Esquerdas brazukas

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Quando se afirma que um partido político não é “mais” de esquerda, de onde exatamente é proferida essa crítica? Do mesmo chão material e contraditório a partir do qual esse tal partido atuou e atua, ou, em vez disso, do topo de algum ideal abstrato que não muito valentemente preestabelece o que é e o que deve ser “a esquerda”, independente das contingencias da realidade?

No primeiro caso, a crítica é pertinente pois não exige do criticado conhecimento nem performance alguns que já não sejam conhecidos nem tenham sido “performados” por quem critica. No segundo caso, entretanto, a crítica é vazia porque solicita do criticado conhecimento e performance que quem o crítica ou não exigiu de si, ou não teve oportunidade de conhecer nem “performar” antes de criticar.

Muitos são os “esquerdistas” que sustentam que “o PT não é mais um partido de esquerda”. Assim falam pois pensam que os governos de Lula e Dilma foram demasiadamente permissivos com o liberalismo econômico, que não investiram na construção de uma consciência de classe àqueles que dão nome ao partido, quais sejam, os trabalhadores, e que não conseguiram escapar ilesos do mar de lama da corrupção brasileira.

Quem critica o PT do belvedere teórico de Marx e Engels ou de algum parlatório moralista não tem papas na língua para afirmar que o PT não é “mais” um partido de esquerda. Agora, quem acha que a prática vale mais que a teoria, certamente terá dificuldade em sustentar que o PT deixou de ser de esquerda ao considerar a aventura igualitária inédita que este partido trouxe e ainda está tentando trazer ao Brasil.

Considerando-se, por exemplo, a exclusão do Brasil do mapa mundial da fome, o revolucionário acesso ao ensino superior desde que o ENEM foi instituído, a energia elétrica e a água potável que finalmente chegaram aos confins do historicamente desassistido nordeste brasileiro, e, recentemente, a lei que aumenta o imposto sobre ganhos de capital, sancionada em 18 de abril pela presidenta Dilma Rousseff, de que lado da régua política esquerda-direita o PT deve ser locado?

Mesmo levando-se à risca a teoria marxista, do PT ainda não pode ser dito que não é “mais” de esquerda. Se, por um lado, o Partido dos Trabalhadores não realizou a revolução rápida e violenta que lemos no Manifesto Comunista, por outro, a revolução lenta e histórica que pode ser lida n’O Capital ainda mantém o PT dentro do necessário horizonte revolucionário.

A revolução rápida e violenta, que muitos consideram “a” utopia do sistema marxista, tem o vício de não contar com as contradições do inimigo para dar cabo dele. Pretende pulá-las. Entretanto, ao não serem levadas em conta, o revolucionário tampouco leva em conta as suas próprias contradições, que, estas sim, devem ser conhecidas e superadas antes de se atacar as do adversário.

Já a revolução histórica, que trabalha árdua e ininterruptamente sobre e contra as contradições do inimigo, que, não obstante, pode ser acusada de “reformista”, essa tem ao menos a virtude de poder conhecer as suas próprias contradições nesse processo, de reformá-las, melhor dizendo, superá-las, paralelamente ao conhecimento e à superação das contradições do inimigo.

E se a abertura liberal do PT nos seus três governos e meio, o não investimento imediato numa consciência de classe total, até mesmo a vulnerabilidade à corrupção, forem justamente as contradições desse jovem partido que, primeiro, devem ser conhecidas, não teoricamente, mas na prática concreta, para só então poderem ser verdadeiramente superadas?

Um partido de esquerda deve nascer pronto e nunca dispor do direito de evoluir? Não é isso que estão exigindo do PT?

O Partido Comunista Brasileiro, com efeito, é o que mais pode criticar a “não esquerdice” do PT. No entanto, o forte e íntegro idealismo do PCB nem de perto produziu as mudanças materiais concretas que o seu alvo de crítica implantou. É muito fácil permanecer íntegro longe da realidade. Bem mais difícil, corajoso, e por que não dizer verdadeiramente revolucionário é construir essa integridade com as mãos sujas do sujo barro da realidade.

Da segurança de um ideal de esquerda é fácil dizer que o PT não é “mais” um partido de esquerda. Agora, e se o verdadeiro esquerdismo só ganhar sentido a partir do chão material sobre o qual ele é tentado, chão esse que em momento algum está livre de contradições, sejam as da realidade que se deseja revolucionar, sejam ainda as do próprio exercício de um diretiva de esquerda?

O próprio Lula é um exemplo concreto desse esquerdismo material. Entre escapar da miséria nordestina e ser explorado pela indústria metalúrgica paulista, o ex-presidente “analfabeto” elegeu o pragmatismo como via revolucionária. Se tivesse se aferrado apenas a ideias revolucionários anacrônicos e eurocêntricos provavelmente não teria tirado tantos milhões de pessoas da miséria nem colocado outros milhões na universidade pública, coisas que nenhum idealista de esquerda fez no lugar dele.

Idealismos à parte, Lula e o seu PT são as forças de esquerda mais efetivas da história do nosso país, apesar da intimidade que tiveram –e ainda têm- com o liberalismo, da consciência de classe trabalhadora até aqui não investida como prega a cartilha marxista, e da corruptividade com a qual se veem envolvidos uma vez imersos na não menos corrupta estrutura política que faz a história do Brasil.

E se a verdadeira revolução for nada além de processo histórico de tentativas e erros em busca de um futuro menos errático?

Portanto, se é de um ideal de esquerda que muitos insistem que o PT não é “mais” um partido de esquerda, essa crítica, digamos assim, platônica, que acha que a mudança material concreta realizada pelo PT no Brasil deveria ter se dado de outra forma, esses críticos deveriam, em primeiro lugar, experimentar o gosto amargo que é conduzir um país cercado de velhas oligarquias. Em segundo lugar, realizar uma mudança material tão ou mais efetiva que a que o PT construiu. Só assim teriam o direito de dizer que o PT é “menos” de esquerda do que eles.

Sexualidades idealizadas

O que define a sexualidade de uma pessoa? Suas relações afetivas e ou sexuais objetivas, ou, antes, simplesmente a ideia que ela mesma faz – ou mesmo quer fazer – de sua própria sexualidade, ou seja, um critério meramente subjetivo? No primeiro caso, temos uma definição baseada em um juízo materialista correspondente às relações concretas que a pessoa tem. Já no segundo caso, ao contrário, a sexualidade é fruto de um idealismo, isto é, é definida apenas pela ideia que o sujeito tem de sua própria sexualidade, não importando se suas práticas sexuais convenham ou não com tal ideia.

O idealista, entretanto, pode findar chamando “urubu de meu louro”. Por exemplo, afirmar que é heterossexual enquanto mantém – ainda que esporadicamente – relações sexuais com alguém do mesmo sexo que ele. E não é exatamente isso que vemos nos “G0y” (assim mesmo, escrito com zero), homens que, por um lado, se dizem heterossexuais, mas, por outro, não têm problema algum em assumir que se relacionam sexualmente e inclusive afetivamente com outros homens?

A ideia aqui não é restringir ninguém de realizar seus desejos sexuais, mas problematizar o fato de alguém vivenciar concretamente uma sexualidade determinada e, ao mesmo tempo, determiná-la como se fosse outra. Novamente os “G0y”: homens que fazem sexo com homens e mulheres mas que não se consideram bissexuais. Haveria, porventura, alguma coisa de errado ou de aviltante no conceito de bissexualidade: a atração afetiva, seja ela sexual, romântica ou emocional, por pessoas de ambos os sexos?

Por outro lado, temos que o conceito de bissexualidade oferece a algumas pessoas como que uma aura virtuosa. Conheci duas meninas, uma de nove e outra de doze anos de idade, que nunca fizeram sexo, tampouco se apaixonaram, seja por um menino, seja por uma menina, mas mesmo assim afirmam categoricamente que são bissexuais. Não estamos lidando aqui com um caso de idealismo puro?

O fato de as duas garotas definirem previamente as suas bissexualidades, melhor dizendo, pressuporem-nas antes mesmo de terem qualquer experiência concreta, empírica, evidencia, de um lado, que se trata apenas de uma ideia desconectada da realidade. Entretanto, de outro, aponta para o perigo de que as suas sexualidades genuínas sejam pautadas por essa apressada ideia, até mesmo forçadas por ela.

Porventura não seria melhor as duas garotas esperarem até serem espontaneamente atravessadas por suas sexualidades, e, baseadas nesse atravessamento natural, perceberem com qual, ou com quais sexos as suas sexualidades são concretamente realizadas, para só então, lastreadas nas suas experiências, afirmarem que são bissexuais – ou hetero, ou homo? Da mesma forma, não seria menos confuso alguém que transa com ambos os sexos definir-se como bissexual em vez de chamar essa prática de um “nome fantasia” qualquer, como fazem os “G0y”?

No entanto, o que vemos é justamente um crescente espaço de confusão no que tange a definição que cada um faz de sua própria sexualidade: bissexuais praticantes não aceitando o conceito que lhes cabe – os “G0y” -, e pessoas que sequer se “inauguraram” na afetividade sexual atribuindo a si mesmas sexualidades que sequer podem vir a se expressar nelas, ou através delas – as duas meninas.

Idealismo e materialismo são modos antagônicos de se pensar alguma coisa. Por isso quem define a sua sexualidade de modo idealista não computa – ou não quer computar! – as suas práticas sexuais concretas. O antagonismo resultante dessa confusão, nos nossos exemplos, se expressam da seguinte forma: os “G0y” são heterossexuais idealizados “e” bissexuais materializados; as duas garotas, bissexuais idealizadas “e” pré-sexuais materializadas.

Onde exatamente jaz a impossibilidade de muitas pessoas assumirem as suas sexualidades concretas, refugiando-se covardemente em sexualidades idealizadas? No preconceito que ainda impera na nossa sociedade? Os “G0y”, na verdade, não estariam temendo serem tomados por bissexuais, e justamente por esse motivo se definem com esse “apelido”? E as duas garotas, não estariam tentando esquecer o fato de ainda não terem suas sexualidades concretizadas determinando peremptoriamente que são bissexuais ?

Infelizmente, vivemos em um mundo onde o sexo é superestimado. E a sexualidade, outrossim, não escapa de tal escrutínio. Ora, se materialmente algo é “X”, dizer que é “Y” ou “Z” é só um malabarismo das ideias. Todavia, em um mundo no qual a sexualidade é supervalorizada, muitas pessoas “manipulam-na” idealmente para nunca ficarem aquém das expectativas desse mesmo mundo.

Por isso a heterossexualidade idealizada dos “G0y” não está nem aí para o fato de eles serem concretamente bissexuais. Da mesma forma, a bissexualidade idealizada das duas garotas não se preocupa com o fato de que elas sequer conhecerem as suas dimensões sexuais. Podemos ou não dizer que os “G0y” apenas reciclam o velho conceito “gay no armário”? E das duas garotas, por acaso, apenas não ressignificam o conceito clássico de histeria: eu quero tal coisa (a definição de minha sexualidade) mesmo que eu não precise dessa coisa ainda?

A pergunta que eu gostaria que os “G0ys” se colocassem é a seguinte: qual é o problema da definição de bissexualidade, e até mesmo de homossexualidade, para que resistam em conformarem-se nelas? Às duas garotas, a pergunta seria: qual é o problema em ainda não terem uma sexualidade naturalmente estabelecida? A ambos, pediria que considerassem as suas práticas sexuais concretas – ou a ausência delas, no caso das duas garotas – para ver se ainda assim as sexualidades que declaram idealmente se sustentam no mundo material onde elas são, ou serão exercidas.