suficiente. A digressão à religião em uma linha de raciocínio que se quer política, e ademais de cunho prático, pode parecer estapafúrdia, sobretudo depois de termos chamado à discussão tanto o materialismo de Marx segundo o qual “A religião é o ópio do povo”, quanto o amoralismo de Maquiavel que tirou Deus do comando das coisas humanas. Todavia, se, por um lado, desvios nos afastam da meta, por outro, servem para que possamos analisar os caminhos principais de uma outra perspectiva.

O que, então, Žižek quer provocar apontando a nossa insuficiência cristã? Aonde chegaremos trazendo à tona o apontamento do filósofo na compreensão da presente relação entre as classes dominante e dominada no Brasil, uma vez que o objetivo aqui é entender melhor como a classe dominada deve lutar para ser suficientemente vitoriosa frente à classe dominante? Comecemos entendendo a proposta político-teológica de Žižek.

Como é tácito, cristianismo, judaísmo e islamismo são as três grandes religiões monoteístas. Entretanto, diferentemente das duas últimas, somente na cristã, coloca Žižek, Deus não é transcendente. Não exatamente porque Ele viva no mundo, ou seja o mundo, mas, antes, porque Deus é morto: morreu na cruz, através da morte do corpo mundano de seu filho, Jesus Cristo.

Antes de prosseguir, é preciso frear aqueles que vociferam que as histórias da Bíblia são apenas estórias. Žižek sustenta que é preciso deixar de lado a necessidade de provas empíricas da passagem de Cristo na terra e se ater à estória mesma, pois foi ela que moveu o mundo durante séculos – sé é que ainda não move -, e, ademais, com imensa potência. Potência essa que o filósofo pretende ressignificar em prol da revolução. Aos laicos de plantão, sugiro uma imagem convidativa: uma cruz, todavia formada pela classe dominante enquanto seu eixo vertical, e pela classe dominada enquanto seu eixo horizontal; e no centro, no exato encontro das duas, a luta entre os eixos contraditórios, o locus excelente da Revolução.

Voltando à Žižek, a morte de Deus da qual o filósofo parte é a mais banal de todas, ou seja, aquela contada na Bíblia, na qual Ele, encarnado em Cristo, foi crucificado e morto mundanamente. Essa banalidade não obstante se torna grave quando compreendemos que em nenhuma outra religião Deus teve tal experiência. O Deus cristão, de fato, foi o único que, em determinado momento de sua existência eternal, percebeu que Lhe faltava certas coisas para ser absolutamente onisciente. Para ser Deus de verdade, Ele precisava ainda: ser carne; apaixonar-se; e, por fim, morrer. Mas morrer de verdade! Afinal, um Deus que se preze precisa de experiências absolutas, e não de simulacros.

Comparados a esse Deus, os das demais religiões são deuses entre aspas; pseudo-oniscientes; conhecem o mundo em teoria; não como o Deus cristão que antes de morrer o conheceu também na prática. Para Žižek, quando Cristo na cruz diz a Deus: “Pai, por que me abandonaste?” – relembrando que Cristo é Deus encarnado -, o que devemos entender é que o próprio Deus reconhece, ali, que Ele mesmo não existe mais; que Deus perdeu a divindade ao descer à Terra. Por isso Cristo morre, pois não há mais Pai onipotente algum para salvá-lo. Cristo/Deus teve, na prática, o conhecimento do que é ser mundano. Foi absolutamente Deus na hora exata em que deixou de sê-lo.

“Mas na Bíblia consta que Ele ressuscitou no terceiro dia e depois subiu aos céus novamente” – dirão alguns. Recusemo-nos a isso e teremos a melhor parte da estória, sem dizer a mais eficaz contribuição teológica à revolução. Na teologia de Žižek, Deus não reascendeu ao seu velho posto transcendente depois de morrer. O que houve foi o surgimento do Espírito Santo, ou seja, a Comunidade dos Fiéis. O Espírito Santo é nada além disso: a comunidade de homens e mulheres que restaram órfãos no universo depois da morte de Deus; comunidade que, entretanto, deve se dar conforme a mensagem que Ele transmitiu enquanto foi homem e soube o que era ser humano. Não uma abstrata, e por isso suspeita mensagem de Deus aos homens, mas, em troca, a concreta mensagem de um homem – o homem – aos demais.

Uma bela metáfora da orfandade de Cristo pode ser vista no filme “Últimos Dias no Deserto”, do diretor colombiano Rodrigo García. Cristo (Ewan McGregor), do alto da cruz e da profundidade do sofrimento e da falibilidade de que a carne é capaz, espera a resposta à sua última e, redundantemente, crucial pergunta: “Pai, por que me abandonaste?”. Procura no céu algum sinal que, todavia não vem. De repente, diante de seus olhos surge um beija-flor furta-cor, espetacular como só a natureza. E é justamente nesse momento que Cristo desiste da resposta pela qual espera. Não porque o belo pássaro fosse Deus-Pai dizendo-lhe algo, mas, antes, porque era a prova de que Deus não existia, e por isso nada faria. Ali surge a certeza de que única coisa que há é a condição humana e a natureza. Nada mais. Então Deus morre em paz.

A aceitação dessa teologia que prega a não existência de Deus depois de Sua morte na cruz, mas somente a do Espírito Santo, isto é, a da Comunidade de Fiéis, é revolucionariamente virtuosa porque ensina aos homens e mulheres que, em relação às suas realizações, eles estão absolutamente sozinhos no universo; que a melhor coisa que podem fazer é viver em comunidade, porém, conforme os ensinamentos que Deus proferiu durante a sua única e fugaz estada no mundo. E se somos universalmente órfãos, manter o mundo como está ou revolucioná-lo depende inteira e exclusivamente de nós, homens e mulheres.

A revolução tem sua raiz no Espírito Santo cristão assim como “comunidade”, e outrossim “comunismo”, têm suas raízes no “comum”. Se não percebemos isso, é porque, repete Žižek, “não fomos cristãos o suficiente”. O verdadeiro cristão é mais comunista do que pensa a nossa vã filosofia política. Se quisermos ser mais oportunos, os Mandamentos cristãos podem sim ser encarados como espécie de arché do Manifesto Comunista

O Primeiro Mandamento, “Amar a Deus sobre todas as coisas”, entendido enquanto “respeitemos uns aos outros”; “a todos sirvamos”; “a ninguém excluamos”, porventura é alienígena ao comunismo? E o Terceiro, “Guardar domingos e feriados”, é o que senão o respeito ao descanso e à liberdade do trabalhador? Já o Sétimo, “Não roubar”, levado à cabo, não poria fim à mais-valia capitalista que rouba metade ou mais do valor do trabalho das pessoas? Para terminar, o Décimo Mandamento: “Não cobiçar as coisas alheias”, mutatis mutandis, não é a máxima comunista, “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, popularizada por Marx?

Ser comunista e ser cristão se equivalem na medida em que uma comunidade, uma sociedade cujos integrantes praticam e desfrutam de determinações como as acima citadas não pode ser constituída por ninguém além de nós, homens e mulheres, pois não há Deus bondoso todo-poderoso, nem tampouco teleologia histórica, capazes de fazer isso por nós. Deus está morto! A história somos nós que a fazemos. Mas porque está sendo dito tudo isso se o objetivo é fortalecer a classe dominada na sua luta política contra a classe dominante?

Ora, se, como foi colocado no início, a classe dominada brasileira só está desventurada porque não está lutando suficientemente contra a classe dominante, talvez essa desventura se dê porque ela ainda espere que alguém ou alguma coisa externos à luta a salve; lute por ela; com ela. Se, em vez disso, a classe dominada tivesse a sólida certeza de que nada nem ninguém além dela mesma lhe fortalecerá no conflito que constitui a sociedade, a Comunidade, em suma, o Espírito Santo, talvez assim se apassivasse menos diante dos desafios sociais nos quais está imersa.

Talvez seja o caso de a classe dominada prestar atenção na práxis teológico-política da classe dominante. Por mais que esta encha a boca com o nome de Deus, ela na verdade sabe que sua ventura depende exclusivamente de si. Talvez por isso, historicamente, tenha saído vitoriosa na sempiterna luta social. Seria muito proveitoso se a classe dominada entendesse que Deus, por estar morto, não tem como interferir nos assuntos humanos; que a sua ventura terrena depende somente de si.

No entanto, a ideia de providência externa ainda ocupa, e por isso mesmo enfraquece, a classe dominada. Seja a providência divina, como no caso extremo dos cristãos evangélicos pentecostais, que creem que é Deus que faz desde o fiel passar no vestibular, até o ônibus vir na hora certa; seja ainda a providência da própria classe dominante que lhe antagoniza. E a prova disso é a constante preferência da classe dominada por “salvadores” da classe dominante, tais como João Dória e Donald Trump.

Não! Deus está morto desde antes de sua estória angariar um mundo de fiéis. Não! Ninguém da classe dominante salvará a classe dominada, e isso porque eles não acreditam em salvação, mas somente na luta mundana para fazer valer seus interesses outrossim mundanos. A fraqueza do próprio comunismo até aqui, dizem lucidamente muitos críticos, está em crer que a revolução dependa da contribuição de intelectuais engajados na luta proletária. Mas até aqui a intelectualidade ainda é a classe dominante. Outro vilão do comunismo foi a burocracia, espécie de terceiro elemento que, por estar entre as classes dominante e dominada, não é classe nenhuma, e, não estando na luta, não pode lutar pela classe dominada.

Quão difícil é a classe dominada aceitar que ela está só, sem ninguém além dela mesma que faça valer seus anseios, e o que é pior, inescapavelmente envolvida em uma luta contra um adversário imperioso? A órfã Comunidade dos Fiéis ainda quer ser adotada! Sua espera no orfanato social, no entanto, apenas lhe deixa à mercê de pais adotivos que serão, ou da classe dominante, ou deuses zumbis, ou ainda anjos burocráticos caídos. Sofrer a orfandade universal absolutamente; encarnar a angústia inerente à ideia de que o presente e o futuro dependem exclusivamente dela: eis o trauma/desafio que a classe dominada deve enfrentar para ser páreo suficiente na luta política na qual ainda é dominada.

Quando Žižek afirma que “não fomos cristão o suficiente”, devemos entender o seguinte: não acreditamos suficientemente na Comunidade de Fiéis, a única coisa que restou no universo para homens e mulheres depois que Deus (a ideia de providência externa por excelência) morreu na cruz. A teologia política de Žižek foi insistida até aqui porque o meu objetivo é concluir que a classe dominada deve, revolucionando a terra de suas crenças e trazendo à superfície as raízes cristãs que nela apodrecem esquecidas, entender finalmente que “Comunidade de Fiéis” outra coisa não é senão “Fidelidade ao Comum”. Isso, todavia, não é a Revolução per se, mas uma orientação fundamental a ela.

A Revolução na era dos “pós”, ou… acho que vi um proletariozinho!

proletariozinho.jpg

Hoje em dia, as esquerdas estão miseravelmente enfraquecidas. A revolução socialista que elas deveriam empreender, parece mais utópica que nunca. Culpar a vigorosa rea(scen)ção das direitas, no entanto, só aumenta a miséria das esquerdas, por mais que a fraqueza destas interesse àquelas. O atual tsunami reacionário, ao contrário, deveria estimular mais os seus antagonistas de esquerda. Contudo, a presença deles na pecha política mais parece ausência.

Mas as esquerdas não estão exatamente ausentes… Elas andam por aí, perambulando pelos parlatórios do mundo, todavia em modo zumbi. Zumbis que sobrevivem de hashtags. Que vida real, entretanto, está faltando às esquerdas para que, em vez de apenas reagirem pateticamente feito mortas-vivas, ajam virtuosamente contra a direita? Quem ou o que é a vida das esquerdas?

Marxianamente falando, a nossa sociedade capitalista é composta pela luta antagônica entre burguesia e proletariado. Estes, organizados politicamente, são a direita e esquerda, respectivamente. Assim como a vida da direita pulsa no peito da burguesia, assim também a vida da esquerda pulsa no peito do proletário – ou pelo menos deveria. Se hoje as esquerdas estão, como dito acima, zumbis, isso se deve a alguma “parada cardíaca” do próprio proletariado. Antes de desfibrilá-lo, talvez devamos recordar quem  ele é.

Dito de modo comezinho, o proletário é um trabalhador. Uma definição mais sofisticada, todavia, dirá que o proletário é o trabalhador que sabe que é ele o agente da sua revolução social. Melhor ainda é a distinção que Marx faz entre a classe trabalhadora, uma categoria social objetiva oposta à burguesia, e o proletariado, o portador de uma posição subjetiva que corporifica a singularidade da estrutura social como classe universal.

Agora, se, por um lado, o agente da revolução socialista é o trabalhador conscientizado de sua singularidade, e, por outro, há trabalhadores pelo mundo todo, a ausência pela qual estávamos procurando só pode ser a da consciência proletária nos trabalhadores. Existem trabalhadores; sobram razões para a revolução; o que falta é a conscientização política deles; sua proletarização. O que está impedindo esse processo?

Dando um passo atrás, há espécie de desidentificação, de preconceito dos sujeitos “pós-modernos” com a condição de trabalhadores. A jocosidade do filósofo Slavoj Žižek coloca isso em uma frase provocativa: “Na perspectiva ideológica de hoje, o próprio trabalho, não o sexo, aparece como o locus de indecência obscena a ser escondido do olhar do público”. E se o próprio trabalho é algo vergonhoso, imagine-se a proletarização.

As novas formas do trabalho na era chamada pós-industrial dão oportunidade para os trabalhadores não mais se reconhecerem como tais. Designers e programadores computacionais, personal trainers e hair stylists, doutores acadêmicos e curadores de arte, entre tantas outras novas modalidades de trabalho, resistem em se subjetivarem como trabalhadores, mesmo que a maioria deles tenha jornadas de trabalho extenuantes e seja explora como operários de fábrica.

E qual o preço que pagam por isso? Em primeiro lugar, o de sua despolitização dentro do verdadeiro antagonismo social, pois sem a inicial identificação de quem trabalha com a sua condição de trabalhador; em seguida com a de proletário; e finalmente com a de uma força de esquerda que represente seus interesses, não há potência política que faça frente a direita. Esta, ao contrário, é politizada até os dentes, e isso porque o burguês se identifica, mais ainda, orgulha-se de sua condição social.

Ao contrário do que os “pós-trabalhadores” de hoje creem, o desinvestimento no papel de trabalhador, mais ainda no de proletário, não lhes oferece mais ou nova liberdade. Em troca, esconde deles a velha sujeição de que nunca se libertaram. Nas palavras dramáticas de Žižek, “a tradição na qual o trabalho é subterrâneo, sendo realizado em cavernas escuras, culmina em nossos dias na ‘invisibilidade’ dos milhões de trabalhadores anônimos que suam em fábricas do Terceiro Mundo”.

Com efeito, a pós-modernidade pós-verdadeira tagarela histericamente que, “a classe trabalhadora está desaparecendo”, mesmo que, adverte Žižek, essa classe seja facilmente identificável no mundo de mercadorias que consumimos. Na letra do autor, “tudo o que temos de fazer é olhar a etiquetazinha que diz: ‘Made in… (China, Indonésia, Bangladesh, Guatemala)’A China merece inteiramente a alcunha de ‘Estado de trabalhadores’: é o estado da classe trabalhadora para o capital norte-americano”, por exemplo.

O trabalho imaterial virtual dos nossos dias mente muito bem que não é trabalho. No entanto, por trás de toda mentira há uma verdade foracluída. E o que se esconde por trás dessa pós-verdade pós-moderna pós-industrial? Que os “pós-trabalhadores virtuais” do Primeiro Mundo, no final das contas, pertencem à mesma classe que a dos milhões de trabalhadores “reais” das fábricas do Terceiro Mundo. A diferença é que aqueles são alienados disso, enquanto estes, não. Os “pós-trabalhadores”, da perspectiva política, estão muito aquém dos proletários. Doce paradoxo: o “pós” que na verdade é “pré”.

Se muitos trabalhadores não se reconhecem como tal, temos aí uma “divisão de classe” dentro da mesma classe, ao molde da velha divisão burguesa entre classes média e baixa, cuja estratégia obscena é borrar a substantiva e cruel divisão social entre classes dominante e dominada. Assim como a classe média, os “pós-trabalhadores” apenas se alienam do fato concreto de que são classe dominada.

E quando a classe singular que é a razão de ser da esquerda separa-se de si mesma, cinde-se em duas, criando um novo e impertinente antagonismo dentro do velho, ambas as partes cindidas perdem potência política diante do real oponente social, a classe dominante, que com o oponente dispersado apenas se fortalece. A esquerda, nessa guerra interna entre suas próprias células, algo como um câncer político, enquanto não morre, sobrevive feito zumbi.

Nesse pseudoantagonismo entre “pós-trabalhadores” e trabalhadores “reais”, a desvalorização do trabalho humano real resulta em um real trabalho de desvalorização da própria humanidade. Visto que o objetivo da revolução socialista é eliminar a sociedade de classes, não restando nem mesmo a classe trabalhadora no final, mas apenas povo, a resistência à proletarização, e em suma à revolução é, a priori, espécie de ojeriza à horizontalidade entre as pessoas. Que a classe dominante pense assim, vá lá. Agora, a dominada, o que ganha com isso?

O trabalhador que não se reconhece como tal, é esvaziado de sua substância social, algo como o a cerveja sem álcool, o chocolate sem açúcar, o leite sem gordura – para usar a recorrente provocação de Žižek. Mais grave ainda, o trabalhador que não se reconhecer como proletário é como o sujeito que faz um pacto com o diabo e em seguida se esquece de que o preço a ser pago é maior do que o benefício; que será cobrado impreterivelmente – e em se tratando de um diabo capitalista, com juros impagáveis!

Žižek critica a sociedade “pós-moderna” como aquela na qual “compro meu preparo físico indo a academias de ginástica; compro minha iluminação espiritual ao me matricular em cursos de meditação transcendental”, etc.. Podemos na sequência criticar a sociedade “pós-industrial” e a ideologia do “pós-trabalho” como aquelas nas quais “compra-se” a experiência “pós-proletária” ao se alienar deliberadamente da potência política singular que a condição de trabalhador confere.

Novamente: o que o “pós-trabalhador” perde com isso? O filósofo Claude Lefort relembra que o resultado de 150 anos de luta dos trabalhadores incorporou na sociedade demandas que eram ridicularizadas pela direita há cem anos, tais como o sufrágio universal, a educação gratuita, o sistema de saúde público, a assistência aos idosos, as restrições ao trabalho infantil, entre tantas outras. A própria participação democrática popular de hoje, aponta Lefort, é resultado da luta da classe trabalhadora. Ou alguém acha que é dádiva da classe burguesa dominante?

Por isso é fundamental o trabalhador se reconhecer como tal. Só assim descobre a força política que tem, mas isso só ao se proletarizar verdadeiramente; ao engrossar com sua consciência social o sangue da esquerda. “A tarefa urgente”, insiste Žižek, “é, mais uma vez, repetir a ‘crítica da economia política’ de Marx, sem sucumbir à tentação das múltiplas ideologias que há nas sociedades pós-industriais”. Quem trabalha é trabalhador; e para não ser eternamente explorado, deve se proletarizar; só assim haverá força política para lutar, quiçá vencer os seus opressores.

Žižek repete Hegel dizendo que “todos os eventos históricos têm de acontecer duas vezes”. Talvez seja a hora de os trabalhadores se proletarizarem novamente, ou seja, repolitizarem-se. Do contrário, a luta política é esquecida, e no lugar dela vinga não o vazio, mas uma “pós-política” burra onde a economia domina, com o “pós-proletário” “votando” cotidianamente na classe que o domina ao comprar seus iPhones, TVs de plasma, conexões com a internet, passagens aéreas à Machu Picchu, etc.

A histeria dos “pós” mantém não só os trabalhadores, mas a esquerda toda numa “pós-vida”: zumbi. Mas a dimensão política do proletariado não está morta, apenas em coma. Para reanimá-la, insiste Žižek, “a primeira coisa a se fazer é aprender a decodificar o modo pelo qual o conflito básico continua a funcionar como ponto de referência secreto dos antagonismos aparentemente ‘apolíticos’”. É essa realidade apagada, travestida, que, se esclarecida, assumida, pode fazer com que o trabalhador se reconheça como tal, encarne o seu papel social singular de proletário, constitua uma esquerda virtuosa, e seja o agente de sua própria revolução.

Por isso, no lugar de os trabalhadores, cindidos em “pós-trabalhadores” e trabalhadores “reais”, desaparecerem com sua própria classe, e inclusive como coloca Žižek, “em vez de procurarmos a classe trabalhadora que desaparece, deveríamos, em vez disso, perguntar: hoje em dia, quem ocupa, quem consegue tornar subjetiva, a posição de proletário?” Essa potencialidade, sem dúvida, está em todos aqueles que, independentemente das pós-verdades que digam a si mesmos, não se enquadrem na classe dominante.

Como, entretanto, saber isso hoje em dia, tempos nos quais ser dono de um restaurante ou ator de novela, por exemplo, leva muitos a crerem que são classe dominante? Uma simples pergunta basta: eu e os meus iguais podemos mudar a realidade social conforme os nossos anseios? Se a resposta for não, violà, você é classe dominada; trabalha para a classe dominante. Todavia, será menos dominado à medida que se proletarizar.

Apesar de subterranizados ideologicamente, trabalhadores com potencial político cobrem o mundo. Só não se reconhecem como tal por conta da forte neblina amorfizante do “capitalismo pós-industrial”. No entanto, mesmo que ainda preso na gaiola da classe dominante, qualquer trabalhador pode procurar ao seu redor e, parafraseando o Piu-piu quando vê o Frajola, dizer a si mesmo: “Acho que vi um proletariozinho!”. Só que em vez de temê-lo, ou achar que se trata de um fantasma do passado, junte-se a ele. O proletário é a realidade que permaneceu real em meio a tantos “pós” de realidade duvidosa.

Ocupemos a nós mesmos!

eco cola.jpg

As muitas ocupações de escolas e universidades brasileiras seguem firmes e fortes contra a péssima representatividade política que o povo está recebendo. Porém, isso é só parte da luta. A jovem máxima “Ocupa Tudo”, para ser verdadeiramente revolucionária, não deve deixar de fora desse “tudo” a exploração econômica que sistemática e sorrateiramente constitui aquela má representatividade. Ocupemos a nós mesmos! E economicamente.

As ocupações restauram intempestivamente algo da antiga democracia direta grega, na qual é o “demos” que atua a sua “cracia”, sem intermediários. Prática que no entanto foi soterrada pela erva-daninha da democracia representativa, posta em prática pela burguesia e para a burguesia. E é contra esses beneficiários burgueses, os únicos que são devidamente representados por aqueles que na verdade deveriam representar o povo, que as ocupações devem também contemplar. Ora, pouco adianta resistir abertamente aos desígnios dos maus políticos aqui, se, ali, alienadamente, segue-se enchendo os bolsos dos burgueses, os grandes e verdadeiros responsáveis pela má representatividade política.

Se, como dizem, a política apenas faz o trabalho sujo da economia, a ocupação deve ser também e principalmente econômica-estrutural, e não somente política-espacial. Do contrário, a luta que deixa de ser lutada é justamente aquela na qual o inimigo mais oprime. Políticos, como sabemos, vão e vêm. O poder do capital, em contrapartida, permanece e cresce nos bastidores do teatro de horrores político que ele mesmo patrocina, tanto para o povo se alienar do verdadeiro inimigo, como principalmente para que este algoz siga aumentando o seu sórdido poder discretamente.

“Ocupar Tudo”, portanto, é o povo ocupar também o lugar econômico mui ocupado por esse inimigo burguês que, antes, durante e depois de quaisquer manifestações políticas, segue enriquecendo com o mundo de mercadorias que nos oferece em todos os lugares e ocasiões. Mundo  mercadológico que seguimos consumindo ingenuamente, como se isso não fosse precisamente o cerne do problema. Como, porém, ocupar a nós mesmos economicamente? As ocupações políticas podem dar o caminho das pedras.

“Encher um espaço de lugar e de tempo” é uma bela definição de “ocupar”. Todavia, assaz abstrata para o que está se querendo propor aqui. Outra definição, bem mais concreta e pontualmente eficiente no sentido de ocupar-nos economicamente uns aos outros, diz que “ocupar” é: “dar trabalho; empregar”. Voilà! Eis a ocupação com a qual também devemos nos ocupar para enfrentar o inimigo, não em sua aparência política, mas em sua essência econômica. Como, entretanto, ocuparmos economicamente os nossos iguais para com isso enfraquecermos, quiçá falirmos o inimigo burguês que até aqui nos ocupa para o seu próprio fortalecimento?

O primeiro passo, o mais acessível, é a já conhecida “economia colaborativa”, ou seja, a esfera de produção, distribuição e consumo de bens e serviços que dispensa as grandes corporações e prioriza aquilo que os próprios indivíduos têm a oferecer uns aos outros. Pragmaticamente, é preferir a quentinha que a vizinha tem para vender ao BigMac; a costureira da esquina à loja Zara; e por aí vai. Se é para dar os nossos míseros e explorados tostões a alguém, que seja a nós mesmos, e não àqueles que nos exploram, ora bolas!

Este primeiro passo, que  nos leva a comprar coisas uns dos outros, não obstante mantém vivo algo essencial ao inimigo: o dinheiro. Um segundo e mais virtuoso passo, que com certeza pode completar a ocupação, por parte do povo, do belvedere da elite econômica é o escambo, ou seja, a troca direta de bens e serviços entre os próprios indivíduos, sem o intermédio vicioso do dinheiro. Em outras palavras, e usando os exemplos anteriores, trata-se de a vizinha trocar as suas quentinhas pela calça produzida pela costureira da esquina, e assim por diante.

Isso é ocupar economicamente os nossos iguais: dar trabalho a eles, empregá-los. Não para explorá-los, obviamente, uma vez que o escambo aqui proposto visa justamente eliminar os exploradores burgueses das relações econômicas – com a “mais-valia” de golpear os maus políticos que os representam. Sem dizer que, propondo-nos à troca com nossos iguais, cada um de nós tem também de ocupar-se em produzir algo que seja útil a esses iguais, e tão somente a estes. Restaurar o escambo é quiçá a maior rasteira econômica que os indivíduos podem no verdadeiro inimigo, e, de quebra, obsoletar a íntima & vil relação entre o capital e os seus representantes políticos.

O desafio, obviamente, é imenso. Afinal, como trocar quentinhas ou alfaiatarias por aluguel na imobiliária? Como bens ou serviços produzidos diretamente pelas nossas próprias mãos pagarão a passagem do ônibus? Para destrinchar o inimigo econômico-burguês, façamos como Jack, o estripador, façamo-lo por partes. Comecemos por estabelecer algumas relações de escambo com aqueles que nos são próximos e dispostos a tal. Hoje em dia há muitos aplicativos que podem ajudar nessa experiência. Não devemos esquecer de que também é da natureza humana se comprazer com trocar. Durante milênios foi assim. Pelo menos até o capitalismo convencer a todos de que o seu capital deveria intermediar todas as trocas.

Se cada um de nós conseguir fazer com que pelo menos 10% de nossas compras sejam substituídas por escambo, o inimigo-mor será enfraquecido nessa mesma proporção. E, quanto mais não seja, é muito mais fácil aumentar qualquer experiência, de 10 para 20%, e assim sucessivamente, do que pretender começá-la já nos seus 100%. Por partes e com calma; e também com prazer, repete Jack.

Certamente demorará para que a Apple aceite uma torta de maçã ou uma poesia em troca de um iPhone. Contudo, com o tempo, ocupando-nos a nós mesmos em função de nossa sobrevivência e liberdade, e sobretudo desocupando subversivamente os nossos algozes econômicos-políticos da intermediação de tudo o que precisamos para viver, poderemos descobrir que os smartphones deles só valem mais do que as nossas tortas de maçã ou poemas porque assim eles nos fizeram acreditar. Essa ideia aliás é a mercadoria excelente deles; se a desocuparmos, definitiva e coletivamente, todas as outras perdem o valor.

O socialistas ortodoxos de plantão dirão que é ingenuidade acreditar que o caminho da revolução é tão simples. Mais ainda, que não podemos dispensar a velha, todavia respeitável profecia marxista. Nada contra as Bíblias dos revolucionários, muito pelo contrário. Que elas sigam angariando fiéis até completarem a sua mui aguardada revolução. Afinal, a liberdade que elas prometem é mais que necessária. Porém, a candente novidade e promissora efetividade das ocupações nos sugerem, não um atalho, mas um desvio em relação às velhas teorias.

O “Ocupa Tudo” deve: ocupar os espaços onde a representatividade política não se efetua; tomar nas mãos a representação das próprias demandas; perceber que enquanto a economia estiver alienada dos indivíduos ela só produzirá má representatividade política; experimentar-se e fortalecer-se em relações econômicas não alienadas, baseadas em trocas diretas, nas quais o valor não é mais um imperativo extrínseco, mas propriedade daqueles que trocam entre si; e, por fim, fazer essa experiência – que não é nova, apenas obsoletada estrategicamente pelo capitalismo – crescer até ocupar totalmente a vida das pessoas.

Muito embora seja fundamental começar ocupando os espaços que os nossos representantes políticos não estão ocupando conforme prometeram ao se elegerem par tal, é só quando os indivíduos ocuparem a si mesmos, não só política, mas sobretudo economicamente, sem deixar espaço livre para qualquer mediação oportunista. Só então a revolução, senão estará dada, ao menos terá sido devidamente iniciada.

Portanto, ocupemos a nós mesmos. Descubramos o que podemos fazer que sirva somente a nós, e de forma alguma ao sistema que só quer nos explorar e oprimir. Reocupemos o sentido grego, e há muito esquecido, de “oikonomia”: “administração de uma casa, lar”. Desocupemos a macroeconomia! Só assim a má representatividade política será desocupada da sua vil participação nas nossa vidas.

Obrigado Doria. Obrigado Crivella.

doria crivella.jpg

Graças a Deus “Universal” e ao chiquérrimo Yves “Saint” Laurent por terem escolhido o pastor Marcelo Crivella e o coxíssimo João Doria para governarem as duas mais espetaculares cidades brasileiras – muito embora eu tenha votado no Freixo, aqui no Rio, e, se fosse eleitor paulistano, teria escolhido o Haddad sem a menor sombra de dúvida.

Mas por que cargas d’água agradecer por algo que para muitos é tão trágico? – perguntaria justamente a minoria vencida em ambas as cidades? Ora – respondo – porque a única, todavia grande virtude dessa tragédia é o fato de a realidade estar sendo coerente consigo mesma.

Para entender essa ideia basta lembrar do que vem acontecendo no Brasil nos últimos dois anos: as panelas ruidosas nos metros quadrados mais caros do país contra a divisão de renda aventurada nos governos petistas; a “jihad” golpista da direita derrotada nas últimas eleições presidenciais para “eleger” indiretamente a fatídica “Ponte para o Futuro” deles; o Escola sem Partido; a PEC 241.

O que todas essas coisas tem em comum, sua estrutura genérica implícita, é nada outro que uma ofensiva incontrolável das direitas contra as esquerdas. E isso não é exclusividade do Brasil. No resto do mundo, a Europa de Le Pen e os EUA de Trump exemplificam muito bem esse movimento. A presente tragédia da realidade, portanto, é o protagonismo vitorioso e espetacular do 1% rico, que, para tal, precisa colocar os 99% restante mais na sombra ainda.

Tanto é assim, e tão generalizadamente, que nem cabe mais falar em “onde” a esquerda está sendo destruída pela direita, mas sim de “um tempo” – o presente – no qual isso acontece irrefreável e globalmente. E é desse ponto de vista que Doria ter sido escolhido pela rica sampa, e Crivella, pelo Rio reacionário, provam que a realidade está sendo consistente consigo mesma, sem falha alguma. Pelo menos isso!

Sejamos sinceros, e principalmente racionais: na época reacionária em que vivemos, se por acaso o petista Haddad tivesse vencido na “peessedebeizada” Terra da Garoa”, e o “esquerda-radical” Freixo tivesse ganho na cidade que só é “maravilhosa” para quem tem fé, seria como se a realidade estivesse, ou confessando que é esquizofrênica, ou tirando sarro da cara de todo mundo.

Às combalidas esquerdas tupiniquins é melhor que essa realidade se apresente em sua insuportável coerência mesmo. Reside aí quiçá a oportunidade para elas desacreditarem de seus muitos idealismos, para, aceitando plenamente a queda, reexperimentarem o gosto amargo que acompanha qualquer materialismo, e que nunca deveria ter sido esquecido. Só assim as esquerdas, parafraseando o samba de Beth Carvalho, sacodirão, levantarão a poeira e darão a volta por cima.

Foi um pecado político ter tido esperança de que o Haddad venceria em sampa, e o Freixo, no Rio. E isso porque esperar é não agir; é se privar do ato em função dos próprios idealismos; Conforme reza o materialismo de Espinosa: é cultivar a própria impotência, nada além disso. Para além das atuais derrotas das esquerdas paulista e carioca, é a coerência da realidade consigo mesma que devemos ter estômago para experimentar em toda a sua gravidade.

Afinal, é esse o (des)gosto que qualquer revolucionário deve engolir, ainda que a contragosto, caso queira efetivamente “mudar o mundo”. Agradeçamos à realidade o fato de ela estar se mostrando nua e cruamente. Vejamo-la sem os nossos tantos véus ideais. E, sobretudo, não nutramos esperança em relação a ela.

Por isso, repito: obrigado Doria, obrigado Crivella. Primeiramente, por permitir-nos ver a realidade como ela é, ou melhor, como está. E, segundamente, por frustrarem radicalmente as nossas esperanças. Agora estamos mais com os pés no chão do que antes – muito embora saibamos que esse chão se trate de um lodo fétido e reacionário.

Poesia e terror: alquimia revolucionária

poesia terrorismo.jpg

O terrorismo sofreu um ataque terrorista! E o que é pior, dos Estados nacionais e da mídia internacional; em suma: do capitalismo ele mesmo, o grande e verdadeiro líder mundial. O objetivo número 1 desse “inimigo alfa”, obviamente, é alienar qualquer pretensão revolucionária da sua mais radical, todavia indispensável estratégia diante das não menos radicais e terroristas forças contrarrevolucionárias que encontrará pelo caminho. A melhor imagem do que estão querendo furtar do revolucionário é o “Terror Vermelho”, que, nas palavras de Leon Trotsky: “é uma arma usada contra uma classe [a burguesia] que, apesar de ter sido condenada à destruição, não quer morrer”.

Demonizar absolutamente o terrorismo, empreendimento contemporâneo ferrenho, é talvez o maior terrorismo porque, de certa forma e em certa medida, e ao contrário do que se repete histericamente, o terror pode ser uma passagem a uma dimensão existencial mais estimulante e libertária. Exemplo excelente de um bom-terrorismo é o “Terrorismo Poético”, que, de acordo com seu apólogo mor, o pensador anarquista Hakin Bey, “é a estética da conquista no lugar da política do medo” -esta última, compartilhada tanto pelos maus-terroristas quanto pelo Estado, o pior de todos.

De forma alguma se pretende aqui elogiar, por exemplo, os atos de terror do Estado Islâmico nem tampouco os dos lobos solitários, rebentos viciosos daquele. Muito pelo contrário. O que se quer pensar, na verdade, é justamente a ausência de poesia no terrorismo que vemos no mundo. Tal carência, por um lado, faz com que ele seja peremptoriamente condenável, como de fato está sendo; e, por outro lado, nubla completamente a sua potência para conduzir-nos –radicalmente, é preciso admitir- a um futuro no entanto melhor, no qual nem o mau-terrorismo, nem o terrorismo-de-Estado tenham lugar.

Para tanto, é necessário separar o joio do trigo. E a peneira é poética! Se em grego “poein”, isto é, poesia, significa “fazer, compor”, de um lado, devemos reconhecer quais atos considerados por nós como “terroristas” são somente negativos, isto é, apenas destroem realidades sem nada colocar nem propor no lugar delas. Estes seriam então os verdadeiramente condenáveis e dispensáveis. Por outro lado, distinguir quais desses atos de fato são ou podem ser positivos, ou seja, capazes de colocar algo melhor no lugar das ruínas que instauram no mundo. Ou ainda, ao menos fazerem delas símbolos –e por que não poéticos?- que estimulem o mundo à mudança necessária.

Exemplos desses últimos sobram em “Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares”, obra anárquica de Hakim Bey. Eis alguns deles: “escolha alguém ao acaso & o convença de que é herdeiro de uma enorme, inútil & impressionante fortuna –digamos, 5 mil quilômetros quadrados na Antártida, um velho elefante de circo, um orfanato em Bombaim ou uma coleção de manuscritos de alquimia… Coloque placas de bronze comemorativas nos lugares (públicos ou privados) onde você teve uma revelação ou viveu uma experiência sexual particularmente inesquecível etc.”

A superfície aparentemente alienada dos atos poético-terroristas sugeridos por Bey, todavia, não deve repelir os revolucionários, mas, em troca, estimulá-los a mergulhar mais fundo nas possibilidades esquecidas ou inexploradas do terror, para com sorte encontrarem nele virtudes, senão para substituírem totalmente a violência de que não poderão dispensar-se na contraofensiva mais do que esperada do inimigo, ao menos para darem tons menos burocráticos às suas ofensivas.

Bey assegura que a feliz “vítima” de um Terrorismo Poético “mais tarde perceberá que por alguns momentos acreditou em algo extraordinário & talvez se sinta motivada a procurar um modo mais interessante de existência”. E porventura não é essa a essência do revolucionário: crer, de dentro da distopia que o angustia, na possibilidade da sua utopia libertária? Com Bey, portanto, podemos ver que o terrorismo pode ser louvável, desejável, pois ao menos em sua forma poética, diz o pensador, “ataca, não seres humanos, mas ideias malignas, pesos mortos na tampa do caixão dos nossos desejos”.

De acordo essa lógica, o terrorismo, desde que poetizado, é bom porque assassina violentamente ideologias aprisionadoras; explode os pesados monumentos que elas se tornam dentro de nós. Atuando dessa forma, o equilíbrio de forças que, aqui, é desfavorável, poderá, ali, ser invertido. “Trame & conspire, não pragueje nem gema… Seja brutal, assuma riscos, vandalize apenas o que deve ser destruído, faça algo de que as crianças se lembrarão por toda a vida”, ensina o anarquista.

Decerto faltou muita poesia à monstruosa pressa revolucionária de Stalin e às suas todavia sábias palavras: “o Terror é a maneira mais rápida de se criar uma nova sociedade”. Diferente do Terrorismo Poético que, para Bey, “é um ato num Teatro da Crueldade sem palco”, o terror stalinista fez na verdade um e grande ato, só que extremamente cruel dentro do velho Teatro da Crueldade que queria dar cabo. Dito de outro modo: deu palco excelente à crueldade. Forçando mais ainda a ideia, Stalin duplicou a crueldade que já havia, todavia com o seu outro-novo travestido de esperança comunista.

O que faltou ao terror de Stalin, colocado a serviço do seu obsessivo amor à revolução, foi algo muito simples proposto por Bey: “entender que amar & libertar são o mesmo ato”. E quem sabe só mesmo a presença da poesia para não deixar qualquer terrorista esquecer dessas duas dimensões humanas, demasiado humanas: o amor e a liberdade. Só que a philia de Stalin pelo seu ideal -para muitos, apenas por si mesmo-, apoético e extremamente despótico, precisava de liberdade apenas para si mesmo. E, nas palavras de Bey, “cada um dos que entram no reino do Imã-de-seu-próprio-ser transforma-se num sultão de revelação inversa, num monarca da anulação & da apostasia”. Em suma, um mau-terrorista. Ou o que é o mesmo: um não-revolucionário.

Para que o terror não se alheie do seu horizonte revolucionário ele precisa ser sempre poetizado. Do contrário, absolutamente pragmático, frio e calculista, só lhe resta mesmo a condenação universal. Mesmo que o ato do revolucionário seja sempre considerado criminoso da perspectiva do inimigo (o Estado burguês e suas leis), ele é necessário conquanto seja, nas palavras de Bey, “não crimes contra o corpo, mas contra Ideias que sejam letais & asfixiantes. Não libertinagem estúpida, mas crimes exemplares, estéticos, crimes por amor”.

Aqui devemos entender que, para o revolucionário socialista, o horizonte comunista é o objeto desse seu amor, digamos assim, criminoso! O melhor terrorismo poético “é contra a lei, mas não seja pego!” –adverte Bey. Revolução como crime; crime como revolução. Bom exemplo de “Crimes Exemplares” são os de Robin Hood, que roubava dos ricos para dar aos pobres – e não os de Stalin, que espoliou o povo da pouca liberdade que tinham para com ela engordar a sua burocracia odiosa e ineficiente.

O terror poetizado nunca é demasiado. Tem e deve ter a sua medida. Segue a regra de Paracelso que diz que “a diferença entre o remédio e o veneno está na dose”. E não é total porque, como bem colocou Bey, “qualquer um que consiga ler a história com os dois hemisférios do cérebro sabe que o mundo termina a todo instante… e a todo instante também é gerado um mundo novo”. O “bom terrorista-alquimista”, portanto, sabe que o terror e a poesia que aplica ao mundo para que este não escape à lei do devir não é condição sine qua non a “um mundo novo”, mas um estímulo para que ele não deixe de proceder quando forças reacionárias tentam impedi-lo.

E por acaso esse terror comedido -senão poetizado, ao menos profetizado- já não estava já nas ideias de Marx quando ele disse que o Terrorismo Revolucionário é “um meio de reduzir, simplificar e concentrar a agonia dos assassinos da antiga sociedade e as dores do parto sangrentas da nova”? A dose paracelsiana, metáfora perfeita para a dose beyana entre terror e poesia, se devidamente ministrada pelo revolucionário há de legar um resíduo alquímico muito importante: o elixir homeopático capaz de nutrir e manter saudável esse “mundo novo” que se sucede de qualquer terror positivo.

O revolucionário não precisa ser absolutamente terrorista, pois, como diz Bey, “cada um de nós possui metade do mapa… As fronteiras imaginárias da nossa cidade-Estado se borram com o nosso suor”. Metade da tarefa já está feita. A parte do terror que se pode e se deve dispensar de produzir é justamente aquela que já está dada e mantida pelo Estado. Não é o caso de, ou roubá-la, ou recriá-la. Isso seria burrice: assumir o crime do inimigo criminoso. Basta que redirecione, mediante uma virtuosa poesia terrorista, esse terror pré-existente contra o seu velho proprietário.

Trapaça/estratégia muito antiga das artes marciais em geral, o terrorismo poético também é o uso da força do adversário contra ele mesmo Assim como, diz Bey, “os Terroristas-Poéticos comportam-se como um trapaceiro totalmente confiante cujo objetivo não é o dinheiro, mas TRANSFORMAÇÃO”, assim também o terrorista revolucionário -que outrossim não tem no dinheiro a sua meta, pois essa é a do seu inimigo, a burguesia- deve trapacear com segurança para trazer ao mundo a transformação positiva que projetou para ele.

O terrorista-poético-revolucionário deve, não só inventar, como principalmente comedir o terror de seus atos. E isso porque a energia envolvida na instauração de qualquer terror não é suficiente para sustentar o “novo mundo” que ele inaugura. É preciso guardar forças para o amanhã. Aqui vale lembrar da incredulidade de Slavoj Žižek em relação aos “revolucionários” do filme “V de Vingança”, que, para ele, é a mesma da atual esquerda mundial. Nas palavras do filósofo: “o filme termina com cidadãos mascarados tomando o Parlamento. Eu adoraria mesmo é assistir V de Vingança, parte 2. O que eles fariam no dia seguinte, como reorganizariam a vida cotidiana?”

O bom-terrorista, o verdadeiro revolucionário, ou seja, aquele que cria e mantém um mundo melhor, além de não poder se furtar à poesia, uma vez que só ela adocica o que, do contrário, restaria absolutamente amargo; em palavras menos poéticas: aquele que adequa o terror à capacidade humana de suportá-lo; este bom-terrorista deve também sobreviver ao seu próprio terror, tanto para prosseguir o trabalho que começou -afinal, é melhor não confiar os próprios sonhos apenas aos outros-, quanto para fruir desse “mundo novo” que não teria vez sem o seu terror poético.

Mesmo que essa boa aventura revolucionária seja interrompida abruptamente pelo contra-ataque inimigo, diz-nos Bey, “uns poucos dias liberto do Império das Mentiras já pode muito bem valer o sacrifício”. Entretanto, prossegue o escritor anarquista, “nossa posse sobre ele é seriamente comprometida se precisamos cometer suicídio para preservar sua integridade”; advertência, aliás, que seria muito bom os nossos cada vez mais numerosos lobos solitários terem em mente.

A arte de bem dosar terrorismo e poesia, cujo ouro alquímico é a verdadeira revolução, portanto, exige do terrorista-poético-revolucionário que exercite a sua criatividade, a sua imaginação, pois o seu inimigo mais belicoso, a besta capitalista, por seu turno, é assaz criativa e imaginativa. E o que é mais ameaçador, o capitalismo e, segundo Bey, também “os bancos transmutam a Imaginação em fezes & dívida. O mundo não ganharia um pouco mais de beleza com cada banco que tremesse… ou caísse?” –pergunta-nos o anarquista.

Indivíduos apoetizados, e aí não importa se cidadãos apassivados ou se terroristas ideologicamente autoativados, apenas seguem, nas palavras de Bey, “engatinhando pelas frestas entre as paredes da Igreja, do Estado, da Escola & da Empresa, todos monolitos paranoicos”. Agora, em troca, encantados pela musa poética, ambos aqueles já podem começar as suas cruzadas uma vez que já possuem no mínimo poderosas e irresistíveis bombas imaginárias, as únicas capazes de explodir o inimigo no seu cerne imaterial, ideológico.

Um terrorista que ataque o inimigo em sua materialidade, além de não poder ser chamado de poético, tampouco de revolucionário, deixa viva justamente a “alma” do mal ao atacar apenas o seu “corpo”. Começar pela poesia, ou ao menos fazê-la acompanhar desde o princípio qualquer ideia de terror, é manter firme a indicação de que o espírito do inimigo, sua ideia insuportável, é o mal a ser enfrentado e destruído. Assim como com qualquer animal, sem a anima seu corpo cai imediatamente.

Objetivamente, o equilíbrio entre poesia e terrorismo a ser buscado pelo terrorista-poético-revolucionário em função de seus choques-políticos-estéticos tem que resultar, conforme coloca Bey, em “uma emoção pelo menos tão forte quanto o terror –profunda repugnância, tesão sexual, temor supersticioso, súbitas revelações intuitivas, angústia dadaísta” etc. Emoções que tirem as suas vítimas afortunadas dos lugares-comuns-passivos onde estavam e sobretudo não permitam voltem nem se reconformem a eles.

Todas as velhas, pálidas e arraigadas emoções e ideias que temos são apenas Prozacs ideológicos que, há muito a serviço do inimigo, apenas mentem nos salvar daquilo que na verdade nos dana. Porém, afirma Bey, “devemos ser salvos de todas as salvações que querem salvar-nos de nós mesmos, do animal que é também nossa anima”. Deixemos então esse animal explodir na sua raiva natural, com toda a sua potência e capacidade transformadora. Basta que o nosso terror seja mais poético do que despótico; mais positivo do que negativo; mais convidativo do que repugnante; mais aplaudido do que condenado.

Misture terror e poesia e perceba onde você e seu mundo chegam. “Não apenas sobreviva enquanto espera que a revolução de alguém ilumine suas ideias… Aja como se já fosse livre… Carregue seu passaporte mouro com orgulho… Dance antes que fique calcificado… Acenda seu cigarro com a espoleta chamuscada de um rojão negro”, intima Bey. Realize seus sonhos; faça a sua revolução; pois, se for virtuosa, será a revolução de todos nós. Em uma palavra: realize-se. Até porque, como bem disse Bey, “o único conflito verdadeiro é entre a autoridade do tirano & a autoridade do ser realizado –todo o resto é ilusão, projeção psicológica, verborragia”.

Confie na virtude que a poesia traz ao terror. Embebede-se com o seu próprio potencial poético-terrorista. Isso já é revolução. “Um bronco não percebe eros nenhum num champanhe fino; um feiticeiro pode se embriagar com um copo d’água”, diz Bey. E se você não for capaz de se inebriar com um ato terrorista-poético como o que o pensador anarquista descreve no seu livro, qual seja: “cole em lugares públicos um cartaz xerocado com a foto de um lindo garoto de 12 anos, nu & se masturbando, com o título bem à vista: ‘A FACE DE DEUS’”, desculpe-me, você nunca será revolucionário, tampouco poético, somente um mau-terrorista. E isso porque a carência de poesia outra coisa não significa que a incapacidade de pôr um mundo novo e melhor no lugar de um velho e pior.

____________________________________________

Texto publicado em: https://gz.diarioliberdade.org/opiniom/item/45060-poesia-e-terror-alquimia-revolucionaria.html

A beleza salvará o mundo

beleza sallvará.jpg

Parafraseando o poeta Vinícius de Moraes, os revolucionários que me perdoem, mas a beleza é fundamental. Esse perdão parafraseado, na verdade, é um pedido de paciência àqueles que, não sem razão, enxergam os perigos da frivolidade e da alienação na beleza, afinal, a besta capitalista há muito a sequestra para melhor e mais dissimuladamente agir contrarevolucionariamente. “Hesitamos a aprovar tal fascinação pelo belo: sabemos que ela dissimula a face atroz da realidade” diz o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov no seu livro intitulado com uma frase de Dostoievsky, que é o cerne do que se quer pensar aqui, qual seja: “A Beleza Salvará o Mundo”.

Em primeiro lugar, os revolucionários que não acreditam que a beleza nos salvará da vilania do inimigo capitalista deveriam saber que o “amigo” fiel, não só deles, mas em verdade de todos nós, qual seja, o comunismo, não é e não deve ser refratário ao belo. Afinal, “a beleza não conhece privilégios sociais e nem de classe”, diz Todorov, para quem “todos são iguais diante da beleza, e podem participar dela nas mesmas condições”. Mais ainda, de acordo com o filósofo alemão Immanuel Kant na sua “Crítica da faculdade do juízo”, o belo é alavanca do sentimento de comunidade; nas palavras dele: do sensos communis.

Antes, porém, de trazermos os argumentos de Kant e de seguirmos nos de Todorov e outros pensadores, o amor ao conhecimento, ou seja, a filosofia exige que comecemos pela investigação sobre o belo por excelência, o diálogo socrático escrito por Platão, “Hípias Maior”. Nele, o filósofo Sócrates pede ao sofista Hípias uma definição do belo. As respostas do sofista ao filósofo sobre a beleza são as seguintes: uma bela jovem; o ouro e o marfim com que se adorna as coisas; ser rico, respeitado e tratado com honrarias; o que é útil; o que é bom; o que agrada os sentidos; e, finalmente, que a Beleza é a salvação proveniente de um discurso bonito.

Não obstante, todas as tentativas do sofista não convencem o filósofo, afinal, Sócrates quer saber, não o que por acaso é belo, mas o que é “o belo”, isto é, aquilo que faz com que as coisas sejam, possam ser belas. A grande questão, infelizmente, permaneceu sem resposta. Não só porque o sofista sequer compreendeu o ponto do filósofo, uma vez que só pensou em coisas e ações belas em vez do belo-em-si, como também porque até mesmo Sócrates não sabia defini-lo. Em vez disso, mediante o seu paradoxal “só sei que nada sei”, o filósofo conclui o diálogo dizendo apenas: “o belo é difícil”.

Vinte e dois séculos depois, na modernidade, Kant encontrou uma solução para a questão irresoluta da beleza das mais elegantes. O alemão concorda com Sócrates em que o belo não está nas coisas belas, que não é uma propriedade que exista nelas independentemente da percepção humana. Porém, o filósofo moderno supera o antigo ao entender que o belo é um produto da nossa faculdade de ajuizar as coisas, que em si mesmas não são belas, mas sim a nossa disposição subjetiva diante delas.

Para Kant, quando nossos sentidos, mais privilegiadamente a visão, percebe um objeto que lhe causa espécie de prazer e, diante dessa complacência subjetiva espontânea, resistimos, de um lado, a conceituar tal objeto e, de outro, a dar-lhe qualquer utilidade, mas permanecemos apenas nessa relação de prazer contemplativo com ele, eis o belo: não o objeto, não a nossa capacidade para contemplá-lo complacentemente, mas a relação com ele livre dos conceitos e do pragmatismo humanos.

Porém, para entender como “a beleza salvará o mundo”, é preciso compreender que, para Kant, não basta um objeto, um indivíduo e o prazer subjetivo deste. Chave para o belo kantiano é uma paradoxal universalização desse particular subjetivo. Funciona assim: quando me comprazo contemplativamente com determinado objeto, o meu juízo só pode sustentar que ele é belo se, antes, eu pressupor que qualquer pessoa que porventura entre em contato estético, isto é, sensível com este mesmo objeto o ajuizará da mesma forma que eu.

Em suma, kantianamente falando, eu só consigo achar que uma coisa é bela ao presumir que ela será bela para todos. Mesmo que posteriormente certos indivíduos não concordem com o meu ajuizamento de gosto -o que é bem provável aliás- ainda assim esse meu juízo só é possível se a priori eu pressupuser que ele será universalmente considerado belo. Nas palavras do filósofo, “em todos os juízos pelos quais declaramos algo belo não permitimos a ninguém ser de outra opinião, sem com isso fundarmos nosso juízo sobre conceitos, mas sobre nosso sentimento: não como sentimento privado, mas como um sentimento comunitário.”

Espero que a esta altura o revolucionário refratário ao belo já possa baixar sua guarda, pois se o belo, por um lado, exige a pressuposição de um gosto comum, nas palavras de Kant, um sensus communis, isto é, um sentido comunitário, a beleza -embora fortemente coagida pelo capitalismo para alienar-nos da vil realidade que ele mesmo impõe-, por outro lado, é a essência daquilo pelo qual este revolucionário desde sempre esteve em luta, qual seja, o comum. E para quem acha que a revolução é antes racional, intelectual do que sensorial, Kant tem a dizer que “a faculdade de juízo estética, antes que a intelectual, pode usar o nome de um sentido comunitário”.

E isso porque a faculdade de ajuizamento estético, isto é, o gosto considera, e a priori, o gosto de todos os demais. Quando, ao contrário, tenho certeza de que algo é prazeroso apenas para mim, levo em consideração somente a minha sensibilidade, impossível de ser universalizada. Esse não seria o horizonte intransponível do burguês? Quando, ainda, o que me compraz parece que causará o mesmo somente em determinados indivíduos, isso se dá porque levo em consideração certos valores. Nesse sentido, se meu prazer, parecer-me, será igualmente prazeroso à maioria, meu sentimento subjetivo dirá que o objeto que o causa é bom. Então sou moral. Aqui não estamos no limite socialdemocrata?

Agora, enquanto pressuponho que todos terão prazer com aquilo que me apraz, o belo, que é o que surge dessa reflexão, é a ideia de que a mais espontânea e menos interesseira disposição subjetiva que eu posso experimentar não se dá sem a consideração de que a humanidade é uma só. Com efeito, coloca Friedrich Schiller, outro filósofo alemão, “a beleza revela nossa humanidade, ela é o nosso ‘segundo criador’”. E uma segunda criação seria o que senão a primeira revolução humana? A beleza, e o communis sem a qual ela não é, deve ser um princípio ao revolucionário.

“Não podemos ser um sem o outro; só a comunidade exprime a humanidade”, diz Feuerbach. Rousseau diz o mesmo, todavia de modo mais poético: “para conhecer seu coração é preciso começar por ler o coração de outrem”. E a beleza, segundo Kant, mutatis mutandis não exige o mesmo de cada indivíduo? Sem ela, ou temos o individualismo, cujo vício é o de remeter todos os prazeres somente a quem os sente, e dane-se o resto, ou, com sorte, a democracia, cuja pseudovirtude é se satisfazer com o prazer da maioria, não com o de todos.

Reduzindo a verticalidade entre a torre de marfim filosófica kantiana e o chão comum do revolucionário, Schiller afirma que, se a revolução se perdeu, é porque seus atores não estavam maduros para a liberdade. Seria preciso, portanto, proceder à educação desses atores; transformá-los em seres morais. E essa educação, garante o filósofo, é estética. Nas suas palavras, “é pela beleza que nos encaminhamos para a liberdade”. Grosso modo, para Schiller, submeter a vida às exigências do belo é o verdadeiro caminho para a liberdade.

Aqui já podemos ver, não a vitória, mas a dianteira do estético em relação ao político, e até mesmo ao ético. O escritor britânico Oscar Wilde concordava com isso. Para ele, a estética é um enriquecimento da ética e da política, muito mais do que a substituta alienante delas. Na sua controversa apologia à beleza, o antológico “O retrato de Dorian Gray”, Wilde sugere que “é melhor ser belo do que ser bom”, uma vez que a beleza não é apenas preferível ao bem, mas também “a única capaz de perdoar o mal”.

Dandismos à parte, o que o revolucionário deve tirar dessa ideia wildeana é que o bem não é tão potente quanto o belo no sentido de “perdoar toda a humanidade”, quer dizer, de contemplá-la em uma só disposição prazerosa de espírito. Ora, o bom, o moral, é aquilo que seria melhor em dada circunstância e em função de determinado fim. Nessa dimensão, entretanto, há espaço por exemplo até mesmo para o capitalismo passar por um bem, por fim a ser perseguido. Sua força e incontáveis apólogos worldwide provam isso muito cruelmente.

Já o belo é a perfeição incondicional! Há na sua contemplação um prazer que, embora produzido subjetiva e individualmente, todavia porque só se finaliza na contemplação a prior de todas as demais subjetividades, ou seja, da humanidade inteira, assalta-nos a nós próprios e faz com que sintamos que a perfeição só é produzida coletivamente, comunitariamente. O belo, para ser, sopra ao mesmo tempo duas coisas maravilhosas no nosso ouvido: um gratuito e espontâneo prazer contemplativo, e a certeza de que temos um gosto em comum com a humanidade inteira. A beleza e o communis sem o qual aliás ela não é, é essencial ao comunismo.

Kant, além de resolver elegantemente a antiga questão socrático-platônica acerca do belo, com a sua “Crítica da Faculdade do Juízo” também dá o caminho das pedras ao revolucionário, evidenciando que o indivíduo, diante de seu gosto, para poder ajuizar que algo é belo, precisa se colocar em pé de igualdade com todos os gostos do mundo. Claro, o comunismo tem muitos outros e dificílimos desafios. Todavia, sem esse princípio prazeroso, universalizante, comunitário envolvido na beleza, sequer poderia pensar em um primeiro passo.

A revolução, portanto, é primeiramente estética. Só depois pode ser ética, moral, política, econômica, científica etc. Pois, como já disse o ensaísta francês Michel de Montaigne, “no estado estético, todo mundo, mesmo o trabalhador que é um mero instrumento, é um cidadão livre cujos direitos são iguais aos do mais alto nobre”. Ao contrário do que disse Sócrates à Hípias, não é o belo que é difícil. Ele é fácil e acessível a qualquer um. Mudar o mundo, fazer a revolução é que ainda seguem complicados para nós. Talvez porque ainda acreditemos que esses desafios não têm e não devem ter nada a ver com a beleza.

V de Vindima

v.jpg

Em recente entrevista à revista brasileira Carta Capital, o filósofo esloveno Slavoj Žižek, criticando a paralisia da esquerda atual diante das forças imperialistas e retrógradas, diz que nem mesmo eventos como a manifestação de 1 milhão de pessoas na Praça Tahir, no Egito, em 2011, são verdadeiramente revolucionários. “Eu não me importo com esse tipo de conquista”, diz o filósofo, para quem “a revolução não é o porre, a revolução está na ressaca do dia seguinte”. Žižek então reconta uma piada sua sobre o filme V de Vingança, de 2005: “o filme termina com cidadãos mascarados tomando o Parlamento. Eu adoraria mesmo é assistir V de Vingança, parte 2. O que eles fariam no dia seguinte, como reorganizariam a vida cotidiana?”, pergunta o filósofo, pragmaticamente.

O mais próximo que eu cheguei de manifestações como a egípcia foi o junho de 2013 brasileiro, do qual eu era participante ativo e crédulo. O porre de 2013, para não deixarmos a piada de Žižek, foi intenso, promissor, festivo até. Sua ressaca, no entanto, foi insuportável. Não deu a mínima continuidade à miríade de demandas de seus manifestantes. Muito pelo contrário, um anos depois, em 2014, ganhamos das eleições nacionais um congresso e um senado mais retrógrado e fundamentalista do que podíamos imaginar. Retrospectivamente não é difícil concluir que a chamada “primavera brasileira” foi um desserviço invernal.

O desfavor da bebedeira revolucionária das flores de 2013, porém, não parou por aí. Sua ressaca insuportável foram também as populosas marchas pró-impeachment, pró-ditadura militar e, pasmem, pró-monarquia que ocuparam as ruas brasileiras em 2015 e 2016, cujo resultado amargamente concreto foi o afastamento de uma presidenta democraticamente eleita e a tomada do poder por uma corja de oligarcas corruptos que, se não estão levando o país de volta para o tempo do Império, como queriam alguns, ao menos reinstauraram a Velha República de antes de 1930, ambiente excelente dos resistentes oligarcas tupiniquins.

Diante dessa ressaca revolucionária brazuka, é impossível não concordar com a piada de Žižek. Tanto que não pude deixar de rever o filme em questão: V for Vendetta. Depois de reassisti-lo, no entanto, a piada do filósofo me pareceu mais pertinente ainda. Paradoxalmente, tanto melhor porque mais sem graça. Embora o herói do filme, mascarado de Guy Fawks, rascunhe na superfície do real distópico a mais utópica anarquia revolucionária, cujo ícone certamente é o terrorismo poético da explosão de símbolos do estado opressor ao som de Tchaikovsky, tudo o que vemos –Žižek tem razão!- é apenas o delicioso porre; nada da necessária administração da ressaca revolucionária subsequente.

É frustrante ver que, em vez de o herói mascarado usar a sua verve revolucionária para fazer dos cidadãos os agentes efetivos e sempiternos da mudança, ele os mantêm como espectadores passivos o tempo todo. Anuncia, em um hackeamento televisivo, que explodirá o parlamento dentro de um ano. Solicita aos seus telespectadores apenas que compareçam na data marcada. Nesse meio tempo, sai à caça de políticos e empresários corruptos, e, como assinatura de seus atos, deixa uma rara rosa vermelha sobre os corpos assassinados. O público, no entanto, segue alienado de seu trabalho revolucionário, uma vez que a mídia divulga sempre outros motivos para as tais mortes e atentados. E também sobre a rara flor, nada.

Dias antes do agendado atentado ao parlamento, o mascarado envia, pelo correio, máscaras e roupas teatrais negras como as suas à população, para que as usem durante o espetáculo terrorista final. No dia “D”, melhor dizendo, no dia “V”, milhares de pessoas vestidas de Guy Fawks marcham em direção ao parlamento. O Estado opressor, que cerca o prédio do poder ao modo de proteger a si próprio, fica apenas confuso com a multidão de mascarados. Enquanto isso, subterrânea a solitariamente, o herói mata o chanceler do mal, contudo, pagando por esse penúltimo ato com sua vida.

Morto e coberto com centenas das suas raras rosas vermelhas, o mascarado repousa sobre as toneladas de explosivos que destruirão o parlamento. Novamente Tchaikovsky invade as ruas da cidade. O símbolo máximo do poder é então explodido espetacularmente. Mistura de ópera, implosão e Réveillon de Copacabana. Os milhares de cidadãos mascarados assistem entusiasmados. Porém, mais uma vez, apenas assistem. Nenhuma envolvimento prático. Somente mais do mesmo exercício contemplativo, impotente por natureza, com o qual, aliás, estão bem acostumados. E essa contemplatividade coletiva, é preciso lembrar, é o espaço de conforto excelente à atividade dos opressores.

Agora, se o herói mascarado, em vez de presentear os milhares de cidadãos com um belo figurino, tivesse lhes ensinado o caminho da revolução; em vez de meramente ter vestido adequadamente a plateia, tivesse feito dela a atriz coletiva e dona do palco da mudança; em outras palavras, se tivesse dividido entre todos eles as toneladas de explosivos que destruiriam o poder opressor, para que cada um levasse consigo e detonasse uma parcela da pólvora, certamente teria feito deles parceiros, senão da mudança efetiva, ao menos de sua tentativa. Não obstante, o mascarado-mor, desde o início do filme, monopolizou toda a ação e manteve aqueles a quem a revolução realmente interessava nos assentos de suas reacionárias passividades contemplativas. O V de Vingança bem poderia ser de Vaidade.

É óbvio que no dia seguinte, no dia “R” de Ressaca, essa multidão alienada, porém entretida, não saberia o que fazer com a ruptura produzida pelo espetáculo que, em verdade, apenas assistiram. Se o tivessem produzido e encenado ativamente, isto é, se tivessem se embebedado com a revolução e explodido eles mesmos o poder que lhes oprimia, haveria alguma esperança. Entretanto, ineptos à manutenção de uma mudança que sequer foram capazes de propiciar, quem os comandará no “day after” será o poder atingido, pois este sabe muito bem como emendar fraturas, tal é a perícia da reação.

Porventura não aconteceu o mesmo na famigerada primavera brasileira de 2013, com milhares de cidadãos ironicamente usando a mesma máscara de Guy Falks e querendo o mesmo fim do estado explorador, mas que, no entanto, tiveram o seu dia seguinte reconquistado e a sua ressaca administrada justamente pelos poderes que queriam ver destruídos? Quem foi o mascarado solitário que incitou as hordas de brazukas a vestirem e desfilarem sua máscara para que realizassem a “revolução” dele, e não a que os próprios brasileiros necessitavam empreender coletivamente? Se atentarmos ao dia seguinte, e a quem o dominou e domina até aqui, temos que é a direita brasileira.

Žižek, na mesma entrevista, diz que, na disputa eleitoral americana, o absurdo imperialista de Donald Trump tem ao menos a virtude de ter fortalecido o socialismo de Bernie Sanders. Sem Trump, os esquecidos ideais socialistas não teriam sido reacesos com tanta intensidade no coração do debate político daquele país. E isso porque que toda ação tem uma reação de igual intensidade, porém, de sentido contrário. As flores de 2013, ingenuamente, desconsideraram essa dinâmica. Sua explosiva pretensão revolucionária, no dia seguinte, foi confrontada por uma tensão reacionária contrária, e o que é pior, de maior intensidade. E para não dizer que a metáfora da lei da física não se aplica aqui, esse diferencial desfavorável à revolução atina justamente à ingenuidade dos pretensos revolucionários em respeito à sempiterna dialética da luta.

A atual vitória da direita brasileira, todavia, não é o fim da história. Se a ação de 2013 acendeu a reação de 2016, a “ação reacionária” de 2016, por sua vez, outra coisa não é que o germe de uma “reação revolucionária” próxima, assim como, diz-nos Žižek, o capitalismo galopante de Trump foi capaz de recolocar o socialismo de Sanders em marcha no núcleo duro e capitalista que são os Estados Unidos. Agora, uma coisa é fundamental: só haverá uma verdadeira revolução que atravesse o porre da ruptura inicial e prossiga virtuosa na ressaca subsequente se ela for empreendida ativamente pelos que dela precisam. Do contrário, se confiarmos em heróis mascarados espetaculares e promissores somente, outro destino não teremos que o de espectadores passivos de uma revolução que apenas mentirosamente era para ser nossa.

Atualmente, as mais expressivas, todavia ainda ineficazes, reações da esquerda em relação à ostensiva “ação reacionária” da direita oligárquica brasileira são as milhares de hashtags-redes-sociais e os sobretudo recreativos encontros do tipo OcupaMinc, nos quais um artista ou um intelectual qualquer -que bem pode estar fazendo o papel do revolucionário mascarado solitário de V de Vingança- coloca suas palavras de ordem enquanto a massa o assiste e aplaude, passiva e contemplativamente. As hashtags mentem muito bem que somos nós que estamos discursando, e para o mundo todo; os shows musicais das ocupações nos iludem de que estamos todos afinados em um objetivo único. No entanto, os selfies que de lá saem direto para as timelines individuais e a conta da cerveja pós-manifestação depõem contra essa pretensa harmonia.

E isso porque essas ações são mais estéticas do que políticas, o que, mutatis mutandi, é o calcanhar de Aquiles das esquerda atual. A dimensão estética é a da sensibilidade, ou o que é o mesmo, a da subjetividade. Envolvidos subjetivamente com a revolução, somos apenas uma multidão de exércitos de um indivíduo só, cada um lutando solitariamente por seus próprios ideais, e, muitas vezes, uns contra os outros. Já o envolvimento objetivo com a mudança, esse é e só pode ser político. Quanto mais não seja, porque a política nasce da superação do solipsismo subjetivo, estético, em função de uma objetividade capaz não só de compartilhar universalmente a condição particular de cada um, suas necessidades e potencialidades individuais, como também e principalmente, de planificá-las todas em busca de suas realizações. Afinal, a essencialidade da revolução não está na ruptura que promove, mas nas vindimas que é capaz de oferecer, uma vez que a vindima engloba o período entre a colheita das uvas -o porre revolucionário- e o inicio da produção do vinho -a ressaca da reorganização da vida cotidiana, como gostaria Žižek.

 

A desafiadora revolução socialista tupiniquim

socialismo tupiniquim.jpg

Mais uma vez, na história do Brasil, nunca estivemos tão longe da revolução socialista, isto é, do início do fim da exploração da maioria dos indivíduos pela minoria. O mote antissocial da vez, obviamente, é o golpe de estado dado pela oligarquia político-econômica tupiniquim. Antidemocraticamente, medidas reacionárias&austeras estão sendo verticalmente aplicadas contra a população para que a colossal riqueza produzida por ninguém menos que essa mesma população siga sustentando confortavelmente os velhos privilégios das minoritárias classes dominantes.

Será que o povo brasileiro não sabe fazer revolução? Ou será simplesmente porque, conforme diz o historiador, filósofo, sociólogo e economista baiano Edmundo Moniz, “Não há um manual da revolução. A revolução é uma tempestade histórica e as tempestades não se repetem igualmente”? Em uma palavra, o brazuka erra quando tenta revolucionar a sua vil realidade ou não sabe experimentar formas revolucionárias? Ou nem sequer tenta? O que há no “clima” brasileiro que mais facilmente repete os furações reacionários do que precipita a “tempestade” revolucionária de que tanto o povo desse país necessita?

Moniz, corroborando com Marx e Trotsky, entende por “revolução a mudança das estruturas sociais que termina com a exploração do homem pelo homem e cria condições históricas para a passagem da sociedade de classes para a sociedade sem classes”. A teoria marxista, entretanto, baseada na particular evolução histórica do velho continente, enxerga a revolução socialista como um interregno estratégico que procede da escravidão, do feudalismo e do capitalismo, necessariamente nessa ordem, e que precede o comunismo, ou seja, o fim da exploração da maioria pela minoria.

Bela teoria que, não obstante, só não tem como vingar no Brasil porque neste país, que nasceu colônia e que cresceu dependente, as formas econômicas não seguiram a ordem da evolução econômica e social europeia. Usando impertinentemente as palavras de Trotsky, o Brasil é “um amálgama de formas arcaicas e modernas”. Com efeito, temos escravidão, feudalismo e capitalismo convivendo, profunda e desarmoniosamente, na realidade econômica brasileira. Pior ainda, a realidade econômica do Brasil foi construída invertendo-se o processo histórico europeu.

Com efeito, foi o capitalismo, mais evidentemente seu credo econômico mercantilista, que trouxe os portugueses ao Brasil. E uma vez conquistada esta terra, o jovem e vigoroso capitalismo português, anacronicamente, implantou o velho e caduco feudalismo na divisão do território em capitanias e sesmarias, que eram “doadas” a administradores mediante relações pessoais com a realeza portuguesa. E mais anacronicamente ainda, para sustentar seu sistema de relações pessoais, os portugueses encravaram a escravidão no âmago do sistema feudal tropical, em uma tácita inversão do que havia acontecido no velho mundo.

Por isso a revolução socialista tupiniquim não tem como vingar conforme dita o ideário velho-mundista. Se quisermos proceder conforme Marx, são necessárias pelo menos duas revoluções efetivas antes do passo socialista, a feudal, que dá cabo da escravidão, e a capitalista, que por sua vez supera o feudalismo. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), durante muitos anos insistiu nessa lógica, sustentando que primeiro deveríamos superar o feudalismo, depois a democracia burguesa, para só então termos condições históricas para a revolução socialista.

No entanto, dada a particularidade da realidade histórica brasileira, não podemos nos dar ao luxo de priorizarmos uma besta econômica por vez. Lutar frontal e exclusivamente contra o velho e resistente feudalismo, ou contra o maduro e vigoroso capitalismo, separadamente, é dar as costas a um inimigo ou outro. Criticamente, é matar um sistema desigualitário e deixar o terreno livre para o outro. Sinuca de bico! Por isso, na Brasilândia, o fim da exploração das massas pelas elites significa lutar simultânea e frontalmente contra um inimigo múltiplo: a escravidão, o feudalismo e o capitalismo.

Para fazer a revolução socialista no Brasil em um único movimento, temos de esquecer a clássica racionalização estrangeira e inventar formas revolucionárias totalmente nossas, que tenham capacidade para superar de uma só vez os muitos passados e vícios que insistem no mui viciado presente brasileiro, e que impedem a virtuose de um futuro igualitário. Como, então, será possível a revolução socialista no Brasil?

Para, Moniz, isso é possível somente com a organização de um verdadeiro partido de massas, de uma vanguarda consciente que esteja disposta a preparar o povo para a República Democrática Socialista. Entretanto, porventura temos no Brasil um partido que represente plenamente os interesses da maioria explorada? Um partido que assuma a vanguarda das transformações sociais? Infelizmente não.

O PCB, embora dono do melhor ideário, está distante léguas de ter oportunidade de ser pragmático. O pragmatismo do Partido dos Trabalhadores (PT), aventurado nos últimos 13 anos, está longe de ser ideal, visto que engordou tanto as feras exploradoras como as presas exploradas.  Em uma palavra, tornou o lobo mais forte e as lebres mais suculentas. Não temos, no Brasil, portanto, partido ou vanguarda capaz de iniciar a revolução, pois não há força política organizada para efetivamente socializar a terra, os meios de produção, os bancos, a mídia; para romper o monopólio do comércio exterior e implantar a planificação da economia nacional.

Enquanto isso, carentes de um pensamento organizado e vanguardista o suficiente capaz de mobilizar as massas no sentido da prática revolucionária efetiva, e sob as vis égides do desenvolvimento e do crescimento econômico, as velhas estruturas exploratórias dominam o país. E o atual golpe de estado brasileiro é o que senão a dominação do passado sobre o presente? Com efeito, a oligarquia política brasileira ainda encontra terreno livre para, mediante o seu atual golpe, representar os interesses do capital internacional por meio do endividamento do povo local.

Por acaso a atual elite golpista não está repetindo o famigerado “milagre brasileiro” da década de 1970, quando, em nome do desenvolvimento, o Brasil tomou emprestado e enfiou goela-abaixo do povo mais de cem bilhões de dólares? Devíamos três bilhões de dólares em 1964, antes do golpe militar. Duas décadas depois, devíamos cem vezes mais, e em dólares inflacionários! Eis a força reacionária atuando livremente no espaço social que o pensamento e a ação revolucionários ainda não ocupam contundentemente. E como não há força organizada para acabar com a crise, a velha estrutura oligárquica segue administrando o Brasil, sua desigualdade estrutural,  e a crise econômica que, em essência, lhe favorece exclusivamente.

Entretanto, para Moniz, o Brasil tem condições econômicas e materiais para o socialismo. Só não tem ainda condições políticas para tal, pois falta-nos um partido verdadeiramente popular que possa assumir o papel de vanguarda, instituindo conscientemente a república democrática socialista. Esse é o grande impasse do Brasil. Enquanto isso, a oligarquia nacional não resolve as crises social política e econômica do país precisamente porque tais crises lhe engordam e fortalecem.

Uma vez que a prática é o cerne de qualquer revolução, não basta apenas uma ideia revolucionária, por mais perfeita que seja. Aí devemos dispensar, senão toda a teoria marxista, ao menos a parte que não coincide com a evolução histórica brasileira. Do velho mundo, contudo, devemos manter a ideia de que é preciso de uma vanguarda política revolucionária capaz de motivar o povo a finalmente impor seus interesses sobre os das classes dominantes. Aí teremos iniciado a verdadeira revolução socialista, e não só pensado nela. Para tanto, relembra-nos Moniz, é preciso que a teoria coincida com a prática e a prática confirme a teoria”.

Todavia, como dito antes, no Brasil formas econômicas e políticas arcaicas e modernas coexistem desde sua colonização até hoje. Numa metáfora de Trotsky, “os selvagens passaram da flecha ao fuzil de um golpe, sem percorrer o caminho que separa no passado estas duas armas”. Ou seja, os colonizadores portugueses na américa não começaram a história pelo princípio”. Coincidir prática e teoria em terras tupiniquins, portanto, é um desafio sui generis que não pode se pautar por ideários e experiências extrínsecos. Nossas teoria e prática revolucionárias devem ser outras que as do velho mundo, pois a nossa história é outra, muito embora historicamente explorada por aquelas.

Do contrário, em outra metáfora, estaríamos obrigando o índio, nu e oprimido, a usar ou um uniforme soviete, ou a cartola da velha e distante intelectualidade europeia. Ou seja, estaríamos representando uma revolução muito mais do que a praticando. E isso porque, segundo Moniz, “ a essencialidade da revolução encontra-se no conteúdo revolucionário de sua própria essencialidade”. A verdade e a efetividade da revolução socialista tupiniquim, por conseguinte, está na essência da realidade histórica brasileira: a coexistência anacrônica de escravidão, feudalismo e capitalismo em função dos interesses das classes dominantes.

No Brasil, todos esses inimigos históricos do povo devem ser superados de um só golpe. Passo bem maior e hercúleo do que o que Marx profetizou há quase um século e meio para a implantação do socialismo contra um único algoz, o capitalismo. Respeitando-se a essência do que se deu historicamente no Brasil é que encontraremos uma teoria, isto é, um pensamento que ponha as massas a praticar a defesa inarredável dos seus interesses, e em detrimento das velhas elites golpistas, que até hoje roubam a realidade para si. E quando essa teoria de vanguarda coincidir com a prática cotidiana do povo brasileiro, a angusta luta por igualdade será uma coloquial igualdade, não mais na luta, mas na existência.

Servidão informacional e a cifra de sua revolução

infoslavery.jpg

A informação na contemporaneidade tem seus céu e inferno na falta de limites. Em primeiro lugar, devido à tecnologia computacional e ao advento da internet que, juntos, permitem que se produza, divulgue e acesse montantes astronômicos de informação, à distância de um clique, bastando apenas uma conexão com a World Wide Web, isto é, a rede. O céu informacional contemporâneo é justamente a democratização da informação aberta pelo mundo da internet. O inferno, em contrapartida, é que tamanha abertura permite que ideologias totalizantes se valham dessa aventurosa horizontalidade democrática para alcançar, ao mesmo tempo e contundentemente, indivíduos do mundo inteiro. Uma boa metáfora para isso é o soldado que, no campo de batalha e de posse de uma metralhadora giratória potentíssima, tem poder para atingir todos a sua volta. Dessa metáfora devemos guardar que, dependendo da munição que é disparada pela potencialidade da comunicação na contemporaneidade internética, podemos conquistar a tão necessária liberdade tanto quanto sermos sujeitados verticalmente à servidão informacional.

Em A Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade, Manuel Castells discorre sobre essa ambiguidade inerente às tecnologias da Era da Informação. De um lado, tratando do ideal de liberdade na democratização da informação. De outro, falando do atravessamento de tecnologias de controle -comerciais e governamentais- no sentido vigiar, investigar e identificar todos os terminais envolvidos nessa interconexão democrática. A Galáxia da Internet do sociólogo espanhol refere-se a A Galáxia de Gutenberg, obra em que Herbert Marshall McLuhan, um destacado educador, intelectual, filósofo e teórico da comunicação canadense, conhecido por vislumbrar a Internet quase trinta anos antes de ser inventada, responsável pela célebre máxima: “o meio é a mensagem”. McLuhan dizia que a prensa, na verdade a imprensa, revolucionou o mundo e a comunicação. Castells, por sua vez, e mediante sua referência ao pensamento do canadense, pretende apontar que a Internet é a nova prensa, a nova forma da revolução informacional na contemporaneidade.

Para tanto, Castells investe na análise das interações entre Internet, economia e sociedade que revolucionaram o velho conceito inerente às sociedades, qual seja, a vida em rede. Para o sociólogo, a Internet tem o poder de transformar o conceito de rede, essa antiga e essencial ferramenta de organização humana, seja em um modelo centralizado, vertical e de controle, seja em uma plataforma descentralizada, horizontal e flexível. A ambiguidade da internet e da informabilia que a constitui é tácita ao percebermos que, em rede, tanto se pode manipular as massas –e portanto e a priori cada indivíduo- com doses certeiras de informação a serviço do reacionarismo, quanto abrir um horizonte no qual os indivíduos/usuários podem revolucionar inclusive a proposta inicial em função da qual a própria internet foi criada.

Castells aponta que a livre troca de arquivos tipo MP3 e MP4, que aliena as grandes indústrias fonográfica e cinematográfica da produção, da distribuição e do consumo maciço de música e filmes; a panfletagem política e contracultural ilimitada; bem como a ágora de cultura e de entretenimento que se abre com a proliferação de revistas e jogos on-line, são provas de que os usuários podem fazer da rede -que não existe sem eles- algo que lhes convenha absolutamente. No entanto, é preciso apenas observar, quiçá vencer os poderes totalizantes que ao mesmo tempo e mediante a mesma rede tentam fazer dessa intercomunicação assaz democratizada e de todos os seus terminais/usuários massa de manobra subserviente aos seus interesses.

Em relação a esse inimigo a ser vencido, que com todos os bits tenta fazer da democratização da informação uma ferramenta tirânica sua, vale trazer à discussão a análise que o filósofo Gilles Deleuze fez da diferenciação foulcaultiana entre as sociedades disciplinares e as de controle, ambas tentativas de alcançar os indivíduos que compõe a sociedade. Conforme Deleuze em POST-SCRIPTUM – sobre as sociedades de controle, Foucault situa as sociedades disciplinares desde os séculos XVIII e XIX, cujo apogeu, entretanto, se deu no início do século XX. O que é importante saber dessas sociedades disciplinares é que nelas os indivíduos não cessam de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis inexpugnáveis: a família, escola, a caserna, a fábrica, o hospital, a prisão, e assim por diante. Disciplinados&Confinados, desde a maternidade até o cemitério seria o slogan perfeito para esse tipo de sociedade.

Porém, ressaltam os dois filósofos franceses, a partir do início do século XX, o mundo observa a crise generalizada de todos os meios de confinamento. Em outras palavras, a prisão, a fábrica, a escola, e até mesmo a família passaram a ser “espaços” cujo confinamento, no entanto, viabilizava não a disciplina, mas o seu contraexercício. Esses claustros disciplinares passaram a se comportar como bunkers de resistência que permitiam o exercício da indisciplinaridade. Aqui, basta imaginar um sujeito conectado ao mundo pelo seu smartphone  dentro de um desses espaços das sociedades disciplinares. Como seria controlado se, de fato, ele não está ali, ainda que virtualmente fora dali? A crise das instituições disciplinares tradicionais, portanto, deveria ser superada pela implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. E para Foucault as sociedades de controle foram instituídas para evitar que os indivíduos gozassem plenamente de liberdade. Com efeito, coloca Deleuze, as sociedades de controle substituíram as sociedades disciplinares. Para o filósofo, Foucault identifica o futuro à formas ultrarápidas de controle, não mais claustronômicas, mas agorísticas, capazes de se darem ao ar livre, e por que não dizer wireless, em substituição à antiga disciplinaridade que operava mediante sistemas materiais e fechados.

Com Deleuze podemos perceber que a cada uma destas duas sociedades –a disciplinar e a controladora- corresponde certos tipos de ferramental, instrumento, aparato, maquinário para cumprir seus fins. Não que as máquinas, os aparatos em si mesmos, sejam determinantes, aponta o francês, mas porque são as expressões genuínas das formas sociais capazes de lhes dar nascimento e utilizá-los. A disciplina e o controle são a priori ideológicos. Todavia, imediatamente maquínicos.

As antigas sociedades aplicavam suas soberanias mediante máquinas simples movidas a alavancas, roldanas, cordas. A forca e a espada, em suma, o cadafalso espetacular dos príncipes, bem evidenciado por Foucault em Vigiar e Punir, são exemplos dessa simplicidade instrumental, todavia eficientíssima, nas mãos do poder totalizante. Já as sociedades disciplinares que as sucederam exerciam soberania através de equipamentos menos espetaculares, outrossim suficientemente eficientes,  como a rígida organização dos espaços nos quais os indivíduos todos passavam as suas vidas. Aqui temos o panopticismo disfarçado de escola, de prisão, de igreja e até mesmo de família: equipamentos que tiraram os indivíduos da inobservância pré-punitiva da Era Cadafálsica Principesca para então alocá-los em um sistema de vigilância disciplinar indoor cujo Calcanhar de Aquiles, entretanto, era o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem.

Daí a crise das sociedades de vigilância disciplinar da qual falam os filósofos, e a qual gerou a necessidade que uma nova forma de dominação coletiva: a sociedade de controle. Com efeito, as sociedades de controle se valem de máquinas de uma terceira espécie: máquinas de informática; computadores; a rede em si; cujos calcanhares de fragilidade, todavia, são dois. Passivo: a interferência constante e o registro a priori de todas as atividades -virtuais e reais- dos indivíduos/usuários, o que os vulneralibiliza para qualquer observância e punição a posteriori. E ativo: a pirataria, a introdução de vírus e o hackeamento intempestivo.

Aqui é preciso colocar que a ação das sociedades de controle sobre os indivíduos que a compõem se dá de modo mais efetivo do que nas sociedades disciplinares, e mais ainda que nas punitivas-cadafálsicas, porque o maquinário, o aparato totalizante-controlador é mais obscuro aos terminais individuais. Paradoxalmente, mais obscuros e mais transparentes ao mesmo tempo. Cordas, roldanas, espadas, salas de aula, celas prisionais e torres de vigilância são estruturas de fácil visualização e compreensão. De inimigos físicos/corpóreos podemos fugir mais facilmente. Já de um algoz que virtualiza-se e age mediante trincheira informacionais apenas, fica bem mais difícil escapar, quiçá reconhecê-lo. Ainda mais em uma sociedade para a qual a informação é a um só tempo o chão físico e o éter metafísico que o encima. Eis a contemporaneidade.

Para dar corpo a essa invisibilidade estratégica dos aparatos totalizadores da sociedade de controle é de muita ajuda transcorrer as ideias que Vilén Flusser traz na sua obra Filosofia da caixa preta. Nesta obra temos a análise da informação em forma de imagem, exemplificada centralmente com a fotografia, cuja ideia chave, entretanto, é a da imagem técnica –em contraposição à imagem artística-artesanal-, e cujo aparato é a máquina fotográfica, instrumento que, mesmo desconhecida a sua maquinagem, gera o real que consumimos –imageticamente. Para Flusser, até mesmo o fotógrafo, que domina o aparelho –a máquina fotográfica- na verdade conhece apenas o input e o output dessa caixa preta. Resultado: tanto os produtores quanto os consumidores desse mundo imagem técnica desconhecem o que se passa no interior da caixa preta, do aparato, da máquina central da sociedade de controle contemporânea.

Embora Flusser ressalte que as imagens são mediações entre homem e o mundo, com o propósito de representar esse mundo, as imagens técnicas –produzidas pelas caixas pretas- são janelas e não imagens. O observador-usuário, em vez de enxergar nas imagens técnicas as janelas imagéticas que denotam o aparato misterioso que as produz, bem como as suas pretensões totalizantes, em vez disso trata o real enquanto aquilo que seus olhos veem apenas, como se o que é visto fosse a realidade última, e não o sistema social de controle agindo através dessas imagens. As imagens técnicas, a qualidade e democratização que elas envolvem, têm o poder de fazê-las passar pelo real ele mesmo, fazendo-nos esquecer de que são apenas aparelhos ideológicos fortíssimos. Por isso, salienta o filósofo, “o que vemos ao contemplar as imagens técnicas não é ‘o mundo’, mas determinados conceitos relativos ao mundo”, conceitos esses já ideologizados, instrumentalizados para manter todos os que o observam imageticamente sob controle total; caixapretificados.

Flusser é categórico ao afirmar que a tarefa primordial das imagens técnicas é estabelecer o código geral que reunifique a cultura, que arranque os objetos da natureza e os aproxime dos homens. No entanto, mediante imagens técnicas produzidas por caixas pretas, essa aproximação significa a modificação estratégica de tais objetos. A ponto de, diz o filósofo, a fotografia passar a ser a realidade ela mesma. A um só tempo a desobjetificação dos objetos e a estratégica objetificação de significações que servem ao sistema de controle social. Ademais, tal inversão do vetor da significação caracteriza o mundo pós-industrial, arremata o autor tcheco.

E se na contemporaneidade é a fotografia do real o real ele mesmo, temos que, fiéis a Flusser, a decadência do objeto é a emergência da informação acerca dele. Pragmaticamente: pensamos e vivemos como as imagens técnicas –produzidas sabe-se lá como e por quem. As imagens técnicas pensam por nós; vivem em nós; são o mundo no qual vivemos. Resultado: somos vítimas da caixapretice aparelhística produtora de símbolos de controle. Mas, o filósofo não nos deixa esquecer: “a aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas quanto o são todas as imagens”. Dessimbolizá-las, reificá-las, decifrá-las, portanto, é reconstituir o real que tais imagens significam verdadeiramente. Esse real a ser decifrado, porém, é muito menos os objetos em si que as imagens técnicas representam do que a ideologia de controle por trás dessas representações técnicas do real, justamente o que permanece caixapretificado.

Em um mundo no qual o próprio real outra coisa não é senão as imagens técnicas que o traduzem e reportam massivamente, o real a ser dessimbolizado é justamente a intencionalidade oculta na eleição dos objetos que vivem nas imagens técnicas –que, de um ponto de vista marxista, é o velho fetiche da mercadoria-; os enquadramentos desses objetos nessas imagens técnicas –os rígidos pontos-de-vista que esse fetichismo imagético do real impõe-; e sobretudo a reprodução ao infinito e a distribuição em rede desses produtos técnicos ideologizados e essencialmente caixapretificados. “Toda crítica da imagem técnica deve visar o branqueamento dessa caixa”, indica Flusser.

Para relacionar Flusser à Castells sem muita delonga, uma importante colocação do primeiro: “programaticamente, aparelhisticamente, imageticamente … estamos pensando do modo pelo qual ‘pensam’ os computadores”. E para não deixar Deleuze e Foucault de fora dessa relação, cabe dizer que pensamos e vivemos conforme a nova noção de rede porque a sociedade de controle precisa que assim seja. Aqui vale apontar o alinhamento entre o tcheco e os dois franceses. Se para aquele “a cultura da Internet é a cultura de seus criadores”, é porque, para estes, a internet é o corpo que controla as sociedades contemporâneas. A rede informacional contemporânea, portanto, seria a própria sociedade de controle em forma de realidade, em forma de mundo, de imagem técnica indecifrabilíssima. A caixa-preta-mor, diga-se de passagem. Ou, dizendo melhor com as palavras de Flusser, “complexo de aparelhos, de caixa preta composta de caixas pretas”.

Agora, se, como colocou o pensador tcheco, a tarefa da filosofia da fotografia é apontar o caminho da liberdade em relação às imagens técnicas e à caixapretice do real ideologicamente imageticizado, pois, para Flusser, essa filosofia é a única revolução ainda possível -e urgentíssima!-, podemos dizer, em uma paráfrase, que a tarefa da filosofia da informação é fazer o mesmo, isto é: apontar o caminho da liberdade em relação à caixapretificação da produção e da distribuição da informação, outrossim produto ideológico das sociedades de controle, pois, para essa filosofia da informação, esse é o único movimento verdadeiramente revolucionário, e não mesmos urgente. Como, então, baseados na teoria de Flusser e nos apontamentos de Castells, Deleuze e Foucault, tal filosofia revolucionária é possível, ademais a partir de dentro da sociedade de controle informacional?

A primeira coisa a atentar é que, seguindo a ideia de Flusser, é o homem, e somente ele que pode produzir informação, bem como transmiti-la e guardá-la. E se são os próprios homens que são vitimados pela informação mediada pela sociedade de controle, é porque eles mesmos oferecem munição ao seu algoz. Assim como disse Étienne de La Boétie, qual seja, que os mil olhos e mil braços do tirano não são instrumentos que de fato sejam dele, visto que ele é um homem como qualquer outro, com dois olhos e dois braços apenas, mas são os mil braços e mil olhos dos que são tiranizados por ele, sequer é necessário os tiranizados irem até o forte do tirano para matá-lo. Basta que não mais doem seus braços e olhos, afinal, a arma com a qual a sociedade de controle nos mantém cativos dos seus desígnios e aparelhos, isto é, a informação, é produzida por nós, homens. Somos nós que produzimos as condições para a nossa própria servidão informacional: a informação, os aparelhos e as imagens técnicas com os quais somos subjugados.

Castells, entretanto, nos diz que as novas formas de interação social na Era da Internet têm poder para substituir as comunidades estabelecidas estrategicamente pelas sociedades de controle por comunidades baseadas em afinidades alheias a desígnios ideológicos extrínsecos. Cabe aqui trazer o anarquismo impertinente de Hakim Bey que constitui o seu conceito de TAZ (zona autônoma temporária). Mesmo que a sociedade de controle informacional seja A Zona de Dominação Absoluta na contemporaneidade, dentro dela essas redes sociais baseadas em afinidades alheias a desígnios ideológicos extrínsecos podem funcionar como  TAZes, dentro do inimigo. Senão matando-o, ao menos reduzindo, ainda que efemeramente, sua onipotência.

Para tanto, aponta Castells, é fundamental que a arquitetura de interconexões seja ilimitada, descentralizada, distribuída e multidirecional em sua interatividade; que todos os protocolos de comunicação e suas implementações sejam abertos, distribuídos e suscetíveis de modificação. Claro, não devemos esperar que a própria sociedade de controle faça isso pelos controlados. São estes que, anárquica e coletivamente, devem abrir suas TAZes informacionais impertinentes no cerne da TAZ Totalitária. Afinal, onde há uma zona autônoma, ainda que temporária, na qual a sociedade de controle informacional não pode nem sacar nem incutir informações, tampouco verificar as que estão sendo trocadas lá, há o enfraquecimento do sistema de controle da sociedade contemporânea. Fundamental todavia, é que essa máquina, esse aparato, esse instrumento revolucionário que é a TAZ seja tão caixapretificada à sociedade de controle quanto essa mesma sociedade o é para os indivíduos que ela, por sua vez, controla opacamente. Usar a arma do inimigo contra ele mesmo! Esse é o passo mais econômico para a revolução.

Nesse sentido, o que podemos tirar de Castells é a proposta de redefinição do conceito de comunidade, baseada não mais nos ordenamentos ditados pelos sistemas de controle, mas no apoio aos próprios indivíduos tiranizados por tal ditadura e aos laços informacionais que eles podem travar entre si, a despeito da sociedade de controle que primeiramente os uniu/enclausurou inexoravelmente em torno da informação com o propósito exclusivo de controlá-los. Para o espanhol, o novo padrão de sociabilidade deve ser caracterizado pelo paradoxal individualismo em rede. Esta deve ser a nova forma dominante de sociabilidade contra a dominação das sociedades de controle informacionais. Para o autor, essa revolução pode se dar mediante a cooperação entre leis, tribunais, opinião pública, mídia, responsabilidade coorporativa, agências políticas, e, sobretudo, a partir da restauração da confiança recíproca entre os próprios indivíduos e, universalmente, entre os povos e seus governos. E para Castells isso é possível porque dependem exclusivamente da ação humana.

Deleuze reforça essa revolução dizendo que não devemos desistir porque estamos diante de uma sociedade –de controle- mais opaca que outras –a disciplinar, por exemplo. O francês coloca que em cada uma delas se pode enfrentar as sujeições e construir a liberdade. Portanto, nas palavras de Deleuze, “não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”.

Que armas, todavia, são essas? Ora, se as sociedades disciplinares se estruturavam na assinatura e na localização do indivíduo em uma massa, e nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura nem um número, mas uma cifra, isto é, uma senha, nossas armas contra o controle informacional é, retrazendo Bey à discussão, estabelecermos TAZes cifradas que possibilitem o acesso dos indivíduos anarquistas informacionais à informação que eles criam e que habitam suas TAZes. Contudo, mais importante de tudo, que rejeitem, que vetem, que cifrem o acesso do controle externo sempre que ele tentar adentrá-las. Se nas sociedades de controle das quais queremos nos ver livres os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, nas sociedades revolucionadas pós-controle as TAZes informacionais devem ser indivisíveis, porque caixapfetificadas estrategicamente àqueles que querem tirar delas apenas amostras para dadificá-las. Por quê? Por que dentro da TAZ, assim como dentro da sociedade, é a vida que habita, e é ela que importa e que não pode ser reduzida. Aqui é fundamental saber o que realmente importa e o que é primeiro no conceito “vida em rede”. Vida, obviamente.

Para concluir, a revolução das sociedades de controle começa pela percepção de que, nas palavras de Flusser, “o que vale não é determinado ponto de vista, mas um número máximo de pontos de vista”. Como então instituir essa plurivocidade de perspectivas no cerne das monológicas sociedades de controle? Fixando-nos na metáfora da fotografia que perpassa a Filosofia da caixa preta, contra essa sociedades de controle foucaultianas,  que outra coisa não querem senão fazer do real propriedade sua, a frase do pensador tcheco: “a distribuição da fotografia ilustra, pois, a decadência do conceito propriedade”. Afinal, ainda nas palavras do autor, “a práxis fotográfica é contrária a toda ideologia; ideologia é agarrar-se a um único ponto de vista, e o fotógrafo age pós ideologicamente”, ou seja, para além da ideologia que o quer controlar. Em suma, quanto mais houver indivíduos fotografando, tanto mais o sistema que quer dominá-lo será incapaz de decifrar o mundo de fotografias que eles produzem para si.

Se, como disse Flusser, “fotografias nos cercam”, porém, “toda fotografia individual é uma pedrinha de mosaico”, a Big Picture da realidade outra coisa não deve ser além do resultado mosaico das fotografias do real que cada indivíduo faz. Todavia, se essas imagens-informações que somente nós, homens, trazemos ao mundo, com as quais aliás as sociedades de controle nos dominam, não forem cifradas à essa mesma sociedade tirânica, ela fará, obviamente, com que o real seja ou o recorte, ou a rediagramação desse material que imanentemente produzimos.

Hipostasiando  o que disse La Boétie, que os mil braços e mil olhos do tirano são os braços e olhos dos seus mil súditos, com Flusser podemos dizer que as mil imagens técnicas do sistema de dominação são as mil imagens individuais de cada um dos dominados; com Castells, que os  mil nós da Galáxia da Internet Total são os mil usuários/terminais dessa mesma rede internética; e, por fim, com Deleuze e Foucault, que as mil informações com as quais as sociedades de controle subjugam seus mil controlados são as informações produzidas, mais ainda, encarnadas, imanentemente, por esse mil controlados. Basta, portanto, atendendo ao conselho de La Boétie: não darmos ao tirano nossos braços e olhos, melhor dizendo, nossos nós na rede da internet, nossas imagens individuais, nossas informações. Em uma palavra, devemos cifrar-nos contra os sistemas que tentam nos controlar. Já entre os “anarquistas” beyanos libertos do controle externo no interior seguro de suas TAZes impertinentes, código aberto e infinito, pois assim deve ser a vida.

Defendendo nossos próprios algozes

20ago2015---manifestantes-caminham-por-rua-de-belem-capital-do-para-estao-reunidos-cinco-partidos-pt-psol-pc-do-b-pcr-e-pcb-alem-disso-cinco-entidades-sindicais-participam-da-mobilizacao-1440084584973_615x300.jpg

A democracia brasileira foi golpeada. O Estado brasileiro foi furtado. E o que é pior, por um bando de oligarcas corruptos que só fazem desgovernar o país. Apesar do calamitoso desgoverno golpista, o povo, golpeado e furtado, segue trabalhando, pagando suas contas, dando aulas nas escolas e universidades, dirigindo ônibus e metrôs, ou seja, tocando o Brasil. Agora, imaginemos que se não houvesse esse deliberado desgoverno golpista, isto é, se essa corja corrupta que só visa seus interesses opressores e minoritários não estivesse no comando do país, quão melhor seria o Brasil nas mãos dos brasileiros? Indo mais longe, se desinvestíssemos completamente da própria democracia e do Estado, quão menos oprimidos estaríamos?

A população brasileira que reclama por “sua democracia” golpeada e por “seu Estado”  assaltado age mais por ignorância do que por conhecimento do que, em essência, são a democracia e o Estado modernos. Se entendesse que ambas as instituições são instrumentos excelentes e históricos da burguesia e para a burguesia, e intempestivamente deixasse de clamar pela restauração dessa democracia e desse Estado, certamente enfraqueceria os seus algozes no que eles têm de mais estratégico.

Como, por conseguinte, tornar tácito que o Estado, na sociedade capitalista, assegura apenas o lucro e a acumulação do capital nas mãos da burguesia? Como entender definitivamente que a democracia é a forma através da qual todos são convencidos a lutar pelos interesses de uma minoria empoderada? Por que ainda fazermos questão de nos alienar do fato de que a burguesia não é democrática altruisticamente; que somente investe na democracia enquanto lhe é conveniente? Porventura o golpe tupiniquim não deixa isso escancaradamente claro a todos?

Parece que ainda não, visto as defesas da democracia e do Estado cada vez mais presentes nas ruas do Brasil depois do golpe. Entretanto, se déssemos ouvido ao que disse Marx, por exemplo, que o Estado moderno não é senão um comitê administrativo dos negócios da classe burguesa, ou mesmo ao que sugeriu Lenin posteriormente, que, para a burguesia, a democracia é apenas a melhor máscara para a sua sempiterna tirania econômica, certamente não teríamos tantos clamores populares em favor desses opressores Estado e democracia burgueses.

Por que então ainda protestamos massivamente em favor de instituições que outra coisa não fazem senão institucionalizar a exploração da maioria em função dos interesses da minoria? Alienação é a melhor resposta. De que outra forma estaríamos tão eficazmente ignorantes do fato de que Estado significa ditadura; de que a democracia representativa que defendemos é a ditadura da burguesia; de que somos tão subjugados aos interesses burgueses quanto as sociedades feudal e escravocrata eram em relação aos interesses dos nobres e dos escravagistas, respectivamente?

A democracia representativa e o Estado moderno, obras primas da burguesia, servem apenas para administrar a crise permanente que é o capitalismo, sua essência. É necessário muita alienação para não ver que, democraticamente e instituído em Estado, o capitalismo primitivo da livre concorrência cresceu em forma de capitalismo monopolista; para então engordar e se tornar capitalismo monopolista de Estado; e, por fim, hoje em dia, viver em um corpo praticamente invencível chamado capitalismo monopolista de Estado transnacional? Ignorando as verdadeiras essências das instituições burguesas, clamando por democracia e defendendo o Estado, o povo só faz vitaminar o seus atuais opressores: a burguesia e o seu capitalismo.

Como agir diferente? Parece-nos radical demais fazer como os anarquistas, isto é, ser contra a existência do Estado, uma vez que, para eles, o Estado é o instrumento de opressão? E se entendêssemos que o Estado surgiu da divisão da sociedade em classes; que só com a extinção do Estado as pessoas não mais estarão cindidas da riqueza que elas mesmas produzem coletivamente; ser anarquista ainda assim pareceria tão impertinente? Um futuro livre da exploração do homem pelo homem, que deixe tanto os passados escravocrata e feudal quanto o presente capitalista para trás, exige que desinvestamos absolutamente das instituições exploratórias desse nosso presente, quais sejam, a democracia e do Estado. Só assim deixaremos de vez a nossa pré-história social.

Quais são, portanto, as nossas melhores armas contra a exploração do homem pelo o homem que até aqui fez a história da humanidade, e que hoje, nas vestes democráticas e no corpo do Estado, segue firme e forte? Pensar e agir, por certo. Todavia, há que se pensar e agir conjuntamente. Do contrário, sem perceber, não mais pensamos e apenas agimos de acordo com a cartilha dos nossos tiranos alienadores. Aqui é inevitável lembrar do que disse Marx nas suas Teses sobre Feuerbach, que “os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo de diversas formas, mas agora o que importa é transformá-lo”. Como pode o pensamento, melhor dizendo, a teoria, colaborar a prática revolucionária?

“A teoria é seca”, dizia Goethe no seu Fausto. O autor parece querer dizer que o pensamento não pode revolucionar a realidade, muito embora seu pensamento tenha sido inegavelmente revolucionário. Marx, entretanto, na sua Introdução à crítica da filosofia de Hegel, abre todos os caminhos revolucionários ao sustentar que “a teoria se converte em poder material logo que se apossa das massas”. Com efeito, para este filósofo, as massas tem poder de agir contra a exploração do homem pelo homem somente quando teoria e prática atuam em conjunto. Melhor dizendo, quando a teoria coincide com a prática e a prática confirma a teoria.

Por isso, diante do golpe brasileiro e do desgoverno que ele institui, pensar em outro regime que não o democrático e em outro corpo social que não o Estado, uma vez que são instrumentos essencialmente burgueses e opressores, é fundamental. São instituições outras –hoje ainda ideais, mas, oxalá, amanhã reais- que nos trarão a possibilidade de ação coletiva contra a exploração e o assalto que são o Estado e a democracia juntos. O povo brasileiro, que produz toda a riqueza do Brasil, mesmo golpeado e com um bando de ladrões incompetentes no governo, toca diariamente o país. De ação entendemos muito bem. Falta aliar essa ação impávida, colossal e cotidiana a um pensamento que lhe guie virtuosamente contra a opressão. E que pensamento é esse? Que democracia representativa e Estado não devem ser defendidos, mas superados.

Homens são políticos; mulheres, cosmopolíticas.

warlpiri
Imagem: Rosie Tasman Napurrurla

Lugar de mulher é na política? A resposta a essa pergunta é desafiadoramente afirmativa na contemporaneidade. Entretanto, ao longo da história, a coisa foi bem diferente. Desde o seu surgimento, na Grécia antiga, a política sempre foi coisa de homem. E se hoje a política não mais é exclusividade masculina, temos aí a prova material de que as mulheres tem plena capacidade para revolucionar a realidade. Não à toa, atualmente, metade do governo do Canadá é composto por mulheres. Sem se intimidar com o peso fálico do passado, o primeiro ministro canadense, Justin Trudeau, tem orgulho em dizer que no seu país é assim “porque estamos no século XXI”.

Etimologicamente, política vem de “pólis”, que em grego significa cidade. “Polites”, portanto, era o indivíduo que constituía a “pólis”. Não obstante, naquela época, somente os homens –brancos, livres e gregos- tinham o direito de ser “politikos”. E isso porque, como o poeta Hesíodo (750-650 a.C.) fez entender, o surgimento da política no mundo grego fundamentou-se nos ideais de homens e filósofos (atividade que também era exclusivamente masculina).

Antes da “pólis”, todavia, a vida se dava em núcleos familiares, os “genos” (daí genética), que outrossim eram comandados apenas por homens. Não é preciso dizer que nessa organização social ancestral a condição da mulher era igualmente restrita. A elas restava apenas seguir subservientemente os desígnios despóticos dos “seus homens”, os “despótes” (em grego: senhor, mestre). E ser um déspota significava impor, sem escapatória, suas vontades aos demais, principalmente à mulheres, independentemente da consistência ou da compreensibilidade dessas vontades. Autoritarismo puro que, entretanto, só não deve ser chamado de machismo por conta da extemporaneidade desse conceito –moderno- em relação aos gregos antigos.

A transformação do “despótes” em “polites”, isto é, do déspota em político, não significou a abertura de espaço social efetivo algum às mulheres gregas. Todavia, foi um primeiro passo no sentido de reduzir o abismo que separava os sexos. Como? Ora, mesmo permanecendo despóticos na esfera doméstica, os homens, no exercício político, tinham o desafio de lidar com a alteridade -ainda que esses “outros” fossem somente homens. Com a política, o homem teve de aprender outra maneira de fazer valer as suas vontades que não pela força física nem por misticismo algum, fundamentos do despotismo. E o “polités”, ao regressar ao mundo doméstico no qual era “despótes”, não tinha como evitar trazer consigo a ideia de que sua vontade pessoal não era universal.

Aqui cabe a pergunta: por que os homens investiram em uma organização social, a “pólis”, e em uma maneira de organizá-la, a política, se nessa esfera eles desfrutavam de menor poder do que nos “genos”? Marx diria que foi o preço a ser pago para eles e suas famílias subsistirem materialmente. Idealistas dão outras razões. A indefinição da resposta, contudo, não nos priva de enxergar na política o exercício masculino de redução de seu poder absoluto, despótico. É como se na assembleia política, ainda que inadvertidamente, o homem experimentasse, um pouco que seja, a impotência de qualquer mulher diante de qualquer homem; o gosto amargo de ter de calar diante da força de um outro homem, coisa que o déspota, no seu reino genético, nunca teve de fazer.

Todavia, o fato de a ágora política ser o espaço no qual os homens não mais podiam ser despóticos -para um macho uma ferida- pode muito bem ter convertido essa nova experiência masculina de não-potência absoluta em mais opressão doméstica contra as mulheres. Não à toa, na decadência da política grega, séculos depois de seu surgimento, Aristóteles ainda sustenta que as mulheres estavam mais próximas dos escravos e dos cachorros do que dos homens. A política, no seu nascimento grego, portanto, foi apenas um movimento masculino mediante o qual os próprios homens reconheceram, uns perante os outros, que, na cidade, nenhum deles era nem podia ser despótico.

E a política seguiu como um playground estritamente masculino por séculos. Levou mais de dois mil anos para que as mulheres pudessem fazer política ao lado dos homens, todavia com um poder mais simbólico que efetivo. Não é mistério para ninguém que até hoje em dia -e o Brasil golpeado é um exemplo disso- as maiores decisões políticas ainda são sistematicamente sequestradas pelos homens. Tanto que em pleno século XXI ainda causa certo espanto em muita gente metade de um governo, o do Canadá, ser composto por mulheres.

Dizer que “lugar de mulher é na política” é verdadeiro apenas parcialmente, pois o gene grego da política ainda insiste em fazer dela um exercício masculino de relativização do poder dos próprios homens diante de si mesmos. Se o “lugar da mulher é na política”, o é apenas para revolucioná-la, para fazer a política deixar de ser o que é: um reduto resistentemente masculino. Levando ao extremo, obrigar às mulheres somente ao espaço político criado pelos homens é como querer que a elas tenham um espaço confortável dentro do machismo.

Com efeito, as mulheres têm direito, dever e capacidade para compartilharem o comando da nau da realidade ao lado dos homens. A ideia aqui, entretanto, é justamente a de fazer pensar se na esfera política como a conhecemos –esse ambiente viciado, criado pelos homens e para eles mesmos- as mulheres não permaneceriam lutando ingloriamente em terra inimiga. Ora, se a política de fato foi a “brincadeira” masculina na qual o todo-poderoso déspota doméstico viu o seu poder ser confrontado e reduzido, fazer essa mesma política só levará as mulheres a experimentarem mais do mesmo, isto é, a limitação do seu poder, justamente o contrário do que a atual “jihad” contra o machismo exige.

As mulheres precisam de práticas e ambientes deliberativos que lhes empoderem. O saneamento do abismo entre os sexos, despoticamente criado e encimado pelos homens, não se dará através da velha cartilha política criada por eles e mantida em suas mãos por milênios. À mulher é fundamental um espaço político outro que não o criado pelos homens; um ambiente para além da política no qual nunca entre em discussão a presença e a pertinência da mulher no comando da vida coletiva; um lugar no qual a alteridade que a mulher sempre foi em relação aos homens esteja desde sempre na essência, pois só assim o jogo despótico masculino não terá como excluí-la despoticamente, como aconteceu recentemente com a presidenta Dilma Rousseff.

Qual seria então esse espaço ainda político, mas essencialmente além-político, no qual as mulheres estarão finalmente livres do despotismo masculino? Se a política é o velho e resistente “clubinho dos garotos”, a nova forma de organização social da qual as mulheres serão inalienavelmente partes essenciais merece outro nome, ou ao menos a modificação desse. Ora, se a palavra grega “cosmos” designa o universo em seu conjunto, a estrutura universal em sua totalidade, “o lugar da mulher” deve ser na cosmopolítica, uma política que não deixa nenhuma parte do todo social de fora da manutenção desse todo. Não há dúvida de que a presença efetiva da mulher nas deliberações sociais explode a velha e viciada roda política masculina. Mais ainda, inaugura um círculo virtuoso do tamanho da humanidade. Às mulheres, portanto, a cosmopolítica.

Hashtagtivismo: preguiça revolucionária?

hashtagtivism.jpg
arte: Rafael Silva – imagem base: Banksy – publicdomainpicture

 

A experiência da vida-em-rede-social tenta, por todos os links, nos convencer de que tudo o que queremos e precisamos está à distância de um click, inclusive, pasmem, mudar o mundo. Porém, as desventuras éticas, políticas, econômicas, ecológicas, etc. desse mesmo mundo mostram que, em se tratando dele, o buraco é mais em baixo. Sua revolução não está disponível às pontas dos nossos cursores e nas poucas polegadas dos nossos smartphones. O que, entretanto, conseguimos tentando revolucionar a realidade por meio de cliques?

No Facebook, uma postagem que prometia a cassação de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos deputados do Brasil, dizia o seguinte: “Clique aqui para depor Cunha”. Ora, Cunha tem contra si não só a opinião pública, mas também, e há anos!, inúmeros crimes e suspeitas gravíssimas que, entretanto, em nada impediram a sua ascensão e permanência no poder. Pior ainda, ele está depondo Dilma, presidenta democraticamente eleita. Como crer que apenas “clicando aqui” tiraremos o poderoso Cunha de onde ele está? O deputado corrupto, ao contrário, parece se fortalecer com as ofensivas do exército de “clickinimigos” que tem.

Banalíssimo hoje em dia também é o uso das hashtags. Algumas letras e palavras se seguindo de um “jogo-da-velha”, e “tudojunto”, fazem com que anseios e descontentamentos individuais sejam imediatamente coletivizados e pareçam ter algum lugar e potência no mundo. Fala-se aqui de um “hashtagtivismo”, isto é, de um ativismo de hashtag! #occupywallstreet, #vempraruavem, #nãovaitergolpe, são alguns exemplos desse tipo de manifestação-rede-social que, virtualmente, convencem muitas pessoas de que estão engajadas em alguma mudança real.

Para entender melhor o que é o “hashtagtivismo” é preciso conhecer o seu pai, o “clicktivismo”, algo como “ativista de clique”, expressão cunhada para dizer daqueles que usam as redes sociais como forma de organização e protesto. Indo mais fundo, chegamos ao seu avô, o “slacktivismo”, termo criado em 1995 que significa “ativismo preguiçoso” (slack, em inglês, significa folga, preguiça). Compreendendo a “árvore genealógica” do nosso banal “hashtagtivismo” podemos concluir que ele descende da preguiça revolucionária.

Ainda contra o presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, podemos perceber a impotência das hashtags. O memético #ForaCunha que se enfileira nas timelines tupiniquins desde 2015 em nada impediu o corrupto indesejado não só de permanece até agora no seu cargo, como também, na sua empresa para depor uma presidenta democraticamente eleita, desmontar a própria democracia da qual, aliás, depende a pretensa potência do “hashtagtivismo”.

O que estaria por trás desse ativismo virtual em forma de “cliques preguiçosos” que pouco ou nada pode contra a tenacidade de seus inimigos reais? Seria a insuficiência das manifestações tradicionais, aquelas formadas pela presença física de manifestantes munidos de gritos de ordem, cartazes e faixas, nas ruas e praças públicas? Destas, contudo, temos de admitir que não têm mais como alcançarem seus objetivos sem o seu outro virtual, “clickico”, “hashtaguico”, uma vez que virtualidade e realidade cada vez menos se distinguem na contemporaneidade.  O buraco, porém, é mais embaixo do que se pode supor.

A filósofa Marilena Chaui, no Ato pela democracia, realizado em março de 2016 na PUC paulistana em decorrência da tentativa de golpe contra a presidenta Dilma, chega a dizer que sequer a presença física dos manifestantes nas ruas serve de alguma coisa enquanto suas performances políticas se resumirem no repetitivo grito “Não vai ter golpe!”. Podemos dizer inclusive que essa frase-grito é tão inócua contra o real inimigo que simultaneamente golpeia Dilma e a democracia brasileira quanto a sua versão-rede-social, antecedida de uma hashtag e replicada aos milhões.

Sequer as duas formas de protesto juntas, a presencial, com milhares de pessoas nas ruas, e a virtual, com milhões de pessoas clicando e hashtaguiando compulsivamente, estão dando conta do problema. O que Chaui quer evidenciar com o apontamento desse impasse é que, se não queremos que os canalhas e corruptos que ocupam o poder usem-no contra nós, devemos nós mesmos preencher este lugar de poder no qual eles estão. Ora, de nada adianta protestar, seja virtualmente, seja presencialmente, se, antes, permitimos que os canalhas e corruptos ocupem o poder. Uma vez eles lá, e suas canalhices e crimes cometidos, protestar é paliativo; apenas a “slack” liturgia da nossa impotência.

Óbvio é que uma hashtag não faz revolução. Menos claro, todavia, é que sequer milhões delas cumprem essa tarefa. Mais indigesto ainda é perceber que, hoje em dia, no Brasil, o hashtagtivismo virtual e o ativismo presencial juntos não estão conseguindo fazer o “Não vai ter golpe!” funcionar. Cunha, o PMDB, o PSDB, e toda a elite tupiniquim estão surfando, e vitoriosamente, a onda “hashtagtivista” contrária a eles. E pouco importa que as marés anti-golpe, tanto as virtuais quanto as presenciais, tenham extrapolado o território nacional e ganhado o mundo. O golpe segue firme e forte.

Parece que tudo o que entendemos por ativismo político, seja o clássico, presencial, seja o contemporâneo, virtualizado, seja ainda os dois combinados, se mostra ineficiente diante do poder contra o qual temos de lutar atualmente. Gritar nas rua ou lotar as timelines com hashtags, com efeito, ainda hoje faze barulho. O problema, no entanto, é que esse ruído é imediatamente ouvido pelo poder contra o qual se volta e, sem mais, facilmente abafado por este. Muitos dizem inclusive que o formato “protesto”, seja ele presencial, seja virtual, é apenas a performance que aqueles que detêm o poder permitem às pessoas para que nada realmente mude.

Por isso, enquanto chorarmos hashtags nas redes sociais ou gritarmos frases de efeito nas ruas depois do leite derramado, isto é, depois de sermos transformados em massa subserviente de políticos, juízes, delegados e policiais canalhas e corruptos, aquilo que queremos mudar permanecerá onde está, incólume. Marilena Chaui aponta a solução; temos de ouvi-la: os cidadãos que estão insatisfeitos e que se sentem ultrajados pelos desfeitos dos seus representantes devem ocupar esse lugar de representação eles mesmos. Ativismo político virtuoso, para quem não quer corrupção nem impunidade no mundo em que vive, é participar direta e lisamente das esferas do poder.

A ineficiência dos “slacktivismos”, isto é, dos “ativismos preguiçosos” apenas revela uma outra face da já conhecida crise de representatividade política. O “hashtagtivismos”, temporão da preguiça revolucionária, é só mais uma expressão dessa crise: a incapacidade de inclusive os indivíduos se representarem eficientemente. Enfieiramos algumas letras depois de uma hashtag, postamos esse neoativismo no oceano virtual das redes sociais, e esperamos dele o mesmo que dos canalhas corruptos que elegemos nossos representantes: a solução dos nossos problemas.

O “hashtagtivismo” preguiçoso pode render centenas de “likes” e, mais ainda, a bela ilusão de que somos um exército imenso, forte, imbatível até. Porém, lembrando que a hashtag não foi criada para ser arma revolucionária, mas para indexar conteúdo digital existente, podemos concluir que ela, na verdade, é uma ferramenta reacionária: trata verticalmente do que já há. As hashtags por meios das quais cremos agir politicamente, portanto, outra coisa não fazem que nos colocar nos índices contemporâneos da falta de potência e da incapacidade de representarmos a nós mesmos de modo eficiente e revolucionário.

Utopia e revolução

bright_blue_sky_by_ansteystock-d95p0jy.jpg

O ser humano precisa da utopia”, afirma o sociólogo Antônio Ozaí da Silva no seu artigo Ideologia e Utopia. Isso porque o homem é um ser imaginativo, o único capaz de pensar realidades para além da realidade imediata. E quando essas realidades imaginadas passam a ser habitadas por outros que a partir de então começam a sonhar o mesmo sonho, as utopias são passíveis de serem realizadas. Importante é saber que o pensamento utópico que transcende o status quo não pode se efetivar solitariamente, pois utopias estão relacionadas a grupos sociais, e enquanto não forem incorporadas por eles não terão efeito. Qual é, então, o papel da utopia e da coletividade que ela engendra na esperança de construção de um futuro melhor?

Outro sociólogo, Karl Mannheim, autor do clássico Ideologia e utopia, sustenta que “a desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático em que o próprio homem se transforma em coisa”. Ou seja, sem imaginar outras realidades ele apenas é essa coisa chamada realidade. Por isso é fundamental manter aberto um espaço para as utopias, pois elas renovam a possibilidade para os indivíduos insistirem em um outro mundo. Quanto mais não seja, para Mannheim, “A erradicação da utopia só é possível com a sua realização”. Pragmaticamente falando, mesmo que derrotada em suas respectivas épocas, as utopias sobrevivem e são incorporadas pelas gerações vindouras.

Marilena Chaui, nas suas Notas sobre utopia, esclarece que a utopia nasce na renascença como um gênero literário — a narrativa sobre uma sociedade perfeita e feliz — e um discurso político — a exposição sobre a cidade justa. Porém, para vir ao mundo seu percurso foi longo. Chaui conta que, primeiro, teve de haver o colapso do teocentrismo medieval para que o homem tivesse participação no destino do mundo e para que percebesse que é dotado de capacidade e força não só para conhecer a realidade, mas sobretudo para transformá-la. Aqui vale citar o adágio celebrizado por Francis Bacon: “o homem é o arquiteto da Fortuna”. Em segundo lugar, fundamental para o vir-a-ser do pensamento utópico foram as viagens marítimas iniciadas no século XV e a descoberta de novas terras e povos que inspiraram fantasias de sociedades perfeitas vivendo em plena harmonia com a natureza.

E dizendo que, etimologicamente, utopia significa não lugar ou lugar nenhum, Chaui quer reforçar não só que utópico é o lugar que nada tem em comum com o lugar em que vivemos, como também e principalmente que “utopia significa, simultaneamente, lugar nenhum e lugar feliz … Ou seja, o absolutamente outro é perfeito”. Afirmando a perfeição do outro, o utópico outra coisa não faz que propor uma ruptura com a totalidade existente. Para a filósofa, a sociedade imaginada pode ser vista como negação completa da realidade existente ou como visão de uma sociedade futura a partir da supressão dos elementos negativos da sociedade existente. Temos aqui a utopia compreendendo tanto o horizonte revolucionário quanto o reformista? Chaui corrobora com isso dizendo que “o utopista é um revolucionário ou um reformador consciente do caráter prematuro e extemporâneo de suas ideias”.

Mannheim aqui é de grande ajuda, pois, para ele, a mentalidade utópica deve ser compreendida segundo maneiras de pensar, sentir e agir que são coletivamente determinadas no sentido de transformar a realidade dominante de acordo com as aspirações do próprio grupo que deseja transformá-la. O sociólogo compreende essas formas de pensar, sentir e agir no mundo ou como ideológicas, ou como utópicas; Ambas, porém, motivações coletivas que determinam a forma como os indivíduos agem e pensam. A diferença principal, entretanto, é que ideologia identifica-se com conservação, e utopia, com mudança. Fazer de ideologia e de utopia sinônimos é um erro, mais difícil de ser percebido na expressão ideologia revolucionária do que no absurdo utopia conservadora. Utopias são contestatórias por natureza; colocam a revolução diante da ordem estabelecida; apontam a possibilidade do não-lugar justamente no lugar que não dá lugar a ela.

Com efeito, são os grupos dominantes que determinam o que será utópico no ato de criticar as concepções dos grupos que lhe são opostos. Em contrapartida, são os grupos que fazem oposição aos grupos dominantes que determinam como ideológicas as concepções destes. Em suma, as ideologias refletem a ordem social dominante, e as utopias, um futuro almejado que supera essa ordem dominante. Mannheim exemplifica isso relembrando-nos de que no momento histórico em que a burguesia se fortalecia economicamente, suas aspirações eram consideradas utópicas pela aristocracia feudal dominante. Porém, uma vez que a burguesia conquistou o poder, isto é, realizou a sua utopia, a sua concepção de mundo passou a ser dominante, e, doravante, o grupo que passou a ser oprimido por ela, o proletariado, passou determiná-la de ideológica.

Chaui corrobora com Mannheim afirmando que a utopia surge como possibilidade objetiva, inscrita na marcha progressiva da história. A filósofa esclarece, contudo, que nenhuma utopia mudou o curso da história por seu realismo, mas, ao contrário, pela negação radical das fronteiras do real instituído e por oferecer aos agentes sociais a visão de inúmeros possíveis. Segundo a filósofa brasileira, “O utopista desloca a fronteira daquilo que os contemporâneos julgam possível”, e que ao passar do u-tópos ao tópos, isto é, do não-lugar a um lugar na história, a utopia se transforma em ideologia.

A crítica de Engels e Marx ao socialismo utópico não escapa das considerações de Chaui sobre utopia. Segundo ela, para os dois filósofos alemães a utopia socialista “é um pressentimento ou uma prefiguração de um saber sobre a sociedade … Assim como da alquimia se passou à química e da astrologia à astronomia, assim também é possível passar do socialismo utópico ao socialismo científico”. Passagem do afetivo ao racional, do parcial ao totalizante, do pressentimento à revolução, o socialismo utópico é o primeiro movimento contra a opressora ordem estabelecida. O socialismo científico, por sua vez, é o passo derradeiro: o conhecimento racional das causas materiais da humilhação e da opressão, ou seja, o modo de produção capitalista.

O pensamento utópico, seja em que área for, é a assunção da incapacidade de diagnosticar corretamente a realidade na qual pensa. Entretanto, tem a virtude de dirigir a ação coletiva. Utopia não é exatamente um vir-a-ser, mas um não-ser-que-não-obstante-já-é, uma vez que o lugar do não-lugar é justamente a resistência do real em ceder lugar a outra coisa que não ele mesmo. Por mais que as utopias, de certa forma, sejam discursos sobre o não existente, com isso não podemos dizer que são quimeras, delírios de indivíduos incapazes de ver a realidade. O que o utopista pensa é a mudança, a revolução, pois se o pensamento humano permanecesse prisioneiro da realidade as sociedades estariam condenadas a permanecerem estacionadas no que já são.

Vale seguir as principais características de uma utopia feita por Chaui, feita a partir da Utopia de Thomas More. Segundo a filósofa, uma utopia: é normativa na proposição de um mundo tal como deve ser; é sempre totalizante, pois utopia é criação de um mundo completo; é a visão do presente sob o modo da angústia e da crise; busca a liberdade e a felicidade totais graças à reconciliação entre homem e natureza, indivíduo e sociedade, sociedade e Estado, cultura e humanidade; busca combinar o irrealismo com o realismo; não ocultar nem dissimular nenhum de seus mecanismos e nenhuma de suas operações (ou seja, não é ideológica!); é um discurso de fronteiras são móveis, isto é, pode ser literária, arquitetônica, religiosa, política, etc. Mais do que um programa de ação, uma utopia é um exercício de imaginação, permanecendo assim no plano potencial e hipotético.

Na sequência, Chaui enumera o conjunto de aspectos utópicos que passaram a operar como modelo para obras e discursos utópicos posteriores. Quais sejam: a busca pela cidade feliz ou justa se encontra na excelência da legislação, na estabilidade social, política e institucional; a identificação de cada indivíduo com  a lei ou com o Estado, o desaparecimento da família, da propriedade privada, do dinheiro, da desigualdade social e da competição; a escolha de uma locus insular e isolado de todo o restante do mundo, cuja localização, por segurança, permanece secreta; o planejamento geométrico, urbanístico e arquitetônico enquanto produto da razão que organiza o espaço segundo exigências sociais, políticas e econômicas; demarcação do lugar do poder; a beleza e a salubridade da cidade ideal; e, seguindo Platão na sua utópica República, a recusa do isolamento engendrado na escrita e na leitura solitárias em proveito dos encontros, conversar e debates coletivos.

Foram esses aspectos que, a partir do século XVI, fizeram da utopia um jogo intelectual que passou a combinar a nostalgia de um mundo perfeito porém perdido com a imaginação de um mundo novo instituído pela razão. Francis Bacon se vale disso para criar a sua ilha utópica, Nova Atlântida, na qual projeta todas suas expectativas de um futuro baseado em uma nova racionalidade. Sem duvidar um momento sequer de que o homem pode se tornar “ministro e intérprete da natureza”, Bacon descreve uma espécie de utopia da ciência futura. Seu esforço fez dele profeta da sociedade moderna.

Por que nova Atlântida? Bacon faz alusão à civilização Atlântida, formulada por Platão no diálogo Crítias, enaltecida pelo grego pelas belas instituições e feitos de seus habitantes, sobretudo pela valorização da filosofia, da ciência e pela virtude e sabedoria. O inglês buscou no ideal platônico o protótipo de uma sociedade paradisíaca a ser seguida, modelo, segundo ele, capaz de tornar seres humanos perfeitamente virtuosos. A nova Atlântida de Bacon é uma sociedade harmônica, feliz e próspera, na qual o conhecimento e sua aplicação superaram as limitações da condição humana. As virtudes cívicas não são religiosas; a civilidade ideal nasce do conhecimento e não da fé. Ou seja, Nova Atlântida é a utopia da ciência.

Chaui ressalta que depois de Nova Atlântida o racionalismo e o experimentalismo científicos passam a integrar o discurso utópico. A utopia de Bacon exalta as artes liberais e o trabalho manual e técnico. Nova Atlântida é uma civilização do trabalho; antecipa a sociedade racional produtora de sua própria felicidade mediante a instalação de uma ordem social perfeita. E para não esquecer do que coloca Mannheim, qual seja, que as utopias falam da realidade ao negá-la, que propõem justamente o que não tem lugar na realidade imediata, é importante frisar que Bacon transferiu para sua utopia aquelas aspirações suas que a ordem econômica e política de sua época impediam de serem realizadas. Com efeito, a Nova Atlântida de Bacon era uma crítica à sociedade medieval tardia da qual o pensador gostaria de se ver livre. O pensar, sentir e agir contemporâneos a Bacon, senão romperam com o passado, ao menos revelaram a ruptura sócio histórica que estava em curso.

Com efeito, a utopia de Bacon serviu de paradigma para o pensamento utópico posterior. Tanto que, aponta Chaui, a partir do século XIX a utopia deixa de ser apenas um jogo intelectual-imaginativo para se tornar projeto político no qual o possível se insere na história e constrói o futuro. Doravante a utopia passa a ser deduzida de teorias sociais e científicas. É tida como inevitável porque a marcha da história baseada no conhecimento garante sua realização. A utopia deixa de ser apenas literatura contestatória e se torna prática organizada. A cientifização das utopias resultam em um projeto de reforma global como ciência aplicada.

O problema da viabilidade das utopias mediante a racionalidade e a técnica humanas, entretanto, é que elas passam a ser encaradas pelos poderes dominantes reacionários, isto é, ideológicos, como perigo real. Começam a ser censuradas, desacreditadas e abafadas por bombas de gás lacrimogêneo pelo poder que elas ameaçam. Todavia, a virtude subversiva das utopias está em que, conforme destaca o sociólogo Antônio Ozaí da Silva, a sociedade que nega veementemente uma utopia outra coisa não faz senão produzir as condições para a sua realização. Mais ainda, com Mannheim podemos dizer que é a própria ordem existente, absoluta e ideologicamente contrária à sua própria ruptura, que, entretanto, dá vida a utopias que rompem com o real, abrem a história, possibilitam a mudança, seja ela revolucionária, seja reformista. A utopia, portanto, é uma não-ordem que, na marcha da história e por força de uma coletividade, possibilita as ordens seguintes.

 

Analfabetismo político: capítulo ou capitulador da era Lula?

LM_LulaEducacao_14082015_49.jpg
Foto Lula Marques/Agência PT

Senso comum esses dias é que a era Lula chegou ao fim. Concordam com isso a esquerda e a direita brasileiras. Sendo que esta última contribuiu muito com esse ocaso, como atestam os trabalhos iniciados pelo PSDB do perdedor Aécio já nas eleições presidências de 2104 e os quase finalizados trabalhos do PMDB do gangster Cunha no processo de impeachment de Dilma Rousseff. O deputado federal Jean Wyllys, do PSOL, contudo, tenta mostrar a responsabilidade da própria era Lula com a sua alardeada capitulação.

Reconhecendo que a maioria da população brasileira esteve desde sempre “alijada do direito a uma educação de qualidade que lhe faça cidadã com capacidade de pensamento crítico”, Jean esclarece o cenário que Lula encontrou ao tomar o poder, o qual, aliás, o ex-presidente se propôs revolucionar.

Porém, para o deputado, na era Lula a ampliação do acesso ao sistema formal de educação, principalmente ao ensino superior, não resultou em uma educação de qualidade, mas na produção em larga escala de “diplomados analfabetos funcionais”. O mui criticado aumento do consumo, investimento central de Lula para que, com o crescimento econômico, políticas sociais pudessem ser implantadas sem tanta resistência por parte das elites, resultou, no entanto, na educação enquanto mercadoria.

E para Jean essa reificação da educação levou esse contingente de novos estudantes precarizados a aderir mais facilmente a “discursos demagógicos e manipuladores que interpelam preconceitos e sensos comuns históricos e propõe soluções fácies, mas mentirosos e/ou autoritárias para as questões complexas que nos envolvem diariamente.” Ou seja, para o deputado, a era Lula criou analfabeto políticos.

E Jean relembra-nos de que, conforme afirmou Bertold Brecht, “o pior analfabeto é o analfabeto político”. Nas palavras do dramaturgo alemão, esse tipo de analfabeto “é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política”. Porém, ressalta o deputado, o diferencial do “analfabeto político da contemporaneidade” é que este, mesmo odiando a política, participa ativamente dos acontecimentos políticos, sobretudo nas redes sociais digitais, mas sem qualquer cuidado crítico.

O exemplo concreto que Jean oferece do que ele chama de analfabetismo político contemporâneo é um comentário em uma postagem sua no Facebook quando da aprovação do Marco Civil da Internet. Qual seja: “o marco servil [sic] vai acaba [sic]com o Facebook e traze [sic] o comunismo vai manda [sic] mata [sic] todo mundo começando por você seu viado filhodaputa  [sic]”.

Com efeito, o exemplo dado por Jean leva-nos a pensar que a alienação orgulhosa do analfabeto político da época de Brecht produziria uma realidade muito menos miserável do que o impertinente “ativismo” dos “analfabetos políticos contemporâneos”. Entretanto, são com estes que temos de lidar em vias de uma educação política de qualidade superior.

Agora, lidar com o analfabetismo político contemporâneo passa necessariamente por entender as suas causas. E, como apontou Jean, uma delas, a mais contemporânea e universal aliás, foi justamente a universalização a qualquer custo de uma educação-mercadoria de baixa qualidade que criou cidadãos-embalagens em cujo interior qualquer conteúdo pode ser acriticamente inserido.

E a elite brasileira, afrontada não só por essa universalização da educação, mas também e principalmente pela todavia tímida distribuição de renda garatujada pela era Lula, se aproveitou desse “analfabetismo político contemporâneo” produzido pela própria era Lula para capitulá-la. Os elitistas-oligárquicos PSDB de Aécio e PMDB de Cunha sequer precisaram produzir a massa de analfabetos-invólucros acríticos nos quais incutir as suas ideologias golpistas que, massificadas, estão dando cabo da era Lula.

Justiça seja feita, os atuais analfabetos políticos tupiniquins são apenas massa de manobra nas mãos da reacionária elite brasileira. Mais ainda, Jean não nos deixa esquecer de que “o analfabeto político é uma vítima daquele Brecht considera o pior de todos os bandidos: o político vigarista, desonesto intelectualmente, corrupto e lacaio das grandes corporações”.

Os peessedebistas e peemedebistas todos –mas não só estes, obviamente- parecem se encaixar perfeitamente nesse perfil corrupto, vigarista e pelego das grandes corporações traçado por Brecht que tanto vitima os analfabetos políticos. Até mesmo Lula e o seu PT encontram dificuldade em demonstrar que não participam dessa vitimização, uma vez que a corrupção e a subserviência à grandes corporações também brilhou forte desde que o poder esteve com a estrela vermelha petista.

Entretanto, uma diferença deve ser feita entre o “modus operandi” elitista e o petista. Quando Jean sustenta que  “é preciso ter alguma compaixão pelo analfabeto político: insistir na luta para que ele tenha acesso a educação de qualidade”, ainda temos que foi na era Lula que essa “compaixão”, melhor dizendo, essa consideração com os analfabetos, sejam eles políticos ou não, se deu de maneira mais efetiva, ainda que a realidade esteja distante da idealidade. Realidade e ou projeto que, é importante frisar, nunca foi nem será pauta da elite.

A tão criticada produção lulista do que Jean chamou de “diplomados analfabetos funcionais” que hoje são um exército de analfabetos políticos, entretanto, participa ativamente da rendição do que resta do lulismo mais pela manipulação golpista da elite reacionária do que pelo próprio projeto iniciado por Lula. Até onde podemos sustentar que a falência da era Lula não é precisamente a interrupção a qualquer custo, pelas elites, do projeto do presidente metalúrgico?

As palavras de Jean Wyllys sobre do que deve ser feito com os analfabetos políticos, quais sejam, “é preciso ter alguma compaixão pelo analfabeto … insistir na luta para que ele tenha acesso à educação de qualidade”, mutatis mutandi, não cabem perfeitamente na boca e nos feitos de Lula? Só é possível negar isso, contudo, estabelecendo-se para essa desafiadora revolução histórica um prazo menor do que 14 anos – o tempo de vida do projeto de Lula- e, ao mesmo tempo, esquecendo-se do “Brasil, Pátria Educadora” de Dilma.

Não fosse a apressada sede golpista das elites em retomar o poder e a exclusividade no acesso à educação de qualidade no Brasil, do projeto educacional de Lula poderia ser dito apenas que está longe de ser concluído. Transformar milhões de analfabetos em cidadãos alfabetizados que, no entanto, ainda são analfabetos políticos, mas que, compreendidos em um processo histórico-geracional contínuo, futuramente formará uma população mais educada, inclusive politicamente. Eis o caminho que a era Lula abriu no Brasil.

Essa senda só não pode ser considerada utópica porque a própria vida de Lula é um exemplo concreto dessa revolução. Nordestino pobre e analfabeto, Lula alfabetizou-se minimamente para exercer sua profissão de torneiro mecânico em São Paulo. Essa parca e funcional alfabetização, em meio à exploração da indústria paulista que ele e os seus iguais sofriam, mas que ele ansiava reduzir, levou-o a perceber seu analfabetismo político e a desejar saná-lo. E a virtuosidade desse processo pessoal fez com que ele se tornasse não só presidente do Brasil como também Doutor Honoris Causa em 27 universidades ao redor do mundo.

Em se tratando de alfabetização política, como então acreditar mais no vil projeto histórico e desigualitário das elites, hoje mascarado de impeachment e que de forma alguma pretende democratizar o acesso à educação, do que no revolucionário, todavia inconcluso projeto educacional da era Lula, que segue insistente com Dilma no seu “Brasil, Pátria Educadora”? À boa crítica de Jean Wyllys à educação da era Lula, a seguinte pergunta: em se tratando de educação, a pressa não é inimiga da perfeição?

 

Socialistas ainda utópicos?

socialismo 01

Por que ainda causa surpresa em muitos que se consideram de esquerda ver a atual “jihad” da direita brasileira no sentido de reconquistar o Leviatã tupiniquim a qualquer preço, inclusive ao custo altíssimo da democracia? Está certo que as ações e os discursos da direita brasilis desde a última disputa presidencial de 2014 estão de espantar. Ética, política, jurídica e economicamente eles realmente estão “botando para quebrar”. E quebrando justamente o Brasil menos desigual aventurado desde a eleição democrática de Lula, há treze anos.

Entretanto, é ingenuidade se surpreender com tal movimento da direita, pois é exatamente isso que ela sempre fez, seja no Brasil, seja em qualquer outro lugar. A esquerda, por sua vez, também não está sofrendo nenhum ataque novo. Desde que o mundo é mundo, ou seja, desde que há desigualdade social entre as pessoas, há os que querem reduzi-la, quiçá eliminá-la -e destes é dito que são de esquerda. E há também os que querem ou produzir, ou radicalizar, ou simplesmente manter a desigualdade social, e a qualquer custo – e destes é dito que são de direita.

Então, por que o espanto em ver mais do mesmo, isto é, mais do jogo sujo da direita, não só contra a esquerda, mas contra qualquer um que deseje a igualdade social? A falta de ética, escrúpulos e justiça da direita, como pudemos ver na gigantesca manifestação contra o governo PT ocorrida em 13 de março de 2016, deveria nos surpreender? O que esperávamos? Que em determinado momento -e justamente agora- a direita deixaria de ser o que sempre foi, que pensaria como a esquerda, ou, no mínimo, não se importaria mais com a construção da igualdade social no Brasil? Que utopia é essa?

Antes de Engels e Marx criarem o socialismo científico, cujo escopo era o de compreender a real dinâmica do capitalismo e, principalmente, as suas contradições, por meio das quais aliás esse sistema econômico produtor de desigualdade sucumbiria, pensadores da “Primavera dos Povos” de 1848, tais como Saint-Simon, Fourier, Owen e Proudhon, sustentavam que o socialismo teria lugar certo no mundo, de forma pacífica, e, ademais, por meio da boa vontade da burguesia. Estes foram chamados por aqueles de socialista utópicos.

Não estaríamos nós, socialistas tupiniquins contemporâneos, sendo tão utópicos quanto os do século XIX por acharmos que há algo de impróprio na “jihad” da direita brasileira, na sua tentativa de tirar do poder o que resta da esquerda? Pela indignação de muitos “brazucas” de esquerda diante das ações da direita, parece que sim. Agora, por que é utopia em crer que a direita tomaria alguma consciência e deixaria de seguir produzindo e mantendo a mui antiga desigualdade que a faz ser quem sempre foi?

É preciso salientar todavia que utopia não é algo que não existe e que não tem como existir. O que não existe porque não tem como existir é atópico, sem “topos”, sem lugar. Utópico, na verdade, é o que não existe apenas por motivos circunstanciais, mas que pode vir a ser, pois não há nada de absurdo que impeça a sua existência. O feudalismo era utópico enquanto as sociedades humanas eram estruturadas pela escravidão da antiguidade assim como o capitalismo era nada além de uma utopia durante a longeva vida do feudalismo. Porém, como a história não nos deixa ignorar, todas estas utopias encontraram horizonte para ser, e foram.

Embora o socialismo utópico tenha sido muito criticado por idealizar a realidade, ou, em outras palavras, por realizar apenas ideias, essa crítica se esquece de que habitar uma utopia é flertar, dentro da realidade presente -uma vez que é impossível abandoná-la-, com ideias que podem, e até mesmo devem ter lugar dentro dessa realidade. Dizer apenas que os socialistas utópicos partiam do ideal ao real, portanto, é só metade da história, pois, por outro lado, é por causa do real concreto que ideias outras acerca dele surgem entre os homens e, historicamente, viram realidade.

Ideal mesmo seria se tivéssemos em comum com os socialistas utópicos apenas a defesa da igualdade entre as pessoas e a crença de que a propriedade privada é a origem de toda a desigualdade. Entretanto, na prática, todos os que estamos surpresos com as jogadas da direita brasileira temos em comum com aqueles socialistas anteriores à Marx a utopia de que a direita e o seu voraz capitalismo gerador de desigualdade, em algum momento, por alguma sã razão e espontaneamente, darão espaço à esquerda e ao seu socialismo produtor de igualdade.

Por isso, mesmo que a utopia não seja uma patologia intelectual, seria muito saudável e produtivo que os muitos esquerdistas que até aqui seguem surpresos com a barbárie da direita brasileira contra o projeto sócio igualitário nacional se colocassem deliberadamente sob a crítica de Engels e Marx aos socialistas utópicos, qual seja, que o modelo socialista deles não tinha como ser implementado porque que não atentava para as conexões reais entre proletariado e burguesia.

Aceitar tal crítica pode fazer com que vejamos de modo mais realista as conexões entre esquerda e direita, para assim compreendermos que o que ocorre hoje no Brasil não é um erro crasso da realidade, mas a realidade ela mesma, nua e crua, sem nada para ser desacreditado, mas tudo compreendido. Enxergar as estratégias da direita com naturalidade é manter-se mais próximo da revolução, pois a revolução só é necessária por conta do sempiterno modus operandi da direita.

A revolução, ou seja, a vitória da esquerda, não é nem nunca foi a ausência da direita nem alguma permissão, educação ou consciência dela no sentido de a esquerda colocar seu programa em prática. A revolução, com efeito, é a vitória da esquerda sobre a direita presentíssima, e ademais contraríssima a qualquer projeto de igualdade social. Esse é o real da dimensão política de que não devemos nos esquecer para que a utopia da igualdade tenha lugar no mundo. Não se espantar com quaisquer práticas da direita, normalizá-las dentro da realidade, talvez seja o primeiro passo histórico e material para converter a utopia socialista em realidade.

Não se chocar com quaisquer movimentos da direita, como por exemplo a arquitetura e os discursos da manifestação contra o PT do dia 13 de março é fortalecer-se, pois a direita e suas estratégias são muito menos os entraves à revolução do que os parceiros dialéticos da esquerda, insuportáveis e irredutíveis, porém, necessários não só à construção da ideia de revolução, como, principalmente, os que a justificam.

Ao contrário dos socialistas utópicos, Marx e Engels não se preocuparam em pensar como seria uma sociedade ideal. Ocuparam-se, em primeiro lugar, com compreender a dinâmica do capitalismo, estudando a fundo suas origens e, mais importante, suas contradições. Da mesma forma, os companheiros de esquerda não devem perder tempo imaginando que a direita deva parar de agir desigualmente, mas, em troca, conhecer proximamente sua dinâmica, reificá-la, e, mais importante, compreender suas contradições, pois é baseado nelas que a verdadeira revolução se fará.

Ao contrário do que se pode pensar, não é a bondade ou a verdade da esquerda que faz com que a revolução seja necessária, mas a ruindade e a mentira da própria direita. Surpreender-se com os estratagemas da direita é negar-lhes o devido lugar na realidade, é idealizá-la, e, consequentemente, enfraquecer o motivo pelo qual ela deve ser superada. Espantar-se com a vilania do inimigo é ocupar-se com um outro inimigo, todavia imaginário, e, o pior de tudo, desocupar-se do inimigo real, que em nenhum momento vê erro algum em seus próprios atos nem nos de que quem quer que seja.

Se a direita está vencendo no Brasil, a virtude desse processo de vitória talvez esteja no fato de ela não se surpreender nem se espantar com as tentativas da esquerda. Com efeito, odeia mais que tudo qualquer projeto igualitário. Porém, de forma alguma os toma como errados, pois para a direita não há certo nem errado. Para ela, há somente a manutenção do seu projeto de criar e manter uma vertical desigualdade social, sem a qual aliás não há topo privilegiado a ser conquistado e mantido por ninguém menos que ela.

A direita não desacredita nem se espanta com a horizontalidade socialista. Apenas não a quer. Por isso luta sem limites contra ela, não se importando inclusive em ser antiética, injusta e antidemocrática. Sua força vem da crença de que nada há para se espantar com as estratégias da esquerda. Já a esquerda, mantendo essa dimensão pretensamente utópica na qual, por exemplo, a tentativa da direita de depor uma presidenta até aqui lisa figura como um absurdo, apenas distancia-se do real, e, consequentemente, enfraquece-se.

Uma vez que utopia é apenas o que ainda não tem lugar na realidade, mas que pode ter, pode ser considerada utópica, ou seja, realizável, a ideia de que a direita não mais jogue baixo em função dos seus objetivos históricos? Se sim, infelizmente, a revolução terá de esperar, pelo menos até tal utopia se mostrar impossível. Afinal, é somente porque a direita nunca agirá dessa forma que a esquerda e a revolução são necessárias.

No caso atual do Brasil, a cada vez mais presente derrota da esquerda está em ela ainda esperar que partidos políticos e instituições direito-oligarcas tais como o PSDB, o PMDB, o Democratas e a Rege Globo ajam ética e democraticamente. Isso, porém, não é utopia, mas tolice. Já a vitória em curso da direita tupiniquim decorre de ela não se surpreender nem com os ideias da esquerda, nem tampouco com as suas próprias vilanias. Para ela, tudo é normal, tudo é obvio, inclusive o jogo absolutamente baixo. Portanto, na utopia socialista da esquerda, para que seja efetivamente realizável, deve constar que nada há para se espantar com as ações da direita. Em relação a elas, apenas a revolução, pragmaticamente.

Consumir o consumismo que nos consome

consumismo.jpg

iPhones, férias no Caribe, internet de alta velocidade, dúzias de cervejas, é quase impossível não sermos consumidos por tais mercadorias, concupiscentemente tornadas ícones materiais da idealizada realização pessoal. Porém, como nos disse Érico Veríssimo, “o objetivo do consumidor não é possuir coisas, mas consumir cada vez mais e mais a fim de, com isso, compensar o seu vácuo interior, a sua passividade, a sua solidão, o seu tédio e a sua ansiedade”. O tempo e o vento do consumismo nos conclamam convincentemente a tapar o “intapável” buraco humano que somos, mesmo que nessa empresa impossível sejamos consumidos pelo consumismo que consumimos.

E consumindo concupiscentemente, nos alienamos tanto do nosso vazio intrínseco, quanto do fato de que somos consumidos pelo que consumimos.  Acreditamos cegamente que, aqui, uma ou duas mercadoriazinhas à mais darão cabo do nosso tédio, e, ali, que somos somente nós que as consumimos. Realmente, essas são mentiras muito bem contadas, e, ademais, muito bem acreditadas. O capitalismo e Noam Chomsky sabem muito bem que “não se pode controlar o povo pela força, mas se pode distraí-lo com consumismo”. Quem nos distrai: o capitalismo. Qual seu método: o consumismo. E os distraídos, quem são? Ah, estes dispensam apresentação.

Para entender melhor o teatro capitalista que nos distrai do fato de que o consumismo que consumimos nos consome, vale lembrar que “consumir”, derivado do Latim “consumere”, quer dizer destruir, desgastar, desaparecer, sumir. Aqui podemos ver que, consumindo, outra coisa não construímos que um mundo de destruição. Isso fica ainda mais claro quando compreendemos que o sufixo “ismo”, que, indica sistematização, aderido à palavra consumo com uma força histórica tremenda, faz do nosso modus vivendi um sistema de destruição, de desgaste, de desaparecimento. Escaparíamos nós, consumidores, desse aniquilamento consumista?

O consumo, obviamente, não foi inventado pelo capitalismo. Na verdade, é intrínseco à vida, que, de acordo com Nietzsche, é um processo contínuo de destruição (consumo) e criação. A sistematização do consumo, porém, não encontrou melhor expressão do que no universo do capital, a ponto de hoje ser um absurdo negar que capitalismo e consumismo sejam absolutamente consubstanciais. Millôr Fernandes fala bem mais poeticamente da relação desses dois monstros: “quando começou a comprar almas, o diabo inventou a sociedade de consumo”. Não é demais ressaltar que a gestalt poética dessa máxima está precisamente no apelido mui próprio dado ao capitalismo.

O objetivo do casal mais insaciável e prolífico da história econômica mundial não é que as suas muitas filhas-mercadorias desapareçam definitivamente. As mercadorias que consumimos constantemente, embora feitas para serem sistematicamente sumidas por nós, renascem sempiternamente das cinzas, feito Fênix mítica. A destruição envolvida no conceito de consumo, portanto, não as visa centralmente. Tampouco o fim do capitalismo está em foco no desaparecimento das mercadorias, muito pelo contrário aliás. Quem são, então, os sujeitos destruídos nessa conjuntura que, de um lado, conta com a nossa concupiscência, e, de outro, com a ganância capitalista? Há muito a Torá nos diz que “a ganância insaciável é um dos tristes fenômenos que apressam a autodestruição do homem”.

Sim, somos nós, consumidores, que somos consumidos, melhor dizendo, destruídos pelo que consumimos. Não exatamente como queria Leon Tolstoi, que dizia que “para se viver com honra, é preciso consumir-se, perturbar-se, lutar, errar, recomeçar do início, novamente recomeçar e lutar e perder e ganhar eternamente”. A frase do escritor russo é fraca, quiçá utópica, diante de um capitalismo que, sistematicamente, recomeça a sua luta desonrosa para ganhar e ganhar e ganhar, ad aeternum. Quantas gerações não foram consumidas do mapa desde o surgimento do capitalismo senão para que hoje ele estivesse mais vivo e mais  vivo que nunca? E quantas ainda não serão desgastadas em função do ganhar-ou-ganhar capitalista?

Como, entretanto, evitar sermos destruídos pelo capitalismo, ou o que é o mesmo, consumidos pelo consumismo que consumimos? A fórmula de Abraham Lincoln, qual seja, “a melhor forma de destruir seu inimigo é converter-lhe em seu amigo”, poderia ser de alguma ajuda aqui? Para tal, precisaríamos pressupor, como os liberais mais ingênuos, que capitalismo e consumismo podem de fato ser amigos nossos. Agora, isso não seria confiar demais em alguma mão invisível, mais ainda, mágica? Permaneçamos por enquanto com os pés no chão no qual está escrito com o nosso próprio sangue que aquele que nos destrói para construir-se não é nem tem como ser propriamente nosso amigo.

Para ser amigável conosco, o capitalismo precisaria consumir outra coisa que não a nós, seus consumidores. Para tanto, teria de consumir a si mesmo, uma vez que o consumo é a sua essência inalienável. Não obstante, há alguma indicação de que essa ficção possa ser realizável, e ainda assim ser chamada de capitalista? Ou o ato subsequente da longeva ópera humana, no qual o protagonista econômico será mais amigável, já não tem um nome próprio: socialismo? Portanto, desculpe-me Lincoln, essa balela de amizade com o capitalismo está fora de questão.

Desse modo, as opções que nos restam são: ou sermos indiferentes em relação ao capitalismo, e, como em um lugar queria Marx, deixá-lo sucumbir diante de suas próprias contradições; ou, em troca, inimizá-lo radicalmente, e, como em outro lugar também queria Marx, derrotá-lo rápida e violentamente. Agora, se o objetivo principal é findar com o consumo de vidas pelo consumismo capitalista, temos todavia de considerar que lutar contra esse monstro em ambos os casos consumirão milhares de vidas. No primeiro, ao longo do tempo em que o capitalismo se contradirá até sucumbir, e, no segundo, na própria revolução rápida e violenta, haja visto que a besta capitalista é tão ou mais rápida e violenta, sem dizer belicosa até os dentes.

Resta ainda uma terceira via, trilhada por aqueles que acreditam que deixarem-se ser consumidos pelo capitalismo, conforme o próprio capitalismo quer, é uma forma subversiva de fazer com que ele chegue mais rapidamente à sua contradição derradeira. Estes são chamados de aceleracionistas. No entanto, do ponto de vista do capital, no que diferem os consumidores concupiscentes e os aceleracionistas? A fera econômica há de preferir estes últimos inclusive. Para entender o desserviço do aceleracionismo, façamos uma analogia: se o inimigo fosse, digamos, a destruição da natureza pelo homem, o aceleracionista seria aquele que se juntaria aos destruidores dela para, não havendo mais natureza a ser destruída, a destruição enfim cessasse. De que adiantaria tal luta?

O aceleracionista responderia contrariado que a virtude de sua ideologia em relação ao vício concupiscente está em que ser consumido para mais rapidamente destruir daquilo que o destrói é muito mais produtivo e honroso do que ser sumido enquanto se está distraído pelos encantos mentirosos do inimigo. Realmente, há aí uma vantagem, que, no entanto, só não é absoluta porque mais virtuoso é aquele que, sem se permitir ser corrompido, mesmo que subversivamente, rápida e violentamente tenta dar cabo do algoz-mor, ainda que seja o primeiro a ser destruído por ele.

A solução para o problema de sermos consumidos pelo consumismo que consumimos certamente não virá do consumista concupiscente, pois seu consumo não só o aliena de sua própria destruição, como também da destrutividade própria do consumismo. Provavelmente o consumista aceleracionista também não dará conta da questão, pois, embora engajando a sua própria e inevitável destruição na destruição futura do inimigo, enquanto age só fortalece este último. Só o revolucionário ainda mantém alguma possibilidade de vitória em seu horizonte. Duas, aliás. A primeira, na sua morte rápida e violenta em resposta à sua outrossim rápida e violenta ofensiva contra o capital, uma vez que, morto, não mais será consumido pelo consumismo que tenta consumi-lo. Aqui, morrer, é como matar um soldado do inimigo. Já a segunda, mais desejada e substancial vitória está no êxito da revolução que dará cabo do capitalismo.

A conclusão não poderia nem deveria ser outra. Para quebrar o círculo, que para nós é vicioso, mas para o capitalismo é absolutamente virtuoso, que a frase outrossim circular ser consumido pelo consumismo que consumimos expressa, a concupiscência é incompetente. Tampouco o aceleracionista mais empenhado no extermínio do capitalismo demonstra bom rendimento, uma vez que sua estratégia só fortalece o inimigo naquilo que ele quer ser fortalecido. Só mesmo o revolucionário tem a vitória em sua ação, pois só ele sabe, assim como o kamikaze, que a sua eventual morte não significa derrota se algo do inimigo morrer com ele. E também que ser consumido, destruído, derrotado, é sê-lo pelo inimigo, não por sua própria e deliberada ação. Por isso, ‘consumir o consumismo que nos destrói’, para o revolucionário, de outra forma não é lido senão: “destruir a destruição que nos destrói’.

Hiper-realismo reacionário

A Arte é melhor que seja reacionária ou revolucionária? Reafirmando o que já está aí, portanto limitando-se ao real, ela é reação. Em troca, inventando, ou pelo menos fazendo o que já existe existir de formas inéditas, ela revoluciona. Essa questão salta aos olhos nas esculturas hiper-realistas de Ron Mueck e de Huane Hanson, obras que reproduzem com uma fidelidade assaz intrigante corpos e hábitos humanos. Seja o enrugado casal de idosos na praia ou a mulher comum carregando um bebê mais duas sacolas de compras, de Mueck, seja o atleta fora de forma massageando o próprio pé ou o obeso turista americano sentado no chão com sua bagagem, de Hanson, o que temos são objetos artísticos que representam objetos reais exatamente como eles são na realidade, não como eles poderiam ser ou não foram até então.

A arte de fazer coisas como elas “devem ser” remonta a um passado no qual a Arte do artista, essa com “a” maiúsculo, se existia, estava subordinada a arte do artesão, com “a” minúsculo”. A arte do sapateiro, por exemplo – exemplo predileto dos filósofos antigos aliás-, é fazer sapatos como os sapatos devem ser. Aqui, obviamente, precisamos de uma boa dose de platonismo para sustentar um ideal de sapato a ser seguido por todos os sapateiros. Agora, mesmo se formos absolutamente empiristas, como Hume, e assumirmos que não existe “a forma perfeita do sapato” residindo imperiosamente nalgum céu ideal, da ideia de sapato que resiste entre nós não podemos nos desvencilhar. Quanto mais não seja, porque o próprio objeto existe empiricamente entre nós. Até mesmo o cético mais radical deve admitir que é somente dentro dos limites da ideia humana de sapato que o sapateiro exerce a sua arte.

Para o artista- sapateiro, portanto, não há problema algum em ser reacionário. Seus clientes decerto esperam isso dele: que os seus sapatos sejam nada além de sapatos. Já para os nossos artistas-Artistas, espólios das vanguardas modernas, cujo D.N.A obriga-os ao “a” maiúsculo, é muito pouco copiar fielmente a realidade. Mueck pelo menos agiganta ou apequena as suas “cópias”. Hanson, entretanto, sequer se dá ao trabalho de alterar a escala do que copia. Diante das obras desses Artistas, é como se eles nunca tivessem existido, somente a natureza. Claro, sem Mueck e sem Hanson tais esculturas não existiriam. Porém, mesmo antes de eles existirem a própria natureza já havia produzido bilhões de “esculturas” como estas, ademais, falantes, andantes, pensantes, viventes. Sendo assim, os dois artistas, por mais espetaculares que sejam suas obras, estão aquém das produções da natureza. E por tentarem reproduzi-la fielmente, são no máximo reacionários.

Revolucionários mesmo eram os antigos gregos que com suas perfeitas esculturas de deuses e semideuses traziam ao mundo justamente o que não existia nele. Da mesma forma, Michelangelo e Bernini, por exemplo, ao esculpirem um homem, faziam-no sempre mais do que ele mesmo. Eram criativamente positivos, enriquecendo sublimemente a “ordinariedade” da percepção humana. Já Mueck e Hanson, ao contrário, não ultrapassam o existente. Fixam-se nele; reproduzem-no. As suas (re)produções hiper-realistas, entretanto, são como as abjetas estátuas dos museus de cera, apenas um tanto mais detalhadas.

É como se esses dois escultores contemporâneos sofressem do mesmo mal que afeta a dança contemporânea. Explico: o balé clássico exigia que o bailarino transcendesse a capacidade natural do corpo humano. Já a dança moderna que o sucedeu fez com que a dança tivesse o mesmo tamanho do homem. Por fim, a dança contemporânea parece primar pelo aquém do que corpo humano é capaz; respeitar o corpo é não exigir dele toda a sua virtuosidade. É bem corriqueiro hoje em dia vermos um bailarino que estuda dança por décadas apenas caminhar pelo palco como alguém que nunca dançou. A favor da dança contemporânea temos que ela é bem mais democrática que o balé clássico, elitista por natureza. Contra ela, entretanto, podemos dizer que não leva o homem nem o seu corpo para além de si mesmos. Antes, faz como as esculturas de Mueck e Hanson, isto é, exibe uma arte que não aponta os limites humanos nem ultrapassa a realidade ordinária do próprio homem.

Contra mim, obviamente, depõem as grandes audiências das exposições de Mueck e Hanson, e também as dos espetáculos de dança contemporânea. Mas nada há para se espantar com isso. Se a Arte contemporânea é a arte de representar o que está do lado de cá da virtuose humana é porque o próprio homem contemporâneo está aquém-de si mesmo. Portanto é isso o que as pessoas em geral querem ver representado pela arte. E é por isso que as “estátuas de cera” hiper-realistas de Mueck e Hanson agradam tanto, pois nelas não há forma divinal alguma a esfregar na nossa cara a nossa inalienável mundanidade, mas apenas as nossas próprias formas – quiçá mais decrépitas – a sussurrar que nós, espectadores, somo melhores e mais surpreendentes do que elas. Mueck, Hanson e a dança contemporânea são espelhos diante dos quais a audiência nunca verá imagens maiores do que ela mesma. Já diante da antiga estátua de Poseidon, da renascentista Pietá, do barroquismo de Aleijadinho, ou até mesmo das contemporâneas esculturas de Picasso, o espelho não funciona a nosso favor; engrandece senão a própria Arte.

Pergunto novamente se o lugar excelente da Arte não é mesmo num além-realidade –ordinária; se não é melhor ela ser provocativamente revolucionária, não insistindo em, digamos, “respeitar” o real, reproduzi-lo, e, consequentemente, ser limitada por ele; ficar aquém dele. A Arte enquanto reação, com efeito, não nos leva a lugares alguns senão aos que já ocupamos. Em troca, enquanto revolução, seu único destino é trazer mundos inéditos ao mundo clichê de onde, aliás, tanto desejamos as produções artísticas. Por isso as produções da “Arte dos Artistas” não devem ser como as da “arte dos artesãos”, pois, do contrário, veremos nas galerias de Arte esculturas espetaculares de corpos humanos que, no entanto, somente mantêm a humanidade cativa do que ela já, do que ela já tem, de suas próprias ideias, tanto quanto o sapato do sapateiro não nos afasta da ideia perene que temos de sapato.

Coronelismo contemporâneo

edaurdo-cunha

O coronelismo, ironicamente considerado um “brasileirismo”, surge com a hipertrofia da figura de um detentor do poder, no caso o coronel, sobre o poder público, através de fraudes eleitorais e da desorganização da coisa pública. Pode-se dizer que Eduardo Cunha, presidente da câmara dos deputados, sobrevive o coronelismo ao tentar deslegitimar o poder democraticamente constituído, por meio da articulação de um golpe político – midiaticamente chamado de impeachment – contra a presidente Dilma que, até então, não tem  crime algum comprovado contra si.

Cunha abusa da sua figura de detentor de poder a despeito das graves suspeitas que recaem sobre ele, quais sejam: sonegação de imposto; fraudes em contratos celebrados, em movimentações financeiras e na declaração de rendimentos; improbidade administrativa; captação ilícita de sufrágio; abuso de poder econômico, só para citar os que estão mais aclarados no momento. Porém, o bom coronel é aquele que segue agindo como se a lei nada valesse dentro do seu latifúndio.

E o despotismo de Cunha não para por aí. Diante de da ameaça de ser deposto do seu cargo de poder, Cunha diz: “Esquece, eu não vou renunciar”, e “se me derrubarem, eu derrubo todo mundo também”. Muito sinceramente o presidente da Câmara comunica à população brasileira que permanecerá no poder e, mais ainda, como fará isso: mediante a ciência dos “podres” de outras pessoas e o podre poder que esta vil ciência lhe confere.

Todavia, por mais vergonhosas que sejam as regras do jogo do atual presidente da câmara, pelo menos uma virtude elas têm. Qual seja, Cunha fala a verdade. A pior, no entanto, mais crua verdade. Seria muito pior se ele sustentasse a sua permanência no poder dizendo que é para o bem da população, como a cartilha político-demagógica indica no mais dos casos. Mas não! Ao menos Cunha deixa bem claro a sordidez na qual está atolado até o pescoço.

Historicamente, os coronéis tomam e mantêm o poder de duas formas: ou por meio da violência, ou mediante troca de favores. Bem, tentando um impeachment infundado, Cunha outra coisa não faz além de violentar a democracia, ou seja, todos os brasileiros. E “fazendo o favor” de não denunciar os seus companheiros na condição de eles “fazerem o favor” de não denunciá-lo, Cunha mantém viva a sórdida roda dos favores que sustenta o coronelismo.

O altíssimo preço do coronelismo, não só o de Cunha, é a abstração da democracia e da justiça na concretização de uma espécie de liberdade política e econômica tirânico-despótica, que, estratégica e infelizmente, abstrai ainda mais a democracia e a justiça, e assim por diante, viciosamente.

Falando de coronéis, não podemos deixar de lembrar de José Sarney, do mesmo partido de Cunha. O coronel-oligarca-mor que, desde que foi eleito governador do Maranhão em 1966, articulou praticamente todos os últimos governos do Brasil, foi presidente do Senado durante a ditadura militar, presidente do partido governista ARENA, vice-presidente de Tancredo Neves, presidente da república, apoiou os governos de FHC, Lula e Dilma, presidindo novamente o senado nestes períodos.

Afora isso, José Sarney é latifundiário, proprietário de seis afiliadas da TV Globo, de emissoras de rádio e de jornais. Com essa presença econômica, política e midiática, Sarney, permanece há quase 50 anos com as suas mãos no poder, concretizando cada vez mais uma liberdade política e econômica que aponta não para os interesses do povo que ele sempre disse representar, mas para interesses seus, de seus familiares e de seu partido.

Bom coronel que é, Sarney colocou sua filha no poder, Roseana, que começou como deputada federal, foi duas vezes governadora do Maranhão – o curral do clã -, senadora da república, e, em 2010, novamente governadora do Maranhão. Obviamente, não foi por ter bem representado o povo que a princesa da oligarquia maranhense mereceu por tanto tempo, e por várias vezes, a dianteira política.

Em 2014, a respeito da crise penitenciária do seu estado, evidenciada tragicamente pelas dezenas de decapitações de presos no presídio de Pedrinhas, Roseana disse ao Observatório da Imprensa que as coisas por lá iam muito bem, e que a violência só acontecia por que o Maranhão estava rico. Exclusivamente para ela a riqueza maranhense era verdadeira, dado que um dia antes da infame declaração ela havia autorizado licitações para a compra de camarões gigantes e sorvetes importados para o Palácio dos Leões, sede do governo.

Hoje, é Eduardo Cunha a figura descarada do coronel que não se priva de desorganizar a “res” pública para, com isso, organizar as suas e as do seu partido. Assim (sobre)vive o coronel; assim marcha o coronelismo: um erro que, pela força de seu vício intrínseco, sobrevive mentindo para todos que é um acerto. E tanto faz que o poder de Cunha seja deslegitimado ética, política e economicamente, pois para um coronel não existe coisas tais como lei, ética ou povo, apenas os seus imperiosos interesses particulares.

O coronelismo clássico que dominou o Brasil até o início do século passado foi reduzido quando, a partir da década de 1930, grande parte da população migrou para os centros urbanos, acessando com isso à educação e aos meios de comunicação, e por isso se tornando politicamente mais consciente e crítica. Não seria o caso então de efetuarmos algum tipo de migração, ainda que não geográfica, no sentido de esvaziarmos o curral onde as leis dos coronéis contemporâneos vigem verticalmente?

Todavia, qual é o “lugar” no qual estamos cativos do coronelismo de Cunha que, abandonado por nós, deixaria o coronel sozinho e sem poder sobre ninguém? Seria a democracia esse lugar? Oxalá não seja, pois, concordando com Aristóteles, a democracia ainda é o menos pior de todos os regimes de governo. Talvez o angusto sítio que devamos deixar de ocupar seja o minifúndio, nada cidadão aliás, onde apenas nos indignamos passivamente com as absurdidades dos coronéis.

Ora, qualquer indignação passiva da população apenas vai de encontro aos propósitos ativos do coronel. Devemos, portanto, migrar não “de” nossas indignações para um lugar onde elas não nos aflijam, mas, antes, migrar com as nossas indignações para um lugar onde elas surtam efeito contra aquilo que nos indigna. Do contrário, o poder dos coronéis só crescerá, mais nu e vergonhoso do que nunca.

Se o coronelismo atual, diferente do da era pré-Vargas, não se restringe mais apenas aos maranhões rurais brasileiros, mas ocupa despudoradamente o centro iluminado do poder, é esse centro que devemos abandonar. Porém, não para deixá-lo livre para os coronéis. Antes, “abandonar o centro” deve significar habitar capciosamente sua periferia, a ponto de fazer dela uma trincheira de onde possamos espreitar todas as facetas e estratégias dos coronéis que roubam, dos “observadores periféricos entrincheirados”, o centro para si.

Migrar para a periferia política, ao contrário do que pode parecer, não é desertar o campo de batalha, mas, paradoxalmente, tocá-lo de modo ainda mais direto, isto é: estar asfixiantemente em torno do problema central que nos aflige. Por isso os nossos cinquenta tons de indignação contra o coronel Cunha não serão efetivos enquanto, dentro do latifúndio dele, nos indignarmos apenas nas nossas solitárias navegações no Facebook, leituras de jornais e audiências televisivas. O fim de Cunha, como ele deixou bem claro, não partira dele, e, pelo teor de suas ameaças, tampouco dos que dividem o palácio central com ele.

Já nós, que até aqui apenas nos indignamos passivamente com os desfeitos do coronel Cunha, temos de abandonar esse parlatório inócuo e ocuparmos um lugar bem mais crítico, sabendo, contudo, que a construção de mais um limite aos coronéis, a exemplo do século passado, será lenta, histórica, e sobretudo exigirá movimento ativo do povo, melhor dizendo, sua evolução. Do contrário, Sarneys, Roseanas, Cunhas e demais coronéis sobreviverão impertinentemente, ao melhor modo zumbi, apodrecendo vivos, porém, sugando a vida do povo em função se sua insaciável fome de mais-poder.

Para um futuro livre do cabresto coronelístico, devemos espreitar, seja nas efemeridade das urnas, seja no longo período entre elas, todo e qualquer representante político para sabermos se seus objetivos giram apenas em torno do mais-poder ou se, antes, há alguma verdade sob as togas brancas-democráticas por meio das quais se elegem. Isso porque não há futuro com coronéis no poder, somente mais do mesmo, isto é, mais do sórdido passado brasileiro, em função do qual, aliás, um futuro realmente novo e descontaminado do velho “brasileirismo” chamado coronelismo se faz tão necessário.

Revolução, reação e o vetor histórico.

De junho de 2013 a março de 2015 duas forças antagônicas encarnaram no povo brasileiro. A primeira, chamada por muitos de vândala, protestava contra tudo o que lá estava e sempre esteve, clamando por um novo Brasil. As máscaras dos black bloc simbolizavam nada mais nada menos do que a face ainda ausente do país a ser inventado futuramente. A segunda e mais recente força, cujo símbolo é a panela ruidosa – que, entretanto, quem nela bate não a lava – também vai contra o que aí está, mas não contra o que até aqui esteve, pois tal levante simpatiza com um velho e traumático passado no qual a democracia foi suspensa por força maior, qual seja, a militar.

Ora, revolução e reação são movimentos diametralmente distintos, cada um apontando para um lado da linha histórica. O primeiro, explodindo do agora em direção ao desconhecido futuro, e o segundo, ao contrário, fugindo tanto do presente quanto do futuro, passado adentro. A pecha que se desenrola pelas avenidas e pelas timelines brasileiras entre tendências revolucionárias e reacionárias pressupõe um resultado vetorial, até aqui desconhecido, porém de máximo valor, que, por conseguinte, empurrará o Brasil ou um tanto para o futuro ou um tanto para o passado.

Claro, resta ainda a possibilidade de tais forças terem o mesmo valor, o que sobremaneira as anularia, não gerando assim movimento final algum. Esse seria o horizonte mais crítico à democracia: a ausência de uma maioria na presença irredutível de duas metades de mesmo peso. O quase empate no resultado final da última disputa presidencial é o melhor exemplo de como a maioria e a minoria podem se emparelhar numericamente, instigando assim a própria democracia.

Entretanto, quando não é o poder da maioria o desígnio absoluto outros poderes entram no concurso, e a força do capital, adaptável a qualquer rinha, é a primeira a fortalecer um dos lados empatados. Bem, na adversidade o capital é absolutamente reacionário; na ventura, apenas finge revolucionar. Então, quando o sonho da horizontalidade começa ganhar substantivas pinceladas de materialidade – e o quadro da última década tupiniquim foi esse “work in process” -, o capital abandona imediatamente os apólogos do “agora em diante” para se enfileirar verticalmente aos demagogos do grande ontem.

A força revolucionária ensaiada em 2013 começou tímida, pedindo seus vinte centavos de volta, mas não tardou a engrossar sua demanda, a ponto de ser necessário todo um novo Brasil para atendê-la. Já a força reacionária em performance nesse 2015 crísico irrompe impetuosa, indignada, com demandas que também extrapolam um punhado de centavos, porém, com a diferença de não almejar um país novo, mas clamar pela velharia política passada que desmerece a democracia e sobreleva a tirânica presença militar. Porém, nem tudo está perdido, pois ainda que a reação conte com generoso patrocínio do capital, a revolução tem como aliado inexorável o próprio sentido da história que aponta apenas para o futuro. Felizmente, o capital é só uma página, e recente, dessa história.

A luta da classe

Da afirmação de que “capital não é o capitalismo, mas a liberdade”, veio a pergunta: “seria a luta de classes o ‘meio’ para alcançar tal liberdade?” Pois bem, dando corpo à utopia de Marx e Engels, certamente sim. Para estes dois, o capitalismo cria duas classes essenciais, quais sejam, a dos capitalistas e a dos trabalhadores, aonde a primeira explora necessariamente a segunda. Entretanto, como os dois já sabiam, “a exploração de uma parte da sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos anteriores”. Sendo assim, a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas é apenas mais do mesmo, visto que o antagonismo entre classes não foi abolido nas relações capitalistas.

Porém, de acordo com os autores do Manifesto Comunista, uma diferença essencial é introduzida pelo capitalismo: a simplificação desse antagonismo em dois campos opostos, o que dramatizou sobremaneira a histórica relação de exploração de uns sobre outros. Segundo Marx e Engels, a classe da “burguesia colocou uma exploração aberta, direta, despudorada e brutal”, diretamente sobre o proletariado. Isso revela que o antagonismo entre ricos e pobres não aconteceu por acidente, não sendo, assim, facilmente revolucionável. Antes, é uma estrutura historicamente construída para figurar dessa forma, ou seja, desigual, a cujos explorados a revolução é sistematicamente bloqueada.

Se para Marx a luta de classes daria conta de libertar os trabalhadores da exploração, era porque ele entendia, de acordo com suas palavras, que “só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária”. Todavia, por que essa verdade locada pelo filósofo na classe explorada não foi capaz de realizar a revolução? A resposta talvez esteja em uma outra afirmação dele que, no entanto contradiz a primeira: “a burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente [as] relações sociais”. Ora, como pode “só” o proletariado ser revolucionário se a burguesia também o é, e “incessantemente”? Seria a classe proletária a possuidora do direito à revolução, mas somente a capitalista a que a efetua como modus oprerandi?

Se ambas as classe são de fato revolucionárias como as frases do filósofo apontam, diante do devir do capitalismo até aqui, resta dizer, portanto, que o potencial revolucionário dos trabalhadores, apesar de existente, é inócuo; ao passo que o dos capitalistas, vitorioso. Então, a promissora luta de classes preconizada por Marx parece ser o meio dos explorados submeterem-se ainda mais à exploração, e não o meio de libertarem-se dela. A luta contra o capitalismo parece acabar sempre em favor do próprio capitalismo! Marx não estaria falando também da classe proletária ao dizer que “a aristocracia feudal não é a única classe arruinada pela burguesia”?

Entretanto, qual foi, e qual é, até hoje, a luta real entre as classes dos trabalhadores e a dos capitalistas que, não obstante, só fez aumentar o poder destes sobre aqueles? Essa luta, materialmente, vem sendo nada além da relação comercial na qual o trabalhador vende a sua força de trabalho para esta ser explorada pelo capitalista, porém, unicamente de acordo com as necessidades deste. Essa relação, todavia, começa e finda com o trabalhador perdendo e o capitalista ganhando. Primeiro, o trabalhador produz para o capitalista por, digamos, um mês, para só então receber o seu salário. Nesse processo, o capitalista usa de graça o trabalho que produzirá não só o dinheiro que irá pagar tal trabalho, como também o seu lucro pessoal. Segundo, e mais importante, o salário recebido pelo trabalhador pela exploração é todo gasto na compra de mercadorias vendidas pelos capitalistas, devolvendo-lhes, assim, a miséria que receberam pela exploração mensal. Ou seja, é o trabalhador que de um lado paga a si mesmo com o seu trabalho, e por outro, enriquece o capitalista comprando as suas mercadorias; fazendo assim com que tudo o que o capitalista investe retorne “engordado” para ele.

Então, Marx pergunta: “O trabalho do proletário […] cria propriedade para o proletário? De modo algum. Cria o capital, isto é, a propriedade que explora o trabalho assalariado”. Está aí o tendão de Aquiles da luta-relação real entre a classe dos capitalistas e a dos trabalhadores. Disso Trotsky já sabia ao afirmar que “o proletariado não pode conquistar o poder dentro do sistema legal estabelecido pela burguesia”. O “capitalismo têm minado em todos os aspectos a construção de uma consciência revolucionária”, reitera o sociólogo James Petras.

A expressão “luta de classes” significa coisas diversas, e inclusive contraditórias. Para os trabalhadores, tal luta, enquanto relação material significa a venda constante da sua força de trabalho a ser explorada, ou seja, a subjugação diante do capitalista; mas, enquanto utopia significa uma inversão disso, em cuja vitória sua seria a classe capitalista a subjugada – o que, no entanto, não aconteceu até hoje. Do lado dos capitalistas, por sua vez, a luta enquanto relação material é a compra da força de trabalho por menos do que ela vale, já com o intuito da obtenção da mais-valia que desemboca na riqueza; porém, para estes, enquanto utopia revolucionária, na qual essa mais-valia permaneceria nas mãos dos trabalhadores que a produziram, essa luta não lhes oferece risco real algum.

O que os capitalistas querem mesmo – ao modo de já desenvolvê-la – é apenas uma relação material e ordinária com os trabalhadores, na qual estes permaneçam oferecendo-se à exploração, sem as lutas de classe realmente revolucionárias como as utopias sustentam. Basta, por conseguinte, não entrar em luta contra os trabalhadores. A classe detentora dos meios de produção usa o seu poder para salvaguardar tal poder mais do que tudo; produzindo, junto com as demais mercadorias, uma fundamental à sua sobrevivência: a repressão à ideias e valores que a ameacem. As lutas que o capitalismo empreendeu, na verdade, foram apenas duas: uma contra a aristocracia feudal, da qual saiu o vitorioso histórico; e outra, que constantemente desenrola, contra ela própria, isto é, a disputa interna entre os capitalistas por mais mercados.

Por conseguinte, a luta de classes que usualmente temos em mente entre capitalistas e trabalhadores, do lado dos capitalistas resume-se em uma relação cotidiana, isto é, na própria ordem do capital, que, sobretudo, deve permanecer ad aeternum. Já para os trabalhadores, essa luta que de um lado é uma relação real, na qual ele jaz subjugado, de outro, enquanto utopia revolucionária, na qual o subjugado é o capital, tal luta é o horizonte do qual o trabalhador, por conta da exploração que sofre, não consegue – e talvez não deva mesmo – desviar os olhos. Por conseguinte, a luta de classes, enquanto embate, é só dos trabalhadores, e não dos capitalistas. Estes, antes, querem a sua ausência. Se uma classe está bem, por que desejar inimigos? Desse modo, a luta que promete libertar os trabalhadores da exploração é apenas a luta de uma classe, a dos próprios trabalhadores.

A luta que envolve as duas classes, a dos capitalistas e a dos trabalhadores, já é o próprio capitalismo em sua saúde plena, de forma alguma aquilo que causaria o seu fim. O capital, em luta, é sempre vitorioso, pois o campo de batalha, as armas e o exército, simbolizados pela fábrica, pelas máquinas e pelos trabalhadores, respectivamente, desde o início do embate já são dos capitalistas. O trabalhador, nessa guerra, só entra para morrer. A luta de classes, portanto, é a expressão de um otimismo que favorece duplamente o capitalista, pois mantém os trabalhadores imersos em uma utopia até aqui inefetiva que, por conseguinte, os submerge cada vez mais fundo dentro do oceano capitalista que, como podemos perceber historicamente, não tem fundo.

O capital prossegue fortalecendo-se, seja na luta que os trabalhadores intentam contra ele, seja na sua relação “tradicional” para com eles. Inversamente, na única relação que o capital lhes oferece, os trabalhadores, infelizmente, são paulatinamente furtados tanto de sua força trabalho quanto da possibilidade de venderem essa força. A instituição materializada disso são as megafavelas que crescem ao redor do mundo, nas quais o proletário explorado entra para, em pouco tempo, tornar-se o “lumpemproletário” sem condições sequer de dispor ou de vender a sua força de trabalho. De acordo com a obra de Mike Davis, “Planeta favela”, na China, 40% da população é favelada; na Índia, 56%; na Nigéria, 80%; em Bangladesh, inacreditáveis 85% da população é favelada, estando abaixo da linha que lhes permitiria participar ativamente da sórdida roda exploratória do capitalismo. Um dos produtos do capital, talvez o mais cruel e desumano, é uma classe trabalhadora cada vez mais incapaz de enfrentá-lo.

A crença revolucionária de Marx de que “a burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros” cada vez mais revela seu teor utópico, pois “hoje os capitalistas não “arregimentam os homens que manejarão as armas” que desferirão o golpe mortal no capitalismo [como pensavam Marx e Engels]. Eles criam milhões de trabalhadores temporários, instáveis, amedrontados, amarrados ao nexo monetário”, aponta Petras. Desse modo, Marx estava errado ao dizer que “o proletariado, como resultado da sociedade moderna, traz em si a missão de suceder a burguesia”. Antes, a missão histórica do proletariado parece ser a vivificação cada vez mais intensa da burguesia; e o ideal da luta de classes, a sucessão dessa vida.

A classe capitalista, atualmente, se reproduz e se fortalece cada vez mais por intermédio de movimentos – investimentos – virtuais que paulatinamente a dispensam tanto da relação com o proletariado quanto da luta deste contra ela. Aliás, como bem ressaltou Petras, “a concentração e centralização de capital em escala global e o desenvolvimento de novas tecnologias são acompanhadas pelo ressurgimento de modos de produção pré-capitalistas baseados na exploração intensiva do trabalho”. A classe do capital, portanto, em vez de enfraquecer-se mediante a luta dos trabalhadores contra ela, nada mais faz que renovar incessantemente o germe de seu reaparecimento. Os enfrentamentos que recebe só a fortalecem.

Trotsky já havia percebido a ingenuidade de Marx e Engels em acreditarem que o capitalismo estaria liquidado antes de passar à sua fase de absoluto reacionarismo. Na verdade, segundo Petras, “hoje, a burguesia conta com o véu de uma retórica “pós-capitalista” para se referir a formas primitivas de exploração”, como que voltando à sua juventude, à incontrolável potência que reside em todo germe. Por outro lado, a globalização do capital fez do trabalhador um corpo global e amorfo, que somente agindo coordenada e também globalmente poderia revolucionar a realidade que o explora. Porém, a dificuldade de concatenar um exército mundial de trabalhadores à revolução é mais um produto do capitalismo que garante a sua perpetuação.

Consoante a isso, a luta de classes revolucionária – que a esta altura deve ser vista como a luta solitária da classe oprimida – é enfraquecida ainda mais devido ao fato de que o trabalhador atual não quer dar cabo do o burguês capitalista. O consumismo, produto essencial do capital, na verdade, faz do rico capitalista o sonho individual e a meta da maioria dos trabalhadores. A luta dos trabalhadores se dá mais no sentido de abandonar a classe a que pertencem, para então emergirem à classe dos seus algozes, do que no intuito de todos, capitalistas e trabalhadores, migrarem para uma classe única, intermediária, e sem desigualdade, como prega a utopia comunista. No capitalismo, ora bolas, todos querem ser capitalistas! O capital só é porque capitalizado por todos!

Infelizmente, a consciência de classe que guiaria os trabalhadores a uma luta realmente eficaz à revolução é sistematicamente solapada pela consciência maestra da classe capitalista. Esta sabe como, além de possuir os meios para capitalizar a sua própria realidade, transformá-la em mercadorias – no mais das vezes ideológicas – que, levadas ao mercado, retiram dos trabalhadores não só a miséria com a qual estes foram pagos para produzirem tais produtos, mas também a força de suas utopias e da realidade de suas necessidades, colocando, por conseguinte, as suas no lugar. A luta dos trabalhadores, até aqui, não é a de classes, mas sim a de uma única classe, a sua própria. Também não é contra os capitalistas, mas contra si mesmos. Em respeito a isso, Marx disse a eles: “Vós tereis de passar por quinze, vinte, talvez cinquenta anos de guerras civis e internacionais, não somente para mudar as condições sociais, mas [principalmente] para mudar a vós mesmos, e tornar-vos aptos a assumir o poder”.

Maquiavel e Marx contra a muralha do poder

Uma leitura transversal de “O Príncipe”, de Maquiavel, mostra que a obra dirige-se àqueles que pretendem conquistar e manter o poder. Entretanto, o filósofo não teorizou no sentido de trazer à luz do mundo receitas utópicas através das quais os príncipes podeiam, a partir da leitura, galgar algum poder ainda não alcançado. “O Príncipe” é muito mais a reificação das velhas formas com as quais os soberanos capitalizavam o poder para si. Esse caráter técnico – e não teórico – da obra redefine sobremaneira a sua pertinência.

“O Príncipe” maquiavélico não traz nada de novo àqueles que atendem pelo nobre título, apenas “manualiza” suas realidades incontestes. Há que se perguntar a quem toda essa informação estratégica serve. Antonio Gramsci, na sua leitura de “O Príncipe”, revelou o caráter revolucionário da obra, dizendo que ela se dirigia ao povo, aos moldes de um manifesto invertido, e não àqueles que intentam subjugá-lo. De que modo um texto remetido aos soberanos endereçar-se-ia, em verdade, ao povo, visto que este é a massa de manipulação daqueles?

A propriedade da interpretação gramsciana de “O Príncipe” reside na inutilidade que o teor da obra tem àqueles que já são esse teor – essa teoria – na prática. O que fica claro através da visão de Gramsci é que as realidades dos príncipes, e os seus ardis modos de ser, são levados pela primeira vez ao conhecimento do povo, justamente os que estiveram alienados desse “modus operandi” soberano. Sendo assim, o ouro da realidade descrito por Maquiavel, de acordo com Gramsci, é útil exclusivamente ao povo, porquanto é este a vítima primeira da inadvertência acerca da forma com a qual é dominado.

Abrindo ao mundo a realidade crua com que o poder é conquistado e mantido pelos príncipes, Maquiavel revela o escopo laico e pragmático das suas práticas. É aí que “O Príncipe” serve melhor ao povo que aos soberanos, pois, uma vez esclarecido o modo com o qual estes manipulam aqueles, a soberania do príncipe é ameaçada, não por algum inimigo externo, mas justamente pela verdade intrínseca do seu ser. Logo, uma vez revelada a mística com a qual o poder historicamente se camuflava para melhor inscrever-se sobre o povo, este tinha em mãos a chave para revolucionar as tradicionais estruturas do edifício do poder.

Outra obra histórica que, sob o título do vilão, dirige-se às suas vítimas, é “O Capital”, de Karl Marx. Nesta obra, o filósofo, ao falar da sordidez eficiente do capital em conquistar e manter o seu poder, não teoriza no sentido dos capitalistas, visto que estes são o teor vivo e consciente da realidade d’O Capital. Antes, a obra de Marx revela aos inadvertidos o agir do capital em seus secretos modos de ser. A diferença entre “O Príncipe” e “O Capital” é que aquele não se assume revolucionário; ao contrário, é imediatamente reacionário em benefício do poder estabelecido, porém, de acordo com Gramsci, absolutamente subversivo sub-repticiamente; enquanto “O Capital” é uma chave declarada à revolução, desde o início desnudo, direto e escrito ao proletariado.

O contexto histórico de cada um dos dois autores determinou sobremaneira a apresentação do teor revolucionário de suas obras. Maquiavel escreveu em um mundo no qual homens eram punidos severamente pelo que diziam, como seus contemporâneos Giordano Bruno, queimado vivo, e Galileu Galilei, declarado herege. Portanto, caso Maquiavel quisesse comunicar a revolução que Gramsci viu nos seus escritos, não poderia fazê-lo abertamente, apenas subversivamente. Já Marx experienciou um momento histórico que só não pode ser chamado de totalmente laico por conta do abstrato Deus Capital. Todavia, o poder capitalista contemporâneo de Marx não ameaçava a sua vida por que desnudado por ele.

Tomando o escopo revolucionários de “O Príncipe” e o de “O Capital” – aquele maquiavelicamente subversivo, e este marxianamente revolucionário -, ambos revelaram as faces sórdidas subjacentes às suas realidades históricas. No entanto, os súditos dos príncipes e os proletários do capital, ainda que conscientizados das astúcias de seus carrascos, não puderam revolucionar a realidade em benefício próprio. Tanto o poder dos príncipes, como o do capital, souberam cooptar com maestria a sua evidenciação pública, usando seu ser desnudo como combustível de sua manutenção, dado que o povo seguiu sujeito ao poder. A diferença é que hoje sabemos cientificamente como o poder nos coopta.

Seria a evidenciação da realidade suficiente para revolucioná-la, ou essa assunção, ao contrário, seria a forma, doravante laica, de a realidade perpetrar-se? Se atentarmos ao devir histórico no qual Maquiavel e Marx se atravessaram, perceberemos que as verdades incontestes dos dois filósofos serviram muito mais ao arvoramento do poder estabelecido que ao seu solapamento. Portanto, sobrevém a pergunta: seria mais revolucionário deixar o poder dos príncipes e o poder do capital mistificados, ocultos em si mesmos, a fim de que suas ruínas pudessem lhes pegar de surpresa?

Marx dizia que o capitalismo tem o seu ponto de saturação máxima a partir do qual solapará irreversivelmente. Difícil é estabelecer esse limite e o início desse processo… Porém, Marx, ao abrir o ser do capital ao mundo, abriu-o também ao próprio capital, ou pelo menos à sua face inconsciente de si. A partir daí o monstro pode psicanalisar-se e encontrar formar de permanecer sendo. Caso o alemão não tivesse revelado o ser do capitalismo tão objetivamente, estaria o capitalismo mais vulnerável a si mesmo e, portanto, mais suscetível ao destino que o próprio Marx previu para ele?

Desde a antiguidade o homem investe na crença de que é a verdade o caminho a ser seguido por ele, e a ciência desenvolvida desde lá é o edifício absoluto dessa crença. Estaria, contudo, essa fé na verdade, fazendo o desserviço em relação àquilo promete? Se a verdade maquiavélica e a marxiana serviram muito mais ao fortalecimento e à manutenção das sórdidas realidades estabelecidas, antes ocultadas das pessoas por suas místicas abstratas, é de concluir que a fantasia com a qual o poder se reveste é o seu primeiro e maior inimigo, e não a verdade que brinca de desnudar o seu ser. Nu, o poder é ele mesmo, tem menos a perder e menos franjas suas nas quais tropeçar.

Portanto, a melhor estratégia para vencer o inimigo é muito menos conhecê-lo pormenorizadamente, pois assim o conhecedor, no ato do conhecimento, entende o ser investigado e torna-se, inadvertidamente, aquilo que conhece, aumentando-lhe o ser. Por ventura não foi assim que o poder soberano esmiuçado por Maquiavel encontrou forças para sobreviver até hoje? E não foi a ciência que o capitalismo pode ter de si próprio a sua maior mola propulsora? De que modo o povo, vítima constante do poder, poderia revolucionar a sua crítica realidade a despeito das verdades dos poder que o domina? Marx, no Manifesto comunista, disse que violenta e repentinamente, sem procurar negociar com o poder estabelecido nem entendê-lo, pois esse diálogo enfraqueceria a voz revolucionária e manteria vivo algo do inimigo.

Então, buscar conhecer o poder que nos oprime é um dos modos de ele ganhar nova vida, porquanto essa verdade é apenas o funcional deslocamento do poder do plano ininteligível e místico do real, passando pela semi-inteligibilidade manipulável da realidade, e cristalizando-se eternamente no busto de seu próprio conceito científico. Seria o poder menor se menos tematizado? Ou, caso permanecesse alienado dos despoderados, envolto nos seus próprios misticismos primordiais, sucumbiria ele mais rapidamente às suas próprias contradições? Entrementes, a verdade do poder, a exemplo das verdades maquiavélicas e marxianas que não mataram o poder de uns sobre todos, é melhor que permaneça mística, pois, reificada, acaba se tornando tijolos novos na velha muralha com a qual o poder resiste ao tempo.

Sofistaria Avant-garde

Embora historicamente estigmatizados, os sofistas foram homens que produziram a primeira grande revolução na nossa antiguidade social, iniciando o desvínculo entre as primitivas instituições humanas e o sagrado. Os sofistas foram, de certa forma, absolutamente modernos em pleno coração da antiguidade, iniciando uma globalização laica das práticas humanas, colocando-as “em rede” e as tornando acessíveis a qualquer terminal humano que pudesse pagar por elas. Podemos, inclusive, enxergá-los como os “Black Bloc” que enfrentaram o poder – sagrado –  estabelecido, botando-o abaixo. Até 300a.C. não havia diferença entre um sofista, isto é, um sábio, e um filósofo, a saber, um amante da sabedoria. Até o grande Sócrates era, muitas vezes, tomado por um sofista. Entretanto, foi Platão que inventou a diferença entre estes dois modos de relacionamento com o conhecimento, dizendo que aquilo que os sofistas faziam era diferente, e menor, do que aquilo que ele e seu mestre Sócrates faziam.

O estrangeirismo doravante ressaltado nos sofistas foi a rasteira clássica com que os gregos os desqualificaram irremediavelmente, visto que, para os antigos helenos, o maior e mais legítimo valor era o de ser um cidadão reconhecido. Entretanto, os sofistas se insistiram presentes. A arte destes sábios injustamente periferizados agiu sobre as primordiais instituições humanas, transformando-as, inclusive para que fosse possível o apogeu platônico da metafísica que os desqualificou retrospectivamente. Nos primórdios da humanidade, o conhecimento era individualizado e com validade estritamente familiar, a ponto de ser ao mesmo tempo sagrado e secreto. Embora estas duas palavras não tenham o mesmo significado, há um sentido comum entre elas, aqui significativo: “inviolável”. Os sofistas, portanto, foram esses forasteiros, ditos ímpios, que violaram esses saberes familiares sagrados e secretos, derramando-os no profano solo social.

De certa forma, a sociedade humana global não aconteceria caso os saberes seguissem particulares e secretos, escondidos na sacralidade dos desconexos núcleos familiares. Logo, os sofistas fizeram as primeiras relativizações epistemológicas ao descobrirem e confrontarem os desencontrados grãos de conhecimento espalhados pelos chãos do mundo. O estrangeirismo errante destes sábios ajudou muito nessa empresa, pois, viajando o mundo, encontravam verdades absolutas locais e nucleares, totalmente diversas e incompatíveis entre si; o que, no final, evidenciava a não existência de verdade universal alguma. Estes apátridas relativizadores trataram de contar – mercadologicamente, de fato – essa que poderia ser a única verdade universal, ou seja, a inexistência de verdades universais. Essa foi a grande afronta sofística ao secreto e sagrado conhecimento que estruturava e individualizava cada família, gen ou fratria antiga, porquanto solapava as sacralidades invioláveis, revelando suas funcionalidades terrenas.

De posse desse novo e universal saber, os sofistas foram os que, laicizando as práticas humanas, primeiramente deixaram de sustentar o populoso panteão divino antigo, legitimador sagrado daquela sociedade, o que foi eternizado na máxima de Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas” – sabedoria que só seria desenterrada no iluminismo, vinte séculos depois! Como assim, perguntaram-se os gregos, é o homem a medida? Até então, e indubitavelmente, eram os nossos deuses ancestrais! Platão, o filósofo que degradou os sofistas, via na sabedoria secular destes o impedimento à sua própria teoria do mundo das ideias eternas e verdadeiras, superior e independente dos homens. Portanto, esses sábios que lidavam com o saber de forma desapaixonada e laica, ao contrário dos envolvidos amantes filósofos, sofreram, a partir de Platão, um injusto ostracismo da história epistemológica. Na sequência, somente Aristóteles manteve-se com os pés cravados no mundo físico material, entretanto, depois dele, a caminhada humana foi em direção ao apogeu cristão que, vitoriosamente, alienou a medida universal do homem, coagulando-a num mundo deveras platônico, entrementes,  reinado por um Deus absoluto e onipotente.

Caso a força sofista tivesse sido positivamente reconhecida pelos antigos gregos, o absurdo mundo das ideias ideais platônico, e o seu fruto legítimo, o céu cristão habitado por um deus ideal, teria pervertido menos a terrena história da humanidade. Foi preciso uma Idade das Trevas inteira para que a insustentável negação da medida protagórica caísse por terra e o homem se assumisse, profanamente, como a medida de todas as coisas. A fantasia divina, apesar de ter sido o princípio estruturador da humanidade, foi um conjunto de saberes temporários que, todavia, não se sustentaram quando frente-a-frente na agora. Havia uma verdade mais baixa e simples, portanto mais universal, a de que a verdade absoluta era o próprio homem em sua ignorância em relação ao cosmos, verdade essa que os sofistas descobriram primeiro. A própria evolução histórica lineariza isso, dado que cada época, e suas verdades inerentes, não obstante desvanecem diante das outras, da mesma forma como a verdade sagrada de uma antiga família era negada e solapada pela de outra.

Os sofistas formam chamados de vis mercadores de sabedoria pelos cidadãos gregos que sobrevalorizavam o ócio em detrimento do trabalho. Porém, o calcanhar de Aquiles daquela sociedade grega era a estabelecida escravidão que sustentava o modo contemplativo e vagabundo da tradicional aristocracia política. Trabalhar era indigno para um cidadão-homem-rico-grego, era coisa de escravo. Por conseguinte, os sofistas, ao venderem profissionalmente suas ideias, foram rebaixados ao nível da inessencialidade. Entretanto, da modernidade até hoje, estes artífices do saber que conseguiram transformar em produtos vendáveis as suas visões de mundo não merecem mais tal estigma. Ao contrário, deveríamos prestar homenagem e gratidão a esses aventureiros que, séculos antes de Nietzsche, mataram os deuses e fizeram o primordial parto de uma humanidade prisioneira de um útero tomado, inadvertidamente, como o local sagrado, secreto e familiar das sabedorias essenciais.

Se os muitos deuses familiares, bem como os fálicos&machistas “pater família” primordiais, foram questionados nos fictícios dogmas que sustentavam – e com os quais mantinham cativos os seus -, sendo historicamente derrotados, devemos isso aos sofistas, pois foram eles que, primeiramente, viram o logro do divino-sagrado-secreto sobre o humano. Hoje, para o bem e para o mal, ou para além deles, somos resplandecentemente a medida sofística inquestionável de todas as coisas, pois  sabemos, cientificamente!, que as nossas venturas e revezes não são frutos de desígnio divino algum, mas sim das nossas próprias desmedidas. As verdades humanas são históricas, contingentes e efêmeras, e subsistem pontual e nuclearmente conquanto não sejam questionadas. Porém, uma vez relativizadas, essas verdades particulares padecem precisamente daquilo que deveria ser sua essência substancial, ou seja, de sua validade universal, revelando-se, sempre, ferramentas caídas nas mãos da atávica ignorância humana. Esta foi a desagradável verdade que os sofistas introduziram no fantasioso mundo dos homens, revolucionando humanamente os dogmáticos bancos dos saberes privados.