Utopias e distopias tupiniquins, de 2013 à 2016

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No calor utópico do junho de 2013 tupiniquim, a multidão das ruas tinha uma agridoce certeza de que produzia o começo de uma mudança ético-política virtuosa na sociedade brasileira. Porém, a vitória dos 20 centavos nas tarifas de ônibus, a promessa de reforma política arrancada de Dilma em cadeia nacional, os gritos-desabafos coletivos contra o fundamentalismo religioso de Marco Feliciano e os seus e contra a perniciosidade midiática da Rede Globo e afins, não tardaram, em 2016, a se transformarem em passagens de ônibus ainda mais caras, em um parlamento mais à direita e mais fundamentalista do que se poderia imaginar, e no agigantamento antidemocrático e claramente vingativo da Rede Globo.

O que em 2013 era uma promissora utopia para aqueles manifestantes, em 2016 revelou-se a mais indigesta distopia, ou seja, um lugar mais opressivo do que se esperava e, mais importante, do que se queria. Hoje, não é difícil enxergar que até a democracia e a justiça estão perdendo os seus “topos”, isto é, os seus lugares na terra brasilis. Já aqueles para quem as demandas de 2013 e os seus espetaculares “vândalos” eram augúrios distópicos, 2016, de certa forma, é uma utopia quase realizada.

Três anos depois do junho de 2013, é difícil não concluir que foi ingenuidade das “flores” da chamada primavera brasileira acharem que cutucar a velha onça oligárquica com a vara curta das insatisfações populares não traria uma mordida muito mais violenta da fera do que as incontáveis bombas de gás lacrimogênio semeadas pelas polícias nos asfaltos urbanos e do que a desclassificação peremptória do movimento pela mídia tradicional em nome dos famigerados “cidadãos de bem”.

A isenção de impostos para tempos religiosos aprovada pelo senado em 16 de março de 2016, a lei antiterrorismo sancionada por Dilma um dia depois, a inacreditável permanência de Eduardo Cunha na presidência da Câmara dos Deputados apesar de seus crimes, a absurda presença do criminoso internacional Paulo Maluf na comissão de impeachment contra Dilma, a vigorosa ópera golpista da Rede Globo, tudo isso só reforça, por um lado, a face distópica oculta da utopia dos manifestantes de 2013, e, por outro lado, o potencial utópico da distopia que 2013 representou para a direita radical e fundamentalista.

Para reforçar ainda mais essa ideia, não precisamos nem justificá-la nas respostas transcendentes e opressivas das estruturas política, jurídica, econômica e midiática que os manifestantes de 2013 estão recebendo agora. Basta considerar a imanente contra-resposta outrossim popular que ocupa as ruas do Brasil desde 2015, com verde, amarelo, panelas, ódio, homofobia e odes à Bolsonaro. Sem dizer do inacreditável clamor por intervenção militar, monarquia e impeachment, e todos para já!

Agora, do ponto de vista dos ideias de 2013, seria possível sustentar uma nova utopia a partir da nossa tácita e atual ágora distópica? Claro que sim, visto que nada melhor que o vislumbre de uma distopia para que seja gerado novos e melhores horizontes a serem alcançados, construídos. A utopia mais necessária no momento seria uma que apontasse para um futuro no qual a tendência fascista, fundamentalista e opressora que 2013 recebeu como resposta de 2016 fosse seguida de uma contra-resposta democrática, laica e libertária. Algo como um novo 2013 depois de 2016.

Tal pretensão utópica porventura seria atópica, isto é, sem lugar na realidade, ou ainda podemos confiar em alguma dialética político-histórica, que aponte não para o fim da história, mas para o seu eterno prosseguimento? Há os que defendem que não há tal dialética, que o real não responde velhas perguntas, que apenas segue tagarelando, descontrolada e surdamente, do presente e para o próprio presente.

Porém, o antagonismo quase que perfeito entre, por exemplo, o radicalismo dos black bloc e o dos “coxinhas” é assaz intrigante. É difícil sustentar que estes ignoram aqueles, que apenas dialogam consigo mesmos e com o absoluto presente. Mais ainda, que a força que hoje a direita experimenta, mais elitista e antidemocrática do que até mesmo ela seria capaz de imaginar ser capaz há três anos, não replica a força social e democrática que a esquerda demonstrou no Brasil nos últimos treze anos e, espetacularmente, nas manifestações de 2013.

Negar a dialética histórica é pertinente até onde a sua consideração indiscriminada faz com que a voz do presente seja asfixiada pelos ecos do passado e pelos sussurros do futuro. Todavia, se não há o mínimo diálogo entre o que se diz agora e o que foi dito antes, e se essa dialógica por sua vez não resulta em uma espécie de “deixa” para os “bifes” futuros, as utopias não existiriam. Mas… não há nada numa utopia que impeça a sua existência. Essa impossibilidade existencial é chamada atopia. Utopias são coisas que não existem, porém, ainda.

Além do mais, “utopizar” que algo como 2013 possa ou deva se seguir de 2016 não quer dizer que o fim último da sociedade brasileira seja um sempiterno estado democrático, laico e livre, por mais que seja isso que muitos de nós deseja. Antes, aponta para o absurdo que é imaginar que um estado fascista, fundamentalista e opressor preencha essa finalidade. E mais, que entre eles não dialoguem também os “cinquenta tons de cinza” que os distanciam.

Pode ser que a resposta antagônica ao poderoso e antidemocrático discurso que ocupa o proscênio do teatro político brasileiro tenha de esperar mais tempo do que os mais otimistas “utopizam”. Não obstante, é justamente a presença ostensiva de um vil discurso fascista, golpista e antidemocrático, aqui, que, ali, estimula um contradiscurso mais virtuoso; que por sua vez provoca um novo contradiscurso vilão que impertinentemente busca equilibrar tamanha virtude; e assim por diante.

O primaveril 2013 e o invernal 2016, ao contrário do que queriam aqueles e do que querem estes, não tem como serem hipostáticos. O verde e amarelo fascista de 2016 -utópico para os coxinhas e distópico para os black bloc- sucedeu o vermelho e o preto libertário de 2013 -utópico para os black bloc e distópico para os coxinhas. O que sucederá 2016 outrossim será utópico para uns e distópico para outros, tem jeito não.

O topos brasilis também se desenrola no tenso diálogo entre estes dois personagens-horizontes: utopia e distopia. Quanto mais não seja, porque em menos de uma semana esse tête-à-tête pôde ser visto nas ruas brasileiras: a multidão que ocupou as ruas no dia 13 de março, para quem a atual democracia é distópica, e o fascismo, utópico, outra coisa não fez que dar uma inevitável deixa para outra multidão ocupar as mesmas ruas, cinco dias depois. Para estes, entretanto, o fascismo é que é distópico, e a democracia, porque aparentemente atópica, deseperadamente utópica.

Por que duvidar do prosseguimento e da radicalização desse diálogo entre os que querem “Brasis” tão diferentes? O plurívoco março de 2016 não deve deixar dúvida a respeito dos futuros que são tentados para o Brasil nesse presente crísico: um horizontal-democrático e outro vertical-oligárquico. E a discussão só é tão presente e vigorosa porque seus componentes dialéticos são irredutíveis: para a utopia democrática de 2013, a oligarquia é distópica; e para a utopia oligárquica de 2016, é a democracia que é distópica.

Como não está escrito em nenhum céu platônico que a democracia é a regra para a sociedade brasileira, pois isso é apenas letra –tomara que não morta- do livro que essa mesma sociedade escreveu para si, e à qual chama de Constituição, é do diálogo entre as presentes forças que resultará não a norma não para o futuro eterno, mas, digamos assim, os indícios para os “presentes” tupiniquins imediatamente subsequentes. A democracia é uma construção, porém frágil e instável, pelo menos muito mais vulnerável que os velhos bunkers da oligarquia.

Agora, quaisquer virtudes de 2013 somente terão “topos” em 2016 e no futuro próximo se não houver a vitória absoluta da antidemocracia que vemos garatujada em 2016. Por isso a insistência nas utopias de 2013 é mais que necessário ao resumo midiático-fascista da ópera que 2016 tenta fazer. Insistir virtuosamente nisso, entretanto, é saber que a luta é composta. Há “lutas” dentro da luta: a da utopia de 2013 versus sua própria distopia, aclarada 2016, contra a luta da distopia de 2013 a favor de sua própria utopia, quase dona do “topos brasilis” em 2016.

Os que querem algo da utopia de 2013 tendo lugar no presente, quiçá no futuro, antes de gastarem toda munição contra com a distopia que receberam de 2016, devem se ocupar com a distopia que seus próprios ideias tinham escondidos em si, lá em 2013, que não foram apreciados devidamente por conta do calor e da emergência daquelas manifestações juninas. Só assim, ciente de suas próprias contradições, é que a energia ética e democrática de 2103 poderá apontar devidamente as contradições de 2016 e ter algum rendimento contra a antiética e a antidemocracia que busca ocupar o topo do agora.

A sempiterna pertinência da esquerda

O debate em termos de esquerda e direita tornou-se abstrato para polarizar uma dialética política produtiva no nosso país. Contudo, isso não quer dizer que não existam mais. A tradicional esquerda, para figurar no cenário nacional, e intervi-lo, teve de deixar o seu radicalismo em suspensão, migrando funcionalmente em direção ao centro, ao preço de confundir-se com ele. Por isso fica difícil pensar em “esquerda” e “situação” ao mesmo tempo.

Antes de dizer que se trata de falta de caráter esquerdista, pensemos um pouco. Por acaso, há 13 anos, não era alardeado nacionalmente o fantasma de que a esquerda de Lula, quando no comando do país, daria o “calote na dívida externa”, envergonhando e comprometendo o Brasil diante do monetarismo internacional? Caso a esquerda tivesse correspondido a essa expectativa, seria a velha e tradicional esquerda que queriam fazer-nos acreditar. Porém, o que há de menos revolucionário e menos de esquerda que respeitar e suster a tradição?

Ao transcender os estigmas radicais através dos quais era vista, a esquerda petista não só tornou-se mais adequada à realidade brasileira como, surpreendentemente, foi ela que pagou, finalmente, a dívida externa! Isso sim foi revolucionário, pois o a tradição até então era de aumentá-la! O preço dessa pertinência histórica foi um desbotamento do vermelho radical da esquerda, mas não só isso, pois a abertura da esquerda petista também resolveu o problema da fome, da educação, do desemprego e da economia que, esperneiem-se em os opositores, vai muito bem obrigado em um cenário econômico internacional instável e “crísico”.

No entanto, a movimentação “à direita” que a esquerda possibilitou-se foi acompanhada por uma polarização ainda mais acentuada da direita, como se esta quisesse manter a distância de sempre em relação ao pensamento oposto ao seu. O resultado é que a direita polarizou-se à direita de si mesma a ponto de, hoje, ser confundida com o fundamentalismo religioso; evangélico, diga-se de passagem. Isso para dizer que o abismo entre direita e esquerda não desapareceu, apenas migrou, todo ele, um tanto à direita.

Há sim direita e de esquerda no nosso país: aquela governando no sentido de colocar o povo na manutenção do grande capital “oligo-nômico”, enquanto a esquerda luta para inverter o quadro, pondo o capital – sem estigmatizá-lo, e isso é revolucionário tratando-se de esquerda – a serviço do povo, que é o verdadeiro laborador dessa riqueza. Haverá esquerda e direita enquanto houver gentes com privilégios e outras gentes desprivilegiadas. Enquanto houver um Sarney ou um Maluf vivo na face desse país haverá necessidade de uma esquerda para lhe fazer frente. Caso contrário, oligarquias como as maranhense e a paulista farão, sordidamente, todas as frentes.

Outra dialética que perdeu força nos últimos doze anos foi a entre ricos e pobres, mas isso devido à migração de ambos no sentido da riqueza, visto que, hoje, os outrora pobres também viajam, entram na universidade pública, possuem “mais médicos” e compartilham das mesmas tecnologias que, antes, eram privilégios apenas dos ricos. Talvez por isso a direita tenha se polarizado tanto à sua própria direita, pois o que a constitui e sustenta é nada mais que a artificial distância que a separa dos desprivilegiados. Dessa forma, a direita ainda é a manutenção da desigualdade, pois é esta a justificadora do seu ser.

Em tempos em que direita e esquerda, e ricos e pobres, não são os melhores opostos em um diálogo profícuo, pois atual e temporariamente abstraídos – e isso devido às mudanças concretas dos velhos parâmetros -, o embate se polariza em torno de partidos políticos. É como se os extensivos conceitos de esquerda e direita tivessem de adequarem-se às estreitas fronteiras partidárias, e não mais o contrário, onde os partidos se colocavam majestosamente ou no continente da direita ou no da esquerda.

Hoje, precisamente, há o PT e PSDB, e ambos têm de dar conta de ser “toda” a esquerda e “toda” a direita, respectivamente, de uma só vez. Tarefa menos ingrata à esquerda do que à direita, por certo! Resta-nos, portanto, um devir maniqueísta no diálogo político nacional, onde os partidos devem ser ou bons ou maus; predicados que, em verdade, subsistem em cada um deles. Não é difícil listar as venturas e desventuras tanto da direita como da esquerda. Aliás, é o pacote contraditório de predicações que cada indivíduo agrega a cada uma delas que o faz “de esquerda” ou “de direita”.

Entretanto, se a direita e a esquerda são o que as pessoas pensam e fazem delas, o valor e a pertinência de cada uma residem, democraticamente, no valor defendido pela maioria. E, no caso do Brasil, a maioria não é de ricos, mas daqueles que precisam ao menos de uma fatia dessa riqueza pessimamente dividida. Sendo assim, a necessidade de quebrar o modo oligárquico de Estado é imperiosa, pois ele não existe em favor da maioria. Quanto a isso, não há direita que se adeque à realidade atual. Por conseguinte, não há caminho que não em direção à esquerda que nos afastaste da persistente desigualdade que logra a maioria.

A trágica consciência da inconsciência

O homem é muito mais que uma consciência, é a consciência de sua consciência. Todavia, o que o diferencia irremediavelmente de todos os outros animais – e isto é revolucionário – e a consciência de sua própria inconsciência. Somos o que conhecemos e, mais importante, aquilo de que não temos conhecimento, sendo a inconsciência a estrutura principal dos indivíduos enquanto indivíduos. O que eu sei provavelmente é sabido pelos demais, visto que o saber é contingente e cultural. No entanto, é precisamente aquilo que me escapa totalmente o que me diferencia de todos os outros e me torna único, conquanto esse conhecimento permaneça velado inclusive para mim. É por estar sujeito a uma ignorância totalmente ignorada pelo mundo que eu sou um sujeito inquestionável para mim mesmo.

Outra característica da consciência humana é a invenção da felicidade e da tristeza enquanto objetos outros que não ela mesma, doravante estando, essa consciência, completamente sujeita a tais objetos seus. Porém, a falta, e consequentemente a tristeza, são os objeto de trabalho da consciência, podendo-se dizer que são a própria consciência em si, dado que presenças incontestes porque insuportáveis: plenamente conscientes. Já a felicidade, que é plena justamente quando não objetificada, ou seja, não condicionada às externalidades que vão e vêm ao sabor do real, relaciona-se com a inconsciência ao modo de fundá-la e sustentá-la. A consciência da felicidade é, antes, a consciência daquilo que pode privá-la de tal felicidade; ou, depois, daquilo que pode solapá-la; de forma que a consciência da felicidade é a consciência do seu oposto absoluto, isto é da tristeza de não ser, ou de não mais ser feliz.

A felicidade, para existir, deve ser inconsciente de suas causas; esquecida dos desígnios mundanos que a principiaram; pois, uma vez conscientes disso tudo, está irremediavelmente consciente da presença daquilo que não é a felicidade. Logo, felizes estamos quando inconscientes da miríade de eventos reais que nos conduziram até essa experiência que ficciona um ideal no cerne do real. A felicidade, portanto, exige a alienação, ainda que momentânea, do caminho que conduz até ela, ou, do contrário, por memorial, não se diferenciaria da tristeza. Quando felicidade e tristeza são uma coisa só, isto é, não são opostos digladiadores a se diferenciarem, temos a vida como ela é, absolutamente universal, animal; de forma alguma aquela que nós, enquanto sujeitos, percebemos e instituímos.

A invenção humana da tristeza e da felicidade objetivas são o reflexo das realidades da consciência e da inconsciência no real, ou seja, os espaços subjetivos de existência daquelas. Essa obra humana, no entanto, pode ser vista como um grande erro: sintoma da primordial tomada de consciência acerca dos atavismos da vida; e, em função disso, a salvaguarda inconsciente daquilo que os soluciona: a temporária inconscientização daquela consciência primeira da qual não se escapa. Entrementes, esse erro resultou em nós, humanos, seres que só são porque entre felicidade e tristeza, entre consciência e inconsciência. Exilados destes sofisticados opostos, voltamos a ser os animais de outrora. Entretanto, apesar dos demais animais serem, como nós, um universo fechado em suas próprias necessidades e soluções, eles assumem essa imanência de tal modo que, ao contrário de nós, não chegam a tomar consciência disso tudo.

Não havendo consciência, tampouco há inconsciência, visto que esta decorre necessariamente daquela. É por sermos conscientes do que nos falta, e por essa falta faltar à sua própria auto-apresentação, que é fundado um lugar chamado de inconsciente, aonde essa falta existe em sua plena ininteligibilidade. O inconsciente, dessa forma, funciona como um útero que, a partir da consciência do real contingente, gera, a despeito desta, a vida que lhe falta conscientemente, isto é, realidades. Tomando esse movimento metafisicamente, a consciência seria o ser, enquanto a inconsciência, o não-ser-em-vias-de-ser-já-sendo. Logo, a inconsciência labora os mundos negados pela consciência, contra esta, funcionando, sintomaticamente, em função e em conjunto com a consciência. Consciência e inconsciência são-nos uma coisa só conquanto nos tomemos por animais. Porém, uma vez humanos, elas devem ser cindidas e afastadas uma da outra pelo estranho distanciamento chamado de sujeito.

A inconsciência da consciência é animal ou divina. Entrementes, as consciências tanto da consciência quanto da inconsciência são exclusivamente humanas; essa é a condição à qual estamos sujeitos – e desse sofisticado conceito não conseguimos nos alienar. A própria dialética obtusa e secreta que são os nossos pensamentos revelam o interminável diálogo interno daquilo que é – a consciência – contestando o que não é – a inconsciência -, na mesma discussão em que o não-ser reivindica ser. Porém, aqui, a felicidade pergunta-nos se, ela mesma, não seria o quieto silêncio que encerra esse ardente diálogo, e se sua inimiga complementar, a tristeza, não seria o próprio debate em seu vívido discurso. O animal, se pudesse, responderia que sim, que a felicidade está certa em pensar-se dessa forma. Mas, para ele, a felicidade está certa justamente porque não é outra coisa que não ele mesmo.

A quietude interna – a inconsciência da consciência – é a natureza que o animal não deixou. Logo, só ele pode ser conscientemente feliz, pois não há inconsciência subversiva alguma em seu ser; e talvez isso se dê, precisamente, porque ele não dá nomes aos seus próprios bois: encarna silenciosamente todos eles. Já o homem, permanentemente sujeito ao intervalo inventado por ele mesmo entre a tristeza e a felicidade – e em sentido paralelo, entre o que lhe é consciente e o que não –, através da consciência de sua inconsciência é impelido a nomear inclusive os seus fantasmas, e uma vez denominado o que lhe falta, é inventada a distância real entre ele e a sua própria felicidade. De modo que só se está feliz quando não se sabe pelo que se está passando sem que haja a menor necessidade de saber os porquês dessa experiência. Uma vez trazida à consciência, essa felicidade é convertida naquilo que a privava, ou naquilo que a ameaça.

A consciência, portanto, ilumina a infelicidade obscurecida pela dialética interna do sujeito, infelicidade essa que havia se calado diante da sobrenatural retórica do inconsciente; e isso em benefício do próprio sujeito cuja unidade só se dá a partir dessa cisão entre suas duas esferas de consciência que se reúnem exclusivamente no diálogo. O silêncio interno, como aquele observado nos animais depois de satisfeitas as suas necessidades naturais, não obstante é chamado de tédio por nós humanos, em nada se parecendo com o nosso ideal de felicidade. Essa felicidade quieta que ressoa do acorde harmonioso entre consciência e inconsciência, nas mãos daquela transforma-se em infelicidade; e quando aportada na inconsciência, inconscientiza-se de a tal ponto que, a inconsciência da própria inconsciência, erradica o humano em prol do animal que um dia ele deixou de ser. Logo, ser plenamente feliz é deixar de ser humano, é resgatar o acordo quebrado com o universo e esquecer-se, ainda que por breves instantes, de todas as determinidades do mundo – ainda que, sob esse nome, a felicidade insista em se dizer humana. Uma vez consciente de qualquer particularidade, há a trágica consciência de todas as outras, inclusive daquelas que nos causam tristeza.

Apesar de o homem ter inventado e batizado a felicidade, somente os animais podem ser plenamente felizes. Isto porque não são conscientes, mas plenamente inconscientes disso. Os animais são felizes sem saber, já o homem não o é justamente por ter a felicidade em consciência. Trazendo à natureza a inconsciência da consciência os animais inventaram aquilo que, posteriormente, nós invejamos tanto neles, e cuja inveja, traduzida em linguagem humana, foi chamada de felicidade. O homem, pioneiro da consciência da inconsciência no cosmos, inventa, portanto, a assunção da falta, a infelicidade estacionária e a tristeza transcendente; todas elas coisas suas, dado que conscientes. Somos animais todas as vezes em que somos realmente felizes, pois isso que chamamos de felicidade – que em cada época nossa é investido de conotações históricas-culturais diversas – para além da sofistaria oculta sob dessa palavra, pertence inconscientemente ao universo enquanto inconsciência de si próprio.

Somente o ser inconsciente da inconsciência universal pode ser inconsciente de sua própria consciência, e, sem distanciamento algum, ser absolutamente o que é no momento em que é. Só aí a felicidade pode ser, mas somente se não for consciente nem de seu próprio nome. Isso é tudo menos humano. Nós, conscientes da nossa própria inconsciência, fizemos da inconsciência algo humano, não universal; e da consciência, aquilo que separa-nos do universo. A consciência dessa separação é a falta consciente, e sua alienação, o re-acordo com a inconsciência universal, que, por ser inconsciente, é feliz em si mesma. Os deuses gregos eram absolutamente bem-aventurados, e nada lhes faltava, porque se mantinham totalmente alienados das necessidades dos homens. Estivessem eles conscientes das faltas terrenas, e até das suas, deixariam de ser divinos e decairiam em humanos: aqueles conscientes inclusive daquilo de que são inconscientes. Foi o homem que inventou a infelicidade ao traslar a felicidade para o mundo da consciência. Portanto, não há paz no mundo dos homens, só além e aquém dele, isto é, no chão animal ou no céu divino; lugares que a consciência e a inconsciência intentam representar, tragicamente.