Lugar, um ponto arquimediano.

O espaço é o meio físico universal de cujas três dimensões a vida se apropria para devir em experiências, bem como para gerar sentidos e valores inexistentes no universo. Pois bem, a vida, conquistando o espaço, compartimenta-o em lugares. Entretanto, que vandalismo é esse cometido contra a integralidade espacial, cujas ruínas são os lugares a partir dos quais existir passa a significar viver?

Da lei newtoniana, “dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço”, fica claro que lugar não é espaço, mas o que surge da ocupação deste por um corpo. Precisamos, todavia, transcender a ideia primeira de corpo material para comprometer definitivamente a vida com o lugar – no espaço – que ela inaugura, pressupondo também corpos de sentido, de experiência, de valor, etc. Afinal, concordando com Zygmunt Bauman, “é nos lugares que se forma a experiência … , que ela se acumula, e que seu sentido é elaborado, assimilado e negociado”.

Deve ser dito que um ser inanimado, por exemplo, uma pedra, não cria um lugar pelo fato de existir no espaço; simplesmente o ocupa. Somente matéria não é suficiente para gerar um lugar. É preciso corpos com vida, com desejos, com objetivos. Antes, “o lugar das coisas” já é uma invenção da vida: a cartografia do espaço de acordo com as necessidades dela.

Entretanto, a vida está subjugada a outra dimensão universal, qual seja: o tempo. Apesar de tudo o que vive compartimentar o espaço universal a seu bel-prazer – em lugares onde se dorme, bebe, nasce, etc. -, o tempo também é comprometido nesse processo. De modo que o lugar é não é apenas uma impertinência em respeito ao espaço, mas também uma aventura contra o tempo. Isso porque a vida já é uma irreverência em relação à existência.

Para entender a relação que se desenrola entre o espaço e o tempo infinitos e os nossos pontuais e efêmeros lugares, uma afirmação de Bauman: “é nos lugares, e graças aos lugares, que os desejos se desenvolvem, ganham forma, alimentados pela esperança de realizar-se”. Ora, se o desejo compartimenta o espaço em lugares em função de se satisfazer, e se, sobretudo, o desejo é feito para ser satisfeito – portanto suprimido -, então, é no tempo da satisfação do desejo que o lugar solapa e é reintegrado ao espaço indeterminado.

No entanto, porque a vida é uma sucessão ininterrupta de necessidades e desejos, nunca se permanece na abstração espacial. Novos lugares são abertos no espaço no toque de novos desejos. Afinal, somente na ausência de propósito vital há o espaço indiviso. Porém, não a vida. Ela, pois, é a conversão temporânea do espaço integral do universo em pontuais moedas-lugares com as quais negocia, através de suas experiências, sentidos e valores com a existência.

Há, porventura, algo mais concreto do que os lugares onde a vida acontece? Todo resto, com exceção dos desejos, não se colore de contingência diante da determinação espacial? Inclusive o tempo parece escoar em intensidades diferentes de acordo com a dinâmica de cada experiência vivida. Já o lugar, não. Vida, desejo e lugar, contrariando Newton, ocupam sim o mesmo lugar no espaço. Geralmente os homens chamam essa mistura de “Eu”.

Arquimedes, 250 anos antes de Cristo, disse: “Deem-me um ponto de apoio e moverei a Terra.” Pois bem, esse ponto arquimediano não só carece de um lugar, como também representa muito bem a função dos lugares à vida. Basta, portanto, um ponto de apoio, isto é, um lugar apontado, para que a existência possa ser movida de sua indeterminação até uma terra inteira de sentidos, de valores e de experiências determinadas.

Cobaias de Zuckerberg

Nessa semana foi divulgada uma experiência que o Facebook fez com 700 mil de seus usuários sem o conhecimento nem o consentimento deles. Metade deles recebeu somente postagens positivas nos seus “feeds”, enquanto a outra metade, negativas. Cada um dos dois grupos, depois do teste, seguiu postando e se envolvendo com material de mesma qualidade da experimentada nele. O site fez 350 mil pessoas mais felizes e, em mesmo número, mais tristes, sem que nenhum deles soubesse dessa manipulação que, segundo a empresa, trata-se de pesquisa para testar novos produtos. Até aqui, os produtos testados estão sendo os próprios usuários.

Somos os produtos-mercadorias do Facebook, e devemos estar tristes ou alegres conforme a necessidade dele, não mais de acordo com as nossas. “Quando uma nova forma de vida social surge, derrubam-se os velhos deuses”, disseram Adorno&Horkheimer; e, nas mãos de Zuckerberg, aquele deus que designava nossos sentimentos, ou seja, nós mesmos, é mercadologicamente derrubado. Por conseguinte, no Facebook, econômica e culturalmente “os homens tornam-se uma espécie de material, como é a natureza inteira para a sociedade”, como já haviam apontado os filósofos alemães, para quem “as particularidades do eu são mercadorias socialmente condicionadas, que se fazem passar por algo de natural”.

Ao equalizar sorrateiramente os sentimentos e as tendências dos seus usuários, o Facebook assegura-se de um mercado consumidor ainda mais alienado das próprias necessidades. Da publicidade Zuckerberg pescou o essencial: criar uma situação na qual desejamos exatamente aquilo que ele precisa que desejemos; e consoante à afirmação de Adorno, “o aparelho econômico já provê espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento humano”. Logo, nos nossos “news feed” facebookianos, esse vil estratagema capitalista é perfeitamente dissimulado sob as “selfies” e as opiniões dos nossos amigos.

O que Facebook quer é a mesma coisa que a igreja cristã e os psicanalistas já queriam dos seus seguidores, isto é, o conhecimento e o controle sobre aquilo que há de mais íntimo neles, ou seja, seus sentimentos. No antigo confessionário, secreta e seguramente os indivíduos ofereciam seus pensamentos e sentimentos à análise do padre. A psicanálise sintomaticamente ampliou e capitalizou o confessionário, Hoje, contudo, confessamo-nos virtualmente nas “timelines” que não guardam segredo algum – pelo contrário, é para que sejam públicos que publicamos nossos pensamentos e sentimentos. Isso “porque os indivíduos não são mais indivíduos, mas sim meras encruzilhadas das tendências do universal”, contribuem Adorno&Horkheimer. Assim, Mark domina o mundo.

O Facebook analisou secretamente as ações dos seus usuários, manipulou-as, e quando finalmente a estratégia é descoberta, ele reabsorve a reação das pessoas em relação à sua ação indevida para, então, retornar ao laboratório com mais propriedade. Afinal, conforme escreveu Adorno, “a falta de consideração pelo sujeito torna as coisas fáceis para a administração”. Na natureza zuckerberguiana nada se perde, nada se cria, tudo se capitaliza! E porque não dizer: se canibaliza? Sim, trata-se de um canibalismo rede-social que se alimenta de sua própria matéria, ou seja, nossos desejos, pensamentos e sentimentos. Essa autofagia potencializa-se no fato de, segundo Adorno, “o sujeito recriar o mundo fora dele a partir dos vestígios que o mundo deixa em seus sentidos”.

“Todo gozo é um abandono de si mesmo a uma outra coisa”, disseram Adorno&Horkheimer. Por consequência, a tática facebookiana subversivamente apraz a seus seguidores no sentido de que “a decisão que o indivíduo deve tomar em cada situação não precisa mais resultar de uma dolorosa dialética interna; as decisões são tomadas pela hierarquia, pelo esquema da cultura de massa”, colocaram os dois pensadores. Isso se dá, segundo eles, porque “a regressão das massas, de que hoje se fala, nada mais é senão a incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos”, e de nos entregarmos cegamente às mediações objetificadoras em toda e qualquer interação a que nos propomos.

Os dois filósofos da Escola de Frankfurt há muito nos alertaram de que “o próprio acaso [já] é planejado; ele serve como álibi dos planejadores e dá a aparência de que o tecido em que se transformou a vida deixa espaço para as relações espontâneas e diretas entre os homens”. No entanto, acreditamos piamente que o acaso a Deus pertence e que as relações “espontâneas entre os homens” pertencem aos homens e às suas espontaneidades. A fortuna de Zuckerberg ri da ingenuidade de seus mais de um bilhão de usuários mundo afora. O ser humano, contudo, “só se reencontrará consigo mesmo”, dizem Adorno&Horkheimer, “quando renunciar ao último acordo com esses inimigos e tiver a ousadia de superar o falso absoluto que é a dominação cega”.