Rejuvelhecer

Berlim, terça-feira, quinze de julho: os vitoriosos jogadores alemães comemoram em palco aberto como adolescentes, cantando musiquinhas infantis e inclusive racistas. A multidão os ovaciona. Rio de Janeiro, mesma data: quatro senhores por volta dos seus cinquenta anos, caminhando juntos pela Nossa Senhora de Copacabana, todos sem camisa, musculosos como garotos de dezessete, cada um deles carregando um skate. Os garotões da terceira idade arrasam em sua promenade carioca. São Paulo, mesmo dia: cento e vinte colaboradores – adultos – da maior empresa de buscas na internet confraternizam em uma piscina de bolinhas coloridas. Grande alegria.

Poderíamos desconsiderar os exemplos acima e ainda assim realizarmos que o investimento na adolescência é um dos maiores objetos de consumo da nossa época. Pouco importa não ser mais adolescente, ou não sê-lo há muito tempo, o que interessa é insistir na adolescência como se ela fosse a única época digna da vida. É quase vergonhoso estar de fora dela. Academias de musculação, bem como clínicas de cirurgia plástica e de aplicação de Botox, são as novas fontes da juventude onde se busca ou permanência ou o retorno à época dourada que antecede a vida adulta. A felicidade, hoje, pede aparência e atitude juvenis.

Que prazer encontram os não mais adolescentes na imitação da adolescência? Qualquer resposta deve atentar para a periferia da maturidade. Platão já dizia que o jovem não reconhece o superior, somente o imita, porquanto não tem conhecimento da realidade, mas só de suas aparências. Logo, seguindo na lógica do filósofo, imitar a um adolescente é nada mais que imitar a uma imitação, ou seja, aparentar uma aparência. Onde estaria o prazer disso? Possivelmente na tentativa de esquecimento de algo que é constituinte absoluto do ser humano, isto é, a consciência da própria morte.

Por conseguinte, a que desejo fundamental o contemporâneo desejo de juventude eterna atende? Segundo Platão, o jovem é guiado por desejos que vêm de fora dele, mas que atendem a desejos que ele tem dentro de si, só que ainda reconhecidos. Aquele que deseja ser jovem novamente – ou eternamente -, portanto, deseja alienar-se dos seus próprios desejos e ser guiado por outros que não os seus; embora acredite sintomaticamente que o seu desejo é simplesmente o de ser jovem. Contudo, qual o gozo que a ignorância dos próprios desejos pode trazer? Que desejos que não os nossos prometeriam mais realização?

O adolescente tem na possibilidade de irrealização dos seus sonhos e esperanças o seu maior fantasma, e salvaguardá-los da derrota é uma estratégia promissora. Portanto, investir em desejos outros que não os seus lhes garante não fracassar naqueles que são os mais importantes, a saber, os seus. Platão colocou que a esperança do jovem não demora a bagunçá-lo, então ele prefere alienar-se dela a persegui-la. Um adulto, ao agir como um adolescente, embora acreditando que é a um corpo viçoso a alguns hábitos impertinentes o que ele realmente deseja, na verdade, está buscando proteção àquilo de mais caro a ele mesmo, ou seja, os seus próprios desejos – que, como todos os outros, pode ser que não se realizem.

Porém, a vida adulta, e mais ainda a velhice, são as fases da vida onde se enfrenta corajosamente a angústia da frustração que, em verdade, nunca deixou de nos acompanhar. “Há um inimigo maior ao homem do que a mudança, e esse inimigo é ele mesmo”, disse Platão; por conseguinte, fugir da arena da maturidade na transitoriedade inconstante da ágora é possível – ainda mais com a tecnocosmética atual -. Mas em que sentido isso aniquila o principal fantasma que é o de não realizarmos nossos próprios desejos? Ainda assim, mesmo que não os realizemos, novos prazeres sempre sucedem aos velhos, e é justamente isso que o jovem ainda não sabe, visto que ele só teve os primeiros.

Platão afirmou sabiamente que “Chegará um tempo no qual a frase ‘eu não tenho o direito de fazer o que eu quiser comigo mesmo?’ parecerá uma relíquia bárbara do individualismo”. Talvez tenha chegado esse tempo, pois o investimento na juventude eterna, além de ser uma quimera que em nada agrega valor ao produto, é a absoluta impertinência do sujeito em relação à Natureza. Somente um hedonismo ignorante e decadente pode acreditar na permanência artificial do que é verdadeiramente transitório. Nesse sentido, a propriedade da juventude pode ajudar o bárbaro em batalha, pois “O jovem é incapaz de entender o que é alegórico e o que é literal”, disse o pensador grego.

“O conceito de felicidade, para a juventude, é apropriar o todo a ela mesma” escreveu Platão. Podemos intuir a partir daí que a felicidade para um adulto, ou para um velho, deve ser a madura e assertiva apropriação de si mesmos ao todo, à Natureza, à plena existência compreendida no universo para além das suas fases iniciais. O vigor adolescente é sedutor, não resta dúvida, pois tem ímpetos de destruir regras e princípios, como a musiquinha racista entoada despojadamente pelos campeões da copa do mundo; embora esse vigor ainda não tenha nada melhor para colocar no lugar daquilo que destrói.

É preciso desacreditar de que a boa vida só acontece sob peles viçosas, em torno de músculos e rituais juvenis. Desejar o eterno retorno à adolescência, ou seja, à época em que mais se experimenta inadequação, é somente o sintoma da eterna inadequação que nos espreita atrás de cada nova idade, de cada nova fase da vida, de cada mudança do corpo. Deixar de ser adolescente é vencer tal sentimento e ao mesmo tempo tirar proveito dele. Do contrário, acaba-se como aqueles velhos skatistas sarados de Copacabana, “rejuvelhecendo” constantemente até morrer sem saber o que é a velhice, enfastiados com a repetição imatura de uma juventude perdida.

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O “Selfie” de Dorian Gray

O culto de nossos dias à beleza e à juventude remonta à obra de Oscar Wilde, parafraseada no título deste texto, muito apropriada à reflexão do preço que se paga na busca de tais objetivos. Dorian teve de vender nada menos que sua alma ao diabo, não obstante vendo seu retrato envelhecer à medida que ele permanecia jovem, belo e alegre, porquanto, para Wilde, “a alegria de mentir é estética”.

O diabo de Wilde, enquanto encarnação do mal absoluto, abduzido à contemporaneidade, encarna-se na palavra Botox (toxina botulínica), o veneno mais perigoso encontrado na face da terra, cuja dose, por pequena que seja, pode matar milhares de pessoas. O nosso diabo, tanto quanto o de Dorian, por malévolo que o seja, possibilita “reter apenas o lado ensolarado da vida”, como escreveu Wilde, entretanto, para o escritor, “revelando uma visão mutilada da vida”.

Historicamente os homens deixaram de amar aos deuses para amarem uns aos outros. Agora, contudo, passa-se a amar a si mesmo como a um deus, e tal amor cobra perfeição e eternidade. Todavia, para Tzvetan Todorov, esse é um “esteticismo redutor, anti-humanista, na medida em que mutila o ser humano”, pois, para o filósofo, esse individualismo é entendido como egocentrismo e autossuficiência, o que nos leva a desconsiderar os outros; e a nós mesmos enquanto qualquer um.

Benjamin Constant já alertava para o fato de que “há na contemplação do belo alguma coisa que nos destaca de nós próprios, fazendo-nos sentir que a perfeição vale mais que nós”. Entretanto, “não são os seres perfeitos, mas os imperfeitos que necessitam do amor”, disse uma das personagens de Wilde. Tudo o que é vivo é forçosamente imperfeito e perecível, e a beleza eterna, por conseguinte, reside na assunção dessa verdade. Feio é evitar a vida no seu desenrolar natural.

“A beleza é uma faceta provisória do ser, não sua totalidade”, colocou Todorov, pois “dissimula a face atroz da realidade”, que é o fato de envelhecermos e morrermos, o tempo todo, inexoravelmente. Melhor é acreditar no que disse Montaigne: “As mais belas vidas são aquelas que permanecem no modelo comum e humano, sem milagre e extravagância”. Cirurgias plásticas e injeções de Botox, portanto, são um remédio excessivo e bem pior do que aquilo que prometem curar, visto que o envelhecimento é o que há de mais natural e simples.

Os gregos, os grandes amantes do belo, atrelavam a beleza à verdade, ainda que louvassem a juventude enquanto portadora excelente da beleza física, único atributo de valor de um jovem. Aos velhos, a beleza residia na sabedoria e na temperança, e era ridículo a um não jovem desejar juventude. Hoje em dia, identifica-se o belo ao falso, ao sofisticado, à máscara que se usa ao deixar os salões e clínicas estéticas.

As estátuas gregas serviam para eternizar simbolicamente beleza e juventude ás pessoas, visto que estes ideais não acompanhavam a mobilidade da vida, e o seu desaparecimento era, portanto, o grande convite a algo maior, ou seja, à sabedoria. Hoje, contudo, muitos se convertem em suas próprias estátuas, marmorizando-se através de pactos botulínicos com o diabo do excesso de amor impróprio: esculturas narcísicas refletidas em águas tão rasas quanto pouco sábias.