Sexualidade. Orientação ou status?

O velho preconceito em relação à homossexualidade e à bissexualidade sobrevive, seja na inocente naturalização da expressão “viado”, seja na barbaridade fundamentalista-islâmica que arremessa homossexuais do topo de prédios. Temos, entretanto e felizmente, algumas ilhas nas quais a sexualidade das pessoas pode se expressar livremente sem que elas sejam discriminadas ou punidas por isso.

O fato de algumas pessoas poderem afirmar e exercer sem medo as sexualidades que cultural e historicamente foram e ainda são indevidamente tidas como proibidas, doentias, e até contrárias ao desejo divino, certamente representa, não a vitória na guerra contra o preconceito, mas uma fundamental evolução entre batalhas.

Entretanto, dessa liberdade é bom que não se faça abstrações indiscriminadas, pois ela trata de concretudes demasiado estruturais nas vidas das pessoas, ou, do contrário, abre-se aí espaço para novos preconceitos. Será mesmo, como diz o ditado popular, que quem nunca comeu melado, quando come necessariamente se lambuza? Se sim, que lambuzo seria esse em se tratando de liberdade e afirmação sexual?

Pensei nisso quando três adolescentes – com dez, treze e quinze anos de idade – disseram que eram bissexuais sem, no entanto, terem transado, ou sequer se apaixonado por alguém do mesmo sexo que eles. Assim se afirmam pois, privilegiados que são, sabem desde já que a bissexualidade não se limita apenas à atração sexual por pessoas de ambos os sexos, mas pode se dar também pelos vieses afetivo, romântico, emocional.

Agora, se a orientação sexual de alguém é a realidade a priori em relação a qual tanto a afetividade quanto a sexualidade ativa são expressões a posteriori, o respeito à própria sexualidade deve necessariamente seguir a orientação sexual espontânea de cada um. Do contrário, ou a pessoa é coagida a uma sexualidade que não a sua, ou a sua sexualidade é tratada como se fosse uma questão de opção.

Entretanto, a expressão “opção sexual” é considerada impertinente, pois a sexualidade é uma dimensão assaz imanente para que alguém possa optar por ela como se estivesse diante de um cardápio. Ora, se fosse simples assim, os homossexuais que historicamente sofreram preconceito certamente teriam optado por uma sexualidade que não lhes trouxesse tantos e indevidos problemas familiares, sociais, sexuais, etc.

“Orientação sexual”, em troca, é um nome que não responsabiliza as pessoas pelas suas sexualidades, dado que passa longe da deliberação prévia acerca do assunto. Não diz não respeito, portanto, a erro ou a acerto. Por opção é possível trepar com pessoas de ambos os sexos. Todavia, se essa é orientação sexual de uma pessoa, a mesma coisa pode se dar sem ela ter de optar por isso. Talvez a verdadeira liberdade sexual seja tanto mais livre quanto menos ela for uma questão de escolha ou de opção.

Então, depois de os três adolescentes dizerem que são bissexuais sem, contudo, terem se apaixonado nem transado com alguém do mesmo sexo que eles (a de dez anos sequer com o sexo oposto), perguntei-me silenciosamente se elas estavam seguindo genuinamente as suas orientações sexuais ou se, antes, estavam lidando com o assunto como se fosse mesmo mera questão de opção.

Conhecendo o esclarecimento intelectual e o círculo de relações delas, sei que podem viver e expressar as suas sexualidades livremente sem serem discriminadas pelos seus colegas e familiares. Para a de 16 anos, pelo contrário, a sua bissexualidade declarada era um status-pró entre os seus amigos.

Os três adolescentes em questão usufruem de uma recente&libertária realidade que para a maioria das pessoas ainda é uma utopia. Justamente por isso me pareceu possível que elas estivessem se “lambuzando” da liberdade de se afirmarem bissexuais ainda que esta não fosse a orientação sexual particular delas.

Ora, assim como os revolucionários sexuais dos anos 1960, que após conquistarem a liberdade que lhes era negada se viram obrigados a desfrutarem dela, e a qualquer custo – com preços psíquicos altíssimos aliás -, estes três adolescentes muito bem podem se sentir coagidos a se afirmarem bissexuais simplesmente pelo fato de tal orientação sexual significar uma conquista histórica da qual a geração deles é espólio bendito.

De direito, ninguém pode questionar a autoafirmação sexual de ninguém. Porém, de fato, ainda que indevidamente, eu não pude deixar de me perguntar se aqueles três adolescentes estavam tratando as suas declaradas bissexualidades mais como um status social do que como a expressão natural das suas próprias orientações sexuais.

Do mesmo modo como a vida-em-rede-social-virtual nos leva a inadvertidamente transformar em status público os nossos mais efêmeros estados particulares, a bissexualidade pode se tornar a postura deliberada e engajada de alguém que queira surfar a onda libertária que se contrapõe ao profundo e antiquado mar do preconceito que ainda afoga muita gente.

Talvez eu tenha me ocupado tanto da segura afirmação dos três adolescentes em respeito às suas orientações sexuais porquanto, na minha adolescência, eu não tinha tal certeza. Ademais, ainda hoje eu não sei o que dizer quando alguém me pergunta se eu sou hétero, homo ou bissexual, mesmo depois de ter me relacionado, afetiva e sexualmente, com homens e mulheres.

Conceitualmente, diriam, sou bissexual. Entretanto, os conceitos visam uma universalidade que desconsidera quaisquer particularidades. Embora eu desfrute de uma liberdade tal que tanto faz se me tomam por homo ou bissexual, eu mesmo faço questão de não me definir, pois outra coisa não estaria fazendo senão me encurralar em um nicho sexual no qual, aliás, eu não sou obrigado a permanecer por conta dos meus próprios discursos.

Sendo assim, penso que a orientação sexual de alguém, para ser realmente livre, deve se libertar inclusive dos parcos nomes que vulgarmente tentam conceituá-la. Em primeiro lugar, porque o desejo, se livre, é absolutamente dinâmico, e, em segundo, porque orientar a própria orientação sexual mediante um ou outro nome é coagi-la a esta ou àquela dimensão.

Não é o caso, contudo, de concebermo-nos, outrossim indiscriminadamente, enquanto pansexuais, como o roqueiro Serguei, que, entre outros, se relacionou afetiva&sexualmente com Janis Joplin, com uma árvore, e até comigo. Talvez a verdadeira liberdade sexual seja apenas aquela que, dispensando definições prévias, não é condicionada por elas. Não é isso porventura melhor, principalmente àqueles que iniciam as suas vidas afetivas-sexuais?

Se eu quisesse ser preconceituoso, diria aos três adolescentes que eles nada deveriam dizer acerca de suas próprias sexualidades, mas apenas vivê-las, e bem longe dos discursos, pois as palavras pressupõem conceitos; estes, fazem dos movimentos particulares e naturais seres estáticos, que no fim das contas figuram como se fossem status, ou o que é pior, epítetos claustrofóbicos.

Por que eu não quero – nem acho que devo – ser preconceituoso, nada disse aos três adolescentes. Além do que, independente da sexualidade através a qual eles formalmente se afirmam, ontológica e subterraneamente eles já são o que são, isto é, expressões de suas inalienáveis orientações sexuais.

Minha secreta vontade de libertá-los da necessidade de discursarem acerca de suas sexualidades, entretanto, seria no sentido de afastá-los das categorias nominais que mais servem de munição ao velho preconceito do que às próprias sexualidades deles. Lembremo-nos sempre dos radicais muçulmanos que, tendo uma definição sexual e o nome de alguém, já acham que tem o bastante para atirar indivíduos de cima de um prédio.

Assim como as palavras dos três adolescente me levaram, de certa forma, à julgá-los – e eu odeio ter que reconhecer isso! -, enquanto nos disponibilizarmos a ter a nossa dinamicidade potencial reduzida a conceitos estáticos, estamos outrossim vulneráveis a ver a nossa própria sexualidade reduzida, todavia injustamente, pelas palavras e pelo julgamento dos outros para os quais nós somos os inadmissíveis outros.

Por isso, nos diálogos que solicitam a definição da minha orientação sexual, faço questão de ser tão paradoxal quanto Sócrates, dizendo: “só sei que nada sei”, pois além de a orientação sexual de alguém ser tanto mais livre quanto menos for uma questão de opção, com o paradoxo socrático ela é ainda mais livre se não for reduzida a um objeto de conhecimento.