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Raças vs. Etnias, e a tal da “apropriação cultural”

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Na esteira da polêmica sobre “apropriação cultural” gerada pelo “Caso do Turbante de Curitiba”, qual seja: se uma pessoa “branca” pode ou não usar vestimentas típicas da cultura negra/africana; uma afirmação de ímpeto “politicamente correto” ecoou nas redes sociais: “Não existe raça. Por isso, não existe apropriação cultural”. A frase que pretendia encerrar a discussão, no entanto, levanta importantes questões. Uma delas: se não existe raça (ou qualquer quer nome que a valha) o que dizer de diferenças humanas geneticamente determinadas? Outra: se existisse raça, então existiria “apropriação cultural”? A terceira, decorrente dessa última: por que as culturas, produtos humanos par excellence, seriam inapropriáveis?

Contemporaneamente, ganha força o discurso de que a diversidade humana deve ser explicada pela cultura. Os justos intuitos “politicamente corretos” desse discurso são: a preservação identitária de determinadas culturas; a desconstrução de preconceitos raciais até hoje sobreviventes nas sociedades; e a prevenção contra o ressurgimento de quaisquer ideias de superioridade racial. E para isso, conceitos como os de etnia, povos, comunidades, grupos, tomam o lugar do conceito de raça. Dessa perspectiva, o que constituiria a identidade de uma etnia não seriam características naturais algumas, mas culturais: aquilo que, povos, grupos, comunidades cultuam em comum e que os diferenciam dos demais.

Esse enfoque, porém, não cobre diferenças naturais facilmente observáveis nos seres humanos, como por exemplo as que vemos em alguns esportes, tais como a natação e o atletismo. Independente de suas culturas, os maiores velocistas são invariavelmente negros e negras. Da mesma forma, os mais velozes nadadores são brancos e brancas. Sem desconsiderar consistentes análises sociológicas que apontam que certos esportes são mais elitizados que outros, e que por isso negros e brancos tiveram acessos desiguais a eles, é preciso considerar evidências científicas, sob o risco de sermos pós-modernos, demasiado pós-modernos.

Levando em conta um dado cientificamente irrefutável: a diferença de densidade óssea entre negros e brancos; não é absurdo, nem tampouco desrespeitoso aceitar que, por conta de uma ossatura mais densa, e consequentemente mais pesada em relação à dos brancos, os negros obtém menor performance dentro d’água. Por outro lado, comparativamente aos negros, a menor potência e resistência muscular natural dos brancos os deixa para trás nas pistas de corrida. Atentar a essas diferenças não significa necessariamente ser racista – embora muitos delas se valham e tenham se valido para tal -, mas, essencialmente, racialista.

O racialismo, ou – nome que de fato pouco ajuda – “racismo científico”, é uma “teoria científica das raças humanas” que estuda os tipos humanos a partir de suas diferentes características genéticas hereditárias, tais como, por exemplo, as apontadas acima. Se, para o discurso “politicamente correto”, diferenças culturais explicam satisfatoriamente a diversidade humana, o discurso “cientificamente correto”, por seu turno, não pode deixar de explica tal diversidade sem atentar à diferenças genéticas hereditárias.

O maior desafio dos racialistas, por conseguinte, é o de não serem racistas. Para tal, precisam ser absolutamente críticos em relação às contingências socioculturais e econômicas que, durante séculos, serviram de matéria para que alguns grupos humanos subjugassem desumanamente outros. A insólita virtude do racialismo, no entanto, é ainda se preocupar com diferenças genéticas humanas, todavia ao preço de colocá-las sob um guarda-chuva semântico que apenas atende pelo nome de raças, e isso justamente no contexto contemporâneo, “politica e culturalmente correto”, que, por sua vez, tenta suprimir a pertinência de tais diferenças.

No entanto, eleger a teoria de que as diferenças humanas são apenas construtos socioculturais e não também genéticos/hereditários, mutatis mutandis, é como fechar de vez os livros de ciência para manter aberto O Livro da Teoria da Criação, ou seja, A Bíblia. Ser pós-moderno, demasiado pós-moderno, nesse caso, confunde-se perigosamente com ser medieval, demasiado medieval. Dizer que é o homem, e só ele, que cria as suas diferenças, não é muito diferente do fundamentalismo de dizer que Deus, e só Ele, criou o homem. É anticientificamente dogmático.

A virtude do ímpeto “politicamente correto” contemporâneo em se recusar à diferenciações racialistas está no fato de lembrar a todos que o discurso racialista pode ser facilmente pervertido e apropriado pelo discurso racista. Com efeito, diante do desafio de acabarmos com o resistente barbarismo do racismo, certos discursos e teorias deveriam calar. Pelo menos até a humanidade alcançar um estágio civilizatório no qual tratar, aberta e cruamente, de diferenças genéticas não ofereça riscos de que certos grupos se considerem superiores e, por conta disso, subjuguem outros.

O vício do discurso “politicamente correto” que refuta as diferenciações racialistas (Não há raça!), no entanto, está em não reconhecer o seu próprio Calcanhar de Aquiles. Ideias de superioridade racial, bem como os males que elas causaram e ainda causam, não estão prescritas em gene algum, mas se justificam de forma muito mais clara culturalmente. O tropeço “politicamente correto” está em não reconhecer que os maiores males podem se justificar mais eficientemente na contingência de discursos culturalistas do que na verdade necessária de dados científicos.

Apesar de a contemporânea politico-correção em respeito à construção da igualdade entre as pessoas exigir que entendamos raça tão somente enquanto um constructo social perigoso, a antropologia e a sociologia, por exemplo, sabe muito bem que diferenças genéticas/fenotípicas afetam e organizam a vida de grupos humanos. Se, por um lado, tais diferenças provocaram e sustentam desigualdades sociais traumáticas, por outro lado, contudo, estabelecem pertenças culturais de valor e acolhimento insuperáveis, ou, para dizer o mínimo, humanos.

Diante da atual força do discurso “politicamente correto”, os cientistas de modo algum deixam de estudar as diferenças genéticas humanas. Apenas são constrangidos a usarem nomes que não causem, digamos assim, “polêmica política”. Como dito antes, em vez de raças: etnias, povos, grupos, comunidades, etc. No final das contas, e infelizmente, a político-correção muitas vezes se dá por satisfeita com meras vitórias nominalistas. Pós-modernice todavia condenável; pois, como provoca Žižek: o pós-moderno é aquele que quer mudar tudo desde que as coisas permaneçam como estão. Assim dá continuidade à sua luta, o que realmente importa a ele.

Todavia, os mesmos riscos e problemas socioculturais dos quais os “politicamente corretos” querem se ver livres não desaparecem ao apenas serem mudados os nomes mediante os quais se quer definir diferenças naturais dentro da humanidade. Ora, se o conceito de raça, por questões culturais, pôde gerar ideias de superioridade racial, os de etnia, de grupo, outrossim podem sustentar ideias de mesmo e vil calibre.

Para se ser “cientificamente correto” hoje em dia é preciso ser ao mesmo tempo “politicamente correto”. Até aí tudo bem. Nada de errado os cientistas serem devidamente civilizados. O mesmo, entretanto, não pode ser dito dos “politicamente corretos”, cujo discurso insiste em ser refratário a certas verdades científicas. Por isso dizem, por exemplo, que “raças não existem”, como se aquilo que racialistas estudam e comprovam inexistisse. O problema de se crer cegamente que tudo é construto social é que aquilo que precede a cultura, e que de forma alguma é anulado por ela, qual seja, a natureza, não é também determinante na existência humana.

A natureza existe, sem a menor sombra de dúvida, mas não foi feita por homens e mulheres, nem tampouco para eles. Dessa visada, é outorgar-se espécie de divindade querer menosprezar determinações naturais. Por outro lado, o que é feito por e para homens e mulheres é a sociedade, a cultura. Somente aí podemos agir como se fôssemos deuses. No entanto, não ao estilo do Deus cristão: único, onipotente e onisciente; mas no máximo ao modo dos deuses do paganismo: um panteão povoado por divindades sem o qual, em idas eras, a humanidade não se reconhecia nem se explicava.

Mais problemático ainda é a político-corretice de se sustentar que todas as diferenças humanas atendem pela acunha de culturais e ao mesmo tempo defender de que “não há apropriação cultural”. Com isso dizem que diferentes etnias, grupos, são inconciliáveis; alienígenas uns aos outros. Cindem a humanidade de modo irreversível. Felizmente, a simples experiência mostra que estão errados. Quaisquer povos, comunidades, podem se apropriar da língua e dos costumes de quaisquer outros. O problema do “politicamente correto” está em achar isso incorreto politicamente.

Se a língua é um dos mais inarredáveis fundamentos de uma cultura, e se o diálogo é a base da civilização, então, sem se apropriarem no mínimo das línguas uns dos outros, povos diversos nunca poderiam estabelecer relações civilizadas entre si. Por que com outros elementos culturais seria diferente? Dizer que “não há apropriação cultural”, em outras palavras, é condenar as diferenças a espécie de eterna barbárie. Sim, apropriamo-nos culturalmente de elementos de outros grupos, mas isso não significa necessariamente furtar-lhe suas identidades. Antes, é um passo civilizado, pois se dialoga com o outro ao se agir, pensar, falar como ele; em suma, ao se apropriar de sua cultura.

Então, a frase “Não há raça! Por isso não há apropriação cultural” é a saída mais fácil, todavia mais burra, para a complexa e interminável epopeia humana chamada civilização. Apropriação cultural há! E é ela que faz com que o mundo não recaia na barbárie. E, pelo menos do ponto de vista racialista, raças há! E são elas que explicam diferenças naturais que conjunturas culturais não o fazem nem tem como fazê-lo. Se ser “politicamente correto” impede que se compreenda as coisas também desse modo, desculpe-me, tal “correção” merece outro nome: limitação.

Os grandes e mais civilizados povos da antiguidade, o grego e o romano, tinham por bárbaros aqueles que se recusavam a apropriarem-se de suas culturas e que preferiam permanecer fechados em suas próprias. Roma, muito mais do que a Grécia, era um convite à alteridade. Qualquer um podia ser romano. Bastava apropriar-se de alguns costumes e leis para se desfrutar da pax romana. Não só há apropriação cultural, como ela é uma virtude humana, quiçá uma das maiores. Sem ela, não seriamos civilizados, mas bárbaros isolados em nossas próprias culturas.

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Radicalismo “politicamente correto” e civilização

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A expressão “politicamente correto” é redundante. Não há incorreção quando somos, de fato, políticos. Dentro dessa relação, até as diferenças mais irredutíveis não são e não devem ser vistas como erros, mas como matéria da política. Radicalmente falando, ou agimos politicamente, ou, em vez disso, somos despóticos. Se há algum erro, ele pertenceria ao segundo caso. A invenção da política pelos gregos se caracterizou justamente pela conversão do despotés (déspota) em polités (político). Dessa perspectiva, acusar alguém de ser “politicamente incorreto”, na verdade, significa chamá-lo de bárbaro.

Todavia, não pretendemos ser tão radicais quando, vulgarmente, apontamos a político-incorreção em um de nossos pares. O mais das vezes, queremos apenas denunciar, quiçá corrigir uma civilidade incompleta, falha, que precisa de um ajuste para se realizar plenamente. O problema dessa crítica, contudo, é pressupor que a civilização seja um projeto acabado, um modelo ideal e acessível, ao qual devemos nos conformar para dele nunca nos afastarmos. Só que não!

A civilização é, em si mesma, um projeto inacabado e inacabável da humanidade. Provas disso são: tanto a persistência, até hoje, do maior despotismo de todos, o assassínio; quanto principalmente a sistemática conversão de costumes, até certa altura naturais à civilização, em neobarbarismos a serem doravante extirpados, como por exemplo: não mais fazer piadas nem cantar marchinhas de carnaval racistas e sexistas; “brancos” eurocêntricos não usarem, banal e indiscriminadamente, roupas étnicas, e por aí vai.

Se ser civilizado, ou o que é o mesmo, ser político, é uma sempiterna construção, então, não há nada de fundamentalmente errado em descobrirmos e apontarmos, uns nos outros, zonas de despotismo, porões de aquém-civilidade. Isso, aliás, é o modus operandi per se da civilização. Se existe algo que podemos chamar de correto na história da civilização, é não abandoná-la enquanto a escrevemos. Com perdão da redundância, civilidade é permanecer civilizado na construção e na manutenção da civilização.

Exemplo disso é a postura do bloco carnavalesco carioca “Cordão da Bola Preta” que, diante da postura de ímpeto “politicamente correto” que condena a execução de algumas marchinhas de carnaval clássicas por conta de teores racistas, sexistas ou homofóbicas, decidiu apenas não tocá-las, seja porque de fato elas ofendem alguns, seja ainda porque há tantas outras músicas, tão mais alegres e/ou clássicas, e certamente menos polêmicas. O “Bola Preta” é civilizado porque não se impõe despoticamente àqueles que não compartilham do seu, digamos assim, estágio civilizatório. Apenas age exemplarmente.

Entretanto, pode-se ser radical em defesa da civilização. Um recente caso, que ilustra bem isso, é o da ativista negra curitibana que interpelou agressivamente uma concidadã branca que usava um turbante estilo africano para esconder a careca causada por tratamento quimioterápico, dizendo-lhe que “uma branca não pode usar roupa de negro”. A radicalidade “politicamente correta” da ativista estava em condenar a “apropriação cultural” de elementos da cultura negra precisamente pela etnia branca que se apropriou despoticamente dela por séculos.

A despeito do significado vulgar que damos à palavra “radical”, como se se tratasse apenas de “excessividade”, de “exagero”, etimologicamente, no entanto, ela significa “relativo à raiz” (do latim “radicalis”, derivação de “radix”: raiz). Dizer que algo é radical, portanto, é falar que esse algo está conectado à sua origem.

Esse esclarecimento é importante porque, ao chamar de “radicalismo politicamente correto” o ato político da ativista, eu não quero acusá-lo de desmesura, nem de, em última instância, despotismo. Em vez disso, o objetivo é entendê-lo enquanto um ato político autêntico que, no entanto, se aproxima polemicamente da origem que é a própria instituição da civilização.

Com efeito, na raiz da civilização estávamos muito mais próximas da questão dualista de o que fazer/o que não fazer para ser civilizado; para não ser bárbaro… A distinção radical da civilidade em relação à barbárie está em um “não” ao embate físico, e em um “sim” ao diálogo político. Nesse estágio, e somente nele, ser civilizado é simples assim.

A crítica da ativista negra à “apropriação cultural” do turbante africano por uma branca, está longe de ser errada. Apenas é radical no sentido de pretender estabelecer regras demasiadamente objetivas em respeito ao que se deve fazer para se ser, segundo seu ponto de vista, devidamente civilizado. Mutatis mutandis, pretende dizer que “correção política”, ou, mais apropriadamente, polidez, civilidade, é uma etnia não se apropriar, impune e banalmente, de elementos de identidade de outra etnia. Principalmente em se tratando de uma que, histórica e desumanamente, foi desapropriada de si mesma pela outra. E, infelizmente, não só culturalmente!

Embora tenhamos deixado de lado o significado comezinho de “radical”, qual seja, o de exagero, de excessividade, temos contudo de reconhecer a sua pertinência na luta politica dos negros por reconhecimento identitário e igualdade. E isso porque, fazendo uma analogia com as relações físicas de força, a força através da qual os negros foram historicamente subjugados pelos brancos não será anulada sem o expediente de, no mínimo, uma força de igual intensidade, porém, de sentido contrário.

Ser radical, no sentido amplo que essa palavra nos oferece, é tanto “estar junto à origem”, quanto, em relação à origem da própria civilidade, estar próximo à barbárie. O “Calcanhar de Aquiles” do ato político radical, no entanto, está em que, embora civilizante por natureza, de qualquer modo trara aquilo contra o qual empreende como se se tratasse de barbárie.

Se o ato político da ativista negra contra o uso de turbante por brancos é polêmico, o é porque entre a sua radicalidade e a sua contemporaneidade se interpõe toda sorte de relativismos. Um deles, assaz célebre e pertinente, vem do filósofo alemão Theodor Adorno, para quem “o consumidor não é soberano, como a Indústria Cultural quer fazer crer; não é o seu sujeito; mas o seu objeto”.

Com efeito, da vertical perspectiva dos rolos compressores que são a indústria cultural e o capitalismo que a industrializou, o fato de os negros terem sido historicamente subjugados pelos brancos, guardadas as devidas proporções, obviamente, é no entanto tão objetal quanto todos nós, brancos, negros, índios, mulheres, homens, gays, lésbicas, etc., estarmos subjugados aos ditames da moda, que, radicalmente, são os do sistema capitalista que de todos se apropria.

Se no nascimento da civilização a pecha se deu com a vitória do diálogo político sobre o embate despótico, atualmente, entretanto, em plena “Idade do Lobo” dessa mesma civilização, ser civilizado deve ser, antes de tudo, lutar contra o novo inimigo comum da civilização. Não mais a barbárie antepassada, mas o presente despotismo universal do capitalismo. Embatermo-nos uns com os outros em vez de, juntos, lutarmos contra o sistema que de todos se apropria imperiosamente é, como se diz, “bater em gato morto”.

Para concluir, uma metáfora com o objetivo de resumir a presente reflexão.

Imaginemos que a humanidade seja um pêndulo em busca de equilíbrio – de liberdade, de igualdade, de oportunidade para todos -, oscilando entre dois extremos: de um lado, a antepassada barbárie da violência que vence o diálogo, e, do outro lado, o contemporâneo despotismo do sistema capitalista, que se projeta futuro adentro, e cuja violência se dá inclusive no diálogo. O ponto ideal no qual a civilização estaria livre dos dois males seria, portanto, o centro: a maior distância possível dos dois extremos.

Porém, quem já observou um pêndulo funcionar sabe que seu equilíbrio final se dá paulatinamente, com tantas oscilações, para lá e para cá, quanto for a energia do próprio pêndulo. É somente quando a energia do sistema chega a zero que o pêndulo entra em equilíbrio. Metaforicamente, estágio no qual a civilização seria finalmente alcançada.

Contudo, projeto inconclusivo que é, a civilização é um pêndulo que nunca se equilibra. E isso porque nunca tem uma energia igual a zero. Muito pelo contrário, a civilização é um embate de forças que nunca cessa. Ao contrário do pêndulo físico, o da civilização balouçará ad aeternum.

Apesar de o ponto central de pleno equilíbrio nunca acolher perenemente a civilização, ele tem ao menos a virtude de marcar, ainda que fugazmente, uma medida ideal, intermediária às medidas reais que jazem nos extremos. Esse ponto de equilíbrio, pelo qual a civilização passa em meio ao seu sempiterno movimento; átimo no qual é possível o diálogo sem violência e onde a alteridade não é um problema, mas a matéria das nossas relações; esse é o momento político par excellence.

Se não conseguimos capturá-lo para nele permanecermos indeterminadamente, o que seria ideal, ao menos devemos manter memória dele, para, enquanto estivermos nos aproximando dos reais extremos do despotismo, permanecermos suficientemente civilizados. No caso da radicalidade da ativista negra Curitiba: sermos polidos, políticos, e não tratá-la como se estivesse exagerando, mas como voz que, assim como a da maioria, quer apenas realizar civilização.

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Trump e mixofobia

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A civilização é um cimento que uniu os seres humanos em um projeto em comum, tirando-os da barbárie. Sua materialização primordial foram as cidades; em latim chamadas de civitas; em grego, de pólis. O não-bárbaro, portanto, é aquele que prima pela convivência civilizada, politizada com os demais. O afeto desse primado é sociologicamente denominado de mixofilia, isto é, o amor à mistura. Sentimento que, entanto, o impertinente isolacionismo do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, parece desconhecer.

A exemplo daqueles que a instituíram, a civilização é ambígua. Por mais que ofereça às pessoas benesses de que nunca desfrutariam caso permanecessem barbarizadas, a começar pela substituição do embate físico pelo diálogo, a mistura civilizada gera afetos negativos. A proximidade com outros também produz medos, pavores, que por suas vezes impõem distanciamentos. Esse afeto isolacionista, em sociologia, é chamado de mixofobia, ou seja, o pavor da mistura. Movido pelo pretexto do terrorismo, o isolacionista Trump é o mixófobo espetacular da contemporaneidade.

Se, portanto, a civilização é a instituição humana na qual vivemos tanto o amor quanto o pavor em relação à alteridade, todavia com a vitória do primeiro, Trump é a prova da derrota diante do segundo. Ao passo que, mixofilicamente, experimentamos os prazeres e as vantagens da convivência com os outros, sendo o carnaval um exemplo mixofílico por excelência; mixofobicamente, ao contrário, priorizamos os riscos oferecidos por tal convivência, sendo o famigerado muro com o qual Trump irá isolar-se dos mexicanos o exemplo mixofóbico mais emblemático da atualidade.

A mixofobia patológica de Trump, contudo, é mais bárbara do que alienígena. Nossos condomínios e semblantes fechados já são espécie de muro trumpeano através dos quais nos isolamos do perigo da alteridade. Entretanto, por mais ambígua que seja a civilização, ela é, a priori, mixofílica, mesmo que, a posteriori, mixofóbica. O desafio primordial do civilizado, portanto, é superar sistematicamente os afetos mixofóbicos em prol dos mixofílicos. Pois é somente através do amor à mistura que transformamos as carências e vulnerabilidades inerentes ao isolamento em abundância e segurança. Afinal de contas, não foi por isso que o ser humano se civilizou?

Todavia, paradoxalmente, é em função do risco de perder essa abundância e segurança que os afetos mixófobos brotam. Trump, realmente acredita que uma “America Great Again” só é possível mediante isolamento; se ela estiver sitiada intramuros intransponíveis. Porém, o pavor da alteridade não desaparece ao se isolar dela. Esse isolamento, aliás, é o medo concretizado, espacializado; de forma alguma superado. Sem dizer que agir em função do medo, do pavor, ou seja, de afetos mixofóbicos não é coisa de quem é ou será “Great”. A América de Trump, isolada, será tão “small” quanto a barbárie diante da civilização.

O grande problema da mixofobia é que ela reinstitui o não-diálogo entre quem se sente atemorizado e quem causa tal temor. Ela é antipolítica por natureza. Mas, não nos esqueçamos, Trump se elegeu vendendo o peixe de que não era político; de que os americanos estavam fartos da política. Só que ser civilizado e ser político, “Mr. President”, são sinônimos! Felizmente, massivas e mixofílicas manifestações “worldwide” contra o mixófobo-mor estão ocupando a ágora mundial com a civilidade da qual não querem ser privadas. Uma luta política par excellence.

Não foi devido à ausência de mixofobia que a civilização se deu, mas, fundamentalmente, pelo conflito dela com os afetos mixofílicos. A civilização, por assim dizer, é o estágio humano no qual a mixofilia vence essa sempiterna pecha. E a mixofobia, sistematicamente derrotada, compõe a régua com que se mede a vitória da civilização. O triunfo mixofílico se sustenta na consciência de que, por mais que o outro possa ser um problema, antes disso, ele já é a solução. Quanto mais não seja, cada um de nós é um outro para os outros.

Trump, contudo, não considera o fato de que é um outro para os outros. Em vez da abertura política à alteridade, o bárbaro fechamento egoísta. “America First!”. E quando se está desse modo isolado, o temor serve de paradigma para toda sorte de apolitismo. Mas, se em uma imagem, civilização é vitória sobre barbárie, a nossa, sobre Trump e todos os que, como ele, não querem ser outros de ninguém, essa vitória consiste em seguirmos amando nos misturarmos: troféu que se ganha ao ser derrotado o medo da mistura.

“Vigiar e Punir” a crise carcerária brasileira

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Imagem: Informe Baiano

A atual “crise carcerária brasileira”, se fosse levada a sério, seja pela opinião pública, seja pela mídia, seja sobretudo pelo poder do Estado, deveria ser chamada de: crise da sociedade brasileira. Porém, não chegar a essa conclusão é estratégico à estreita fatia dessa sociedade que detém o de poder. Por isso o Estado, o bureau dessa minoria, não sem a ajuda da mídia, mantém a opinião pública alienada do fato de que tal crise começa e termina fora dos presídios, muito embora seja mais visível neles, pois ela habita o mesmo edifício social no qual todos vivemos. O problema dessa questionável estratégia é que ela aumenta a crise que visa esconder.

Tiro no pé que fica ainda mais evidente à luz de “Vigiar e Punir”, de Michel Foucault, obra na qual o filósofo coloca que a punição tem um único e fundamental objetivo: a manutenção do poder. E se os presos das penitenciárias brasileiras estão sendo sobrepunidos, de um lado, pela finalidade elitista do Estado e pela consequente ignorância da opinião pública, e, de outro, por si mesmos, como o número de assassinatos e decapitações intra grades prova, a chave foucaultiana nos sugere que isso está se dando porque o poder tupiniquim está investindo além da conta na sua própria manutenção.

Historicamente, sucedem-se formas de manutenção do poder, cada uma acompanhada de sua forma específica de punição. O poder régio da antiguidade, por exemplo, era mantido mediante tortura e assassínio públicos e espetaculares. O poder, durante a modernidade cientificizada, punia através de instituições prisionais, despidas do velho e bárbaro espetáculo antigo. Já o podre poder brasileiro contemporâneo faz um misto nada virtuoso das duas formas destacadas por Foucault, mantendo as prisões nos moldes modernos, todavia, fazendo delas cadafalsos tão ou mais espetaculares e bárbaros que os da antiguidade.

Quando os reis antigos puniam aqueles que desafiavam a soberania, as torturas, decapitações, incinerações, esfolamentos, enforcamentos etc. praticados em praça pública e contra um único criminoso, na verdade, visavam o restante dos súditos, e não exatamente o infeliz que morria. Nesse violentíssimo evento público o rei reafirma o seu poder aos que permaneciam vivos mediante o seguinte recado subliminar: eis o que aguarda a quem me desafiar.

Entretanto, ao ver um igual ser supliciado bárbara e espetacularmente, a multidão deparava-se com o excesso do poder dos reis, e, ademais, salienta Foucault, com “a sequência de uma cerimônia que canalizava mal as relações de poder que pretendia ritualizar”. Paulatinamente, isso foi minando a imagem dos soberanos. Já no século XVIII, segue o filósofo, “a tortura será denunciada como resto das barbáries de uma outra época: marca de uma selvageria denunciada como gótica.” Doravante, a manutenção do poder teria de encontrar outra forma de punir.

As punições tiveram de deixar de ser tão violentas, pois, aponta Foucault, “ficou a suspeita de que tal rito que dava um ‘fecho’ ao crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo, ultrapassando-o em selvageria”. A extrema violência régia aplicada a um súdito criminoso em praça pública não mais sobrelevava o rei em relação ao súditos, mas, em troca, equiparava-o ao criminoso, a ponto de o supliciado suscitar piedade, e até mesmo admiração, uma vez que, às portas da morte, o torturado era o único que podia maldizer a plenos pulmões o rei e a sua barbárie.

As longas torturas públicas foram substituídas por procedimentos mais expeditos. O uso da guilhotina é um exemplo desse movimento. Todavia, muito embora abreviasse a ostentação da violência régia, ainda assim fazia com que o rei, em nome do qual cabeças rolavam, parecesse um assassino cruel. Sem dizer que a racionalidade almejada pela sociedade moderna de então era conflitante com a barbárie intrínseca de lâminas e praças ensanguentadas. Cientificamente, arquitetou-se outras formas de tortura. E a reclusão dos contraventores em instituições penitenciárias foi o produto mais bem-acabado desse novo paradigma punitivo do poder em função de sua própria manutenção: um modo industrial, científico e limpo de punir.

Um crime, um indivíduo, uma cela. A punição em sua forma prisional panóptica dissimulava muito bem a violência do poder. “Panóptico” é um termo concebido em 1785 pelo filósofo Jeremy Bentham para designar a penitenciária ideal, na qual um único vigilante observava todos os prisioneiros, sem que estes pudessem saber se estavam ou não sendo vigiados. Panopticamente falando, era o receio de não saber se estava sendo observado que levaria o preso a adotar o comportamento desejado pelo vigilante, pela sociedade, em suma, pelo poder que o punia. Só que em um mundo que insiste em ser real, penitenciárias ideais ficam sempre aquém da expectativa.

Entre a trágica distância que separa a realidade prisional brasileira da idealidade panóptica jaz uma elite que busca manter e expandir o seu poder desumanamente, punindo aqueles que desrespeitam as suas regras com uma obscenidade equivalente àquela régia, aplicada no cadafalso antigo. Isso já ficou claro no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, no início do ano de 2014, com dezenas de presos barbaramente massacrados, mutilados e decapitados; e é ainda mais iluminado nesse início de 2017, com a repetição espetacular da mesma barbárie em chacinas em vários presídios brasileiros.

Só que, no caso brasileiro, há uma sobrepunição: em vez de os contraventores serem ou torturados e mortos em praça pública, como antigamente, ou, em vez disso, confinados isoladamente em celas prisionais, como na modernidade, eles na verdade são submetidos às duas punições; sendo que a segunda comporta uma perversão ainda mais desumana. As prisões brasileiras – os antigos cadafalsos espetaculares modernamente panoptizados – são de um panopticismo invertido, no qual os presos, em vez da dúvida sobre se estão ou não sendo vigiados, o que idealmente os levaria ao bom comportamento, estes presos têm certeza de que não são vigiados. E o que é pior, revoltam-se porque são sistematicamente esquecidos pelo poder que os pune.

O panopticismo às avessas das penitenciárias brasileiras faz com que os detentos sejam vigiados, e consequentemente punidos, apenas por si mesmos. E quando a tensão dessa conjuntura interna chega ao limite, eles torturam, mutilam, decapitam, esfolam uns aos outros. Aí, quando essa barbárie cadafálsica choca a opinião pública ao aparecer nos telejornais ou se tornar visualizável no Youtube, o panopticismo invertido se radicaliza: os presos têm as suas degradações assistidas, não pelo poder que os pune, mas por toda a população. São supliciados então diante dos olhos de todos, em um praça pública virtualizada, sem no entanto deixarem os buracos de suas reclusões punitivas.

O linchamento é um ato praticado por iguais que todavia não se enxergam como iguais. Nesse sentido, o conceito de linchamento desenvolvido por José de Souza Martins na sua obra “As condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil” é de grande ajuda na nossa tentativa de compreensão da crise carcerária brasileira. Para o sociólogo, o mais importante a se entender nos linchadores é que eles querem apontar que há algo muito errado na sociedade; que há violações insuportáveis de normas e valores; e que algo precisa ser feito pelo poder urgentemente.

Se, por um lado, o extermínio de iguais nas celas superlotadas e totalmente desatendidas das penitenciárias brasileiras – iguais que todavia se diferenciam apenas pelo poder de uns matarem outros – visa conscientizar a sociedade de sua própria e alienada crise, por outro lado, os presos buscam exterminar aquele(s) outro(s) junto a eles que refletem insuportavelmente a desumanização a que todos estão sujeitos, causada justamente pela punição que, em primeiro lugar, deveria humanizá-los; dito de modo apropriado: ressocializá-los. Nesse quadro, lincham-se uns aos outros para que, pelo menos alguns – os que sobrevivem -, terem, paradoxalmente, uma realidade um pouco menos desumana.

Como sustenta Souza Martins, “o linchamento não é o apogeu da desordem, mas o questionamento último de uma ordem decadente: é questionamento do poder e das instituições”. Só que o Estado e a mídia – se é que esses dois já não são um só no Brasil – são os primeiros a não ressaltarem que a Constituição Federal de 1988 estabelece, como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, que aos presos é assegurado o respeito a sua integridade física e moral, bem como o oferecimento de meios pelos quais eles venham a ter participação construtiva no seio social.

Os miseráveis resultados ideológicos dessa alienação intencional podem ser vistos em declarações públicas mais miseráveis ainda, como por exemplo, a do Secretário Estadual de Justiça e Administração Penitenciária do Maranhão, Sebastião Uchôa, a respeito da tragédia de Pedrinhas em 2014: “há males que vêm para o bem”; e também a infeliz fala do até então Secretário da Juventude do governo golpista de Temer, Bruno Júlio, sobre as chacinas de 2017: “Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”. E nessa esteira ignóbil, a opinião pública repercute ensurdecedoramente tamanhos disparates.

Agora, se a punição sempre foi estratégia de um poder que busca se manter, precisamos perguntar: uma punição decadente como a que estamos vendo no Brasil cumpre melhor ou pior o sempiterno objetivo dos poderosos? Os reis antigos, que tiveram de abrir mão da excessiva crueldade de suas punições para se manterem régios, certamente diriam ao poder contemporâneo que ele precisa se reinventar. Já do isolacionismo idealista da forma punitiva panóptica moderna o poder deveria compreender que, em primeiro lugar, precisa atentar mais ao real, e, em segundo lugar, que a ressocialização dos seus marginais solicita o contrário da exclusão, do esquecimento deles, que hoje se dá ou em celas superlotadas e desassistidas de salubridade e humanidade, ou ainda mediante chacinas.

O movimento histórico da manutenção do poder, em dois atos foucaultianos e em um epílogo tragicamente brasileiro, inicia-se no cadafalso público espetacular com o rei exibindo o seu poder aos súditos. Só que, nesse caso, o supliciado, por sobre o ombro real que o punia, denunciava aos seus iguais a desmedida desse poder com o qual era punido. E os reis não foram poupados de seus próprios excessos. No segundo ato, temos a instituição panóptica, com o criminoso constantemente observado e paulatinamente punido, longe dos olhos da opinião pública. Ainda que produzindo um radical afastamento, um panopticismo minimamente eficiente deve fazer com que o preso seja assistido – mesmo que não saiba exatamente quando -, com o fim de reinseri-lo na sociedade.

Porém, concluindo, temos o coro trágico dos atuais presídios brasileiros, cujos presos seguem desassistidos, tanto pelo poder que os pune, quanto pela sociedade à qual deveriam retornar depois de punidos. Os nossos detentos estão jogados, não dentro do edifício social, nos andares que deveriam ressocializá-los, mas debaixo de suas fundações, ainda vivos ou já decapitados, todos jazendo desumanamente sob o peso de um Estado e de um sistema carcerário decadentes e desumanos. Na incapacidade ou na falta de vontade daqueles que estão fora das grades de fazer valer a punição prescrita pela Constituição, os atuais condenados só podem reduzir e mutilar supliciosamente a si mesmos, para assim iluminarem a trágica crise social que ninguém mais do que eles vivencia na carne.

A eleição da vulgaridade

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Um dos maiores talentos de Donald Trump, presidente eleito dos Estados Unidos, é a sua capacidade de ser criticado. Há poucos dias, a atriz Meryl Streep o criticou em uma famosa premiação cinematográfica. A plateia que a assistia ao vivo e os Trump-haters de todo o mundo aplaudiram-na. Todavia, quase a mesma quantidade de gente – eleitores norte-americanos e admiradores Worldwide do futuro presidente – rechaçaram-na. Até aí tudo bem, afinal, oposição de opiniões cai muito bem à democracia. Porém, como não podia deixar de ser, o ato mais criticável de todos a respeito do ocorrido no Globo de Ouro foi mesmo o de Trump.

Poucas horas depois, o topetudo já respondia, pelo Twitter, à crítica de Streep dizendo, entre outras pós-verdades, que ela é uma “atriz superestimada” e “lacaia de Hillary”. Como dito no início, a capacidade de Trump de ser criticado é imensa, porém, a sua aptidão para receber críticas é inexistente. Ele, ao contrário, orgulha-se de ser do tipo que “não leva desaforo para casa” e, mais ainda, esforça-se para que os “desaforados” recebam desaforos ainda mais pungentes. Agora, em se tratando de alguém que pretende ocupar o cargo político de maior poder no mundo, ser refratário à dissonância a esse ponto é postura que, além de extremamente perigosa, é lamentavelmente patética.

No seriado “The Young Pope”, dirigido pelo grande Sorrentino e protagonizado pelo delicioso Jude Law, o Jovem Papa Pio XIII, tão controverso quanto diabólico, é acusado publicamente de heresia e ameaçado de deposição devido ao teor de cartas de amor escritas na adolescência. Para protegê-lo, a assessora de imprensa do Vaticano exige dele que declare, também publicamente, que não é um herege. O papa, entretanto, responde perspicuamente: “Se não sou herege, por que eu deveria declarar que não sou? Defender-me apenas levantará suspeitas… A melhor coisa a fazer é ignorar a acusação e a ameaça”. No final das contas, as cartas são divulgadas e, para a decepção dos inimigos do Jovem Papa, o mundo se apaixona ainda mais pelo Vigário de Cristo na terra, afinal, a maioria das pessoas se compraz com o amor. Só não percebe isso que não o tem em si.

Trump seria incapaz da segurança e da fineza do Papa ficcional, seja porque aquilo de que lhe acusam ser verdadeiro, e o que é pior, corroborável por vídeos do Youtube, seja principalmente por ser incapaz de resistir às críticas que recebe. Se lembrarmos do que disse Nietzsche em algum lugar, que “toda vulgaridade vem da incapacidade de resistir a uma solicitação”, o mais adequado predicado para o bilionário quase presidente é: vulgar!

Do latim vulgaris – derivação de vulgus (multidão) -, “vulgar” é aquilo que é usado pelo povo e não possui quaisquer traços de nobreza ou distinção. Com efeito, Trump reage às críticas que recebe como se fosse um de seus patéticos eleitores homens brancos de classe média e sem formação superior. Só que, afora sua raça, ele é rico desde a infância – um biógrafo seu conta que, na adolescência, Trump vendia jornais no seu bairro levado pelo seu chofer -, e, além disso, o magnata é diplomado em economia pela quarta melhor universidade dos EUA. Trump não é vulgar fortuitamente, por falta de opção, mas deliberadamente, o que o sobrevulgariza.

Recentemente, intrometendo-se, com sua inconveniência habitual, na delicada diplomacia EUA-Israel, Trump vomita mais um tweet impertinente, desta vez dizendo para Netanyahu: “Mantenha-se forte! 20 de janeiro [data de sua posse] está chegando”. Não obstante o fato de o ordinário Trump não ter sido eleito pelo voto popular, mas indiretamente pelos ardis do suspeitíssimo sistema eleitoral norte-americano, ele ainda por cima não respeita a presidência oficial do seu próprio país.

E o que dizer do polêmico caso político/amoroso/tweetico entre Trump e Putin? Agências de inteligência dos EUA dizem, e até mesmo os próprios colegas republicanos de Trump confirmam, que Putin ordenou espionagem hacker nas eleições norte-americanas para favorecer Trump e desacreditar Hillary. E o que é mais grave de tudo, Trump será empossado mesmo assim, pois nem mesmo a paranoia anti-espionagem dos extremamente paranoicos sobrinhos do Tio Sam parece ter mais poder do que as intempestividades tweeticas de Trump. A mensagem descarada do bilionário a Putin – na verdade, cinicamente endereçada ao povo americano e ao mundo – foi a seguinte: “Junte-se ao nosso time para fazer a tirania grande novamente. Será enorme”.

Convenhamos, o que foi eleito nas últimas eleições norte-americanas não foi um presidente, mas um representante legítimo do antipolitismo, da falta de diplomacia, da vulgaridade. Cereja tirânica do bolo tweetico de Trump: “Quem se importa com a Constituição?”. Ora, se o próximo presidente dos EUA não se importa com a lei, nem tampouco com a civilidade, o que na verdade foi eleito pelo “país mais poderoso do planeta” foi a barbárie. Quase metade dos eleitores, mais o sistema político norte-americano, escolheram a barbárie em detrimento da civilização! Paradoxal é o fato de, hoje, a barbárie poder ser acompanhada pelo Twitter, uma das maiores sofisticações da civilização. Afinal… It´s Trump times, folks!

Até mais, civilização!

até mais

Como se não bastasse o crescente estímulo capitalista à velha exploração do homem pelo homem; a pandemia individualista hedonista a qual as pessoas se entregam entusiasticamente; o esgotamento sistemático da natureza para sustentar tanta exploração e tanto entusiasmo; sem dizer do vigoroso fôlego que a xenofobia, o fascismo e o terrorismo tomam pelos quatro cantos do mundo; tudo isso já seria suficiente para nos perguntarmos: estamos marchando a passos firmes de volta à barbárie? A ode norte-americanas a “Donald Trump para presidente da maior potência econômica mundial” ao menos traz uma certeza inegável: queremos debandar da civilização.

Ascendendo politicamente como ninguém poderia imaginar, todavia não por virtude sua alguma, o bilionário topetudo, infelizmente, é a escolha de milhões de norte-americanos que se dizem desiludidos, pasmem, com o modo “polido de se fazer política”. Uma superficial análise etimológica já mostra que essa preferência impõe um desafio impossível a qualquer intelecto civilizado, pois, na verdade, significa “queremos política sem política”. A alienação das cabeças ocas e aburguesadas dos norte-americanos homens brancos heterossexuais de classe média, eleitores de Trump, no entanto, passa longe dessa questão.

Claro, somente por isso não podemos concluir que que os rebentos do Tio Sam querem a barbárie pura e simples. Cabe ainda lembrar que entre ela e a dimensão política há o limbo despotismo. O déspota de antes da invenção da política pelos antigos gregos era um semibárbado/semicivilizado através de cuja força física impunha sem escapatória as suas vontades sobre o seu núcleo familiar, sem se valer de racionalidade alguma, e o que é menos polido que tudo, sem a palavra. Mutatis mutandis, o despotismo pré-político por acaso não é o nosso bem conhecido fascismo, todavia, sem o disfarce das Instituições civilizadas?

Seria o caso então de concluirmos que os EUA, e por “efeito rebanho” o restante mundo, estão querendo líderes despóticos para si mesmos? Se sim, resta saber todavia se tirânicos -os mais próximos da barbárie-, ou, em alternativa, “esclarecidos” -característicos na Europa do século XVIII; mistura contraditória de absolutismo real com ideais de progresso. As bestas políticas contemporâneas, pela simples sonoridade da palavra “progresso”, dirão que é a segunda opção. No entanto, podem estar desejando inadvertidamente, e sobretudo merecendo a primeira.

Mesmo que o progresso seja uma seta estridente e imperiosa que aponta da barbárie para a civilização, ele tem o poder de, estratégica e dissimuladamente, realocar-nos no passado, e ainda por cima deixar-nos com um falso gosto de futuro na boca. Prova disso é a Igreja Católica Apostólica Romana, hoje em dia nas mãos do “Pop” Francisco, ter o surpreendente sabor de instituição progressista. Essa aparência de progresso, no entanto, é apenas uma prova amarga de que todas as demais instituições que lhe superaram historicamente estão aquém dela! Por certo que a “Apostólica” já foi a instituição mais sofisticada do mundo. Porém, esse tempo atende pelo nome de passado.

Talvez os efeitos colaterais das doses cavalares de progresso que desde a modernidade vêm sendo aplicadas no mundo pela “halopatia” capitalista tenham nos tornado insensíveis, quiçá alérgicos à civilização, à política, até mesmo ao futuro. Só que “supositórios” tipo Trump, por exemplo, não são antídoto contra esse mal. Longe disso, são antes a evidenciação inegável dos seus sintomas. No entanto, o mundo, mais evidentemente os eleitores de Trump, parecem com aquele indivíduo que, morrendo de câncer de pulmão devido ao tabagismo, gasta o seu último sopro de vida para pedir o cigarro derradeiro.

Ícone do contemporâneo desejo de passado é o famigerado muro que Trump quer construir entre os EUA e o México caso seja eleito. Decerto que muralhas -e fossos com crocodilos até- são estratégias de defesa, mas, como sabemos, as que restaram há muito jazem apenas enquanto peças de museus urbanos, símbolos do que a humanidade deixou para trás na sua senda civilizatória. Entretanto, nem mesmo “A Queda do Muro de Berlin”, tão recente, é capaz de frear o ímpeto neo-bárbaro de fronteiras intransponíveis no seio da era globalizatória.

Na verdade, sob o pretexto de barrar a imigração clandestina para preservar emprego aos norte-americanos, o que o muro de Trump traz ao mundo, muito antes de significar mais empregos e mais dólares no lado mais rico, é a impertinente separação da civilização em duas. E como o outro alienado da civilização sempre foi a barbárie, eis o que teremos de um dos lados do muro. Só que os bárbaros da vez não serão os mexicanos “xeno-rejeitados”, mas os pretensos civilizados apólogos da neo-muralha. Oxalá um dia os “cucarachas” possam agradecer esse isolamento deliberado das bestas norte-americanas.

Menos espetacular, mas nem por isso menos retrógrada, é a recusa ao outro imigrante em muitos e ricos países europeus. Comparados com estes, a distopia de Trump tem ao menos a virtude de ser declarada, uma vez que não se esconde atrás de covardes canetadas institucionais igualmente intransponíveis, todavia invisíveis. O topetudo quer instituir materialmente, tijolo por tijolo, a sua “solução xenófoba-econômica” em torno de si. Como, por conseguinte, é mais fácil “cortar a cabeça” de inimigos concretos e visíveis, a ópera dantesca trumpeana poderá muito bem estar sendo o seu próprio réquiem.

Não que Hilary Clinton, se vencer Trump nas eleições desse ano, representará a vitória da civilização sobre a barbárie. Sua longeva fidelidade às forças capitalistas, de qualquer modo, senão construirá novos muros, com certeza reforçará os que já existem, translúcidos, mas que nem por isso deixam de separar dramaticamente o mundo em dois: de um lado os ricos, e de outro os pobres. Novamente, Trump parece ser, não a “menos pior”, mas a “melhor pior opção”, pois a vilania de um déspota declarado é bem mais fácil de ser reconhecida e combatida do que a de uma burocrata do mal fantasiada de democrata.

Por mais que Donald Trump seja um letreiro luminoso ofertando o passado, todavia travestido de progresso, e que a sua paradoxal e cada vez mais popular “política sem polidez” outra coisa não seja que o modus operandi da barbárie assumindo o controle do escritório climatizado da civilização, a civilidade, por sua vez, como aconteceu no passado, é cada vez mais necessária à medida que a presença da barbárie se torna insuportável. Hilary, “a” opção contra o déspota Trump, no entanto só manterá invizibilizada a barbárie que já nos acossa. Nesse sentido, e talvez somente nesse, Trump seja uma vantagem, uma vez que dá carne, osso, tijolo e “insuportabiliade” a esse espectro maléfico como ninguém.

Mas isso, claro, só se vaticinarmos que, haja o que houver, a civilização adoecida vencerá a o vírus da barbárie. Do contrário, Trump será o neo-Hitler icônico da morte daquela. Entretanto, se a humanidade é mesmo uma sempiterna dialética barbárie-civilização, não é o caso de querer hipostasiar um vencedor final. Essas duas dimensões existenciais como que dão força e significado uma à outra. Assim como a fina-flor da civilização foi capaz de produzir um Trump, assim também a erva-daninha que ele encarna é capaz de estimular a civilização.

E porventura o efêmero e agorafílico fenômeno Bernie Sanders não deve muito de sua força à agorafobia bárbara de Trump? Com quantos Trumps imperialistas então faremos um Sanders socialista presidente dos Estados Unidos? Mas não nos esqueçamos, muitos Sanders, por suas vezes, trarão um novo Trump! Tal é a dialética entre as forças que eles representam; basta olhar a gangorra democrata-republicana naquele país -ainda que no playground do Tio Sam, Sanders seja como que alienígena. Por isso, Por mais que Trump seja uma ameaça à civilização, não temos motivos para dar um terminal adeus a ela.

Antes de concluir, não dá para não falar do movimento brasileiro em direção ao passado, ironicamente nomeado pelos seus apólogos golpistas de “Ponte para o Futuro”. O governo de esquerda que em pouco mais de uma década produziu a maior inclusão social da história do Brasil -sem dúvida um passo civilizatório por excelência!- no entanto, recentemente levou um golpe baixo da direita reacionária. E para dizer a que veio, e principalmente para onde quer levar-nos todos, de pronto os golpistas se apresentaram em forma de um ministério exclusivamente masculino, rico, branco e -até onde dizem- heterossexual. E isso em pleno Século XXI…

Obviamente, os golpistas brasileiros não reinstituíram a barbárie ela mesma, mas, sem dúvida, pavimentaram o primeiro quilômetro de uma ponte que, sem empecilho, pode levar até ela. E ao povo brasileiro, que deveria ser “o” empecilho àqueles, mas que no entanto está dócil e melancolicamente retrocedendo por essa via impertinente -e aqui se alinha às bestas norte-americanas-, resta ao menos, na esperança de poder um dia retornar ao virtuoso estágio civilizatório no qual se encontrava, dizer: “Até mais, civilização”.

Homem lobo solitário do Homem

solus lupus

Homo homini lupus”, ou seja, o homem é o lobo do homem, disse o dramaturgo romano Tito Mácio Plauto em 200 a.C., máxima que o filósofo inglês Thomas Hobbes, dezoito séculos depois, usou para justificar o contrato social que institui o Leviatã, isto é, o Estado, cuja função primordial é a de proteger os homens da morte violenta. As palavras de Plauto e o posterior uso que Hobbes fez delas, a meu ver, explicam muito melhor o fenômeno assaz contemporâneo, bastardo do terrorismo, encarnado nos “lobos solitários” do que a ideia fácil que diz apenas que “os lobos caçam solitariamente”.

Quanto mais não seja, porque a recência dos “solus lupus” na arena contemporânea ainda nos deixa com muito mais perguntas do que respostas. Pois bem, que o lobo solitário age desconectado de organizações terroristas, digamos assim, oficiais, é óbvio pelo próprio nome. Obscuras, todavia, são as ideias que o movem. Provavelmente, a ideologia insólita do lobo solitário seja um híbrido de psicopatologia, ignorância, frustração pessoal e informações desconexas que ele saca da mídia e das redes sociais, porém, e tal hibridez infeliz o impele incontrolavelmente ao terror. Afinal, é aterrorizante mesmo tamanha confusão. A sombra ideológica sob a qual vive o lobo solitário faz com que entendê-lo seja tão difícil quanto prever um ato seu.

Agora, se, como dissemos no início, afirmar que “o homem é o lobo do homem” é uma metáfora para o fato de o homem ser o seu próprio e maior inimigo, quem, então, seria seu amigo? Impossível não lembrar do provérbio popular “o cachorro é o melhor amigo do homem”. Não podemos esquecer que esse amigão canino, como sabemos, não existia na natureza até a existência do homem em sociedade primitiva. O lobo é um produto genuinamente humano, a partir da matéria prima do lobo selvagem, ou seja, do seu inimigo simbólico. Essa gradual e real domesticação, do lobo selvagem em cachorro amigável, representa a questão hobbesiana da instituição do Estado Absoluto: o “homo homini lupus”, pelo chicote do Leviatã, tornado o “homo homini canis”.

Tanto da perspectiva de Hobbes, como dessa imagem acima, a do lobo feito cão pelo homem socializado, o lobo solitário terrorista pode estar querendo mostrar algo dos imensos canis que são os nossos Estados: em primeiro lugar, que a segurança que os Estados deveriam assegurar não está mais funcionando. O terror que esses lobos trazem ao mundo dá o seu recado, efetivamente, por mais amargo que seja. O recado: voltamos a ser lobos de nós mesmos. Ou, ao menos, um: “Olhem! Vejam como é fácil ser Lobo de nós mesmos!” O protesto radical do Lobo Solitário traz uma imagem: a do cachorro, frustrado e desesperado, em pele de lobo valente e revolucionário diante do lobo do Estado, violento e dominador, em pele de cachorro, fingindo melodramaticamente que é amigo.

Pensando nos lobos solitários, é impossível também não lembrar da “Idade do Lobo”, expressão usada para falar da fase da vida na qual certos homens, por volta dos 40 anos, entram na famigerada “crise de meia idade”. A psicologia explica que na Idade do Lobo os homens percebem que não viveram as suas vidas conforme desejaram porque seguiram apenas as regras da sociedade. Isso os leva então a querer fazer tudo o que nunca fizeram, e com pressa, pois sentem que não lhes resta mais muito tempo. A patologia a ser percebida aqui é a seguinte: o Lobo busca desesperadamente “fazer as coisas que não fez” em vez de simplesmente “fazer o que gostaria de fazer”.

A analogia entre o lobo solitário e o homem na Idade do Lobo é válida. O terrorista insólito seria aquele que, a certa altura de sua vida, percebe que é escravo de um sistema opressor muito maior do que ele; que é vítima de imperativos que não o satisfazem, nem tampouco o satisfará. Então, a certeza de que sucumbirá o leva a fazer coisas que nunca fez.

A expressão Idade do Lobo, todavia, é inspirada no conflito psicopatológico analisado por Freud e nomeado por ele de “O Homem dos Lobos”. O Lobo freudiano é o indivíduo vítima de um excesso pulsional causado pela sensação de castração devido à sempiterna “ausência do pai ideal”. Como essa falta é cada vez mais insuportável, ele se vê num processo vicioso de, por um lado, admiti-la e, por outro, negá-la. Em suma, esse dilema resulta na “divisão do eu”, ou seja, a divisão do ego como forma de defesa. Um “eu”, resignando-se à falta, renuncia ao seu desejo frustrado, frustrando-se em definitivo, e o outro “eu”, em contrapartida, desmente o primeiro; nega a realidade, e se recusa a aceitar qualquer limitação.

O lobo solitário terrorista, da perspectiva do “O Homens dos Lobos” freudiano, seria o indivíduo cujo “pai ideal” faltante se apresenta enquanto “o mundo ideal ausente”. Orbita obsessivamente esse seu mundo ideal, sem, no entanto, alcançá-lo. Tal é a estrutura da pulsão. Se, ao contrário, atingisse a sua meta, isto é, o centro da órbita onde esse objeto idealizado foi colocado por ele mesmo, no caso, a conquista de seu mundo ideal, teria a frustrante visão de que tal mundo, assim como o pai ideal, não existe. E para evitar essa sobrefrustração, a velha sensação de castração lhe convence do contrário, e assim o lobo solitário reintroduz-se em sua mórbida órbita pulsional.

Então, o “Solus Lupus”, egoicamente, divide-se em dois: um dos quais, aceitando a falta insanável e renunciando ao desejo frustrado, foge da inexistência desse mundo idealizado; enquanto o outro, negando a realidade e se recusando a limitar o seu desejo, segue obsessivamente na sua busca. Ao mesmo tempo nega e afirma o mundo ideal. Só mesmo a forma pulsional para sustentar esse problema: orbitar em torno do mundo ideal faltante, tanto para assumir centrifugamente a incapacidade de tocá-lo, quanto ainda para mantê-lo centripetamente no seu horizonte de possibilidade. A tensão é grande. Só que a tentação de seguir buscando o objeto impossível é maior do que a resolução de abandoná-lo definitivamente.

Lacan diz muitas coisas muito importantes acerca da pulsão. Uma delas, que o objeto que jaz no centro da meta pulsional, para ele o “petit objet a”, é desde sempre algo a nunca ser alcançado. A meta principal da pulsão é nunca alcançar as suas metas secundárias. E isso porque o gozo da pulsão é tão somente a busca, não aquilo que é buscado. Compreender essa paradoxal dinâmica é fundamental para entender o lobo solitário. Decerto ele sabe que, no fundo, o terror que promove é tudo menos a realização de quaisquer mundos ideais. Mas como o “petit objet a” do lobo solitário, qual seja, o mundo ideal, não é para ser alcançado, apenas buscado, o mundo real piorado que o seu ato terrorista produz acaba sendo espécie de altar e  adubo para o seu mundo ideal impossível

A violência e a morte que o lobo solitário traz ao mundo real, com efeito, é a tentativa de convencer todos à sua volta de que a busca obsessiva da qual ele não consegue se ver livre é mais que necessária. Sua solidão quer atenção mundial! A contundência de seus atos, sem dúvida, só reforça a ideia de que um mundo melhor precisa ser construído. Só que ele, vítima da pulsão, antes de todos já sabe que tal mundo não existe, que é só um fantasma: o negativo, real e coletivizado, de sua presente e insuportável frustração por ter sido castrado do mundo que idealizou, abstrata e solitariamente.

Para Freud, “O Homem dos Lobos” seria o “Édipo invertido”, isto é, aquele que, em vez de matar o pai e casar com a mãe, acabou desejando o pai, todavia sob o preço de se colocar no lugar da mãe. E para se ver livre, tanto desse desejo homossexual pelo pai, que ele percebe não ter espaço na realidade, quanto da identificação com a mãe, que por seu turno estimula aquele desejo problemático, o Édipo invertido se esconde atrás de um fetiche/máscara cujo objetivo é ocultar dele próprio a imagem da sua irrealização sexual. Por trás do semblante viril com que “O Homem dos Lobos” se apresenta jaz, no entanto, a triste sensação da sua distância em relação ao seu desejo desde sempre impossível.

Seria demais, contudo, investigar aqui a possível homossexualidade do lobo solitário. Basta que tenhamos em mente o seguinte: a frustração diante da impossibilidade do seu grande desejo, nesse caso, o mundo ideal, ou ao menos idealisticamente melhor; a angústia de permanecer em um lugar que é o seu, mas que não é desejado que seja, pois é ruim; e, sobretudo, o mascaramento dessa tensão mediante uma virilidade radical, que em seu extremo pode sim ser vista na adesão insólita do Lobo Solitário ao terror. O fetiche do lobo solitário terrorista deve ser a destruição pública e violenta do mundo real para com isso dar realidade ao seu mundo privado e idealizado.

Por certo que a belicosidade destrutiva do Homem dos Lobos freudiano é bem menor que a do lobo solitário terrorista. E isso porque objetos que o primeiro elege como responsáveis por suas frustrações são mais concretos e tangíveis: sua sexualidade, seu corpo, sua profissão, sua família, etc. Já os do segundo são assaz abstratos, e por isso mesmo, dificilmente alcançáveis: a humanidade, a sociedade, o Estado, o capitalismo, e por aí vai. Contra estes, cuja medida obviamente escapa a qualquer indivíduo isolado, pois só começam a ser tanto perceptíveis quanto atacados a partir da perspectiva de uma coletividade, o lobo solitário, que se opõe à coletividade, só pode agir desmedidamente. Nesse sentido, e talvez somente nesse, alistar-se ao terror do Estado Islâmico pudesse ser menos infeliz do que investir insolitamente no terror.

Porém, terror algum será capaz de fazer do mundo um lugar melhor.  “O Homem dos Lobos” deve aceitar a sua homossexualidade para então se ver livre da asfixiante pulsão de mascarar a sua frustração sexual. Do mesmo modo, o homem da Idade do Lobo deve deixar de perder tempo com o que até então não fez, mas compreender que há, de um lado, coisas que jamais realizará, e, de outro, realizações possíveis que ele bem gostaria de fazer; assim também o Lobo Solitário deve aceitar a sua irremediável limitação individual diante dos grandes problemas mundiais e dos desmedidos desafios que impõe a si mesmo.

Em outras palavras, o lobo solitário precisa mais que tudo rever a sua meta, redimensioná-la à modéstia do indivíduo que é. Participando de uma organização terrorista, ele seria apenas menos patético, porém, igualmente patológico, monstruoso e condenável. Sem dizer que não estaria reduzindo os problemas do mundo que ele mesmo percebe e contra os quais protesta. Muito pelo contrário, aliás. A modéstia que seria bom o lobo solitário adquirir é a consciência de que a saída para o problema que lhe afeta é cada vez mais coletiva e positiva, e não solitária e negativa. Ou seja: cada vez mais política. E é muito mais fácil um déspota solitário se convencer disso do que um Estado despótico todo.

A psicologia diz que a “Idade do Lobo” pode ser uma crise importante na vida de alguém, uma vez que envolve tomadas de consciência próprias do humano, tais como das rígidas imposições sociais; dos limites próprios da vida; da desmedida dos desejos individuais; e sobretudo da necessidade de se produzir um futuro com mais liberdade e oportunidade de realização. Da mesma forma, para o que aqui eu chamo de “A Idade do Lobo Solitário”, ou seja, o momento crísico e individual no qual alguém cogita ser um terrorista insólito, pode também ser positivo, porém, se, e apenas se, for o átimo no qual esse indivíduo finalmente toma consciência, digamos assim, do mal da sociedade a ser combatido sem trégua, não solitária e barbaramente, mas coletiva, política e civilizadamente.

Ora, não é alienígena para ninguém aquela vontade de, como se diz, “chutar o balde”, isto é, explodir o patrão capitalista, jogar os homofóbicos na fogueira, metralhar os racistas, socar os machistas etc. Decerto que sempre nos depararemos com o semibárbaro que se jaz incorrigível sob a nossa pele civilizada. Porém, civilização é superar as nossas resistências bárbaras constantemente, e nunca replicá-las. É nesse sentido que até mesmo o lobo solitário terrorista, porque também está com um pé na civilização e outro na barbárie, tem a oportunidade de saltar o lodo bárbaro que vê diante de si para quiçá alçar um patamar mais elevado de civilidade.

E o leviatã hobbesiano, que fez do “homem lobo do homem” o “cidadão amigo do cidadão”, é talvez a maior encarnação da civilização. Barbárie alguma pode oferecer produto melhor. Se alguns discordam disso, trata-se, novamente, apenas de uma combinação confusa de psicopatologia, ignorância, frustração pessoal e informações impróprias. O lobo solitário, se tomasse consciência disso, perceberia que é mais fácil desfazer essa sua confusão e, com calma, tratar de suas mazelas pessoais, do que, antes, sair solitária e desesperadamente tentando mudar o mundo. Afinal, coagir os outros à mudança para não precisar mudar nada em si mesmo é o espírito mais primordial do despotismo.

Esse ensaio sobre os lobos mais simbólicos do mundo, contudo, ficaria incompleto se não falássemos do Lobo Mau de “A Chapeuzinho Vermelho”. Nas palavras do seu autor, o francês Charles Perraut, “o Lobo é um tipo com uma disposição receptiva – sem rosnado, sem ódio, sem raiva, mas dócil, prestativo e gentil, seguindo as empregadas jovens nas ruas, até mesmo em suas casas. Ai de quem não sabe que esses lobos gentis são de todas as criaturas as mais perigosas!” A moral perraultiana da estória é trazida aqui para refletirmos sobre muitos dos depoimentos de parentes e amigos de lobos solitários terroristas. Em suma, geralmente ouve-se daqueles que estes são pessoas boas, trabalhadoras, divertidas, amigáveis, amáveis até.

É perturbador confrontar tal dimensão, digamos assim, civilizada dos lobos solitários com a barbárie que promovem. A solução, obviamente, não é evitar aqueles que se aproximam receptivamente, como disse Perrault, “sem rosnado, sem ódio, sem raiva, mas dócil, prestativo e gentil” só porque podem ser “criaturas as mais perigosas”. Isso seria se privar das benesses da civilização elas mesmas. Talvez a moral desse ensaio queira apenas concluir que o lobo solitário, bastardo de um mal muito maior e anterior a ele, é apenas uma pessoa como qualquer outra, como eu e você, com suas humanas frustrações, desejos e limitações, que, entretanto, em determinado momento patológico, erra o passo e se atola no lodo da barbárie, que, de certa forma, está sempre logo abaixo da porcelana da civilização.

Porém, qual gelo fino, essa civilidade de onde nos aterrorizamos com os lobos solitários e os criticamos, assim como aconteceu com eles, pode ruir sob os nossos pés. Então, enquanto estamos no privilegiado belvedere civilizado, seria bom que nos empenhássemos na construção um mundo melhor, oxalá capaz de dar vida ao clássico lema anarquista “De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, pois só mesmo um ambiente assim dispensará qualquer pertinência ao terrorismo.

Barbárie pouca é civilização

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“Besteira pouca é bobagem”, diz um provérbio português, que nesses nossos tempos de cotidianização de atentados terroristas bem poderia ser parafraseado da seguinte maneira: ‘barbárie pouca é bobagem’. Quem iria imaginar que no cume de sua civilização o ser humano fosse ressuscitar de forma tão banal modos tão primitivos de ser no mundo?

A atual barbarização da nossa “nobre” civilização, todavia, não é tão surpreendente assim se relembrarmos do ensaísta político francês Pierre Drieu la Rochelle, que, no início do século passado, de sua vista privilegiada para a Belle Époque, já dizia que “a civilização extrema gera a barbárie extrema”. Essa máxima de la Rochelle tem a virtude de apontar algo de que estamos esquecidos há muito: a viciosidade disso que chamamos evolução.

Desde que o cristianismo se tornou o paradigma da nossa civilização, e depois a ciência, acreditamos piamente que o tempo é histórico, isto é, que o passado corrompido só faz ficar cada vez mais para trás em detrimento de um futuro sempre e cada vez novo e melhorado. O brilho ofuscante da barbárie na berlinda da nossa contemporaneíssima arena histórica, porém, põe em cheque justamente essa visão, melhor dizendo, essa previsão.

Mesmo com a mui martelada e centenária “Morte de Deus” nietzschiana, mantemos cegamente o vaticínio da evolução em coma assistido. E isso quiçá para não reencontrarmos uma sabedoria da Antiguidade, aliás, própria do estoicismo, vertente filosófica fundada em Atenas por Zenão no início do século III a.C., que propunha a mítica repetição do mundo. Esta concepção afirmava que o mundo retorna sempre à sua origem para que os mesmos atos ocorram novamente, ad aeternum.

Da perspectiva estoica pelo menos, não há nada de errado no retorno da barbárie no sofisticado lounge da civilização. Antes, é a sempiterna dinâmica do mundo ele mesmo. Afinal, o que viria após a civilização senão o seu outro alienado? Por mais que tenhamos afastado estrategicamente barbárie e civilização uma História inteira, a Antiguidade tem a nos relembrar que entre aquelas duas não há mais do que um passo; e que, passo-a-passo, passamos de uma a outra, sem escapatória.

Por isso, o fato de nós, civilizados, estarmos aterrorizados com a barbárie que explode na contemporaneidade é espécie de ingenuidade, para não dizer ignorância; seja porque nunca nos alienamos completamente de nossa essência bárbara, mas apenas a encobrimos com a fina seda da civilização, seja ainda porque nos esquecemos da sabedoria dos antigos, que diz que o mundo é um circuito fechado no qual nada que aconteceu desaparece, mas retorna, eternamente.

Como não esperar que a barbárie e o terror que ela suscita reocupem a arena mundial, por exemplo, no reinado do não menos bárbaro e aterrorizante capitalismo, sistema econômico que, mantendo-se e crescendo mediante a desigualdade entre os agentes sociais, e estimulando a competição desenfreada entre eles, estabelece espécie de inimizade irrecuperável -e lucrativa- entre todos?

Aqui vale a pena relembrar o que disse o italiano Umberto Eco, que “o fim do terrorismo não é somente matar cegamente, mas lançar uma mensagem para desestabilizar o inimigo”. O terrorismo, com efeito, é a mensagem que, uma vez enviada, inimigo algum tem como dar “unfollow”. É lê-la ou lê-la. Ou, do contrário, ignorá-la e ser morto. E nesse ciclo do mundo no qual até mesmo continentes inteiros são transformados em inimigos pelo aterrorizante, cego e surdo capitalismo, mensagens inalienáveis e igualmente aterrorizadoras são cada vez mais trocadas.

E se, como colocou Edward R. Murrow, comentarista e repórter americano do meio do século passado, “nada pode aterrorizar toda uma nação a menos que todos nós sejamos cúmplices”, temos que a barbárie que o mundo assiste atualmente e da qual padece aterrorizado outra coisa não é que o produto coletivo desse mesmo mundo, dito civilizado. Ingenuidade ou ignorância, e por que não dizer covardia, é sustentar que são apenas os bárbaros fundamentalistas muçulmanos ou a besta capitalista os apólogos do eterno retorno da barbárie no cerne da civilização.

Levando em conta a infindável dialética entre barbárie e civilização, cuja única síntese possível repousa sob o signo do mito, isto é, da perpétua superação de uma pela outra, porventura podemos concluir que o investimento cego na civilização, paradoxalmente, é a preparação do mundo para mais um retorno da barbárie? Se é assim, então, um estratégico estímulo à barbárie, por sua vez, faria com que a civilidade se fizesse mais presente?

O que está se desenhando aqui? Que a barbárie é o caminho para a civilização? Esse rascunho, todavia, não deveria parece absurdo, uma vez que, anteriormente, como ninguém há de questionar, foi exatamente assim que se deu. Se em determinado momento do circuito fechado do nosso mundo partimos da barbárie para a civilização, não há motivos para crer que tal procedimento seja, digamos assim, alienígena nem tampouco irrepetível.

Só mesmo uma fé cega na ladainha cristã que prega há pelo menos dezesseis séculos que o tempo e a história são lineares, que nada do passado retorna, que há um fim da história mundana no paraíso celeste, blá-blá-blá, para não esperar que, sim, podemos passar, mais ainda, que passaremos muitas vezes, miticamente, pelo processo de encontrar e abandonar certa barbárie para encontrar e abandonar certa civilização, e assim por diante.

Então, aqui, chegou a hora de reencontrarmos o título desse ensaio, qual seja, “barbárie pouca é civilização”, ou o que é o mesmo, “civilização pouca é barbárie”, se se preferir, afinal, se, miticamente, uma e outra se sucedem dialeticamente, a humanidade é as duas em uma infindável relação. Compreender a humanidade, portanto, é saber, em cada momento, a diferença de nível de uma balança que em um prato carrega a barbárie, e, no outro, a civilização.

Dessa visada -e de forma alguma de uma perspectiva idealista que pressuporia barbárie e civilização como formas puras e hipostáticas capazes de existirem separadamente-, somos, materialmente falando, sempre e ao mesmo tempo semibárbaros e semicivilizados. Aqui vale repetir o que escreveu o pós-romancista português José Valentim Fialho de Almeida no final do século XIX, que “dar a um semibárbaro as regalias de um ser culto e consciente é pôr a civilização na contingência de um regresso brutal à barbárie”.

A solução que se rabisca aqui em respeito ao levante intempestivo da barbárie na contemporaneidade civilizada, cujo ícone último, excelente e espetacular é o terrorismo -muito embora, a meu ver, a sistematizada exploração capitalista seja infinitamente mais bárbara; afinal, quantas mortes contam nas costas do capitalismo e quantas nas dos terroristas?-, em suma, essa solução talvez possa parecer radical demais para ser considerada “politicamente correta”. Todavia, ao menos enquanto proposta deve ser pensada até o final.

Parafraseando o provérbio “besteira pouca é bobagem”, propôs-se outros dois, quais sejam seja, “barbárie pouca é civilização e “barbárie pouca é bobagem”. Colocando estes dois últimos como premissas de um silogismo, temos que, conclusiva e logicamente, “civilização é bobagem”. E isso, todavia, para reforçar a ideia de que investir na civilização contra a barbárie é tolice, pois é nada além de dar acesso privilegiado, melhor dizendo, privilegiar a barbárie.

Então, se é assim que dialeticamente a coisa funciona, deveríamos ser promotores, não da civilização, mas da barbárie ela mesma, pois assim ganharíamos aquela no final do empreendimento desta. No caso do maior problema do mundo atual, o terrorismo, sua solução seria levá-lo ao seu extremo, para que, finalmente, tendo dado tudo de si, sido esgotado, e o que é mais importante, aterrorizado absolutamente a humanidade, não houvesse mais espaço algum para ele, somente para o seu outro, a paz, ou a tranquilidade, se se preferir.

Aqui lembro da controversa afirmação dada pelo filósofo esloveno Slavoj Žižek, que Hitler não foi mau o suficiente. O que o filósofo quis dizer com isso -e que muitos não entendem- foi que se o líder nazista tivesse sido absolutamente mau, não haveria, hoje em dia, não só os neonazistas, que ainda veem pertinência nos ideias genocidas da Segunda Grande Guerra, como também a crescente xenofobia que, galopante, redesenha as fronteiras do mundo em descarada recusa ao outro estrangeiro imigrante.

Seguindo a lógica žižekiana, se Hitler tivesse sido absolutamente mau, isto é, se seu ódio aos judeus tivesse restado universalmente monstruoso, ou seja, absolutamente inaceitável para todas as pessoas e tempos futuros, os ódios mortais e insuportavelmente quje vemos presentemente, como aos estrangeiros, negros, homossexuais, mulheres etc., certamente não teríamos ainda hoje solo fértil para a erva daninha da intolerância radical em relação ao outro seguir lançando tantas e profundas raízes.

Seria o caso então de contribuirmos, no núcleo duro e aterrorizado do agora, com espécie terrorismo absoluto, um terror maior que todos os terrores, em suma, uma barbárie totalmente monstruosa que doravante universalizasse uma recusa definitiva ao terror? Em outras palavras, a pergunta que cabe respondermos é a seguinte: será que só o terrorismo é capaz de dar cabo de si próprio? Vendo a atual impotência das movimentações políticas nesse sentido, é de se pressupor que só mesmo a sua versão prévia, o despotismo, primogênito da barbárie, possa realizar tal empresa.

Lembrando da máxima de Paracelso, médico e físico suíço-alemão do século XVI, qual seja, “a diferença entre um remédio e um veneno está só na dosagem”, é preciso investigar qual seria a dose precisa de terror para que ele fosse um veneno a si próprio, ou, tanto faz, um remédio para a paz mundial. Um elixir paradoxal que, aplicado comedidamente, fizesse com que a quase banalizada ignomínia terrorista esgotasse seu “potencial mensageiro” -como colocaria Eco- e que deixasse irremediavelmente claro a todos porque este tipo de “conversa” não deve mais ter lugar nem vez no nosso mundo.

Colocar-se e responder essa pergunta, porventura, não seria a maior vantagem da civilização em relação à barbárie? Ou, em troca, seria a vantagem desta sobre aquela? Linha tênue essa que separa a barbárie da civilização! Outrossim delicada é a dinâmica que faz com uma suscite a outra, dialeticamente, como viemos tentando pensar até aqui. Dando uma passo além de Paracelso, é preciso dizer que não só a dose do “remédio/veneno terrorisa” a ser aplicado contra o terror real é fundamental. Também a fórmula específica dessa paradoxal “poção” é importante, pois assim como o atual mal terrorista é peculiar, outrossim específico deve ser o veneno/remédio contra ele.

Somente me privo de vaticinar que terror e que dose seriam os mais adequados por dois motivos. Em primeiro lugar, porque decerto já me expus e contrariei o senso comum em demasia fazendo do terror a solução ao problema que ele mesmo é, sem dizer da fé no investimento na barbárie como via à civilização. E, em segundo e último lugar, porque mesmo entendendo que sou bárbaro e civilizado ao mesmo tempo, a pequena vantagem que, em mim, a civilização ainda tem sobre a barbárie é suficiente para impedir-me de ser um terrorista ipsis litteris.

“Uma única andorinha não faz verão”, diz o provérbio popular. Do mesmo modo, um bárbaro solitário –hoje em dia um “lobo solitário”- não faz a revoada bárbara capaz de produzir o verão civilizado de que tanto necessitamos. O paradoxal passo civilizatório que viemos tentando pensar até aqui se dará somente quanto tanto o terror quanto a sua dose, digamos assim, medicinais, forem prescritos e administrados coletivamente. Do contrário, teremos um mundo de semicivilizados aterrorizados por um único semibárbaro terrorista. A balança então penderia para a civilização, todavia,  com esta sendo apenas peso morto na sempiterna dinâmica da humanidade.

Tecnobarbárie

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Assistir “Eye in the sky” (olho no céu), de 2015, filme inglês que trata de uma operação militar internacional de captura de terroristas no Quênia, é ter a rara oportunidade de ver os pretensos civilizados ocidentais dizerem a si mesmos que são mais bárbaros do que os bárbaros que costumam atacar em nome da “civilização”.

O filme começa com um general inglês em uma loja chique comprando uma boneca para a sua neta. A segunda cena é a de uma menina muçulmana pobre brincando com um bambolê que seu pai acabara de fazer. Brincadeira todavia secreta, autorizada somente dentro dos muros domésticos, pois para os muçulmanos brincar é pecado. No outro canto do quintal, sua mãe, diante de um forno à lenha, assa pães que em seguida serão vendidos pela menina nas vielas da cidade. Trabalhar publicamente pode, brincar não.

Enquanto isso, um drone inglês que sobrevoa a cidadela da África oriental tem sob mira uma outra casa onde estão cinco muçulmanos se preparando para um ataque terrorista em um shopping center de Nairóbi, capital do país. Do outro lado da câmera e dos mísseis “drônicos”, em escritórios confortáveis e seguros locados em Londres e nos Estados Unidos, estão generais, coronéis, tenentes, secretários de estado, e primeiro ministro, todos prontos para autorizar o bombardeio da residência em questão.

Porém, no momento em que o tenente que opera o drone recebe a ordem de iniciar o bombardeio, a menina da abertura do filme monta uma barraquinha para vender os pães feitos pela mãe justamente do outro lado do muro da casa a ser alvejada. O operador, ciente de que a menina será explodida junto com o alvo, recusa-se a lançar o míssil e pede por nova avaliação de risco, uma vez que, agora, nas baixas constará também uma criança que nada tem a ver com o ataque ao grupo terrorista.

Incrédulos, os seus superiores “worldwide” não entendem o drama de consciência do tenente. Alegam que se não bombardearem os terroristas naquele exato momento o ataque que em seguida praticarão matará cerca de oitenta pessoas no shopping center. Poupar a vida de uma criança, portanto, não justificaria a consequente perda de dezenas de outras vidas segundo a lógica civilizada dos ingleses. Os americanos, como era de se esperar, são mais insensíveis ainda, dizendo que se os ingleses declinassem da operação os Estados Unidos os retalhariam.

Entretanto, a lógica sensível do tenente operador do drone é comprada por uma política inglesa envolvida no caso. Porém, por outra razão. Temendo que a notícia da morte de uma criança inocente mobilize negativamente a opinião pública mundial, a política tenta convencer os grandões do poder internacional de que se eles bombardearem os terroristas e a menina morrer, os terroristas vencem. Para ela, seria mais vantajoso os terroristas explodirem o shopping center lotado, pois assim a sensibilização internacional seria contrária aos terroristas, e não aos ingleses e americanos.

Para resolver a situação, a coronel responsável pela avaliação de risco da operação secretamente forja um risco bem menor do que o real, reinformando a todos que a probabilidade de a garota morrer é de apenas 45%. De posse desse novo e falso dado, a casta político-militar chega à conclusão de que vale a pena seguir com o bombardeio. Então, reordenam ao tenente que controla o drone que prossiga. Com lágrimas nos olhos, e ciente de que a garota morrerá, ele aperta o botão. Nos quarenta segundos entre o disparo pelo drone e a explosão da casa terrorista, não só ele, mas todos os militares e políticos do filme fixam seus olhares exclusivamente na menina diante dos pães.

O alvo é explodido espetacularmente. A menina é arremessada para longe junto com escombros do muro que a separava da casa alvejada. A atenção de todos segue sobre a garota ensanguentada e estirada no meio da rua até que os pais dela chegam correndo, desesperados, e se debruçam sobre ela. Só que os militares “civilizados” percebem que um dos bárbaros terroristas ainda estava vivo. Sem pestanejar, e sem darem espaço de manobra ao operador do drone, ordenam que seja lançado mais um míssil, dessa vez sem avaliação de risco algum.

Nova explosão. A menina, que já estava ferida e inconsciente por conta da primeira explosão é atingida novamente, só que dessa vez seus pais também. Já a cúpula político-militar internacional, preocupa-se em confirmar visualmente apenas as mortes dos terroristas. Fora do quadro filmado pelo drone, os aliados locais dos terroristas mortos esvaziam um jipe cheio de armamento para levarem a garota seriamente ferida a um hospital. Não obstante, a garota morre assim que lá chega. Seus pais, outrossim feridos, só podem chorar sem entender o que aconteceu.

No lado civilizado do mundo, mesmo com a vitória técnica da “civilização” contra a “barbárie”, os europeus e americanos não conseguem olhar nos olhos uns dos outros. Resta silenciosamente no ar “civilizado” e refrigerando que os envolve a desconfortável certeza de que eles são mais bárbaros do que os bárbaros que atacaram. O general da abertura do filme deixa seu escritório com a boneca que comprou e segue cabisbaixo para presentear a neta. Encerrando o longa-metragem, a cena da garota brincando alegremente com o seu bambolê secreto horas antes de morrer. Morrer, pública e espetacularmente, pode. Brincar, não.

A “história para inglês ver”, que deliberadamente inverte a arraigada certeza sobre quem são os verdadeiros e mais cruéis bárbaros, mesmo que não tenha vindo às telas para mudar o mundo, tem ao menos a virtude de denunciar que sob os mantos científico, técnico e burocrático a barbárie ocidental ainda consegue mentir para si mesma, e para quase todo o mundo aliás, que é civilização. De acordo com essa lógica mentirosa, matar à distância segura e covarde de um drone é civilizado. Já na intimidade corajosíssima de um colete-bomba, barbaridade.

O patrimônio da humanidade, a barbárie e a civilização.

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Assistimos indignados, das críticas torres envidraçadas da nossa pressuposta civilidade, ao Estado Islâmico destruir patrimônios arqueológicos da humanidade, como por exemplo as antiquíssimas estruturas arquitetônicas da cidade síria de Palmira. Nós, ocidentais, que quase tudo destruímos do nosso patrimônio arqueológico e arquitetônico, para no lugar dele construirmos as nossas metrópoles modernas, do topo do nosso belvedere civilizado só conseguimos ver a barbárie daqueles lá longe. Já a nossa, que está bem próxima, fazemos de conta que não vemos.

O que provoca essa nossa hipermetropia? Em outras palavras, por que a mesma coisa, se “produzida” por aqueles fundamentalistas é chamada de barbárie, e se produzida por nós, é desenvolvimento? Ontem mesmo, caminhando pelo centro histórico do Rio de Janeiro, dito tombado, recoloquei-me essa pergunta ao ver, incrédulo, a demolição de dois palacetes que há mais de trezentos anos faziam a beleza patrimonial arquitetônica e cultural da esquina da Rua do Rosário com a avenida Primeiro de Março, bem em frente ao Centro Cultural Banco do Brasil.

Ao lado do que ainda restava dos antigos edifícios, já dava para ver as fundações apressadas do que provavelmente serão mais dois arranha-céus comerciais antipáticos e revestidos de vidros espelhados que outra coisa refletirão senão a civilização seguir barbarizando o patrimônio carioca que ainda resta. Só que esse patrimônio carioca que vai sendo barbarizado também é dos brasileiros e, sumamente, da humanidade. Porém, os prédios novos que em pouco tempo jazerão impávidos no coração Rio antigo refletirão mentirosamente apenas a ideia de desenvolvimento.

Agora, se em um ano o Estado Islâmico continuar destruindo as arquiteturas antigas do mundo árabe – o que é bem provável, afinal, “assim caminha a humanidade” -, os executivos das torres pós-modernas que estarão no lugar das arquiteturas destruídas da Rua do Rosário dirão daqueles: são uns bárbaros, destroem o patrimônio da humanidade! Entretanto, nem precisaríamos destas duas novas torres tupiniquins críticas para que a “jihad” desenvolvimentista do “Estado da Guanabara” fosse tão abjeta quanto a jihad fundamentalista do Estado Islâmico.

Basta lembrar de Pereira Passos, que, apelidado de “bota-abaixo”, barbarizou o Rio antigo dos 1900 para, no seu lugar, edificar o belo Rio de Janeiro da Belle Époque, imitando o Barão Haussmann que, cinquenta anos antes de Passos, fez o mesmo com a Paris medieval, da qual era prefeito. Todavia, de tais bárbaros é dito que fizeram “cirurgias urbanas”. E por esse corpos plastificados, como Paris e Rio exemplificam muito bem, temos inclusive adoração cega, praticamente fundamentalista.

Outro exemplo histórico da barbárie carioca contra o patrimônio da humanidade, cometido pelo sucessor de Pereira Passos,  foi o “desmonte” do Morro do Castelo, que se situava bem no centro do Rio de Janeiro, que abrigava não só fortalezas coloniais de valor histórico inestimável, que foram “desmontadas” com o morro, como também um panteão imaterial de religiosidades negras mal vistas e malquistas pela “civilização” da época, outrossim colocadas por terra.

A histórica destruição de patrimônios nas terras cariocas, que sege firme até hoje com o “desmonte” dos dois palacetes da Rua do Rosário, entretanto, parece não recebe críticas tão radicais quanto as que despejamos contra os radicais islamitas. Por quê?

Ora, criticamos radicalmente e sem pestanejar o Estado Islâmico pela destruição do patrimônio da humanidade para que sejam eles, e apenas eles, os bárbaros destruidores do patrimônio humano. Agindo desse modo, de um lado, podemos seguir destruindo o patrimônio da humanidade que ainda existe no nosso quintal, e, de outro, nos alienamos eficientemente do triste fato de que o “patrimônio” humano mais perene é mesmo a destruição de seu próprio patrimônio, seja em Palmira, seja em São Sebastião do Rio de Janeiro.

O mais irônico de tudo é que quando queremos civilizadamente preservar algum patrimônio arquitetônico ou cultural da nossa incontrolável barbárie, usamos a expressão “tombar”. Embora “tombar” signifique “preservar”, essa palavras não deixa de remeter a “fazer cair”, a “botar-abaixo”. Talvez usemos a palavra “tombar” para, própria e civilizadamente, dizer a nós mesmos que queremos preservar os nosso patrimônios, mas, comezinnha e barbaramente, para não nos esquecermos de que nós também somos radicalmente destrutivos em se tratando de patrimônio da humanidade.

A barbárie e a medida da nossa indignação

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Foto: PCO – Presídio de Pedrinhas, Maranhão.

Ao lermos a notícia primeiramente divulgada pela agência curda “Arab News”, mas rapidamente replicada por jornais de todo o mundo, de que no dia 18 de fevereiro de 2016 o adolescente Ayham Hussein, de 15 anos, foi decapitado em praça pública por jihadistas do Estado Islâmico, simplesmente por ouvir música Pop ocidental, quão indignados ficamos ou achamos que devemos ficar? Muito, diremos nós. Afinal, no nosso ocidente laico&liberal jovem algum é decapitado em praça pública por con$umir música Pop. Somos civilizados, ora bolas, bem diferentes daqueles bárbaros radicais. Por isso não temos dúvida de que devemos devemos ficar absolutamente indignados com o que aconteceu a Ayham. Entretanto, seria essa a justa medida para a nossa indignação em relação à barbárie cometida contra Ayham?

O problema dos sentimentos, posturas ou crenças absolutos é que inviabilizam sobremaneira a reflexão, ou seja, o virtuoso uso razão. Se em Filosofia “absoluto” é definido como realidade suprema e fundamental, independente de todas as demais, qualquer filósofo nos dirá que se a nossa indignação a respeito do destino que o E.I. deu a Ayham é absoluta, ela não é menos radical que a indignação absoluta dos jihadistas em relação ao gosto do adolescente por música Pop ocidental. O vício do radicalismo jihadista parece ser muito claro para nós. Agora, o vício do nosso radicalismo, a partir do qual criticamos aquele, é igualmente claro?

Ora, se é só pelo fato de os membros do E.I. seguirem fundamentos absolutos que eles são criticados por nós, ocidentais, enquanto os criticarmos absolutamente, do topo dos nossos caros fundamentos laicos&liberais, desculpem-me, merecemos a mesma crítica, gostemos ou não dessa consequência. Isso porque a nossa indignação absoluta nos impede de pensarmos a questão reflexivamente. O absoluto não reflete. Em que iria refletir-se se só há ele? A recusa dialética que toda ideia absoluta envolve, no caso da morte de Ayham, rouba-nos, por exemplo, a possibilidade de perguntarmo-nos se além da compaixão pelo adolescente árabe fã de música Pop a nossa indignação absoluta diz mais coisa, e o quê.

Uma vez que absoluto também é definido como a quintessência da abstração, a essência e o termo da generalização, a nossa repulsa absoluta ao que concretamente aconteceu a Ayham, primeiramente, é uma forma de nos alienarmos justamente do indivíduo concreto Ayham, para, em seguida, mediante essa abstração, colocarmos no lugar dele qualquer adolescente que possa ser decapitado pelos mesmos motivos, senão para, em terceiro e último lugar, imaginarmos os nossos filhos, irmãos, netos, sobrinhos, e até nós mesmos, sendo decapitados pela barbárie fundamentalista dos outros.

A sordidez desse movimento, que não é fácil de aceitar, é análoga à análise que  Slavoj Zizek fez acerca da assistência humanitária que os países ricos dão aos miseráveis do terceiro mundo. Para o filósofo, tal humanitarismo nunca serviu para realmente ajudar o terceiro mundo, mas para que os próprios países ricos possam desfrutar de igual assistência no caso de futuramente precisarem. Se, como esclarece Zizek, o desejado altruísmo é mesmo apenas a melhor máscara para o indesejado egoísmo humano, a nossa indignação absoluta com a barbárie cometida contra Ayham desconsidera o próprio Ayham senão para endereçar a nossa indignação a nós mesmo, mais especificamente, ao nosso desejo de não sermos decapitados radicalmente pelo que gostamos ou acreditamos. Tal assunção é radical!

A indignação absoluta a respeito do que o E.I. fez com Ayham nos submete a uma espécie de cegueira que, entre outras coisas, faz com que esqueçamos, por exemplo, de que muitos dos nossos jovens, principalmente os que não seguem à risca o “playlist” ocidental, sofrem um tipo de violência que, embora não os decapite espetacularmente, impede-os subterraneamente de viverem as suas vidas, de modo tão irremediável como se suas cabeças tivesse sido arrancadas. Estou falando obviamente do mui ocidentalizado “bullying”, que, como nossas agências de notícia cada vez mais divulgam, leva muitos adolescente a darem cabo de suas próprias vidas, não em praça pública, mas na solidão insuportável de suas sensações de inadequação em relação ao mundo que, por violência externa, foram levadas a sentir.

Condenar absolutamente os jihadistas do E.I pelas bárbaras decapitações que promovem nos seus domínios, faz também com que nos esqueçamos de que no nosso próprio quintal brasilis acontecem decapitações tão ou mais bárbaras que aquelas. O que em 2014 se deu quase que sistematicamente no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, mas que ainda hoje acontece, seja lá mesmo, seja em outros presídios brasileiros, isto é, presos decapitando presos e usando suas cabeças como moeda em troca de celas menos lotadas, de alimentos não apodrecidos, até de fornecimento de maconha, tal barbárie, digamos assim, doméstica, não deveria ficar de fora das nossas reflexões sobre a barbárie e as decapitações do E.I. No entanto, a nossa indignação absoluta com aqueles bárbaros outra coisa não faz que nos alienar das nossas.

A nossa reflexão, todavia, não será realista se, para finalmente considerarmos as nossas barbaridades tupiniquins, tomarmos alguns do presos de Pedrinhas como os radicais bárbaros absolutos, e os decapitados enquanto vítimas absolutas. Pelo menos no caso maranhense, todos os presos eram vítimas de uma barbárie muito mais radical: o sistêmico descaso do governo daquele estado com seus cidadãos em função da manutenção de seu podre poder. E na barbaridade de Pedrinhas, ainda que sem sujar as mãos com o sangue dos presos, o bárbaro-mor era ninguém menos que Roseana Sarney, princesa da oligarquia peemedebista maranhense que, desde 1966, é encabeçada por seu pai, José.

A barbárie que Pedrinhas evidenciou, que até hoje pode ser vista pelo Youtube, e da qual nos esquecemos ao nos indignarmos absolutamente com a barbárie do E.I., pode ser ainda mais bárbara que a dos jihadistas radicais. E isso porque o governo do PMDB tocado por Roseana, que criou as condições concretas para aquelas decapitações, esconde a sua barbárie justamente no fato de ter sido eleito democraticamente, mentira todavia tornada real por conta do poderio midiático do clã Sarney, proprietário de seis afiliadas da TV Globo, de emissoras de rádio e de vários jornais. Ainda que disfarçadas, as decapitações que se seguiram do “jihadismo” oligárquico dos Sarney são tão equivalentes às que se seguem do jihadismo do E.I que ambas têm lugar indiferenciado no Youtube. Basta digitar duas palavras e, voilà, barbáries árabes ou brasileiras!

A “jihad” dos nossos Sarneys, essa histórica cruzada familiar cujo objetivo nunca foi outro senão manter o Maranhão como curral exclusivo de seus fundamentos supremos, e que, para tal, inclusive dezenas de cabeças tiveram de rolar, é mais bárbara que a jihad do E.I. no sentido de que é estrategicamente dissimulada. A barbárie do E.I. tem ao menos a virtude de não esconder de ninguém que é absolutamente tirânica. Já a maranhense, de José e Roseana, se vale do moderno vício oligárquico de se disfarçar com a toga branca da democracia. Porém, para que ambas as barbáries sejam condenadas -pois é isso que merecem!-, a estrangeira não deve monopolizar absolutamente a nossa indignação. Temos de sujar as mão, melhor dizendo, as nossas ideias com no mínimo a barbárie que rola solta no nosso quintal, ainda que a um maranhão de distância de nós.

Do contrário, se a nossa indignação com a barbárie do E.I. for absoluta, isto é, se for suprema e independente de todas as demais, outra coisa não faz que dispensar os nossos bárbaros domésticos de receberem a mesma e merecida crítica, o que pode fazer com que inclusive sejam eleitos democraticamente outras vezes. Além do que, a nossa indignação absoluta com o que aconteceu com Ayham, trazendo à nossa revolta a quintessência da abstração, aliena-nos inclusive da barbárie concreta dos jihadistas muçulmanos. Absolutamente indignados com as decapitações do E.I. findamos, de um lado, com uma revolta abstrata contra os jihadistas muçulmanos, e, de outro, com uma alienação concreta em relação à barbárie brasileira que, consequentemente, só favorece os nossos “jihadistas” pátrios.

Então, ao lermos sobre a triste morte de Ayham, a justa medida para a nossa indignação deve estar entre a apatia total -que, infelizmente, é quase generalizada-, e a indignação absoluta –que, não menos felizmente, é como as pessoas que se permitem ser atravessadas pela questão imediatamente se sentem. O que deve ficar claro é que tanto não dar bola para o que aconteceu com Ayham, quanto achar que o triste fim do adolescente é a pior coisa do mundo, outra coisa não é que agir como um bárbaro que deliberadamente deixa de ver a complexidade da realidade. E o que se deixa de ver, seja com a cegueira apática, seja com indignação absoluta, é justamente que a barbárie não é coisa somente de muçulmanos radicais, que cabeças que falam português também são decepadas por motivos radicalmente vis.

Não é só além-mar que estão os bárbaros contra os quais devemos nos indignar. As dezenas de presos decapitados em Pedrinhas pela barbárie maranhense estão aí –na nossa história, no Youtube- para não deixar os brasileiros se esquecerem disso. Mesmo que a barbárie além-mar nos aliene espetacular e absolutamente da barbárie tupiniquim, pelo menos o Maranhão, que, ironicamente, em Tupi, significa “mar grande”, ainda é o oceano-totem bárbaro suficientemente concreto para nos sacar da abstração a que nos submetemos ao nos indignarmos absolutamente com a barbárie jihadista do Estado Islâmico.

Dilma punida, mas não vigiada.

Se olhássemos a situação política na qual se encontra Dilma Rousseff através das lentes que Foucault nos oferece em Vigiar e Punir, obra que conta a história da manutenção do poder soberano através da observância e do castigo àqueles que o desafiam e reivindicam para si, veríamos que, pelo menos no Brasil, a vigilância e a punição do soberano sobre os súditos de que fala o filósofo trocou de lugar com a vigilância e a punição dos cidadãos brasileiros contra a sua presidenta.

Com efeito, hoje é a representante soberana que é punida por seus súditos, justamente os que, em tempos idos, seriam punidos por ela caso desafiassem a legitimidade do seu poder. Porém, pelo fato de Dilma estar sendo punida sem, no entanto, ter sido devidamente vigiada, isto é, investigada e comprovado algum crime contra ela, o que temos é uma tirania invertida na qual o povo, considerando-a tirana, é que a tiraniza ostensivamente.

Ao contrário de um soberano medieval, que punia em praça pública os súditos que o desrespeitavam, pois a punição espetacular de alguns era a melhor vigilância sobre os demais, hoje, são os cidadãos que, outrossim em praça pública, punem espetacularmente a representante soberana, como se a punição absoluta que tentam contra ela, qual seja, o impeachment, fosse a prática mais adequada para se ser política e cotidianamente vigilante.

Para um bárbaro que vive de extremos, vá lá tamanho radicalismo. Todavia, para nós, pós-modernos civilizados e democráticos, começar agindo politicamente já no limite da suspensão da civilidade e da própria democracia significa apenas que muito deixou de ser feito antes desse ato radical. De fato, quem começou a clamar por um país melhor pedindo a renúncia da presidenta dá provas de que nada além de um radicalismo ultrapassado tem para contribuir com o Brasil.

Além do que, o efeito colateral radical dessa forte punição do povo contra a sua presidenta é a fraca vigilância e a não punição desse mesmo povo em relação a súditos como eles, metidos a soberanos, tais como “Eduardos”, “Aécios” e “Fernandos”. Ora, se, aqui, o equilíbrio entre vigilância e punição é alterado poer alguns, ali esse desequilíbrio se expressa e se reflete contra estes mesmos.

De modo que é somente quando um povo e o seu soberano acordam sobre o que é vigiar, o que é punir, e qual a relação entre estes dois, que todos estaremos livres de sermos punidos sem termos sido devida e democraticamente vigiados uns pelos outros. Um povo que não vigia, prévia e adequadamente, aqueles a quem pune acaba por ser punido justamente pela sua incapacidade de vigilância. O preço, por conseguinte, é toda sorte de “Cunhas” e “Collors” deixarem de ser devidamente vigiados e, a partir de tal inobservância, galgarem para si uma soberania que não lhes cabe.

Com efeito, punir a presidenta antes de vigiá-la propriamente é agir como um príncipe medieval que, alheio às práticas cotidianas dos seus súditos, conhece-os apenas no curto trajeto entre o crime e o cadafalso mortal. Aí, nada mais há para ser feito. Não há, portanto, possibilidade de evolução. Agora, se quisermos agir em quanto partícipes de um Estado Moderno, temos de nos valer da miríade de instâncias que ele introduz entre os atos capitais de vigiar e punir.

Se o súdito medieval era imediatamente punido com a morte espetacular pelo príncipe que, entretanto, não o vigiava previamente, o cidadão moderno, em troca, conta-nos Foucault, é absolutamente vigiado desde que nasce: na maternidade, na escola, no condomínio, na fábrica, no manicômio, no tribunal, e, em caso de ser considerado realmente criminoso, na prisão. A imediata punição medieval se transformou, desde a modernidade, em uma extensiva e democrática vigilância de uns sobre os outros.

Portanto, punir alguém em praça pública sem sequer tê-lo vigiado minimamente, seja ele súdito, príncipe, cidadão ou presidente, reacende uma barbárie que não deve mais ter espaço no atual estágio histórico. Sendo assim, aqueles que não conseguem vigiar antes de punir devem fazer – ou refazer – a “Via Crúcis” da modernidade e aprender o que é vigiar e ser vigiado – na maternidade, na escola, na fábrica, no manicômio, no tribunal – e, em caso de seguir punindo indevidamente, aprender o que é punição, todavia na prisão.

Grécia descalça sobre espinhos europeus*

A Grécia a.C. levou democracia, arte, arquitetura, ciência e filosofia aos confins do mundo antigo numa empresa epopeica&histórica chamada de Helenismo, que quer dizer “viver como os gregos”, concretizando assim o ideal do seu grande invasor, Alexandre, o Grande. A difusão da cultura Grega, entretanto, não ficou restrita àquela época e região, mas fez carreira exitosa, mundo e futuro afora, merecendo o longevo título “o berço da civilização”. Dois mil anos depois, a Hélade agoniza, não naquele berço esplêndido, mas num leito crísico&econômico atualíssimo, por cujo pernoite, aliás, ela não pode pagar.

Em um mundo no qual a economia faz es vezes da democracia, da arte, da arquitetura, da ciência e da filosofia juntas, a Grécia é novamente invadida, só que agora o Alex da vez é o Capital, o Grande. Diferente de há 2300 anos, os atuais dominadores-credores que se assenhoram da Grécia não querem saber de peculiaridades suas algumas, para então disseminá-las “Worldwide”, mas sim de levarem o seu “World Very Wild” econômico-globalizado para lá, para então legarem os parcos Euros gregos à ‘liberabília’ mundial.

O mesmo mundo que, na antiguidade, ganhou dos gregos a civilização, na contemporaneidade, não se importa em assassinar essa mãe civilizadora para saciar a sua sede, contudo insaciável, de cifrões. O império do capital, portanto, outra coisa não representa senão a mais abjeta barbárie – cujos bandos partem dos bancos – marchando à passos econômicos na ágora globalizada do exato agora. Hoje em dia, basta fazer do dinheiro um Deus para que a barbárie reluza palidamente um verniz de civilidade. Todavia, como diz um velho provérbio grego, “As vestes não fazem o sacerdote.”

O bárbaro-mor da vez é o perverso Banco Central Europeu, para quem não é problema algum devassar uma nação inteira, precisamente porque ele é o primeiro banco central do mundo cuja sagaz centralidade dispensa um território e uma soberania nacional, ou seja, uma nação. Ora, por que um banco que não representa nenhum país determinado se privaria de arruinar um país historicamente determinado como a Grécia? Ademais, uma vez vitorioso no ‘economicídio’ da moeda mais antiga do mundo, o Dracma grego, o euro, essa vil moeda sem país, só precisa seguir ‘eurobarbarizando’.

Agora, se no passado a Grécia legou ao mundo a sua cultura, de valor inédito&inestimável, no presente, ao contrário, é o mundo que leva a ela a sua cultura, de valor liberal&globalizado, cuja arquitetura, arte, ciência e filosofia trata sobretudo do capital. Entretanto, o que pode a Grécia novamente legar ao mundo a partir desse angusto legado que a atualidade lhe impõe? Pobreza não é, pois com isso o mundo já convive há muito tempo. Calote tampouco, afinal, esse também já é um fantasma demasiado internacionalizado.

Ora, se lembrarmos que a polis grega antiga foi o berço da política, cujo lastro democrático acolhia os cidadãos e os seus problemas, para, mediante a palavra, resolvê-los diretamente, o que a metrópole grega contemporânea pode voltar a disseminar sobre o mundo é a arte, assaz ausente hoje aliás, de solucionar enigmas globais com o verbo local. O Eurobanco, obviamente, não quer cambiar capital por discurso nenhum. Porém, ao repetirem impertinentemente que não irão pagar conforme quer o Bárbaro Central Europeu, os gregos, retórica&civilizadamente, fazem da Europa inteira a sua nova assembleia política. Os gregos contemporâneos parecem não ter esquecido de um provérbio ancestral: “É preferível ser dono de uma moeda a ser escravo de duas”.

Na acrópole ateniense, mulheres-colunas-gregas chamadas de cariátides sustentam em suas cabeças, há 2500 anos, o peso do templo de Erecteion, consagrado a Palas Atena, deusa da civilização, da guerra, da sabedoria, da artes, da justiça e da estratégia. Para Atena, a recente pressão do BCE sobre a Grécia é apenas um vento invernal. Já as cariátides, d o topo mais nobre da Hélade eterna, simbolizam perenemente que os gregos e as gregas têm dentro de si um ‘daimon’, isto é, um espírito-guardião, capaz de suportar, não só o peso do tempo, mas também o peso dos templos, sejam eles às divindades, sejam os do capital, afinal, como diz outro provérbio grego, “São os cães maus que morrem dolorosamente”.

*do provérbio grego “Como você vai andar descalço sob os espinhos?”

Pecha sofística-filosófica

Os sofistas, mestres mambembes que viajavam o mundo antigo vendendo práticos saberes, discursos políticos e estratégias argumentativas, ganharam já de Sócrates e de Platão o famigerado estigma charlatanesco que dura até hoje. Tachada por estes filósofos como a arte da prestidigitação com as palavras, a sofística passou a ser mal vista porque entendia o conhecimento pelo seu viés pragmático e particular. Ora, essa postura afrontava os filósofos que buscavam sobretudo as verdades de validade universal. Porém, é absolutamente parcial, quiçá injusto, procurar pela pertinência da sofística apenas no seu produto final, isto é, nos seus efeitos, esquecendo-se das causas que a trouxeram à vida. Então, contornando o malicioso anacronismo filosófico que peitou os sofistas pela frente, vale acompanhar estes malogrados técnicos do discurso desde antes do encontro que tiveram com os amantes da sabedoria.

Voltemos, então, ao período compreendido entre o abandono da vida nômade e a instituição da polis grega, no qual o homem ainda carregava consigo, na agora civilizada, reminiscências de sua selvageria, tais como a escravidão e a subjugação das mulheres aos homens. Com efeito, para os virtuosos polités atenienses, os escravos, as mulheres, e obviamente os estrangeiros, não eram cidadãos, mas seres com os quais eles podiam – e inclusive deviam – lidar despoticamente. Entretanto, para permanecerem convencidos de suas pretensas civilidades, e, mais importante, alienarem-se da barbárie que ainda sustentavam em pleno seio político, aqueles déspotas precisavam se relacionar com a verdade de um modo que ela não se revelasse completamente. Ou, do contrário, eles seriam informados por ela, a contragosto, que eram ainda bárbaros, entretanto, envoltos em togas de fino linho e tagarelando na assembleia.

Se foi a capacidade de transpor em palavras aquilo que antes só se resolvia através da força física o carro chefe da polis grega, pois só se chega à civilização pensando e dialogando sobre a barbárie resistente, a arte de bem falar, em seu estado nascente, a outra coisa não atendia senão a bestialidade de homens que, sobretudo, desejavam garantir a posse de suas terras, de seus escravos, bem como de seus despotismos arraigados. Portanto, a retórica, de imediato, foi uma forma civilizada, aplicada, todavia, sobre a função bárbara que ainda errava pela cidade; embora, posteriormente, ela tenha se aliado à verdades mais nobres, virtuosas, inclusive científicas. Porém, antes disso tudo, a retórica teve de lidar com os objetos mais baixos de uma recente e instável civilidade em construção.

Tomemos a justiça, esse pilar da civilização, como exemplo: fazê-la com as próprias mãos – selvageria -, é uma coisa; outra bem diferente é cunhar para ela um conceito de validade universal – filosofia. Há um longo, porém nem sempre retraçado, caminho entre estes dois extremos. Um conceito universal de justiça, por mais belo e justo que pareça, é vazio, portanto desnecessário, se não for antecedido e preenchido por uma miríade de fatos particulares nos quais as muitas ideias de justiça se entrecruzem. Sob um posto de vista, todas as particularidade acerca da justiça são a substância priori do conceito universal, e a posteriori, de justiça. Tratando-se, então, de qualquer coisa, inclusive de justiça, podemos começar abordando ou suas particularidades, ou sua universalidade, porém, atentando para o fato de que esta só é possível a partir daquelas.

A busca pelos universais era a arte própria dos filósofos. Os sofistas, inversamente, não acreditavam em tal universalidade, pois, oriundos do estrangeiro e viajados pelo mundo antigo, percebiam claramente que não existia essa coisa chamada verdade universal; que aquilo que os homens acreditavam, cultuavam, e pelo que lutavam até a morte era apenas convenção; que a verdade para um povo era tão diversa da verdade para outro quanto estes povos eram diferentes entre si. Sequer uma ideia absoluta sobre os deuses havia. Portanto, não tendo encontrado objetos universais, os sofistas não tinham motivos para investigá-los nem se ocuparem deles. Antes, investiam naquilo de que nenhum homem conseguia se alhear, isto é, das suas experiências e necessidades particulares.

Cientes do pragmatismo de todos os saberes, os sofistas passaram a vender desde discursos políticos aos cidadãos que desejassem vencer na assembleia, até técnicas de argumentação aos que quisessem se sobressair nas discussões cotidianas. Entretanto, dos sofistas não pode ser dito que comercializavam mentiras conquanto não acreditavam que existisse verdades incondicionais, senão aquelas convencionadas para fins absolutamente práticos. Com efeito, a sofística foi uma pedra no meio do caminho filosófico aberto por Sócrates e Platão. O caráter utilitarista e particular das verdades sofísticas era incompatível com o universalismo contemplativo desejado pela filosofia grega. Porém, a verdade filosófica de certo modo já estava contemplada nas verdades sofísticas, pois, se esta diz que as verdades são criações humanas, para fins não menos humanos, a filosofia de Sócrates e Platão era somente mais uma delas.

Sócrates, dialogando com Hípias Maior, no diálogo platônico de mesmo nome, procurava pelo belo absoluto que, entretanto, nem ele conseguia encontrar. Recusava, por conseguinte, todos as coisas belas que seu interlocutor sofista lhe oferecia: uma mulher bela, uma panela bela, as belezas do ouro, da riqueza, da utilidade etc. Hípias, certo de que só existiam coisas belas, mas não o belo em si – afinal, assim como a verdade, o belo é apenas uma convenção arbitrária -, não teve como saciar a impossível fome filosófica de Sócrates, tendo sido tachado, por este, de charlatão. Outrossim, Platão, insistindo que as ideias de todas as coisas jazem em Deus, e não nas cabeças humanas, tampouco nas coisas do mundo, deu o golpe de misericórdia nos sofistas, impedindo-os definitivamente de falarem em nome da verdade mediante particularidades mundanas. Para o pai da filosofia, a verdade existia alhures, na ideal esfera celeste, e de forma alguma na realidade imediata vendida pelos sofistas.

Ora, Sócrates, procurando pelos universais, e Platão, pelos ideias, findavam sempre com as mãos vazias de algo concreto. O preço da filosofia platônica, portanto, foi a assunção colateral da mais pragmática verdade sofística: de fato, só há as verdades convencionadas pelos homens, nada mais. O resto era apenas elucubração de certos aristocratas ociosos, na manutenção de uma estratégica distância em relação à verdade, para assim se manterem alienados da barbárie que resistia sub-repticiamente nas suas civilidades até então despóticas. Para tanto, os sofistas deveriam ser banidos da República imaginada por Platão e dita por Sócrates, pois, assumindo-se que a verdade é uma convenção, ninguém seria obrigado a subjugar-se eternamente a ela. Ora, se fosse assumido que a verdade era de fato uma deliberação humana, a ancestral verdade acerca da aristocracia de certos homens cairia por terra. Aqui podemos ver a ameaça sofística à barbárie despótica disfarçada de cidadania democrática que regia a Magna Grécia na época do nascimento oficial da Filosofia.

O entrevero entre os diferentes conceitos de verdade para filosofia e para a sofística encontra-se nalgum lugar entre a barbárie e a civilização. A filosofia, desenvolvendo anacronicamente sua promenade, isto é, da civilização à barbárie, não pôde evitar de condenar a verdade pragmática, tácita e necessária a qualquer selvagem. A sofística, fazendo o caminho inverso, partindo da barbárie à ágora civilizada, trouxe consigo a verdade, não menos selvagem, que diz ser nenhuma verdade universal ou ideal. Entretanto, como a pecha entre filósofos e sofistas era também a de gregos aristocratas contra estrangeiros proletários – cujas mercadorias eram seus discursos -, o relativismo sofístico sucumbiu diante da intransigência universalista de Sócrates e do absolutismo idealista de Platão.

Desde então, os sofistas e a sua arte com as palavras são taxados de charlatanismo. Porém, ainda hoje, se eu tentar impor a qualquer contemporâneo meu um conceito universal, por exemplo, de amor, serei tão improdutivo quanto Sócrates. Meu interlocutor, por sua vez, reacenderá a velha chama sofística e me dirá, sem hesitar, que conceito universal algum é mais útil ou válido do que aquele, particular, que ele mesmo tem do amor.

Bárbaros civilizados e radicais

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O ocidente nunca precisou sair de casa para saber o que é barbárie. Porém, diante do ultrarradicalismo do Estado Islâmico nosso conhecimento e nossas categorias de entendimento parecem não bastar. Como categorizar, por exemplo, a destruição de sítios arqueológicos milenares, as decapitações transmitidas “worldwide” pelo Youtube e os arremessos de homossexuais vendados de cima de prédios cometidos por “aqueles bárbaros”? As nossas barbaridades ocidentais, que não são poucas, e, diga-se de passagem, muitas delas mais graves do que as do EI, basta lembrar o nazismo, ainda assim não são capazes de fazer-nos entender a empresa jihadista. Então, como se fôssemos seres sempiternamente virtuosos e desconhecedores do mal, perguntamo-nos: “o que eles querem?”

Ora, isso até a Wikipedia responde: afirmar autoridade religiosa sobre todos os muçulmanos do mundo; voltar para os primórdios do Islã; etc. Porém, retórica alguma nos tranquiliza. Mesmo que nos seja dito “é exatamente isso o que eles querem”, seguimos perguntando: “mas o que é essa coisa que eles querem”? Desconhecer os objetivos do Estado Islâmico é uma ignorância que sem demora pode ser resolvida. Entretanto, sabê-los e ainda assim não compreendê-los é mais do que falta de inteligência ou de conhecimento. Trata-se de uma fronteira intuitiva cujo atravessamento exige categorias de entendimento que o ocidente ou não cunhou ainda para si, ou, o que é mais provável, prefira fazer de conta que não as têm.

Mesmo que condenemos barbaridades ocidentais cada vez mais banalizadas, tais como a destruição de conjuntos arquitetônicos de valor histórico inestimável, para, no lugar delas, a especulação imobiliária construir arranha-céus  ou condomínios de luxo, ou ainda a homofobia, que em plena Avenida Paulista -mas não só lá- espanca e assassina gays, somos perfeitamente capazes de entendê-las, classificá-las, categorizá-las, sem o quê, aliás, não poderíamos condená-las propriamente. Agora, quando a especulação destrutiva é cometida pelo radicalismo religioso muçulmano, e arquiteturas e gays são eliminados para no lugar deles serem edificados os mandamentos de Alá, aí nosso horizonte intuitivo e nossa capacidade de compreensão parecem não ser suficientes.

Diante do radical fenômeno do Estado Islâmico não conseguimos intuir o que pode significar distribuir “pen drives” com cânticos jihadistas religiosos-militares e vídeos antidemocráticos, homofóbicos e xenófobos para, em seguida, torturar, mutilar ou matar cruelmente quem não canta tal musiqueta. Buscamos em vão compreender essas ações através dos nossos correlatos ocidentais, mas nossos feitos, imagens ou palavras resistem em explicam tal realidade. O colorido ensanguentado das bandeiras dos nossos Estados nacionais, a liberdade absolutamente vigiada da nossa internet, e o fato de os nossos direitos humanos ainda serem latifúndio apenas dos ricos e poderosos, tudo isso, somado e potencializado, parece ainda distanciar-nos irremediavelmente da compreensão do fundamentalismo do E.I. Claro, e nessa distância mantêmo-nos estrategicamente no lado “bom” da irresoluta questão.

O fato de não conseguirmos transpor o muro que até aqui nos aliena da  barbárie radical, no entanto, deixa duas coisas bem claras: a presença dessa fronteira intransponível e a nossa incapacidade em transpô-la com o ferramental categórico de que dispomos. Entretanto, nós, que habitamos o lado “bom e livre” do mundo, que pregamos cegamente o laico fundamento da globalização, diante da nossa incapacidade de compreender e de dialogar com lado “mau e fundamentalista” do mundo, entrevemos, a contra-gosto nosso, é claro, a mentira do fundamentalismo capitalista que prega que a única fronteira entre os homens é e deve ser aquela riscada pelo capital, e que basta dinheiro para se comprar o “Green Card” global.

Tal falácia fica clara na animosidade cada vez mais impagável e incompreensível entre o império dito civilizado e o império dito bárbaro. Diante disso, o ocidental civilizado, crente de que sua civilidade deveria lhe garantir tapetes vermelhos estendidos aos quatro cantos do mundo, sente-se ultrajado por não poder “comprar”, sequer compreender a parte do globo a qual chama de bárbara que se lhe opõe terminantemente. Pior ainda, como entender que para “estes bárbaros”, bárbaros são os próprios ocidentais civilizados? Então, talvez para compreender onde está e qual é essa barbárie ocidental de que “aqueles bárbaros” nos acusam, muitos dos nossos civilizados estão indo buscar respostas emigrando às forças do Estado Islâmico e à sua bárbara jihad. Nesse passaporte radical, além da marca polegar da ignorância, está carimbada a incipiente, mas não totalmente mentirosa certeza de que o ocidente é tão ou mais bárbaro do que os bárbaros da imigração jihadista.

A experiência que esses desertores ocidentais buscam nessa abjeta cidadania jihadista, por mais que seja reprovada pelo ocidente desertado, outra coisa não compra que a mercadoria mais rara, e talvez a mais cara do mercado mundial, qual seja: a lente capaz de fazer um civilizado tardio ver a realidade através dos olhos de um bárbaro primitivo. Videogame nem viagem turística alguns são capazes disso! Somente deixando radicalmente a pretensa civilização para trás é que o sujeito laico&ocidental poderá saber o que é o pacotão formado por uma Lei, um Estado e um Deus incondicionalmente absolutos que não se vendem à moeda, tempo ou costume alguns.

Seriam mesmo esses civilizados retirantes, uma vez cidadãos da urbe da barbárie radical, os primeiros ocidentais a cunharem as categorias de entendimento que faltam ao ocidente no sentido de compreender o radicalismo do Estado Islâmico? Do ponto de vista da etiqueta laica&liberal do ocidente, entender com essa profundidade os objetivos do E.I. é uma gafe imperdoável. Porém, por mais “deselegante” e incompreensível que seja para os padrões ocidentais-liberais, os muitos Belgas, dinamarqueses, franceses, holandeses, australianos e ingleses, só para citar alguns cidadãos que aderem ao E.I., estes são os ocidentais a verdadeiramente compreenderem os objetivos dos chamados bárbaros radicais, entendendo, primeiramente, que o mal reside também no cerne da civilização ocidental, e, em segundo lugar, que o mal dos pretensos civilizados é pior que o dos bárbaros radicais.

O que os novos cidadãos do Estado Islâmico podem estar querendo nos dizer é que nossa falta de compreensão a respeito da barbárie radical não se dá porque eles são de outra categoria que a barbárie civilizada. São apenas o outro lado da mesma moeda humana. Por isso não devemos deixar de perguntar a nós mesmos, civilizados ocidentais, se essa nossa manifesta carência de categorias de entendimento capazes de compreender “o bárbaro radical” não é apenas o nosso latente desejo de não enxergarmos que ele está iludido por suas próprias leis, Estado e Deus, assim como nós, pelos nossos. Até onde nos “faremos de burros” e não reconheceremos que todos estamos imersos numa realidade assaz radicalizada, em relação a qual basta ser humano para ser vítima fundamentalista dela?

A arquitetura da humanidade

“Arché”, em grego, significa a fonte, a origem de todas as coisas. “Tektôn”, por sua vez, quer dizer construção. “Architekton”, ou seja, arquitetura seria então o que está na origem de toda construção. Porém, nessa origem arquitetônica começou a ser edificada, sobretudo, a história da humanidade.

A pedra fundamental da arquitetura foi a construção de refúgios, ao molde das cavernas habitadas por milênios pelos homens, símbolos absolutos de segurança e abrigo. Assim sendo, a tarefa primeira da arquitetura foi reproduzir tais cavernas. Todavia, aonde a humanidade precisasse que elas estivessem.

Donos da técnica que lhes deu a portabilidade da caverna, os homens passaram a construir casas para escaparem das vicissitudes da natureza. Ora, como proteção foi o escopo primeiro da arquitetura, foi ela, portanto, que blindou o homem contra o mundo natural.

No entanto, os revezes da natureza, embora do lado de fora das casas, batiam às portas destas. Como a arquitetura já tinha provado sua eficiência em proteger o homem dos perigos naturais, ela passou a ser usada também do lado de fora das soleiras das portas.

Aproximar muitas casas umas das outras foi, então, o modo de protegê-las. Mas o que é uma aglomeração de casas senão uma cidade? Por conseguinte, a cidade foi a forma subsequente de resguardo que a arquitetura legou à humanidade. Nesse âmbito nasce o urbanismo.

A despeito da inicial reprodução de cavernas, foi a cidade, ou melhor dizendo, a urbe a construção excelente da arquitetura. Afinal, somente a partir dela se pôde falar de civilidade. A civilização, portanto, é obra arquitetônica.

Todavia, no momento em que nascia a civilização se definia, por oposição, a barbárie. E se a arquitetura produziu o civilizado, outrossim, criou o bárbaro: um residindo no lado de dentro, e o outro no lado de fora dos sofisticados limites citadinos.

Então, se a história do ser humano é aquela que vai da barbárie à civilização, considerando que foi a arquitetura que produziu tanto uma quanto a outra, pode-se concluir que a história da humanidade é a sua própria arquitetura.