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Financeirização da economia e a dominação ilimitada

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Como impedir a classe dominante de dominar? Marx bem tentou responder essa pergunta no seu Manifesto Comunista, que começa afirmando que “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”. Só que essa tarefa se mostrou bem mais difícil do que o grande filósofo materialista imaginou. Mais ainda depois que o capitalismo se libertou de qualquer limitação material, ou seja, após o presidente norte-americano Richard Nixon, em 1971, abolir o lastro material do Dólar. Com esse ato, foi dispensado o fundamento material daquela moeda, e por efeito cascata, o de todas as demais. Doravante o dinheiro, e a dominação que ele proporciona, passaram a ser inventados. Claro, quem detém o poder (político e militar) para tal “alquimia” é a classe dominante, que, quanto mais inventa riqueza, mais a inventa para si mesma, e, portanto, mais-domina.

Para inventar sua dominação de modo legal, e além do mais democrático, basta, por exemplo, que as doze famílias mais ricas dos EUA, donas dos doze maiores bancos que formam o Federal Reserv Bank (o banco que cria os dólares para os EUA), enfim, basta que a classe arquitete uma devastadora crise econômica, para a qual apenas alguns trilhões de dólares – que ela mesma pode inventar imediatamente – sejam a solução mais objetiva. O governo então aceita esse dinheiro abstrato e, no mesmo instante, o povo e o futuro desse Estado passam a dever a exata quantia à classe, só que agora, obviamente, em forma de riqueza concreta. Se o lastro para o dinheiro que  a classe inventa findará em barras de ouro ou em mega favelas na África, Ásia e América do Sul tanto faz. A classe cobra concreta e materialmente por centavo que abstratamente inventa.

Só que, dado o montante de dinheiro inventado na nossa economia financeirizada, é impossível lastreá-lo materialmente. Há vários limites. Um deles, o ecológico, é quiçá o que melhor demonstra essa impossibilidade. Há quem diga que seria preciso de seis a dezesseis planetas Terra (em quantidade de ar, água, terra, minérios, etc.) para arrancar, da natureza ao mundo humano, a riqueza material necessária para lastrear a riqueza inventada pela classe. Todavia, embora essa dívida seja de fato material, econômica, social, política e ecologicamente impagável, ela só continua sendo criada porque é logicamente possível fazê-lo. Afinal, nada há de errado em cobrar do futuro, que além do mais é ilimitado, quando se abstrai o fato concreto de que não haverá planeta Terra para tanto.

Para manter essa lógica insustentável funcionando, todos os dominados/endividados que ousam afrontá-la devem ser restringidos legalmente e reprimidos militarmente pela classe. É tão impossível para a humanidade materializar toda a riqueza abstratamente inventada pela classe quanto deter a classe na sua desenfreada financeirização da econômica. Na época de Marx, o capitalismo ainda era refém do mundo material. A mercadoria, misto de matéria-prima e meios de produção capitalistas e de mão de obra proletária, era fundamental no processo de produção de mais-valor que permitia à classe mais-dominar. Na financeirização da economia, entretanto, nada de material precisa ser produzido para que venha ao mundo tanto dinheiro quanto deseja a classe. A produção material, obviamente, não desapareceu. Apenas sobrevive em modo zumbi, mentido caducamente que será através dela que se pagará a dívida à classe.

Agora, por mais perverso que seja, esse sistema no qual a classe minoritária dominante pode inventar, em nome da classe majoritária dominada, uma dívida maior do que o futuro da humanidade, obrigando esta última, legal e militarmente, a pagá-la, materializá-la, lastreá-la com o suor de seus corpos, é de uma estratégia admirável. Nunca foi tão fácil dominar! Žižek bem disse que, desaparecendo a necessidade de fundamento material para a dominação de classe, e bastando a classe inventar quantas vezes quer ser mais rica e dominante, o que resta é a dominação direta e injustificável de uns indivíduos sobre outros, como se se tratasse de uma determinação divina, extra-humana. Inventar dinheiro, no mundo capitalista, é inventar poder. Poder criar uma dívida em nome de outros, portanto, é criar poder sobre eles.

Desfinanceirizar a economia é, portanto, um urgente passo para libertar os povos dessa insustentável liberdade da classe de inventar, desimpedida de qualquer restrição material, a sua dominação. Talvez devamos reconsiderar a velha ideia marxiana segundo a qual o sumo valor é tão somente fruto de trabalho humano, pois ela reata os pés de Ajax da classe no chão material do mundo, impedindo-a de inventar abstratamente sua dominação concreta. O grande problema, contudo, é impedir a classe de se valer compulsivamente de sua maior sofisticação (inventar sua superioridade) uma vez que ela está de posse dos Estados e de seus exércitos.

Uma autêntica revolução seria a solução, pois desfinanceirizaria a economia capitalista ao destruir próprio o cosmo capitalista. Ora, se é para desafiar o Estado burguês e sua opressiva força militar, que seja para a maior das mudanças, pois só ela puxará naturalmente todas as demais necessárias. Entretanto, a revolução parece estar mais desacreditada do que nunca. Todavia, não porque os preceitos socialistas revolucionários tenham perdido sua pertinência, mas porque a classe, estrategicamente, assim como vem inventando a sua dominação, inventa também as pseudo verdades que lhes serve, tal como a ideia de que é melhor o capitalismo do que qualquer outra forma econômica para a humanidade subsistir materialmente.

Se não é possível fazer a revolução agora, pois, novamente, temos os Estados nacionais e os seus exércitos contra ela, ao menos alimentemos a ideia de revolução tal qual se encontra excelentemente em Marx. Que não seja possível mudar o mundo por esta ou aquela contingência não deve significar que a razão da mudança seja inválida. Muito pelo contrário. Talvez seja justamente nessa era de economia financeirizada, na qual a invenção de dominação concreta a partir de uma mera abstração é a regra, que uma simples ideia revolucionária possa, subversivamente, aproveitar a onda e materializar-se. Se não há como vencer uma guerra sem ter ao menos as mesmas armas do inimigo, afrontemos então a classe usando a sua mais sofisticada artilharia: inventemos um mundo sem dominação e exijamos, a qualquer custo, que o mundo material e concreto corresponda a essa justa, e até aqui, abstração.

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Viver sem trabalhar?

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De onde vem a utopia de um mundo no qual as máquinas produzem tudo sozinhas e as pessoas são livres e desocupadas para fazerem o que bem entender senão de um idealismo pequeno burguês alienado da materialidade do capitalismo? Ora, as máquinas não são dádivas da natureza, nem tampouco de algum deus para que os seres humanos sejam perdoados da maldição adâmica de viverem do próprio suor. Com efeito, são armas quiçá as mais objetivas do capital no sentido de possibilitar a obtenção de mais-valor, o objeto capitalista par excellence. As máquinas só passaram a existir, e cada vez mais são aperfeiçoadas e disseminadas worldwide para esse fim. Se não for assim, elas perdem o seu porquê. Como poderiam então prometer liberdade às pessoas?

Como Marx bem mostrou nO Capital, as máquinas existem para reduzir o investimento dos capitalistas em salários. Em suma, para desvalorizar o trabalho. O filósofo mostra que, na aurora do capitalismo, os patrões investiam metade do seu capital em meios de produção (matéria-prima, ferramentas, energia, instalações etc.) e metade em força de trabalho (salários). Com o advento da maquinaria, poucos séculos depois, o investimento em meios de produção era cerca de dez vezes maior do que em salários. As máquinas de fato desvalorizam o trabalho humano. Porém, como a história da miséria moderno-contemporânea comprova, não para valorizar o “livre viver” das pessoas, e sim para fazê-las aceitar salários cada vez menores e exploração cada vez mais maior.

De um lado, o capitalismo desvaloriza sistematicamente o trabalho humano através de crescentes investimentos em tecnologia em função de seu mais-valor. Todavia, de outro lado, o mais-valor é conseguido somente através da exploração do trabalho humano. Ao contrário do que vulgarmente se pensa, máquinas não têm como produzir mais-valor porque não têm como serem exploradas. Elas cobram pelo que produzem exatamente o que custam ao capitalista. Se uma máquina, por exemplo, custa $1 milhão, e ao longo de sua vida útil é capaz de produzir um milhão de sapatos, cada mercadoria individual cobrará exato $1 pelo investimento no meio de produção que é essa máquina. E assim com os demais meios de produção. A única possibilidade de o capitalista lucrar jaz na exploração do trabalho humano, pois só ele pode produzir, em mercadorias, muito mais valor do que custa ao capitalista.

O que a princípio parece ser uma contradição – a busca de mais-valor do capitalista mediante tecnologia que, por sua vez, dispensa a fonte de mais-valor, qual seja, o trabalho humano -, na verdade, é a sui generis estratégia capitalista de, mediante a desvalorização do trabalho, aumentar a exploração sobre esse trabalho desvalorizado. E a crescente massa de desempregados que esse processo gera, chamado de exército industrial de reserva, longe de ser produzido para que esse contingente desocupado se ocupe com o que lhe dá prazer, serve, ao contrário, para comprometê-lo ainda mais com as necessidades do capital. De modo que, em um mundo no qual as máquinas façam tudo, não haverá uma humanidade finalmente livre, mas uma absolutamente desempregada e inescapavelmente subjugada pelos donos das máquinas. Por essa razão, é burrice os trabalhadores utopizarem a substituição do trabalho humano pelas máquinas. Sem dizer que, de sua parte, o capitalismo, para quem o sumo objeto é o mais-valor obtido pelo trabalho humano, tampouco criará tal realidade.

Somente quando a força de trabalho é valorizada há motivo para os capitalistas investirem em tecnologia. Quando, ao contrário, o valor do trabalho cai, a tecnologia se torna cara demais para valer a pena. O geógrafo marxista David Harvey explica isso dizendo que, nos EUA, por exemplo, onde o valor da força de trabalho é alto, é feito de tudo para que o trabalhador seja substituído pela tecnologia com o objetivo de baixar o valor dos salários. Já na China, prossegue Harvey, onde o valor do trabalho é baixíssimo, é mais vantajoso utilizar milhares de trabalhadores produzindo mercadorias com ferramentas manuais do que investir em maquinário tecnológico.

Temos, portanto, uma gangorra na qual, em uma extremidade, está o trabalho humano, e, na outra, a tecnologia, sendo que a subida de uma às custas da descida de outra se dá em função de um centro fixo: o mais-valor. Quando o valor da força de trabalho está em alta, o mais-valor força a sua baixa, elevando a tecnologia. Quando, porém, a tecnologia está em alta e o trabalho em baixa, o mais-valor central percebe que vale mais a pena voltar a usar a força de trabalho desvalorizada e não a tecnologia supervalorizada. Então a gangorra se inverte. E assim sucessivamente, numa dialética infindável que, entretanto, em todos os casos, atende aos interesses do capital tanto quanto é estabelecida por ele. A utopia da libertação definitiva da humanidade mediante a substituição total do trabalho humano pelo das máquinas, da perspectiva do capital, na verdade, é absolutamente distópica.

Do ponto de vista dos trabalhadores, a utopia de viver sem precisar trabalhar deve ser encarada pelo o que é: um ingênuo sintoma causado pelo insuportável e exploratório modo de trabalho imposto pelo capital, e de modo algum como a percepção iluminada de que o trabalho enquanto tal não tem valor e que, portanto, deve ser substituído pela máquina. Aliás, os trabalhadores não percebem a armadilha capitalista na qual caem ao desvalorizarem, eles mesmos, o trabalho, a única fonte material de valor que existe e que jaz em suas mãos. Sonhar com o fim do trabalho humano, com efeito, é realidade sempiterna do capitalismo. Portanto, todo aquele que quiser contribuir com a superação desse vil sistema econômico deve, ao contrário, valorizar cada vez mais o trabalho humano; colocá-lo no centro nevrálgico da vida social; e não colocar a máquina, que é invenção e propriedade dos capitalistas, nesse lugar. A utopia da vida sem trabalho, mais do que ao capital, é distópica sobretudo às pessoas.

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O Conto da Karoshinha Capitalista

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Karoshi, na contemporânea cultura nipônica, significa morrer por excesso de trabalho. Desde 1960 há uma epidemia de japoneses que adoecem terminantemente ou simplesmente se suicidam encurralados pelas demandas de um capitalismo absolutamente desumanizado aliado a uma cultura de disciplina férrea cuja tradição prega que um trabalhador que chega no serviço depois do chefe ou dos colegas, ou sai antes deles, é mal visto e deve ser descartado para dar lugar a alguém que “realmente” honre a empresa. Um lema para o karoshi seria algo como: “Empresa ou morte!”

No Brasil as pessoas não se matam por excesso de trabalho. Bem mais comum, aliás, é o brazuka morrer ou se matar por falta de trabalho. Todavia, as bases para um karoshi tupiniquim foram lançadas pelo primeiro lema do atual governo golpista: “Não pense em crise, trabalhe”. Com o agravamento da crise, contudo, já estamos na fase do: “Não pense em mais nada, apenas trabalhe muito”. E só mesmo muito otimismo ou alienação para não crer que, em breve, seremos cativos da mínima tautológica: “Trabalhe, trabalhe”.

“O trabalho dignifica o homem” é a sui generis mensagem do cristianismo. Todavia, na era pré-capitalista na qual nasceu tal ideia, “capital” era Deus. “O Homem” a ser dignificado pelo trabalho, portanto, era tão somente Ele. Entretanto, a dignificação de Deus mediante o trabalho humano resultava em dignidade humana, pois trabalhar em prol da obra de Deus, o mundo, aumentava a graça divina e, consequentemente, os homens eram agraciados, dignificados através da dignificação dO Homem.

Já na nossa era capitalista, demasiada capitalista, “capital” é só mesmo o capital. Ele é “O Ser Supremo” a ser dignificado pelo trabalho dos homens, mesmo ao custo de toda a dignidade mundana. Ao contrário de Deus, que dignificado pelo trabalho humano agraciava os homens, o capital só faz acumular para si a mais-graça que recebe dos seusb trabalhadores. E não há limite para essa vil liturgia capitalista. Se há, arriscamos dizer que são dois: o Karoshi, a morte dos homens por excesso de trabalho, ou o que é pior, a destruição total do planeta Terra por excesso de capitalismo.

Marx nos fez ver de modo científico que apenas metade de uma jornada de trabalho serve às necessidades do trabalhador. A outra metade existe para gerar mais-valia ao capitalista. Aliás, tudo o que este mais quer daquele jaz nessa segunda metade de jornada explorada! O fato de hoje nós, brasileiros, trabalharmos de janeiro a junho para pagar impostos, e só de julho a dezembro para nós mesmos só reforça a tese de que metade do nosso trabalho é para a benesse de outrem.

Claro, a sagaz ideologia capitalista oblitera sistemática e exitosamente o furto do nosso trabalho e da nossa dignidade, e de modo tão sistemático e exitoso quanto acumula capital. De nossa parte laborante, esperamos que, trabalhando arduamente, obteremos conforto e segurança. Todavia, nesse mundo só há espaço para tal labuta esperançosa porque assim é melhor para o capital, e tão somente para ele. Afinal, metade do nosso trabalho é imediatamente furtado pelo capital enquanto trabalhamos para ele, e a outra metade, aquela que trabalhamos para nós mesmos, é mediatamente furtada ao compramos nossos confortos e segurança dele.

Somos sistematicamente enganados pelo “Conto da Carochinha” capitalista. Roubados em metade do nosso trabalho pelo capital, e devolvendo a ele, aos preços que ele estabelece, a outra metade que ele justamente nos paga, para nós o jogo é um eterno perde-perde. Já para o capital, o jogo é apenas ganha-ganha. E isso é tão verdade que, como os japoneses comprovam de maneira sintomática e epidêmica, os trabalhadores cada vez mais perdem-perdem inclusive as suas vidas para o ganha-ganha do capital.

Sequer pensar na Revolução, mas, antes de tudo, matar a si mesmo em desistência plena diante da ameaça inimiga faz do karoshi nipônico a derradeira e mais vil “mercadoria” produzida pela mentira, pela ideologia, pelo “Conto da Carochinha” do capital. Trabalhar até morrer; morrer por causa do trabalho; não ser humanamente digno da “empresa”; tudo isso é o “Conto da Karoshinha” capitalista insistido worldwide para enterrar uma verdade tão real quanto simbólica, qual seja, a de que o trabalho foi feito para o homem, mas não o homem para o trabalho.

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Crítica da política

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Por que a política ainda promete ser o meio de luta contra os interesses espúrios do capital se é ele, o próprio capital, que sempre vence na arena política todas as batalhas que enfrenta? Está certo que a política é bem mais antiga que o capitalismo, entretanto, desde que este sistema econômico colonizou o mundo, também a política passou a servi-lo subservientemente. Não seria o caso então de realizarmos que a promessa de libertação social via política é apenas mais uma, quiçá a mais sagaz mentira do capital no sentido de mais-dominar?

Karl Marx foi contundente em criticar a política enquanto instrumento revolucionário, apontando que, na verdade, ela é o meio sempre presente de o passado, isto é, a dominação da maioria pela minoria – da totalidade pela parcialidade – prosseguir futuro adentro. A revolução em Marx não se dá apenas com a superação do Estado, mas também com a da política enquanto tal. Para o filósofo alemão, agir no interior de formas políticas pertence à velha sociedade, à sociedade na qual a dominação de uns poucos sobre a maioria é regra.

É imperativo sair da perspectiva meramente política para poder ser verdadeiramente crítico em relação à dominação do capital sobre a sociedade segundo Marx. E isso porque ele anteviu de modo muito profundo que a dominação do capital se dá, imediatamente, por via econômica, e não política. A política, em troca, é o meio, o modo mediato de o capital dar continuidade à sua dominação econômica. Ser fiel à Marx, portanto, significa crer, como ele, que a dominação do capital não tem como ser totalmente destruída no nível político. A política, na verdade, é o bunker social do capital.

Embora a política sirva imediatamente o inimigo capital da sociedade, ela ainda é, contudo, o ringue onde interesses sociais e interesses econômicos se digladiam; uma arena relacional na qual sociedade e capital mantém ao menos uma linguagem em comum, ainda que de modo assimétrico, pois, politicamente falando, trata-se de um diálogo no qual a sociedade, de seu lado, externa sinceramente suas demandas diante do vilipêndio capitalista, ao passo que o capital, ao contrário, é sistematicamente parlapatão em fingir que ouve a sociedade e que moderará o seu ímpeto acumulador em função de algum bem-estar social.

Entretanto, por ainda ser o nível no qual sociedade e capital se comunicam – mesmo que este sempre vença as discussões -, Marx apontava uma dimensão subversiva da política contra o capital: a sua potencialidade negativa. Para o filósofo, a política é adequada para realizar as funções destrutivas da transformação social. Marx não tinha dúvida de que, nas mãos da sociedade, a política pode ser instrumento de crítica no sentido de minar a dominante ideologia capitalista. Também sabia, contudo, que enquanto a sociedade permanecer apenas no âmbito político o seu inimigo capitalista permanece livre e dominante na sua esfera excelente: a economia.

Como o domínio da parcialidade sobre a totalidade é produzido economicamente e mantido politicamente, enquanto age somente politicamente a sociedade permanece no campo de conforto do inimigo. A vitória da totalidade sobre a parcialidade, embora deva começar politica e destrutivamente, só se finalizará, contudo, se depois da destruição for abandonada a esfera política e iniciada uma construção econômica alternativa. A revolução se dará apenas quando os indivíduos sociais operarem econômica e diretamente uns com os outros distantes da liturgia com que o capital segue intermediando vitoriosamente todas as relações humanas.

A verdadeira revolução nunca será simplesmente uma revolução política. Antes de tudo, deve ser uma revolução social que ultrapasse os limites do sistema político que perpetua a exploração econômica capitalista. E isso porque a virtude das revoluções sociais está em minar a contradição entre a parcialidade e a totalidade. Já as revoluções meramente políticas apenas reproduzem a velha hierarquia da parcialidade sobre a totalidade, pois a política, desde que foi usucapida pelo capital, outra coisa não é senão a subjugação das necessidades da totalidade aos arbítrios da parcialidade.

Se para Marx uma revolução social restrita à política é um absurdo, um primeiro passo político, desde que negativo, na medida em que há a necessidade da destruição das formas vigentes, é fundamental. No entanto, tão logo o TNT político da totalidade cause as primeiras rachaduras no bunker da parcialidade, a totalidade deve desinvestir do expediente político e investir no econômico, preenchendo essas rachaduras com novas relações socioeconômicas até que o edifício minado rua por completo.

Essa revolução socioeconômica será a maior transformação positiva da história, na qual a política, contudo, tem a contribuir apenas com sua negatividade imediata e destrutiva. O que Marx ainda tem a nos ensinar é que negligenciar a dimensão socioeconômica e priorizar a dimensão política impossibilita a revolução que fará a parcialidade ser derrotada e absorvida pela totalidade porque tira da política o seu mais revolucionário fim, qual seja: ser apenas o meio de se iniciar a destruição do capital, do Estado e inclusive de si própria.

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Estado de mal-estar capital

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Efêmero e tenso ponto de equilíbrio entre as necessidades básicas das pessoas e os imperiosos interesses do capital encontrado no século XX, o Estado de bem-estar social foi a garantia de serviços públicos e proteção à população mediante a organização da economia; algo como uma visível luva social que vestiu a invisível, porém sempre larápia, mão capitalista. Todavia, nesse início de século XXI, já sentimos na carne que o bem-estar deixou de ser prioridade do Estado, que voltou a ser apenas aquilo que Marx bem disse no Manifesto Comunista: “o comitê executivo da burguesia”.

Por degradar sistematicamente as condições de vida daqueles que lhes vendem força de trabalho, o capitalismo da Belle Époque viu a classe trabalhadora se organizar ameaçadoramente. Porém, pelo fato de não viver sem os trabalhadores – pois é deles que extrai a sua mais-valia – o ímpeto capitalista teve de se refrear. Sem dizer da então presente experiência socialista soviética do início do século XX que obrigou o capitalismo a ao menos fingir que sobre a face da terra havia também as necessidades das pessoas. Do contrário, todas elas poderiam, digamos assim, optar pelo outro sistema econômico que, segundo Marx, superaria(rá) o capitalismo.

Portanto, durante um estratégico período o capital aceitou comprometer parte de seus ganhos com a sociedade que, não obstante, nunca deixou de explorar. O Estado de bem-estar, social cujo apogeu se deu nas décadas de 1960 e 1970 na Europa, com efeito, foi patrocinado pelo capital para que os trabalhadores tivessem o mínimo suficiente para não se revoltarem nem pensarem em Revolução. Com o oferecimento de saúde, educação e segurança públicas mais um punhado de seguridades sociais o capital anestesiou as massas exploradas da dor que provoca nelas.

Como, contudo, a lógica capitalista não pode se privar de aumentar incessantemente a exploração sobre a vida, o Estado de bem-estar social não tinha como durar. Os grandes e decisivos ataques contra o bem-estar social foram cometidos na década de 1980 por Margaret Thatcher e Ronald Reagan. A destruição violenta das organizações e dos direitos trabalhistas, árdua e historicamente conquistados, permitiu que a vida voltasse a ser escravizada pelo capital. O velho liberalismo, de roupa nova, agora neoliberalismo, reconduziu o Estado à sua prévia condição de bureau da burguesia.

O que vemos no Brasil desde o golpe de Estado de 2016 outra coisa não é que o carnaval macabro do neoliberalismo, que para não tolher em nada a sede de lucro do capital destrói, rápida e certeiramente, o público em benefício do privado. As atuais reformas trabalhista e da Previdência, desenhadas golpisticamente para os empresários comprometerem cada vez menos as suas mais-valias com aqueles que as produzem; a drástica redução de investimento público em segurança, saúde e educação, expressa no aumento da criminalidade, das filas do SUS e do sucateamento do sistema de ensino público; tudo isso e muito mais é o fim do Estado de bem-estar social tupiniquim que mal e porcamente foi rabiscado na terra brasilis.

Depois do curto recreio chamado Estrado de bem-estar social que tivemos no curso histórico do capitalismo, estamos de volta à rígida e degradante disciplina de um mundo no qual a economia, para usar a ideia do filósofo alemão Robert Kurz, vence a vida. A destruição neoliberal de quaisquer organizações capazes de fazer frente aos interesses espúrios do capital; a vitoriosa ideologia da classe média, que faz a classe dominada se esquecer de sua real condição e perder sua força revolucionária; enfim, o Estado violentamente usucapido pela classe dominante finalmente reifica o vertical projeto capitalista de um “Estado de mal-estar capital” – sendo que esse mal-estar, obviamente, recai sobre todos aqueles que, com suas próprias vidas, produzem o bem-estar e o mais-valor do capital.

Por mais que o social esteja derrotado pelo capital, não podemos esquecer que no passado a consciência da classe trabalhadora, as grandes greves e o fantasma socialista foram as forças reais que obrigaram o capital a se conter e a devolver à sociedade pelo menos algo daquilo que dela furtava. Contra o Estado de mal-estar capital que se erige, a classe dominada podem muito bem repetir aqueles passos: reconhecendo-se como tal, e não como classe média; lembrando a classe dominante, através de grandes greves, que ela não é nada sem aqueles de quem compra a força de trabalho; e, por fim, mantendo o socialismo no horizonte, se não como realidade, ao menos como ideia ameaçadora.

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Falácia libertária pós-moderna

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Não sem muita controvérsia, cada vez mais o pensamento pós-moderno libertário de esquerda, produzido sobretudo por intelectuais após maio de 68, como por exemplo o de Deleuze e Guattari, é acusado pela redução da liberdade e pelo enfraquecimento das esquerdas pelo mundo. Se essa causalidade ainda é suspeita, certamente não o são as notórias crises das esquerdas e da própria liberdade. Esse ensaio caminhará no sentido de criticar o ideário de liberdade pós-moderno concebido a partir da segunda metade do século passado, acusado de minar o pensamento verdadeiramente libertário – marxista – que o precedeu, e, considerando isso, qual virtude ainda resta ao pensamento pós-moderno.

Comecemos dizendo que a ausência de liberdade, socialmente expressa na desigualdade e na dominação socioeconômica de umas pessoas sobre outras, teve, a seu favor, as mais variadas explicações ao longo da história. Os antigos atenienses criadores da democracia, por exemplo, acreditavam que a natureza havia feito uns homens melhores que outros, e que estes “melhores homens”, em grego, os aristoi – aristocratas -, deveriam governar e decidir por todos. Mulheres, escravos e estrangeiros não tinhas direitos alguns. Posteriormente, chegou-se a justificar a desigualdade nalguma decisão divina. Em ambos esses casos, tentar eliminar a desigualdade social significava ou atentar contra a natureza, ou contra o eterno plano de Deus. E assim a desigualdade fez carreira no mundo.

No século XIX, contudo, Karl Marx criticou contundentemente essas visões, apontando que a desigualdade entre os homens era produto tão somente deles próprios. Afirmando, no Manifesto Comunista, que “a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”, Marx fez-nos ver que era o privilégio material de uns que gerava a dominação dos desprivilegiados materialmente. Na antiguidade, isso se deu com homens livres dominando escravos e patrícios, dominando plebeus; no medievo, senhores dominando servos; e na modernidade da qual Marx falava, o mesmo acontecia com os burgueses dominando os proletários.

Com essa nova visão, a ideia de Revolução deixou de ser não só antinatural ou pecaminosa, mas também utópica. Compreendendo a real dinâmica socioeconômica de modo científico, Marx previu a vitória da classe dominada sobre a dominante. Para tal, os dominados, isto é, os proletários, desde que unidos, deveriam tomar a revolucionária consciência – de classe – de que eles eram os agentes da mudança. Em outras palavras, que a realização de sua liberdade estava tão somente nas suas mãos. Mudança que, obviamente, ameaçava o longevo império da classe dominante, ainda mais depois da Revolução aventurada na Rússia em 1917, onde a ideia socialista se fez realidade. E como a classe dominante nunca esteve disposta a perder o seu histórico privilégio, a contraofensiva diante dessa abertura histórica à Revolução não tardou e não deixou por menos.

Em resposta à ameaça socialista, a classe dominante, primeiramente, chamou a Revolução – a liberdade enquanto coisa para todos – de “caos social”. Com efeito, o fato de os dominados se libertarem dos grilhões com que os dominantes os oprimiram desde sempre era o desmoronamento do cosmos aristocrático. Então, os aristoi dominantes do início do século XX iniciaram uma potente engenharia social para, com ela, desarticular qualquer consciência revolucionária dos oprimidos, e, assim, impedirem o que, para os dominantes, seria o “caos”. E o produto mais efetivo dessa neoarquitetura da dominação foi a invenção da famigerada classe média: uma classe intermediária, composta por parte da classe dominada, que, no entanto, não mais se reconhecia como tal.

Com o expediente da classe média, os oprimidos enganados foram convencidos de que ascenderam socialmente e se esqueceram da Revolução para então sustentarem, em beneficio da classe que seguiu os dominando, a manutenção da situação de desigualdade e opressão social, desde que, é claro, essa pseudoclasse fosse ao menos aparentemente preservada da sempiterna degradação social promovida pela classe dominante. Com efeito, a estratégia da classe dominante para não perder o seu domínio foi enfraquecer a classe dominada, dividindo-a em classe baixa e classe média, a despeito da verdade marxista segundo a qual há apenas duas classes: a dominante e a dominada. E, cereja do bolo, colocar essa pseudoclasse contra a classe dominada à qual ela, de fato, nunca deixou de pertencer.

Nessa conjuntura, pensamentos que apontassem a real e cruel dominação e, ainda por cima, rotas de fuga efetivas precisaram ser alienados desse mundus classe média. E o esquecimento fortuito do pensamento verdadeiramente libertário – como o de Marx – deu-se, também, com a ascensão do pensamento pós-moderno, declaradamente libertário, mas que, por sob suas mais sinceras intenções, prosseguiu obliterando o cruel fato de que, no fundo, só há classe dominante e dominada. Resultado: atomizações sociais, tão benéficas à classe dominante – afinal, átomos isolados não constituem consciência de classe nem tampouco fazem Revolução -, cresceram qual erva daninha regado pelo ingenuamente sincero pensamento libertário pós-moderno.

Ideias de micropolítica, de sujeito molecular, de desterritorialização, e, mais recentemente, de empoderamento e de lugar-de-fala, em suma, toda a conceituália pós-moderna esterilizou sobremaneira o único solo sobre o qual poderia florescer a Revolução: o continente perdido da classe dominada, e isso mediante o plantio de guetos cada vez menores e mais atomizados, e, consequentemente, mais fracos diante da peste dominante. Em oposição ao pensamento marxista, que explicava as partes em função do todo, a pós-modernidade ainda é a aventura de explicar o todo a partir das partes. Todavia, assim como o todo não é a soma das partes, e assim como falta ao finito condições ontológicas para explicar infinito, assim também a particularidade de onde arranca o pensamento pós-moderno de modo algum consegue explicar o todo sócio-econômico-polítioco-cultural.

Diante dessa incapacidade pós-moderna, restou a ela permanecer no micropensamento que se ocupa de desejos e de experiências individuais e de demandas particulares. De modo que, quando finalmente há alguma coletividade organizada em função da liberdade, ela é tão justa que comporta apenas um sexo, uma sexualidade, uma raça, em suma, uma demanda particular, por uma liberdade outrossim particular. No entanto, a busca de liberdade enquanto privilégio particular, não nos esqueçamos, é o objetivo per se da classe dominante. Aliás, jaz aí a diferença entre classe dominante e dominada borrada pelo pensamento libertário pós-moderno: a classe dominante quer liberdade e segurança contra o caos apenas para si, enquanto a classe dominada deveria querer estas coisas para todos, indistintamente.

No entanto, com o patrocínio do atomizante pensamento pós-moderno libertário, temos mulheres, negros, homossexuais, transexuais, etc., em lutas atomizadas, cada qual buscando uma liberdade parcial. Com isso, o objetivo maior da esquerda, qual seja, a socialização irrestrita da liberdade, é impossibilitado. As partes, isoladas, porém paradoxalmente crentes na centralidade de suas próprias excentricidades, perdem assim a possibilidade de constituírem a consciência realmente coletiva – de classe! – que mostre que todas elas são classe dominada. E mais, que o inimigo das mulheres, o dos negros, o dos homossexuais e transexuais, é o mesmo: a classe dominante. Por mais importante que seja às partes, às minorias, as suas lutas particulares, o marxismo ainda está aí para nos lembrar de que há uma luta muito mais urgente, primeira e universal que, no entanto, deixa de ser lutada ao ser dividida em uma miríade de lutas parciais.

Em relação ao viral discurso sobre o tal do “lugar-de-fala”, o filósofo brasileiro Vladimir Safatle diz que jamais a esquerda deveria ter sucumbido a ele. Não obstante, porque o fez, levou a rasteira épica que assistimos worldwide. Outro filósofo, Slavoj Žižek, é mais acusativo: que o discurso pós-moderno do “lugar-de-fala” é o discurso autoritário por excelência. Ora, dizer que um homem não pode se colocar no lugar de uma mulher; um branco, no de um negro; um heterossexual, no de um gay, e por aí vai; em nada difere do discurso dominante/patrimonialista segundo o qual ninguém pode ocupar a minha propriedade. Todavia, a ladainha libertária pós-moderna nos convence de que impedir o outro de se colocar no meu lugar é algo diverso das cercas eletrificadas e da militarização com que a classe dominante se resguarda. O que falta ser pensado seriamente é que, assim como o revolucionário marxista luta para que os privilégios socioeconômicos todas caiam em benefício da totalidade, assim também o libertário que pós-moderno deveria preferir a liberdade da classe dominada como um todo muito antes de querê-la para um (o seu) gueto particular.

Com tudo isso devemos concluir que o pensamento libertário pós-moderno deve ser jogado no lixo? Obviamente que não. Não só porque há pensadores pós-modernos, como os supra citados, que com efeito contribuem para a consciência de classe necessária ao vigor das esquerdas e à liberdade, mas isso ao criticarem o próprio pensamento pós-moderno – uma filosofia pós-moderna rigidamente crítica! -, mas sobretudo porque sem percorrermos os descaminhos do próprio pensamento libertário pós-moderno não entenderemos a dramática redução da liberdade nem a bancarrota das esquerdas pelo mundo. Marx sempre é de grande ajuda, mas não explicará essa desgraceira sozinho, visto que a maior virtude de seu pensamento é ser a ciência do caminho contrário: o da realização da liberdade universal.

Por mais que devamos criticar o pensamento libertário pós-moderno, não podemos jogar a água suja com o bebê junto – entendendo aqui a água suja enquanto a atomização social que esse pensamento produziu; e o bebê, a causalidade pela qual esse pensamento ganhou o mundo, mas que, no entanto, entregou o contrário do que prometeu. Algo como conhecermos bem a história do erro para não mais o repetirmos. Portanto, consumir o pensamento pós-moderno, sim. Porém, de modo radicalmente crítico – sendo que as melhores raízes dessa crítica devem estar fincadas no solo marxista. Não só o perigoso vigor da classe dominante exige isso, mas inclusive as justas suspeitas dos próprios pensadores pós-modernos de esquerda que ainda trabalham pela libertação universal. E isso porque somente quando a classe dominante não mais dominar – econômica, política, social, cultural e intelectual e ideologicamente – é que poderá haver um pensamento e uma vida verdadeiramente livres.

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“Diretas Já!”, bebê? Consciência de classe!

diretas já
Desenho: Laerte

O povo brasileiro, depois de 24 anos, clama novamente por “Diretas já!” diante do risco, aberto pela crise política tupiniquim, de uma eleição indireta para presidente da república capitaneada por um parlamento notoriamente corrupto e antipopular. Entretanto, esse clamor popular mais uma vez esconde uma terrível ingenuidade. Ora, “Diretas Já!” pressupõe que eleições diretas atenderiam os interesses do povo, e eleições indiretas, os dos políticos corruptos clientes do capital. Não obstante, entendendo esses dois “adversários” em termos marxistas, enquanto classe dominada versus classe dominante, o frágil castelinho de cartas democrático do povo desmorona, pois crer que eleições diretas mudarão o fato de que quem seguirá dominando será a classe dominante é tão tolo quanto esperar que dominante aceite outro significado.

Sequer podemos dizer que “Diretas Já!” é folclórico, pois, do inglês folklore (folk: povo + lore: conhecimento), folclore significa “conhecimento do povo”. Não obstante, a classe dominada entender que pela mera ocasião das urnas pode moderar, quiçá impedir a dominação da classe dominante outra coisa não é senão ignorância popular a respeito dos sistemas político e econômico vigentes. Dentro da engenharisticamente arquitetada democracia representativa/liberal/burguesa, o povo achar que o fato de ele votar ou votarem por ele fará alguma diferença é nada mais que estupidez; o seu folclore estúpido; sua folkstupidity.

E isso porque, em primeiro lugar, o competente trabalho de classe da classe dominante vem sendo obliterar a certeira leitura de Marx, eternizada no Manifesto Comunista, segundo a qual o Estado não é nada além do que “o comitê executivo da burguesia”. E a democracia, essa ideia de que é o povo, mediante o voto, que governa é a falácia da classe dominante para mentir que o Estado não é a sua exclusiva res privata. Ora, em uma democracia liberal/burguesa, o Estado democrático continua sendo o bunker do capital; a democracia, o bureau da oligarquia. Com efeito, a maior burrice do povo é seguir ignorando isso.

Sejamos realistas, povo brasileiro! Em ambos os casos, seja com eleições diretas, seja com indiretas, será eleito presidente um representante dos interesse da classe dominante. “A realidade é dura”: ou a classe dominante apresentará seus candidatos ao arbítrio popular, ou arbita ela mesma entre eles. Até mesmo Lula, tido como o herói “guerreiro do povo brasileiro”, embora tenha de fato distribuído renda, universidades e cisternas aos mais pobres como “nunca antes na história desse país”, ele só foi presidente da república porque atendeu, melhor dizendo, enriqueceu a classe dominante. Prova disso é que bastou o lulismo – todavia nas mãos menos competentes de Dilma – não mais realizar o sempiterno objetivo das elites e, voilà, rua!

O paralelo entre as “Diretas Já!” de 1983 e 2017 é inevitável. No recente século passado, a pecha “democrática” – e derrotada – foi tentar impedir que os militares escolhessem o presidente da república – que, como sempre, representaria as elites – para que o povo pudesse escolher, “democraticamente”, o presidente da república representante das elites. E o atual “Diretas Já!”, repetindo o erro do passado, pretende impedir que parlamentares corruptos – clientes cativos de empresários outrossim corruptos – elejam indiretamente um representante dos interesses desses empresários para que nós, o povo, escolhamos, dentre as opções que os políticos corruptos nos darão, o representante dos interesses dos empresários corruptos.

Eis a falácia da moderna “democracia”: fazer com que o povo, estupidificado, legitime a escolha dos representantes da classe dominante sem que esta precise fazê-lo despoticamente, via ditadura ou golpe, expedientes que, para quem quer lucrar sempre e muito, têm preço – econômico, político, ético – alto demais para serem usados constantemente. E “Diretas Já!”, novamente, é o grito do povo no sentido de seguir fazendo o que a classe dominante quer que ele faça: legitimar os representantes dela.

Fazendo uma analogia com a contemporânea e mui polemizada mazela social do crack, assim como os seus usuários, preteridos e esquecidos pelo sistema, valem-se desesperada e compulsivamente da “pedra” para suportarem tal condição – sem no entanto mudá-la com o vício -, assim também o povo, copiosamente, corre atrás da “pedra” da “democracia” para ao menos suportar, melhor dizendo, esquecer o fato de que o sistema seguirá dominado pela classe dominante. Nesse velho quadro, clamar coletivamente por “Diretas Já!”, infelizmente, é apenas desespero popular diante de uma crise de abstinência mais fortemente percebida. Metaforicamente, é a ignorância suicida do viciado fazendo-o escolher ele mesmo a sua destruição para não ver, crua e claramente, que, na verdade, não há escolha: o sistema no qual se encontra é que o destrói.

Ver essa realidade sem o Véu de Maya “democrático” tecido historicamente pela classe dominante para perpetrar mais expeditamente a sua dominação; no caso tupiniquim, aceitar o fato de que não importa quem escolherá o próximo presidente do Brasil, se o povo, diretamente, ou se os representantes da classe dominante, indiretamente, pois em ambos os casos a classe dominante seguira como tal; realizar isso, sem dúvida alguma, é traumático. Psicanaliticamente falando, contudo, todo trauma tem uma dupla virtude: primeiramente, não permitir que aquilo que o causa desapareça no esquecimento – o trauma é a fortuita presentificação de uma intervenção insuportável do real; e, em segundo lugar, é superável na medida em que o traumatizado é capaz de falar dele, de comunicá-lo àqueles que podem entendê-lo – sendo o analista o ouvinte/remédio ideal desse processo de cura.

Por isso aqui eu me dispenso, para evitar o pecado da ingenuidade, de propor alguma solução para o impasse traumático no qual nós, povo brasileiro, estamos metidos nessa inócua querela entre “Diretas Já!” e “Indiretas quando a classe dominante quiser”. Faço apenas questão de reforçar insuportavelmente esse trauma. Não só para que o meu encontro – enquanto povo – com o real se apresente em toda a sua radicalidade, sem véus/cracks anestesiantes, mas, sobretudo, para que, ao mesmo tempo, falando dele a quem me ler/ouvir, eu possa me “destraumatizar”. Se todos nós, dominados, fizéssemos isso certamente nos despatologizaríamos a ponto de lidarmos com o real de nossa opressão de modo mais objetivo, político e subversivo, exatamente como a classe dominante faz para nos oprimir.

É porque a classe dominante sabe nitidamente que, de um lado, a democracia liberal/burguesa é a melhor fantasia para a sua estável oligarquia, e que nem mesmo eleições diretas mudarão o fato de que os presidentes serão representantes exclusivos seus; e também, de outro lado, porque está certa de que, até aqui, conseguiu fazer com que a classe dominada permanecesse alienada dessas cruéis verdades; por isso tudo é que ela domina tão certeiramente. O que se depreende disso tudo é que falta ao povo um esclarecimento fundamental, precisamente aquilo que Marx prescrevia aos trabalhadores para que a Revolução fosse possível, qual seja: consciência de classe – consciência essa que sobra à classe dominante. E se o povo puder conscientizar-se de sua potencialidade revolucionária fazendo aquilo que a psicanálise prescreve ao traumatizado: assumir o trauma e comunicá-lo a quem melhor pode compreendê-lo, não a psicanalistas, obviamente, mas a si próprio?

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O pior pós-capitalismo

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A expressão “pós-capitalismo”, embora seja bastante usada para se referir ao sistema econômico que se seguirá ao capitalismo, ainda é negativa, no sentido de não haver certeza alguma acerca do próximo modus economicus que sistematizará, materialmente, as relações humanas. O pós-capitalismo ainda é apenas um imenso significante vazio, cuja única virtude pseudopositiva quiçá seja indicar que haverá um após em relação ao capitalismo, que, no entanto, não sabemos qual.

Em respeito aos sistemas econômicos, pelo menos os que precederam o capitalismo, sabemos que são históricos e finitos. São, com efeito, sistematizações determinadas dos modos de produção e de subsistência materiais de sociedades humanas outrossim determinadas. Mudando-se a conjuntura social, muda-se consequentemente a forma econômica mediante a qual a sociedade subsiste. E é essa (cons)ciência que nos permite pressupor que o capitalismo, assim como o escravismo e o feudalismo, antecessores seus, morrerá e dará espaço a um novo sistema econômico.

Marx foi o pensador que talvez mais fortemente tenha acreditado nisso, profetizando que o capitalismo ruiria inevitavelmente devido às suas próprias contradições para ser sucedido pelo socialismo, e então pelo comunismo, tanto quanto a sua ciência – autonomeada não-utópica – pôde prescrever. Entretanto, depois de duas experiências históricas marxistas dignas de nota: os comunismos soviético e cubano; aquele, já encerrado, e este, sendo desmontado diante dos nossos olhos; hoje em dia, infelizmente, o marxismo serve muito mais como um farol simbólico do que como o GPS que indica o rumo econômico preciso que nossas sociedades tomarão.

O conceito de pós-capitalismo, em sua abertura indeterminada, de certa forma é um antídoto à febre marxista de prever o futuro em seus mínimos detalhes. Agora, pelo simples fato de indicar um após em relação ao capitalismo, a ideia de pós-capitalismo guarda um quê de Marx pelo simples fato de contar com o fim do capitalismo. Mantendo essa – saudável – “esperança” marxiana, o conceito de pós-capitalismo, no entanto, não deveria nos permitir pressupor nada além de duas opções: ou um após melhor do que o capitalismo, ou um pior.

Todavia, uma terceira opção não pode ser descartada . E se o capitalismo for um sistema econômico sui generis, e, mesmo depois de morto, não dê lugar a nenhum outro? E se não houver nada melhor nem pior do que o próprio capitalismo depois dele, mas apenas a presença eterna de seu cadáver a assombrar morbidamente as nossas sociedades? Para ilustrar essa – terrível – ideia, nada melhor do que o conceito de zumbi. Com efeito, o zumbi é o ser que já morreu mas que, de certo modo, permanece meio-vivo enquanto suga a vida do que vive. Em modo zumbi, o capitalismo pode permanecer como o sistema econômico morto-vivo.

E se o pós-capitalismo, na mais realista das opções, no final das contas, for unicamente o capitalismo zumbi, ou seja, o capitalismo oficialmente morto, mas, sinistra e espectralmente, sugador inarredável e paradigmático da vida das sociedades? Se esse quadro parece demasiado sinistro, isso se deve menos a qualquer pessimismo do que a característica genética e sempiterna do próprio capitalismo de superar e destruir qualquer outra forma de organização econômica.

Outra possibilidade pós-capitalista no mesmo sentido da do zumbi é a fantasmática: o capitalismo enquanto alma penada; enquanto assombração insistente; mantendo-nos aprisionados a ele simplesmente pelo ruído fantasmagórico do arrastar de suas correntes, as mesmas com que até o presente momento nos agrilhoa. Seriam esses os piores pós-capitalismos, o capitalismo zumbi ou o fantasmagórico, que nunca desaparecem completamente, mas sobrevivem indefinidamente mediante seus restos putrefatos ou espectrais?

Pelo andar da carroça capitalista até aqui, não temos motivos para não esperar o pior do capitalismo; sendo esse pior, obviamente, a sua não desaparição das vidas das nossas sociedades. Entretanto, assim como nos filmes de ficção os sobreviventes de apocalipses zumbis se livram dos mortos-vivos destruindo o que resta de vivo nos seus cérebros, assim também devemos estar prontos para atacar o resto vivo do capitalismo assim que morto. E se a mais promissora arma que ainda temos para destruir o cérebro capitalista zumbi for mesmo as ideias do cérebro de Marx, que, até hoje, não só sustentam a morte total do capitalismo, como principalmente preveem um após melhor?

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Remedievalização

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A Idade Média não se reconhecia como tal. Esse nome epocal foi dado a posteriori, pela modernidade que a seguiu, para indicar o período mediano, intermediário, de mil anos, que separou a grandeza da antiguidade até Roma do século V da grandeza da modernidade Europeia a partir do século XV. A Idade das Trevas, como o século XIX se referia ao medievo, caracterizou-se pela ruralização, pelo isolamento social e pelo obscurantismo da fé em detrimento da urbanização, do cosmopolitismo e do uso da razão.

Isto está sendo colocado aqui para perguntarmos se a história porventura estaria se repetindo, isto é, se o nosso mundo pós-moderno, no qual a globalização e a ciência promovem um desenvolvimento sem igual e aparentemente irreversível, não está se encaminhando para um intermédio histórico trevoso que, uma vez estabelecido, negará os nossos mais elevados valores contemporâneos. Assim como a urbe máxima romana produziu a grande noite histórica conhecida como a Idade Média, assim também a nossa babilônia pós-moderna por acaso não está produzindo um novo e inevitável regresso epocal?

Dizem os historiadores que Roma, e toda a sua surpreendente grandeza, ruiu devido às invasões bárbaras. Levados pela literalidade dessa definição, desde a escola imaginamos que se tratou de ataques muito pontuais e objetivos de bandos bárbaros contra Roma que, depois de algum tempo, devassaram definitivamente a Cidade Eterna, nada deixando aos altivos cidadãos romanos senão a timidez da escuridão medieval.

Entretanto, para mim, a melhor explicação – histórico materialista – desse fato se encontra em uma nota de rodapé de Karl Marx, em O Capital, segundo a qual foi a própria imensidão do Império Romano, mais especificamente a insustentabilidade dessa imensidão, que fez com que, paulatinamente, a sociedade romana precisasse de mais mão de obra e insumos de toda espécie advindos de povos cada vez mais distantes, dos bárbaros, que se tornaram fundamentais à opulência romana. E não tardou até os bárbaros perceberem essa sua centralidade, de modo que, em vez de “invadirem” Roma, eles apenas assumiram que ela já era sua.

Nesse sentido, o atual “povo distante e estanho”, sem o qual as essenciais bugigangas ocidentais, eletrônicas ou não, não são mais possíveis; povo esse cujo dinheiro inclusive salvou os bancos norte-americanos da mega crise financeira de 2008, qual seja, a China, pode estar para o nosso mundo assim como os bárbaros estiveram para o mundus romano. Porventura não será só questão de tempo até a China perceber que o mundo é ela, e então fazer dele o que bem entender?

Todavia, os “bárbaros” que imediatamente ameaçam a nossa contemporânea pax globalizada e cosmopolita são, com efeito, os terroristas religiosos/muçulmanos. Os cada vez mais frequentes atentados de terror que explodem nos/os nossos grandes e populosos centros urbanos – para, obviamente, terem maximizados os seus efeitos destrutivos -, criam imensa desvantagem em se viver em opulentas cidades. Preferir vilarejos e locais esquecidos do mundo, hoje em dia, parece ser o melhor antídoto, tanto contra as organizadas alcateias terroristas, quanto contra os proliferantes “lobos solitários”.

O próprio Império da Ciência, imbatível em se tratando de verdade e de interferência na vida de todos, está, inacreditavelmente, perdendo espaço para toda sorte de crenças e opiniões infundadas, atualmente chamadas de pós-verdades. Intempestivamente, até mesmo universidades reconhecidas decidem investir mais na desacreditada teoria criacionista em detrimento da cientificamente comprovada teoria evolucionista. Será que a base ideológica/religiosa dos “bárbaros terroristas” de que falávamos acima é um terrorismo colateral ao terrorismo explícito que eles espalham pelo mundo?

O neoimpério do dogma sobre a ciência é espécie sorrateira de terrorismo que, entretanto, não tem como ser detectado por leitores de raio-X nem, consequentemente, eficientemente contido. Com efeito, os vigorosos fundamentalismos religiosos, seja o bélico muçulmano, seja o endêmico evangélico pentecostal, são freeways para o passado que pedágio epistemológico moderno algum está conseguindo controlar. O que anda restando aos grandes intelectuais da contemporaneidade contrários a essa onda, infelizmente, é apenas discorrer sobre o neo-obscurantismo que cresce e avassala o mundo científico qual tsunami.

Não podemos deixar de falar dos impertinentes ímpetos xenófobos, racistas, machistas, sexistas e homofóbicos que, com Trump, nos EUA, Le Pen, na França, Petry, na Alemanha, e Bolsonaro, no Brasil, reconduzem-nos a um passado – nem tão distante assim – cuja validade, contudo, parecia ter sido superada. Talvez o passado deva ser encarado como um monstro que nunca morre, mas que sobrevive em modo zumbi, apenas aguardando que o presente baixe sua guarda para atacá-lo no pescoço e sugar a vida que corre em suas veias.

O propósito de listar – alguns – contemporâneos movimentos da nossa dita “sociedade evoluída”, no entanto, em direção a uma extemporânea involução, é perguntar se evolução demais, como desejamos e planejamos, é possível. Assim como Roma, que elevou a quantidades inimagináveis as comedidas qualidades do mundo antigo, foi a produtora da regressão sócio/cultural/urbana trevosa posteriormente chamada de medievo, assim também o nosso mundo contemporâneo superdesenvolvido pode estar sendo o produtor sorrateiro de uma remedievalização do mundo.

Como, vulgarmente, pensamos que tudo o que está indo contra os nossos planos de um mundo ainda mais desenvolvido trata-se apenas de erros a serem sanados, e não, como Marx diria, do resultado material e inevitável dos modos de subsistência da nossa sociedade capitalista globalizada, essas crescentes rachaduras no nosso aparentemente inabalável edifício pós-moderno não são devidamente encaradas. Desse modo, ruem o modus vivendi contemporâneo apressando a sua queda. Se ainda não estamos tombados no chão do passado zumbi que nunca deixou de sustentar as nossas democráticas e digitais torres de marfim (pós)modernas, talvez seja apenas questão de tempo até isso acontecer.

E não nos surpreendamos se trevas tais como as medievais, que estão demasiadamente próximas no nosso cosmopolita horizonte contemporâneo, fecharem o tempo de vez e criarem uma tempestade incontrolável por, digamos, outros mil anos. Infelizmente, qualquer apelo para se evitar tal destino parece ser apenas ingenuidade, uma vez que são precisamente os nossos modos de pensar e de viver os maiores catalisadores do nosso ingresso às “neotrevas”; mais ou menos como os romanos, que, democratizando desde água encanada e esgoto a direitos inalienáveis de cidadania, acreditavam estarem construindo mais evolução, mas que, como a história nos conta, apenas gestaram, no ventre de sua crescente e inacreditável opulência, aquilo que a aniquilou.

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Empresário-de-si-mesmo versus Proletário-mesmo

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A expressão “proletário-de-si-mesmo” seria algo redundante, uma vez que o proletário, de certa forma, já é um “si-mesmo”: aquele que, solitariamente, vende sua força de trabalho para sobreviver, e assim mesmo permanece, mais ainda, assim deve permanecer para o bem do capitalismo. Se aqui invisto nesse pleonasmo é para criticar o contemporâneo, e cada vez mais investido, conceito de “empresário-de-si-mesmo”: sujeito que, como o proletário, também vende a sua força de trabalho no mercado, mas que, antes disso, e sobretudo para isso, já “trabalha”, investe, árdua e não-remuneradamente, para estar a altura das necessidades daqueles que, com sorte, comprarão a sua força de trabalho para explorá-la.

Antes de prosseguir, é importante percorrer os significados históricos da palavra “proletário”. A expressão “proletari” surge na Roma antiga para designar os cidadãos da classe mais baixa que, despossuídos de quaisquer bens materiais, tinham por única função social gerar prole para ser usada pelos exércitos. Muitos séculos mais tarde, Karl Marx reutiliza o termo para, comezinhamente, diferenciar os trabalhadores dos burgueses capitalistas, porém, mais especificamente, para diferenciar os trabalhadores conscientes do seu papel social e histórico daqueles que não adquiriram tal consciência.

Marx, compreendendo, de um lado, que o motor da História é a luta de classes – como lemos no “Manifesto Comunista” -, e, de outro lado, que a riqueza social é medida com base no tempo de trabalho necessário para produzir mercadorias – ideia presente em “O Capital” -, enxergou nos trabalhadores, os indivíduos despossuídos de bens que no entanto produzem a riqueza, a classe que tem por destino vencer a substantiva luta das sociedades humanas. Mas isso, prega Marx, somente se o trabalhador se proletarizar. O eternizado lema dessa revolução jaz no Manifesto: “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”

Dessa perspectiva, é fácil entender porque, atualmente, a “identidade proletária” é sistematicamente desmantelada pelo sistema capitalista, afinal, este sabe, como Marx, que se seguir comprando a força de trabalho daqueles que, unidos, irão derrotá-lo, estará com isso dando um tiro no próprio pé. O ideal de “empresário-de-si-mesmo”, ao contrário, cinde os trabalhadores em unidades autônomas e competidoras entre si, destruindo assim qualquer possibilidade de uma consciência global entre aqueles que produzem a riqueza das suas sociedades.

O problema mais grave, contudo, é o fato de os próprios trabalhadores contemporâneos rejeitarem a sui generis identidade revolucionária que tão somente lhes cabe. Vestidos com o sofisticado uniforme de “empresários-de-si-mesmos”, são, na verdade, demasiadamente reacionários: reencarnam os seus antigos ancestrais romanos que, assim como eles, não são senhores da riqueza social, permanecendo como meros “produtores de população”, só que agora para a “guerra mundial” do capital. Rejeitar a identidade proletária tem um amargo preço: abrir mão da revolução.

Marx cunhou a expressão “lumpenproletariat” (lumpemproletariado) para designar os trabalhadores que, sem consciência de classe, ou o que é o mesmo, sem unirem-se a outros trabalhadores em um grande corpo proletário consciente, atendiam subservientemente aos interesses da burguesia. Se em alemão “lumpen” significa “trapo”, “farrapo”, a sua célebre significação marxiana é: “seção degradada e desprezível do proletariado”. A radical escolha do trabalhador, portanto, é, ou unir-se, conscientizar-se, proletarizar-se, ou, em vez disso, desunir-se, ser eternamente explorado, lumpemproletarizar -se.

Essa besta capitalista chamada “empresário-de-si-mesmo” tem o vício de fazer da virtude proletária um trapo, um farrapo. Hoje em dia, cada vez mais vence a ideia de que é degradante para um trabalhador identificar-se com a condição de trabalhador, e, pior ainda, com a de proletário. Só que, sendo absolutamente marxista, não é difícil concluir que essa “nova ideologia” esconde o fato de que o “empresário-de-si-mesmo”, essencialmente, é um lumpemproletário: aquele que mais subservientemente está a serviço da burguesia.

Sem embargo, aqueles que gastam, em média, trinta anos de suas vidas, sem dizer uma imensa quantidade de dinheiro, para estudarem, especializarem-se, falarem no mínimo três idiomas, vestirem-se adequadamente, responsabilizarem-se privadamente pelos seus planos de saúde e de aposentadoria, e tudo isso apenas para poderem vender as suas forças de trabalho à burguesia para, doravante, serem explorados por ela como qualquer trabalhador, são o que senão a “seção degradada e desprezível do proletariado” que, lumpenproletariamente, faz tudo o que seus opressores burgueses mais querem?

O “empresário-de-si-mesmo” é um monstro social do mesmo calibre que a “classe média”. A classe dominante, para mais-dominar, precisou nublar o fato de que as sociedades são constituídas por duas únicas classes: a dominante e a dominada. Então, inventou essa “classe” intermediária, que, na verdade, é constituída por indivíduos da classe dominada, que, entretanto, não mais se reconhecem como tais. São realmente dominados, porém, ideologizadamente dominantes. Não se unem mais aos interesses de seus pares, mas, burra e manipuladamente, aos de seus ímpares.

O pecado capital do “empresariado-de-si-mesmo” está em desistir do poder sui generis que Marx enxergou no proletariado, esse corpo de trabalhadores autoconsciente do seu papel histórico e essencialidade social que, somente enquanto proletariado, unido, é o agente da revolução que dará cabo da exploração que sofre. O “empresário-de-si-mesmo”, com efeito, está muito mais próximo do baixo cidadão romano, cativo da rígida e tradicional estratificação social antiga, que se já não tinha chance de mudar a sua condição, menos ainda podia revolucionar a sua sociedade.

Agora é a ocasião de desinvestirmos de vez a redundante expressão “proletário-de-si-mesmo”, usada inicialmente para criticar a besta social chamada “empresário-de-si-mesmo”. E isso para defender que enquanto “si-mesmo” um trabalhador é apenas um lumpemproletário. É precisamente por deixar de ser “si-mesmo” para formar um corpo unido e consciente com os demais “si-mesmos” como ele que o trabalhador deixa de ser um “lumpen”, um trapo velho e desprezível nas mãos daqueles que compram a sua força de trabalho, e veste a farda com a qual revolucionará a sociedade.

Já o “empresário-de-si-mesmo”, ao contrário, é um “si-mesmo” deliberada e demasiadamente ensimesmado; isolado dos seus iguais, e o que é pior, concorrente deles. Em outras palavras, é um lumpemproletário que se enxerga como burguês – assim como a classe média é a classe dominada que se vê como dominante. O único “si-mesmo” que pode existir com alguma dignidade social é o trabalhador. Não obstante o sistemático furto dessa dignidade pelos “detentores dos meios de produção”, isto é, os burgueses, os trabalhadores deve proletarizarem-se. Por isso, em vez de “proletários-de-si-mesmos”, e de modo algum “empresários-de-si-mesmos”, todos nós que trabalhamos devemos ser, em primeiro lugar, “proletários-mesmos”!

Bestas sacrificiais

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“Não pense em crise. Trabalhe!”, diz a classe dominante golpista aos brasileiros. O que querem que engulamos a seco, contudo, é uma dura verdade: o sacrifício que estão (re)impondo ao povo não tem nada a ver com crise mesmo, como se se tratasse de uma dificuldade presente a ser superada. Querem apenas a radicalização da velha realidade sacrificial na qual a classe dominada trabalha única e exclusivamente para enriquecer e privilegiar ainda mais os já muito ricos e privilegiados. A novidade está em que, hoje, isso se dá sobre as cinzas da utopia de “igualdade social” que certas ideologias de esquerda tentaram tornar reais.

Entretanto, para quem ainda se recusa a aceitar essa desigual realidade, na qual umas pessoas são sacrificadas em função de outras (os pobres, em prol dos ricos; os proletários, em benefício dos burgueses etc.); para quem acha que, se as coisas infelizmente ainda são assim, essa história deve ser mudada, isto é, que devemos evoluir socialmente; proponho atravessar uma ideia do liberalíssimo filósofo alemão Immanuel Kant, presente no seu texto “Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita”, que diz o seguinte: a evolução é algo que concerne somente à espécie, e não aos seus indivíduos.

A hipótese do filósofo, obviamente, engloba todos os indivíduos de uma espécie. No caso da humana, indiscriminadamente ricos e pobres, proletários e burgueses, dominados e dominantes, etc. Para Kant, todos somos indivíduos de menor, insignignificante importância a construir, sacrificialmente, com nosso sangue, vida e histórias particulares, uma história muito maior, a da espécie humana, cuja finalidade, no entanto, desconhecemos, seja por nossa individual finitude temporal, seja principalmente por nossa ignorância em respeito ao plano da natureza que a tudo e a todos engloba.

Agora, se todos nós, humanos, somos nada mais que vítimas sacrificiais da “História Universal”, por que, além disso, a maioria de nós, a classe dominada, ainda é sacrificada pela minoria, a classe dominante? Por que o sobressacrifício? Será por que essa minoria até aqui dominante pensa que é a protagonista da grande História Universal, em função da qual todo resto – a classe dominada – deve ser sacrificada? Muito provavelmente sim. Todavia, mutatis mutandis, não foi exatamente isso que fez Marx ao eleger o proletariado enquanto o agente excelente e personagem principal da história humana, na qual era a burguesia a besta a ser sacrificada?

Mesmo que, como disse Kant, a grande história do universo não seja a nossa, mas a da natureza, ao menos podemos ler nesse subcapítulo confuso que somos que todos nós, ricos e pobres, dominantes e dominados etc., queremos uma única coisa: ser o centro em torno do qual a verdadeira história se dá. O problema é que, para tal, uns tenham de ser sacrificados; talvez para que o restante possa se alienar da verdade mais cruel, qual seja, que todos seremos sacrificados em função da história universal. Sacrificar alguns promete – todavia mentirosamente – espécie de coprotagonismo na grande história do universo.

Dentro dessa lógica, se, além do inalienável sacrifício ao qual todos estamos sujeitos dentro da História Universal, nossa pequena e impertinente glória subcapitular é sacrificarmos uns aos outros, cabe a pergunta: é melhor que a minoria (os ricos, a burguesia, etc.) seja sacrificada em função da maioria (os pobres, o proletariado, etc.), ou o contrário? Porventura não está nessa resposta a diferença entre esquerda e direita? Se sim, não seria a direita o agente anti-histórico por natureza, uma vez que seu intuito é manter as coisas como sempre foram, isto é, a minoria dominando a maioria? E a esquerda, por sua vez, cujo objetivo é mudar esse fato, não é, como diria Marx, o único agente histórico dentro da pequena história humana?

Ora, o objetivo de uma verdadeira esquerda deve ser o fim da sociedade de classes, isto é, o fim da dominação de uns por outros. Só assim será possível evoluirmos a uma realidade social onde nenhumas pessoas sacrifiquem outras, uma sociedade na qual nem mesmo o proletariado domine a burguesia, mas haja somente povo. E uma realidade na qual todos se “sacrifiquem”, melhor dizendo, sejam “sacrificados” igualmente já não é razão suficiente para que a “história” da direita seja sacrificada em função “história” da esquerda.

Se, como dito antes, a direita não quer fazer história, mas apenas manter as coisas como sempre foram, isto é, manter a dominação da minoria sobre a maioria, o desejo da esquerda de acabar com a sociedade de classes, de pôr fim à dominação de uns por outros, para que doravante haja somente uma sociedade igualitária, quer por sua vez também espécie de fim da história. A diferença entre elas, entretanto, está precisamente em um único e decisivo passo, qual seja, o fim da dominação de classe: a direita, evitando com unhas e dentes essa evolução; e a esquerda, fazendo o que pode para realizá-la.

Kant foi trazido aqui para lembrar-nos de que uma existência humana completamente livre de sacrifícios é impossível, uma vez que a história principal na qual estamos temporariamente imersos não é a nossa, mas a da natureza; em função da qual todos os indivíduos são inescapavelmente sacrificados. A presença de Marx, em troca, é fundamental porque nos informa que esse sacrifício pode e deve ser mitigado, mas isso somente se for igualitariamente democratizado, a ponto de as pessoas não sacrificarem-se umas às outras dentro do grande espetáculo sacrificial que é a História Universal.

Marx propõe a melhor “política de redução de danos” ao capítulo humano dentro da História Universal kantiana. Para os que acham que a dominação de uns sobre outros é capítulo que deve ser superado, essa é a política. Já àqueles que, em troca, impõem à maioria das pessoas que apenas trabalhe para privilegiá-los mais ainda, e, ademais, sem pensar que isso se trata da mais candente crise humana, a solução marxista é uma ameaça absoluta. E isso porque faz com que o inevitável sacrifício humano dentro da História Universal kantiana seja de fato comum a todos, e não recrudescido à maioria para que à minoria ele seja amenizado. Só assim o fatal sacrifício humano dentro da História Universal será menos sacrificial. Sacrificados, sim, mas pelo universo; não bestas sacrificiais de nós mesmos.

Poesia e filosofia, ontem, hoje e amanhã.

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“No princípio era o Verbo”, diz a abertura do Evangelho de João sobre a criação do universo. O cosmos sobre o qual nos debruçaremos doravante, todavia, não é o bíblico, mas o poético e o filosófico. Foi em relação a estes, aliás, a frase do apóstolo. A poesia e a filosofia têm um extenso ontem a ser rememorado; um justo hoje a ser intuído; e um aberto amanhã diante do qual, no entanto, podemos apenas vaticinar. Pensar a poesia e a filosofia, a relação de cada uma delas com a vida e sobretudo entre si, eis o que este ensaio pretende fazer.

Sabemos que a poesia precedeu a filosofia. Então, se “no princípio era o verbo”, esse verbo primordial foi poético. Muito antes de homens filosofarem naquelas ilhas gregas da antiguidade, Hesíodo, um camponês que vivia nas proximidades de Téspias, na Beócia, em suas próprias palavras, uma aldeia amaldiçoada, cruel no inverno, penosa no verão, jamais agradável, já poetizava sobre a vida simplesmente ao dizê-la. Homero, autor da Ilíada e da Odisseia, foi outro antigo grego que verbalizou poeticamente o mundo.

E a poesia bastava! Mais do que isso, fazia sobrar interfaces para a humanidade entender o real e para este compreendê-la. Tanto que os primeiros homens que, posteriormente, foram chamados de “os primeiros filósofos”, quais sejam, os pré-socráticos, muitos deles se valiam do assaz naturalizado estilo poético para dizerem da realidade por uma via outra que não mais estritamente poética. Estes, todavia, poetas não eram mais.

Essa hibridismo entre poesia e filosofia fica claro no poema do filósofo Parmênides de Eléia, Sobre a natureza, no qual o pré-socrático valeu-se da tradição poética de seu tempo para iniciar sua conversa com o leitor e desse modo apresentar a questão filosófica da qual trataria sem, digamos assim, causar estranheza. Não esqueçamos, estamos falando de uma sociedade absolutamente tradicional, na qual a mudança era vista com maus olhos .Tanto chamavam-na de corrupção!

Entretanto, imediatamente ao preâmbulo poético, Parmênides, sem dó nem piedade, revoluciona o mundo discursivo, e porque não dizer a história do pensamento, ao escrever argumentativamente, num ato de invenção da prosa lógica que dispensou não só os elementos míticos como o estilo poético de forma geral. A passagem desse segundo movimento do poema parmenídico que melhor representa essa revolução é: “o que é, é, e não é para não ser … o que não é, não é, e tem de não ser”.

Não obstante, antes de dizermos que essa invenção do pensador de Eleia foi uma apunhalada no coração da poesia, o importante aqui é ressaltar apenas que ela perdia o seu longevo e exclusivo belvedere a partir do qual humanidade e realidade eram mediados. Doravante, nunca mais o pensamento se restringiria apenas ao modo poético para dizer o que era e o que se passava como mundo.

Parmênides, no entanto, foi um revolucionário deveras respeitoso, pois mesmo tendo demarcado uma rígida fronteira entre os dois modos de dizer o real, a poesia e a prosa argumentativa, na terceira e última parte de seu “poema filosófico” o grego faz uma cosmologia que mistura os dois estilos anteriores, como que para tentar juntar novamente o que acabara de cindir tão evidentemente. Depois dele, porém, a filosofia como a conhecemos não se privou de trilhar um caminho cada vez mais apartado da poesia e cada vez mais próximo da lógica.

Antes de separarmos de vez poesia e filosofia, cabe todavia lembrar dos sofistas, homens que circulavam pela Grécia antiga, cuja produção intelectual era algo entre poesia e filosofia. Desde sempre híbrida, a sofística dizia o que se passava com o homem e com seu mundo. De um lado, com uma liberdade aparentada à poesia. Porém, de outro, com uma objetividade assaz pragmática, própria do pensar filosófico. Com efeito, os sofistas criavam e vendiam discursos de verve poética, contudo estrategicamente políticos, que até o vertical verbo platônico se voltar contra eles, eram confundidos com filosofia, mas que depois jazeram estigmatizados.

O pai da filosofia negava pertinência, não só às produções sofísticas, mas também às poéticas, alegando que estas não tratavam do que realmente importava, ou seja, daquilo que é necessária e universalmente válido, isto é, o Ser. Para o daddy-cool da filosofia, as ideias: o real mais real do que qualquer outra coisa, não podem ser conhecidas e fruídas de outro modo senão filosoficamente. E para Platão, poesia e sofística, ao tentarem falar das coisas, quando muito dizem apenas de suas corrupções terrenas, uma vez que não as atingem em suas origens, isto é, nas alturas celestes e ideais onde elas vivem eternas e incorruptíveis.

Como sabemos, o idealismo platônico nega a sensibilidade e o mundo dinâmico que ela revela aos homens, pois tudo o que é sensível diz apenas daquilo que será corrompido pelo devir. Expressar-se a partir do que se percebe sensivelmente, para Platão, outra coisa não era que ler a sentença de morte dos objetos dessa expressão. A realidade imediata, material, sensível, no entanto, era a matéria prima com a qual os poetas e os sofistas se aventuravam discursivamente. Mas para Platão, o voo que alçavam não se aproximava do que mais importava, das ideias das coisas a respeito das quais falavam.

Tanto que em vários de seus famosos diálogos Platão se empenhou em mostrar a limitação dos poetas e dos sofistas. Em Hípas Maior, evidenciou a impertinência do fazer sofístico de modo contundente. E na sua maior obra, a República, não se privou de banir a poesia de sua sociedade ideal. Justiça seja feita, Platão poupou apenas a poesia homérica, e isso porque ela relatava os grandes feitos heroicos do passado que, a seu ver, eram dignos de sobreviverem enquanto exemplos aos gregos. Dizia Platão que qualquer outra poesia causava apenas sensações, e mais afastava do que aproximava o homem da verdade e da virtude, objetos excelentes da sua República.

Com Platão, portanto, temos a ereção de um muro intransponível onde Parmênides havia apenas deitado uma fronteira. Diferente do pré-socrático, o pai da filosofia não aproximou filosofia e poesia em cosmologia alguma, uma vez que avizinhá-las apenas corromperia a sua filha preciosa, a filosofia. A poesia, marginalizada, só mesmo travestida de tragédia manteve lugar cativo na sociedade grega. Porém, em se tratando de verdade, a poesia nada mais podia.

Aluno de Platão, Aristóteles comprou a filosofia absolutamente. Aqui todavia vale ressaltar que o pupilo foi mais filosófico que o mestre, uma vez que a dialógica platônica carregava um certo verniz poético que de forma alguma reluziu no racionalismo aristotélico, profundamente mais prosaico, chamado por muitos de tedioso até. Talvez a sensação de tédio que o racionalismo de Aristóteles cause seja a marca da distância instituída entre poesia e filosofia.

Digna de nota é a diferença entre Platão e Aristóteles no tratamento da poesia. Aquele, como vimos, condena-a na República. Todavia, na forma de diálogo essa condenação ainda é de certa forma poética porque vivazmente encarnada nas vozes e gostos de Sócrates e seus companheiros. Já Aristóteles, na sua Poética, mesmo na intenção de apologizar a poesia o faz racional, metódica e tecnicamente, tratando dela como se de política ou de biologia fosse.

Saltando da antiguidade ao medievo, na chamada Idade das Trevas a poesia não reconquistou lugar excelente algum. O mundo medieval-cristão não podia deixar-se seduzir pela poesia sem o terrível risco de incorrer em pecado devido à dimensão sensual a que ela expõe os homens. Ademais, nenhuma poesia poderia nem deveria estar no lugar da palavra de Deus. Sensações e tergiversações como os que a poesia é capaz de causar eram a senda para se desencaminhar do paraíso prometido no fim de uma vida de privações.

A poesia e a sensibilia que ela envolve, portanto, permaneceram marginalizadas no mundo medieval. Até mesmo a filosofia, por ser um método humano de se alcançar a verdade, desafiava os preceitos cristãos, uma vez que o caminho, a verdade e a luz eram tão somente Deus, e só através da palavra dEle poderiam ser alcançados. Para sobreviver na Idade Média, a filosofia como os gregos a faziam teve se ser mutilada. As obras de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, por exemplo, levaram Platão aonde ele sequer poderia imaginar. Muitos dizem que o platonismo no medievo foi espécie de estupro ao seu criador.

Todavia, a modernidade irrompeu com muitos cristãos filosofando sem que a fé ou a palavra de Deus os intimidassem tanto. Muito pelo contrário. Provar a existência, a perfeição e a infinidade de Deus de modo filosófico de certa forma foi o estopim da modernidade. A prova ontológica de Deus cartesiana é o ícone do casamento perfeito de Deus e o pensamento humano. Pensar o infinito sem o qual Deus não é passou a ser o desafio filosófico por excelência. A poesia, obviamente, nada podia nessa empresa. Sobreviveu enquanto entretenimento burguês. Porém, tampouco a filosofia se mostrou capaz de dar conta da infinidade.

Então entrou em cena a ciência moderna, que longe de se pautar pela sensibilidade poética, e ciente da impotência dos argumentos metafísicos, se valeu da matemática euclidiana e da física newtoniana para explicar o real infinito. Se restava alguma dúvida de que a filosofia era incapaz de tocar a verdade, Immanuel Kant, na sua Crítica da Razão Pura, deixou isso irreversivelmente claro. O filósofo evidenciou os limites da razão metafísica e estabeleceu que somente a ciência e a matemática podiam tratar da verdade, não obstante ao modo de produzi-la.

Apesar de ter apunhalado definitivamente a metafísica, o filósofo alemão deixou os campos da ética e da política ao encargo dela.  Porém, ela não poderia mais versar sobre o que válido necessária e universalmente, apenas sobre a dinâmica das relações sociais e dos valores morais, contingentes por natureza. E na sua Crítica da Faculdade do Juízo, a última de sua trilogia, Kant, tratando da beleza, outro lugar não reservou à poesia além de uma contingência particular de pretensão universal.

Contra essa herança inglória legada à filosofia por Kant, o filósofo alemão Friedrich Hegel empreende seu contundente sistema de pensamento, cuja pretensão era não deixar nada do que já havia sido produzido pelo homem de fora. Muitos dizem que Hegel tentou salvar a filosofia. Todavia, sua dialética “espiral histórica” que compreendia todo e qualquer movimento da razão não foi suficiente para tirar da ciência moderna seus cetro e coroa no reinado da verdade.

Outro filósofo alemão, Karl Marx seguiu o caminho hegeliano, todavia modificando o idealismo de Hegel no seu materialismo histórico. Marx, dando sobrevida ao pensar filosófico, revolucionou o pensamento ocidental ao propor que a filosofia não devia apenas seguir interpretando o mundo, como tinha sido feito até então, mas sim modificá-lo. Filosofia = revolução! Foi mais profético do que poético todavia. E, fazendo a crítica da economia política de seu tempo, mais economista do que filósofo. Entretanto, é considerado um dos filósofos mais influentes da história da humanidade.

Foi só com Friedrich Nietzsche que a ciência encontrou resistência à sua confortável exclusividade em relação à verdade. Filosofia e poesia receberam o vigoroso impulso do martelo nietzschiano e foram reapresentadas como expressões capazes de tocar e produzir o real. Para tanto, o filósofo, que na verdade era filólogo, teve de retornar às origens míticas dos antigos gregos para, de lá, intempestivamente, dizer à sua modernidade demasiado historicista que a ciência era mais um vício temporal do que uma virtude sempiterna. A destruição niilista nietzschiana dos fundamentos que deu cabo da modernidade não poupou a onipresença e a onipotência científica e função da vida, da vontade de potência, e, o que importa aqui, da poesia e da filosofia.

E o método de Nietzsche para relativizar tanto a ciência quanto a história, consideradas por ele de as prisões da modernidade, valeu-se da intempestividade, que sustentava que devemos sair do nosso tempo, sem no entanto deixá-lo totalmente, para, de outros tempos e com outras perspectivas, tratarmos dos assuntos que nos tocam, trazendo o passado ao presente com roupagens que a contemporaneidade ela mesma não conseguiria cozer. E mediante essa extemporaneidade estratégica e libertadora, a poesia e a filosofia puderam reingressar dignamente no pensamento e na expressão humanas.

Com a contemporaneidade a ciência não morreu, obviamente. Porém, a poesia e a filosofia se viram como que revivificadas. Claro, há quem diga que o que realmente estrutura a vida contemporânea é a ciência mesmo; que não há um espaço ou atividades humanos que não sejam atravessados completamente pelas produções científicas; blá-blá-blá… Não obstante, esquecem-se de que filosofia e poesia outrossim atravessam e constituem todos os espaços e atividades humanas, e cada vez com mais força aliás. Para ver somente a primazia da ciência há mesmo que se fazer um forte exercício de abstração para desconsiderar as esferas metafísicas e poéticas que atravessam o mundo.

Um belo exemplo disso é explicitado pelos próprios cientistas, mais especificamente os físicos quânticos que, tocando as fronteiras últimas do átomo, depararam-se com a dualidade partícula-onda na qual ora uma existência é partícula, ora onda; nunca as duas coisas, todavia, sem deixar de sê-las simultaneamente. Cada um desses dois modos existenciais, para esta ciência, se dá de acordo com o modo como se observa a realidade. Para então poderem falar dessa dualidade insuperável referente às partículas subatômicas, muitos cientistas afirmaram que a física quântica fez desaparecer a diferença entre ciência e poesia. Se non è vero, almeno è poetica!

O filósofo esloveno Slavoj Žižek segue mantendo aberto espaço para a poesia na compreensão da realidade para muito além de sua predileção por filmes hollywoodianos e anedotas demodês. Em sua obra A Visão em Paralaxe, o filósofo relembra a invenção renascentista da perspectiva que cartografou com precisão matemática a condição do sujeito moderno. A característica central da perspectiva medievalista era o estabelecimento rígido do ponto-de-vista (o sujeito), e do ponto de fuga (o infinito ao qual todas as paralelas convergem). Com essa apresentação, Žižek prepara o terreno para as imagens contemporâneas evidenciarem algo muito diferente: não mais o estabelecimento de um ponto-de-vista e de um ponto-de-fuga relacionados inexpugnavelmente entre si, mas, em vez disso, uma miríade de pontos-de-fuga e pontos-de-vista, misturados e alheios uns aos outros, todos ao mesmo tempo constituindo a superfície imagética do real.

A pertinência da poesia em respeito ao real que o pensador esloveno quer evidenciar está justamente no fato de que a liberdade do observador em relação ao que vê (resultado virtuoso da crise dos fundamentos; fruto do niilismo nietzschiano), se dá porque que não estamos mais presos a um ponto-de-vista e condicionados a um ponto-de-fuga determinados, mas, em troca, diante de infinitos pontos, que tanto podem ser tomados como sendo de fuga como de vista. Podemos, com efeito, montar tantas relações imagéticas perspectivadas quantas forem as nossas tomadas do real: poesia que ciência alguma é capaz de produzir.

Uma vez que a contemporaneidade niilizada dispensa qualquer hipóstase, qualquer substancialização, qualquer absoluto prévio de onde adviria alguma verdade eterna a ser capturada somente pela ciência e doravante deificada, é nessa livre verificação que a nós se apresenta a partir de infinitos pontos-de-vista-e-de-fuga-ao-mesmo-tempo que surge o que podemos chamar de verdade, se assim quisermos, ou, dependendo da verve com o qual nosso olhar se lança sobre o real, de poesia ou de filosofia.

Considerando as promenade históricas da poesia e da filosofia, em suma: o surgimento da poesia e o seu ultrapassamento pela filosofia ainda na Antiguidade; as trevas que ambras enfrentaram no Medievo; a superação delas duas pela ciência na Modernidade; e as suas intempestivas recuperações Pós-modernas; podemos até pensar que esse devires continuam obedecendo à espiral hegeliana. Se é assim, a poesia reinará absoluta novamente até que a filosofia lhe ultrapasse mais uma vez, e, decerto, a ciência supere ambas de novo. Hegel, então, repousaria eternamente em paz no seu túmulo.

Hipostasiar o movimento proposto pelo filósofo idealista alemão, entrementes, seria fazer do passado, melhor dizendo, de um pensamento passado, um claustrofóbico logos para o pensamento futuro. Vício indesejável que, se parece aparentado à virtuosa extemporaneidade nietzschiana, é porque se confunde regra com referencial. O futuro, se livre, não mais hierarquizará poesia e filosofia, mas, provavelmente, aumentará não só a pertinência de cada uma delas, como também a tensão entre elas duas, a ponto de cada vez mais ambas serem capazes de propor, senão dois ou mais reais distintos, ao menos muitos e distintos modos de pensar o único real que há.

A desafiadora revolução socialista tupiniquim

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Mais uma vez, na história do Brasil, nunca estivemos tão longe da revolução socialista, isto é, do início do fim da exploração da maioria dos indivíduos pela minoria. O mote antissocial da vez, obviamente, é o golpe de estado dado pela oligarquia político-econômica tupiniquim. Antidemocraticamente, medidas reacionárias&austeras estão sendo verticalmente aplicadas contra a população para que a colossal riqueza produzida por ninguém menos que essa mesma população siga sustentando confortavelmente os velhos privilégios das minoritárias classes dominantes.

Será que o povo brasileiro não sabe fazer revolução? Ou será simplesmente porque, conforme diz o historiador, filósofo, sociólogo e economista baiano Edmundo Moniz, “Não há um manual da revolução. A revolução é uma tempestade histórica e as tempestades não se repetem igualmente”? Em uma palavra, o brazuka erra quando tenta revolucionar a sua vil realidade ou não sabe experimentar formas revolucionárias? Ou nem sequer tenta? O que há no “clima” brasileiro que mais facilmente repete os furações reacionários do que precipita a “tempestade” revolucionária de que tanto o povo desse país necessita?

Moniz, corroborando com Marx e Trotsky, entende por “revolução a mudança das estruturas sociais que termina com a exploração do homem pelo homem e cria condições históricas para a passagem da sociedade de classes para a sociedade sem classes”. A teoria marxista, entretanto, baseada na particular evolução histórica do velho continente, enxerga a revolução socialista como um interregno estratégico que procede da escravidão, do feudalismo e do capitalismo, necessariamente nessa ordem, e que precede o comunismo, ou seja, o fim da exploração da maioria pela minoria.

Bela teoria que, não obstante, só não tem como vingar no Brasil porque neste país, que nasceu colônia e que cresceu dependente, as formas econômicas não seguiram a ordem da evolução econômica e social europeia. Usando impertinentemente as palavras de Trotsky, o Brasil é “um amálgama de formas arcaicas e modernas”. Com efeito, temos escravidão, feudalismo e capitalismo convivendo, profunda e desarmoniosamente, na realidade econômica brasileira. Pior ainda, a realidade econômica do Brasil foi construída invertendo-se o processo histórico europeu.

Com efeito, foi o capitalismo, mais evidentemente seu credo econômico mercantilista, que trouxe os portugueses ao Brasil. E uma vez conquistada esta terra, o jovem e vigoroso capitalismo português, anacronicamente, implantou o velho e caduco feudalismo na divisão do território em capitanias e sesmarias, que eram “doadas” a administradores mediante relações pessoais com a realeza portuguesa. E mais anacronicamente ainda, para sustentar seu sistema de relações pessoais, os portugueses encravaram a escravidão no âmago do sistema feudal tropical, em uma tácita inversão do que havia acontecido no velho mundo.

Por isso a revolução socialista tupiniquim não tem como vingar conforme dita o ideário velho-mundista. Se quisermos proceder conforme Marx, são necessárias pelo menos duas revoluções efetivas antes do passo socialista, a feudal, que dá cabo da escravidão, e a capitalista, que por sua vez supera o feudalismo. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), durante muitos anos insistiu nessa lógica, sustentando que primeiro deveríamos superar o feudalismo, depois a democracia burguesa, para só então termos condições históricas para a revolução socialista.

No entanto, dada a particularidade da realidade histórica brasileira, não podemos nos dar ao luxo de priorizarmos uma besta econômica por vez. Lutar frontal e exclusivamente contra o velho e resistente feudalismo, ou contra o maduro e vigoroso capitalismo, separadamente, é dar as costas a um inimigo ou outro. Criticamente, é matar um sistema desigualitário e deixar o terreno livre para o outro. Sinuca de bico! Por isso, na Brasilândia, o fim da exploração das massas pelas elites significa lutar simultânea e frontalmente contra um inimigo múltiplo: a escravidão, o feudalismo e o capitalismo.

Para fazer a revolução socialista no Brasil em um único movimento, temos de esquecer a clássica racionalização estrangeira e inventar formas revolucionárias totalmente nossas, que tenham capacidade para superar de uma só vez os muitos passados e vícios que insistem no mui viciado presente brasileiro, e que impedem a virtuose de um futuro igualitário. Como, então, será possível a revolução socialista no Brasil?

Para, Moniz, isso é possível somente com a organização de um verdadeiro partido de massas, de uma vanguarda consciente que esteja disposta a preparar o povo para a República Democrática Socialista. Entretanto, porventura temos no Brasil um partido que represente plenamente os interesses da maioria explorada? Um partido que assuma a vanguarda das transformações sociais? Infelizmente não.

O PCB, embora dono do melhor ideário, está distante léguas de ter oportunidade de ser pragmático. O pragmatismo do Partido dos Trabalhadores (PT), aventurado nos últimos 13 anos, está longe de ser ideal, visto que engordou tanto as feras exploradoras como as presas exploradas.  Em uma palavra, tornou o lobo mais forte e as lebres mais suculentas. Não temos, no Brasil, portanto, partido ou vanguarda capaz de iniciar a revolução, pois não há força política organizada para efetivamente socializar a terra, os meios de produção, os bancos, a mídia; para romper o monopólio do comércio exterior e implantar a planificação da economia nacional.

Enquanto isso, carentes de um pensamento organizado e vanguardista o suficiente capaz de mobilizar as massas no sentido da prática revolucionária efetiva, e sob as vis égides do desenvolvimento e do crescimento econômico, as velhas estruturas exploratórias dominam o país. E o atual golpe de estado brasileiro é o que senão a dominação do passado sobre o presente? Com efeito, a oligarquia política brasileira ainda encontra terreno livre para, mediante o seu atual golpe, representar os interesses do capital internacional por meio do endividamento do povo local.

Por acaso a atual elite golpista não está repetindo o famigerado “milagre brasileiro” da década de 1970, quando, em nome do desenvolvimento, o Brasil tomou emprestado e enfiou goela-abaixo do povo mais de cem bilhões de dólares? Devíamos três bilhões de dólares em 1964, antes do golpe militar. Duas décadas depois, devíamos cem vezes mais, e em dólares inflacionários! Eis a força reacionária atuando livremente no espaço social que o pensamento e a ação revolucionários ainda não ocupam contundentemente. E como não há força organizada para acabar com a crise, a velha estrutura oligárquica segue administrando o Brasil, sua desigualdade estrutural,  e a crise econômica que, em essência, lhe favorece exclusivamente.

Entretanto, para Moniz, o Brasil tem condições econômicas e materiais para o socialismo. Só não tem ainda condições políticas para tal, pois falta-nos um partido verdadeiramente popular que possa assumir o papel de vanguarda, instituindo conscientemente a república democrática socialista. Esse é o grande impasse do Brasil. Enquanto isso, a oligarquia nacional não resolve as crises social política e econômica do país precisamente porque tais crises lhe engordam e fortalecem.

Uma vez que a prática é o cerne de qualquer revolução, não basta apenas uma ideia revolucionária, por mais perfeita que seja. Aí devemos dispensar, senão toda a teoria marxista, ao menos a parte que não coincide com a evolução histórica brasileira. Do velho mundo, contudo, devemos manter a ideia de que é preciso de uma vanguarda política revolucionária capaz de motivar o povo a finalmente impor seus interesses sobre os das classes dominantes. Aí teremos iniciado a verdadeira revolução socialista, e não só pensado nela. Para tanto, relembra-nos Moniz, é preciso que a teoria coincida com a prática e a prática confirme a teoria”.

Todavia, como dito antes, no Brasil formas econômicas e políticas arcaicas e modernas coexistem desde sua colonização até hoje. Numa metáfora de Trotsky, “os selvagens passaram da flecha ao fuzil de um golpe, sem percorrer o caminho que separa no passado estas duas armas”. Ou seja, os colonizadores portugueses na américa não começaram a história pelo princípio”. Coincidir prática e teoria em terras tupiniquins, portanto, é um desafio sui generis que não pode se pautar por ideários e experiências extrínsecos. Nossas teoria e prática revolucionárias devem ser outras que as do velho mundo, pois a nossa história é outra, muito embora historicamente explorada por aquelas.

Do contrário, em outra metáfora, estaríamos obrigando o índio, nu e oprimido, a usar ou um uniforme soviete, ou a cartola da velha e distante intelectualidade europeia. Ou seja, estaríamos representando uma revolução muito mais do que a praticando. E isso porque, segundo Moniz, “ a essencialidade da revolução encontra-se no conteúdo revolucionário de sua própria essencialidade”. A verdade e a efetividade da revolução socialista tupiniquim, por conseguinte, está na essência da realidade histórica brasileira: a coexistência anacrônica de escravidão, feudalismo e capitalismo em função dos interesses das classes dominantes.

No Brasil, todos esses inimigos históricos do povo devem ser superados de um só golpe. Passo bem maior e hercúleo do que o que Marx profetizou há quase um século e meio para a implantação do socialismo contra um único algoz, o capitalismo. Respeitando-se a essência do que se deu historicamente no Brasil é que encontraremos uma teoria, isto é, um pensamento que ponha as massas a praticar a defesa inarredável dos seus interesses, e em detrimento das velhas elites golpistas, que até hoje roubam a realidade para si. E quando essa teoria de vanguarda coincidir com a prática cotidiana do povo brasileiro, a angusta luta por igualdade será uma coloquial igualdade, não mais na luta, mas na existência.

Defendendo nossos próprios algozes

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A democracia brasileira foi golpeada. O Estado brasileiro foi furtado. E o que é pior, por um bando de oligarcas corruptos que só fazem desgovernar o país. Apesar do calamitoso desgoverno golpista, o povo, golpeado e furtado, segue trabalhando, pagando suas contas, dando aulas nas escolas e universidades, dirigindo ônibus e metrôs, ou seja, tocando o Brasil. Agora, imaginemos que se não houvesse esse deliberado desgoverno golpista, isto é, se essa corja corrupta que só visa seus interesses opressores e minoritários não estivesse no comando do país, quão melhor seria o Brasil nas mãos dos brasileiros? Indo mais longe, se desinvestíssemos completamente da própria democracia e do Estado, quão menos oprimidos estaríamos?

A população brasileira que reclama por “sua democracia” golpeada e por “seu Estado”  assaltado age mais por ignorância do que por conhecimento do que, em essência, são a democracia e o Estado modernos. Se entendesse que ambas as instituições são instrumentos excelentes e históricos da burguesia e para a burguesia, e intempestivamente deixasse de clamar pela restauração dessa democracia e desse Estado, certamente enfraqueceria os seus algozes no que eles têm de mais estratégico.

Como, por conseguinte, tornar tácito que o Estado, na sociedade capitalista, assegura apenas o lucro e a acumulação do capital nas mãos da burguesia? Como entender definitivamente que a democracia é a forma através da qual todos são convencidos a lutar pelos interesses de uma minoria empoderada? Por que ainda fazermos questão de nos alienar do fato de que a burguesia não é democrática altruisticamente; que somente investe na democracia enquanto lhe é conveniente? Porventura o golpe tupiniquim não deixa isso escancaradamente claro a todos?

Parece que ainda não, visto as defesas da democracia e do Estado cada vez mais presentes nas ruas do Brasil depois do golpe. Entretanto, se déssemos ouvido ao que disse Marx, por exemplo, que o Estado moderno não é senão um comitê administrativo dos negócios da classe burguesa, ou mesmo ao que sugeriu Lenin posteriormente, que, para a burguesia, a democracia é apenas a melhor máscara para a sua sempiterna tirania econômica, certamente não teríamos tantos clamores populares em favor desses opressores Estado e democracia burgueses.

Por que então ainda protestamos massivamente em favor de instituições que outra coisa não fazem senão institucionalizar a exploração da maioria em função dos interesses da minoria? Alienação é a melhor resposta. De que outra forma estaríamos tão eficazmente ignorantes do fato de que Estado significa ditadura; de que a democracia representativa que defendemos é a ditadura da burguesia; de que somos tão subjugados aos interesses burgueses quanto as sociedades feudal e escravocrata eram em relação aos interesses dos nobres e dos escravagistas, respectivamente?

A democracia representativa e o Estado moderno, obras primas da burguesia, servem apenas para administrar a crise permanente que é o capitalismo, sua essência. É necessário muita alienação para não ver que, democraticamente e instituído em Estado, o capitalismo primitivo da livre concorrência cresceu em forma de capitalismo monopolista; para então engordar e se tornar capitalismo monopolista de Estado; e, por fim, hoje em dia, viver em um corpo praticamente invencível chamado capitalismo monopolista de Estado transnacional? Ignorando as verdadeiras essências das instituições burguesas, clamando por democracia e defendendo o Estado, o povo só faz vitaminar o seus atuais opressores: a burguesia e o seu capitalismo.

Como agir diferente? Parece-nos radical demais fazer como os anarquistas, isto é, ser contra a existência do Estado, uma vez que, para eles, o Estado é o instrumento de opressão? E se entendêssemos que o Estado surgiu da divisão da sociedade em classes; que só com a extinção do Estado as pessoas não mais estarão cindidas da riqueza que elas mesmas produzem coletivamente; ser anarquista ainda assim pareceria tão impertinente? Um futuro livre da exploração do homem pelo homem, que deixe tanto os passados escravocrata e feudal quanto o presente capitalista para trás, exige que desinvestamos absolutamente das instituições exploratórias desse nosso presente, quais sejam, a democracia e do Estado. Só assim deixaremos de vez a nossa pré-história social.

Quais são, portanto, as nossas melhores armas contra a exploração do homem pelo o homem que até aqui fez a história da humanidade, e que hoje, nas vestes democráticas e no corpo do Estado, segue firme e forte? Pensar e agir, por certo. Todavia, há que se pensar e agir conjuntamente. Do contrário, sem perceber, não mais pensamos e apenas agimos de acordo com a cartilha dos nossos tiranos alienadores. Aqui é inevitável lembrar do que disse Marx nas suas Teses sobre Feuerbach, que “os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo de diversas formas, mas agora o que importa é transformá-lo”. Como pode o pensamento, melhor dizendo, a teoria, colaborar a prática revolucionária?

“A teoria é seca”, dizia Goethe no seu Fausto. O autor parece querer dizer que o pensamento não pode revolucionar a realidade, muito embora seu pensamento tenha sido inegavelmente revolucionário. Marx, entretanto, na sua Introdução à crítica da filosofia de Hegel, abre todos os caminhos revolucionários ao sustentar que “a teoria se converte em poder material logo que se apossa das massas”. Com efeito, para este filósofo, as massas tem poder de agir contra a exploração do homem pelo homem somente quando teoria e prática atuam em conjunto. Melhor dizendo, quando a teoria coincide com a prática e a prática confirma a teoria.

Por isso, diante do golpe brasileiro e do desgoverno que ele institui, pensar em outro regime que não o democrático e em outro corpo social que não o Estado, uma vez que são instrumentos essencialmente burgueses e opressores, é fundamental. São instituições outras –hoje ainda ideais, mas, oxalá, amanhã reais- que nos trarão a possibilidade de ação coletiva contra a exploração e o assalto que são o Estado e a democracia juntos. O povo brasileiro, que produz toda a riqueza do Brasil, mesmo golpeado e com um bando de ladrões incompetentes no governo, toca diariamente o país. De ação entendemos muito bem. Falta aliar essa ação impávida, colossal e cotidiana a um pensamento que lhe guie virtuosamente contra a opressão. E que pensamento é esse? Que democracia representativa e Estado não devem ser defendidos, mas superados.

Tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser

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O ser humano é transição, e, exclusividade sua, consciência disso. Somos a espécie que não só conhece, mas, principalmente, promove a própria evolução. E essa ininterrupta promenade se expressa em todas as dimensões humanas. Economicamente, vemos isso nas transições históricas, por exemplo, do escravismo para o feudalismo; deste para o capitalismo; e deste último para algo que ainda não sabemos o que, mas que até bem pouco tempo se acreditou piamente ser o socialismo. Entretanto, hoje em dia a descrença nas profecias econômicas à lá Marx nos permite chamar o sucessor do capitalismo apenas de pós-capitalismo.

As transições econômicas que fizeram dos escravos servos e dos servos proletários são conhecidas, cognoscíveis, embora sempre abstratas para nós, contemporâneos. Já a transição de igual envergadura na qual estamos compreendidos, essa não nos poupa da angústia concreta em não saber para onde estamos indo. O fato de não conhecermos o que é esse até então tautológico pós-capitalismo, com efeito, é motivo para espécie de angústia histórica. Os conceitos-bengala pós-proletáriado e pós-capitalismo dão conta apenas parcialmente do ainda desconhecido horizonte diante de nós; pouco anestesiam a dúvida do que de fato virão a ser.

Embora não estivesse falando de economia, o filósofo alemão Martin Heidegger expressou o dilema do homem em meio à transição, todavia do realismo ao relativismo, através da seguinte frase: “Chegamos tarde demais para os deuses e cedo demais para o Ser“. O filósofo queria dizer que a sua idade histórica –que ainda é a nossa- perdeu a fé nas verdades absolutas, isto é, nos deuses, mas ainda não sabe lidar com o Ser, ou seja, com a multiplicidade infinita de interpretação do real. Nesse ínterim no qual nem os deuses nem a pluralidade de sentidos do real nos oferece um chão seguro, ou acreditamos que nada é verdadeiro, ou que a única verdade absoluta é o nada. Eis o efeito colateral do niilismo que deu cabo da modernidade e inaugurou a contemporaneidade humana.

Retomando a dúvida e a perplexidade acerca do que será chamado esse pós-capitalismo tautológico-acessório que com efeito capitulará o inconcluso capítulo econômico histórico  do qual somo os protagonistas, a frase do filósofo alemão pode ser de grande ajuda. A transição econômica pela qual passamos não poderia ser expressa assim: chegamos tarde demais para o capitalismo e cedo demais para o ____________? Um marxista, obviamente, completaria a máxima tascando, sem pestanejar, um socialismo. Isso, no entanto, não seria apenas fazer de um fundamento passado a regra para um presente e um futuro outros? Em outras palavras, a reeleição de um velho deus?

Dizer que chegamos tarde demais para o capitalismo significa que, embora ainda estejamos absolutamente imersos nele, não conseguimos mais crer que ele possa dar conta das necessidades econômicas de todos os indivíduos, mas só de uma minoria deles, cada vez mais minoritária aliás. Não há mais dúvida de que a liberdade revolucionária que o capitalismo significou para o servo medieval, hoje em dia, é liberdade apenas para as elites. Nem o jovem deus que prometeu libertar as pessoas das regulações, qual seja, o Neoliberalismo -termo cunhado em 1938 Ludwig von Mises e Friedrich Hayek- consegue mais manter-nos beatos seu.

Quanto mais não seja, porque segundo George Monbiot, no artigot Para compreender o neoliberalismo além dos clichês, a vangloriada liberdade neoliberal resultou na liberdade dos patrões para reduzir os salários e explorar os trabalhadores; a liberdade em relação à regulamentação significou destruição da natureza; e a liberdade para distribuir a riqueza findou como liberdade para não fazê-lo. De fato, conforme aponta Thomas Piketti no seu Capital no século XXI,  hoje em dia a concentração de renda nas mãos de cada vez menos gente é maior do que em qualquer outro período histórico. É de espantar seguir até o final o texto e os gráficos da obra do economista francês!

Muito tarde para o neoliberalismo e muito cedo para o pós-neoliberalismo? Por certo, mas outrossim demasiado tautológico. Muito cedo para que exatamente? Eis a pergunta que não quer calar. Se, entretanto, a difícil transição metafísica de que falava Heidegger era entre os deuses e o Ser, isto é, entra a univocidade e a plurivocidade absolutas do real, a que está sendo abordada aqui deve ser dita entre a univocidade de uma doutrina econômica, cujo vício entretanto é atender cada vez menos indivíduos, e a plurivocidade de um devir econômico no qual o interesse de todos seja contemplado.

Em se tratando de economia, o que seria então o Ser heideggeriano, isto é, a multiplicidade infinita de interpretação do real? Ora, se, como aponta Monbiot, o deus neoliberal elege “a competição como definidora das relações humanas, e os cidadãos como consumidores que decidem democraticamente o seu destino apenas ao comprar e vender“, a pluralidade de sentidos do real pós-neoliberal, por sua vez, deverá no mínimo significar que as relações humanas não sejam pautadas exclusivamente pela competição nem pelo consumo. Não que a plurivocidade do real econômico vindouro deixe de constar dessas práticas, afinal, menos plural o real seria, e, consequentemente, mais próximo dos deuses permaneceria.

Economicamente, pluralidade absoluta, ausência total de deuses e de verdades únicas, portanto, deve ser uma realidade na qual cada indivíduo possa realizar as suas necessidades materiais da forma que melhor lhe convir, sem, contudo, tal liberdade impedir quem quer que seja de realizar o mesmo, da forma que achar melhor. Os críticos da social democracia dirão que tal liberdade repetirá vícios históricos; que atenderá somente os interesses da burguesia; que o neoliberalismo se aproveitará dela para exercer-se imperiosamente sobre todos. E têm certa razão nisso inclusive.

Porém, tal crítica é pertinente até o ponto onde percebemos que o neoliberalismo, encimando imperiosamente a realidade econômica outra coisa não faz senão se colocar como um deus absoluto. O maior problema dessa doutrina econômica é até aqui não ter conseguido compatibilizar-se com a pluralidade absoluta em relação a qual, segundo Heidegger, chegamos cedo demais. Entretanto, como dito antes, a plurivocidade do real à qual chegaremos não será total se a famigerada liberdade neoliberal for excluída desse real. Tarefa difícil conciliar o real todo com suas expressões mais contraditórias! E é justamente essa dificuldade que aponta a nossa precocidade em relação ao Ser!

Nesse sentido, o passo que precisamos dar para, senão estar definitivamente no Ser, ao menos mais próximo dele e mais distantes dos deuses, deve ser fazer com que o neoliberalismo possa não ser absoluto e invencível; impedi-lo de ser um deus ele mesmo. Pensando assim, estar entre o deus capitalista e o Ser pós-capitalista significa que estamos no tempo de furtar do neoliberalismo a sua patológica tendência absolutizante. Os revolucionários radicais, por certo, dirão que se trata de reformismo. Entretanto, até onde podemos garantir que a revolução rápida e violenta do Manifesto Comunista de Marx e Engels, corroborada por Lenin no seu O Estado e a Revolução, seja a melhor saída depois de termos visto que as revoluções russa e cubana em menos de um século ruíram diante dos ditames neoliberais?

Para quem busca o Ser, isto é, a plurivocidade de interpretação do real, insistir na clássica, todavia monológica estratégia que prega que devemos começar com a revolução violenta em função da ditadura do proletariado não seria nos mantermos demasiado próximo dos deuses? A modernidade que levou Marx a escrever tal cartilha, com efeito, estava muito mais próxima das verdades absolutas, ou seja, dos deuses, do que nós, contemporâneos. Embora tenham sido os verdadeiros assassinos de Deus, os modernos ainda estavam com o punhal e com as mãos sujas do sangue divino; demasiado contemporâneos daquilo que nós, contemporâneos, já somos e devemos ser avant garde. Reviver velhas doutrinas apenas nos fará démodés.

Se ainda não conseguimos precisar em relação a que chegamos cedo demais para além das tautologias “pós-capitalismo”, “pós-liberalismo”, se ainda é um enigma que real plural fará com que a competição e o consumo não determinem exclusivamente as relações e a sobrevivência material humanas, é porque ainda não conseguimos nos desvencilhar totalmente dos deuses do passado, das verdades de pretensão absoluta que ainda nos convencem de que devem ser interpretadas univocamente. Aqui podemos parafrasear a máxima heideggeriana novamente para nos encontrarmos na transição histórica em que estamos: chegamos cedo demais para nos desvencilhar totalmente dos deuses e, portanto, muito mais cedo ainda para sermos capazes de encarar o Ser.

A tarefa histórica da nossa particular transição, por conseguinte, deverá ser seguir na cruzada contra as verdades absolutas, aberta todavia antes de nós, justamente porque ela não foi concluída. Isso fica claro quando percebemos que diante do real não vemos muitas alternativas além da permanência do neoliberalismo ou da revolução socialista. Que pobreza imaginativa! Quão pouco plurívocos ainda somos! Ora, duas possibilidades nos afastam quase que diametralmente da pluralidade de interpretações do real que o Ser que deverá se seguir exige. Dois deuses não fazem o Ser. Negam-no duplamente aliás.

Como colocado no início, estarmos livres dos deuses e sermos finalmente contemporâneos do Ser, ou seja, da plurivocidade infinita do real, de forma alguma deve significar sustentar que nada é verdadeiro nem que a única verdade absoluta é o nada. O niilismo é bem mais virtuoso do que isso! Inclusive os monológicos liberalismo e socialismo não devem ser negados, nadificados, mas compreendidos entre muitas outras formas de, economicamente, a humanidade existir no mundo. Só não podemos seguir insistindo somente nessas duas teclas. A história da nossa transição, que dará cabo dos deuses e conta do Ser, exige que usemos todas as teclas disponíveis e que, ademais, inventemos todas as outras que nos faltam. Só então teremos condições de gozar o real em suas infinitas possibilidades.

Esquerdas brazukas

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Quando se afirma que um partido político não é “mais” de esquerda, de onde exatamente é proferida essa crítica? Do mesmo chão material e contraditório a partir do qual esse tal partido atuou e atua, ou, em vez disso, do topo de algum ideal abstrato que não muito valentemente preestabelece o que é e o que deve ser “a esquerda”, independente das contingencias da realidade?

No primeiro caso, a crítica é pertinente pois não exige do criticado conhecimento nem performance alguns que já não sejam conhecidos nem tenham sido “performados” por quem critica. No segundo caso, entretanto, a crítica é vazia porque solicita do criticado conhecimento e performance que quem o crítica ou não exigiu de si, ou não teve oportunidade de conhecer nem “performar” antes de criticar.

Muitos são os “esquerdistas” que sustentam que “o PT não é mais um partido de esquerda”. Assim falam pois pensam que os governos de Lula e Dilma foram demasiadamente permissivos com o liberalismo econômico, que não investiram na construção de uma consciência de classe àqueles que dão nome ao partido, quais sejam, os trabalhadores, e que não conseguiram escapar ilesos do mar de lama da corrupção brasileira.

Quem critica o PT do belvedere teórico de Marx e Engels ou de algum parlatório moralista não tem papas na língua para afirmar que o PT não é “mais” um partido de esquerda. Agora, quem acha que a prática vale mais que a teoria, certamente terá dificuldade em sustentar que o PT deixou de ser de esquerda ao considerar a aventura igualitária inédita que este partido trouxe e ainda está tentando trazer ao Brasil.

Considerando-se, por exemplo, a exclusão do Brasil do mapa mundial da fome, o revolucionário acesso ao ensino superior desde que o ENEM foi instituído, a energia elétrica e a água potável que finalmente chegaram aos confins do historicamente desassistido nordeste brasileiro, e, recentemente, a lei que aumenta o imposto sobre ganhos de capital, sancionada em 18 de abril pela presidenta Dilma Rousseff, de que lado da régua política esquerda-direita o PT deve ser locado?

Mesmo levando-se à risca a teoria marxista, do PT ainda não pode ser dito que não é “mais” de esquerda. Se, por um lado, o Partido dos Trabalhadores não realizou a revolução rápida e violenta que lemos no Manifesto Comunista, por outro, a revolução lenta e histórica que pode ser lida n’O Capital ainda mantém o PT dentro do necessário horizonte revolucionário.

A revolução rápida e violenta, que muitos consideram “a” utopia do sistema marxista, tem o vício de não contar com as contradições do inimigo para dar cabo dele. Pretende pulá-las. Entretanto, ao não serem levadas em conta, o revolucionário tampouco leva em conta as suas próprias contradições, que, estas sim, devem ser conhecidas e superadas antes de se atacar as do adversário.

Já a revolução histórica, que trabalha árdua e ininterruptamente sobre e contra as contradições do inimigo, que, não obstante, pode ser acusada de “reformista”, essa tem ao menos a virtude de poder conhecer as suas próprias contradições nesse processo, de reformá-las, melhor dizendo, superá-las, paralelamente ao conhecimento e à superação das contradições do inimigo.

E se a abertura liberal do PT nos seus três governos e meio, o não investimento imediato numa consciência de classe total, até mesmo a vulnerabilidade à corrupção, forem justamente as contradições desse jovem partido que, primeiro, devem ser conhecidas, não teoricamente, mas na prática concreta, para só então poderem ser verdadeiramente superadas?

Um partido de esquerda deve nascer pronto e nunca dispor do direito de evoluir? Não é isso que estão exigindo do PT?

O Partido Comunista Brasileiro, com efeito, é o que mais pode criticar a “não esquerdice” do PT. No entanto, o forte e íntegro idealismo do PCB nem de perto produziu as mudanças materiais concretas que o seu alvo de crítica implantou. É muito fácil permanecer íntegro longe da realidade. Bem mais difícil, corajoso, e por que não dizer verdadeiramente revolucionário é construir essa integridade com as mãos sujas do sujo barro da realidade.

Da segurança de um ideal de esquerda é fácil dizer que o PT não é “mais” um partido de esquerda. Agora, e se o verdadeiro esquerdismo só ganhar sentido a partir do chão material sobre o qual ele é tentado, chão esse que em momento algum está livre de contradições, sejam as da realidade que se deseja revolucionar, sejam ainda as do próprio exercício de um diretiva de esquerda?

O próprio Lula é um exemplo concreto desse esquerdismo material. Entre escapar da miséria nordestina e ser explorado pela indústria metalúrgica paulista, o ex-presidente “analfabeto” elegeu o pragmatismo como via revolucionária. Se tivesse se aferrado apenas a ideias revolucionários anacrônicos e eurocêntricos provavelmente não teria tirado tantos milhões de pessoas da miséria nem colocado outros milhões na universidade pública, coisas que nenhum idealista de esquerda fez no lugar dele.

Idealismos à parte, Lula e o seu PT são as forças de esquerda mais efetivas da história do nosso país, apesar da intimidade que tiveram –e ainda têm- com o liberalismo, da consciência de classe trabalhadora até aqui não investida como prega a cartilha marxista, e da corruptividade com a qual se veem envolvidos uma vez imersos na não menos corrupta estrutura política que faz a história do Brasil.

E se a verdadeira revolução for nada além de processo histórico de tentativas e erros em busca de um futuro menos errático?

Portanto, se é de um ideal de esquerda que muitos insistem que o PT não é “mais” um partido de esquerda, essa crítica, digamos assim, platônica, que acha que a mudança material concreta realizada pelo PT no Brasil deveria ter se dado de outra forma, esses críticos deveriam, em primeiro lugar, experimentar o gosto amargo que é conduzir um país cercado de velhas oligarquias. Em segundo lugar, realizar uma mudança material tão ou mais efetiva que a que o PT construiu. Só assim teriam o direito de dizer que o PT é “menos” de esquerda do que eles.

A economia dos afetos de Spinoza

Cometendo-se um anacronismo que abstrai quase duzentos anos de História, poderia ser dito que Spinoza é o Marx dos afetos. Como sabemos, a economia política do alemão tratava sobretudo da busca material pela sobrevivência, aventura que começava nos ditames do estômago e findava na vitória da classe operária. Já o holandês produziu uma refinada economia afetiva, na qual a manutenção da existência se desenrolava a partir da relação dos muitos afetos que se sucedem num mesmo indivíduo, e, outrossim, entre as afetações que diferentes indivíduos causam uns nos outros, numa infinita rede de relações da qual todos participam necessariamente.

Marx que me perdoe, mas, para Spinoza, capital são os afetos. Ora, são eles que atravessam o corpo e a mente a cada instante, gerando todos os nossos estados e, mais importante, levando-nos de um estado a outro. Spinoza afirma que, em si, os afetos não são bons nem maus. Antes, parecem uma ou outra coisa quando comparados uns com os outros. Sendo assim, o medo, por exemplo, se confrontado à coragem, pode, inadvertidamente, parecer-nos ruim. Entretanto, se, porventura, o medo elimina a coragem de alguém para, digamos, enfrentar um leão, esse medo é um afeto bom, pois age no sentido de evitar uma tragédia.

Um afeto parece-nos bom, portanto, quando aumenta a nossa potência para persistir na existência, levando-nos a um estado de perfeição maior. Em troca, um afeto parece-nos mau quando reduz essa mesma potência e nos impõe um estado de perfeição menor. Não corremos o risco, todavia, de toda a nossa potência e perfeição serem furtadas por um afeto mau, pois, para Spinoza, não há ausência de perfeição, pelo menos enquanto existimos, mas tão somente diferentes graus de perfeição. Como o filósofo entende que perfeição e realidade são a mesma coisa, uma perfeição=zero pressuporia uma realidade=zero, e o que possuísse realidade nenhuma, tampouco envolveria qualquer grau de afeto.

Então, para Spinoza, enquanto existimos participamos da perfeição, em maior ou menor grau, cuja medida, entretanto, é dada pela nossa potência de existir, isto é, pelo nosso conatus. Este, por sua vez, é a resultante dos muitos afetos que experimentamos no nosso corpo e na nossa mente cruzados com os afetos que causamos nas mentes e nos corpos dos outros. Isso porque estamos absolutamente conectados na rede infinita de relações que Spinoza sabiamente chamou de Natureza. A nossa perfeição, portanto, outra coisa não é senão as infinitas afetações que recebemos e causamos uns nos outros.

Segundo Spinoza, a alegria é um afeto que põe o nosso corpo e a nossa mente em ação no sentido de uma maior perfeição. A tristeza, inversamente, diminui a ação do corpo e da mente, fazendo-nos escravos das nossas próprias paixões, reduzindo, com isso, a nossa perfeição. O movimento de um estado ao outro, por conseguinte, é o resultado de uma economia cujas moedas de troca são os nossos muitos e variegados afetos. Em vez da luta de classes proposta por Marx, na filosofia spinozana há tão somente a luta travada pela infinidade de afecções que compõem a perfeição, ou, o que é o mesmo, a realidade da Natureza.

Se, portanto, a alegria é uma ação que aumenta a nossa perfeição, e a tristeza, por seu turno, é uma paixão que diminui tal perfeição, como é que podemos escapar do império das paixões para agirmos livremente em direção à perfeição? Spinoza ensina que só podemos vencer um afeto com outro afeto, todavia contrário e mais forte do que aquele que queremos vencer. Logo, para derrotar um afeto triste basta um afeto alegre de maior intensidade. Porém, se estar triste é justamente carecer de alegria, de onde viria, então, este providencial e mais intenso afeto alegre capaz de dar cabo do afeto triste? Bem, como para Spinoza tudo o que há é a Natureza, já sabemos onde procurar.

É fácil, ademais muito tentador, desejar derrotar uma grande tristeza valendo-nos da maior força de uma grande alegria. Entretanto, estar triste é justamente carecer de uma grande alegria, pois, se nos entristecemos, é justamente porque ela nos falta. Ora, se estamos tristes, é porque não havia alegria alguma capaz de impedir essa tristeza. E se, de início, já não havia alguma alegria potente suficiente para barrar tal tristeza, tampouco haverá uma quando a tristeza estiver dominando o sistema. Obviamente, dispor de uma grande alegria que desse cabo de uma grande tristeza, já seria, por si, uma grande alegria. Mas, se assim fosse, por que então nos entristeceríamos?

Contudo – e felizmente -, não há somente afetos intensos, tais como grandes alegrias e grandes tristezas. Com efeito, somos uma miríade de afecções que se expressa em uma infinidade de graus. Moedas afetivas de menor valor, portanto, também circulam – e devem necessariamente circular – na economia dos afetos de Spinoza. E são desses trocados, aliás, que podemos mais facilmente nos valer nos momentos de crise. Aqui, Marx relembra-nos de que todo valor provém do trabalho. Sendo assim, contra a tristeza, contra a paixão paralisante: trabalho, mesmo que essa ação renda apenas trocados de menor valor.

Se todo valor que produzirmos em um trabalho contra uma grande tristeza for agregado ao pouco de alegria que ainda nos resta, é somente uma questão de trabalhar mais até que essa alegria valorizada suplante aquela tristeza indesejada. É muito difícil, quiçá impossível, produzir, de pronto, um afeto alegre maior do que uma grande tristeza. Podemos, todavia, através da ação constante e da compreensão paciente, produzir, enfim, um afeto alegre que seja grande o suficiente para vencer determinado afeto triste que porventura esteja nos aprisionando nalguma paixão.

O que não pode acontecer, entretanto, – e com isso Marx e Spinoza concordariam plenamente – é alguém roubar para si o valor do trabalho que outrem empreende arduamente contra suas próprias paixões com o intuito de dar cabo delas. A economia dos afetos, num sistema capitalista, outra mercadoria não produzirá senão tristeza em massa. Para os afetos, decerto, é melhor o comunismo. Se fizermos do lema comunista popularizado por Marx, “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, a regra de ouro do sistema econômico-afetivo de Spinoza, subsistirá a perfeição, portanto a realidade, tanto dos afetos, quanto dos indivíduos afetados e afetantes, e, inclusive, a da própria Natureza.

A luta da classe

Da afirmação de que “capital não é o capitalismo, mas a liberdade”, veio a pergunta: “seria a luta de classes o ‘meio’ para alcançar tal liberdade?” Pois bem, dando corpo à utopia de Marx e Engels, certamente sim. Para estes dois, o capitalismo cria duas classes essenciais, quais sejam, a dos capitalistas e a dos trabalhadores, aonde a primeira explora necessariamente a segunda. Entretanto, como os dois já sabiam, “a exploração de uma parte da sociedade por outra é um fato comum a todos os séculos anteriores”. Sendo assim, a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas é apenas mais do mesmo, visto que o antagonismo entre classes não foi abolido nas relações capitalistas.

Porém, de acordo com os autores do Manifesto Comunista, uma diferença essencial é introduzida pelo capitalismo: a simplificação desse antagonismo em dois campos opostos, o que dramatizou sobremaneira a histórica relação de exploração de uns sobre outros. Segundo Marx e Engels, a classe da “burguesia colocou uma exploração aberta, direta, despudorada e brutal”, diretamente sobre o proletariado. Isso revela que o antagonismo entre ricos e pobres não aconteceu por acidente, não sendo, assim, facilmente revolucionável. Antes, é uma estrutura historicamente construída para figurar dessa forma, ou seja, desigual, a cujos explorados a revolução é sistematicamente bloqueada.

Se para Marx a luta de classes daria conta de libertar os trabalhadores da exploração, era porque ele entendia, de acordo com suas palavras, que “só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária”. Todavia, por que essa verdade locada pelo filósofo na classe explorada não foi capaz de realizar a revolução? A resposta talvez esteja em uma outra afirmação dele que, no entanto contradiz a primeira: “a burguesia não pode existir sem revolucionar incessantemente [as] relações sociais”. Ora, como pode “só” o proletariado ser revolucionário se a burguesia também o é, e “incessantemente”? Seria a classe proletária a possuidora do direito à revolução, mas somente a capitalista a que a efetua como modus oprerandi?

Se ambas as classe são de fato revolucionárias como as frases do filósofo apontam, diante do devir do capitalismo até aqui, resta dizer, portanto, que o potencial revolucionário dos trabalhadores, apesar de existente, é inócuo; ao passo que o dos capitalistas, vitorioso. Então, a promissora luta de classes preconizada por Marx parece ser o meio dos explorados submeterem-se ainda mais à exploração, e não o meio de libertarem-se dela. A luta contra o capitalismo parece acabar sempre em favor do próprio capitalismo! Marx não estaria falando também da classe proletária ao dizer que “a aristocracia feudal não é a única classe arruinada pela burguesia”?

Entretanto, qual foi, e qual é, até hoje, a luta real entre as classes dos trabalhadores e a dos capitalistas que, não obstante, só fez aumentar o poder destes sobre aqueles? Essa luta, materialmente, vem sendo nada além da relação comercial na qual o trabalhador vende a sua força de trabalho para esta ser explorada pelo capitalista, porém, unicamente de acordo com as necessidades deste. Essa relação, todavia, começa e finda com o trabalhador perdendo e o capitalista ganhando. Primeiro, o trabalhador produz para o capitalista por, digamos, um mês, para só então receber o seu salário. Nesse processo, o capitalista usa de graça o trabalho que produzirá não só o dinheiro que irá pagar tal trabalho, como também o seu lucro pessoal. Segundo, e mais importante, o salário recebido pelo trabalhador pela exploração é todo gasto na compra de mercadorias vendidas pelos capitalistas, devolvendo-lhes, assim, a miséria que receberam pela exploração mensal. Ou seja, é o trabalhador que de um lado paga a si mesmo com o seu trabalho, e por outro, enriquece o capitalista comprando as suas mercadorias; fazendo assim com que tudo o que o capitalista investe retorne “engordado” para ele.

Então, Marx pergunta: “O trabalho do proletário […] cria propriedade para o proletário? De modo algum. Cria o capital, isto é, a propriedade que explora o trabalho assalariado”. Está aí o tendão de Aquiles da luta-relação real entre a classe dos capitalistas e a dos trabalhadores. Disso Trotsky já sabia ao afirmar que “o proletariado não pode conquistar o poder dentro do sistema legal estabelecido pela burguesia”. O “capitalismo têm minado em todos os aspectos a construção de uma consciência revolucionária”, reitera o sociólogo James Petras.

A expressão “luta de classes” significa coisas diversas, e inclusive contraditórias. Para os trabalhadores, tal luta, enquanto relação material significa a venda constante da sua força de trabalho a ser explorada, ou seja, a subjugação diante do capitalista; mas, enquanto utopia significa uma inversão disso, em cuja vitória sua seria a classe capitalista a subjugada – o que, no entanto, não aconteceu até hoje. Do lado dos capitalistas, por sua vez, a luta enquanto relação material é a compra da força de trabalho por menos do que ela vale, já com o intuito da obtenção da mais-valia que desemboca na riqueza; porém, para estes, enquanto utopia revolucionária, na qual essa mais-valia permaneceria nas mãos dos trabalhadores que a produziram, essa luta não lhes oferece risco real algum.

O que os capitalistas querem mesmo – ao modo de já desenvolvê-la – é apenas uma relação material e ordinária com os trabalhadores, na qual estes permaneçam oferecendo-se à exploração, sem as lutas de classe realmente revolucionárias como as utopias sustentam. Basta, por conseguinte, não entrar em luta contra os trabalhadores. A classe detentora dos meios de produção usa o seu poder para salvaguardar tal poder mais do que tudo; produzindo, junto com as demais mercadorias, uma fundamental à sua sobrevivência: a repressão à ideias e valores que a ameacem. As lutas que o capitalismo empreendeu, na verdade, foram apenas duas: uma contra a aristocracia feudal, da qual saiu o vitorioso histórico; e outra, que constantemente desenrola, contra ela própria, isto é, a disputa interna entre os capitalistas por mais mercados.

Por conseguinte, a luta de classes que usualmente temos em mente entre capitalistas e trabalhadores, do lado dos capitalistas resume-se em uma relação cotidiana, isto é, na própria ordem do capital, que, sobretudo, deve permanecer ad aeternum. Já para os trabalhadores, essa luta que de um lado é uma relação real, na qual ele jaz subjugado, de outro, enquanto utopia revolucionária, na qual o subjugado é o capital, tal luta é o horizonte do qual o trabalhador, por conta da exploração que sofre, não consegue – e talvez não deva mesmo – desviar os olhos. Por conseguinte, a luta de classes, enquanto embate, é só dos trabalhadores, e não dos capitalistas. Estes, antes, querem a sua ausência. Se uma classe está bem, por que desejar inimigos? Desse modo, a luta que promete libertar os trabalhadores da exploração é apenas a luta de uma classe, a dos próprios trabalhadores.

A luta que envolve as duas classes, a dos capitalistas e a dos trabalhadores, já é o próprio capitalismo em sua saúde plena, de forma alguma aquilo que causaria o seu fim. O capital, em luta, é sempre vitorioso, pois o campo de batalha, as armas e o exército, simbolizados pela fábrica, pelas máquinas e pelos trabalhadores, respectivamente, desde o início do embate já são dos capitalistas. O trabalhador, nessa guerra, só entra para morrer. A luta de classes, portanto, é a expressão de um otimismo que favorece duplamente o capitalista, pois mantém os trabalhadores imersos em uma utopia até aqui inefetiva que, por conseguinte, os submerge cada vez mais fundo dentro do oceano capitalista que, como podemos perceber historicamente, não tem fundo.

O capital prossegue fortalecendo-se, seja na luta que os trabalhadores intentam contra ele, seja na sua relação “tradicional” para com eles. Inversamente, na única relação que o capital lhes oferece, os trabalhadores, infelizmente, são paulatinamente furtados tanto de sua força trabalho quanto da possibilidade de venderem essa força. A instituição materializada disso são as megafavelas que crescem ao redor do mundo, nas quais o proletário explorado entra para, em pouco tempo, tornar-se o “lumpemproletário” sem condições sequer de dispor ou de vender a sua força de trabalho. De acordo com a obra de Mike Davis, “Planeta favela”, na China, 40% da população é favelada; na Índia, 56%; na Nigéria, 80%; em Bangladesh, inacreditáveis 85% da população é favelada, estando abaixo da linha que lhes permitiria participar ativamente da sórdida roda exploratória do capitalismo. Um dos produtos do capital, talvez o mais cruel e desumano, é uma classe trabalhadora cada vez mais incapaz de enfrentá-lo.

A crença revolucionária de Marx de que “a burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros” cada vez mais revela seu teor utópico, pois “hoje os capitalistas não “arregimentam os homens que manejarão as armas” que desferirão o golpe mortal no capitalismo [como pensavam Marx e Engels]. Eles criam milhões de trabalhadores temporários, instáveis, amedrontados, amarrados ao nexo monetário”, aponta Petras. Desse modo, Marx estava errado ao dizer que “o proletariado, como resultado da sociedade moderna, traz em si a missão de suceder a burguesia”. Antes, a missão histórica do proletariado parece ser a vivificação cada vez mais intensa da burguesia; e o ideal da luta de classes, a sucessão dessa vida.

A classe capitalista, atualmente, se reproduz e se fortalece cada vez mais por intermédio de movimentos – investimentos – virtuais que paulatinamente a dispensam tanto da relação com o proletariado quanto da luta deste contra ela. Aliás, como bem ressaltou Petras, “a concentração e centralização de capital em escala global e o desenvolvimento de novas tecnologias são acompanhadas pelo ressurgimento de modos de produção pré-capitalistas baseados na exploração intensiva do trabalho”. A classe do capital, portanto, em vez de enfraquecer-se mediante a luta dos trabalhadores contra ela, nada mais faz que renovar incessantemente o germe de seu reaparecimento. Os enfrentamentos que recebe só a fortalecem.

Trotsky já havia percebido a ingenuidade de Marx e Engels em acreditarem que o capitalismo estaria liquidado antes de passar à sua fase de absoluto reacionarismo. Na verdade, segundo Petras, “hoje, a burguesia conta com o véu de uma retórica “pós-capitalista” para se referir a formas primitivas de exploração”, como que voltando à sua juventude, à incontrolável potência que reside em todo germe. Por outro lado, a globalização do capital fez do trabalhador um corpo global e amorfo, que somente agindo coordenada e também globalmente poderia revolucionar a realidade que o explora. Porém, a dificuldade de concatenar um exército mundial de trabalhadores à revolução é mais um produto do capitalismo que garante a sua perpetuação.

Consoante a isso, a luta de classes revolucionária – que a esta altura deve ser vista como a luta solitária da classe oprimida – é enfraquecida ainda mais devido ao fato de que o trabalhador atual não quer dar cabo do o burguês capitalista. O consumismo, produto essencial do capital, na verdade, faz do rico capitalista o sonho individual e a meta da maioria dos trabalhadores. A luta dos trabalhadores se dá mais no sentido de abandonar a classe a que pertencem, para então emergirem à classe dos seus algozes, do que no intuito de todos, capitalistas e trabalhadores, migrarem para uma classe única, intermediária, e sem desigualdade, como prega a utopia comunista. No capitalismo, ora bolas, todos querem ser capitalistas! O capital só é porque capitalizado por todos!

Infelizmente, a consciência de classe que guiaria os trabalhadores a uma luta realmente eficaz à revolução é sistematicamente solapada pela consciência maestra da classe capitalista. Esta sabe como, além de possuir os meios para capitalizar a sua própria realidade, transformá-la em mercadorias – no mais das vezes ideológicas – que, levadas ao mercado, retiram dos trabalhadores não só a miséria com a qual estes foram pagos para produzirem tais produtos, mas também a força de suas utopias e da realidade de suas necessidades, colocando, por conseguinte, as suas no lugar. A luta dos trabalhadores, até aqui, não é a de classes, mas sim a de uma única classe, a sua própria. Também não é contra os capitalistas, mas contra si mesmos. Em respeito a isso, Marx disse a eles: “Vós tereis de passar por quinze, vinte, talvez cinquenta anos de guerras civis e internacionais, não somente para mudar as condições sociais, mas [principalmente] para mudar a vós mesmos, e tornar-vos aptos a assumir o poder”.

Capital não é o capitalismo, mas a liberdade.

Muita coisa pode ser dita a respeito do “capital”, pois o seu “ser”, bem como todos os demais, conforme a metafísica aristotélica, “se diz de muitas maneiras”. Ora, se o ser do capital tem múltiplos sentidos (históricos, filosóficos, econômicos, etc.), um, dentre esta multiplicidade, merece destaque especial, qual seja, o seu ser primeiro. Então, subsistente ás muitas vozes que expressaram o capital – todas dignas de nota, porquanto expressões através das quais ele vem se revelando a nós – é na sua expressão primeira que reside algo de necessário, a partir do que as demais contingências a seu respeito ganharam vida.

Uma das primeiras investigações acerca do capital vem dos fisiocratas (fisiocracia = o governo da natureza). Ícone deste movimento teórico, François Quesnay, já no início dos 1700, afirmava que a riqueza máxima era a terra, mais especificamente as terras agrícolas, pois era a partir delas que a subsistência humana era produzida. Para a fisiocracia, portanto, capital era possuir e administrar a terra de forma produtiva, visando lucro. Na esteira aberta pelos fisiocratas, se colocaram David Ricardo e Adam Smith, descobrindo que o capital era mais do que simplesmente aquilo (a terra) a partir do que o valor – por conseguinte o lucro – se dava. Suas ideias revelaram um valor até então marginal ao capital: o trabalho e o interesse humanos.

Ricardo modificou o corpo do capital, fazendo dele também a força de trabalho do homem, bem como a produção dela proveniente. Porém, sua grande contribuição foi descobrir o valor que era gerado na circulação dessa produção, teoria ulteriormente desenvolvida por Marx. Smith, por sua vez, dizia que era o auto-interesse, isto é, o egoísmo dos indivíduos o capital que movia a sociedade toda. Para este pensador, seria uma “mão invisível” o que, por um lado, levava os indivíduos a buscarem o que antes não era do interesse deles (lucro, fortuna); e por outro, esta mesma “mão invisível” regularia os auto-interesses globais, baixando o preço dos produtos e aumentando o salário dos que os produziam.

Marx, um dos mais notáveis pensadores da história, iniciou sua teoria criticando Smith devido à sua ingenuidade em crer que era invisível e individual a força do capital; e também a Ricardo, pois este, apesar de considerar a produção humana e a sua circulação o capital da sociedade, pregava que o valor monetário do dinheiro gerado e acumulado dessa circulação não representava o capital. O pensador alemão foi o primeiro a enxergar que capital era a relação do homem com a produção da sua sobrevivência material. Entretanto, de Ricardo, Marx carregou consigo os valores do trabalho e da circulação dos produtos dele provenientes. Em respeito a Smith, sua “mão invisível” transformou-se, nas mãos de Marx, no colapso inevitável do capitalismo, gerado por ele mesmo no seu devir, independente das ações individuais.

Hoje, na teoria econômica da moda, produzida por Thomas Piketty, o capital volta a ser dito enquanto riqueza ela mesma, seja ela em forma de patrimônio imobiliário, ações financeiras, renda ou herança. Interessante é perceber que Piketty não considera a força de trabalho como capital, pois, para ele, capital é o que pode ser “comprado” definitivamente, como as riquezas supracitadas. A força de trabalho, portanto, fica de fora do capital porque, de acordo com os preceitos clássicos do capitalismo reiterados por Piketty, ela pertence inalienavelmente ao trabalhador, podendo ser “comprada” apenas por horas, dias ou meses, retornando sempre à posse do trabalhador no fim do negócio. Caso contrário, tratar-se-ia de escravidão, aonde o comprador, ao adquirir o indivíduo, leva junto, até a morte deste, a sua força de trabalho.

Entretanto, ao excluir a força de trabalho da essência do capital, elegendo a riqueza comprável e armazenável como tal, Piketty diminui, a um só tempo, o valor da força de trabalho ricardiana e a relação marxiana desta com o capital social. Resta o quê? A invisível mão smithiana, porém pikettyanamente pervertida, aumentando o preço dos produtos e reduzindo o valor dos salários. Por isso Piketty visualiza centralmente a acumulação de riqueza como “O capital do século XXI”. Ora, se somente aquilo que pode ser comprável e armazenável é capital – ainda que virtual (ações, investimentos e especulações financeiras) -, a força de trabalho dos homens, apenas “alugável”, deixa de ser o valor principal e, por conseguinte, essa força preterida jaz incapaz de revolucionar a realidade econômica que a pretere.

Tendo percorrido, ainda que superficialmente, algumas das mais conhecidas teorias econômicas que tentaram dar conta do capital, contemplando de certa forma as suas congruências e inevitáveis divergências, o que é, enfim, capital? O passado nos legou muitas ideias sobre isso. Outrossim, o futuro trará muitas outras. Todavia, se muitas coisas podem ser ditas acerca do capital, essa plurivocidade, por sua vez, significa contingência ou necessariedade? Aristóteles responderia que significa esta última, por certo. Assumindo então a visão do antigo grego, de todas as formas que o ser do capital já se disse, das que atualmente se diz, bem como das que ainda se dirá, qual é a mais essencial?

O capital – e a sua majestosa sistematização histórica, o capitalismo – não teria, antes, a sua forma essencial justamente na sua origem, porquanto descontaminado das contingentes especulações científicas que tentaram – e ainda tentam – reificá-lo, sem, no entanto, dar cabo dessa tarefa? Em caso afirmativo, a visão fisiocrata está mais próxima da essência do capital que a pikettyana. A fisiocracia, por contemplar centralmente os valores agrícolas e fundiários característicos do feudalismo, manteve no conceito do capital àquilo contra o que ele veio a ser, isto é, a sua causa. Não podemos deixar de fora do ser as suas causas! Do contrário trataremos apenas de efeitos, e, no final das contas, de contingências. Se o ser do capital é, aristotelicamente falando, tudo o que pode ser dito a seu respeito, aquilo que ele primeiramente foi, mas que ainda pode ser dito, é, portanto, a sua substância máxima.

O modelo econômico feudal foi o solo concreto a partir do qual o capitalismo germinou de forma irreversível. Portanto, algo de essencial ao capital há no feudal. Os desdobramentos históricos pelos quais o capitalismo passa e, sobremaneira, através dos quais ele se diz – ao modo de gerá-los nesse devir discursivo mesmo -, embora guardem verdades acerca do capital, são afastamentos da verdade primeira, mais substancial, do capital. A maior verdade sobre o capitalismo, portanto, contempla o feudalismo, pois foi este que, em sua saturação absoluta, o gerou. Todo resto é ou desdobramento ou interpretação de uma forma inicial essencial.

Logo, o capital foi a forma de valor que o homem inventou-produziu para comprar-pagar um futuro novo para si, livre das estagnadas relações de servidão do feudalismo. Não é que a força de trabalho tenha sido descoberta no ocaso do feudalismo e na aurora do capitalismo. Os escravos antigos e os servos medievais já eram essa força; e os senhores já a exploravam! O que houve foi a invenção da posse e da portabilidade, nas mãos dos indivíduos, de tal força; doravante, negociada e comercializada por eles com a nova classe dos capitalistas. Por conseguinte, capital, essencialmente, foi a necessidade dos homens, todos eles, de se libertarem da intransponibilidade social necessária ao feudalismo, para então experimentarem um destino outro, ainda que ninguém soubesse no que daria.

Porém, antes de afirmarmos no que isso deu, é no vazio dessa resposta que se encaixam todas as interpretações filosófico-econômicas sobre o capital feitas até aqui. Todavia, essencial mesmo foi o passo inicial, ou o empurrão, que deu início à caminhada! Do contrário, nada poderia ter sido dito. Sendo assim, foi quando o homem experimentou uma liberdade até então inexistente, isto é, a liberdade de possuir em si a força que gera a riqueza e que move a sociedade toda, que ele, assenhorando-se diante do seu senhor, pode usar tal força como moeda de troca para usufruir dessa liberdade. Esse homem, portanto, foi a primeira encarnação do capital. Disso decorre que capital é a liberdade ela mesma, independente da forma econômica através da qual se apresente.

Por mais que o sistema feudal possa ser visto como a prisão de cujas muralhas o capitalismo libertou os homens, o feudalismo em si não significava apenas isso. Antes, o regime feudal, por sua vez, também representou uma liberdade inédita, pois ofereceu aos homens um modo de sobrevivência que não a escravidão da antiguidade. Sendo assim, o capital transcende as formas econômicas, inclusive o capitalismo, pois capitais foram todos os movimentos no sentido de o homem conquistar maior liberdade na produção de sua sobrevivência; seja a liberdade em relação às vicissitudes da natureza que a escravidão legou aos nômades; seja a liberdade que a servidão ofereceu aos escravos; e ainda, seja em respeito à liberdade que o capitalismo proporcionou aos servos medievais.

Entretanto, a ideia de Marx de que o capitalismo geraria, com as suas próprias contradições, a sua estagnação, solicitando assim um sucessor histórico-econômico necessário, tal ideia subjaz genérica em todas as formas econômicas experimentadas pela humanidade, dado que todas elas nasceram de um germe essencial e necessário, floresceram, estagnaram e solaparam sob o seu próprio peso. Com o capitalismo não há de ser diferente, ainda que sua força-juventude atual desminta tal destino. O que acontece é que, ao nos afastarmos da essência primordial do capitalismo, afastamo-nos também da liberdade que ele outrora representou. Com isso, nos aproximamos cada vez mais dos efeitos de sua saturação e experimentamos o sabor intenso de suas contradições, o que, historicamente, acaba por figurar como novos grilhões a serem rompidos.

Ora, se capital é a liberdade do homem em respeito à sua sobrevivência, o inicialmente libertário capitalismo, ao aproximar-se de sua saturação histórica, assemelha-se a todos os sistemas econômicos anteriores quando em suas próprias saturações. Portanto, será – se é que já não o é – capital libertarmo-nos do próprio capitalismo! Isso porque o que é capital ao homem, ou seja, a sua liberdade, transcende as páginas históricas pelas quais ele passa. De um ponto de vista diametralmente oposto, a própria história em si é a imanência da liberdade humana, capitalizada. Novamente, em algum momento será capital libertarmo-nos do próprio capitalismo. Capital será, um dia, o pós-capitalismo, ainda que não saibamos, agora, a forma que esse capital tomará no futuro, não obstante, significando essencialmente liberdade. Mantendo proximidade com a essência primeva do capital, liberdade para sobreviver fisiocraticamente, ou seja, apenas sob o governo eterno da natureza.

Marx no BRS carioca

Se Marx viesse passear no Rio, nos dias de hoje, seria bom ele tirar a barba, e isso por dois motivos. Primeiro, seria confundido com um “hipster”, o que lhe desagradaria sobremaneira. Segundo, por conta do calor da cidade, que faria do microambiente sob a longa barba, encharcada de suor, um potencial criadouro do mosquito da dengue. Jocosidades à parte, se o filósofo alemão passeasse pela capital fluminense, teria de fazê-lo de ônibus, pois, de táxi, pela zona sul carioca, geraria uma série de novas jocosidades.

O motivo do anacronismo de colocar Marx em um ônibus carioca se dá por conta de uma exceção que o pensador encontrou, lá no século XIX, no modo capitalista de produção. A partir da percepção de que há uma tendência imanente de que a oferta e a demanda capitalistas se afastem uma da outra, para que a produção da mais-valia trabalhe confortavelmente, a produção e o consumo devem aparecer, para a ventura do capital, como dois atos separados no espaço e no tempo. Porém, o filósofo percebeu que na indústria dos transportes – que traslada homens e coisas – estes dois atos se confundem.

Ao consumir uma viagem de ônibus, por exemplo, tal mercadoria é consumida no mesmo instante em que ela é produzida, pois, a viagem, isto é, o consumo do movimento espacial, é justamente o processo de produção sendo contemporaneamente consumido, sem distância alguma. Ora, isso porque a mercadoria que a indústria dos transportes produz e coloca no mercado é o próprio deslocamento. Como é sabido, o tempo entre a produção e o consumo mede a velocidade com que o mais-valor retorna às mãos do capitalista. Disso decorre que quanto mais rápido é consumido aquilo que é produzido, melhor. Porém, em geral, é necessário um lapso entre esses dois momentos, pois o capital, metamorfoseando-se temporalmente, de meios de produção + força de trabalho (produção) à mercadoria consumida (consumo), tem nesse processo etapas essências de mais-valia. Suprimindo esse devir absolutamente, e ainda assim querendo enriquecer, somente achando ouro.

Na contramão desse processo, a indústria que leva viagens ao mercado, ao sincronizar a produção com o consumo, dissimula um no outro. Nesse movimento, tanto faz a mercadoria, dado que, ao passo em que é produzida, já é consumida, antes mesmo de estar acabada. Diferente das demais mercadorias industriais que se oferecem ao consumo como produtos prontos, e que por isso podem ser analisados previamente, oferecendo liberdade ao consumidor para consumi-las ou não, a mercadoria da indústria dos transportes é vendida antes mesmo do consumidor saber o que consumirá.

Um negócio nesses moldes é ouro certo para o capitalista, pois ele só precisa começar produzir a mercadoria no momento em que ela começa a ser consumida. Por conseguinte, nessa confusão, não há mais necessidade de produzi-la com a qualidade ofertada, dado que o fim do processo, o dinheiro, já se encontra seguro nas mãos do capitalista. Marx, portanto, intuiu que tal processo é, assim, quase a mesma fórmula da produção dos metais preciosos, não obstante com o minerador encontrando ouro em todas as escavações, sem erro.

Embarcando num transporte carioca, o filósofo alemão poderia comprovar, como em nenhum outro lugar do mundo, a exceção-engodo capitalista decorrente da sincronia entre produção e consumo presente na indústria do transporte. Se a mercadoria em questão fosse um iphone, por exemplo, e se ele apresentasse algum problema crônico, simplesmente o consumidor poderia optar por não consumi-lo, sem custo algum, pois o investimento inicial referente ao produto falho não foi do consumidor, mas do capitalista; este teria de arcar sozinho com o custo do seu erro. Isso só é possível porque, neste caso, o consumo está bem distante da produção, descolado dela.

Já a mercadoria-transporte, cujo diferencial é a mistura de produção e consumo, inicia-se não somente com o investimento do capitalista, mas também com o dinheiro do consumidor – um investimento no valor da passagem. Assim, o ônus de uma mercadoria sem qualidade não recai apenas sobre o capitalista, mas é dividido com o consumidor; que neste caso, e em todos os outros, não tem compromisso algum com o que é produzido. A indústria do transporte, depois dessa parceria na qual o consumidor participa inadvertido, pode produzir o que ela quiser, com a qualidade que lhe convir, pois o lucro será só dela, e os prejuízos, divididos com o “sócio-consumidor” desavisado.

Em se tratando da indústria do transporte carioca, mais conhecida como “máfia do transporte” – e considerada por muitos a pior do universo -, o consumidor é a vítima sempre lograda. O infeliz diferencial do consumidor do transporte carioca está menos no desagrado depois de a mercadoria ter sido totalmente consumida do que no desagrado que se estende desde o momento em que tal mercadoria começa a ser produzida e entregue; isso em todas as etapas de sua produção – o que, na verdade, figura como um pacote de mercadorias produzidas-consumidas, todas dentro da mesma viagem.

Marx disse que, no dinheiro, toda distinção entre mercadoria é apagada porque ele é justamente a forma equivalente comum a todas elas. Já no Rio, quando o dinheiro compra uma passagem de ônibus, o que ele apaga é justamente a distinção entre uma mercadoria boa e uma ruim; entre a mercadoria pela qual pagou o consumidor e aquela pela qual ele nunca pagaria. Isso se dá porque, depois que o capitalista está com a sua mais-valia segura na mão, o consumidor deixa de ser consumidor, e é tratado como um proletário cuja exploração é o meio excelente da mais-valia findar sempre nas mãos capitalistas.

Por outro lado, se o processo do capital é a unidade de três elementos essenciais, quais sejam, produção, circulação e consumo, como afirmou o alemão, as transportadoras, em especial as cariocas, embaralham esse processo capitalista, produzindo algo que não precisa ser propriamente circulado, pois o consumo já se dá imediatamente à produção, não obstante a circulação já sendo o consumo mesmo. Isso confunde sagazmente produção e circulação de mercadorias com as próprias mercadorias. Nesse movimento, o consumidor que deveria estar no fim do processo, isto é, na foz da circulação das mercadorias – para então consumi-las ou não -, é confundido com a mercadoria produzida e circulada pelo capitalista.

Seguindo à risca as premissas capitalistas, embora, segundo Marx, sendo a exceção, a produção de transporte, especialmente a da cidade do Rio de Janeiro, é um mal necessário ao único processo que importa, ou seja, fazer dinheiro. Nessa indústria dos deslocamentos, como em nenhuma outra, o consumidor ora é tratado como o proletário produtor, visto que está na linha de montagem, oferecendo não a sua força de trabalho, mas outra, a força do seu dinheiro, na forma de passagem, para só então essa produção começar a produzir aquilo pelo qual ele já pagou; ora é visto como mercadoria, porquanto é o consumidor que é “circulado” na batida da produção – porém, a mercadoria é um consumidor insatisfeito.

Etapas necessárias ao sistema capitalista, produção, circulação e consumo, apesar de formarem um todo, cujo pressuposto é o capital, dissociam-se temporalmente, por questões logísticas-materiais. Nessa metamorfose pela qual passa o capital, o mais-valor, objeto do capitalista, vai sendo gerado, sugado de cada etapa. Entrementes, quando esse devir é suspenso, e a produção é misturada com a circulação e com o consumo, o que acontece na indústria do transporte, o mais-valor deve se dar de uma só vez. Como isso é possível?

Ora, estando o capitalista com a mercadoria vendida antes mesmo de produzi-la, portanto com a necessidade de satisfazer o consumidor preterida – ainda que este seja “circulado” junto com a mercadoria ainda incompleta e em produção – a mais-valia se dá na produção de mercadorias de baixa qualidade. No caso das fábricas-ônibus cariocas, cuja mercadoria é o deslocamento, deslocamentos de péssima qualidade: sem segurança aos usuários; sem cumprimento de horários; etc. A indústria dos transportes, ao perverter a perversão que o próprio capitalismo já é, fazendo do tripé capitalista (produção-circulação-consumo) uma única estaca certeira, converte, pelo tempo da viagem, os consumidores das suas mercadorias em mercadorias e trabalhadores seus, pois, uma vez presente na produção, o consumidor, sem distância dela, não escapa da exploração que ela engendra.

Restrição material: fábrica de ideologia

Marx e Engels afirmam que o homem individual para-si não tem em si a essência do homem, mas que esta essência, antes, subsiste apenas na comunidade; o que pressupõe necessariamente o intercâmbio entre os homens para que o próprio homem exista. Os filósofos salientam que, de acordo com Feuerbach, são necessários dois homens para representar “o homem”. Ora, isso diz respeito à transformação da teologia em antropologia, promovida pela modernidade, que deslocou a essência da existência – propriedade medieval de Deus – para o próprio homem; e a essência da existência do homem na relação deste com os seus iguais. Doravante, o Ser não estaria alhures, mas sim onde estivesse o “estômago”. Por conseguinte, a ancestral contradição Deus- homem passou a ser substancial apenas entre os próprios homens, dado que cada um possui o seu próprio “estômago”; e a partir deles, os seus interesses conflitantes.

Antes disso, todavia, a crítica filosófica alemã, de acordo com Marx e Engels, limitava-se à crítica das representações religiosas, isso porque ela não investigava seus pressupostos filosóficos, mas dava continuidade ao idealismo hegeliano que mantinha o paradigma filosófico em terreno místico-religioso. Todas as esferas de interação humana, quais sejam, as jurídicas, morais, políticas, etc., eram subsumidas à esfera da representação teológica, o que, sobremaneira, fazia do homem um ser religioso. Se o domínio da religião era pressuposto, também de forma religiosa eram pressupostas as relações de dominação que, cultuadas ideologicamente, culminaram no culto ao Estado. O idealismo hegeliano clássico sustentava tal estrutura mística-ideológica na medida em que, mantendo teologizadas as representações, os pensamentos e os conceitos, fazia deles, dessa forma, os laços da sociedade humana. Em contraposição, os jovens hegelianos passaram a ver tais laços como grilhões inconvenientes, o que os levou à empresa de romperem tais grilhões, para assim reinterpretarem o existente, ou seja, reconhecer o real através de outras representações.

Porém, ao lutarem contra as representações, estes pretensos revolucionários esqueceram-se do mundo real, permanecendo, como os seus antecessores de escola, atrelados a escopos histórico-religiosos. Nesse sentido, Mark e Engels disseram que faltou aos neo-hegelianos encontrarem uma conexão efetiva entre a filosofia alemã e a realidade alemã, isto é, entre a crítica e a realidade material. Essa realidade de que falam os dois filósofos é a de desenvolvimento sem precedente presenciada pela Alemanha do século XVII, mas que, entrementes, ocorria majoritariamente no terreno do pensamento puro, o que, para Marx e Engels, significava o aprodrecimento em ato do ideal espírito absoluto de Hegel. No entanto, felizmente, tal decadência conduzia a filosofia a experimentar novas combinações de pensados. Já o desenvolvimento material alemão acirrou a concorrência entre os indivíduos e valorizou as conquistas materiais, levando a Alemanha a uma mesquinharia material que, no entanto, era dissimulada pelo falatório idealista vigente. Disseram os filósofos que o hegelianismo não enfrentava o contraste entre realidade material e realidade filosófica, tampouco assumia um ponto de vista intrínseco ao problema.

Entretanto, que problema era esse? Ora, para os materialistas Marx e Engels, o problema resumia-se na sua solução mesma, ou seja, na produção dos meios materiais necessários à sobrevivência do homem; na produção dos meios de vida; na produção da vida material. De modo que a produção material do homem não evidencia outra coisa que o próprio Ser do homem no mundo, pois este depende das condições materiais de sua própria produção para ser. Decorrente dessa produção é a troca, o intercâmbio material entre os homens – aquilo que, segundo Feuerbach, legitima a humanidade. Porém, esse intercâmbio é atrelado à produção, e esta à sobrevivência material do homem. Da mesma forma subsiste o Estado, que tem na sua produção, e no intercâmbio dessa produção com os demais Estados, a condição de sua existência real. Portanto, a força produtiva de um Estado depende do desenvolvimento da sua divisão do trabalho, pois é esse o quesito que o capacita tanto produzir como também intercambiar essa produção em benefício próprio. A divisão do trabalho, no sustento do Estado, separa o produzir industrial do agrícola; estes dois do intercambiar comercial, que, entretanto, articula aqueles outros dois. Por um lado há a cisão cidade-campo; por outro, a cidade em duas – esta última em respeito à propriedade –; e, sobretudo, o comércio interligando todas as esferas produtivas doravante cindidas.

Para entender a existência e a especificidade da propriedade, ou seja, as relações materiais entre os homens em uma sociedade basta contemplar a organização da divisão do trabalho desta sociedade. Onde essa divisão não é desenvolvida, isto é, onde a produção se dá por conta da família ou da mão-de-obra escrava, a propriedade é tribal, não particular. No momento em que, na antiguidade, muitas tribos se organizaram em cidades – por meio de contrato social – a propriedade passou a ser Estatal-comunal, a partir da qual surgem a divisão do trabalho, o intercâmbio e a cisão definitiva entre campo e cidade. Entretanto, desenvolveu-se paralelamente a este tipo de propriedade a privada-individual, cujo crescimento acabou por solapar aquela. Já aí vem ao mundo a cisão de classes, representada, por um lado, pela luta entre cidadãos e escravos; e por outro, entre cidadãos com diferentes propriedades individuais, isto é, cidadãos ricos e cidadãos pobres. Na Idade Média surge outro tipo de propriedade, a feudal, instituída pela decadência das cidades, decorrente das invasões bárbaras que sobremaneira destruíram as forças produtivas urbanas, porém, deixando intacta a estrutura de produção agrícola, locada no campo – estável e desenvolvida por conta das necessidades das urbes que lhe faziam frente. Desse modo, estando a propriedade urbana solapada, a agrícola, intacta, tornou-se a atividade principal deste período.

Portanto, o feudalismo opõe-se à cidade ao mesmo tempo em que dispensa a escravidão, valorizando, doravante, o campo e as relações de servidão. Todavia, a estrutura feudal, a exemplo da comunal, era uma associação oposta á classe produtora dominada; apenas as condições dessa produção foram modificadas. Diferente dos escravos que nada podiam possuir ou acumular, os servos, ligados às corporações urbanas, através do trabalho podiam rascunhar um acúmulo de capital – portanto de propriedade -; o que, de certo modo, ofereceu-os uma espécie de liberdade em respeito à vertical relação que a servidão tinha com os proprietários de terra – o valor real da época. Embora o capital individual tivesse uma inicial presença no feudalismo, a propriedade estruturante dessa sociedade era baseada na extensão territorial, cuja subsistência, por conseguinte, solicitava a existência e a intervenção do governo de um monarca. Na Alemanha, por exemplo, a propriedade feudal, bem como o desenvolvimento material que faria a riqueza da época de Hegel, deu-se por conta de influência ação militar.

Se um modelo de produção e de distribuição determinados gera indivíduos determinados, as relações políticas entre eles seguem esta mesma determinação. Sendo assim, para Marx e Engels, a filosofia, em vez de ficar atrelada ao idealismo hegeliano ou à teologia, deveria explicar, sem mistificação, a conexão real e material entre as determinações sociais, políticas e as produtivas. Os filósofos assim afirmam pois os indivíduos do Estado não podem e não devem ser tomados de acordo como são representados pelos filósofos idealistas, mas como realmente são, ou seja, do modo como produzem materialmente suas condições de sobrevivência, independente do arbítrio de quem quer que seja. Os dois filósofos disseram que se a filosofia basear-se nas representações através das quais toma os homens, ela corre o risco de ter como objeto algo ilusório. E mais, Marx e Engels colocam que tal ilusão, cuja medida única é a distância da consciência humana em relação à realidade também humana, reflete diretamente as restrições materiais e as limitações sociais entre os homens. Aqui sobrevém uma questão: uma representação fiel da realidade requeria, portanto, a condições materiais irrestritas e relações sociais ilimitadas?

Ora, se Marx e Engels colocam que a produção de representações está entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material entre os homens, a ausência de representações, isto é, o real em si, pressuporia a inexistência tanto da produção como do intercâmbio material. Todavia, como foi dito anteriormente, o homem só é através do que produz e do que troca. Logo, a existência humana, por estar atrelada à produção, não tem como existir sem representações. Retomando a crítica de Marx e Engels às representações da crítica filosófica idealista alemã que explicam o homem verticalmente, isto é, do céu para a terra – do mundo das ideias ao mundo real -, os dois filósofos combatem-na veementemente dizendo que a filosofia dever partir do chão mundano real a partir do qual o homem produz materialmente a sua sobrevivência. Só então o filósofo estaria livre, munido e seguro para ascender aos reflexos ideológicos e aos ecos desse processo de vida, sem, contudo, tomá-los pela realidade primeira. Marx e Engels reconhecem que os idealismos cumprem uma função sublimatória, demasiado sintomática, todavia necessária na produção material da sobrevivência humana; empiricamente constatável; ligada, sobretudo, a pressupostos materiais.

De modo que é a vida material que deve determinar a consciência, e não o contrário, como queriam os idealistas hegelianos. Outrossim, não é o Ser que deve determinar o indivíduo, mas o indivíduo o Ser. O pressuposto essencial é e deve ser o homem real, e não as representações a seu respeito; apesar de, segundo os materialistas, as representações, enquanto sintoma do real, devirem a posteriori; para não obstante separarem o homem de sua realidade material – aquela que lhe confere Ser – sempre que esta realidade estiver materialmente restrita ou socialmente limitada. Aliás, o tamanho e a força das representações através das quais o homem é tomado – ao modo de tomar-se a si próprio – é o mesmo das restrições e das limitações a que ele está historicamente acometido. Para Marx e Engels, portanto, a ideologia deve ser condenada porquanto é o que o homem produz a partir do momento em que a produção material humana deixa de refletir e contemplar o genuíno Ser do homem.

Maquiavel e Marx contra a muralha do poder

Uma leitura transversal de “O Príncipe”, de Maquiavel, mostra que a obra dirige-se àqueles que pretendem conquistar e manter o poder. Entretanto, o filósofo não teorizou no sentido de trazer à luz do mundo receitas utópicas através das quais os príncipes podeiam, a partir da leitura, galgar algum poder ainda não alcançado. “O Príncipe” é muito mais a reificação das velhas formas com as quais os soberanos capitalizavam o poder para si. Esse caráter técnico – e não teórico – da obra redefine sobremaneira a sua pertinência.

“O Príncipe” maquiavélico não traz nada de novo àqueles que atendem pelo nobre título, apenas “manualiza” suas realidades incontestes. Há que se perguntar a quem toda essa informação estratégica serve. Antonio Gramsci, na sua leitura de “O Príncipe”, revelou o caráter revolucionário da obra, dizendo que ela se dirigia ao povo, aos moldes de um manifesto invertido, e não àqueles que intentam subjugá-lo. De que modo um texto remetido aos soberanos endereçar-se-ia, em verdade, ao povo, visto que este é a massa de manipulação daqueles?

A propriedade da interpretação gramsciana de “O Príncipe” reside na inutilidade que o teor da obra tem àqueles que já são esse teor – essa teoria – na prática. O que fica claro através da visão de Gramsci é que as realidades dos príncipes, e os seus ardis modos de ser, são levados pela primeira vez ao conhecimento do povo, justamente os que estiveram alienados desse “modus operandi” soberano. Sendo assim, o ouro da realidade descrito por Maquiavel, de acordo com Gramsci, é útil exclusivamente ao povo, porquanto é este a vítima primeira da inadvertência acerca da forma com a qual é dominado.

Abrindo ao mundo a realidade crua com que o poder é conquistado e mantido pelos príncipes, Maquiavel revela o escopo laico e pragmático das suas práticas. É aí que “O Príncipe” serve melhor ao povo que aos soberanos, pois, uma vez esclarecido o modo com o qual estes manipulam aqueles, a soberania do príncipe é ameaçada, não por algum inimigo externo, mas justamente pela verdade intrínseca do seu ser. Logo, uma vez revelada a mística com a qual o poder historicamente se camuflava para melhor inscrever-se sobre o povo, este tinha em mãos a chave para revolucionar as tradicionais estruturas do edifício do poder.

Outra obra histórica que, sob o título do vilão, dirige-se às suas vítimas, é “O Capital”, de Karl Marx. Nesta obra, o filósofo, ao falar da sordidez eficiente do capital em conquistar e manter o seu poder, não teoriza no sentido dos capitalistas, visto que estes são o teor vivo e consciente da realidade d’O Capital. Antes, a obra de Marx revela aos inadvertidos o agir do capital em seus secretos modos de ser. A diferença entre “O Príncipe” e “O Capital” é que aquele não se assume revolucionário; ao contrário, é imediatamente reacionário em benefício do poder estabelecido, porém, de acordo com Gramsci, absolutamente subversivo sub-repticiamente; enquanto “O Capital” é uma chave declarada à revolução, desde o início desnudo, direto e escrito ao proletariado.

O contexto histórico de cada um dos dois autores determinou sobremaneira a apresentação do teor revolucionário de suas obras. Maquiavel escreveu em um mundo no qual homens eram punidos severamente pelo que diziam, como seus contemporâneos Giordano Bruno, queimado vivo, e Galileu Galilei, declarado herege. Portanto, caso Maquiavel quisesse comunicar a revolução que Gramsci viu nos seus escritos, não poderia fazê-lo abertamente, apenas subversivamente. Já Marx experienciou um momento histórico que só não pode ser chamado de totalmente laico por conta do abstrato Deus Capital. Todavia, o poder capitalista contemporâneo de Marx não ameaçava a sua vida por que desnudado por ele.

Tomando o escopo revolucionários de “O Príncipe” e o de “O Capital” – aquele maquiavelicamente subversivo, e este marxianamente revolucionário -, ambos revelaram as faces sórdidas subjacentes às suas realidades históricas. No entanto, os súditos dos príncipes e os proletários do capital, ainda que conscientizados das astúcias de seus carrascos, não puderam revolucionar a realidade em benefício próprio. Tanto o poder dos príncipes, como o do capital, souberam cooptar com maestria a sua evidenciação pública, usando seu ser desnudo como combustível de sua manutenção, dado que o povo seguiu sujeito ao poder. A diferença é que hoje sabemos cientificamente como o poder nos coopta.

Seria a evidenciação da realidade suficiente para revolucioná-la, ou essa assunção, ao contrário, seria a forma, doravante laica, de a realidade perpetrar-se? Se atentarmos ao devir histórico no qual Maquiavel e Marx se atravessaram, perceberemos que as verdades incontestes dos dois filósofos serviram muito mais ao arvoramento do poder estabelecido que ao seu solapamento. Portanto, sobrevém a pergunta: seria mais revolucionário deixar o poder dos príncipes e o poder do capital mistificados, ocultos em si mesmos, a fim de que suas ruínas pudessem lhes pegar de surpresa?

Marx dizia que o capitalismo tem o seu ponto de saturação máxima a partir do qual solapará irreversivelmente. Difícil é estabelecer esse limite e o início desse processo… Porém, Marx, ao abrir o ser do capital ao mundo, abriu-o também ao próprio capital, ou pelo menos à sua face inconsciente de si. A partir daí o monstro pode psicanalisar-se e encontrar formar de permanecer sendo. Caso o alemão não tivesse revelado o ser do capitalismo tão objetivamente, estaria o capitalismo mais vulnerável a si mesmo e, portanto, mais suscetível ao destino que o próprio Marx previu para ele?

Desde a antiguidade o homem investe na crença de que é a verdade o caminho a ser seguido por ele, e a ciência desenvolvida desde lá é o edifício absoluto dessa crença. Estaria, contudo, essa fé na verdade, fazendo o desserviço em relação àquilo promete? Se a verdade maquiavélica e a marxiana serviram muito mais ao fortalecimento e à manutenção das sórdidas realidades estabelecidas, antes ocultadas das pessoas por suas místicas abstratas, é de concluir que a fantasia com a qual o poder se reveste é o seu primeiro e maior inimigo, e não a verdade que brinca de desnudar o seu ser. Nu, o poder é ele mesmo, tem menos a perder e menos franjas suas nas quais tropeçar.

Portanto, a melhor estratégia para vencer o inimigo é muito menos conhecê-lo pormenorizadamente, pois assim o conhecedor, no ato do conhecimento, entende o ser investigado e torna-se, inadvertidamente, aquilo que conhece, aumentando-lhe o ser. Por ventura não foi assim que o poder soberano esmiuçado por Maquiavel encontrou forças para sobreviver até hoje? E não foi a ciência que o capitalismo pode ter de si próprio a sua maior mola propulsora? De que modo o povo, vítima constante do poder, poderia revolucionar a sua crítica realidade a despeito das verdades dos poder que o domina? Marx, no Manifesto comunista, disse que violenta e repentinamente, sem procurar negociar com o poder estabelecido nem entendê-lo, pois esse diálogo enfraqueceria a voz revolucionária e manteria vivo algo do inimigo.

Então, buscar conhecer o poder que nos oprime é um dos modos de ele ganhar nova vida, porquanto essa verdade é apenas o funcional deslocamento do poder do plano ininteligível e místico do real, passando pela semi-inteligibilidade manipulável da realidade, e cristalizando-se eternamente no busto de seu próprio conceito científico. Seria o poder menor se menos tematizado? Ou, caso permanecesse alienado dos despoderados, envolto nos seus próprios misticismos primordiais, sucumbiria ele mais rapidamente às suas próprias contradições? Entrementes, a verdade do poder, a exemplo das verdades maquiavélicas e marxianas que não mataram o poder de uns sobre todos, é melhor que permaneça mística, pois, reificada, acaba se tornando tijolos novos na velha muralha com a qual o poder resiste ao tempo.