Crianças-bomba no mercado mundial.

Dez de janeiro de 2015, um mercado no norte da Nigéria, vinte mortos e quase o mesmo número de feridos. O mais chocante de tudo: uma criança-bomba. Esse último atentado do ano novo que começou ensanguentado do velho terror afronta a sociedade dos direitos humanos com uma imagem de difícil digestão: uma criança usada como arma de guerra. Na esteira do assassinato dos doze Charlies em Paris, o ocidente se prostra mais uma vez, atônito e indignado, como que novamente estuprado pelo despótico falo islamita. No entanto, a contragosto e contrassenso nosso, da parte dos extremistas radicais há razões para tal ato. Concordando ou condenando tais razões, é melhor ao menos considerá-las, afinal elas também povoam o nosso mundo – e num globalizado, cada vez mais proximamente.

Uma criança usada como bomba, que para nós representa uma barbárie duplamente inadmissível, para um radical fundamentalista, no entanto, significa uma dupla vitória. Para um muçulmano radical, dar a vida por uma causa santa é obter de Alá a garantia de um lugar cativo no mais elevado paraíso eterno. No caso das crianças é a mesma coisa. Pelo que se sabe, as crianças-bomba são preparadas por suas próprias famílias, em rituais nos quais seus parentes as vestem para o derradeiro, ao mesmo tempo em que rezam e agradecem a Deus a oportunidade de servirem a Ele, bem como a de, através do oferecimento da vida dessas crianças a Ele, livrá-las desse mundo de pecado em direção ao paraíso livre de qualquer mal.

O controverso sacrifício de crianças por causas espirituais, entretanto e infelizmente, não é exclusividade dos islamitas radicais, mas também de muitas rodas ocidentais, não menos radicais. No final de 2014, no livro “Tudo o que vi e vivi”, Roseane Malta, ex-Collor, contou que seu ex-marido, o nosso ex-presidente da república, praticava rituais macabros, em busca de força e proteção, envolvendo fetos comprados exclusivamente para esse fim. Embora não fossem ainda crianças, tais fetos seriam caso o político-marajá não os tivesse utilizado. Ademais, não nos esqueçamos de que o nosso pujante capitalismos contemporâneo, em épocas não muito distantes se utilizou – e em alguns lugares ainda se utiliza – de suas crianças, não como bombas, mas como combustível ao funcionamento de sua sórdida engrenagem.

Parafraseando Aristóteles, a morte se diz de muitas maneiras. Basta ver a diferença com que os ocidentais e os muçulmanos a encaram. O que para um é o fim, para outro é só o começo da vida que vale a pena ser vivida. Duelar com um radical fundamentalista, por conseguinte, traz uma desvantagem inglória: nós tentamos evitar a morte tanto quanto possível, nos aterrorizamos com ela, enquanto para muitos deles é o atalho para a mais digna e desejada evolução espiritual. Cada um dos dois lados se aferra às suas próprias verdades. Do nosso, adoraríamos que a radicalidade islâmica se dobrasse à diplomacia ocidental burguesa, aguerrida aos prazeres mundanos, iphones e gordura-trans. Para isso, entretanto, seria necessário suspender o Alcorão e reescrevê-lo, coisa que eles não parecem estar dispostos a fazer. O Islã, por sua vez, usa de todas as suas armas – inclusive suas crianças – para que os infiéis ocidentais abdiquem do seu “way of life” e reconheçam as fundamentais leis de Alá. Outrossim, precisaríamos reescrevermo-nos completamente.

Todavia, ao lado da realidade radical que veste crianças com coletes-bomba está a realidade ocidental que veste as suas com outros “coletes”, não menos radicais, perigosos e reprováveis. Muitas famílias burguesas não se importam em vestir os seus pequenos com “coletes” adidas feitos por mão-de-obra escrava infantil asiática, por exemplo. Porém, nesse caso, a bomba explode bem longe dos shoppings centers – os templos sagrados da sociedade ocidental – nos quais compram e desfilam tais “coletes”. Sem falar nos apertados “coletes” da anorexia e da bulimia; nos largos, da obesidade; ou ainda nas vestes obrigatórias do consumismo massivo e antiecológico que cada vez mais nossas crianças de olhos azuis são obrigadas, pelo radicalismo da publicidade capitalista, a digerirem. Uma diferença entre as bombas-relógios com as quais os ocidentais democráticos e os muçulmanos radicais vestem as suas crianças é que as daqueles explodem futuramente, enquanto as destes, imediatamente.

Paralelo ao ódio que a sociedade ocidental tem do terror está o seu inalienável deleite com imagens de morte, destruição e mutilação que povoam as suas produções hollywoodianas. Porém, quando elas se materializam pelas mãos dos seus inimigos, mesmo que vistas apenas pelo Youtube, essa mesma sociedade odeia e condena tais imagens. Impossível não citar a dupla complementar “Independence Day” x 11/9. Sobre a tão falada e ameaçada liberdade de expressão ocidental, símbolo do atentado aos doze Charlies, nossa sociedade capitalista só nos oferece tal liberdade, e prima por ela, porque tudo o que podemos dizer, de antemão já foi tornado insípido, inofensivo, laicizado. Ora, não nos iludamos, pois foi só depois de esvaziado e monitorado o perigo residente no ato de expressar-se livremente que nós ganhamos tal liberdade! Lembremos de Edward Snowden: um ocidental admirável que não pode usufruir da liberdade de expressão pressuposta no seu mundo livre, que teve de se refugiar dele devido ao terror que sofreu – e sofre – por conta do radicalismo ocidental – da CIA.

Alheios ao nosso contraditório “way of life”, porém contrapostos a ele, estão os muçulmanos, mais ainda os radicais, tão cegos e contraditórios em relação às suas próprias verdades quanto nós em respeito às nossas. De qualquer forma, eles repudiam e se horrorizam com as bombas de gordura-trans com as quais explodimos as nossas crianças, ou com as implosões de frustração que as ensinamos sofrer por não terem, por exemplo, o iphone ou o “App” da vez. Aterrorizam-se com o que fazemos das nossas crianças da mesma forma como nós nos aterrorizamos com o TNT e com a promessa de paraíso ideal com os quais explodem as suas. É muita parcialidade e inadvertência acreditar que o inimigo contra o qual o ocidente livre, expressivo e democrático já luta não existe nocivo dentro dele mesmo. No entanto, a psicanálise explica, é mais fácil colocar a culpa no Outro, pois assim flutua-se sobre uma superfície ilusória e funcional, cuja profundidade, necessária e caótica, no entanto, esconde a difícil verdade: “eles” e “nós” somos a um só tempo uma única coisa, seres humanos.

Do nosso lado, dissimulamos o caos do mundo através do insustentável “romantic consumerism”, da histérica magreza anoréxica-bulímica, de padres-banqueiros-cantores-pedófilos, do sucesso-riqueza a qualquer custo, já que o custo irá aglutinar-se bem longe, em favelas da América Latina, Ásia ou África. Do lado dos islamitas radicais – esses indesejados interlocutores justapostos a nós pelo mundo globalizado – o caos é melhor resolvido através de guerras santas – coisa que o ocidente cristão fez muito no passado -, da adesão aos mandamentos fundamentais do seu profeta, mas de forma alguma na alienação em relação a esse caos, como nós fazemos diante da TV ou no shopping. Como ficar espantado pelo fato de os radicais quererem resolver imediata e definitivamente as suas questões mais fundamentais? Isso só se explica porque o ocidente está burguesamente condicionados a empurrar esse caos com a sua gorda barriga para as gerações futuras, para a natureza ou para os países pobres. Nós tentamos mudar o mundo explodindo-nos, seja em postagens no Facebook, seja no McDonald’s seja . Eles, por sua vez, explodindo próprio mundo a ser mudado, ainda que eles mesmos ou as suas crianças sejam explodidos junto.

O ocidental pós-Deus acredita que o tempo profano terminou com o fim da Idade Média, e por isso permite que tudo seja profanado, inclusive ele mesmo, apático e desiludido que está. Mas para o outro lado da moeda-mundo a profanação vive e é um mal a ser evitado a qualquer custo, inclusive ao custo de vidas infantis, aprovemos ou não. Seria ideal se “eles” mudassem ao toque das nossas mudanças. Todavia, o mundo é real, não uma ideia-projeto ocidental de condomínio californiano, em cujas alamedas crianças gordas correm e se expressam livremente, correndo o risco máximo de serem molestadas por algum padre católico, ou de sofrerem um “bullyingzinho” dos seus colegas de escola. Esse terror é o nosso, e em relação a ele nos acostumamos, sustentando o Vaticano e mandando de volta as crianças à escola. Já o terror dos outros, ah, esse não aceitamos! Condenamo-lo veementemente. Que delícia uma Fera que nos faça parecer Bela! Que ilusão boa o Monstro reforçar o nosso ideal de Médico!

No entanto, a perversão que faz da monstruosidade do Outro um reflexo da nossa perfeição tem uma imagem real do lado de cá do espelho. Atenção! O Outro apenas espelha o nosso Ser; afinal, é só para nós mesmos que olhamos. Ao mesmo tempo, esse Outro é a testemunha indesejada do que realmente somos; por conseguinte, completa nosso Ser; ainda que parte desse ser que somos não nos caia muito bem e distorça a imagem que desejamos projetar no espelho do mundo. A criança-bomba islamita que explodiu na Nigéria tem seu correlato do nosso lado livre-democrático do mundo, tenhamos nós capacidade – ou estômago – para assumir isso ou não. Porém, ao fazermos daqueles que explodem as suas crianças em mercados públicos o mal absoluto, dissimulamos a explosão de obesidade, de consumo e de hiperatividade a que submetemos as nossas, pois são bombas que não explodirão agora, mas logo mais, em outros mercados. Nesse lapso insustentável que produzimos, vestimos o “colete” de qualidades ocidentais com os quais queremos explodir as diferenças do mundo, colonizá-lo e pasteurizá-lo ao nosso modo.

Seria ideal que mais nenhuma criança fosse explodida nos mercados no mundo, seja por TNT, seja por valores burgueses decadentes. Ora, não há nada de errado em buscar tal ideal, afinal, essa parece ser a sina do real. Entretanto, para mudar o real há que primeiro conhecê-lo, aceitá-lo, entendê-lo; assumi-lo em sua absurdidade, sem com isso isentar-se dessa absurdidade ou cindi-la maniqueistamente, escolhendo o melhor lado para si. Pouco importa como crianças são explodidas, se lenta e privadamente ou repentinamente e publicamente. Esse bicho que povoa a terra contemporânea só será realmente humano quando encontrar – ou reencontrar – um modo de vida que o dispense de explodir a si mesmo ou aos outros, principalmente os seus filhotes, os menos responsáveis pelo caos produzido, entretanto não suportado, pelos seus progenitores. Por maior que seja a sujeira que “eles” e “nós” atualmente vemos um no outro, e por mais apressados que estejamos para limpá-la, somente as ondas da história lavarão esse presente imundo. Quiçá restará uma memória plana e totêmica a aterrorizar o ser humano sempre que ele pensar explodir alguém ou alguma coisa pelo simples fato de suas diferenças em relação aos seus iguais.