“Vigiar e Punir” a crise carcerária brasileira

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Imagem: Informe Baiano

A atual “crise carcerária brasileira”, se fosse levada a sério, seja pela opinião pública, seja pela mídia, seja sobretudo pelo poder do Estado, deveria ser chamada de: crise da sociedade brasileira. Porém, não chegar a essa conclusão é estratégico à estreita fatia dessa sociedade que detém o de poder. Por isso o Estado, o bureau dessa minoria, não sem a ajuda da mídia, mantém a opinião pública alienada do fato de que tal crise começa e termina fora dos presídios, muito embora seja mais visível neles, pois ela habita o mesmo edifício social no qual todos vivemos. O problema dessa questionável estratégia é que ela aumenta a crise que visa esconder.

Tiro no pé que fica ainda mais evidente à luz de “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault, obra na qual o filósofo coloca que a punição tem um único e fundamental objetivo: a manutenção do poder. E se os presos das penitenciárias brasileiras estão sendo sobrepunidos, de um lado, pela finalidade elitista do Estado e pela consequente ignorância da opinião pública, e, de outro, por si mesmos, como o número de assassinatos e decapitações intra grades prova, a chave foucaultiana nos sugere que isso está se dando porque o poder tupiniquim está investindo além da conta na sua própria manutenção.

Historicamente, sucedem-se formas de manutenção do poder, cada uma acompanhada de sua forma específica de punição. O poder régio da antiguidade, por exemplo, era mantido mediante tortura e assassínio públicos e espetaculares. O poder, durante a modernidade cientificizada, punia através de instituições prisionais, despidas do velho e bárbaro espetáculo antigo. Já o podre poder brasileiro contemporâneo faz um misto nada virtuoso das duas formas destacadas por Foucault, mantendo as prisões nos moldes modernos, todavia, fazendo delas cadafalsos tão ou mais espetaculares e bárbaros que os da antiguidade.

Quando os reis antigos puniam aqueles que desafiavam a soberania, as torturas, decapitações, incinerações, esfolamentos, enforcamentos etc. praticados em praça pública e contra um único criminoso, na verdade, visavam o restante dos súditos, e não exatamente o infeliz que morria. Nesse violentíssimo evento público o rei reafirma o seu poder aos que permaneciam vivos mediante o seguinte recado subliminar: eis o que aguarda a quem me desafiar.

Entretanto, ao ver um igual ser supliciado bárbara e espetacularmente, a multidão deparava-se com o excesso do poder dos reis, e, ademais, salienta Foucault, com “a sequência de uma cerimônia que canalizava mal as relações de poder que pretendia ritualizar”. Paulatinamente, isso foi minando a imagem dos soberanos. Já no século XVIII, segue o filósofo, “a tortura será denunciada como resto das barbáries de uma outra época: marca de uma selvageria denunciada como gótica.” Doravante, a manutenção do poder teria de encontrar outra forma de punir.

As punições tiveram de deixar de ser tão violentas, pois, aponta Foucault, “ficou a suspeita de que tal rito que dava um ‘fecho’ ao crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo, ultrapassando-o em selvageria”. A extrema violência régia aplicada a um súdito criminoso em praça pública não mais sobrelevava o rei em relação ao súditos, mas, em troca, equiparava-o ao criminoso, a ponto de o supliciado suscitar piedade, e até mesmo admiração, uma vez que, às portas da morte, o torturado era o único que podia maldizer a plenos pulmões o rei e a sua barbárie.

As longas torturas públicas foram substituídas por procedimentos mais expeditos. O uso da guilhotina é um exemplo desse movimento. Todavia, muito embora abreviasse a ostentação da violência régia, ainda assim fazia com que o rei, em nome do qual cabeças rolavam, parecesse um assassino cruel. Sem dizer que a racionalidade almejada pela sociedade moderna de então era conflitante com a barbárie intrínseca de lâminas e praças ensanguentadas. Cientificamente, arquitetou-se outras formas de tortura. E a reclusão dos contraventores em instituições penitenciárias foi o produto mais bem-acabado desse novo paradigma punitivo do poder em função de sua própria manutenção: um modo industrial, científico e limpo de punir.

Um crime, um indivíduo, uma cela. A punição em sua forma prisional panóptica dissimulava muito bem a violência do poder. “Panóptico” é um termo concebido em 1785 pelo filósofo Jeremy Bentham para designar a penitenciária ideal, na qual um único vigilante observava todos os prisioneiros, sem que estes pudessem saber se estavam ou não sendo vigiados. Panopticamente falando, era o receio de não saber se estava sendo observado que levaria o preso a adotar o comportamento desejado pelo vigilante, pela sociedade, em suma, pelo poder que o punia. Só que em um mundo que insiste em ser real, penitenciárias ideais ficam sempre aquém da expectativa.

Entre a trágica distância que separa a realidade prisional brasileira da idealidade panóptica jaz uma elite que busca manter e expandir o seu poder desumanamente, punindo aqueles que desrespeitam as suas regras com uma obscenidade equivalente àquela régia, aplicada no cadafalso antigo. Isso já ficou claro no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, no início do ano de 2014, com dezenas de presos barbaramente massacrados, mutilados e decapitados; e é ainda mais iluminado nesse início de 2017, com a repetição espetacular da mesma barbárie em chacinas em vários presídios brasileiros.

Só que, no caso brasileiro, há uma sobrepunição: em vez de os contraventores serem ou torturados e mortos em praça pública, como antigamente, ou, em vez disso, confinados isoladamente em celas prisionais, como na modernidade, eles na verdade são submetidos às duas punições; sendo que a segunda comporta uma perversão ainda mais desumana. As prisões brasileiras – os antigos cadafalsos espetaculares modernamente panoptizados – são de um panopticismo invertido, no qual os presos, em vez da dúvida sobre se estão ou não sendo vigiados, o que idealmente os levaria ao bom comportamento, estes presos têm certeza de que não são vigiados. E o que é pior, revoltam-se porque são sistematicamente esquecidos pelo poder que os pune.

O panopticismo às avessas das penitenciárias brasileiras faz com que os detentos sejam vigiados, e consequentemente punidos, apenas por si mesmos. E quando a tensão dessa conjuntura interna chega ao limite, eles torturam, mutilam, decapitam, esfolam uns aos outros. Aí, quando essa barbárie cadafálsica choca a opinião pública ao aparecer nos telejornais ou se tornar visualizável no Youtube, o panopticismo invertido se radicaliza: os presos têm as suas degradações assistidas, não pelo poder que os pune, mas por toda a população. São supliciados então diante dos olhos de todos, em um praça pública virtualizada, sem no entanto deixarem os buracos de suas reclusões punitivas.

O linchamento é um ato praticado por iguais que todavia não se enxergam como iguais. Nesse sentido, o conceito de linchamento desenvolvido por José de Souza Martins na sua obra “As condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil” é de grande ajuda na nossa tentativa de compreensão da crise carcerária brasileira. Para o sociólogo, o mais importante a se entender nos linchadores é que eles querem apontar que há algo muito errado na sociedade; que há violações insuportáveis de normas e valores; e que algo precisa ser feito pelo poder urgentemente.

Se, por um lado, o extermínio de iguais nas celas superlotadas e totalmente desatendidas das penitenciárias brasileiras – iguais que todavia se diferenciam apenas pelo poder de uns matarem outros – visa conscientizar a sociedade de sua própria e alienada crise, por outro lado, os presos buscam exterminar aquele(s) outro(s) junto a eles que refletem insuportavelmente a desumanização a que todos estão sujeitos, causada justamente pela punição que, em primeiro lugar, deveria humanizá-los; dito de modo apropriado: ressocializá-los. Nesse quadro, lincham-se uns aos outros para que, pelo menos alguns – os que sobrevivem -, terem, paradoxalmente, uma realidade um pouco menos desumana.

Como sustenta Souza Martins, “o linchamento não é o apogeu da desordem, mas o questionamento último de uma ordem decadente: é questionamento do poder e das instituições”. Só que o Estado e a mídia – se é que esses dois já não são um só no Brasil – são os primeiros a não ressaltarem que a Constituição Federal de 1988 estabelece, como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, que aos presos é assegurado o respeito a sua integridade física e moral, bem como o oferecimento de meios pelos quais eles venham a ter participação construtiva no seio social.

Os miseráveis resultados ideológicos dessa alienação intencional podem ser vistos em declarações públicas mais miseráveis ainda, como por exemplo, a do Secretário Estadual de Justiça e Administração Penitenciária do Maranhão, Sebastião Uchôa, a respeito da tragédia de Pedrinhas em 2014: “há males que vêm para o bem”; e também a infeliz fala do até então Secretário da Juventude do governo golpista de Temer, Bruno Júlio, sobre as chacinas de 2017: “Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”. E nessa esteira ignóbil, a opinião pública repercute ensurdecedoramente tamanhos disparates.

Agora, se a punição sempre foi estratégia de um poder que busca se manter, precisamos perguntar: uma punição decadente como a que estamos vendo no Brasil cumpre melhor ou pior o sempiterno objetivo dos poderosos? Os reis antigos, que tiveram de abrir mão da excessiva crueldade de suas punições para se manterem régios, certamente diriam ao poder contemporâneo que ele precisa se reinventar. Já do isolacionismo idealista da forma punitiva panóptica moderna o poder deveria compreender que, em primeiro lugar, precisa atentar mais ao real, e, em segundo lugar, que a ressocialização dos seus marginais solicita o contrário da exclusão, do esquecimento deles, que hoje se dá ou em celas superlotadas e desassistidas de salubridade e humanidade, ou ainda mediante chacinas.

O movimento histórico da manutenção do poder, em dois atos foucaultianos e em um epílogo tragicamente brasileiro, inicia-se no cadafalso público espetacular com o rei exibindo o seu poder aos súditos. Só que, nesse caso, o supliciado, por sobre o ombro real que o punia, denunciava aos seus iguais a desmedida desse poder com o qual era punido. E os reis não foram poupados de seus próprios excessos. No segundo ato, temos a instituição panóptica, com o criminoso constantemente observado e paulatinamente punido, longe dos olhos da opinião pública. Ainda que produzindo um radical afastamento, um panopticismo minimamente eficiente deve fazer com que o preso seja assistido – mesmo que não saiba exatamente quando -, com o fim de reinseri-lo na sociedade.

Porém, concluindo, temos o coro trágico dos atuais presídios brasileiros, cujos presos seguem desassistidos, tanto pelo poder que os pune, quanto pela sociedade à qual deveriam retornar depois de punidos. Os nossos detentos estão jogados, não dentro do edifício social, nos andares que deveriam ressocializá-los, mas debaixo de suas fundações, ainda vivos ou já decapitados, todos jazendo desumanamente sob o peso de um Estado e de um sistema carcerário decadentes e desumanos. Na incapacidade ou na falta de vontade daqueles que estão fora das grades de fazer valer a punição prescrita pela Constituição, os atuais condenados só podem reduzir e mutilar supliciosamente a si mesmos, para assim iluminarem a trágica crise social que ninguém mais do que eles vivencia na carne.