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O “povo” nas ruas e o povo “na rua”

povo nas ruas

“Não são só 20 centavos”, “Saúde e educação padrão FIFA”, “Fora Dilma”, “Não vai ter golpe”, “Fora Temer” e, agora -novamente -, “Diretas Já” são os (emb)lemas das grandes manifestações populares brasileiras que levaram “o povo às ruas” de 2013 a 2017. Jovens e velhos, ricos e pobres, coxinhas e petralhas, monarquistas e anarquistas usaram as ruas e fizeram nelas grandes eventos de expressão pública/política. Esses eventos, no entanto, envolveram invariavelmente a ideia de festividade. Muito embora todas contassem com pautas políticas – umas notoriamente sociais, outras inacreditavelmente elitistas -, a necessidade da política foi usada também como pretexto para espécie de carnavais cívicos.

Nas muitas manifestações de que fui partícipe, depois de os manifestantes respirarem muito gás lacrimogênio e torcerem para não serem agredidos pela Polícia Militar, invariavelmente se reuniam em torno de cervejas geladas na construção de um pseudo-heroísmo-hedonista-patriótico-revolucionário. Nas poucas que eu participei, não por concordar com suas pautas, mas, digamos assim, por interesse sociológico, via que após os manifestantes proferirem coletivamente seus despautérios pró-ditatoriais ao som de ruídos de panelas e com a Polícia Militar servindo de cenário para selfies, outro pseudo-heroísmo-hedonista-patriótico, só que dessa vez reacionário, era coletivamente construído, todavia ao redor de taças de champanhe e em restaurantes devidamente gentrificados.

A última grande manifestação popular tupiniquim desse domingo 28 de maio na praia de Copacabana pedia por Diretas já. E a festividade, como não poderia deixar de ser, também esteve presente, embalada por deliciosos shows de reconhecidos artistas e celebridades nacionais. Mais uma vez é reforçado o fato de que o “momento festa” vem sendo condição sine qua non às atuais manifestações políticas. Essa neopolítica afetivo-hedonista, que muitas vezes se confunde com uma micareta, além de desidratar politicamente a efetividade das manifestações populares, nos obriga a colocar a seguinte pergunta: que povo é esse que está nas ruas?

Essa pergunta, que não se dará por satisfeita enquanto não tiver como resposta: “um povo para o qual a vitória política é menos importante que a construção de uma narrativa pessoal digna de Facebook”, tem o propósito de evidenciar um outro povo, que também está nas ruas desde 2013, mas que, apesar de ser bem mais numeroso, pelo simples fato de não fazer festa pelas esquinas, tampouco faz celebridade nas timelines. Estou falando dos 14 milhões de desempregados que estão, literalmente, na rua. Aliás, porventura não temos aqui o estranho caso de uma metáfora literal: o maior índice de desemprego da história do Brasil botou o povo “no olho da rua”?

Com efeito, também temos esse povo, que é de outra categoria, nas ruas; povo este que, diferente do político-festivo-redesocializado, não tem condições de pagar por cervejas – muito menos por taças de champanhe – depois de sua extenuante “manifestação” diária atrás de emprego. E o seu contingente, infelizmente, só aumenta. E como procurar por trabalho não paga as contas nem enche barriga de ninguém, esse massivo desemprego tem uma consequência socioeconômica mais aparente do que as longas e frustrantes filas de emprego. E – spoiler – também nas ruas. A neoexplosão da informalidade na forma com que esse povo desempregado busca sobreviver é empiricamente perceptível nas cidades brasileiras, principalmente nos grandes centros urbanos.

Minha percepção mais aguda disso se dá em Copacabana, bairro populoso no qual vivo e onde, consequentemente, recaem mais cotidianamente minhas observações. Faz um ano que vejo o número de camelôs aumentar drasticamente pelas calçadas da Princesinha do Mar. Essa “ilegalidade” há muito se faz presente, todavia, de modo comedido e somente após o término do horário comercial – na verdade, depois que o “rapa” para de trabalhar. Atualmente, contudo, as calçadas estão lotadas de ambulantes desde a manhã até a noite. A crise econômica que levou a isso muitas vezes me fez pensar que estamos nos reaproximando do modo medieval de troca de mercadorias feito exclusivamente em ágora pública.

Noite dessas, voltando para casa em um ônibus que circula pela Avenida Atlântida, via à beira-mar conhecida, de um lado, pelo calçadão de ondas de pedras portugueses pretas e brancas mais famoso do mundo, e de outro lado, pela prostituição ao grande estilo “Katia Flávia, Godiva do Irajá, escondida aqui em Copa”, fiquei surpreso ao ver que, assim como os camelôs nas avenidas internas do bairro, também sobre as calçadas de Burle Marx na orla as prostitutas se multiplicaram, e muito. O povo desempregado, para sobreviver, vende tanto coisas na rua, quanto a si mesmo nelas.

Interessante é ver que o prefeito da Cidade (que luta para seguir mentindo que é) Maravilhosa discute publicamente e busca solução apenas para a parte do povo desempregado que lota as ruas vendendo bugigangas. Também pudera, essa impertinente presença é um problema social na medida em que é um problema econômico: faz os lojistas legais arrecadarem menos e, consequentemente, pagarem menos impostas. Já o tsunami de prostitutas à beira-mar permanece longe dos “problemas oficiais” da cidade. Não só porque alimenta melhor o internacionalmente procurado mercado turístico-sexual carioca, mas também porque as prostitutas, assim como as mulheres em geral, têm constantemente suas necessidades preteridas pela nossa sociedade.

Para ilustrar com um último exemplo carioca a presença do povo desempregado nas ruas, cito aqui uma velha conhecida da Guanabara: a presença de ambulantes vendendo toda sorte de mercadorias nos trens metropolitanos, fato que mesmo na era lula de pleno emprego se fazia presente. Entretanto, na atual situação de “vácuo-emprego”, o comércio informal nos trens não só aumentou drasticamente, como sobretudo radicalizou os roubos de carga na cidade do Rio de Janeiro. Somente nesses primeiros meses de 2017 foram mais de 3 mil. O esquema de roubos de mercadorias e sua venda ilegal é tão eficiente que menos de duas horas depois de uma carga ser roubada na Avenida Brasil ela já está sendo vendida nos trens, e muitas vezes por 1/4 do que custam nos estabelecimentos legais. Afinal, esse povo desempregado não só precisa fazer dinheiro com o que estiver à mão, mesmo que ilegalmente, como também precisa pagar o mínimo possível seja lá pelo que for.

Tentei aqui apresentar duas ideias distintas de “povo nas ruas”. A primeira, referente às eventuais manifestações político-festivas, cujo “povo” (e a essa altura as aspas já devem fazer seu pleno sentido), depois de gases lacrimogênios e cervejas ou selfies e champanhes, esvazia as ruas para então ocupar orgulhosamente as redes sociais. A segunda, apontando uma realidade nada carnavalesca na qual o povo (sem aspas algumas, afinal, estamos falando de quem não é povo apenas eventualmente) manifesta desesperadamente sua necessidade de trabalho. Só que esse povo, que foi posto “no olho da rua”, isto é, que não tem trabalho, é quem verdadeira e diariamente está “nas ruas”, seja procurando emprego, seja fazendo delas o seu escritório informal/ilegal.

Minha crítica conclusiva, que se dirige a esse “povo” entre aspas, é no sentido de acusá-lo de que, se fosse povo mesmo, e não só um bando de personagens político-festeiros, ele sairia às ruas para lutar por um país no qual o povo – sem aspas – desempregado e desesperado não tivesse somente as ruas como opção de vida. E isso porque, na realidade, o que vemos é que, quanto mais aquele “povo” se manifesta carnavalescamente nas ruas, mais o povo está, literal e metaforicamente, “na rua”. O que o povo brasileiro precisa, e urgentemente, é de menos festa e mais política.

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“Diretas Já!”, bebê? Consciência de classe!

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Desenho: Laerte

O povo brasileiro, depois de 24 anos, clama novamente por “Diretas já!” diante do risco, aberto pela crise política tupiniquim, de uma eleição indireta para presidente da república capitaneada por um parlamento notoriamente corrupto e antipopular. Entretanto, esse clamor popular mais uma vez esconde uma terrível ingenuidade. Ora, “Diretas Já!” pressupõe que eleições diretas atenderiam os interesses do povo, e eleições indiretas, os dos políticos corruptos clientes do capital. Não obstante, entendendo esses dois “adversários” em termos marxistas, enquanto classe dominada versus classe dominante, o frágil castelinho de cartas democrático do povo desmorona, pois crer que eleições diretas mudarão o fato de que quem seguirá dominando será a classe dominante é tão tolo quanto esperar que dominante aceite outro significado.

Sequer podemos dizer que “Diretas Já!” é folclórico, pois, do inglês folklore (folk: povo + lore: conhecimento), folclore significa “conhecimento do povo”. Não obstante, a classe dominada entender que pela mera ocasião das urnas pode moderar, quiçá impedir a dominação da classe dominante outra coisa não é senão ignorância popular a respeito dos sistemas político e econômico vigentes. Dentro da engenharisticamente arquitetada democracia representativa/liberal/burguesa, o povo achar que o fato de ele votar ou votarem por ele fará alguma diferença é nada mais que estupidez; o seu folclore estúpido; sua folkstupidity.

E isso porque, em primeiro lugar, o competente trabalho de classe da classe dominante vem sendo obliterar a certeira leitura de Marx, eternizada no Manifesto Comunista, segundo a qual o Estado não é nada além do que “o comitê executivo da burguesia”. E a democracia, essa ideia de que é o povo, mediante o voto, que governa é a falácia da classe dominante para mentir que o Estado não é a sua exclusiva res privata. Ora, em uma democracia liberal/burguesa, o Estado democrático continua sendo o bunker do capital; a democracia, o bureau da oligarquia. Com efeito, a maior burrice do povo é seguir ignorando isso.

Sejamos realistas, povo brasileiro! Em ambos os casos, seja com eleições diretas, seja com indiretas, será eleito presidente um representante dos interesse da classe dominante. “A realidade é dura”: ou a classe dominante apresentará seus candidatos ao arbítrio popular, ou arbita ela mesma entre eles. Até mesmo Lula, tido como o herói “guerreiro do povo brasileiro”, embora tenha de fato distribuído renda, universidades e cisternas aos mais pobres como “nunca antes na história desse país”, ele só foi presidente da república porque atendeu, melhor dizendo, enriqueceu a classe dominante. Prova disso é que bastou o lulismo – todavia nas mãos menos competentes de Dilma – não mais realizar o sempiterno objetivo das elites e, voilà, rua!

O paralelo entre as “Diretas Já!” de 1983 e 2017 é inevitável. No recente século passado, a pecha “democrática” – e derrotada – foi tentar impedir que os militares escolhessem o presidente da república – que, como sempre, representaria as elites – para que o povo pudesse escolher, “democraticamente”, o presidente da república representante das elites. E o atual “Diretas Já!”, repetindo o erro do passado, pretende impedir que parlamentares corruptos – clientes cativos de empresários outrossim corruptos – elejam indiretamente um representante dos interesses desses empresários para que nós, o povo, escolhamos, dentre as opções que os políticos corruptos nos darão, o representante dos interesses dos empresários corruptos.

Eis a falácia da moderna “democracia”: fazer com que o povo, estupidificado, legitime a escolha dos representantes da classe dominante sem que esta precise fazê-lo despoticamente, via ditadura ou golpe, expedientes que, para quem quer lucrar sempre e muito, têm preço – econômico, político, ético – alto demais para serem usados constantemente. E “Diretas Já!”, novamente, é o grito do povo no sentido de seguir fazendo o que a classe dominante quer que ele faça: legitimar os representantes dela.

Fazendo uma analogia com a contemporânea e mui polemizada mazela social do crack, assim como os seus usuários, preteridos e esquecidos pelo sistema, valem-se desesperada e compulsivamente da “pedra” para suportarem tal condição – sem no entanto mudá-la com o vício -, assim também o povo, copiosamente, corre atrás da “pedra” da “democracia” para ao menos suportar, melhor dizendo, esquecer o fato de que o sistema seguirá dominado pela classe dominante. Nesse velho quadro, clamar coletivamente por “Diretas Já!”, infelizmente, é apenas desespero popular diante de uma crise de abstinência mais fortemente percebida. Metaforicamente, é a ignorância suicida do viciado fazendo-o escolher ele mesmo a sua destruição para não ver, crua e claramente, que, na verdade, não há escolha: o sistema no qual se encontra é que o destrói.

Ver essa realidade sem o Véu de Maya “democrático” tecido historicamente pela classe dominante para perpetrar mais expeditamente a sua dominação; no caso tupiniquim, aceitar o fato de que não importa quem escolherá o próximo presidente do Brasil, se o povo, diretamente, ou se os representantes da classe dominante, indiretamente, pois em ambos os casos a classe dominante seguira como tal; realizar isso, sem dúvida alguma, é traumático. Psicanaliticamente falando, contudo, todo trauma tem uma dupla virtude: primeiramente, não permitir que aquilo que o causa desapareça no esquecimento – o trauma é a fortuita presentificação de uma intervenção insuportável do real; e, em segundo lugar, é superável na medida em que o traumatizado é capaz de falar dele, de comunicá-lo àqueles que podem entendê-lo – sendo o analista o ouvinte/remédio ideal desse processo de cura.

Por isso aqui eu me dispenso, para evitar o pecado da ingenuidade, de propor alguma solução para o impasse traumático no qual nós, povo brasileiro, estamos metidos nessa inócua querela entre “Diretas Já!” e “Indiretas quando a classe dominante quiser”. Faço apenas questão de reforçar insuportavelmente esse trauma. Não só para que o meu encontro – enquanto povo – com o real se apresente em toda a sua radicalidade, sem véus/cracks anestesiantes, mas, sobretudo, para que, ao mesmo tempo, falando dele a quem me ler/ouvir, eu possa me “destraumatizar”. Se todos nós, dominados, fizéssemos isso certamente nos despatologizaríamos a ponto de lidarmos com o real de nossa opressão de modo mais objetivo, político e subversivo, exatamente como a classe dominante faz para nos oprimir.

É porque a classe dominante sabe nitidamente que, de um lado, a democracia liberal/burguesa é a melhor fantasia para a sua estável oligarquia, e que nem mesmo eleições diretas mudarão o fato de que os presidentes serão representantes exclusivos seus; e também, de outro lado, porque está certa de que, até aqui, conseguiu fazer com que a classe dominada permanecesse alienada dessas cruéis verdades; por isso tudo é que ela domina tão certeiramente. O que se depreende disso tudo é que falta ao povo um esclarecimento fundamental, precisamente aquilo que Marx prescrevia aos trabalhadores para que a Revolução fosse possível, qual seja: consciência de classe – consciência essa que sobra à classe dominante. E se o povo puder conscientizar-se de sua potencialidade revolucionária fazendo aquilo que a psicanálise prescreve ao traumatizado: assumir o trauma e comunicá-lo a quem melhor pode compreendê-lo, não a psicanalistas, obviamente, mas a si próprio?

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Gentrificação incompleta, ou urbanicídio no centro do Rio de Janeiro

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A Cidade Maravilhosa dispensa apresentações. Já o termo “gentrificação”, não. Principalmente se quisermos que “o Rio”, bem como todas as nossas cidades não percam o que elas têm de realmente maravilhoso: a coexistência da diversidade. Conhecer o significado da expressão “gentrificação” e seus perigosos sentidos sociais, econômicos, políticos e culturais é fundamental para as nossas urbanidades não serem pervertidas pela especulação imobiliária. Há várias modalidades de gentrificação urbana. Todavia, doravante farei relato de uma que, a meu ver, é de uma decadência notável, melhor dizendo, condenável, que tem exemplo triste e concreto no centro do Rio de Janeiro.

Etimologicamente, o nome “gentrificação” vem do francês arcaico “genterise”, significando “de origem gentil, nobre”. Gentrificar uma área urbana, portanto, é fazê-la, fortuitamente, parecer que teve tal origem. A coisa real que o nome designa é a elitização de espaços urbanos, até então de caráter popular; valorização cujo objetivo é o aumento de custos e bens de serviços. O preço imediato disso, por conseguinte, é a exclusão, de dentro desses espaços (regiões, bairros, ruas, praças), de antigos moradores, frequentadores, hábitos e tradições. Ou seja, a gentrificação é sempre o assassínio da urbanidade que a precede. Um urbanicídio.

A elitização de zonas urbanas é velha conhecida do Rio de Janeiro. Um exemplo trágico disso foi a expulsão, em 1957, da favela chamada de “A Cruzada São Sebastião” das margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, para, ali, serem erigidos nobres bairros, com os antigos e populares moradores tendo sido realocados fortuitamente para a famigerada “Cidade de Deus”, na distante Zona Oeste.

Mesmo assim, desde que o Rio se tornou sede oficial, tanto de jogos da Copa do Mundo, quanto da Olimpíada, a gentrificação que na cidade morava passou a ser “carioca da gema” (expressão que designa cariocas filhos de cariocas para se apontar “cariocas de verdade”). A consequência dessa gentrificação olímpica foi que muito cariocas da gema de verdade tiveram de deixar várias zonas da cidade nas quais viviam e/ou trabalhavam para se refugiarem em outras que coubessem nos seus orçamentos, claro, bem distantes dos noveau bolervards gentrificados.

A Gentrificação é espécie de Hidra de Lerna de muitas cabeças. A mais publicizada delas, obviamente, é a sofisticação de espaços urbanos. Outra, que decorre desta, é a substituição de classes sociais mais baixas pelas mais altas nesses espaços sofisticados. Uma outra ainda, cujos efeitos quero pensar aqui, é a gentrificação comercial que cada vez mais transforma o centro do Rio de Janeiro em uma área urbana que não serve nem às elites, nem tampouco aos antigos moradores/usuários do histórico bairro, em outras palavras, ao povo.

Usarei duas ruas do centro do Rio como exemplos desse tipo de gentrificação que, imediatamente, produziram o oposto do que pretendiam: decadência. A primeira delas: a Rua da Carioca; até os anos 2000 um movimentado polo de lojas de instrumentos musicais da cidade do samba, do chorinho e da bossa-nova. Assombrado pelo fantasma olímpico que fez com que, durante alguns anos, o Rio fosse a cidade do metro quadrado comercial mais caro do mundo, o logradouro viu os seus estabelecimentos comerciais rapidamente fecharem, sem, no entanto, nada de novo ou mais nobre tomar os lugares. A vida musical da rua calou completamente. O único som que hoje se ouve por lá é o do ruído dos automóveis reverberando tristemente no corredor de cortinas de ferro cerradas e enferrujadas, suportes para placas de Aluga-se ou Vende-se que, por mais que sejam vistas, não cabem no bolso de quem as vê

A pergunta que em primeiro lugar podemos fazer é: por que expulsar os antigos e tradicionais comerciantes e transeuntes da rua – que tem como nome o gentílico da cidade! – sem que outros, mais ricos e elitizados, os substituíssem? A resposta é mais triste do que se poderia esperar: em vez de apenas sofisticar o comércio que musicava a rua, a “política de terra arrasada” da especulação imobiliária gentrificatória é fazer com que a manutenção estratégica de uma ruína urbana apague quaisquer memórias popularmente simpáticas para, assim, parecer uma solução boa a todos serem construídos ali, por exemplo, antipáticos estacionamentos e shopping centers.

A Rua da Carioca, que inicialmente chamou-se Rua do Egito, depois, Rua do Piolho, tenha talvez de mudar de nome novamente, seja para fazer jus à ruína urbana que atualmente ela é, seja, futuramente, para nomear a “nova cidade” que ali será empreendida pelos interesses do capital imobiliário.

O segundo exemplo que trago é a Rua da Conceição, no movimentado corredor comercial popularmente chamado de Saara, que até alguns anos concentrava lojas essenciais a carnavalescos (na terra do carnaval!), sapateiros, costureiros, estofadores, encanadores, carpinteiros, e toda sorte de artesãos. Depois do tsunami gentrificatório que elevou os aluguéis, toda a variedade da Rua da Conceição foi substituída por um único tipo de serviço. Circular pelo logradouro, hoje em dia, é passear quase que exclusivamente por lojas que, uma depois da outra, vendem produtos para camelôs. Um olhar mais atento mostra ainda que tais lojas vendem todas as mesmas mercadorias. Com a gentrificação, a variedade sucumbiu diante da mesmidade.

Sem dizer que substituir lojas que antes serviam a um leque enorme da população por distribuidoras de bugigangas chinesas que suprem camelôs outra coisa não é que transformar um autêntico comércio oficial em um indesejado comércio informal, porque no mais das vezes ilegal, mediante atacadistas que, no final das contas, são os únicos que podem pagar por lojas legais em um ambiente assim gentrificado.

Só que, convenhamos, de “genterise”, isto é, de gentil, de nobre, essa gentrificação não tem nada, pois as visadas elites de modo algum passaram a frequentar os novos atacadistas que expulsaram os velhos lojistas da Rua da Conceição. Em vez disso, é o povo que, para buscar o que precisa ou deseja, não pode mais fazê-lo no interior de lojas devidamente estruturadas, mas tem de se expor nas congestionadas, sujas e perigosas ruas do centro do Rio onde os camelôs “atendem”, pelo menos até estas ruas serem gentrificadas também.

Aqui chegamos ao ponto que eu mais queria tocar. O centro Rio está sendo vítima de uma gentrificação incompleta, decadente, que expulsa o povo não para trazer elites, mas apenas para expulsar o povo. A lógica perversa dessa gentrificação é a seguinte: se as elites ainda não querem ocupar determinados espaços urbanos, ao menos a especulação imobiliária deve “limpá-los” de povo, e imediatamente, para quando os nobres desejarem, não terem “pedra no meio do caminho” alguma. Se já triste uma cidade ter a sua diversidade capitalisticamente expurgada para que certas zonas sejam privilegiadas às elites, que de certa forma também compõem a diversidade urbana, mais triste ainda é ver essa diversidade expulsa para que a não-cidade, ou seja, a não-diversidade tenha lugar cativo na cidade.

O silencioso corredor de lojas fechadas da antiga e musical Rua da Carioca, bem como a sequência de distribuidoras de bugigangas idênticas para camelôs que agora faz a Rua da Conceição, antes um rol de variedades, ambos os exemplos evidenciam, urbanisticamente, a tristeza reificada de uma gentrificação decadente, que, mesmo que não sofistique lugares às elites, precisa ao menos despopularizá-los imediatamente.

Não me atrevo propor uma solução para problema tão complexo e contra inimigos tão poderosos. Apenas peço que não nos esqueçamos de que, diametralmente oposta à gentrificação está a popularização. Pelo menos assim o povo pode saber qual dos dois movimentos que se digladiam dentro da cidade é o melhor para si, mesmo que, no momento, o movimento elitista esteja vencendo.

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A morte de Dona Marisa, e a do povo brasileiro.

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Cliquei no vídeo facebookiano da cerimônia do velório de Marisa Letícia Lula da Silva e, ao mesmo tempo em que amigos, colegas e o próprio Lula faziam os seus discursos presenciais, uma torrente de comentários virtuais pipocavam, em um ritmo impossível de acompanhar. Uns, humanamente, de amor e solidariedade; outros, desumanamente, de ódio e discórdia. Em apenas três horas de publicação, o vídeo já constava de quase 100 mil comentários em pleno e embate. Creio que nunca alguém irá lê-los todos. Impossível, não só pela quantidade, mas principalmente pela irracionalidade de, pelo menos, metade deles.
Assistindo a incessante sequência de comentários me perguntei: por que não se calam? Qual a dificuldade em apenas assistirem ao vídeo do velório da ex-primeira dama (ou não assisti-lo), terem os seus próprios pensamentos, e guardá-los para si mesmos? Ora, porque não se tratava, para esses milhares de comentadores compulsivos, do velório de Marisa Letícia, nem tampouco da dor da perda da família Lula, mas, antes, da única coisa que acontece no Brasil atualmente: a divisão radical.
Qualquer coisa, até mesmo a morte de alguém, seja por AVC ou pela queda de um avião, é estopim para os brasileiros se digladiarem histérica e publicamente, pervertendo os fatos que deram origem ao combate e abandonando completamente civilidade e humanidade. Só a divisão é. Só ela tem de ser. Nem que seja às expensas da tristeza que é uma família perder a sua mãe.
Esse é o meu comentário, que, entretanto, recusei-me a enfileirá-lo entre as centenas de milhares de outros, tresloucados e deslocados, que ainda pipocam ao lado do vídeo fúnebre. Se lá me calei, por que aqui falo? Talvez porque tenha me lembrado, tanto daquela máxima pós-Holocausto: “Impossível pensar depois de Auschwitz?”; como principalmente da sua refutação por Zizek: “Como não pensar depois de Auschwitz?”. Como não pensar no que os brasileiros estão fazendo consigo mesmos no agonístico presente? Em nome de quê estamos agindo assim?
Se percebermos que, durante essa divisão radical do povo, as elites apenas estancam as suas próprias sangrias e sangram esse mesmo povo com mais facilidade, em um furto deslavado de diretos e em um vilipendio da riqueza nacional em benefício de parcos proprietários de petrolíferas e empresas de telecomunicações, perceberemos também que essa mesma divisão odienta que o próprio povo empreende internamente é a sua própria ruína. Divisão essa que, se não foi arquitetada desde o princípio pelas elites (o que é mais provável), ao menos a beneficia muito.
Quando um povo não consegue ao menos silenciar diante da morte de um dos seus, independentemente de diferenças políticas e ideológicas, é porque não há mais povo de fato, mas apenas um bando de bestas servis sangrando umas às outras, assim como as elites sempre fizeram. Só que agora é o próprio povo que faz o trabalho sujo e odiento das elites; por elas; em nome da ventura e da riqueza delas.
O antídoto contra esse mal, contudo, é conhecido e acessível: a solidariedade do povo diante das dificuldades, seja na perda de entes queridos de uns, sejam em golpes de estado dado pelas velhas oligarquias contra todos. Mas a falta de solidariedade que levou alguns brasileiros a fazerem buzinaços comemorativos e postagens facebookianas vingativas, desde o anúncio da morte cerebral da ex-primeira dama até o seu velório, atesta somente a falta de solidariedade de uma turba que não é povo.
Além dos pêsames que todos deveríamos declarar aberta e solidariamente pela morte da brasileira, trabalhadora, esposa e mãe que foi Dona Marisa Letícia, temos ainda um outro, mais radical e insuportável, para dar todavia a nós mesmos. Este, pela morte do próprio povo brasileiro enquanto povo. Novamente: em benefício de quem?

O Estado contra o povo. E este?

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O Estado brasileiro está em guerra contra o povo! Primeiramente, o golpe parlamentar dado por um bando de criminosos cínicos, e, por último, a PEC 241 deles, seguida da tentativa de impedir manifestações e greves contrária a esse mesmo Estado golpista, sugerem que o “PMSDB”, o Frankenstein oligárquico que tomou o país de assalto, seja o grande inimigo. Só que não! Tais políticos golpistas são só a metralhadora giratória do verdadeiro inimigo. Quem é ele, na verdade? O que está fazendo o povo atacado? E se não está, por que essa passividade diante de tamanha violência?

Se, como a práxis liberal não faz questão de esconder, a política apenas faz o trabalho sujo da economia, o monstro que está em guerra contra o povo, portanto, é ninguém menos que o 1% da população que detém 50% da riqueza, como bem nomearam e popularizaram os 99% restantes e manifestantes do  Ocuppy Wall Street de 2011. Sim, é essa minoria, dona espúria de pelo menos metade da riqueza, e que quer mais ainda – desejo sem o qual capitalismo algum se sustenta -, que está em guerra contra o povo.

“O Capital do Século XXI”, livro que Thomas Piketty lançou em 2013, traz informações suficientes para vermos que, atualmente, a concentração de riqueza nas mãos de poucos é maior do que na Belle Époque, período entre o quarto final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial no qual se observou a até então a maior desigualdade socioeconômica da história da humanidade. Cínico mesmo é aquela época seguir sendo chamada de bela. “Belle” para quem, cara pálida&rica? Outrossim cínico é o programa de guerra dos golpistas brasileiros, o “Ponte para o Futuro”, que, entretanto, ao povo outra coisa não diz senão aquele verso de “God Save the Queen”, do Sex Pistols: “No future for you”.

Com efeito, o 1% está mais poderoso – e ávido – do que nunca! E é ele que, na verdade, dispara golpes, PECs, partidos políticos e juízes entogados contra os 99% restantes. De modo que, apesar de ser uma difícil tarefa, não devemos gastar toda a nossa revolta contra os políticos e juízes espetacularmente golpistas, visto que a atual e forte investida destes contra o povo é só o projeto/projétil dos seus discretos patrões neoliberais. Marxianamente falando, o inimigo é essencialmente econômico/capitalista, e só aparentemente político/brasileiro.

Agora, se, como explica Piketty, as astronômicas concentração de riqueza e desigualdade socioeconômica da Belle Époque só foram alquebradas pela primeira grande guerra (1914), assim como a tentativa de retomá-las foi frustrada pelo segundo conflito mundial (1939) – e isso porque, segundo o autor, nessas duas ocasiões a riqueza acumulada foi contragosto “socializada”, tanto no investimento bélico dos Estados antes e durante as guerras, quanto na reconstrução das sociedades, depois delas -, as atuais e ainda maiores concentração de riqueza e desigualdade socioeconômica dos 1% que se voltam política&belicamente contra os “99%”, seguindo a lógica pikettyana só seriam malogradas por uma Terceira Guerra Mundial.

Não obstante a certeza de Piketty de que um terceiro conflito global faria isso, o investimento teórico do economista é em um reformismo social democrata, que, no entanto, como a realidade mostra muito bem, só entrincheira confortavelmente os interesses dos 1%. Portanto, em função dos interesses dos 99%, sigo apostando na violência disruptiva, seja a das grandes guerras, seja ainda, nacionalmente, a da guerra civil.

Se o voto do cidadão já não vale nada, como o atual golpe deixou bem claro, tampouco é possível acreditar em hashtags, como largamente se faz hoje em dia. As #NÃOVAITERGOLPE, #FORATEMER e #NÃOÀPEC214, só para citar três famosas, embora massivas são todavia andorinhas solitárias que, politicamente, não tem capacidade alguma de fazem verdadeiros verões populares. Não os fizeram; não os estão fazendo; e não os farão! Nem mesmo as estratégias clássicas do povo contra a dominação das elites, como megamanifestações populares e/ou greves nacionais, funcionam mais; aquelas facilmente anuladas pela mídia; e estas, despoticamente ameaçadas por juízes golpistas.

Como disse Alain Badiou dos revolucionários de maio de 1968, eles perderam a “guerra” porque insistiram em velhos conceitos e performances da “esquerda revolucionária” que, entretanto, já estavam computados subversivamente pela direita inimiga. Não foram verdadeiramente revolucionários porque não foram suficientemente violentos. Isto é, não violaram o jogo de cartas marcadas imposto a eles pelo inimigo. Da mesma forma, a resistência tupiniquim contra os seus ativíssimos algozes é tão ou mais velha que estes.

Àqueles que sustentam, não sem razão, que as guerras são, em última instância, eficientes ferramentas do capitalismo para, em meio a uma crise, retomar grande e maior fôlego, é preciso contrapor que, se, por um lado, a violência máxima possibilita uma maior dominação do capital, por outro, retomando Piketty, é somente durante e imediatamente às guerras que é impossível para o capital seguir o seu curso natural de acumular-se em cada vez menos mãos, empoderando-as contra o povo. Então, não seria o caso de o povo querer grandes guerras, por exemplo, a cada 20 ou 30 anos?

O problema dessa ideia é o seu radicalismo, principalmente para os sujeitos burgueses&hedonistas, demasiado burgueses&hedonistas que somos. Hoje em dia não há nada mais absurdo do que imaginar arriscar a vida por uma nobre causa. Preferimos ser golpeados, vilipendiados cinicamente em nossos direitos, mesmo com alto e consequente preço de os 1% detentores de 50% da riqueza se tornarem os 0,01% donos de 99,99% da mesma riqueza, do que colocarmos nossos corpinhos lumpemproletarizados, todavia satisfeitos com uma TV de plasma e um automóvel popular, na linha de frente de qualquer guerra. A burguesia foi o berço excelente desse sujeito tão covarde quanto alienado do seu horizonte de respeito e liberdade.

Porém, ainda que, no caso brasileiro, deflagrar uma guerra civil estivesse no horizonte povo, como este se organizaria? Com que armas lutaria conta o violento Estado golpista? Antes que ressurjam velhos AIs ditatoriais ao modo do golpe de 1964, confesso que eu não só empunharia metralhadoras contra o parlamento golpista do meu país, como também, se alvejado fatalmente, nos últimos segundos de existência que me restassem, fruiria o maravilhoso gosto agridoce – que se confunde com o de sangue – de ter dado o valor máximo à minha simples vida.

Todavia, quase todos os meus concidadãos insatisfeitos com a situação do nosso país – com certa exceção aos Black Blocs, é preciso dizer – são tão “esquerda festiva” e “hashtaguicos”, tão pouco dispostos à violência radical, que, como andorinha solitária, é impossível participar que qualquer verão sangrento contra o invernal Estado golpista. Três companheiros do Partido Comunista Brasileiro com quem conversei disseram que não sabem de nenhuma resistência armada sendo formada contra os golpistas de Brasília, nem nada do gênero. Quando aqueles que são radicalmente contra a dominação dos 99% pelos 1% não têm em seu horizonte outras regras que não aquelas ditadas por estes 1%,  a guerra realmente é perdida antes mesmo de ser imaginada.

Talvez o Estado golpista inimigo não tenha até aqui sido tão violento, tão inimigo do povo a ponto de este se organizar, violenta e belicamente, contra ele – por mais que os poucos meses de golpe devessem provar o contrário. Pergunto-me, por conseguinte, quanto tempo levará; quantos direitos os golpistas ainda terão de furtar do povo para que recebam uma contraofensiva radical e mortal?

Espero que a demora do povo brasileiro em aceitar o convite à guerra que o Estado já declarou contra ele seja quiçá o tempo de o povo entrar em constelação em seu atual e absurdo vilipêndio, não mediante hashtags nem passeatas festivas, mas, como a teoria política de Spinoza propõe, em armas. E isso porque, no atual estado da guerra, retórica alguma dá melhor voz ao povo do que muitos e certeiros estampidos de revólver. Basta apenas que o povo perca o seu burguês medo de morrer lutando pelo que lhe é essencial, encarnando algo de uma esquecida antiguidade anterior ao capitalismo, qual seja: o heroísmo inegável de morrer na guerra que não pode deixar de ser travada.

Maquiavel contra o golpe

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Contra a circunstancial “vitória” da oligarquia política brasileira, ou, sem papas na língua, contra o golpe, em vez de indignação, melancolia, e até mesmo apatia plena, a minha aposta radical – que retorna às raízes – é na visão política de Nicolau Maquiavel. E isso porque o inaugurador do “pensamento político moderno”, tendo revelado a essência conflitiva das relações políticas, faz-nos compreender tanto ímpeto de dominação dos “grandes” contra o “povo”, como também e principalmente o desejo de liberdade do povo, e, mais importante, o modo de construí-la a partir do conflito político ele mesmo.

Em primeiro lugar, devemos dispensar a ideia vulgar de que, para este autor, “os fins justificam os meios” apenas. Ora, quando se justifica certas causas em função de um efeito, retrospectivamente, fora do tempo em que tais causas de fato “causam”, perde-se o caráter plenamente agonístico da política. Em suma, justificar o passado através do presente é sempre um anacronismo insuficiente. Toda ação política tem de ser justificada em si mesma, no seu átimo kairológico, sem contar com “perdão” futuro algum. Reside aí um princípio de justiça muito elementar, pois, como bem coloca o filósofo Thomas Berns, quando “os fins justificam os meios” essa justificação “chega sempre tarde demais”.

Enquanto crermos que “tudo vale para se conseguir um fim”, o que por sua vez justifica inclusive as mais pérfidas tiranias, deixamos de ser agraciados com a potência republicana das ideias de Maquiavel. O pensamento do renascentista demonstra, de modo muito mais sofisticado e autojustificado que a teoria moral de Kant, o caminho para a liberdade, que na verdade é o desejo genuíno do povo, bem como o sempiterno “tecido conflitivo” da política, sobre o qual aliás essa liberdade –sempre desejada pelo povo e sempre contestada pelos dominantes- deve ser, digamos assim, “bordada” fortuitamente.

O Maquiavel republicano faz do embate entre “grandes” e  “povo” a cena excelente e sempiterna do palco político. Na linguagem pré-sociológica do autor, o “humor” objetivo dos grandes é o de dominar; enquanto o do povo é o de não ser dominado. A grande revolução trazida ao mundo por este pensador é a desmoralização do conflito político, que, para além de qualquer bem ou mal substancial, sustenta que a realização do humor essencial do povo, qual seja, a liberdade, só calha de parecer um bem a partir do conflito com o humor essencial dos grandes, qual seja, dominar.

O filósofo francês Gérard Sfez explica que a insolubilidade do conflito político na teoria maquiaveliana se deve a uma dupla assimetria. Em primeiro lugar, diz o autor, ambas as partes disputantes não querem a mesma coisa: os grandes querem dominar; o povo, não ser dominado. É importante atentar para a diferença entre os objetos desses desejos. Em segundo lugar, grandes e povo tampouco buscam a realização dos seus díspares humores do mesmo modo: os grandes dominam às custas dos direitos do povo, ao passo que este, diferentemente, só alcança a sua liberdade ao preço de todos, grandes e povo, compartilhares dos mesmos direitos.

Se cada lado do conflito quisesse a mesma coisa que a outra, por exemplo, dominar apenas, bastaria o povo “cortar as cabeças” dos grandes para instituir o seu domínio. Nesse caso, não obstante, o povo realizaria, não o seu humor essencial, que é o de ser livre, mas o humor do inimigo, que é o de dominar. O problema disso é que, excluindo o outro –os grandes- da relação política, Maquiavel nos faz ver que a própria ideia de povo se desfaz, e por conseguinte, o próprio tecido político no qual ela se inscreve agonisticamente. Pior ainda, diz o italiano, um conflito de mesmo calibre se estabeleceria no corpo político formado somente pelo povo mediante toda sorte de oportunismos particularistas.

Eliminando o seu outro, o povo perde a sua identidade política, que se torna concreta somente a partir da oposição em relação aos grandes, pois, conforme Maquiavel, o conflito entre grandes e povo é a condição de existência do fenômeno político. A realização de um não deve significar a inexistência do outro, visto que querem coisas distintas, e de modos distintos. O povo quer liberdade. Para isso precisa ter seus direitos respeitados e ampliados conforme a ideia objetiva de bem-comum, que não obstante só se revela na presença opositiva dos grandes. Já estes, querem dominar. E para tal precisam furtar os direitos povo, afastando-se da ideia de bem-comum. Entretanto, a existência do outro/povo é fundamental aos grandes. Do contrário, a quem dominariam?

A visão política de Maquiavel é tão intuitiva e universal que sequer precisamos fazer paralelos explícitos com a circunstância brasileira. O conflito entre grandes/golpistas e povo/golpeado é insuportavelmente aclarado sob a lanterna maquiaveliana. Que no Brasil os “grandes” estejam realizando o seu “humor” dominador de forma tão contundente não deve ser visto, maquiavelianamente, em termos de bem e de mal, pois a liberdade do povo só pode ser um objeto de desejo, e moralmente figurar como  um bem, porque furtada pelos grandes. Mutatis mutandis, não ser dominado é um humor que só se revela e se pode positivar contra um humor dominador. Do contrário, seria um idealismo que não faz verão no moderno pragmatismo político de Maquiavel.

Uma lição fundamental de Maquiavel é a seguinte: o povo não deve querer a extinção dos grandes, mas sim conquistar para si o poder de, agonística e politicamente, conter o ímpeto dominador deles, a ponto de ser o agente de sua própria liberdade. A empresa do povo, entrementes, precisa primeiro positivar o seu “humor” essencial, que nasce negativado na forma de “não ser dominado”. E essa positivação se dá quando o “não ser dominado” se torna  “ser livre”, ao modo da distinção marxiana entre trabalhador e proletário: o trabalhador é o agente negativo da revolução; sua positivação se dá quando ele encarna o proletário.

Ora, não basta desejar não ser dominado, pois nesse aquém negativo não se contempla o inimigo em sua obstacular positividade. Para tanto, o povo precisa conhecer tanto o seu desejo essencial, quanto o do seu oponente. Só assim, na agonia do conflito político, não desejará inadvertidamente o desejo do outro, ou seja, o humor dominador dos grandes, que faria do povo o seu próprio inimigo. Para Maquiavel, a completa falta de virtude política! Uma segunda lição de Maquiavel, portanto, é o velho “Conhece-te a ti mesmo” socrático.

Em terceiro e mais árduo lugar, temos a lição maquiaveliana do combate à corrupção das instituições republicanas que desequilibra o conflito político sempre em benefício dos grandes. Para Maquiavel, o conflito político permite a realização do humor do povo somente enquanto as leis, que estabelecem as regras do conflito político, puderem ser sustentadas pelas instituições. Só assim é possível conter os excessos da cada um dos lados, ao mesmo tempo em que ambos expressem os seus desejos. O problema, aponta o autor, é que, republicanamente, as leis se modificam em função do bem-comum, ao passo que as instituições que as devem sustentar não acompanham essa dinâmica. E é nesse descompasso que a corrupção – que prefere os grandes e pretere o povo- faz carreira.

Em solução a isso, Maquiavel propõe uma “refundação” sistemática da república. Pragmaticamente falando, trata-se de um retorno lógico, e não cronológico!, ao momento pré-legal/institucional que fundamenta a existência das leis e das instituições. Somente nesse “ground zero” a corrupção inexiste, pois só aí lei e instituição se alinham absolutamente ao modo de se confundirem. O exemplo clássico de Maquiavel é o mito fratricida de Rômulo e Remo que funda Roma, ao qual o povo romano deveria “retornar” –a cada dez anos, no máximo, vaticina o italiano- para então reencontrar a razão de ser de suas Leis e instituições.

No caso romano, uma pergunta simples e estratégica bastava para produzir o tal “retorno à origem” pré-legal que justifica tanto a necessidade da Lei, quanto o seu sustento institucional pleno: Rômulo não mataria Remo por quê? Em resposta a ela, entretanto, não devemos vir com moralismos do tipo “porque assim Deus deseja”. Antes, é a angustiosa falta de resposta que deve nos ocupar nesse exercício lógico. Ora, na inexistência de uma lei, Rômulo não comete crime algum ao matar seu irmão. Mas por que deveria haver uma lei que o tivesse proibido? Por quê? Essa resposta justifica inequivocamente tanto a existência da Lei como principalmente a necessidade de instituições que a façam valer. Do contrário, a lei passa a ser um idealismo que somente permitiria a “Rômulos” seguirem matando “Remos”.

E no caso brasileiro, que átimo pré-legal e institucional fundador devemos retornar a fim de atualizar a razão de ser da nossa república, de ressincronizar suas leis e instituições? A violência assassina fundamental maquiaveliana, irmã mais velha do “medo da morte violenta” hobbesiano, é a resposta mais fácil, todavia demasiado genérica. Façamo-nos então a mesma pergunta maquiaveliana que os romanos deveriam fazer a si mesmos, buscando no entanto uma resposta à lá brasileira: os “grandes” não devem dominar o “povo” por quê? Dito de modo mais direto ainda: a nossa oligarquia política-econômica não deve golpear o povo em função de quê? Com esta resposta encontraríamos o casamento perfeito, ainda não corrompido, entre leis e instituições, ao menos no sentido de golpistas serem barrados de alguma forma.

O atual golpe de estado dado pelos “grandes” do PMDB e do PSDB é a prova de que as nossas instituições estão aquém das leis que dizem defender. Por isso a Constituição, como se diz, está sendo rasgada. Todavia, maquiavelianamente falando, não é que as instituições estejam corrompidas, nem que sejam a sede excelente da corrupção, mas, antes, que elas apenas não estão a par da atualidade das leis que deveriam fazer valer. As atuais instituições político-jurídicas brasileiras encontrariam plena atualidade num Brasil de cem anos atrás ou mais, mas não no país pós-Lula, no qual o povo também passou a ser objeto de contemplação das leis. Usar “Maquiavel contra o golpe”, portanto, é tornar insuportável a necessidade de reencontrar a resposta para a seguinte pergunta: os grandes não devem golpear o povo por quê?

Salve-nos quem puder ser culpado no nosso lugar

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A corrupção política brasileira cada vez mais se revela estrutural. Entretanto, em vez de assumirmos imanentemente nossa participação nessa vil realidade, a maioria dos cidadãos ainda prefere iludir-se -não sem a parcialíssima “ajuda” da mídia- de que são apenas determinados indivíduos, de um partido político ou outro, os responsáveis pela corrupção generalizada. Necessitamos desesperadamente de um ou uns culpados espetaculares, para que assim a culpa deles nos aliene do fato de que nós, os cidadãos indignados, somos participantes dessa corrupção estrutural que nos indigna. Em respeito ao grave problema, queremos transcendentalizá-lo a qualquer custo, e pouco importa se através das mentiras midiáticas que com sagacidade elegem de bois-de-piranha estratégicos.

Em contrapartida, quando se trata não do que corrompe a sociedade, mas do que a mantém em pé, isto é, o poder, o povo inteiro não se roga em responsabilizar-se por ele. Tanto que a Constituição brasileira é aberta com o seguinte artigo: “Todo poder emana do povo”. Aí é fácil participar imanentemente da estrutura da sociedade! Agora, se a Carta Magna explicitasse outra verdade, qual seja, que “toda corrupção estrutural também emana do povo”, ou seguiríamos ignorando-a, ou a riscaríamos de vez da Constituição.

Cabe aqui atentar ao que disse o filósofo francês Michel Foucault em Microfísica do Poder, qual seja, que o poder circula, que se exerce em rede, sendo que cada um de nós de certa forma e em certa medida é titular desse poder. Daí podemos concluir que o poder dos políticos corruptos, tanto os que seletivamente sacamos da estrutura corrompida para representante no lugar de todos a corrupção estrutural, quanto os que são “deixados em paz”, mesmo sendo tão ou mais corruptos que aqueles, esse poder é dado a eles por nós, o povo, isto é, a origem da qual todo poder emana. Mesmo que não queiramos assumir que a corrupção dos nossos representantes políticos jaz a priori no próprio povo, ao menos deveríamos aceitar o fato de que o poder com que eles corrompem a sociedade é dado a eles pelo povo mesmo, e no caso brasileiro, democraticamente.

Para entender melhor isso, vale lembrar outro francês, o humanista Étienne de La Boétie. Este filósofo dizia que o poder do tirano, seus mil braços e mil olhos, não são seus, visto que é um homem como qualquer outro, com seus dois braços e dois olhos apenas; mas que estes mil braços e mil olhos são deles somente na medida em que seus mil súditos cedem seus braços e olhos a ele. Moral da história: não precisamos ir até o castelo do tirano para matá-lo e para nos livrarmos dos seus mil braços e mil olhos tirânicos; basta que simplesmente não mais demos os nossos para ele. Afinal, segundo Foucault, não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele apartados”.

Da mesma forma, as mil e uma corrupções que espoliam e envergonham os brasileiros não são exclusividade dos seus representantes políticos corruptos. Eles apenas podem praticá-las descaradamente porque seus mil e um representados, nas suas mil e uma corrupções cotidianas -não solicitar ou não fornecer nota fiscal nas compras e vendas; baixar indevidamente músicas e filmes na internet; beber, dirigir e escapar da Lei Seca; estacionar automóvel em vaga para deficientes etc.- já criam os subterrâneos e a priori alicerces corrompidos sem os quais a evidente e a posteriori estrutura da corrupção não teria como sustentar-se. Aplicando aqui a fórmula boétiana, contra a corrupção estrutural bastaria que o povo não mais desse fundamento à corrupção, isto é, que não mais fosse corrupto na parte da estrutura que lhe cabe?

Alguns podem dizer que, mesmo que o povo seja probo, sempre haverá representantes impertinentes corruptos. Abstratamente isso pode até convencer. Porém, se a abstração a posteriori que é a sociedade só existe por conta dos seus indivíduos concretos e a priori, uma sociedade lisa somete existirá se os indivíduos que a compõem forem lisos em primeiro lugar. Do contrário, se os cidadãos já forem corrompidos, a sociedade só será íntegra mediante a argamassa da alienação, o reboco da mentira, o papel-de-parede da manipulação midiática. O “Brasil para todos” de Michel Temer é o exemplo concreto e atual dessa ruína social corrompidíssima disfarçada de nova “Ponte para o Futuro”: presidente, ministros, senadores, deputados, vereadores, e até mesmo o povo, todos profundamente estruturados na corrupção, no entanto, superficialmente tentando fazerem crer o contrário.

É preciso comprometer o Brasil consigo mesmo em função do fim da corrupção estrutural. Não só os políticos que escolhemos para representantes da corrupção que atravessa de cima a baixo e do passado ao presente a torre brasilis, mas também todos os demais. Tampouco devemos deixar-nos, o próprio povo, de fora desse comprometimento. Em primeiro lugar, mantendo o pedacinho do Brasil que ocupamos livre da erva-daninha da corrupção, pois só assim não nascerá nenhum jatobá corrompido insuportável. Em segundo, recusando-nos a separar o joio do trigo somente de quatro em quatro anos, nas urnas, mas participando direta, cotidiana e intempestivamente no governo do país. E em terceiro e mais importante lugar, nunca gritando: “salve-nos quem puder ser culpado no nosso lugar”; afinal, se algum corrupto é punido no lugar de outro, a corrupção segue tendo lugar cativo dentro sociedade.

A elite sabe ser povo?

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Pelo quinto dia seguido vejo da minha janela, doze andares acima da avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro, passeatas com centenas de cidadãos usando verde, amarelo, panelas e indignação, gritando histericamente “impeachment já” à presidente Dilma Rousseff, “fora PT”, “intervenção militar já”, e, o que para mim é mais grave, mais ainda que a intervenção militar, “Bolsonaro para presidente!” Abstraindo a discordância que tenho em relação a tais demandas, uma coisa eu não consigo deixar de achar lindo: o povo unido em função de uma causa comum. Minha aprovação, entretanto, para por aí, pois um olhar um pouco mais demorado mostra que não se trata exatamente de povo, mas de elite.

O que mais anda me intrigando nessa gente manifestante majoritariamente branca e abastada que finge ser povo debaixo da minha janela é se eles terão capacidade para aceitar não terem as suas demandas atendidas, como tantos professores, garis, caminhoneiros, servidores públicos, etc., que há muito mais tempo saem às ruas, igualmente unidos e com clamores bem mais dignos, mas que, no mais das vezes, voltam para casa de mãos vazias e pernas e línguas exaustas. A minha dúvida, na verdade, é se a elite sabe ser povo até o fim, ou, antes, só finge sê-lo, porém, secretamente, permanece a pequena leviatã mimada de sempre.

Todavia, pela alienação que vejo neles, como por exemplo: pedir democraticamente por uma intervenção militar que automaticamente cessaria a liberdade deles para pedirem qualquer coisa; bater panela feito idiotas em vez de ouvir o discurso do “inimigo”; chamar qualquer pessoa de roupa vermelha que cruze o caminho deles de puta ou vagabundo; tirar fotos com moradores de rua para mentirem nas redes sociais que nunca houve divisão na sociedade brasileira; por tudo isso é bem capaz que eles estejam pensando que basta sair às ruas, fazer alguma cena de efeito ou um ruído mais alto que o do trânsito para se conseguir o que se quer.

Será que a elite sabe que participar política e ativamente da construção de um país não é como entrar em um shopping center com um cartão de crédito no bolso e sair de lá com as mercadorias que se deseja? Sabe ela que não pode mandar em um presidente da república da mesma forma como mandam em suas empregadas (eletro)domésticas? Ou, como se vê nas praças mais gentrificadas onde a elite se agrupa e manifesta seus anseios antidemocráticos, sabe somente estourar algumas Moët & Chandon entre um vômito retórico e um tilintar de Le Creuset?

E quando dizem: “Fora PT! Queremos a nossa democracia de volta”, porventura acham que a democracia um dia pertenceu só a eles, e que os mais de 50 milhões de brasileiros que votaram em Dilma mais ela os tiranizam deliberadamente? Consegue a elite compreender que só há democracia de verdade enquanto aqueles que elegeram um representante tiverem o direito serem governados por ele, e que a própria elite, por sua vez, tem o dever de respeitar essa decisão majoritária, gostando ou não dela? Ou será que é preciso fazer um “power point” explicando o que é democracia para que a elite entenda o que é o governo da maioria?

Agora, falando sério, quando a elite pede a “democracia de volta”, outra coisa não está querendo que o regime político que constitui a sua essência, isto é, a velha e intransponível oligarquia, ou seja, “o governo de poucos”. Este regime exclusivista sim sempre foi deles. Ah, elite carente! Não obstante, o paradoxo de sua demanda pretensamente democrática logo se revela: quer a oligarquia de volta, todavia chamando-a de democracia, mas é justamente a democracia pela qual clama que tira o espaço de sua velha e exclusiva oligarquia. Só batendo panelas mesmo para que essa confusão faça algum sentido para eles.

E para piorar ainda mais a mixórdia de suas ideias e de suas manifestações públicas, a elite, sem se dar conta de que é apenas uma oligarquia carente, age como uma aristocracia injustiçada, cujo algoz é a verdadeira democracia, que, para a própria elite, parece tirania. Asfixiados pelo governo da maioria, e querendo esquecer o fato de que é apenas a minoria vencida democraticamente, a elite tupiniquim mente para si mesma que é melhor do que os que a venceram, e que a aristocracia, ou seja, “o governo dos melhores”, é democracia.

Uma vez reclamando por “sua democracia” roubada -na verdade gritando desesperadamente por sua oligarquia perdida- a elite se sente tiranizada justamente pela verdadeira democracia que, essencialmente, não dá espaço nem à sua verdadeira oligarquia, nem à sua pretensa aristocracia. Então, “impeachmados” por suas próprias contradições, a elite pede por um tirano, por um ditador militar, que em sua pessoa simbolizará radicalmente a exclusividade da oligarquia e da aristocracia juntas. A cereja do bolo seria se pedissem que o tirano ditador fosse o próprio Bolsonaro.

Talvez pelo fato de a elite tupiniquim perceber que a vertical oligarquia de que sente tanta falta não mais terá espaço na horizontalidade democrática que, esta sim, acolhe melhor a maioria do povo brasileiro, é que esta minoria historicamente acostumada com privilégios esteja agindo de forma tão radical e, no extremo, pedindo por um tirano. É como se dissesse: se eu não posso ter a minha oligarquia travestida de democracia de volta, a maioria também não terá a sua verdadeira democracia; seremos todos carentes do que mais precisamos; todos súditos igualmente desapoderados. Só assim, sem que haja desigualdade alguma entre ela e o restante dos indivíduos, e sem que haja também democracia, é que a elite sabe ser povo.

Coronelismo contemporâneo

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O coronelismo, ironicamente considerado um “brasileirismo”, surge com a hipertrofia da figura de um detentor do poder, no caso o coronel, sobre o poder público, através de fraudes eleitorais e da desorganização da coisa pública. Pode-se dizer que Eduardo Cunha, presidente da câmara dos deputados, sobrevive o coronelismo ao tentar deslegitimar o poder democraticamente constituído, por meio da articulação de um golpe político – midiaticamente chamado de impeachment – contra a presidente Dilma que, até então, não tem  crime algum comprovado contra si.

Cunha abusa da sua figura de detentor de poder a despeito das graves suspeitas que recaem sobre ele, quais sejam: sonegação de imposto; fraudes em contratos celebrados, em movimentações financeiras e na declaração de rendimentos; improbidade administrativa; captação ilícita de sufrágio; abuso de poder econômico, só para citar os que estão mais aclarados no momento. Porém, o bom coronel é aquele que segue agindo como se a lei nada valesse dentro do seu latifúndio.

E o despotismo de Cunha não para por aí. Diante de da ameaça de ser deposto do seu cargo de poder, Cunha diz: “Esquece, eu não vou renunciar”, e “se me derrubarem, eu derrubo todo mundo também”. Muito sinceramente o presidente da Câmara comunica à população brasileira que permanecerá no poder e, mais ainda, como fará isso: mediante a ciência dos “podres” de outras pessoas e o podre poder que esta vil ciência lhe confere.

Todavia, por mais vergonhosas que sejam as regras do jogo do atual presidente da câmara, pelo menos uma virtude elas têm. Qual seja, Cunha fala a verdade. A pior, no entanto, mais crua verdade. Seria muito pior se ele sustentasse a sua permanência no poder dizendo que é para o bem da população, como a cartilha político-demagógica indica no mais dos casos. Mas não! Ao menos Cunha deixa bem claro a sordidez na qual está atolado até o pescoço.

Historicamente, os coronéis tomam e mantêm o poder de duas formas: ou por meio da violência, ou mediante troca de favores. Bem, tentando um impeachment infundado, Cunha outra coisa não faz além de violentar a democracia, ou seja, todos os brasileiros. E “fazendo o favor” de não denunciar os seus companheiros na condição de eles “fazerem o favor” de não denunciá-lo, Cunha mantém viva a sórdida roda dos favores que sustenta o coronelismo.

O altíssimo preço do coronelismo, não só o de Cunha, é a abstração da democracia e da justiça na concretização de uma espécie de liberdade política e econômica tirânico-despótica, que, estratégica e infelizmente, abstrai ainda mais a democracia e a justiça, e assim por diante, viciosamente.

Falando de coronéis, não podemos deixar de lembrar de José Sarney, do mesmo partido de Cunha. O coronel-oligarca-mor que, desde que foi eleito governador do Maranhão em 1966, articulou praticamente todos os últimos governos do Brasil, foi presidente do Senado durante a ditadura militar, presidente do partido governista ARENA, vice-presidente de Tancredo Neves, presidente da república, apoiou os governos de FHC, Lula e Dilma, presidindo novamente o senado nestes períodos.

Afora isso, José Sarney é latifundiário, proprietário de seis afiliadas da TV Globo, de emissoras de rádio e de jornais. Com essa presença econômica, política e midiática, Sarney, permanece há quase 50 anos com as suas mãos no poder, concretizando cada vez mais uma liberdade política e econômica que aponta não para os interesses do povo que ele sempre disse representar, mas para interesses seus, de seus familiares e de seu partido.

Bom coronel que é, Sarney colocou sua filha no poder, Roseana, que começou como deputada federal, foi duas vezes governadora do Maranhão – o curral do clã -, senadora da república, e, em 2010, novamente governadora do Maranhão. Obviamente, não foi por ter bem representado o povo que a princesa da oligarquia maranhense mereceu por tanto tempo, e por várias vezes, a dianteira política.

Em 2014, a respeito da crise penitenciária do seu estado, evidenciada tragicamente pelas dezenas de decapitações de presos no presídio de Pedrinhas, Roseana disse ao Observatório da Imprensa que as coisas por lá iam muito bem, e que a violência só acontecia por que o Maranhão estava rico. Exclusivamente para ela a riqueza maranhense era verdadeira, dado que um dia antes da infame declaração ela havia autorizado licitações para a compra de camarões gigantes e sorvetes importados para o Palácio dos Leões, sede do governo.

Hoje, é Eduardo Cunha a figura descarada do coronel que não se priva de desorganizar a “res” pública para, com isso, organizar as suas e as do seu partido. Assim (sobre)vive o coronel; assim marcha o coronelismo: um erro que, pela força de seu vício intrínseco, sobrevive mentindo para todos que é um acerto. E tanto faz que o poder de Cunha seja deslegitimado ética, política e economicamente, pois para um coronel não existe coisas tais como lei, ética ou povo, apenas os seus imperiosos interesses particulares.

O coronelismo clássico que dominou o Brasil até o início do século passado foi reduzido quando, a partir da década de 1930, grande parte da população migrou para os centros urbanos, acessando com isso à educação e aos meios de comunicação, e por isso se tornando politicamente mais consciente e crítica. Não seria o caso então de efetuarmos algum tipo de migração, ainda que não geográfica, no sentido de esvaziarmos o curral onde as leis dos coronéis contemporâneos vigem verticalmente?

Todavia, qual é o “lugar” no qual estamos cativos do coronelismo de Cunha que, abandonado por nós, deixaria o coronel sozinho e sem poder sobre ninguém? Seria a democracia esse lugar? Oxalá não seja, pois, concordando com Aristóteles, a democracia ainda é o menos pior de todos os regimes de governo. Talvez o angusto sítio que devamos deixar de ocupar seja o minifúndio, nada cidadão aliás, onde apenas nos indignamos passivamente com as absurdidades dos coronéis.

Ora, qualquer indignação passiva da população apenas vai de encontro aos propósitos ativos do coronel. Devemos, portanto, migrar não “de” nossas indignações para um lugar onde elas não nos aflijam, mas, antes, migrar com as nossas indignações para um lugar onde elas surtam efeito contra aquilo que nos indigna. Do contrário, o poder dos coronéis só crescerá, mais nu e vergonhoso do que nunca.

Se o coronelismo atual, diferente do da era pré-Vargas, não se restringe mais apenas aos maranhões rurais brasileiros, mas ocupa despudoradamente o centro iluminado do poder, é esse centro que devemos abandonar. Porém, não para deixá-lo livre para os coronéis. Antes, “abandonar o centro” deve significar habitar capciosamente sua periferia, a ponto de fazer dela uma trincheira de onde possamos espreitar todas as facetas e estratégias dos coronéis que roubam, dos “observadores periféricos entrincheirados”, o centro para si.

Migrar para a periferia política, ao contrário do que pode parecer, não é desertar o campo de batalha, mas, paradoxalmente, tocá-lo de modo ainda mais direto, isto é: estar asfixiantemente em torno do problema central que nos aflige. Por isso os nossos cinquenta tons de indignação contra o coronel Cunha não serão efetivos enquanto, dentro do latifúndio dele, nos indignarmos apenas nas nossas solitárias navegações no Facebook, leituras de jornais e audiências televisivas. O fim de Cunha, como ele deixou bem claro, não partira dele, e, pelo teor de suas ameaças, tampouco dos que dividem o palácio central com ele.

Já nós, que até aqui apenas nos indignamos passivamente com os desfeitos do coronel Cunha, temos de abandonar esse parlatório inócuo e ocuparmos um lugar bem mais crítico, sabendo, contudo, que a construção de mais um limite aos coronéis, a exemplo do século passado, será lenta, histórica, e sobretudo exigirá movimento ativo do povo, melhor dizendo, sua evolução. Do contrário, Sarneys, Roseanas, Cunhas e demais coronéis sobreviverão impertinentemente, ao melhor modo zumbi, apodrecendo vivos, porém, sugando a vida do povo em função se sua insaciável fome de mais-poder.

Para um futuro livre do cabresto coronelístico, devemos espreitar, seja nas efemeridade das urnas, seja no longo período entre elas, todo e qualquer representante político para sabermos se seus objetivos giram apenas em torno do mais-poder ou se, antes, há alguma verdade sob as togas brancas-democráticas por meio das quais se elegem. Isso porque não há futuro com coronéis no poder, somente mais do mesmo, isto é, mais do sórdido passado brasileiro, em função do qual, aliás, um futuro realmente novo e descontaminado do velho “brasileirismo” chamado coronelismo se faz tão necessário.

Admirável Mundo Povo

“AME O POVO. FODA-SE A PÁTRIA”, assim mesmo, em histérica caixa-alta, dizia uma postagem no Facebook, no dia da pátria, sete de setembro. Acima e abaixo do “textículo”, duas imagens, uma dos Black Bloc de 2103, outra dos Coxinhas de 2015, ambos ateando fogo à bandeira brasileira. Fações aparentemente tão antagônicas de uma mesma sociedade protestando de forma idêntica, com efeito, chama atenção. Serão mesmo tão opostos os Black Bloc e os Coxinhas, ou, hoje em dia, a oposição é tão antagônica em si mesma que, para ser, precisa se emparelhar justamente àqueles em relação aos quais deveria ser e agir de modo oposto?

Porém, o que parece escapar tanto aos radicais mascarados quanto aos de cara limpa – tão limpa que nem um cisco de vergonha na cara lhes resta -, é a ideia de que a pátria “se fodendo” o seu povo subsista. Ora, “povo” é justamente o que as pessoas são quando há uma pátria. Afora ela, as pessoas são apenas multidão. Portanto, é ilógico mandar a pátria “se foder” e ainda assim querer ser povo. Se a frase infame pelo menos dissesse “AME A MULTIDÃO”, histericamente ou não, seria igualmente radical, contudo, coerente.

Creio que “PÁTRIA”, na frase, pretendia significar, radicalmente, “O Estado”, cujo conceito assaz abstrato – pelo menos para quem está histérico em relação a ele – não funciona de forma tão efetiva, afetiva e concreta. Por definição, o Estado é a razão abstrata daquilo que a pátria é afeto concreto. Pátria, por conseguinte, entrou na frase como um golpe retórico baixo, senão para pegar os leitores pelo coração, a parte mais vulnerável de todos nós. Ainda assim, persiste a contradição em querer que exista um “povo” sem que haja um pátria ou um Estado.

Se é a inexistência do Estado o que os dois grupos de radicais querem, espero que peçam minimamente pelo anarquismo. Sim, pois somente a anarquia pode unir as pessoas – não mais em forma de povo, obviamente, mas enquanto multidão absolutamente livre – sem ser através de um Estado vertical. Os Black Bloc certamente não teriam nada a objetar quanto a isso, muito pelo contrário. Entretanto, para os Coxinhas, a anarquia que resta da combustão da sua bandeira pátria não só é mais contraditória, quanto declaradamente indesejada. Se estes já não suportam a ideia de socialismo, menos ainda a de comunismo, imagine a de anarquia! No entanto, isso é a melhor coisa que ambos ganham ao mandar a pátria – portanto o Estado – “se foder”.

Agora, o que significa essa ideia-desejo comum de partes tão antagônicas da nossa sociedade de ser um povo sem pátria? Bem, ou 1) não mais ser povo de um Estado que lhe parece absurdo, ou, radicalmente, 2) ser um povo tão absurdo quanto essa sua pátria lhe parece. Sim, pois nada mais coerente do que um povo incoerente a uma pátria outrossim incoerente. A opção 2 pelo menos é lógica, ainda que radicalmente lógica, beirando a irracionalidade. Entretanto, somente os radicalismos dos Black Bloc e dos Coxinhas mesmo para surfarem no limite da razão social e bradarem discursos tão absurdos quando esse que afirma o fim da pátria e a permanência do povo.

Se os nossos radicais pudessem incendiar a própria pátria, e não só a sua bandeira, e se dessa combustão não restasse alguma mínima organização anárquica que desse forma a essa multidão então auto expatriada, sob as inevitáveis cinzas pátrias eles veriam senão o crítico território pré-Estado hobbesiano cuja Lei única rima com a velha frase do dramaturgo romano Plauto, “Homo homini lúpus”, posteriormente popularizada pelo filósofo político Thomas Hobbes na conhecida máxima “O homem é o lobo do homem”. Aposto que, nesse nível, sequer os Black Bloc estariam satisfeitos, quiçá os Coxinhas.

Agora, se contra Plauto e Hobbes, o que os radicais brasileiros, sejam os de 2103, sejam os de 2015, desejam é mesmo aquele estado de natureza de antes do Estado Civil, querem senão a barbárie do olho por olho, dente por dente que, entretanto, expõe todos à vulnerabilidade da morte injusta e violenta com a qual Hobbes justifica a necessidade de um Estado Civil que a evite de todas as formas. Para este filósofo, é justamente o medo da morte violenta e sem punição que faz com que a multidão firme entre si o contrato social que institui o Estado Civil, onde todos são proibidos de matarem-se uns aos outros, ou, se o fizerem, pagam o preço da justiça.

Se é isso que os nossos “Neros” apátridas realmente querem, eles são muito mais radicais do que se poderia imaginar. Selvagens saudosos? Todavia, talvez a virtude deles esteja precisamente em evidenciar, ao modo de uma encarnação sintomática, e da forma mais contraditória à civilização, a barbárie a que a própria civilização pode levar os seus indivíduos. Em outras palavras, esses que queimam a pátria e ainda assim insistem em permanecer povo expressam senão o limite disso que chamamos de pátria, ou de Estado. Nesse ponto, esse radicalismo é uma forma de saúde, ou pelo menos o primeiro sintoma de que o corpo está gravemente doente.

Para mim, é como se o subtexto da postagem facebookiana em questão fosse: você, PÁTRIA, que nos criou, e sem a qual não podemos ser o que somos, isto é, POVO, não está mais à altura da sua criatura. Queimamos-te sim em praça pública para vermos se te comportas como a Fênix, e se de tuas cinzas renasce uma pátria que faça jus ao povo que você inevitavelmente cria. Um renascimento-povo do renascimento-pátria. Sendo assim, por mais que seja uma aberração uma multidão imaginar que possa ser povo sem uma pátria afetiva e sem um Estado racional que faça a conversão da selvageria em civilização, tal imaginação tem ao menos virtude de nos lembrar de que a “criatura povo” pode pretender não ser mais escrava do seu “criador pátria”.

É como se Frankenstein o monstro se autonomizasse a tal ponto que, colocando Frankenstein o médico na fogueira, impedisse irremediavelmente a produção de novos “Frankenstein” monstros. Sim, a criatura pode se voltar contra o criador. Se não de forma civilizada e lógica, pelo menos por meio de radicalismos paradoxais. Ainda não consigo pensar um povo sem pátria, porém, estes que simbolicamente incendiaram a pátria e ainda assim acreditam que são mais povo que nunca aventam a possibilidade, ou pelo menos o desejo de um “povo” poder ser muito mais do que aquilo que a pátria faz de uma multidão. Questionar radicalmente as razões e os afetos que fazem da multidão um povo talvez seja a bárbara civilidade desse Admirável Mundo Povo.

Um tête-à-tête entre a Economia e a Política

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-Economia? É você mesma? Que milagre te ver assim, em carne e osso! Quer dizer… hoje em dia, mais osso do que carne, não é mesmo?

-Sim, sou eu. Mas, por favor, Política, fale baixo meu nome. Não quero ser reconhecida em público.

-Ué, Economia, você está com vergonha? Já sei! É por que você está em crise…

-Não é isso, sua intrigueira. É que eu não posso ser reconhecida pelas pessoas.

-Como assim, Economia? Você está metida na vida de todo mundo, da ventura à ruína delas. As pessoas estão carecas de te conhecer.

-É verdade, Política, elas me conhecem muito bem, mas não euzinha toda. Somente aquela parte minha que as toca, como as suas economias pessoais concretas, entende? Agora, se encontram com o meu lado abstrato, universal, dá problema.

-Explica isso melhor para mim, Economia.

-Lembra que você disse que estava surpresa em me ver “em carne e osso”?

-Sim, Economia, mas eu estava brincando…

-Ahan, Política, sei… De qualquer forma, vou usar a sua “brincadeira” como metáfora para te explicar as minhas duas caras. Pois então, é como se a minha personalidade concreta, aquela que as pessoas conhecem muito bem, fosse minha carne, que está ora mais gorda, ora mais magra, como você mesma falou. Já a minha personalidade abstrata, aquela que não diz respeito a ninguém em particular, é como se fosse os meus ossos. Melhor dizendo, o meu esqueleto, a estrutura a partir da qual a minha carne pode faltar ou abundar, dependendo dos movimentos do mercado, das variáveis climáticas, etc.

-Ah, Economia, estou entendo. Tenho de confessar que sei muito bem o que é sofrer de síndrome de dupla personalidade!

-No seu caso, Política, devemos falar de síndrome de múltiplas personalidades, não?

-Ha ha ha! É isso mesmo, Economia! Eu tenho de ter tantas caras quantos são os cidadãos que represento. Nossa, isso dá um cansaço! No final do mandato estou acabada! Sem dizer que todo mundo fica achando que eu sou falsa, que só me preocupo comigo mesma. E para convencer meus eleitores novamente, preciso de muito dinheiro privado nas veias para, nas minhas campanhas eleitorais, convencê-los de que posso representá-los como eles precisam.

-A diferença entre nós duas, Política, é que todos eles me acham verdadeira demais. Cruelmente verdadeira.

-Ah, então é por isso que você não gosta ser reconhecida em público, Economia?

-Não exatamente, Política. Não tem problema algum as pessoas encontrarem com a minha carne concreta, nas suas vidas, nas suas dificuldades cotidianas, nem com o meu esqueleto abstrato, seja nos telejornais, seja nos relatórios dos meus especialistas, os economistas. Separadamente, eu convenço e envolvo as pessoas sem maiores problemas, sigo economizando todo mundo. Agora, aqueles que me encontram “em carne E osso”, ah!, esses piram!

-Por que isso, Economia?

-Ah, Política, por que, em geral, as pessoas acham que o meu esqueleto abstrato tem de ser o cabide das carnes delas, de suas economias pessoais, que na verdade são minhas carnes e minha economias particulares, mas que por ser a parte minha que elas podem tocar, isto é, economizar ou não, acham que é delas. Só que se enganam. Na verdade, devo confessar, eu as engano… Sabe, fico constrangida em dizer que o que realmente importa é o meu esqueleto abstrato, que ele é a minha verdadeira estrutura, e não as minhas pelancas, essas contingências que os cidadãos conseguem tocar.

-Nossa! E como você faz para que o povo não descubra a sua verdadeira essência, Economia?

-Você está se fazendo de burra, Política, ou é burra mesmo?

-Calma, Economia, não precisa ser grosseira. Eu só queria saber como você faz para o povo não perceber que você, “A Economia”, não está nem aí para eles…

-Ora, Política, sua dissimulada… Vai dizer que você não sabe que para ninguém desconfiar dos meus segredos e contradições eu ponho você a trabalhar para mim?

-Sem essa, Economia! Eu, trabalho para o povo, só para ele. Sou a representante legítima dele aliás.

-Sim, Política, você até trabalha para o povo quando não está envolvida com seus próprios interesses. Porém, para convencê-lo de que eu, a Economia, funciono em função deles. Mentira que eu, sozinha, confesso, jamais conseguiria contar de forma tão convincente. Entretanto, sem euzinha aqui, não haveria necessidade alguma de você, Política.

-Essa é boa! Desde quando, Economia?

-Acho que você é burra mesmo, Política… Desde a Grécia Antiga, sua tonta! Muito antes de você sequer existir eu já estruturava a vida das pessoas. Talvez você não tenha se dado conta porque naquela época eu me chamava “oikonomos”, isto é, administração doméstica, e então…

-Oico o quê?

-Oikonomos, sua estúpida. Então, Política, como eu ia dizendo, foi só por conta das minhas dificuldades domésticas que os gregos da época começaram a fazer política. Por minha causa inventaram a “pólis”, isto é, a cidade, e chamaram a si mesmo de “polités”, ou seja, políticos.

-Quer dizer, Economia, que eu surgi para resolver os teus problemas domésticos?

-Exatamente! E até hoje, 2500 anos depois, segue sujando as mãos por mim, Política parceira. E é assim porque você é muito boa com as palavras, cria discursos maravilhosos, engana todo mundo com eles. O problema, Politica, é que no fim das contas você acaba acreditando nas próprias mentiras e se esquecendo de que, na verdade, você só veio ao mundo para costurar as minhas carnes concretas ao meu esqueleto abstrato com a sua emaranhada linha retórica.

-Então, Economia, Lenin estava falando sério quando disse que, embora tudo seja decidido na luta política, o que me deixava muito feliz e segura de mim, toda luta política é determinada, por você, a Economia?

-Bravo, Política. Prometo que não te chamarei mais de burra. Você finalmente parece ter entendido a hierarquia que nos separa. Isso está bem claro para você ou quer que eu desenhe?

-Não, Economia, não precisa desenhar. Você é melhor fazendo gráficos e planilhas de excell…

-Tampouco você sabe desenhar, não é mesmo, Política? Seu talento é com as palavras. Aliás, foi justamente por causa delas que eu te botei a remendar as minhas partes antagônicas, para que eu pareça sempre absoluta, e assim poder lucrar melhor às custas das pessoas.

-Nós não valemos nada, Economia. Não existimos sem fazer os outros de idiotas. Isso me lembra de quando você…

-Agora chega de gastar teu verbo comigo, Política, pois, como você mesma disse, eu estou em crise. E quando eu tenho problemas é você que deve trabalhar. Então, vá discursar para o povo que assim eu saio mais rápido do buraco. E da próxima vez que você encontrar comigo toda, por favor, seja discreta. Melhor: troque de calçada, pois se o povo nos ver juntas demais vão desconfiar da nossa estreita relação, e aí já viu, né, é ruim para mim. Todavia, tanto pior para você, não é amiga?

A velha democracia dos coxinhas contemporâneos

Por mais difícil que seja enxergar, os coxinhas querem uma democracia. Obviamente, não essa que temos hoje, cuja universalidade os afronta e pretere, mas uma bem mais antiga do que qualquer um desses acéfalos paneleiros pode imaginar. Com efeito, mesmo sem saber, o “coxismo” contemporâneo remonta à primeira democracia que o mundo conheceu, aquela inventada em Atenas, 500 a.C., na qual somente cidadãos homens&ricos decidiam o presente e o futuro da cidade-estado. Portanto, de imediato podemos concluir que estes reacionários contemporâneos são muito mais retrógrados do que se poderia supor.

Já Aristóteles, na sua Política, dizia que numa democracia “deve-se ser prudente com os bens dos ricos e não submeter nem suas propriedades nem suas rendas à partilha”. “Seria ainda mais sábio não obrigá-los a grandes despesas e até mesmo proibir-lhes serem úteis para o povo”, completa o filósofo. Podemos muito bem imaginar o que um aristocrata grego diria de um Bolsa família ou de um Minha Casa Minha Vida! Do repúdio à distribuição de renda tornada real na última década brasileira pelo governo petista, portanto, pode ser dito que é democrático apenas enquanto reencarnação da democracia mais primitiva de que se tem notícia: a aristocrata grega.

Dos 400 mil habitantes daquela Atenas de há 2500 anos, somente 30 mil tinham direitos políticos. Mulheres, escravos, e não proprietários de terras estavam desde sempre excluídos. Agora, porventura não é algo nestes mesmos moldes o que a democracia coxinha tenta reavivar ao solicitar a anulação do sufrágio universal por intervenção militar? Entretanto, e infelizmente, em vez da poderosa e estilosa retórica grega que polida e politicamente conquistava votos na assembleia, os “aristocoxinhas” de hoje têm o melhor de seus discursos no máximo de ruído que conseguem extrair de suas panelas, as únicas de que ainda podem ser ditas serem “polidas”.

Se “democracia”, em grego, significava o “governo do povo”, mas de fato ela era propriedade de menos de 8% da população de Atenas, era porque as ideias de povo e de população não coincidiam. Tampouco deveriam coincidir, pois só assim a riqueza do povo ateniense não seria confundida nem ameaçada pelos pobres atenienses. Por isso, desde lá, já era contraditório sustentar uma democracia enquanto apenas os melhores, os “aristoi”, ou poucos, os “oligoi”, governavam. De tal contradição, entretanto, os “oligocoxinhas” poderiam estar livres se atinassem para o que disse Aristóteles: que “a oligarquia é para a utilidade dos ricos; a democracia, para a utilidade dos pobres”.

Ora, se democracia é mesmo o governo dos pobres, como apontou o filósofo, nunca houve democracia na Grécia antiga, quiçá depois dela. E se hoje a aristocracia brasileira, preterida em função da remediação da pobreza histórica do nosso país, quer a berlinda de volta para si, busca a mesma coisa que os gregos chamavam de democracia, embora se trate, lá e aqui, de uma oligarquia, ou seja, do governo de poucos, ou o que é o mesmo, dos mais ricos. Por isso os nossos coxinhas contemporâneos acreditam realmente defender a democracia quando pedem a deposição de um governante democraticamente eleito pela maioria e a subjugação da vontade destes à tirania de uma ditadura militar que outra coisa não torna lei senão a vontade da minoria

A democracia grega, da qual a brasileira é filha tardia e transgênica, guarda um significado virtuoso, mas apenas no seu significado etimológico, pois, na prática, sempre carregou consigo os vícios aristocratas e oligarcas. Por conseguinte, ao se defender a democracia, como acontece no Brasil hoje em dia, fala-se, com efeito, de duas coisas bastante distintas: de um lado, a maioria, ou o “demos”, fazendo alusão a uma antiga utopia, que já era utópica na antiga Grécia, e, do outro lado, a minoria, os “aristoi” ou os “oligoi”, reclamando por uma realidade concreta, sempre renovada e renovável, que privilegia senão a eles mesmos.

Tal dominação histórica das minorias se dá, entre tantos e sórdidos motivos, também porque as oligarquias e as aristocracias conseguem muito bem mentir ao demos, isto é, ao povo, que são democracias. Os nossos atuais coxinhas, portanto, são ou democratas ancestrais ou oligarcas-aristocratas contemporâneos. Pior ainda, são estes insistindo em serem chamados daqueles.

Democracia ancestral ou oligarquia contemporânea?

Sim, os coxinhas também querem uma democracia. Claro, não essa que temos hoje, cuja universalidade os afronta, mas uma bem mais antiga do que qualquer um desses acéfalos paneleiros pode imaginar. Com efeito, o “coxismo” contemporâneo remonta à primeira democracia que o mundo conheceu, inventada na em Atenas em 500 a.C., na qual somente homens ricos comandavam a cidade-Estado. De imediato se conclui que estes reacionários de 2015 são muito mais retrógrados do que se pode supor.

Aristóteles, na sua Política, dizia que numa democracia “deve-se ser prudente com os bens dos ricos e não submeter nem suas propriedades nem suas rendas à partilha. Seria ainda mais sábio não obrigá-los a grandes despesas e até mesmo proibir-lhes serem úteis para o povo”. Podemos muito bem imaginar o que um aristocrata grego diria de um Bolsa família. O repúdio à distribuição de renda, como a experimentada na última década brasileira, é democrática, sem dúvida, mas na sua mais primitiva expressão.

Dos 400 mil habitantes daquela Atenas, somente 30 mil tinham direitos políticos – mulheres, escravos, e não proprietários de terras eram excluídos. Porventura não é algo nestes moldes o que a democracia coxinha quer ao solicitar a anulação do sufrágio universal por intervenção militar? Entretanto, e infelizmente, em vez da poderosa retórica grega que conquistava votos na ágora, os aristocratas de hoje tem o melhor de seus discursos no máximo de ruído que conseguem extrair de suas panelas.

Se democracia, em grego, significava o “governo do povo”, mas de fato ela era propriedade de menos de 8% da população, era porque as ideias de povo e de população não coincidiam. Tampouco deveriam coincidir, pois só assim o povo estaria liberto dos pobres. Essa ideia, todavia, encerrava uma contradição da qual nem Aristóteles escapou ao afirmar que “se são os ricos que comandam, será sempre a oligarquia; se são os pobres, a democracia”; ou que “a oligarquia é para a utilidade dos ricos; a democracia, para a utilidade dos pobres”.

Ora, se democracia é mesmo o governo dos pobres, como apontou o filósofo, nunca houve democracia na Grécia antiga, quiçá depois dela. Se hoje a aristocracia brasileira, preterida em função da pobreza histórica, quer a berlinda de volta para si, busca a mesma coisa que os gregos chamavam de democracia, embora se trate, lá e aqui, de uma oligarquia, ou seja, do governo de poucos. Por isso os nossos coxinhas contemporâneos acreditam realmente defender a democracia quando pedem a deposição de um governante democraticamente eleito e a subjugação da vontade da maioria à tirania militar.

A democracia grega, da qual a brasileira é filha tardia, transmite um ideia virtuosa, mas apenas no seu significado literal, pois na prática sempre carregou consigo os vícios da oligarquia. Por conseguinte, quando todos defendem a democracia, como acontece no Brasil hoje em dia, fala-se, na verdade, de duas coisas bastante distintas: a maioria, de uma velha utopia; e a minoria, de uma realidade, contudo sempre renovada, que a privilegia conquanto use um nome utópico. Os coxinhas, portanto, são ou democratas ancestrais confessos ou oligarcas contemporâneos disfarçados.

A estratégica subversão demagógica

A demagogia, técnica antiga forjada na Grécia, significa, positivamente, “a arte de conduzir o povo”. Entretanto, tonaliza-se negativamente quando seu escopo tende à manipulação das massas. Aristóteles bem colocou que a demagogia é a forma através da qual a democracia é corrompida em favor daqueles que, doravante, conduzem e manipulam os demais. Porém, essa ferramenta sócio-política, tão antiga quanto os grupamentos humanos, não pode ser alienada da vida das sociedades, dado que a sua presença histórica, ainda que de matizes anti-sociais, atende à certas necessidades dos homens nos momentos em que desgovernam-se, eles mesmos, na busca de suas necessidades essenciais.

Lula foi um presidente democrático, sem dúvida. No entanto, em certa medida, foi demagogo, mas não de todo. O presidente operário conduziu as massas, sim, uma vez que elas tinham perdido a capacidade de se autoconduzirem na engessada e elitista estrutura legada pela longa era militar brasileira. Felizmente, o coquetel político – platonicamente nato – presenta na figura de Lula – figura essa, friso, parcialmente demagógica – conduziu as massas para uma condição melhor. Claro, fosse este governante apenas, ou demasiado demagógico, ele não teria se mantido no poder por dois mandatos fortemente aprovados pela população nem teria elegido uma sucessora sua, esta, em vias de reeleição.

É importante reconhecermos a função estratégica, e inclusive salutar, que certa dose de demagogia pode ter no nosso devir sócio-político; da mesma forma que a tirania, a despeito das conotações que nós, modernos-pós-modernos, atribuímos a ela, em determinadas ocasiões e por determinado período foi positiva. Os antigos gregos e etruscos, de acordo com Fustel de Coulanges, na translação do poder sacerdotal para o político, chamaram, sem receio, esses novos líderes urbanos de “tiranos”, porquanto “Reis” eram aqueles que, desde sempre, intermediavam com o divino. Os primeiros tiranos, portanto, foram os que libertaram os sedentos assuntos sociais humanos dos acachapantes desígnios divinos; e os tiranos só ascenderam ao poder porque fortemente aliados às mais imperiosas necessidades populares, tais como o cancelamento das dívidas públicas, a reforma agrária e o fim da escravidão. Só um tirano para ir contra o poder estabelecido!

O problema da tirania, entrementes, é a sua permanência para além da revolução que representa. E isso vale para todas as formas de governo, pois o mal da demasia é imanente às instituições humanas – o mal da Cultura é cultuar-se! Logo, a permanência insistente não é predicado exclusivo da tirania, nem da demagogia; visto que nem o amor, a mais sublime das invenções dos homens, dura tanto quanto a presença daquele que é amado O problema, na verdade, não são as figuras com as quais o poder se representa no incessante devir político, mas sim a insistência delas uma vez caducas em relação às sempre renovadas necessidades populares. Essencial, hoje, é perceber quando a demagogia ultrapassa o limite positivo da condução e age no negativo sentido da manipulação, dado que a demagogia, mais-valendo-se livremente, e abstraída dos anseios populares, deságua não na tirania, mas sim na oligarquia, isto é, no governo de poucos.

De todas as formas demagógicas, as mais danosas são as religiosas, porquanto manipula no sentido de engodos transcendentes, ou seja, o final merecimento do reino dos céus. A atual candidata religiosa à presidência, Marina Silva, junta o pior dos dois mundos demagógicos na equação política que é. Essa candidata nada laica é uma duplicação demagógica: promete conduzir a população em um caminho mundano-político evolutivo no mesmo discurso em que prega um manipulado criacionismo divino-moral que, não obstante, contradiz qualquer evolução. Marina e sua corja evangélica entram em uma contradição que eleva a demagogia a uma potência tão perigosa quanto insustentável. Ela é sobredemagógica: suas palavras mentem condução, quem as fala evidencia manipulação, e a acolhida destas palavras gera, infelizmente, uma massa engodada e alienada.

Todavia, não é o caso de injuriarmos a demagogia e de bani-la imediatamente. Sua distância se dá a partir de grandes movimentos históricos. Melhor seria aceitarmos o tanto de demagogia que esse nosso momento expressa e, sobremaneira, carece, pois só assim poderemos lidar com essa arte sócio-política num sentido positivo. O que chamamos, hoje, de democracia, para Aristóteles, é a demagogia em sua presença plena, pois, diferente da democracia grega, cujo pressuposto básico era a participação política direta de todos os cidadãos nas decisões coletivas, a nossa é demasiado representativa, entregue às mãos de poucos eleitos para nos conduzirem em nossos interesses. Logo, sob o nosso ideal democrático esconde-se sorrateiramente um real demagógico, e essa democracia cenográfica só se sustenta devido à força do texto demagógico que conduz a trama social atual.

Portanto, não é o caso de, nestas próximas eleições, escolhermos candidatos que não sejam demagógicos, visto que não há política não-demagógica disponível na contemporaneidade. Muito menos o voto em branco nos serve, porquanto o valor desse ato político – fantasiado de apolítico, ou mesmo de antipolítico – valoriza diretamente o tipo de demagogia mais perniciosa, a sobredemagogia, ou seja, aquela cujo real interesse é o de manipular e ludibriar a massa, não o de conduzi-la. Embora estejamos momentaneamente impossibilitados de representarmo-nos diretamente na arena política brasileira, e isso devido à representatividade demagógica que mantemos eleita, podemos e devemos agir, ainda que indiretamente, conta os piores tipos de demagogia que nos espreitam.

Se a nossa democracia é aristotelicamente demagógica, tal é a nossa política. Logo, a ação política mais apropriada ao cidadão atual não deve ser a inocente democrática, mas sim a cínica demagógica. Pois somente apropriando-nos subversivamente desta “arte de conduzir”, e invertendo-lhe o foco, isto é, tornado artificial o próprio artifício, é que poderemos manipular os diferentes modos demagógicos que nos manipulam a fim de conduzir ao poder aquele que conduzirá as nossas necessidades cidadãs à luz da ação. Se nós, conjunturalmente, precisamos ser conduzidos, que essa condução não nos escape completamente, ou então estaremos entregues às manipulações demagógicas mais abjetas e vazias que, no caso brasileiro atual, vêm das mãos dadas da crente Marina e do inacreditável Malafaia; mãos evangélicas ansiosas para manipularem demagogicamente a massa para além e em absoluto detrimento das reais e contingentes necessidades desta.