A invulgaridade exclusiva da dança

Se, como cogitou René Descartes, eu “penso, logo existo”, quem é que consegue interromper o balé de seus próprios pensamentos sem com isso abandonar o palco da existência? Com efeito, enquanto existimos, pensamos. É como se fôssemos solicitados irresistivelmente pelo pensar a cada instante das nossas existências. Agora, se Nietzsche tinha razão em dizer que “toda vulgaridade vem da incapacidade de resistir a uma solicitação”, temos de assumir que, pelo fato de não conseguirmos deixar de pensar, solicitados que somos pelo desejo de seguirmos existindo, somos absolutamente vulgares.

Mesmo quando desejamos não pensar, pensamos. A mente vazia, portanto, é impossível. Até por que, como disse Alain Badiou, “o vazio é o ser do lugar”, não o nosso. Então, se só o lugar, ou o que é o mesmo, o espaço, pode ser vazio, é porque só ele resiste à solicitação de ser preenchido, e, portanto, somente ele não é vulgar. Nós, em troca, somos vulgares porquanto pensamos o tempo todo, preenchendo irresistivelmente todos os espaços com nossos pensamentos. Até o nada foi totalmente preenchido por nós, pelo menos com o nome que a ele demos.

Se, portanto, a vulgaridade de não resistir ao próprio pensamento é a condição da nossa humana existência, elevar-se dela deve exigir algum tipo especial de arte. Aí, reencontramos Badiou dizendo que “a dança é o movimento do corpo subtraído de qualquer vulgaridade”. O que está sendo dito é que somente o bailarino, por ser sobretudo corpo, pode ser o que é a despeito dos seus pensamentos. Isso fica claro nas palavras do filosofo: “a dançarina é o esquecimento milagroso de todo seu saber [inclusive do] de dançarina”.

De fato, quem melhor do que o bailarino para resistir, no espaço, às solicitações vulgares dos seus próprios pensamentos? Nem mesmo o ator pode se ver livre do pensar, pois “a partir do momento que há texto [e portanto pensamento], a exigência é do tempo, e não do espaço”, assegura Badiou. Um conterrâneo seu, Stéphane Mallarmé, pensa como ele ao dizer que “a dança é o poema liberto de todo o aparato de escriba”. Então, só mesmo a dança liberta o homem do pensamento, e portanto da vulgaridade.

Se, então, na ausência do pensamento só há o espaço, mas não o tempo, e se, conforme Badiou, “a dança é a única das artes que é obrigada ao espaço”, existe, portanto, na dança, algo obrigatoriamente pré-temporal que, entretanto, só pode ser representado no espaço. Ao contrário do pensamento, que é temporal e temporalizante, a dança, enquanto pré-temporalidade que é, “suspende o tempo no espaço“, coloca o filósofo, e, por conseguinte, suspende o pensamento.

Diante da bailarina, realmente, não sabemos mais o que o tempo fará no espaço! O balé rouba-nos aqueles pensamentos que pensam já saber do que um corpo é capaz, seja no tempo, seja no espaço. A dança faz com que o pensamento experimente o vazio porque só ela é no vazio. Aliás, quanto mais vazio, mais a dança pode ser. “O cenário é do teatro, e não da dança. A dança é o sítio tal qual, sem ornamentos figurativos. Exige o espaço, o espaçamento, nada além disso”, aponta Badiou.

O pensamento, por sua vez, não dança porque desde o princípio já encheu o espaço da existência com a sua espaçosa cenografia pensante, cujo pesado ornamento é o tempo. Já o bailarino, o artista do espaço, está livre do tempo porque resiste às solicitações do seus badulaques-pensamentos. Aí não é vulgar! Na dança, com efeito, o tempo é escravo do espaço, e o espaço, escravo do bailarino, o único capaz de resistir às solicitações dos seus pensamentos. Portanto, Descartes não estava totalmente certo ao afirmar que a existência só é comprovada pelo pensamento. Contra ele, qualquer bailarino poderia dizer: danço, logo existo!

Uma geometria da dança

Quando a bailarina, coreógrafa e professora Angel Vianna me disse que inicia seus alunos na dança discorrendo sobre pontos, linhas e planos, pois a consciência dessas abstrações geométricas se reflete positiva e concretamente nos corpos, posições e deslocamentos dos bailarinos sobre o palco, lembrei-me imediatamente da frase que Platão escreveu na porta da sua academia ateniense: “Quem não for geômetra, não entre”. Angel, entretanto, não seria tão radical quanto o pai da Filosofia, e nunca escreveria na porta da sua academia carioca: Quem não for geômetra, não dance!

Muito pelo contrário, o que ela quer é que todos dancem, independentemente de quaisquer experiências e conhecimentos prévios. Esse é a sua grande virtude! Porém, assim como Platão, que acreditava que a o ramo formal da matemática condicionava os filósofos à virtuosa busca pela verdade, a dama da dança contemporânea brasileira, por sua vez, acredita que a geometria pode bem condicionar os seus bailarinos à verdade do movimento de seus corpos no espaço. Como, então, a intimidade com pontos, linhas e planos abstratos servem concretamente à dança? Pois bem, botemos a geometria para dançar!

Sucinta e introdutoriamente, o ponto, que é adimensional, ao ser deslocado, forma uma reta, entidade unidimensional; esta, deslocando-se, forma um plano, ser de duas dimensões; este, por sua vez, movimentando-se, forma um volume, ou seja, o estabelecimento das três dimensões espaciais. Como, entretanto, para a dança não é somente o espaço que é pressuposto, mas também o tempo, as três dimensões espaciais, quando comportam em si o movimento, são o palco para a quarta dimensão, qual seja, o tempo. O bailarino tem aí, portanto, os elementos a priori da sua arte.

Agora, mais detalhadamente, o ponto, “ponto” de partida e abstração absoluta da geometria, que não tem quaisquer qualidades ou dimensões além de sua posição, pode, entretanto, mover-se ou ser imaginado em outro lugar. Ora, de uma pessoa que não se move nem imagina um movimento não pode ser dito que dança. Em troca, é somente quando ela se movimenta ou imagina um movimento de um ponto a outro, sem, no entanto, se esquecer da relação que tais posições têm entre si, que ela dá o primeiro passo no sentido de ser um bailarino. Ou seja, deixa de ser um ponto desqualificado no espaço infinito e angaria para si a sua primeira qualidade: ser a história consciente do seu próprio deslocamento espacial de um ponto determinado a outro ao longo de um tempo.

Com efeito, a dança começa quando uma pessoa-ponto imagina que pode ser mais do que uma única posição, e, ao ser outra, isto é, outro ponto, já é uma reta, cuja virtuosa propriedade é ser constituída de infinitos pontos, ou o que é o mesmo, infinitas posições. Só não podemos parar por aí e achar que uma única dimensão faz um bailarino, pois, então, até de uma pedra que cai poderia ser dito que baila. É preciso, por conseguinte, que essa reta-quase-bailarino se desloque de um lado para o outro para que se estabeleça um plano aos seus movimentos. O bailarino, aí, ganha mais uma qualidade, qual seja, a bidimensionalidade.

Novamente, é necessário mais do que isso para se ter propriamente um bailarino, pois se o deslocamento para os lados fosse suficiente, uma folha arrastada pelo vento teria de ser considerada como tal. Esse plano-quase-bailarino, portanto, deve mover-se para cima e para baixo, para que então a tridimensionalidade o qualifique espacialmente. Entretanto, se apenas os deslocamentos para um lado e para o outro, e para cima e para baixo, contivessem a essência espacial da dança, uma pluma, numa ventania, estaria dançando, coisa que ninguém ousa dizer – a não ser fazendo poesia.

Será que é o tempo, isto é, a quarta dimensão, o ingrediente que completa a geometria da dança? Obviamente não, pois tanto a pedra, a folha e a pluma se deslocam em função do tempo, e nem por isso bailam. Não são, portanto, as três dimensões espacial mais a temporal, juntas, que fazem a dança, muito embora a dança não se dê sem elas. A diferença entre um bailarino e uma pedra, folha ou pluma está, entretanto, em que somente aquele é – ou ao menos pode ser – consciente das dimensões através das quais se movimenta, enquanto os objetos sequer são conscientes de si.

Por isso, Angel Vianna têm razão em insistir que seus alunos sejam apresentados à coreografia dimensional apresentada senão pela geometria. Afinal, um bailarino, pelo fato de ser aquele que usa e abusa do espaço com arte, deve conhecê-lo bem. Talvez não como um geômetra, como exigia Platão dos seus pupilos, mas ao menos intuitivamente, dado que o espaço concreto no qual qualquer bailarino dança é redutível a pontos, linhas e planos abstratos. Ademais, e principalmente, é nessa ordem mesma – ponto; então linha; então plano; e só então espaço – que qualquer movimento pode ser a consciência de sua própria gênese ao longo de um tempo, e assim ser dançado, dançado novamente, e, para o bem da dança, eternizado.

Espaço e tempo, Newton e Kant

Se nos perguntassem o que são espaço e tempo, provavelmente responderíamos como Newton, dizendo que são dimensões do universo, às quais tudo está submetido, e que, mais importante, subsistem a despeito de quaisquer coisas – inclusive de nós. Assim nos parece, pois, durante nossas vidas habitamos num ponto minúsculo do espaço e usufruímos apenas de uma fatia ínfima do tempo, e isso basta para nos convencer de que ambas as dimensões nos contêm; que existiam antes de nós e que seguirão existindo, mesmo na nossa ausência. Entretanto, Kant inverteu completamente essa hierarquia. Depois dele, espaço e tempo nada são sem nós. Ou melhor, só são por nossa obra e natureza.

Para Kant, tempo e espaço não são coisas, tampouco existem por si mesmos. São, com efeito, apenas intuições subjetivas, isto é, formas puras da nossa sensibilidade, contudo, independentes das nossas experiências, sem as quais não poderíamos conhecer nem a matéria nem a nós mesmos. “Long story short”: nossos sentidos, através de um espaço intuído, percebem a realidade material. Nosso entendimento, então, cria representações a partir dessas percepções sensíveis. Muitas dessas representações precisam, por conseguinte, de um consciência que as reúna. Entretanto, para que não se misturem, a consciência intui o tempo no qual organiza todas as representações – do contrário, o trabalho dos sentidos restaria misturado e indefinido.

O que Kant disse é que intuímos o espaço para determinarmos uma realidade exterior a nós. Essa determinação espacial é condição para que os nossos cinco sentidos possam perceber a realidade material e dela nos convencer. A visão, por exemplo, coloca os objetos no espaço, estabelece o espaço entre nós e eles, o espaço dos objetos entre si, o espaço que nós ocupamos, e também as figuras com que apreendemos tais objetos. Ora, a cor amarela, as estrelas, ou, digamos, o horizonte, porventura existiriam para nós sem um sentido que os tivesse percebido, porém, em um espaço inaugurado pela nossa própria subjetividade, apropriado para que o amarelo, a estrelas e o horizonte se oferecessem à percepção?

O tempo, em contrapartida, é o modo de intuição de uma realidade interior, isto é, de uma consciência. De acordo com Kant, para se diferenciar da realidade material a consciência pressupõe o tempo; todavia, na medida em que ela permanece a mesma enquanto as representações – as obras das sensações num espaço intuído – se sobrepõem umas às outras, incessantemente. A torrente de representações só pode existir numa consciência conquanto seja intuído um tempo em cuja série todas as representações possam se justapor. Ora, se uma representação desaparecesse no toque da seguinte, sem a necessidade de uma se relacionar com a outra, tempo algum precisaria estar pressuposto. Porém, uma vez que é na consciência que todas as representações habitam, só pressupondo o tempo essa coabitação é possível.

Então, por um lado, temos o espaço, que é levado à experiência, para que, com a participação dos sentidos, a realidade material seja representada, e por fim, conhecida pela consciência. Por outro, o tempo, que é a forma com que a consciência subsiste mediante o fluxo das representações diversas que recebe, e assim conhece a si mesma. Grosso modo – a sofisticação de Kant que me perdoe -, as sensações, espacializadas, resultam na matéria; já a série de representações, temporalizadas, resultam na consciência. Juntando tudo isso temos um sujeito, isto é, um “eu”, que, no entanto, só pôde se constituir levando à arena de sua própria experiência existencial as intuições, não menos suas, de tempo e de espaço.

Nos três anos em que Kant e Newton compartilharam o espaço e o tempo newtonianos, ou, em respeito à Kant, no triênio em que os espaços e os tempos kantianos dos dois revolucionários foram contemporâneos, o físico já não podia mais ler e o filósofo sequer tinha aprendido a escrever. Por isso Newton não pôde apreciar a revolução que Kant empreendeu, anos mais tarde, nos seus espaço e tempo absolutos. Coloquemos um diante do outro, então.

Para Newton, tempo e espaço existiam absolutamente, e o faziam independente inclusive dos sujeitos: eram dimensões universais. Ao lado delas, havia apenas átomos e gravidade. Kant, por sua vez, disse que nem espaço nem tempo existiam de fato; eram, ao contrário, nada mais que intuições subjetivas. Aqui as duas teorias são diametralmente antagônicas. Entretanto, ao confrontar o universo newtoniano, composto de espaço, tempo, átomos (matéria) e gravidade, com o sujeito kantiano, parido mediante espaço, tempo, matéria e consciência, duas coisas chamam atenção, quais sejam: a primeira, o físico falava do universo, enquanto o filósofo, do sujeito; e a segunda, o que naquele era a gravidade, neste é a consciência.

Espaço e tempo, de Newton à Kant, significam, por um lado, uma aventura que parte do universo e finda no sujeito, e por outro, a transformação da gravidade material em consciência transcendental. Ora, ambos os movimentos são correlatos, senão coetâneos, do movimento burguês, cujo produto excelente foi o mais refinado individualismo de que a humanidade já teve notícia, no qual o “eu” não podia ser nada menos que o universo inteiro + a força gravitacional que atrai para si toda a realidade. Sendo assim, o tempo e o espaço que Newton espalhou pelos quatro cantos do universo, Kant os recuperou, transformou-os em intuições, e os colocou nos recônditos do sujeito do seu tempo.

Lugar, um ponto arquimediano.

O espaço é o meio físico universal de cujas três dimensões a vida se apropria para devir em experiências, bem como para gerar sentidos e valores inexistentes no universo. Pois bem, a vida, conquistando o espaço, compartimenta-o em lugares. Entretanto, que vandalismo é esse cometido contra a integralidade espacial, cujas ruínas são os lugares a partir dos quais existir passa a significar viver?

Da lei newtoniana, “dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço”, fica claro que lugar não é espaço, mas o que surge da ocupação deste por um corpo. Precisamos, todavia, transcender a ideia primeira de corpo material para comprometer definitivamente a vida com o lugar – no espaço – que ela inaugura, pressupondo também corpos de sentido, de experiência, de valor, etc. Afinal, concordando com Zygmunt Bauman, “é nos lugares que se forma a experiência … , que ela se acumula, e que seu sentido é elaborado, assimilado e negociado”.

Deve ser dito que um ser inanimado, por exemplo, uma pedra, não cria um lugar pelo fato de existir no espaço; simplesmente o ocupa. Somente matéria não é suficiente para gerar um lugar. É preciso corpos com vida, com desejos, com objetivos. Antes, “o lugar das coisas” já é uma invenção da vida: a cartografia do espaço de acordo com as necessidades dela.

Entretanto, a vida está subjugada a outra dimensão universal, qual seja: o tempo. Apesar de tudo o que vive compartimentar o espaço universal a seu bel-prazer – em lugares onde se dorme, bebe, nasce, etc. -, o tempo também é comprometido nesse processo. De modo que o lugar é não é apenas uma impertinência em respeito ao espaço, mas também uma aventura contra o tempo. Isso porque a vida já é uma irreverência em relação à existência.

Para entender a relação que se desenrola entre o espaço e o tempo infinitos e os nossos pontuais e efêmeros lugares, uma afirmação de Bauman: “é nos lugares, e graças aos lugares, que os desejos se desenvolvem, ganham forma, alimentados pela esperança de realizar-se”. Ora, se o desejo compartimenta o espaço em lugares em função de se satisfazer, e se, sobretudo, o desejo é feito para ser satisfeito – portanto suprimido -, então, é no tempo da satisfação do desejo que o lugar solapa e é reintegrado ao espaço indeterminado.

No entanto, porque a vida é uma sucessão ininterrupta de necessidades e desejos, nunca se permanece na abstração espacial. Novos lugares são abertos no espaço no toque de novos desejos. Afinal, somente na ausência de propósito vital há o espaço indiviso. Porém, não a vida. Ela, pois, é a conversão temporânea do espaço integral do universo em pontuais moedas-lugares com as quais negocia, através de suas experiências, sentidos e valores com a existência.

Há, porventura, algo mais concreto do que os lugares onde a vida acontece? Todo resto, com exceção dos desejos, não se colore de contingência diante da determinação espacial? Inclusive o tempo parece escoar em intensidades diferentes de acordo com a dinâmica de cada experiência vivida. Já o lugar, não. Vida, desejo e lugar, contrariando Newton, ocupam sim o mesmo lugar no espaço. Geralmente os homens chamam essa mistura de “Eu”.

Arquimedes, 250 anos antes de Cristo, disse: “Deem-me um ponto de apoio e moverei a Terra.” Pois bem, esse ponto arquimediano não só carece de um lugar, como também representa muito bem a função dos lugares à vida. Basta, portanto, um ponto de apoio, isto é, um lugar apontado, para que a existência possa ser movida de sua indeterminação até uma terra inteira de sentidos, de valores e de experiências determinadas.

Relações topofílicas

A topofilia é nada mais que o amor pelo lugar, porém, mais especificamente, por um lugar carregado de imagens felizes; ou seja, pelos espaços que nos fizeram, ou ainda nos fazem felizes. A topofilia, portanto, diz respeito aos espaços que louvamos. Para o filósofo Gaston Bachelard, somente alcançamos o conhecimento topofílico através de uma “fenomenologia do habitar”, pois só ela traz, ao modo de nos relembrar, os momentos de verdade da nossa aventura habitante.

Se, como diz o filósofo, “o ser é imediatamente um valor”, e também que “o ser reina numa espécie de paraíso terrestre da matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada [parecendo] que nesse paraíso material o ser é cumulado de todos os bens essenciais”, o ser topofílico de valor absoluto é, sem erro, a casa material mais presente na nossa memória. Nela, pela primeira vez, percebemos a divisão do universo em dois: a nossa casa e o resto; muito embora casa e universo não sejam dois espaços justapostos, mas uma única e mesma coisa. Segundo Bachelard, o que divide o universo em dois é a ideia de que “a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz”.

Essa fenomenologia do habitar de que fala Bachelard, que encontra na casa natal o seu espaço excelente, trata o espaço como necessário, e o tempo, porém, como contingente, dado que, segundo ele, “mais urgente que a determinação das datas é, para o conhecimento da intimidade, a localização dos espaços da nossa intimidade”. Isso porque a memória não registra a duração concreta, real, o que nos impede sobremaneira de revivermos as durações expiradas conforme as suas cronologias. Contudo, é a memória, em forma de espaço habitado, que estabelece uma dialética com os delimitados espaços de nossas felicidades íntimas, e, por conseguinte, gera a “philia” (amor) por esse “topos” (lugar).

“Em seus mil alvéolos, o espaço mantém o tempo comprimido. É essa a função do espaço”, coloca Bachelard. Então, o espaço seria o Senhor do tempo, e este, escravo daquele; isto é, o tempo estaria sujeito às necessidades do espaço, pois, de acordo com o filósofo, “o inconsciente permanece nos locais”. Se as lembranças são imóveis, elas não acompanham o devir temporal. Aliás, qualquer lembrança é o desafio absoluto em respeito ao tempo, insistindo o passado presente-adentro com uma fidelidade que, deixada apenas nas mãos do tempo, desgastar-se-ia. A memória é uma espécie de anti-tempo, espacialmente entrincheirada, que faz de todos os lugares historicamente habitados o espaço único do ser.

Adentrando o espaço topofílico essencial, definido por Bachelard em vias da fenomenologia do habitar, estamos no interior da casa natal que está, física e geograficamente, construída em nós, figurando insubstituível como o espaço dos hábitos orgânicos mais primitivos. Nas palavras do filósofo, “a casa natal gravou em nós uma hierarquia das diversas funções de habitar. Somos o diagrama das funções de habitar aquela casa; e todas as outras não passam de variações de um tema fundamental”. Dessa forma, as felicidades que experimentamos em quaisquer lugares subsequentes à casa natal – ao longo do tempo corrompedor – são felicidades que, não obstante, intentam recolocar-nos naquele espaço feliz primordial, em cuja segurança os nossos sonhos estavam em paz, resguardados do resto do universo.

Por mais que a civilização faça do espaço universal cada vez mais a nossa casa, Bachelard adverte-nos de que “o inconsciente não se civiliza”, ou seja, não encontra espaço feliz fora das “paredes” entre as quais habita desde o seu “nascimento”. Ora, essa reclusão necessária do inconsciente dentro de sua própria morada faz com que a casa primordial deva, de alguma forma, resguardar-se do mundo através de paredes simbólicas; entrementes abrindo-se ao exterior também através de portas e janelas simbólicas. Por isso Bachelard diz que a casa natal “pertence à literatura de profundidade, isto é, à poesia, e não à literatura eloquente, que tem necessidade do romance dos outros para analisar a intimidade”.

A partir da soleira da nossa casa primitiva estende-se o universo restante, o tempo cronológico, a realidade impiedosa e, mais traumatizante ainda, os outros. Lá fora encontramos mais caminhos que refúgios. Entretanto, Bachelard reconhece o espaço universal além-casa de forma generosa, afirmando: “que lindo objeto dinâmico é um caminho!” Esse dinamismo dos caminhos universais apontado pelo filósofo reitera, portanto, que o tempo fica do lado de fora das quatro paredes natais que, não obstante, resguardam nada além da nossa topofilia original.

Podemos pensar o exterior da nossa casa primitiva como o deserto do real ou como o jardim de contingências através do qual desenvolvemos a nossa promenade existencial. Porém, feliz mesmo é aquele que não se esquece de que tal caminho serve também para reconduzir, ainda que sob os passos geográficos da memória, ao sítio primordial de onde, um dia, nos sentimos seguros a ponto de podermos sonhar em paz. Longe de exaurir todos os fenômenos da habitação, a casa natal, no entanto, evidencia, ao modo de não nos deixar esquecer, a figura mais marcante dessa fenomenologia do habitar; pois, em respeito a ela, temos a relação topofílica por excelência.

À vulgaridade, a dança.

Quem consegue parar o balé de suas próprias ideias? Quem consegue deixar a interminável “coreografia-in-process” dos seus próprios pensamentos no linóleo da existência? Percebendo que nossos pensamentos movimentam-se o tempo todo, preenchendo todo espaço disponível, temos de admitir que eles são-nos irresistíveis. Colocando aqui a afirmação de Nietzsche de que “toda vulgaridade vem da incapacidade de resistir a uma solicitação”, temos de assumir que, diante do que pensamos, somos absolutamente vulgares.

Pensamos! Não conseguimos deixar de fazê-lo, inclusive quando desejamos não pensar. A “cabeça vazia”, meta da cabeça atribulada, é impossível porquanto o vazio não é, e nunca será, um atributo do pensamento. Alain Badiou adverte-nos de que “o vazio é o ser do lugar”, não o nosso. Portanto, nós só podemos “estar” nos lugares, nunca “sê-los”. Uma vez em algum lugar, somos e pensamos, isto é, acontecemos. Se realmente “o acontecimento revela o vazio da situação”, como disse Badiou, no sentido contrário desse movimento, o vazio prova o acontecimento vulgar que somos, pois não resistimos diante do vazio sem vulgarmente preenchê-lo com nossas ideias.

Logo, se no pensamento somos incontornavelmente vulgares, é no espaço que essa vulgaridade posteriormente se apresenta; sendo a criatividade o seu polo positivo, e a inapropriação, o negativo. Destarte, quem melhor que o bailarino para resistir, no espaço, à expressão da vulgaridade constitutiva do pensamento? “Coreografando” a afirmação nietzscheana acerca da vulgaridade, Badiou diz que “a dança é o movimento do corpo subtraído de qualquer vulgaridade”. O que o filósofo quer dizer é que somente o bailarino pode resistir incólume ao caótico turbilhão cognitivo interior no exterior espaço vazio – se assim desejar -; pois, para ele, “a dança é o pensamento como refinamento”.

“A dança é a única das artes que é obrigada ao espaço”, completa Badiou, pois “a partir do momento que há texto [ou pensamento], a exigência é do tempo, e não do espaço”. Mallarmé corrobora com essa afirmação dizendo que “a dança é o poema liberto de todo o aparato de escriba”. Então, só a dança liberta o homem do pensamento, portanto da vulgaridade, e isso fica claro nas palavras de Badiou: “a dançarina é o esquecimento milagroso de todo seu saber [inclusive do] de dançarina”. Logo, somente o mestre do movimento, isto é, o maestro do espaço, no disciplinar esquecimento dessa maestria, é que pode resistir, se assim desejar, à temporalidade vulgar de seus próprios pensamentos no “lugar-espaço” aonde estes pensamentos lhe ocorrem.

“Existe, portanto, na dança, algo de antes do tempo, de pré-temporal. E esse elemento pré-temporal será representado no espaço”, propõe-nos Badiou. Ora, o que há de mais temporal – e contemporâneo – que o próprio pensamento, dado que a discussão acerca do tempo é tão antiga quanto o pensamento, a ponto de confundir-se com ele? Sendo o tempo o pensamento em movimento, a dança, enquanto pré-temporalidade, “suspende o tempo no espaço“, conclui Badiou. Por conseguinte, na suspensão do tempo que a dança retraz ao mundo, o pensamento é igualmente suspenso e elevado a um espaço esvaziado da sua cotidianidade vulgar.

Diante da bailarina não sabemos mais o que o tempo fará no espaço! A coreografia do balé rouba-nos aqueles pensamentos que pensam já saber o que um corpo pode fazer no espaço e num determinado tempo. Logo, “se alguém assiste à dança, é inevitavelmente seu ‘voyeur”, aponta-nos Badiou; pois, diante dela, estamos tão distantes da realidade ordinária, tão afastados da vulgaridade das conclusões, que o pensamento não serve mais a si mesmo. Doravante, melhor ao pensamento é suspender-se e servir “voyeristicamente” à suspensão temporal dançada no espaço criado e desvirginado, simultaneamente, pela dança e pelo bailarino.

Se, como fala o filósofo, a dança é o modo de resistir a toda a vulgaridade, é por que ela controla, exitosa e belamente, o acesso de tudo o que é humano ao espaço ocupado por ele. Só ela é no vazio, enquanto nós só somos em meio à contemporânea população dos nossos pensamentos. A dança é o vazio plenamente ocupado sem com isso deixar de ser vazio. “O cenário é do teatro, e não da dança. A dança é o sítio tal qual, sem ornamentos figurativos. Exige o espaço, o espaçamento, nada além disso”, reitera-nos Badiou.

A dança dos nossos pensamentos mostra-nos que não sabemos dançar, e isso no tempo do baile da vida. Erramos a coreografia da existência por não resistirmos a ela, e aí somos vulgares! Já o bailarino, o proprietário absoluto do espaço, dispõe do tempo ao seu bel-prazer e, dominando-o, domina também os seus pensamentos, roubando-lhes o palco ideal, qual seja, o tempo. No corpo que dança, o tempo é escravo do espaço, e o espaço, escravo do corpo; e isso devido à vontade e à capacidade do corpo em resistir às solicitações – inclusive as da gravidade. Nós, os não-dançantes, temos a vontade cativa do tempo e do pensamento, vulgares como só nós! Só estaremos libertos de tal vulgaridade conquanto aprendamos com Nietzsche algo que o bailarino já sabe, “que a vontade deve aprender é a ser lenta”.