PMDB, o Leviatã brasileiro.

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Foto: José Cruz/Agência Brasil

Etimologicamente, Estado vem do Latim “status”, e significa a condição ou situação do que está, do que fica de pé. E diante da turbulência política e da fragilidade institucional que o Brasil enfrenta, que tem como ícone maldito o golpe do PMDB contra a presidente Dilma Rousseff, é inevitável perguntar: o que “ficará de pé” no Estado brasileiro?

Instituição soberana, o Estado é composto por uma série de outras instituições hierarquizadas em cuja base estão os cidadãos. De uma perspectiva materialista, a cidadania é instituição primeira, pois erigida a partir de indivíduos concretos, em função do quais aliás um indivíduo supremo e abstrato, o Estado, existe.

Todavia, depois de instituído, o Estado se transcendentaliza em um indivíduo primeiro e absolutamente necessário que passa a contingenciar os cidadãos e suas necessidades.  Tal é a força do ser que o teórico político inglês Thomas Hobbes chamou de Leviatã: indivíduo soberano, resultado do contrato social travado por todos os indivíduos que o compõem em busca de segurança e justiça.

O Estado hobbesiano angaria extrema substancialidade, em outras palavras, “fica em pé” porque, embora resultado de um contrato coletivo, não fez trato com ninguém. O Leviatã é absolutamente único, portanto livre. Segundo Hobbes, cria e anula as leis que comandam os cidadãos conforme sua necessidade de “permanecer estando”.

O filósofo inglês coloca inclusive que é burrice os cidadãos tentarem revolucionar o Estado, pois quando este é golpeado são os seus cidadãos, melhor dizendo, o trato que travaram entre si que recebe tal golpe. Ora, se o Estado não mais está, tampouco estão os cidadãos, e o que se tem doravante é uma situação onde não mais há segurança nem justiça.

Pois bem, pensando a partir da teoria de Hobbes, o golpe de Estado que está em curso no Brasil outra coisa não trará aos cidadãos brasileiros senão insegurança e injustiça. Sendo assim, estaríamos chamando os cidadãos brasileiros de espécie de kamikazes ao sustentar que são eles os arquitetos desse golpe.

Dito isso, temos de responder à seguinte pergunta: quem no Brasil não se autodestruiria com o golpe? Solapar o Leviatã tupiniquim só não será considerado burrice, ou melhor, significará inteligência para aqueles que têm certeza de que não padecerão de insegurança e de injustiça.

De grande segurança, pelo menos desde a redemocratização do Brasil em 1985, goza o PMDB, partido político sem o qual nenhum outro chegou ao poder, e, como estamos podendo observar, tampouco se mantém aí sem ele. Então, se há um indivíduo a quem o golpe não afeta, mais ainda, interessa, esse deve ser o PMDB.

Agora, se falarmos de justiça a coisa se complica, pois o golpe que o PMDB tenta dar no Leviatã petista serve justamente para escapar à justiça deste, procedimento que Eduardo Cunha, peemedebista presidente da Câmara dos Deputados em cujas costas pesam muitos crimes e suspeitas criminosas, deixa bem claro. Cada vez mais claro também é que, para o PMDB, escapar à justiça do Estado petista, depondo-a, é a manutenção da injustiça que oferece ao PMDB a segurança de que goza há cinquenta anos.

Todavia, se o PMDB tem poder para depor o Leviatã petista para não estar sujeito à lei deste, o verdadeiro Leviatã é o próprio PMDB, pois, conforme Hobbes, quem cria ou infringe a lei ao seu bel-prazer e necessidade é o poder absoluto. O PMDB é o Leviatã, muito embora o jogo democrático dos últimos 26 anos tenha nos convencido de que foram e de que poderiam ser outros.

Em se efetivando o que Dilma e o PT estão chamando de golpe, resta a eles assumirem que outra coisa não foram nestes últimos 14 anos além de operários convenientes do poderoso Leviatã peemedebista enquanto, e somente enquanto, o trabalho que ideologicamente vinham fazendo não ameaçou a injustiça que dá suprema segurança ao indivíduo mais poderoso do Brasil, o PMDB.

A miserável saída de cena do PMDB

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O presentíssimo espetáculo político brasileiro, ao contrário do que as telas de TV golpistas mentem, não terá um final feliz com um golpe, mesmo que “branco”, isto é, político-jurídico. Em primeiro lugar, porque o que teremos em seguida será algo que atenderá ainda menos pelo nome de democracia, e, em segundo, porque a “morte” em cena aberta dos seus protagonistas, quais sejam, Dilma Rousseff e o PT, apenas deixará o palco livre para atores muito menos virtuosos e muito mais descompromissados com o bem-estar da plateia-povo-brasileira, tais como, Michel Temer e Eduardo Cunha, do PMDB.

Entretanto, não é outro o triste “working process” que o PMDB está produzindo para reestrear centralmente na Broadway política tupiniquim. Tão triste que nem um dos seus maiores roteiristas teve coragem de estar presente na cena-ensaio na qual o partido anunciou que estava abandonando o governo. Temer foi  o charlatão-mor que, de um lado, articulou diretamente o abandono do Planalto para chegar enviesadamente à presidência, mas que, de outro, não compareceu ao ato do abandono para não escancarar o fato de que, na verdade, quer nada mais nada menos que a presidência da república, enviesadamente mesmo.

Porém, à plateia que permanece atenta, não é difícil observar o que quer o espetáculo peemedebista com os gritos de “Fora PT”  e “Brasil pra frente, Temer presidente” que ecoaram rapidamente na sessão de três minutos realizada na Câmara dos Deputados, dia 29 de abril de 2016, na qual o partido, por aclamação, decidiu abandonar o governo Dilma. Tampouco as palavras de Eliseu Padilha, quais sejam, “temos de ter o partido fora da base do Governo para nos tornarmos um player em 2018” afastam a certeza de que não é o distante 2018 que visa o PMDB, mas esse mesmo 2016 crísico&agonístico.

E o patrocínio intensivo e apressado do PMDB a esse ato crísico&agonístico da “ópera brasilis” outra coisa não busca senão nublar o que disse o líder do PSOL, Ivan Valente, que “não podemos aceitar um impeachment sem argumentos jurídicos da forma como está ocorrendo”. Isso porque, embora o processo de impeachment exista na legislação brasileira, ele não foi concebido para funcionar como arma política. Nas palavras da própria Dilma: “nós estamos discutindo impeachment concreto sem crime de responsabilidade. E impeachment sem crime de responsabilidade é golpe”.

A declaração da controversa Marina Silva em relação ao desembarque do PMDB do governo tem ao menos a pertinência de relembrar-nos de que o PMDB é o mesmo partido de sempre, que decide romper com o Governo sem dar satisfação à sociedade nem pedir desculpas por ter sido um dos responsáveis pela atual crise. A política em cima do muro de Marina é virtuosa ao menos em sustentar que o PMDB quer apenas “se descolar da crise política e reinventar-se como solução. Continua o mesmo e velho PMDB tentando renascer das cinzas da fogueira que ele ajudou a atear”.

Não obstante, o tiro já saiu pela culatra peemedebista. A ordem do partido para que todos os cargos públicos, inclusive os ministérios da Ciências e Tecnologia, Aviação Civil, Minas e Energia, Agricultura, Saúde e Portos, sejam entregues não foi, nem tem como ser cumprida. Os seis ministros peemedebistas estão dispostos a continuar em seus respectivos cargos no governo de Dilma. Sem dizer que Temer, o articulador do desembarque, não desembarcou nem desembarcará de sua vice-presidência tacitamente acessória.

E para que as contradições peemedebistas não parem por aí, basta dizer que 24 horas depois do espetacular teatro de três minutos do PMDB, o senador Roberto Requião, do mesmo partido!, disse que Temer, na verdade, estava aplicando um golpe no próprio PMDB, pois, segundo o senador, não havia quórum para deliberar a saída do governo Dilma. Sugeriu ainda que era “só conferir nos vídeos”. Talvez por isso tenham escolhido nada claro sistema de aclamação, onde não se apura voto a voto a decisão da maioria. Um grito basta para fazer “democracia” para esse partido.

O PMDB, portanto, está aplicando um duplo golpe: o primeiro, na democracia que outrora ajudou a construir, e o segundo, em si mesmo, rachando-se em peemedebistas que concordam e peemedebistas que discordam do próprio PMDB. Dilma, a protagonista do primeiro golpe, acaba se beneficiando com o segundo. Rousseff, em vez de renunciar, como quer desesperadamente o PMDB, se aferra ainda mais às suas obrigações. Como ela não fez questão de esconder, não renuncia, “não desembarca” em hipótese alguma.

Dilma cancelou inclusive a sua viagem para os Estados Unidos na próxima quinta-feira para não passar temporariamente o comando do país ao seu vice, mentirosamente desembarcado, Temer. Como deixar seu objeto mais precioso, isto é, a nação que governa, nas mãos de um “companheiro” tão vil e tão pouco democrático?

E o tiro que já saiu pela culatra peemedebista findará como um legítimo tiro no pé se, como falou Marco Aurélio Mello, ministro do STF, não houver fato jurídico que respalde o processo de impedimento da presidenta Dilma, pois, nesse caso, “esse processo não se enquadra em figurino legal e transparece como golpe”. O problema, entretanto, é que esse tiro no pé atinge o povo brasileiro, visto que uma das estratégias golpistas é fazer com que a economia nacional, que afeta a todos, acompanhe os mesmos acordes sombrios da crise política que conta com a colaboração espetacular do PMDB.

O conselho de Mello, de que “agora precisamos aguardar o funcionamento das instituições … precisamos nessa hora de temperança”, parece não fazer parte do contemporâneo ideário peemedebista, que em parcos três minutos, e por razões que nem mesmo dentro do próprio partido encontram eco universal, saiu da cena que ocupa há trinta anos. Cena esta aliás que só está tão desagradável por conta da “coadjuvância” do próprio PMDB.

E agora o partido, esquecendo-se estrategicamente de sua velha e cada vez menos crível fala democrática, covardemente acusa a parceira de cena, Dilma, de ter errado a sua. Mas ela, como bem disse, jamais desembarcará deliberadamente da complexa e nem sempre agradável ópera histórica que no momento protagoniza, qual seja, o governo do Brasil. Bem diferente do PMDB…

Esquerdas brazukas

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Quando se afirma que um partido político não é “mais” de esquerda, de onde exatamente é proferida essa crítica? Do mesmo chão material e contraditório a partir do qual esse tal partido atuou e atua, ou, em vez disso, do topo de algum ideal abstrato que não muito valentemente preestabelece o que é e o que deve ser “a esquerda”, independente das contingencias da realidade?

No primeiro caso, a crítica é pertinente pois não exige do criticado conhecimento nem performance alguns que já não sejam conhecidos nem tenham sido “performados” por quem critica. No segundo caso, entretanto, a crítica é vazia porque solicita do criticado conhecimento e performance que quem o crítica ou não exigiu de si, ou não teve oportunidade de conhecer nem “performar” antes de criticar.

Muitos são os “esquerdistas” que sustentam que “o PT não é mais um partido de esquerda”. Assim falam pois pensam que os governos de Lula e Dilma foram demasiadamente permissivos com o liberalismo econômico, que não investiram na construção de uma consciência de classe àqueles que dão nome ao partido, quais sejam, os trabalhadores, e que não conseguiram escapar ilesos do mar de lama da corrupção brasileira.

Quem critica o PT do belvedere teórico de Marx e Engels ou de algum parlatório moralista não tem papas na língua para afirmar que o PT não é “mais” um partido de esquerda. Agora, quem acha que a prática vale mais que a teoria, certamente terá dificuldade em sustentar que o PT deixou de ser de esquerda ao considerar a aventura igualitária inédita que este partido trouxe e ainda está tentando trazer ao Brasil.

Considerando-se, por exemplo, a exclusão do Brasil do mapa mundial da fome, o revolucionário acesso ao ensino superior desde que o ENEM foi instituído, a energia elétrica e a água potável que finalmente chegaram aos confins do historicamente desassistido nordeste brasileiro, e, recentemente, a lei que aumenta o imposto sobre ganhos de capital, sancionada em 18 de abril pela presidenta Dilma Rousseff, de que lado da régua política esquerda-direita o PT deve ser locado?

Mesmo levando-se à risca a teoria marxista, do PT ainda não pode ser dito que não é “mais” de esquerda. Se, por um lado, o Partido dos Trabalhadores não realizou a revolução rápida e violenta que lemos no Manifesto Comunista, por outro, a revolução lenta e histórica que pode ser lida n’O Capital ainda mantém o PT dentro do necessário horizonte revolucionário.

A revolução rápida e violenta, que muitos consideram “a” utopia do sistema marxista, tem o vício de não contar com as contradições do inimigo para dar cabo dele. Pretende pulá-las. Entretanto, ao não serem levadas em conta, o revolucionário tampouco leva em conta as suas próprias contradições, que, estas sim, devem ser conhecidas e superadas antes de se atacar as do adversário.

Já a revolução histórica, que trabalha árdua e ininterruptamente sobre e contra as contradições do inimigo, que, não obstante, pode ser acusada de “reformista”, essa tem ao menos a virtude de poder conhecer as suas próprias contradições nesse processo, de reformá-las, melhor dizendo, superá-las, paralelamente ao conhecimento e à superação das contradições do inimigo.

E se a abertura liberal do PT nos seus três governos e meio, o não investimento imediato numa consciência de classe total, até mesmo a vulnerabilidade à corrupção, forem justamente as contradições desse jovem partido que, primeiro, devem ser conhecidas, não teoricamente, mas na prática concreta, para só então poderem ser verdadeiramente superadas?

Um partido de esquerda deve nascer pronto e nunca dispor do direito de evoluir? Não é isso que estão exigindo do PT?

O Partido Comunista Brasileiro, com efeito, é o que mais pode criticar a “não esquerdice” do PT. No entanto, o forte e íntegro idealismo do PCB nem de perto produziu as mudanças materiais concretas que o seu alvo de crítica implantou. É muito fácil permanecer íntegro longe da realidade. Bem mais difícil, corajoso, e por que não dizer verdadeiramente revolucionário é construir essa integridade com as mãos sujas do sujo barro da realidade.

Da segurança de um ideal de esquerda é fácil dizer que o PT não é “mais” um partido de esquerda. Agora, e se o verdadeiro esquerdismo só ganhar sentido a partir do chão material sobre o qual ele é tentado, chão esse que em momento algum está livre de contradições, sejam as da realidade que se deseja revolucionar, sejam ainda as do próprio exercício de um diretiva de esquerda?

O próprio Lula é um exemplo concreto desse esquerdismo material. Entre escapar da miséria nordestina e ser explorado pela indústria metalúrgica paulista, o ex-presidente “analfabeto” elegeu o pragmatismo como via revolucionária. Se tivesse se aferrado apenas a ideias revolucionários anacrônicos e eurocêntricos provavelmente não teria tirado tantos milhões de pessoas da miséria nem colocado outros milhões na universidade pública, coisas que nenhum idealista de esquerda fez no lugar dele.

Idealismos à parte, Lula e o seu PT são as forças de esquerda mais efetivas da história do nosso país, apesar da intimidade que tiveram –e ainda têm- com o liberalismo, da consciência de classe trabalhadora até aqui não investida como prega a cartilha marxista, e da corruptividade com a qual se veem envolvidos uma vez imersos na não menos corrupta estrutura política que faz a história do Brasil.

E se a verdadeira revolução for nada além de processo histórico de tentativas e erros em busca de um futuro menos errático?

Portanto, se é de um ideal de esquerda que muitos insistem que o PT não é “mais” um partido de esquerda, essa crítica, digamos assim, platônica, que acha que a mudança material concreta realizada pelo PT no Brasil deveria ter se dado de outra forma, esses críticos deveriam, em primeiro lugar, experimentar o gosto amargo que é conduzir um país cercado de velhas oligarquias. Em segundo lugar, realizar uma mudança material tão ou mais efetiva que a que o PT construiu. Só assim teriam o direito de dizer que o PT é “menos” de esquerda do que eles.

A minha pulsão petista

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Diante dos fatos, por que eu ainda defendo o Partido dos Trabalhadores? A minha resposta imediata é que, desde Lula, o PT transformou o até então abstrato e eleitoreiro discurso político sobre igualdade social em realidade concreta para milhões de desfavorecidos históricos, objeto de extremo valor para  mim.

Entretanto, as ineficientes estratégias tentadas pelo partido diante das crises econômica e política, e, ademais, a corrupção interna que não se rogou de fazer lugar dentro do partido, e que faz dele o mesmo que tantos outros que eu desaprovo veementemente, tudo isso faz a minha defesa querer se calar. 

Agora, se, como disse Søren Kierkegaard, o pensamento objetivo traduz tudo em resultados, mas o  pensamento subjetivo coloca tudo em processo, omitindo o resultado, a minha reprovação em relação ao PT, objetivamente, é baseada nas más performances do atual governo, mas a minha insistente aprovação ao PT se dá por eu, subjetivamente desconsiderar tais resultados, omiti-los, e, em troca, valorizar apenas o processo, ou seja, o “modo” como ele governa.

Qual seria, entretanto, a justa equação entre a minha subjetiva concordância com o modo petista de governar e a minha objetiva discordância em relação aos fracassados resultados do partido?

Ora, quando a realidade vai contra as nossas mais profundas convicções, ou a reprovamos objetivamente, ou, em vez disso, subjetivamente a sublimamos, isto é, seguimos crendo que há uma verdade mais nobre e profunda escondida nos fatos aparentemente vis. Desse modo, eu só sigo defendo o PT porque, sublimando sua adversa realidade, acredito que ainda há nele uma virtude, ainda que oculta, ou o que é pior, golpisticamente ocultada.

A minha relação com o Partido dos Trabalhadores me remete à frase de Jacques Lacan: “amo-te, mas há algo em ti que amo mais do que tu”. Não obstante, o que é essa coisa que eu amo no PT mais do que ele mesmo? Ora, a igualdade social que o partido aventurou no Brasil e a tentativa de reduzir o poder das elites locais, feitos que, objetivamente, ninguém encampou no nosso país de modo mais efetivo.

Entretanto, como sustentar racionalmente esse estranho amor pelo PT diante dos seus atuais fracassos e vulnerabilidade à corrupção? Considerando o que disse Lacan, qual seja, que a pulsão transforma o fracasso em triunfo, meu insistente amor pelo PT é fruto de uma pulsão

E se, ainda conforme o psicanalista, a razão da pulsão não é atingir a sua meta, mas girar compulsivamente em torno dela sem, no entanto, alcançá-la, as minhas fantasias fundamentais, quais sejam, que as elites caiam do cavalo para sempre e que a igualdade social se estabeleça, se em forma de pulsão estão protegidas das vicissitudes da realidade.

Considerando o que disse o filósofo Slavoj Žižek, que “nosso senso de realidade se desintegra no momento que a realidade chega muito perto de nossa fantasia fundamental”, consigo entender que, para o meu sonho igualitário permanecer íntegro, algo da realidade petista deve ser desintegrado, pois, conforme o filósofo, quando sonho e realidade se encontram, um dos dois deve morrer.

Entretanto, Lacan está aí para não me deixar esquecer de que a pulsão é o modo subversivo dos sonhos permanecerem vivos e íntegros dentro da realidade, mais precisamente, em torno dela, girando sem parar, sem nunca tocá-la, pois só assim eles nunca serão desintegrados por ela. A minha permanência pulsional em torno do PT, portanto, é o modo subversivo mediante o qual preservo vivo o meu sonho de igualdade social no Brasil justamente num momento onde tal realização parece mais distante.

Se eu fosse uma máquina, ou seja, absolutamente objetivo, haveria um limite a partir do qual eu deixaria de defender o PT e o abandonaria. Da mesma forma, se eu fosse um animal puramente instintivo haveria outrossim um limite, pois, como disse Žižek, “quando se vê diante de um objeto que está fora de seu alcance, o macaco desiste de alcançá-lo depois de algumas tentativas frustradas e concentra-se em um objeto mais modesto; já o ser humano persiste no esforço e permanece fixado no objeto impossível”.

Então, é por que eu sou algo entre a máquina e a besta, melhor dizendo, porque sou humano demasiado humano que ainda insisto no PT, pois através das realizações concretas ao longo de sua curta história no poder eu permaneço na órbita desse impossível objeto de desejo chamado igualdade social. Ao PT, atualmente, pelo menos a minha pulsão!

Igualdade social, ceticismo e “fossa-cética”.

Os céticos, ao contrário dos niilistas, creem que há “a verdade”, porém, que é impossível para o homem alcançá-la. Sendo assim, seja lá o que for “a verdade”, o cético é aquele que, de antemão, coloca-se absolutamente separado dela. E se a verdade, por um feliz capricho social, for a igualdade entre as pessoas? Um cético, obviamente, diria que nunca a alcançaremos. Entretanto, afrouxando essa vertical exigência cética, não seria possível pelo menos nos aproximarmos horizontalmente da igualdade social?

O PT, reduzindo a histórica desigualdade social no Brasil, aproximou-nos bastante dessa pretensa verdade. Como ser cético diante disso? Há quem diga que outros partidos políticos que rondam o poder, e que no menos golpista dos casos podem democraticamente retomá-lo, fariam o mesmo, ou até mais. Entretanto, a nossa realidade parlamentar esfrega na cara do povo que, em matéria de igualdade social, tais partidos só tocam em “verdades menores”, isto é, verdades úteis apenas para menos pessoas, ou o que é pior, para a velha minoria historicamente privilegiada: a elite brasileira. Como nos prevenir dessas verdades menores? Como tratá-las?

Acreditar no PT, todavia, não significa ser dogmático a ponto de crer ele é um partido perfeito, ideal. Tal quimera não existe, nunca existiu, nem nunca existirá. Se os partidos políticos são feitos por pessoas – e agora, mais do que nunca, por empresas! -, e não há uma pessoa sequer – muito menos uma empresa – que seja perfeita e ideal, deduz-se que… Agora, como a realidade é o anverso concreto dessa abstração que é a idealidade, as opções políticas mais realistas para tentarmos um país melhor para todos, infelizmente ou não, são o PT, o PSDB e o PMDB. Há outras siglas, é claro, mas elas, contudo, tão cedo não terão vez nessa luta de gigantes.

Então, em qual das opções factíveis investir? Como é a destruição de privilégios elitistas “na” construção de uma maior igualdade entre as pessoas o mais universal dos bens que se pode imaginar, temos que o PT foi o partido que mais fez isso na história do nosso país. O PMDB oligárquico de Sarney e Cunha e o PSDB aristocrático de Alckmin e Aécio, coitados, apenas reforçam a virtuosa dianteira petista – ainda que o PT, a exemplo de todos os demais partidos, não seja imune aos vícios da corrupção e à necessidade de superação de suas próprias contradições. É importante não esquecer: aquilo contra o que protestam as histéricas panelas brasileiras deve tilintar revolucionariamente nos ouvidos de todos os nossos partidos políticos!

Por definição, o cético é aquele que não consegue ter certeza a respeito da verdade, todavia porque assume que é incapaz de compreender o real. Agora, mesmo que nos digam que não podemos compreender “o real”, apostaríamos em que senão que a melhor de todas as verdade imagináveis é a igualdade entre as pessoas? Embora tal aposta tenha sido histórica e aristocraticamente desestimulada, ela é a única que partilha o bilhete premiado com todos os jogadores, indistintamente. Desse modo, é melhor ser anticético em relação ao PT, pois somente ele tornou um tanto mais real a velha utopia da igualdade social.

E é por que “antisséptico” se refere a tudo o que inibe a proliferação de bactérias ou germes, que proponho aqui – ainda que estimulado por um trocadilho – a postura “anticética” em relação ao PT que, mais do que os outros, acreditou na melhor verdade de todas: a igualdade social, independentemente de suas contas bancárias e sobrenomes. Seguindo na analogia, se “fossa séptica” é uma unidade para o tratamento primário de esgoto, e se o esgoto social brasileiro é justamente a nossa elite histórica, logo…

Proponho, então, que todos aqueles que não acreditam na igualdade social – melhor dizendo: não querem que ela seja uma verdade – sejam jogados numa “fossa-cética” para serem “tratados” dessa estratégica incapacidade de crer que a igualdade social é uma verdade a que podemos bravamente chegar. E, como o PT mostrou concretamente na última década, alcançável. Mesmo que o niilista mais radical comprove que não há verdade alguma, e que a igualdade social é só mais uma ficção, ainda assim podemos construir as “nossas verdades”. E tanto melhor se elas forem melhores para todos, não apenas para poucos. Não importa se a igualdade social é uma verdade “de verdade”, mas, com certeza, é a ficção que a maioria das pessoas nunca tentará desmentir.

PT: o Judeu do monstro político brasileiro.

Se é pela corrupção política ou pela crise econômica que alguns acham que o PT deve sofrer um impeachment – palavra que atualmente corre solta em boca de Matilde midiática, mas que mascara estrategicamente a gravidade que é a deposição de um presidente da república – é porque tratam esse partido político da mesma forma que os alemães trataram os judeus no holocausto nazista, ou seja: trazendo à tona características universalmente indesejadas, e, por um curto-circuito ideológico, afirmar que o PT – ou os judeus – é a causa dessas características.

A irracionalidade do antipetismo decreta uma correspondência entre características gerais e históricas da política brasileira (a corrupção, a luta desmedida pela permanência no poder, a vulnerabilidade econômica etc.) e características hipotéticas de um suposto “caráter petista” (os petistas são corruptos, lutam desmedidamente pelo poder, fragilizaram a economia do país etc.), para chegar à ilógica conclusão de que o PT é a causa definitiva dessas características indesejadas e perturbadoras em nossa sociedade.

Obviamente, afirmar de um petista corrupto que ele é corrupto não faz de alguém um antipetista. O verdadeiro antipetista, em vez disso, diz que fulano de tal é corrupto “porque” é petista. Como a corrupção no Brasil não é, nem nunca foi característica exclusiva do PT, a ilógica lógica antipetista prega que há na essência do PT “alguma coisa que queremos depor imediatamente” que faz com que haja corrupção, manipulação e crises econômicas no Brasil.

O antipetismo, portanto, introduz uma pseudocausa misteriosa que faz do PT o local do surgimento e da permanência da corrupção. A partir desse despautério, o PT é identificado como fonte de todos os nossos problemas. O amargo preço disso, contudo, é que toda a corrupção que preexistiu ao PT, e que existe pujante a despeito dele, é colateralmente alienada das demais siglas partidárias. Só assim mesmo para um PSDB da vida convencer alguém de que luta contra a corrupção sistêmica. Essa realmente é muito boa!

A injustiça verdadeira, seja a dos antipetistas contra o PT, seja a dos alemães nazistas contra os judeus, é começar colocando os nomes “PT” e “judeu” entre fatos universais indesejados, tais como a corrupção e a crise econômica, e, em seguida, achar que esses mesmos fatos são produzidos exclusivamente pelo PT ou pelos judeus. Uma vez que se é vítima dessa irracionalidade, parece lógico bater histericamente panela para depor uma presidenta petista, e, no caso nazista, exterminar mais de seis milhões de judeus.

Para quê? Ora, em terras tupiniquins, para que um PSDB, por exemplo, possa seguir plenamente corrupto sem, no entanto, parecer vestir o estigma da corrupção injustamente gasto apenas contra o PT. E em terras nazistas, para que a monstruosidade de Hitler mentisse alguma espécie de esforço evolutivo; para que o mal absoluto reluzisse algum bem estratégico; para que o capital burguês parecesse mais limpo apenas porque estava “limpo” de determinada etnia histórica.

Agora, assim como a ignominia nazista se revela plenamente quando assumimos que o mal não reside no judaísmo, muito embora alguns judeus sejam pervertidos e corruptos, também o antipetismo não se sustenta pelo fato de alguns petistas serem corruptos. O antipetismo não só é absolutamente injusto com os muitos petistas honestos (a própria Dilma, contra quem nenhum crime foi provado), como também, e principalmente!, é permissivo em relação à corrupção histórica no Brasil, mal que nunca se deu ao luxo de se restringir a uma única sigla partidária. O antipetismo, embora nas manchetes midiáticas pareça revolucionário, é tão reacionário quanto o fascismo de Hitler, e, historicamente, pode ser tão vergonhoso quanto ele.

O acerto de um erro petista

Realmente, o Partido dos Trabalhadores cometeu um grande erro na esteira da crise internacional de 2008: preservar os trabalhadores brasileiros. Decerto que é um erro gravíssimo para o capital, pois, embora o capitalismo precise de um exército de mão de obra que produza a sua riqueza, carece mais ainda de hordas de trabalhadores desempregados, desvalorizados, disponíveis e, sobretudo, compráveis por qualquer migalha. É com este último time que o capitalismo limita, mas também rouba, o valor do primeiro, pois havendo muita mão-de-obra ociosa no mercado o valor do trabalhado não faz frente ao valor do capital.

Se o governo brasileiro dos últimos sete anos fosse radicalmente liberal, na iminência da crise ele teria não só permitido, mas também articulado o aumento estratégico do desemprego, pois assim o valor dos salários cairia forçosamente – de acordo com a lei da oferta e da procura. Assim os empresários novamente fariam dos trabalhadores a sua vil moeda de negociação com a crise para manterem seus lucros, transferindo os custos senão aos próprios trabalhadores, que teriam ou de se vender por menos, ou produzir mais pelo mesmo salário – apenas para não serem exilados ao estado do desemprego. Isso porque o capitalismo mente muito bem que riqueza significa a grande riqueza de poucos, e não a ausência de miséria da maioria.

Entretanto, depois de 2008 o governo brasileiro fez diferente. Colocou o Estado inteiro na manutenção dos altos níveis de emprego. Isso, por conseguinte, manteve o valor do salário diante o valor do capital, o que afrontou, mas também desvalorizou este último. Sem uma massa desempregada de manobra, o capitalismo tupiniquim, não podendo trocar o valor do trabalho por bônus crísicos, teve de ir beber nos seus próprios lucros, coisa que, historicamente, está desacostumado.

Com efeito, as duas últimas vezes em que, no mundo, o capital foi sistematicamente comprometido no reerguimento e na manutenção social – e, para Thomas Piketty, as duas únicas! – foi durante as grandes guerras e na sequência delas. Do contrário, as sociedades envolvidas nos embates solapariam. Todavia, no mais das vezes, como na crise de 2008, em muitos países o trabalhador é que foi comprometido no salvamento do capital. A dívida que os Estados Unidos, mas não só eles, legou aos seus cidadãos para que os bancos – veja bem, os bancos! – não quebrassem, é o procedimento cotidiano do globalizado sistema econômico.

O “erro” petista em não seguir a vil&pragmática cartilha capitalista, contudo, tem o grande acerto de fazer com que não só os trabalhadores fossem afetados e comprometidos pela crise, mas também os empresários, ou o que é o mesmo, o próprio capital. Se tivesse sido diferente, o vilipêndio dos trabalhadores, tão naturalizado e facilmente “abstraível”, sequer teria sido manchete enquanto os lucros dos capitalistas permanecessem altos. Agora, no momento em que o capital também paga a conta da crise, as manchetes e as ruas com altos IPTUs gritam histericamente o fim dos tempos – ou o impedimento do governo que não os deixou de fora da tempestade.

As manifestações “coxistas” de 2015 expressam sobretudo o descontentamento dos representantes do capital diante da insistência do governo em não desvalorizar os trabalhadores sem antes dispor da riqueza nacional, objeto do desejo dos capitalistas. Como assim gastar com os não-ricos aquilo de que os ricos precisam para serem o que são? Os mais insatisfeitos com o governo petista repetem, sem saber, uma ideia de Aristóteles que, entretanto, faz com que uma democracia seja, de fato, uma oligarquia: “seria ainda mais sábio não obrigá-los [os ricos] a grandes despesas e até mesmo proibir-lhes serem úteis para o povo”

Entretanto, a estratégia de não lançar primeiro os trabalhadores aos leões da crise, para com isso evitar que o capital fosse devorado, mas, em troca, iniciar saciando a voracidade da crise econômica com a própria carne capitalista sempre excedente, para só depois alistar o trabalhador no exército contra a crise, não pode ser visto como erro, principalmente por parte dos próprios trabalhadores. Talvez seja a primeira vez na história brasileira que a classe trabalhadora tenha sido economicamente priorizada em detrimento do capital. Quanto mais não seja porque é obra do Partido dos Trabalhadores.

É natural que a ameaçada oligarquia capitalista bata panela, manifeste incredulidade e insatisfação, afinal, um governo ousou não lhe preferir. Além do que, e a contragosto deles próprios, o país permanece democrático e permeável à manifestações, mas não só às suas. Se desde o início da crise – nascida internacional em 2008, mas só agora naturalizada brasileira – as coisas tivessem ocorrido de acordo com os preceitos capitalistas, como nos EUA, onde os trabalhadores ficaram sem casa e sem emprego para que os banqueiros mantivessem seus bônus estratosféricos, a nossa elite estaria tão preservada quanto satisfeita&silenciosa.

Porém, enquanto a crise mundial desempregava e despejava trabalhadores de vários países, os brasileiros, ao contrário, tiveram seus empregos e salários preservados. Isso, com efeito, afronta qualquer elite! Agora, contudo, como assumiu a nossa presidenta, a coisa mudou. Chegou a hora de todos lutarmos juntos para sairmos da crise, não só os capitalistas, mas também os trabalhadores. Obviamente, não se trata de uma boa notícia, mas nela subjaz uma virtude que não deve passar em branco: a crise está mais democratizada do que nunca, e não são mais os trabalhadores que pagam sozinhos a conta. Se o governo do Brasil errou em não agir de acordo com o “jeitinho capitalista”, essa falha não tem preço! Porém, como há um custo social sempre expresso em cifrões, é melhor que, em uma democracia, ele seja dividido democraticamente.

Um acertado erro petista

Um acertado erro petista

O Partido dos Trabalhadores cometeu um grande erro na esteira da crise internacional de 2008: manter e aumentar os níveis de emprego no Brasil. Mas essa falha, longe de ser contra o povo – aliás, o priorizou -, foi contra o próprio sistema econômico. Ora, o capital precisa de um exército de mão de obra para produzir o seu valor. Entretanto, carece também, senão mais, de hordas de trabalhadores desempregados, disponíveis e, sobretudo, desesperados por trabalho. É com este último time que o capitalismo limita, mas também rouba, o valor do primeiro, pois havendo muita mão-de-obra ociosa no mercado o valor do trabalho não faz frente ao valor do capital.

Se o governo brasileiro dos últimos sete anos fosse radicalmente liberal, na iminência da crise ele teria não só permitido, mas também articulado, o aumento estratégico do desemprego, pois assim o valor dos salários cairia forçosamente – de acordo com a lei da oferta e da procura. Assim os empresários novamente fariam dos trabalhadores a sua vil moeda de negociação com a crise para manterem seus lucros, transferindo os custos aos próprios trabalhadores, que teriam ou de se vender por menos, ou produzir mais pelo mesmo salário – apenas para não serem exilados ao estado do desemprego. Isso porque o capitalismo mente muito bem que riqueza significa a grande riqueza de poucos, e não a ausência de miséria da maioria.

Entretanto, depois de 2008 o governo brasileiro fez diferente. Colocou o Estado inteiro na manutenção dos altos níveis de emprego. Isso, por conseguinte, manteve o valor do salário diante o valor do capital, o que sobremaneira afrontou, mas também desvalorizou este último. Sem uma massa desempregada de manobra, o capitalismo tupiniquim, não podendo trocar o valor do trabalho por bônus crísicos, teve de ir beber nos seus próprios lucros, coisa que, historicamente, está desacostumado. Aí a velha vaca tossiu.

Com efeito, as duas últimas vezes em que o capital foi comprometido, sem escapatória, no reerguimento e na manutenção social – e, para Thomas Piketty, as duas únicas – foram nas grandes guerras. Do contrário aquelas sociedades solapariam. Todavia, no mais das vezes, como na crise de 2008, em muitos países o trabalhador é que foi comprometido no salvamento do capital. A dívida que os Estados Unidos, mas não só eles, legou aos seus cidadãos para que os bancos – veja bem, os bancos! – não quebrassem, é o procedimento cotidiano do atual sistema econômico.

A falha petista em não seguir a pragmática cartilha capitalista, contudo, tem o grande acerto de fazer com que não só os trabalhadores fossem os afetados e comprometidos pela crise, mas também os empresários, ou seja, o próprio capital. Claro, o vilipêndio do proletariado é tão naturalizado que sequer seria manchete caso estivesse mais uma vez sozinho, afinal, conquanto os lucros permaneçam altos apenas à minoria histórica nada há com que se preocupar. Agora, no momento em que o capital também é cobrado pela crise as manchetes gritam histericamente o fim dos tempos – ou o impedimento do governo que não o deixou de fora da tempestade.

As manifestações “coxistas” de 2015 expressam o descontentamento dos representantes do capital diante da insistência do governo em não desvalorizar os trabalhadores sem antes dispor da riqueza nacional, objeto do desejo dos capitalistas. Como assim gastar com os não ricos aquilo de que os ricos precisam para serem o que são? O instituto de pesquisa Index apontou que 70% dos descontentes com o atual governo têm ensino superior, 40% deles ganham mais de dez salários mínimos, e 80% são brancos. Faltou verificar a porcentagem de cristãos coxinhas, mas podemos afirmar de imediato que se trata da classe que historicamente detém o capital.

Entretanto, a estratégia de não lançar primeiro os trabalhadores aos leões do desemprego, para com isso evitar que o capital fosse devorado, mas iniciar saciando a voracidade da crise econômica com a própria carne capitalista “excedente”, e só por último alistar o trabalhador no exército contra a crise, não pode ser visto como erro por parte dos próprios trabalhadores; muito pelo contrário. Talvez seja a primeira vez na história brasileira que a classe trabalhadora tenha sido economicamente priorizada em detrimento do capital. Quanto mais não seja porque é obra do Partido dos Trabalhadores.

É natural que a ameaçada aristocracia capitalista bata panela, manifeste incredulidade e insatisfação, afinal, um governo ousou não lhe preferir. Além do que, e a contragosto deles próprios, o país permanece democrático e permeável à manifestações, mas não só às suas. Se desde o início da crise – que nasceu internacional, mas que não demorou a se naturalizar brasileira – as coisas tivessem ocorrido de acordo com os preceitos capitalistas, como nos EUA, onde os trabalhadores ficaram sem casa e sem emprego para que os banqueiros mantivessem seus bônus estratosféricos, a nossa elite estaria tão preservada quanto satisfeita.

Porém, os trabalhadores brasileiros – ao contrário dos americanos, e a despeito da crise econômica e da assassina bolha imobiliária mundiais – não viram seus empregos minguarem; tiveram investidas “suas casas suas vidas”; e experimentaram um inédito poder de compra – o que afrontou a elite acostumada com a exclusividade de tal poder. Agora, contudo, como assumiu a nossa presidenta, é a inevitável hora de todos lutarmos juntos para sair do buraco. Obviamente, não se trata de uma boa notícia, mas nela subjaz uma virtude que não deve passar em branco: a crise está mais democratizada do que nunca, e não são mais os trabalhadores que pagam sozinhos o pato. Se o governo do Brasil não agiu de acordo com o “jeitinho capitalista”, essa falha não tem preço. Porém, como há um custo expresso em cifrões, é melhor que ele seja dividido democraticamente.

O desafio petista

O governo do PT enfrenta ao mesmo tempo uma incontrolável queimada econômica e, o que é pior, uma deflagrada corrupção sistemática no seu próprio subsolo. Diante disso, muitos cidadãos e forças políticas, alienados do fato de que todos os partidos políticos são vulneráveis à tais pragas – muitos deles completamente corroídos por elas –, convenientemente gritam “impeachment”. Até parece que é da natureza da política partidária brasileira a imunidade absoluta às adversidades tanto do exercício do poder quando do poder em exercício das demais forças políticas, sociais e econômicas. Ora, tal capacidade e lisura só são adquiridas em parcelas, na lida, sob os olhos democráticos da sociedade, e, como a História ensina, ao passo em que se fazem necessárias. Considerando que nenhuma outra sigla que tenha se assenhorado do “latifundium brasilis” esteve livre de carunchos é no mínimo injusto exigir do PT uma safra absoluta.

Talvez essa onipotência impossível solicitada ao atual governo seja o desejo histérico de uma sociedade que quer a continuidade daquele florescimento econômico experimentado na última década, no qual o Brasil saudava a histórica dívida externa, e a partir do qual os brasileiros tinham gordas colheitas de eletrodomésticos, automóveis, férias no exterior e diplomas universitários, só para citar alguns. Entretanto, durante essa bonança nunca deixou de ser dito que tal fazenda não era obra do PT, mas uma apropriação oportunista das semeaduras do governo FHC. Ainda que seja a mais pura verdade, isso não tira o mérito do partido vermelho, só prova que ele soube honrar, adubar e regar as sementes azuis com um rendimento que governo algum havia alcançado desde a tragédia militar, quiçá antes dela.

Porém, atualmente a lavoura econômica brasileira produz menos arrobas. Com efeito, prevenir o esgotamento do solo é responsabilidade do fazendeiro que o administra. O grito de “impeachment” tem a ingênua virtude de solicitar o revezamento de culturas, mas também o vício oligárquico de substituir uma monocultura por outra. convenhamos, precisa-se de uma boa dose de alienação para desconsiderar as intempéries da economia globalizada, como por exemplo o tsunami crísico de 2008 que solapou as maiores economias mundiais – mas que o segundo Lula soube marolar e a despeito do qual a primeira Dilma manteve o crescimento da nação.

Todavia, a meteorologia petista não foi competente suficiente para prever o refluxo da crise, ou seja, que na recuperação das grandes economias abaladas a tempestade se voltaria para os capachos históricos delas. Mas não só isso, o PT também não soube evitar a erva-daninha da corrupção interna, cuja inimizade declarada foi por muito tempo a sua honrosa pedra de toque. Hoje, portanto, o PT padece das mesmas dificuldades que os demais partidos enfrentaram antes dele: evitar que o país quebre e impedir que a corrupção interna o arruíne.

Dizer que o PT é como os outros partidos tem o primeiro significado, contudo pejorativo e inócuo, de que todos eles roubam igual. Porém, uma significação positiva que escapa disso tudo é que, finalmente, o PT se encontra no horizonte crísico comum a todos os grandes partidos, cujo enfrentamento é absolutamente necessário a uma maturação partidária. Uma vez evidenciada a contaminação do solo petista, que por sua vez o levou à aridez de um descrédito generalizado, esse partido está nu diante de suas próprias contradições. Todavia, essa lixiviação tem a vantagem de estar se dando sob a atenção de todos – claro, com a ajuda erosiva da mídia reacionária -; mas é melhor que seja assim, ou do contrário seria como o artificial canteiro peessedebista, viçoso conquanto as flores sejam de plástico.

Para a felicidade dos seus opositores, o PT não está livre de ruir inteiramente, seja mediante seus próprios antagonismos, seja perante à crise econômica atual. Esta, no entanto, apenas em parte é responsabilidade sua, mas não totalmente, dada a vulnerabilidade imanente à participação no latifúndio liberal globalizado. Todavia, só superando tudo isso é que o Partido dos Trabalhadores provará a que veio. O fato de hoje o PT estar devassado – coisa que os outros partidos evitam por via de mais corrupção – ou fará dele fruta podre, ou essa podridão mesma lhe servirá de adubo revolucionário. A direita brasileira, na histeria em que se encontra, só lhe propõe a primeira opção. A segunda, entretanto, é o mais legítimo e necessário desafio petista.

A promissora contramão brasileira

É absurdo e ilógico o Brasil ter elegido o PT e não PSDB considerando a lógica do movimento econômico mundial de concentração cada maior de riquezas nas mãos de cada vez menos famílias-conglomerados. O mundo em que vivemos está feito para que as fortunas aumentem e coagulem-se, pois quem é rico não encontra limites para a sua riqueza; entretanto, essa conta que não fecha é parcelada em árduas prestações à-perder-de-vista na conta do povo. O não-comunista Thomas Piketty, no seu polêmico “O Capital no Século XXI”, comprova cientificamente esse desequilibrado e desequilibrador quadro pintado pelas crescentes fortunas em cuja centralidade apenas elas devem figurar.

Porém, com a vitória do Partido dos Trabalhadores, atribuída por muitos exclusivamente ao benefício bolsa-família, o Brasil vai à contramão do sórdido movimento capitalista mundial que prioriza a riqueza de poucos em relação à pobreza da maioria. A sobreposição – indigesta para as elites – dos mapas brasileiros de votos presidenciais e de distribuição de benefícios sociais é uma afronta ao maquiavélico modelo macroeconômico global. Todavia, esse mapa é a rota de fuga escolhida pela justa maioria dos nossos cidadãos para longe das desventuras do capital que insiste em usar a todos para concentra-se nas mão de poucos.

Intrigante é quase cinquenta por cento dos brasileiros defenderem o insustentável modo liberal-oligárquico encarnado atualmente pelo PSDB, dado que essa gorda fatia da população não é, de modo algum, a minoria rica que se beneficiaria caso Aécio encabeçasse os desígnios desse país. Antes, é uma maioria não-rica enganada por uma minoria rica no sentido de viabilizá-la à manutenção histórica e ao aumento vindouro da sua fortuna privada. Ou, por ventura, o professorzinho municipal pindamonhangabense, por exemplo, seria beneficiado através do acorde brasileiro com o movimento econômico internacional evidenciado por Piketty e defendido por Aécio?

Portanto, a contramão que o PT e Dilma representam em relação ao PSDB e Aécio é bem-vinda! E isso por conta da inédita distribuição da densa renda Sul-Sudestina na ascensão, socialização, urbanização e saneamento do Norte-Nordeste historicamente preterido no jogo político nacional. Dilma é bem-vinda sim, pois a riqueza de um país é a riqueza individual de cada cidadão, e não a alta riqueza de uns poucos – coisa que a direita mantém escondida sob a promessa liberal de felicidade atrelada à desigualdade econômica e social. A diminuição da desigualdade em curso no Brasil é dissonante da melodia mercadológica mundial, por isso ameaça e inquieta toda e qualquer fortuna privada. Porém, esse “jazz impertinente”, que destina-se mais ao povo que à elites, foi o jingle vencedor que manteve o PT no poder.

Acredito que o “estarrecimento” das elites a respeito da distribuição de renda aventurada nos doze anos de PT resida no fato dela ser, estratégica, temporária e subversivamente desigual. Entretanto, devemos entender a virtude que uma desigualdade funcional pode ter no saneamento de uma desigualdade histórica. Por acaso seria mais justo ou, ou sequer lógico, dividirmos igualmente a riqueza da nação entre ricos e pobres? Ou pelo contrário, justiça seria os que têm menos receberem mais, ao passo que os que já têm muito recebam menos, até o ponto em que haja igualdade, para aí sim iniciar-se uma distribuição igualitária da fortuna nacional?

Quem acha que já há igualdade dentro das nossas fronteiras, ou sequer dá bola para isso, certamente não vê cabimento em benefícios reestruturantes como o bolsa-família; inclusive sente-se injustiçado. Entrementes, os que acreditam que para o Brasil ser um país mais igualitário é necessário afrontar subversivamente a desigualdade com uma desigualdade do seu tamanho, desde que estrategicamente, e em benefício da maioria – algo como um maquiavelismo invertido, isto é, popular -, o bolsa-família é o princípio inédito da justiça em terras tupiniquim.