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O buraco político de Steve Bannon

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Atos e declarações do presidente Bolsonaro e de membros de sua família ou governo espantam e, momentaneamente, paralisam o pensamento. Por observação empírica, sei que até defensores seus passam por tal aperto. A atual relação do presidente com seu próprio partido reforça a tese. Será a performance política dos Bolsonaros acidental ou, em vez disso, estratégia?

Não é segredo que a campanha de Bolsonaro usou os serviços de Steve Bannon, assessor político ultradireitista estadunidense que, previamente, elegeu Donald Trump, da mesma forma, mediante torrentes de fake news espetaculares e preconceitos reacionários de toda sorte. Entretanto, o radicalismo de Bannon fez até mesmo o tresloucado líder norte-americano tremer: foi escanteado logo após a vitória de Trump. E Jair Bolsonaro é o pé torto para o chinelo velho de Trump.

A virtude malévola da tática bannoniana está no fato de ocultar a si mesma no momento preciso em que atua. A “mamadeira de piroca”; o “Jesus na goiabeira”; o “um novo A.I.-5”; todas são declarações que, por mais que saibamos que são estranhamente estratégicas, ainda assim cumprem seu papel: espantam, imobilizam e desarmam sobretudo os seus mais radicais críticos. Chega-se ao ponto, paralisante, onde a veracidade ou não dos fatos ser de somenos importância comparado ao julgamento intenso que já fazemos a respeito deles. O objetivo é substituído pelo subjetivo. A lógica da pós-verdade estrutura esse sistema.

O sucesso dessa técnica política cobra preço alto: diante de ataques ou tropeços, a tática é dobrar a aposta, porém, contra si mesmo; ser mais autodestrutivo do que qualquer risco de destruição vinda de fora. Um dia após a reportagem do Jornal Nacional sobre o porteiro no caso Marielle, o Eduardo Bolsonaro ameaça seus opositores com um “novo A.I.-5, mesmo que, em seguida, todos, inclusive o pai, repreendessem-no publicamente. Ora, se é inevitável estar envolvido em um escândalo, que seja um criado pelos próprios Bolsonaros, sobre o qual podem ter maior controle, ainda que seja mais grave do que aquele do qual fogem.

É um tiro no pé que funciona, ao menos no calor do momento. O problema é que, de tiro no pé em tiro no pé, a besta vai se mutilando. A questão é saber quanto tempo aguentarão a autodestruição como forma de evitar a destruição externa? Trump já colhe os frutos podres do seu método bannoniano de ascensão ao poder. Pode estar deposto em breve.

O modo de sobrevivência política de Bannon, abusado por Bolsonaro, reflete o modo com que o capitalismo se mantém em pé. Suas crises antecipam-se e tomam o lugar de todas as outras. E não importa quão feias e desumanas sejam as resoluções subsequentes. Na crise de 2008, trilhões de dólares foram furtados da população norte-americana para salvar o sistema financeiro daquele país, o autor discreto e deliberado da crise. Tanto que o capitalismo não se contenta mais com crises estratégicas e revigorantes a cada dez anos. Caminhamos para um capitalismo de crise constante, o que faz muito bem para o capitalismo.

Assim como o capitalismo contemporâneo, Jair Bolsonaro sobrevive politicamente cavando ele mesmo buracos maiores do que aqueles nos quais cai. Dessa forma, sobrevive aos instantes críticos, repetindo sempre a mesma forma eficiente com outros conteúdos aleatórios: quilombolas, gêneros sexuais, ciência, comunismo, o próprio partido… E, como o capital, avança deixando atrás de si buracos mais profundos que, por suas vezes, exigem buracos ainda maiores para engoli-los e escondê-los.

Diante dos atos e declarações dos Bolsonaros ainda fico espantado e paralisado apesar da clara consciência de que é a estratégia bannoniana que as anima. E experimento genuinamente a dificuldade de permanecer atento a ela no calor dos fatos. Assim como é mais difícil responsabilizar o capitalismo financeiro pelas grandes tragédias humanas e ambientais, pois o capitalismo faz com que o problema crucial esteja sempre em outro lugar que não no próprio capitalismo, para, em seguida, apresentar-se como a única solução, assim também é difícil manter a consciência de que sob as vociferações crísicas e malévola dos Bolsonaros jazem crises e maldades ainda maiores, escondendo-se viciosamente sob novas e mais sofisticadas crises.

O drama social é que precisam levar tudo e todos para os buracos que criam para si, no sempiterno desvio dos obstáculos da realidade. Entretanto, buraco algum comportará, por muito tempo, a aberta dimensão humana. Nossa natureza, se é que há uma, é sair dos buracos que o real impõe; é superá-los com soluções positivas, que acrescentem liberdade, civilidade e, por que não dizer, beleza ao mundo; e não, como querem Bannon, Trump e Bolsonaro, saídas negativas, destrutivas, que tentem desviar de dilemas cruciais mediante regressões cognitivas, éticas, sociais, políticas; como se, refugiando-se no passado de uma determinada limitação estivéssemos enfim livres delas

A tarefa lúcida do povo brasileiro, eleitores de Bolsonaro ou não, é a seguinte: não esquecer de que o grotesco espetáculo político do presidente e família não é um problema real, mas uma realidade artificiosa, criada para esconder o real. Enquanto nos ocuparmos com as espumas das ondas bolsonarianas – “a mamadeiras de piroca”; “o Jesus na goiabeira”; “meninos vestem azul e meninas rosa”; o “novo A.I.-5 -, há uma realidade que importa a todos que, contudo, permanece ignorada. Talvez devamos nos habituar à barbárie política bannoniana até conseguirmos destacá-la objetivamente da imagem que temos do real. Esse é o buraco do qual devemos sair caso queiramos seguir humanos.

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Trump e mixofobia

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A civilização é um cimento que uniu os seres humanos em um projeto em comum, tirando-os da barbárie. Sua materialização primordial foram as cidades; em latim chamadas de civitas; em grego, de pólis. O não-bárbaro, portanto, é aquele que prima pela convivência civilizada, politizada com os demais. O afeto desse primado é sociologicamente denominado de mixofilia, isto é, o amor à mistura. Sentimento que, entanto, o impertinente isolacionismo do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, parece desconhecer.

A exemplo daqueles que a instituíram, a civilização é ambígua. Por mais que ofereça às pessoas benesses de que nunca desfrutariam caso permanecessem barbarizadas, a começar pela substituição do embate físico pelo diálogo, a mistura civilizada gera afetos negativos. A proximidade com outros também produz medos, pavores, que por suas vezes impõem distanciamentos. Esse afeto isolacionista, em sociologia, é chamado de mixofobia, ou seja, o pavor da mistura. Movido pelo pretexto do terrorismo, o isolacionista Trump é o mixófobo espetacular da contemporaneidade.

Se, portanto, a civilização é a instituição humana na qual vivemos tanto o amor quanto o pavor em relação à alteridade, todavia com a vitória do primeiro, Trump é a prova da derrota diante do segundo. Ao passo que, mixofilicamente, experimentamos os prazeres e as vantagens da convivência com os outros, sendo o carnaval um exemplo mixofílico por excelência; mixofobicamente, ao contrário, priorizamos os riscos oferecidos por tal convivência, sendo o famigerado muro com o qual Trump irá isolar-se dos mexicanos o exemplo mixofóbico mais emblemático da atualidade.

A mixofobia patológica de Trump, contudo, é mais bárbara do que alienígena. Nossos condomínios e semblantes fechados já são espécie de muro trumpeano através dos quais nos isolamos do perigo da alteridade. Entretanto, por mais ambígua que seja a civilização, ela é, a priori, mixofílica, mesmo que, a posteriori, mixofóbica. O desafio primordial do civilizado, portanto, é superar sistematicamente os afetos mixofóbicos em prol dos mixofílicos. Pois é somente através do amor à mistura que transformamos as carências e vulnerabilidades inerentes ao isolamento em abundância e segurança. Afinal de contas, não foi por isso que o ser humano se civilizou?

Todavia, paradoxalmente, é em função do risco de perder essa abundância e segurança que os afetos mixófobos brotam. Trump, realmente acredita que uma “America Great Again” só é possível mediante isolamento; se ela estiver sitiada intramuros intransponíveis. Porém, o pavor da alteridade não desaparece ao se isolar dela. Esse isolamento, aliás, é o medo concretizado, espacializado; de forma alguma superado. Sem dizer que agir em função do medo, do pavor, ou seja, de afetos mixofóbicos não é coisa de quem é ou será “Great”. A América de Trump, isolada, será tão “small” quanto a barbárie diante da civilização.

O grande problema da mixofobia é que ela reinstitui o não-diálogo entre quem se sente atemorizado e quem causa tal temor. Ela é antipolítica por natureza. Mas, não nos esqueçamos, Trump se elegeu vendendo o peixe de que não era político; de que os americanos estavam fartos da política. Só que ser civilizado e ser político, “Mr. President”, são sinônimos! Felizmente, massivas e mixofílicas manifestações “worldwide” contra o mixófobo-mor estão ocupando a ágora mundial com a civilidade da qual não querem ser privadas. Uma luta política par excellence.

Não foi devido à ausência de mixofobia que a civilização se deu, mas, fundamentalmente, pelo conflito dela com os afetos mixofílicos. A civilização, por assim dizer, é o estágio humano no qual a mixofilia vence essa sempiterna pecha. E a mixofobia, sistematicamente derrotada, compõe a régua com que se mede a vitória da civilização. O triunfo mixofílico se sustenta na consciência de que, por mais que o outro possa ser um problema, antes disso, ele já é a solução. Quanto mais não seja, cada um de nós é um outro para os outros.

Trump, contudo, não considera o fato de que é um outro para os outros. Em vez da abertura política à alteridade, o bárbaro fechamento egoísta. “America First!”. E quando se está desse modo isolado, o temor serve de paradigma para toda sorte de apolitismo. Mas, se em uma imagem, civilização é vitória sobre barbárie, a nossa, sobre Trump e todos os que, como ele, não querem ser outros de ninguém, essa vitória consiste em seguirmos amando nos misturarmos: troféu que se ganha ao ser derrotado o medo da mistura.

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A grandeza prometida pelo “republicano” antirrepublicano

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“Make America Great Again” (Fazer a América Grande Novamente), slogan que levou Donald Trump à presidência dos EUA, é impossível de ser realizado a partir da política isolacionista que o bilionário defendeu em campanha e que, uma vez no poder, está implementando a contragosto do cosmopolitismo do mundo globalizado. Essa contradição é tácita no que alguns analistas políticos já chamam de “ O Imperialismo Isolacionista de Trump”. A impossibilidade de a América ser grande isolando-se será analisada à luz de algumas ideias de Nicolau Maquiavel, o fundador do pensamento político moderno. Aplicando-se a teoria maquiaveliana sobre a promessa de grandeza do slogan trumpeano, como ele ficaria?
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Investigando o que fazia um estado ser grande, Maquiavel encontrou o que procurava na Roma antiga, o maior exemplo da história, e, segundo o pensador, digno de ser imitado. Maquiavel não era um teórico que ficava imaginando estados ideais, tal como Platão, em “A República”, ou ainda Santo Agostinho, em “A Cidade de Deus”. Ele, na verdade, era um realista pragmático que buscava em exemplos históricos concretos os fundamentos para as suas lições políticas. Até mesmo o racionalismo de Aristóteles, na “Política”, e o historicismo de Cícero, em “Histórias”, ficavam aquém da concretude factual a partir da qual Maquiavel tirava as suas conclusões.
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Ao contrário do que sustentavam todos os pensadores políticos antes dele, Maquiavel não via em fronteiras intransponíveis; na ausência de tumulto interno; nem tampouco no poderio militar a grandeza de um estado, mas, em primeiro lugar, na possibilidade de os cidadãos desse estado, fossem ricos, fossem pobres (nas palavras do florentino: grandes e povo, respectivamente) poderem estabelecer entre si um conflito político aberto em função de seus interesses de grupo. E era precisamente a diversidade e a irredutibilidade dos desejos dos grupos sociais, chamados pelo florentino de “humores”, que fazia a riqueza política e a grandeza da Roma republicana que chegou ao conhecimento de Maquiavel através das Histórias de Tito Lívio.
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E se a diversidade de humores é fundamental para a grandeza de um estado, Roma foi o maior da antiguidade porque, desde a sua fundação até o seu declínio, abriu-se para quem quisesse ser romano. Roma era uma urbe de humores conflitantes! O surgimento da maior instituição republicana de todas, os Tribunos da Plebe, que equiparou povo e grandes politicamente, só foi possível porque Roma, incorporando paulatinamente indivíduos oriundos dos mais variados lugares, foi pluralizando e empoderando seu o povo diante dos estáticos interesses dos grandes, a ponto de aquele não ser mais dominado por estes, mas todos serem cidadãos com iguais direitos e obrigações perante a lei.
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Para mostrar como o isolamento de um estado leva-o à ruína, Maquiavel usou o exemplo de Esparta, cujas leis, instituídas por Licurgo, rejeitavam estrangeiros. Uma das causas dessa recusa era a manutenção da rígida estratificação social que impedida qualquer mobilidade política. O povo, nessa conjuntura, esteve sempre subjugado aos reis e à aristocracia. E, não tendo direitos políticos, o povo não compartilhava do estado. Como, por conseguinte, a res não era publicamas privada, o povo não tinha motivos para defender o estado de inimigos externos nem tampouco para lutar pela expansão desse estado que, no final das contas, não era seu, mas apenas dos grandes.
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Em Esparta, portanto, quem defendia o estado e empreendia a sua expansão era a própria aristocracia, a verdadeira dona da res. No entanto, como os grandes sempre são minoria em relação ao povo, o exército, que tinha por tarefa tais objetivos, era sempre limitado, pois composto ou apenas por indivíduos da aristocracia, ou por mercenários contratados por ela. Assim como nunca se confiou em escravos para defender uma res que não era deles, assim também o povo espartano não era alistado pelos reis e aristocratas. Com essa pragmática antirrepublicana, ensina Maquiavel, Esparta não só não se expandiu ao longo do tempo, como principalmente ruiu pela própria rigidez de sua estrutura política.
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O povo da Roma republicana, ao contrário, uma vez que também possuía a res, comprometia-se com ela, fosse em caso de ameaça externa, fosse em função de expansão. Quanto mais não seja, considerando a natureza humana egoísta pressuposta por Maquiavel, só faz sentido defender e fazer crescer aquilo que é seu. E os estrangeiros que, por vontade própria e aceitação de Roma, passavam a desfrutar da cidadania e da pax romana, defendiam esse estado e a sua expansão como se fossem romanos natos.
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Sem dizer que a própria origem mítica de Roma, qual seja, a fundação por Rômulo, deu-se mediante a abertura irrestrita aos estrangeiros. Depois de matar seu irmão, Remo, em um dos fratricídios mais ilustres da história, Rômulo aceitou indiscriminadamente indivíduos de todos os lugares e índoles dentro de suas muralhas. E essa diversidade, em vez de arruinar Roma, fez a sua grandeza.
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Voltando aos Estados Unidos, país que, como se sabe, foi formado por estrangeiros, e cuja atual grandeza ainda se dá pela mistura de praticamente todas as gentes do mundo, caso se ensimesme dentro de fronteiras intransponíveis cometerá o mesmo erro que Esparta. Fechando-se à diversidade, à novidade, à alteridade que são os estrangeiros, os EUA terão por destino imediato a estagnação e, a longo prazo, a própria ruína. Sem dizer que, erro maior, os EUA de Trump se encontram em um mundo fundamentado na globalização, como os estados da antiguidade jamais experimentaram. Fechar-se nunca foi tão impróprio!
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Se Donald Trump, que quer fazer a “América Great Again”, seguir ignorando que um estado só é verdadeiramente grande quando, a exemplo da Roma republicana, abre-se irrestritamente aos estrangeiros, incorporando o que de melhor eles têm, e com isso tornando-se mais diverso, mais plural, mais cosmopolita, em suma, “Great”, talvez o déspota contemporâneo descubra isso do modo mais difícil, ou seja, vendo o seu país encolher por conta de isolamentos, banimentos e muramentos impertinentes.
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Será que Trump, graduado na quarta melhor universidade dos Estados Unidos, não aprendeu nada dos ensinamentos políticos de Maquiavel? Minha aposta é que o “republicano” está sendo deliberadamente antirrepublicano, ou o que é o mesmo, antimaquiaveliano. Ora, se a res norte-americana não for publica, mas privada, ela será apenas de bilionários como ele. E se essa hipótese é verdadeira, a única coisa que faltou ser acrescida no famigerado slogan trumpeano, “Fazer a América Grande Novamente”, foi o complemento mais reacionário de todos, qual seja: “Para os poucos aos quais a América sempre foi grande”.
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Esse adendo obsceno, é claro, não poderia ter sido publicizado durante a campanha. Todavia, uma vez eleito, nada mais impede Trump de, desavergonhadamente, colocá-lo em prática na sua forma completa. Porém, levando em consideração os ensinamentos de Maquiavel e o isolacionismo antirrepublicano de Trump, o slogan do topetudo, no final das contas, tem de ser reescrito na seguinte forma: “Fazer o povo da América menor para ela ser novamente grande somente aos grandes. Só assim o slogan fará jus ao “republicano” antirrepublicano que atualmente preside a terra do Tio Sam.

A eleição da vulgaridade

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Um dos maiores talentos de Donald Trump, presidente eleito dos Estados Unidos, é a sua capacidade de ser criticado. Há poucos dias, a atriz Meryl Streep o criticou em uma famosa premiação cinematográfica. A plateia que a assistia ao vivo e os Trump-haters de todo o mundo aplaudiram-na. Todavia, quase a mesma quantidade de gente – eleitores norte-americanos e admiradores Worldwide do futuro presidente – rechaçaram-na. Até aí tudo bem, afinal, oposição de opiniões cai muito bem à democracia. Porém, como não podia deixar de ser, o ato mais criticável de todos a respeito do ocorrido no Globo de Ouro foi mesmo o de Trump.

Poucas horas depois, o topetudo já respondia, pelo Twitter, à crítica de Streep dizendo, entre outras pós-verdades, que ela é uma “atriz superestimada” e “lacaia de Hillary”. Como dito no início, a capacidade de Trump de ser criticado é imensa, porém, a sua aptidão para receber críticas é inexistente. Ele, ao contrário, orgulha-se de ser do tipo que “não leva desaforo para casa” e, mais ainda, esforça-se para que os “desaforados” recebam desaforos ainda mais pungentes. Agora, em se tratando de alguém que pretende ocupar o cargo político de maior poder no mundo, ser refratário à dissonância a esse ponto é postura que, além de extremamente perigosa, é lamentavelmente patética.

No seriado “The Young Pope”, dirigido pelo grande Sorrentino e protagonizado pelo delicioso Jude Law, o Jovem Papa Pio XIII, tão controverso quanto diabólico, é acusado publicamente de heresia e ameaçado de deposição devido ao teor de cartas de amor escritas na adolescência. Para protegê-lo, a assessora de imprensa do Vaticano exige dele que declare, também publicamente, que não é um herege. O papa, entretanto, responde perspicuamente: “Se não sou herege, por que eu deveria declarar que não sou? Defender-me apenas levantará suspeitas… A melhor coisa a fazer é ignorar a acusação e a ameaça”. No final das contas, as cartas são divulgadas e, para a decepção dos inimigos do Jovem Papa, o mundo se apaixona ainda mais pelo Vigário de Cristo na terra, afinal, a maioria das pessoas se compraz com o amor. Só não percebe isso que não o tem em si.

Trump seria incapaz da segurança e da fineza do Papa ficcional, seja porque aquilo de que lhe acusam ser verdadeiro, e o que é pior, corroborável por vídeos do Youtube, seja principalmente por ser incapaz de resistir às críticas que recebe. Se lembrarmos do que disse Nietzsche em algum lugar, que “toda vulgaridade vem da incapacidade de resistir a uma solicitação”, o mais adequado predicado para o bilionário quase presidente é: vulgar!

Do latim vulgaris – derivação de vulgus (multidão) -, “vulgar” é aquilo que é usado pelo povo e não possui quaisquer traços de nobreza ou distinção. Com efeito, Trump reage às críticas que recebe como se fosse um de seus patéticos eleitores homens brancos de classe média e sem formação superior. Só que, afora sua raça, ele é rico desde a infância – um biógrafo seu conta que, na adolescência, Trump vendia jornais no seu bairro levado pelo seu chofer -, e, além disso, o magnata é diplomado em economia pela quarta melhor universidade dos EUA. Trump não é vulgar fortuitamente, por falta de opção, mas deliberadamente, o que o sobrevulgariza.

Recentemente, intrometendo-se, com sua inconveniência habitual, na delicada diplomacia EUA-Israel, Trump vomita mais um tweet impertinente, desta vez dizendo para Netanyahu: “Mantenha-se forte! 20 de janeiro [data de sua posse] está chegando”. Não obstante o fato de o ordinário Trump não ter sido eleito pelo voto popular, mas indiretamente pelos ardis do suspeitíssimo sistema eleitoral norte-americano, ele ainda por cima não respeita a presidência oficial do seu próprio país.

E o que dizer do polêmico caso político/amoroso/tweetico entre Trump e Putin? Agências de inteligência dos EUA dizem, e até mesmo os próprios colegas republicanos de Trump confirmam, que Putin ordenou espionagem hacker nas eleições norte-americanas para favorecer Trump e desacreditar Hillary. E o que é mais grave de tudo, Trump será empossado mesmo assim, pois nem mesmo a paranoia anti-espionagem dos extremamente paranoicos sobrinhos do Tio Sam parece ter mais poder do que as intempestividades tweeticas de Trump. A mensagem descarada do bilionário a Putin – na verdade, cinicamente endereçada ao povo americano e ao mundo – foi a seguinte: “Junte-se ao nosso time para fazer a tirania grande novamente. Será enorme”.

Convenhamos, o que foi eleito nas últimas eleições norte-americanas não foi um presidente, mas um representante legítimo do antipolitismo, da falta de diplomacia, da vulgaridade. Cereja tirânica do bolo tweetico de Trump: “Quem se importa com a Constituição?”. Ora, se o próximo presidente dos EUA não se importa com a lei, nem tampouco com a civilidade, o que na verdade foi eleito pelo “país mais poderoso do planeta” foi a barbárie. Quase metade dos eleitores, mais o sistema político norte-americano, escolheram a barbárie em detrimento da civilização! Paradoxal é o fato de, hoje, a barbárie poder ser acompanhada pelo Twitter, uma das maiores sofisticações da civilização. Afinal… It´s Trump times, folks!

Bye-bye, multiculturalismo?

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O multiculturalismo é a coexistência harmoniosa e não hierarquizada de diferentes culturas numa mesma região, cidade ou país. Sua ideia sustenta que o hibridismo cultural produz realidades comuns mais ricas e plurais baseadas no respeito e na aceitação irrestrita das diferenças. Uma sociedade multiculturalista é aquela que, mesmo com uma maioria branca, heterossexual e cristã, por exemplo, coloca em pé de igualdade demandas e direitos de negros, árabes, índios, gays, lésbicas, transexuais, muçulmanos, umbandistas, satanistas, e por aí vai.

Mesmo que, logicamente, a globalização só tivesse a lucrar com plena abertura multicultural, a realidade, entretanto, está se mostrando refratária à utopia pluralista. Conquanto nas últimas décadas os discursos oficiais tenham sido como que obrigados a contemplar a alteridade, desde o fatídico 11/9 no entanto, movimentos monoculturais, nacionalistas, xenófobos encontraram na ameaça do terrorismo o guarda-chuva perfeito para justificarem e retomarem a velha e rançosa recusa ao outro.

A crise econômica mundial que cresceu ao longo da década de 2010, as migrações em massa que explodiram nos últimos dois anos, a vigorosa ascensão “worldwide” das direitas radicais de caráter fascista, tudo isso somente reforça que a aventura multiculturalista, infelizmente, foi um projeto passageiro. Hoje em dia, a ideia cada vez mais vigente, ou pelo menos midiatizada, é a de que a diversidade cultural, étnica, religiosa, sexual, etc., é uma ameaça às identidades nacionais.

Trump, nos EUA; Le Pen, na França; Wilders, na Holanda; Farage, na Inglaterra; Voigt (líder do neo-nazi Partido Nacional Democrático), na Alemanha; Strache, na Áustria; Bolsonaro, no Brasil – só para citar alguns-, reencarnam, política e espetacularmente, a ideia de que o multiculturalismo é danoso às suas sociedades e culturas, sem dizer suas economias.

Até mesmo a ideia do filósofo canadense Charles Taylor de que a democracia é a única alternativa para alcançar o reconhecimento do outro, ou seja, da pluralidade encontra-se malograda. Prova disso é o anti-multiculturalismo crescendo ao redor do mundo justamente pela via democrática. Eis o vício pouco evidente da “cracia” do “demos”: basta a maioria querer o mal – ou ser levada a querê-lo – e, volià, o mal é eleito. Não nos esqueçamos de que foi a democracia que colocou Hitler no poder!

Antes, porém, de sustentar, covarde e defensivamente, que são Trumps, Le Pens e Bolsonaros que reinauguram, deliberada e verticalmente, o extremismo monocultural, é bom considerar a possibilidade de que esta onda anti-multiculturalista que eles surfam notória e oportunisticamente na verdade é o cúmulo de milhares de marolas individuais anônimas formadas aos poucos ao redor do mundo. O diabo não inventa inferno algum. É apenas mais um danado que, percebendo-se rodeado de muitos outros iguais, apenas furta a coroa.

Como, por conseguinte, não é cortando as cabeças de algumas poucas figuras protagonistas que conseguiremos parar o tsunami anti-multicultiural, uma vez que este processo nasce nas milhões de cabeças anônimas que apenas encontram representação naquelas figuras espetaculares, a visão mais realista, e triste, é que, doravante, e por algum tempo pelo menos, viveremos em um mundo que, novamente caça bruxas.

O anti-multiculturalismo tira da tumba um mundo monológico, radical e cruel, no qual a Klu Klux Klan poderá queimar negros na cruz – casas de negros já começaram a ser incendiadas nos EUA um dia depois da eleição de Trump; onde imigrantes ou descendentes de imigrantes serão alienados do humano e universal direito de ir e vir – fato para sírios, iraquianos e afeganistãos, e agora, com Trump, mexicanos; e onde gays, lésbicas e transexuais poderão ser assassinados, ou, com miserável sorte, proibidos de viverem seus desejos e orientações sexuais.

O mundo cosmopolita nos últimos anos tanto condenou o radicalismo religioso fundamentalista, que acabou encarnando ele mesmo o seu maior fantasma. Retorno do reprimido? Pelo jeito sim. Como, porém, colocar esse mundo doente no divã para que, percebendo o seu bárbaro sintoma anti-alteridade, possa atravessar o seu trauma para finalmente se ver livre dele?

A psicanálise tem a nos dizer algo que, nesse momento de ascensão anti-multicultural, é assaz desanimador, qual seja, que antes da cura tem de haver o desejo de ser curado. Esse desejo, não obstante, pressupõe a consciência da doença. O problema, contudo, é que os monoculturalistas vivem hoje, fortemente, a chamada fase da negação. Iludem-se de que são a cura para “o” problema do mundo para se alienarem do fato de que eles mesmos são o maior e pior câncer. O pior de tudo é que confrontá-los nessa fase só faz com que, autodefensivamente, agarrarem-se ainda mais ao mal que os atravessa.

Conseguirá a parte sã do mundo fazer como os psicanalistas, isto, é aguardar pacientemente até que o anti-multiculturalismo encontre-se em sua neurose e a assuma; então deseje curar-se dela; para enfim iniciar o seu processo de recuperação? Ou, antes, o mundo que ainda é e que quer ser multicultural precisa apenas ser um tanto menos ortodoxo, sem dizer um tanto mais subversivo em seu multiculturalismo a ponto de recusar, e com a mesma violência, especificamente os anti-multiculturalistas que o recusa?

Por hora, a via não pode ser, como quer Charles Taylor, democrática, pois, basta olhar pela janela do presente, a democracia está sendo justamente o veículo dessa recusa ao outro. Diante da radicalidade anti-multicultural, manifesto-me em favor de uma tirania multicultural declarada. Afinal, um tirano que obrigue todos a aceitarem-se mutuamente, e só quem não quiser obedecê-lo que desapareça, é absolutamente preferível comparado aos os frutos podres de uma democracia doente cuja única opção que oferece à pluralidade é: desapareça. Quem mais merece o bye-bye despótico, o multiculturalismo ou a sua antítese?

Trump e o maquiaveliano retorno à origem.

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Donald Trump presidente dos Estados Unidos é um trauma político inclusive para os seus próprios eleitores, pois o bilionário venceu não por conta de virtude política alguma, mas, ao contrário, justamente pelo seu despotismo escancarado. A defesa pública e violenta da superioridade branca, masculina, heterossexual e aristocrata baseada apenas na opinião contingente do próprio Trump é o que senão a reencarnação à la americana do despótes? A melhor coisa a ser feita a partir do resultado das eleições norte-americanas, e talvez a única, é entender por que a nudez do déspota venceu a fantasia do político.

Traumático, sobretudo, é que, do belvedere da crise de representatividade política que boa parte do mundo civilizado atravessa, a escolha por Trump seja a mais racional, uma vez que, como disseram muitos e esclarecidos comentadores, “Hilary é o mal com máscara; Trump, o mal desmascarado”. Assim como, psicanaliticamente, não se supera um trauma sem atravessá-lo corajosamente, assim também, politicamente, a superação da atual crise de representatividade parece estar exigindo que se comece justamente pela má-representatividade, de forma assumida, cruelmente desnudada.

Se os políticos não conseguem mais representar os seus eleitores como estes esperam, mas, como cada vez mais se vê, asseguram prioritariamente os interesses daquilo que o Ocuppy Wall Street chamou de o 1%, é porque a relação política entre a massa de representados e seus representantes está corrompida. E como se ver livre do inimigo votando justamente nele? Trump foi a alternativa apolítica, e por isso mesmo trágica, para esse dilema. Como, entretanto, a tragédia trumpeana pode ajudar a resolve o problema da corrupção da representatividade política?

Nicolau Maquiavel dizia que para se combater a corrupção em uma república era necessário um retorno à origem dessa república. Um retorno lógico, e não cronológico; não farsesco, mas, autenticamente trágico. Para o filósofo italiano, Roma só era a maior e mais “eterna” porque tinha a virtude de retornar sistematicamente à sua origem trágica, qual seja, o fratricídio de Remo por Rômulo. Mutatis mutandis, não estão os americanos fazendo exatamente isso com a sua res pública ao elegerem Donald Trump, isto é, dando um maquiaveliano “passo para trás”, como quem toma distância para o salto necessário, passo retrógrado sem o qual não superarão o abismo da corrupção que percebem entre eles e os seus representantes políticos?

Para Maquiavel, uma república é virtuosa enquanto suas leis são capazes de serem sustentadas por suas instituições. O problema é que as leis são dinâmicas, mudam conforme a necessidade pública, mas as instituições, ao contrário, são estáticas. Desse modo, com o tempo, as instituições não conseguem mais fazer valer as leis. E é aí que cresce o vício da corrupção. Tentar resolver tal corrupção sem retornar à origem seria o mais abjeto reformismo; algo como dar uma demão de tinta nova sobre a velha casa carcomida. Retornar ao momento fundacional, em troca, é fazer a ruína ruir, fortuita e totalmente, para só então haver a oportunidade de se reconstruir a res pública desde seus alicerces.

E isso porque, segundo Maquiavel, é só no ato fundacional de um estado que lei e instituição coincidem. Somente nesse átimo não há espaço para a corrupção. No exemplo excelente do filósofo, Roma ressincronizava  leis e instituições, e portanto se via livre da corrupção, sempre que retornava à sua raiz violenta/fratricida, recolocando-se a questão fundamental, qual seja: Rômulo não mataria Remo por quê? Como, porém, Rômulo cometeu o fratricídio, os romanos reencontravam nas respostas que davam  a essa pergunta a razão de ser do seu estado.  Por mais angustiosamente trágico que o fosse o “revival” lógico desse “momentum” violento fundacional, nele a “Cidade Eterna” refundava-se livre da corrupção.

Agora, como Trump presidente faz esse serviço aos norte-americanos? Obviamente, a razão fundacional dos Estados Unidos é outra que a de Roma. Foi para pôr fim ao despotismo colonizador do Império Britânico que os Estados Unidos se independizaram. Jaz aí a razão de ser da República Constitucional Federal dos Estados Unidos da América. E é a ela que, segundo a pragmática maquiaveliana, os sobrinhos do Tio Sam retornam ao se sujeitarem democraticamente a um governo como o de Trump. O apolitismo declarado do magnata topetudo porventura não sujeita novamente os EUA a espécie de rei despótico todo-poderoso, algo como outrora estavam sujeito aos impérios da coroa britânica?

Elegendo Trump, os norte-americanos escolheram o protagonista perfeito para a tragédia que com sorte fará com que reencontrem – não se sabe todavia em que ato – a razão de ser do polités, e a civilizada vantagem deste sobre o despótes. Assim fizeram os antigos gregos quando inventaram a política. Assim também precisam fazer os americanos – mas não só eles! -, pois se a política perde o seu jaez virtuoso, é somente porque o despotismo, embora espetacularmente presente, mascara-se, e isso para poder ser tão ou mais despótico.

A razão de ser da política é ser a alternativa civilizada ao despotismo. No entanto, quando a civilização escolhe um déspota declarado, isso se dá não porque optaram entre este e um político stricto sensu, mas, antes, porque não havia político stricto sensu na jogada, somente déspotas, um com máscara, o outro sem. Mesmo que o que as pessoas menos desejem para si mesmas é estarem sujeitadas aos desígnios de um déspota, quando isso é inevitável ao menos hão de preferir um algoz que não dissimule o seu despotismo. Hilary seria tão ou mais despótica que Tump, mas os americanos estariam estrategicamente alienados disso. Por pior que seja, a verdade venceu, ainda que traumática.

O “White Trash”, isto é, a massa de eleitores bancos, homens e sem formação superior que elegeram Trump fizeram quiçá o maior favor ao futuro político daquele país. Como não tinham mais confiança nos representantes que há muito os decepciona; como a representatividade política é hoje uma instituição corrompida; agora ao menos os norte-americanos não vão se decepcionar em termos de representatividade. Elegeram o real em sua crueza desnudada. Mesmo que o “White Trash” americano desconheça Maquiavel, a sabedoria do italiano os atravessou intuitivamente nesse retorno trágico à origem despótica. E isso porque quando o polités está doente de corrupção, precisa de doses traumáticas de despotismo para civilizar-se novamente.

 

Trump. Politicamente incorreto ou despoticamente correto?

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Donald Trump é politicamente incorreto? Ou dizer isso dele seria um elogio que ele sequer merece? O filósofo Slavoj Žižek, no texto “Trump e o retorno do politicamente incorreto”, usa o patético bilionário candidato à candidato à presidência dos EUA para exemplificar a “tendência de aviltamento de nossa vida pública”. Realmente, ninguém melhor –ou pior- do que Trump para, publicamente, fazer com que os aviltamentos envolvidos no racismo, na xenofobia e no machismo, só para citar alguns, tomem novo fôlego e ameacem a sociedade americana e, por consequência, espreitem o resto do mundo. Para Žižek, no entanto, os “estouros vulgares” de Trump servem apenas para “mascarar a incontornável ordinariedade de seu programa”. Só que a vulgaridade explosiva de Trump não para por aí.

O problema do texto de Žižek é dizer que Trump é politicamente incorreto, pois isso pressupõe que o bilionário de fato age politicamente, para só então, a posteriori, sua atuação política poder ser considerada incorreta. Ao assumirmos peremptoriamente que Trump é politicamente incorreto podemos estar nos alienando de uma verdade muito mais profunda e radical, qual seja, que Trump não age politicamente, muito embora esteja agindo na ágora política. Para não sermos enganados pelos jargões de efeito, é melhor esclarecer a diferença entre agir politicamente e agir não-politicamente, ou o que é o mesmo, despoticamente.

Aqui é preciso lembrar, todavia com a ajuda de outro filósofo, Baruch Spinoza, que na natureza não há certo nem errado, bem nem mal, mas só coisas e ações que em si mesmas são somente verdadeiras porque reais, e que certo e errado, bom e ruim, são apenas atribuições posteriores, dadas de acordo com os valores de cada um. Essa lembrança spinozana deve servir para esclarecer-nos de que a ação não-política não é má nem errada por natureza, assim como o acerto ou o bem não estão necessariamente presentes na ação política.

É fundamental também lembrarmos que a política foi uma invenção grega do século VI a.C. alternativa às relações despóticas entre os homens. O homem político, isto é, o “polites”, era aquele que não mais resolvia os seus problemas valendo-se da força bruta. O “polites”, isto é, o político substitui o “despotes”, ou seja o déspota. Discurso no lugar de violência, ou, em outras palavras, civilidade no lugar de barbárie, eis o movimento que fez surgir a política na antiguidade mediterrânea. Infelizmente, aqueles virtuosos políticos gregos não deixaram de ser viciosamente despóticos na esfera doméstica, com seus escravos ou com os estrangeiros, coisa que, infelizmente, tampouco a nossa contemporaneidade conseguiu transformar em passado.

Para a pergunta que Žižek, no seu texto, coloca na boca dos politicamente incorretos, qual seja, “mas por que falar de educação, polidez e modos em público hoje, num momento em que estaríamos diante de problemas muito mais urgentes e ‘reais’?”, os gregos antigos já tinham a resposta certa que o filósofo contemporâneo faz parecer ser nova e sua, qual seja: “bem, porque os modos importam sim – em situações tensas, são uma questão de vida ou morte, uma linha tênue que separa a barbárie da civilização”. Agora, se a polidez e os bons modos são sempre necessários à civilização, é porque as suas ausências são sempiterna e resistentemente presentes: é porque não conseguimos deixar de ser bárbaros, despóticos e grosseiros que precisamos tanto exercitar civilidade, política e polidez. É uma questão de vida ou morte!, dizem-nos os políticos antigos e o filósofo contemporâneo.

A relembrança da gênese da política deve ajudar na recolocação da pergunta: Trump age politicamente –para então poder fazê-lo de modo incorreto? Agora podemos responder com mais propriedade se ele age politicamente, ou, em troca, apenas age despoticamente. Entretanto, no caso de ser genuinamente despótico, faz sentido perguntar se tal despotismo é correta ou incorreto? Ou, antes, quando um déspota age incorretamente, isto é, da perspectiva do despotismo não é absolutamente despótico, e a sua natureza bruta deixa de se impor sobre os demais, não estaria ele automaticamente sendo político? Os gregos pré-políticos não teriam sido déspotas incompetentes pelo fato de terem começado a resolver as suas diferenças mediante o verbo e não mais por meio da violência? Se sim, bendita incompetência!

Trump, mediante os seus racismo, xenofobia e machismo outra coisa não faz que agir violentamente e sem polidez alguma contra hispânicos, negros, muçulmanos, gays e mulheres. Não é o caso, portanto, de dizer que o bilionário americano é politicamente incorreto, visto que sequer é político, mas totalmente despótico. É de sua grande e brutal força econômica e midiática que ele se vale para tentar impor, despótica e verticalmente, os seus anacrônicos valores individuais sobre os valores que, contemporânea e horizontalmente, a sociedade americana –mas não só ela- tenta construir para si mesma.

Desculpe-me, Žižek, mas Donald Trump é politicamente incorreto apenas metaforicamente, pois, literalmente, é absolutamente despótico. Melhor dizendo, corretamente despótico ao forçar seus propósitos pessoais contra uma sociedade inteira, ignorando deliberadamente os contradiscursos mais racionais. Chamar Trump de politicamente incorreto é impróprio em se tratando de alguém que sequer consegue ser político. Na verdade, ele é um déspota corretíssimo que, hoje, usucapia o parlatório político para, ao contrário dos gregos “politikos”, afirmar a violência, a estupidez e a miséria retórica no lugar da civilidade, da polidez e da virtude do diálogo político.